Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
2
CENA 1 - Bebelo Belo (Abertura)
(As cortinas se abrem e tudo fica escuro, B.O. completo. Alguns segundos se dão até que a
plateia ouve Bebelo falando)
BEBELO - Pois, Mãe, o Pai já tá sabendo e até quis. Minh’irmã, querendo o quarto só pra
ela, ficou foi feliz. E a vó já tá é rezando, chamando jesus. Eu deixei a senhora por último,
mas não se sinta mal com isso não, é que eu sei que pesa mais na senhora. Mas é o que tenho
pra te dizer: amanhã eu vou partir pra Fortaleza porque minha vida há de se fazer por lá.
(Assim que ele fala isso, as luzes começam a acender, o instrumental de “Bebelo” começa a
tocar e nós vemos Bebelo de frente pra sua mãe. Ela começa a pegar o ar do mundo todo e,
enquanto a música toca bem alto no fundo, só a vemos gritando com ele, com toda a fúria
de uma mãe que vai perder seu filho metido a artista que quer ganhar o mundo)
(Logo, a cena começa a se modificar. Vemos ele abraçando sua irmã, pedindo a benção de
sua vó e baixando a cabeça pra seu pai. Sua mãe hesita por um momento, mas dá um abraço
apertado em seu filho e faz um sinal da cruz em sua testa. Bebelo parte)
(As pessoas começam a andar rápido de um lado para o outro, como se vagassem na
vastidão centro da cidade. Bebelo entra naquele emaranhado de gente, tentando se
encontrar. Logo, todos se põem a cantar “Bebelo”, como os bichos da cidade grande)
TODOS (MENOS BEBELO) -
B
BE
BEL
B BELO
BE BELO BELO
BEL BELO
BEL BELO BELO BELO BELO
BELO BELO BELO BELO
É BOBAGEM
B BLA BLA BLA
BA BLA BLA BLA
BAL B L A
B BALA
BA BALA BALA
BAL BALA
BAL BALA BALA BALA BALA
BALA BALA BALA BALA
EMBALAGEM
3
TRA TRA TRA
TRA TRA TRA
T R A
(Quando a música se encerra e todos param de cantar, Bebelo está imerso dentre a multidão
- Até que o instrumental de “Apenas Um Rapaz Latino Americano” começa a tocar e ele sai
daquele emaranhado e, finalmente, se apresenta para o público cantando)
BEBELO - EU SOU APENAS UM RAPAZ LATINO-AMERICANO
SEM DINHEIRO NO BANCO
SEM PARENTES IMPORTANTES
E VINDO DO INTERIOR
(Os outros, antes pedestres avulsos, saem e retornam como as suas personagens da história.
Ao longo da música, eles vão montando ao fundo as mesas, cadeiras e afins do Bar do
Anísio)
MAS TRAGO DE CABEÇA UMA CANÇÃO DO RÁDIO
EM QUE UM ANTIGO COMPOSITOR BAIANO ME DIZIA:
"TUDO É DIVINO, TUDO É MARAVILHOSO"
MAS TRAGO DE CABEÇA UMA CANÇÃO DO RÁDIO
EM QUE UM ANTIGO COMPOSITOR BAIANO ME DIZIA:
"TUDO É DIVINO, TUDO É MARAVILHOSO"
TENHO OUVIDO MUITOS DISCOS
CONVERSADO COM PESSOAS
CAMINHADO MEU CAMINHO
PAPO, SOM, DENTRO DA NOITE
E NÃO TENHO UM AMIGO SEQUER
QUE 'INDA ACREDITE NISSO, NÃO
TUDO MUDA!
E COM TODA RAZÃO
MAS NÃO SE PREOCUPE, MEU AMIGO
COM OS HORRORES QUE EU LHE DIGO
ISTO É SOMENTE UMA CANÇÃO
A VIDA REALMENTE É DIFERENTE
QUER DIZER...
A VIDA É MUITO PIOR
4
E EU SOU APENAS UM RAPAZ LATINO-AMERICANO
SEM DINHEIRO NO BANCO
POR FAVOR, NÃO SAQUE A ARMA NO SALOON
EU SOU APENAS O CANTOR
MAS SE DEPOIS DE CANTAR
VOCÊ AINDA QUISER ME ATIRAR
MATE-ME LOGO!
À TARDE, ÀS TRÊS
QUE À NOITE TENHO UM COMPROMISSO
E NÃO POSSO FALTAR POR CAUSA DE VOCÊS
(Aos poucos uma moça começa a passar na sua frente, vindo à distância)
MAS SE DEPOIS DE CANTAR
VOCÊ AINDA QUISER ME ATIRAR
MATE-ME LOGO!
À TARDE, ÀS TRÊS
…
(Então, repentinamente, ouve-se apenas o último suspiro da moça. Ela é atropelada -
acidente ou suicídio? - em plena Avenida Beira Mar na frente de Bebelo. Ouvimos o
desespero de todos que estavam pela rua e no bar. Conversas, lamentos, movimentos, tudo
ao redor de Bebelo, que continua estático. Seu Anísio percebe o estado do rapaz e o convida
para respirar um pouco no seu bar. Bebelo senta enquanto o povo olha ao redor da moça)
SEU ANÍSIO - Augusta, pegue um copo de água pro rapaz que se continuar assim, esse aqui
de hoje não passa também não!
(Dona Augusta vai pegar um copo d’água para Bebelo, enquanto isso, ouvimos alguns
comentários das pessoas ao redor do corpo da garota)
LUZIA - M inha nossa, aí não tem médico que dê jeito. Ela já foi dessa pra melhor...
PUTA MARIA - Alguém conhece a moça? Sabe de onde ela é? (Todos acenam que não)
SEU PADRE - Q ue Deus todo poderoso proteja essa pobre alma.
ZÉ DO CÔCO - Eu vou voltar pros côco porque já já os cana passa e eu aviso pra eles da
garota aqui. Mas oh, pra melhorar a situação, quem quiser colocar pra dentro as água
perdida com o choro, eu vou dar dois côco pelo preço de um! Mas é pra quem viu a
tragédia!!
5
(A multidão vai se dispersando, cada um falando o que bem lhe deve. Vemos Bebelo
ligeiramente mais calmo com sua água)
BEBELO - Obrigado aos senhores viu.
DONA AUGUSTA - Q ue é isso, meu filho. Não é todo dia que alguém morre na sua frente.
SEU ANÍSIO - V ocê não parece que é daqui não. De onde você é?
BEBELO - Desculpa a falta de apresentação, minha mãe me ensinou melhor, é que eu não
sou daqui mesmo não e a morte da garota foi minha primeira impressão… Mas eu me
chamo Bebelo. Eu cheguei há pouco do interior, lá de Sobral.
SEU ANÍSIO - Eu sou o Anísio, pode chamar de Seu Anísio mesmo. Essa aqui é a Augusta,
minha mulher. A gente toma conta aqui do bar, é casa e trabalho pra gente. E o que você tá
fazendo por aqui? Visitando parente?
BEBELO - Nada. Eu vim porque senti que tinha que vir.
DONA AUGUSTA - ( Interrompendo-o) Artista?
BEBELO - Sim, me considero de berço. Por quê?
DONA AUGUSTA - Nada não, só já vi muito mesmo, palpite certeiro. E da minha
experiência, nem sempre é só sobre vir porque alguma coisa tá te chamando, mas também
tem algo da tua terra te expulsando.
BEBELO - É, a senhora é certeira mesmo! Sobral ainda não é o que um dia pode vir a ser. E
nem meu pai... Por isso quis vir logo, tentar a sorte grande, vamos ver se a cidade é o que
promete ser.
SEU ANÍSIO - Se é ou não é, aí fica a teu critério. Como você vais ler tua experiência aqui é
que vai decidir. Bom, ruim, a certeza é que vai ser num lugar aí no meio. Mas diga aqui,
você acabou de pôr os pés aqui? Não tem emprego, nem onde dormir?
BEBELO - Seu Anísio, confesso pra ti que: não. Tudo que eu sei fazer é cantar sobre a vida e
não sei onde vou fazer isso por aqui. Mas preciso fazer isso pra ter dinheiro e poder dormir
em algum lugar por aí! Até dinheiro pra hotel eu tenho, só que só por uma noite… Tô mesmo
é na pindaíba!
6
SEU ANÍSIO - Então, tu é cantor? Do nível de sofrimento na vida, só perde pro ator! Porque
oh bicho sofrido é quem gosta de atuar e o pior é que não tem quem dê o valor. Mas diga
aqui de novo, tu é bom no que faz?
BEBELO - Bom ou ruim, eu vou ter que provar pra quem quiser ouvir. Não sei se o senhor
vai gostar, mas é o que eu sei fazer de melhor, é tudo que eu sei fazer. Eu ia procurar um
lugar pra me provar, mas me perdi todinho com a morte dessa menina aí. Vocês conheciam
ela?
DONA AUGUSTA - Nunca nem vi, mas do jeito que as coisas andam, vamo ver muito mais
por aí.
SEU ANÍSIO - E você canta mais música de que cantor?
BEBELO - Minhas mesmo, senhor! Eu vejo as coisas na vida e as coisas vão virando palavra
até que sai em música. Eu toco uns instrumentos, mas é pouco e ruim, só pra me guiar
mesmo. A coisa que eu mais gosto mesmo é cantar.
SEU ANÍSIO - Pois não se preocupe que aqui a gente tem banda. Você vai cantar é hoje pra
gente ver!
DONA AUGUSTA - É o que, Anísio? A gente já não tem a anja?
SEU ANÍSIO - Tem, mas tá em falta! Até ela voltar de viagem a gente se arranja com o
Bebelo, se ele for bom. As noites do bar tão tudo sem graça, tem que ter alguma coisa pras
pessoas ouvirem enquanto bebem, seja pra rir ou pra chorar, pra animar ou pra lamentar.
Mas diga aqui, o que me diz? Vai cantar hoje?
BEBELO - Canto sim, na hora! Uma chance dessa com gente boa e eu vou perder?! O senhor
quer que eu cante o quê? Pode dizer o que quiser que a música sai hoje à noite!
SEU ANÍSIO - Se é assim, eu vou lançar um desafio e se tu for bom mesmo, fica como
cantor temporário da casa. Aí quando a anja voltar, que é quem sempre canta por aqui, a
gente se ajeita. Traga hoje uma canção sobre vida e morte, sobre o que tu acha disso, sobre a
garota que morreu na tua frente mais cedo.
DONA AUGUSTA - P elo amor de Deus, Anísio! Isso deve ser até pecado! Pense noutra coisa.
SEU ANÍSIO - Pecado? Que é isso, Augusta! A gente tá transformando o que vai sair nos
jornais como uma notícia de uma moça qualquer ou até no boca a boca do povo como a
desatenta atropelada em arte. Acho que se Bebelo fizer um bom trabalho, a gente vai é
7
honrar a morte dessa garota, ninguém vai dizer alguma coisa bonita como a gente quer
dizer. Num é, Bebelo? É pegar ou largar!
BEBELO - Pois é pegar mesmo! Não se preocupe que o trabalho vai ser bem feito e aquela
moça vai ser bem dita aqui no seu bar.
DONA AUGUSTA - Pois vou chamar Luzia pra gente terminar de montar o bar que já já tem
gente por aqui bebendo. Anísio, mostre as coisas pro menino se instalar. Deixe suas coisas
lá dentro, Bebelo. Boa sorte viu!
BEBELO - Obrigado, Dona Augusta e Seu Anísio, de verdade!
SEU ANÍSIO - Agradeça mesmo depois que a gente te quiser. Tome cuidado que o tombo
pode ser maior. Mas eu acho que de ti vem coisa boa, espero que tu esteja preparado
mesmo!
BEBELO - Tô sim, pode confiar! (Agora falando para o público) Mas eu não tô é nada
preparado! (Enquanto ele fala, aos poucos o lugar vai se ajeitando: Seu Anísio, Dona
Augusta e Luzia montam o restante do bar, a banda entra e, depois, Seu Padre, Puta Maria,
Zé do Côco, todos clientes, entram e já pedem suas bebidas, sentando pelo bar.) A garota
morre ali, na minha frente, e eu já tenho que superar meu luto pela desconhecida pra ela
virar tema de canção? Rapaz, eu sou cardíaco! (Suspira brevemente) Mas é o que eu tenho.
Voltar já não é mais opção pra mim. Seu Anísio e Dona Augusta foram muito bons comigo
me dando essa oportunidade pra eu desperdiçar assim… Eu vou compôr o que tiver que
compor. Mas quem era aquela moça? (Ela aparece na frente dele, sem falar nada) Você tinha
família? Amor? Carinho? Ou você quis encerrar tua vida? Foi tudo tão rápido que eu não vi
se foi um tropeço ou se tu se jogou. Você queria aliviar o fardo que te deram na tua vida? Eu
acho que tu vai ser o que eu quiser que tu seja né? Mas se preocupe não, eu vou tentar fazer
jus à tua memória. Eu já tô sentindo que vou te carregar por muito tempo comigo ainda.
Tudo começa agora.
(Dito isso, Bebelo vai cumprimentar a banda e se senta perto deles. A Garota Atropelada
continua no recinto, olhando para Bebelo no fundo do bar)
BEBELO - Boa noite, pessoal. Sou Bebelo e vim dedicar uma canção a você, moça.
(A Puta Maria acha que ele falou com ela e fica toda animada. Bebelo e a Garota Atropelada
não param de se encarar, mas só ele a vê. A banda começa a tocar “Carisma”)
BEBELO - DEU A VIDA PELOS SEUS:
ISTO É MAIS FORTE QUE A MORTE
MAIS IMPORTANTE QUE DEUS;
8
QUE DEUS E O MUNDO;
QUE DEUS E TODO MUNDO
SUA VOZ, MORTA, AINDA CANTA;
AINDA ESPANTA O MAU AGOURO
NESSA TERRA, ONDE O SILÊNCIO
LITERALMENTE, É DE OURO
EU NASCI LÁ, NUMA TERRA
ONDE O CÉU É O PRÓPRIO CHÃO
(Todos no bar aplaudem e Bebelo fica maravilhado com isso. Seu Anísio logo vai falar com
Bebelo)
SEU ANÍSIO - Rapaz, não é por nada não viu, mas pode ficar. Eu quero que você fique aqui
com a gente porque isso que é música mesmo!
(Ele abraça forte Bebelo e, nesse momento, ele perde a Garota Atropelada de vista e ela
desaparece.)
BEBELO - Obrigado mesmo, Seu Anísio! Obrigado!
9
muito tempo e também é boa que nem tu. A gente é bom, dá oportunidade, mas também é
leal e honesto. Por isso que eu digo que seu posto aqui tá garantido até ela voltar, mas
depois disso a gente vai ver como fica. Se não tiver um plano a mais aí de ganhar dinheiro, é
melhor ir pensando logo, viu?
BEBELO - Pode deixar, já tô pensando em umas coisas que acho que vai dar é certo!
SEU ANÍSIO - R apaz bom!! (Fala saindo)
BEBELO - (Agora falando com o público) Não vai dar é nada certo! Eu não tenho plano B
nenhum. Até a moradia foram Seu Anísio e Dona Augusta que me arranjaram no fundo da
casa deles que é no fundo do bar! Esses dois aí vão pro céu certeza… Mas plano B de
trabalho? De ganhar dinheiro? Tudo que eu sei fazer é isso, é música! (Os clientes do bar vão
entrando de novo e a banda e os funcionários vão se arrumando) Os poucos bares e
restaurantes por aqui já tem quem cante. E olha que nem tem quem cante em todos porque
não querem, pode atrapalhar o jantar da clientela. Se é música que dá o gosto da comida…
Seu Padre não pode fazer nada por mim além de rezar. Eu não ia saber vender um côco pro
Zé do Côco ajudar. E é melhor com a Puta Maria eu nem falar… Só me resta esperar pra ver
como é essa tal de anja. Já tá virando questão de sobrevivência! Se eu for artista melhor que
ela, certeza que vou ter mais chance de ficar por aqui! Mesmo que essa anja seja daqui desde
que era o jardim do Éden! Vamo só ver…
(Então, ele senta pelo bar perto de Luzia. Todos estão aguardando a entrada da cantora, até
que ela entra, cumprimenta os músicos e vai até o microfone)
ÂNGELA - Boa noite, pessoal. É tão bom estar de volta! Depois da viagem que eu fiz, deu pra
perceber o que mais me importava e eu resolvi trazer em forma de canção pra vocês. Espero
que gostem.
(Dito isso, a banda começa a tocar “Nada Como Viver”)
BEBELO - Mas é claro que pra piorar a situação, ela tinha que ser bonita como uma anja
mesmo. Misericórdia.
ÂNGELA - N ADA
NADA COMO VIVER
NADA COMO VIVER DE REPENTE
NADA, NADA, NADA, NADA!
NADA COMO VIVER
NADA COMO VIVER DE REPENTE
10
ALEGRIA É UMA BELEZA
COM CERTEZA EU VIVERIA
NESSA COR QUE A MOÇA USA
ALÉM DA BLUSA
EU QUERO VIVER
AMAR, PRAZER, POR QUE NÃO DIZER
O PALAVRÃO, A PALAVRA, TENTAÇÃO
AMAR, PRAZER, POR QUE NÃO DIZER
O PALAVRÃO, A PALAVRA, CORAÇÃO
NADA
NADA COMO VIVER
NADA COMO VIVER DE REPENTE
NADA
NADA, NADA, NADA, NADA
NADA COMO VIVER
NADA COMO TE VER TÃO CONTENTE
(Quando ela termina, Bebelo é o primeiro a se levantar e puxar as palmas. Todos do bar
aplaudem em seguida. Ele, encantado, vai falar pessoalmente com Ângela)
BEBELO - Olha, se o Seu Anísio quiser me expulsar pra ficar só contigo, eu vou entender
demais. Tu foi espetacular!
ÂNGELA - A h, obrigada. Você que é o famoso Bebelo, artista revelação do bar?
BEBELO - Em carne viva e puro osso.
ÂNGELA - ( Ela ri) É um prazer, eu sou a Ângela.
BEBELO - Ângela? Num era a famosa anja?
ÂNGELA - É Ângela, mas eu deixo eles me chamarem assim por aqui. Acho bonito e a Dona
Augusta não ia querer me chamar do meu nome mesmo.
BEBELO - Ia mesmo não! Mas eu queria muito te perguntar: essa música é tua? Eu nunca
tinha ouvido antes e pra mim é a coisa mais linda que ouvi nos últimos tempos!
ÂNGELA - E u viajei, nessas poucas semanas fora, porque minha mãe tava nas últimas.
11
BEBELO - Ah, desculpe perguntar!
ÂNGELA - Não, tá tudo bem. E foi só eu chegar lá que uns dois dias depois ela morreu. Isso
faz duas semanas hoje.
BEBELO - Foi no finzinho de tarde?
ÂNGELA - F oi sim, mas por quê? Como você sabia?
BEBELO - É que… Uma moça morreu nesse mesmo dia e horário aqui em frente, na
avenida. Foi no dia que cheguei aqui, primeira impressão.
ÂNGELA - N ossa, sinto muito.
BEBELO - Não, não, já foi, nada como o que tu passou!
ÂNGELA - É, pode ser… Pois bem, eu fiz essa música porque me lembrou o que era viver pra
mim.
BEBELO - E o que é viver pra ti? Por que tu vive?
ÂNGELA - Eu vivo porque… Ué. Porque eu sinto. Porque eu sou. Mas foi minha mãe morrer
que as coisas mudaram, sabe? Ela me criou bem, me fez aproveitar cada momento, sentir
cada coisa, e isso me fez viver sempre no presente. E antes que ache qualquer coisa, eu não
sou contra ter planos não. Acho que a gente tem que planejar e viver olhando pra frente sim!
Mas isso não é pra ser maior que viver no presente. O futuro é nosso guia, mas o presente o
nome mesmo já diz.
BEBELO - Tu fala de um jeito… Dá pra ver logo que é artista como eu porque vive no rodeio,
mas é um rodeio bonito de se ouvir.
ÂNGELA - Mas isso não veio da minha cabeça do nada não, viu? É que quando você perde
alguém que ama muito, querendo ou não, você se questiona sobre a vida. Até mesmo sobre
a sua vida. Mas minha mãe não deixou que eu pensasse muito sobre isso não. Ela morreu
feliz e agradecida e foi justamente por viver o presente. Mesmo sendo triste, ela só me
deixou alegrias!
BEBELO - Olha, tua mãe te ensinou bem mesmo! Queria eu já ter essa sabedoria na minha
vida… Mas eu tenho que admitir, fiquei encucado porque as duas faleceram com a gente na
mesma hora praticamente. Parece até um sinal, num acha não?
(Luzia vem ao encontro de Bebelo)
12
ÂNGELA - S inal de quê?
BEBELO - Aí a gente vai ter que descobrir ainda!
LUZIA - Ô, Bebelo! Tá quase na hora pra tu cantar, Seu Anísio tá te procurando. E boa sorte
viu. Começou agora o teste pra ver quem dos dois fica. Nada contra você, mas é claro que eu
tô torcendo pra Ângela…
BEBELO - Se preocupe não que eu também tô. Tô indo lá falar com ele, mas vai pensando o
que pode ser esse sinal, viu, anja? (Ele olha um instante para a Ângela e sai)
ÂNGELA - Sinal… É cada coisa. (Ela também sai rindo, indo se sentar perto da banda para
ver Bebelo)
LUZIA - (Falando com a plateia) Bebelo não é besta não, né? Já tá se engraçando com a
Ângela, pensa que eu não sei… Se é pela beleza da moça ou pra iludir a concorrência, aí fica
a seu critério porque eu mesma já sei o que acho. Hum… E é sempre com esse mesmo papo
de “O que é viver pra ti?” e “Por que você vive?”! Ele já perturbou toda a clientela desse bar,
perguntando a mesma coisa, mas cada um respondendo o que bem entende:
(Os clientes vão falando onde estão mesmo pelo bar, como se respondessem Bebelo quando
ele fizera a pergunta)
ZÉ DO CÔCO - Eu vivo pelo côco, né?! É do côco que veio o homem. Ou, pelo menos, é o que
me dá dinheiro pra beber uma gelada, ouvir uma musiquinha, essas coisas aí.
SEU PADRE - Por Deus, meu filho, por Deus. Eu vivo em nome da palavra Dele até a hora da
minha morte, amém!
PUTA MARIA - É o que, Bebelo? Artista é tudo doido, né? Eu vivo porque num tenho mais o
que fazer e é isso… E também porque tudo que me restou foi minha vó e nem ela consegue
mais cuidar dela mesma. Aí sobrou pra mim cuidar de nós duas. A história é boa, me paga
que eu te conto o resto…
LUZIA - (Ainda com a plateia) Não sei qual a intenção dele, nem o que ele quer fazer com
isso. Seu Anísio se sente culpado porque acha que foi ele que fez Bebelo fazer isso, quando
pediu pra pensar na garota morta e fazer uma música. Eu acho que isso é coisa da cabeça
dele mesmo, coisa de quem não tem mais o que fazer. Mas a hora de Bebelo tá contada, não
tem o p do perigo dele superar a Ângela. Ela tem alma, ela canta como quem só sabe fazer
isso da vida. Enquanto o Bebelo só sabe perturbar os outros. (Ela vê que Bebelo está se
preparando com a banda). Eita, é chegada a hora, vamo ver como fica esse desastre aí!
13
(Luzia vai se sentar pelo bar. A banda começa a tocar o instrumental de “Coração
Selvagem”)
BEBELO - MEU BEM,
GUARDE UMA FRASE PRA MIM
DENTRO DA SUA CANÇÃO
ESCONDA UM BEIJO PRA MIM
SOB AS DOBRAS DO BLUSÃO
EU QUERO UM GOLE DE CERVEJA
NO SEU COPO, NO SEU COLO E NESSE BAR
MEU BEM, O MEU LUGAR
É ONDE VOCÊ QUER QUE ELE SEJA
NÃO QUERO O QUE A CABEÇA PENSA
EU QUERO O QUE A ALMA DESEJA
ARCO-ÍRIS, ANJO REBELDE,
EU QUERO O CORPO
TENHO PRESSA DE VIVER
(Ele começa a canção como um desenvolvimento de tudo que ele pensa no momento sobre
sua vida)
MAS QUANDO VOCÊ ME AMAR,
ME ABRACE E ME BEIJE BEM DEVAGAR
QUE É PARA EU TER TEMPO,
TEMPO DE ME APAIXONAR
TEMPO PARA OUVIR O RÁDIO NO CARRO
TEMPO PARA A TURMA DO OUTRO BAIRRO,
VER E SABER QUE EU TE AMO
MEU BEM,
O MUNDO INTEIRO ESTÁ NAQUELA ESTRADA ALI EM FRENTE
TOME UM REFRIGERANTE,
COMA UM CACHORRO-QUENTE
SIM, JÁ É OUTRA VIAGEM
E O MEU CORAÇÃO SELVAGEM
TEM ESSA PRESSA DE VIVER
(Mas, aos poucos, torna-a um chamado para Ângela, ele canta diretamente para ela)
MEU BEM, MAS QUANDO A VIDA NOS VIOLENTAR
PEDIREMOS AO BOM DEUS QUE NOS AJUDE
14
FALAREMOS PARA A VIDA:
"VIDA, PISA DEVAGAR
MEU CORAÇÃO CUIDADO É FRÁGIL;
MEU CORAÇÃO É COMO VIDRO,
COMO UM BEIJO DE NOVELA"
MEU BEM, TALVEZ VOCÊ POSSA
COMPREENDER A MINHA SOLIDÃO
O MEU SOM, E A MINHA FÚRIA
E ESSA PRESSA DE VIVER
E ESSE JEITO DE DEIXAR
SEMPRE DE LADO A CERTEZA
E ARRISCAR TUDO DE NOVO COM PAIXÃO
ANDAR CAMINHO ERRADO
PELA SIMPLES ALEGRIA DE SER
(Ele canta cada vez mais fervorosamente, um tipo de clamor)
MEU BEM, VEM VIVER COMIGO,
VEM CORRER PERIGO,
VEM MORRER COMIGO
MEU BEM, MEU BEM, MEU BEM
(Aos poucos Ângela se aproxima dele e corresponde - ela entende seu clamor como um
pedido para se juntar a ele na canção, uma mistura de letra e improviso vocal)
ÂNGELA - T ALVEZ EU MORRA JOVEM
ALGUMA CURVA DO CAMINHO,
ALGUM PUNHAL DE AMOR TRAÍDO
COMPLETARÁ O MEU DESTINO
(Ele começa guiando-a, mas logo ela entende a música e como funciona, então, eles se
entrosam nela. Luzia claramente demonstra seu ódio pela sua feição)
ÂNGELA E BEBELO - M EU BEM, VEM VIVER COMIGO,
VEM CORRER PERIGO, VEM MORRER COMIGO
MEU BEM, MEU BEM, MEU BEM
MEU BEM, MEU BEM, MEU BEM
TODOS CANTORES CHAMAM BABY
TODOS CANTORES CHAMAM BABY
TODOS CANTORES CHAMAM BABY, MEU BEM
15
16
JOÃO - Nada não. (Um breve silêncio se instaura, mas logo João o interrompe) Não vai
perguntar não?
BEBELO - O quê?
JOÃO - O ra, a causa do choro.
BEBELO - Ah. Eu fiquei na dúvida. Querer eu queria. Mas chegando aqui fiquei sem jeito de
perguntar…
JOÃO - N a dúvida, pergunte. Mas te adianto logo: foi morte.
BEBELO - Como se fosse novidade na minha vida por aqui… Só o que tem acontecido. Mas,
me desculpe, de quem foi?
JOÃO - Numa nice. Não sei se tu ficou sabendo, deve ter sabido, mas há umas duas semanas
uma garota foi atropelada por aqui, bem em frente a esse bar.
BEBELO - Se não sei!!! Foi bem ali! (Apontando) Ela foi atrop… Faleceu na minha frente. No
dia que cheguei aqui.
JOÃO - E ntão, você foi a última pessoa que ela viu em vida?
BEBELO - Isso eu não sei. Foi tão rápido que não sei se ela olhou pra mim de volta como eu
olhei pra ela na hora do… Mas que mal me pergunte, tu era o que dela?
JOÃO - N oivo.
BEBELO - M eu Deus.
JOÃO - Na escala do lamento, deve pesar mais que irmão, mas menos que pai. Vai depender
muito da família. No caso dela, pesa mais que qualquer um porque eu era toda a família
dela. E ela a minha.
BEBELO - (Inquieto) Como é que pode, meu senhor, tamanha tragédia?
JOÃO - T ambém não sei. Só tem sido bem mais difícil encarar o dia a dia sozinho.
BEBELO - Não sei nem como deve ser. Meus sentimentos…
17
JOÃO - Obrigado, ainda que não mude muito, ajuda a consolar. (Percebendo Bebelo meio
inquieto) Que foi?
BEBELO - Que foi o quê?
JOÃO - P arece que você tá incomodado. Quer falar, perguntar, desembuchar algo. Diga.
BEBELO - Olhe, até eu, do meu jeito intrometido de ser, sei até onde devo ir. Tenho que
respeitar os sentimentos do senhor.
JOÃO - Se nem o destino respeitou. Se o destino, que é bem mais forte e importante que
você, não respeitou meu amor e tirou sua vida de mim, por que que eu iria me incomodar
contigo? Ora, Bebelo!
BEBELO - E sabe meu nome?
JOÃO - Como é que eu não saberia o nome da estrela do bar que me arrancou as lágrimas?
Ainda mais num dueto tão bonito como aquele, pode até não ser, mas o amor tava no ar,
hein. Foi isso que me emocionou. Melhor, que me entristeceu.
BEBELO - Mas antes me diga o teu nome que o mal educado aqui nem se interessou.
JOÃO - Bebelo, você veio aqui atrás de algo mais importante que meu nome, que foi minha
dor. Não sei se ficou culpado pela música ter tido esse efeito, mas não acho que veio se
aproveitar dela, queria me ajudar. Tem coisa que dá pra sentir. Eu sou João, é um prazer.
BEBELO - Pois, João, eu só vim. É natural já.
JOÃO - P ois pergunte.
BEBELO - Se insiste, vamo lá. Desde que se sua noiva morreu na minha frente, eu fiquei me
perguntando sobre minha vida, sabe? Como ela pode sumir num piscar de olhos e o que eu
tô fazendo dela. Eu ainda não respondi, sei nem se um dia eu vou responder! Mas eu vi que
conversando com o povo, ficava mais fácil de responder pra mim mesmo também! Aí, eu
vivo perguntando pra todo mundo um negócio…
JOÃO - P ode dizer, tenha medo não. Vá.
BEBELO - Por que tu vive? (Nervoso) Mas eu só tô dizendo porque tu insistiu, eu não queria,
pode ser pior pra ti, e…
JOÃO - (Interrompendo-o) Bebelo. Quem fica nervoso com isso agora sou eu. Mas não
porque é difícil de responder, mas, na verdade, porque é bem fácil. E também porque não
18
sei se você tá pronto pra conhecer alguém como eu. Pessoas como você vão atrás de pessoas
como eu, é como tu se comporta.
BEBELO - Agora eu que digo pra não se preocupar! Se for te fazer bem, pode dizer…
(No fundo, a banda começa a tocar o instrumental de “Mucuripe” e João fala por cima, logo
antes de cantar)
JOÃO - B ebelo, tá vendo bem ali?
AS VELAS DO MUCURIPE
VÃO SAIR PARA PESCAR
VOU MANDAR AS MINHAS MÁGOAS
ÀS ÁGUAS FUNDAS DO MAR
HOJE À NOITE NAMORAR
SEM TER MEDO DA SAUDADE
SEM VONTADE DE CASAR
AS VELAS DO MUCURIPE
VÃO SAIR PARA PESCAR
VOU MANDAR AS MINHAS MÁGOAS
ÀS ÁGUAS FUNDAS DO MAR
HOJE À NOITE NAMORAR
SEM TER MEDO DA SAUDADE
SEM VONTADE DE CASAR
CALÇA NOVA DE RISCADO
PALETÓ DE LINHO BRANCO
QUE ATÉ O MÊS PASSADO
LÁ NO CAMPO AINDA ERA FLOR
SOB O MEU CHAPÉU QUEBRADO
UM SORRISO INGÊNUO E FRANCO
DE RAPAZ NOVO ENCANTADO
COM VINTE ANOS DE AMOR
CALÇA NOVA DE RISCADO
PALETÓ DE LINHO BRANCO
QUE ATÉ O MÊS PASSADO
LÁ NO CAMPO AINDA ERA FLOR
19
(Bebelo ouve tudo o que é dito e tal hora começa a expressar pelo seu corpo que quer dizer
algo, mas não sabe o que. Não se tem muito o que dizer em discursos assim… )
AQUELA ESTRELA É DELA
VIDA VENTO VELA LEVA-ME DAQUI
AQUELA ESTRELA É DELA
VIDA VENTO VELA LEVA-ME DAQUI
DAQUI
Bebelo, não diga nada. (Percebendo todo o incômodo de Bebelo, mesmo sem ter olhado
direito para ele enquanto cantava) Você não tem nada a dizer. E nem tem que ter. Tem
algumas coisas na vida que são sobre lutar, outras só aceitar. Você pode pegar a conta pra
mim? Acho que tá na hora de seguir pra casa.
BEBELO - Pego. (Pensativo, ele se vira para sair, mas logo se desvira) Mas oh, tu não
costuma vir aqui não né?
JOÃO - N ão, não tinha tido coragem ainda.
BEBELO - Pois eu quero te pedir uma coisa. Eu comecei agora no bar, ainda tô começando a
vender meu trabalho, num quer me ajudar não?
JOÃO - T e ajudar?
BEBELO - É, ué, vem aqui todo dia! (Ele vê que o João estranha o pedido) Se você vier todo
dia, é um cliente a mais pro bar, nem que seja só meia hora pra me ver cantando por aqui!
Em troca, eu prometo, todo dia eu canto uma música pra ti, pode ser repetida ou não, mas
tem que vir aqui pra ver!
JOÃO - E u vou pensar.
BEBELO - Pois pense com jeitinho!
JOÃO - A conta, Bebelo.
BEBELO - Pode deixar, tô indo buscar agora!!! (No caminho para pegar a conta, Bebelo se
questiona - falando com a plateia) Minha gente, será que ainda tem vida ali? Tem vida
depois da morte de um amor? (Breve pausa) Se vocês querem saber minha opinião, eu acho
que tem, tanta coisa tem vida na vida ainda… (Pausa) Mas se o João sabe disso, aí eu já não
sei.
20
LUIZA - Para de ficar vagando aí no nada e vai levar a conta do teu colega ali. (Ela fala
batendo a conta contra o peito de Bebelo)
BEBELO - Já tô indo! (Ele vai até João e entrega a conta para ele) Tá aqui, dito e feito.
JOÃO - O brigado, Bebelo.
BEBELO - Até amanhã?
(João dá um leve riso e sai. Quando ele sai, os outros clientes e a banda também saem. Só
ficam os donos e outros funcionários do bar - Bebelo, Ângela e Luzia - limpando e
organizando as coisas)
SEU ANÍSIO - Parem um instante o que vocês tão fazendo porque tenho uma notícia muito
importante pra dar agora. (Os três funcionários prestam atenção nele) Eu andei
conversando com Augusta…
DONA AUGUSTA - ( Interrompendo-o) E eu dei uma opinião bem dada e bem boa.
SEU ANÍSIO - Isso mesmo. E nós decidimos que quem vai continuar sendo artista da casa
é…
(Os três viram-se, quando vão falar, para a plateia e voltam a prestar atenção no resultado:)
BEBELO - Eita pau! É a anja!
ÂNGELA - É o Bebelo sim.
LUZIA - É o Bebelo não. Bebelo não!
SEU ANÍSIO - É os dois! Decidimos manter os dois com a gente, cantando aqui sempre!
LUZIA - E da onde vai tirar o dinheiro pra pagar os dois? Vai tirar do meu é?
DONA AUGUSTA - Se preocupe não, Luzia. O povo novo que veio aqui hoje gostou e parece
que vai continuar vindo.
SEU ANÍSIO - Mas isso num basta. É por isso que os dois aí vão ter que ser muito bons pra
atrair mais gente pro bar. E também manter os que já tão com a gente. Tratem de fazer
umas músicas bem boas porque a casa vai precisar e eu quero é lotar isso aqui!
BEBELO - Obrigado, Seu Anísio, Dona Augusta. (Ângela também acena agradecendo, feliz.
Luzia demonstra imensa insatisfação)
21
DONA AUGUSTA - De nada. Pois bem, notícia dada, agora a gente vai se retirar lá pra
dentro. Vocês arrumar as coisas aí pra gente né?
BEBELO - Na hora!
DONA AUGUSTA - Pois pronto, demore muito a entrar também não, Bebelo. Boa noite,
gente. (Ela e Seu Anísio vão saindo)
BEBELO, ÂNGELA E LUZIA - Boa noite. (Cada um numa tonalidade extremamente
diferente da outra)
(Bebelo e Ângela comemoram. Luzia congratula Ângela, apenas. Em seguida, Ângela
questiona Bebelo e Luzia ouve a conversa enquanto todos continuam organizando o bar)
ÂNGELA - M as vem cá, você tá dormindo por aqui pelo bar mesmo?
BEBELO - É sim. Seu Anísio e Dona Augusta deixaram eu ficar por aqui até achar um lugar
pra ficar, tô dormindo num quartinho que eles têm no fundo da casa que já é no fundo do
bar, né.
ÂNGELA - E tá sendo legal ficar por aqui, com eles?
BEBELO - Tá sim, tá tudo ótimo ali. (Para a plateia) Num tá não, viu. Já tem três dias que eu
não durmo direito porque eu fui pegar água na cozinha de madrugada e lá estava Seu Anísio
parado, em pé, com seus olhos fechados e de cueca. Tá nada ótimo não. (Para Ângela) Mas é
aquela coisa né, é chato ficar abusando da boa vontade dos dois. Já tem duas semanas aqui e
não acho um lugar que eu possa pagar…
ÂNGELA - D orme lá em casa hoje.
BEBELO - O quê?
LUZIA - É o que, mulher? Tá bem da cabeça?
ÂNGELA - É melhor que ele ficar aqui mais uma noite, se sentindo assim. Lá em casa tem
espaço e minha irmã que morava comigo resolveu ficar uns tempos no interior desde que
mamãe morreu. Então, tô meio só e preciso de alguém pra dividir a casa. Bebelo também
precisa e tá decidido.
22
LUZIA - Não me leve a mal, Bebelo, mas eu não confio em ti de jeito nenhum. Só tem duas
semanas que tu chegou aqui e é macho. Se tem coisa que não confio fácil, é em macho. Mas
o pior é tu (falando com Ângela) que chegou hoje e já tá chamando ele pra dormir contigo.
ÂNGELA - Que dormir comigo o quê, ele vai é pro sofá mesmo. Melhor que os fundos daqui,
tenho certeza!
BEBELO - Também num é por nada não, eu confio em mim, mas acho que Luzia tem razão,
anja…
ÂNGELA - Tá decidido e pronto. Tu quer ou não quer ir lá pra casa? Decida agora porque eu
quero que você vá.
BEBELO - (Ele olha rapidamente para a plateia com uma cara de felicidade e surpresa, mas
logo volta a falar com ela) Pois então sendo assim eu vou. Espera só eu juntar minhas coisas
aqui, demora não. Também vou só avisar e agradecer os dois lá dentro. Me dê cinco
minutos.
ÂNGELA - V ou fumar um lá fora, me encontra lá.
(Bebelo sai apressado)
LUZIA - M ulher, tu tá ficando é louca é? Tem titica na cabeça?
ÂNGELA - Olha, Luzia, te agradeço mesmo, de coração, a preocupação, mas precisa não,
viu? Me deixa que eu sei o que eu tô fazendo.
LUZIA - Sabe muito viu. Mas qualquer coisa, fale comigo. Na hora. Se quiser eu bato lá na
tua casa. Bato até em Bebelo também.
ÂNGELA - ( Rindo) Disso eu sei. Obrigada mesmo, mas vou ali fumar um. Até amanhã!
LUZIA - Até… (Ângela sai, Luzia falando para a plateia) Tem é bosta na cabeça essa aí, viu?! E
eu também, só amarro meu burro em canto em errado… Boa noite pra quem fica aí.
(Luzia sai do bar que já está com suas mesas e cadeiras recolhidas)
23
ÂNGELA - Estamos na sala de estar, jantar e cozinha. Ali é o banheiro, sinta-se à vontade, e
ali é o quarto.
BEBELO - Você é mesmo uma anja. Obrigado de novo.
ÂNGELA - ( Vendo Bebelo pôr suas coisas no sofá) O que você tá fazendo?
BEBELO - Eu, eu… Não pode? Desculpa!
ÂNGELA - Não, não é isso. É pra você se sentir à vontade mesmo, mas tão à vontade que o
quarto também é pra ti…
BEBELO - Mas o sofá aqui tá bom pra mim, sim.
ÂNGELA - V ocê não quer dormir lá na cama? Eu te garanto que é bem melhor que o sofá.
BEBELO - É que eu fiquei pensando nas coisas que a Luzia disse, ela tinha razão, por que tu
já tá confiando em mim?
ÂNGELA - Porque se eu for esperar pra confiar de verdade, pode demorar uma eternidade.
E se eu perder a oportunidade?
BEBELO - Oportunidade?
ÂNGELA - De finalmente ter alguma companhia nessa casa, lá no quarto também. A vida de
artista por aqui pode ser bem solitária.
BEBELO - Eu acho que tô entendendo. E não tô dizendo não, também, viu?! Quer dizer, tô
agora, mas não queria. Querer num é poder… E eu também fico todo embaraçado nessas
coisas, eu sou muito pra trás e…
ÂNGELA - (Acalmando-o) Calma, respira. Tá tudo bem, sem pressão. Mas eu também sei
que você aproveitou a minha intenção… Sei que não é besta nesse ponto. Se não quiser
dormir lá no quarto, não tem problema algum. O sofá pode ser todo teu. Agora… (Começa a
tocar o instrumental de “Vício Elegante”) Se você quiser e só não souber como falar, não
precisa. Teus olhos já tão me dizendo tudo. Você é tão transparente e solar, Bebelo, mas
deixa que eu te guio nisso… (Pegando vagarosamente na mão dele)
SE UMA ESTRELA CAI DO CÉU
VAI PARA O JAPÃO
E ENTRA EM MEU QUARTO DE HOTEL
COMO A GUEIXA DE PLANTÃO
24
BEBELO - (Para a plateia)
TODO ZEN, FUMANDO ESPERO
ESSA DEUSA VEM ME VER
MAIS SENSUAL QUE BOLERO
EM CALMA, LUXO E PRAZER
ÂNGELA - ( Recuperando a atenção de Bebelo)
VERSOS PERVERSOS
DAS FLORES DO MAL
NESSE ROMANCE,
FANTASIA ORIENTAL
BEBELO - (Deixando-se levar completamente por ela)
CENAS OBSCENAS? NÃO!
APENAS DE AMOR!
QUE ESTOU NAVEGANDO
NUMA TELA MULTICOR
(No instrumental, eles começam a dançar bem próximos, envolvendo-se um ao outro)
ÂNGELA E BEBELO - L IGO O RÁDIO CONTRA O TÉDIO
QUE VÍCIO ELEGANTE!
EM GOZO EM PAZ TEU ASSÉDIO
NUMA ONDA DE AMANTE!
O VIVER É DE IMPROVISO
FAZ SUA PRÓPRIA LEI...
MAS NAVEGAR É PRECISO:
VOU MANDAR-TE UM LAY-LADY-LAY
TÃO PÓS-MODERNA A ETERNA PAIXÃO
NESSE PROGRAMA GUIA DE NAVEGAÇÃO
VI SEU POEMA NO MEU COMPUTADOR
QUE ESTOU NAVEGANDO NUMA TELA MULTICOR
(Eles terminam o restante da música ainda entrosados, mas indo em direção ao quarto. As
luzes mudam e tudo se ilumina mais, marcando a chegada do dia. Ouvimos o diálogo deles
que vem de dentro do quarto)
ÂNGELA - B ebelo!!!!! Olha a hora!!!
25
BEBELO - Ué, e é hora de quê??
ÂNGELA - A gente tá atrasado que só!!! Se arrume rápido aí que já era pra gente tá lá há
meia hora pra ajudar a arrumar as coisas!
BEBELO - Eita!!! Vou só me assear, pera ainda!
(Então, a cena volta para o bar, Luzia, Seu Anísio e Dona Augusta já estão organizando
tudo)
LUZIA - Eu tô preocupadinha! Eu disse pra ela me ligar qualquer coisa, mas ela nunca se
atrasa.
SEU ANÍSIO - E nem Bebelo.
DONA AUGUSTA - D eixa de ficar avexada que também pode ser outra coisa…
LUZIA - E o que mais seria, Dona Augusta?
(Ângela e Bebelo chegam ao bar)
DONA AUGUSTA - O lha aí, falando nos cão!
LUZIA - E u disse pra tu não levar o Bebelo, Ângela! Tá tudo bem?
ÂNGELA - Tá sim! Foi só um atraso porque a gente tava ajeitando as coisas por Bebelo
dormi na sala e tal…
BEBELO - Pois é, ô sofá bom viu!
SEU ANÍSIO - T á dando pra ver na tua cara como foi bom esse sofá aí, chega tá corado!
BEBELO - (Nervoso) Mas agora que a gente chegou, vamo pôr a mão na massa! Tá na hora
de ajeitar aqui! (Ele fala isso já colocando as cadeiras e mesas no lugar)
LUZIA - Já fez foi passar da hora… (Cochichando para Ângela) Mas se tiver qualquer coisa,
pisca duas vezes pra mim. Pode piscar, tenha medo não!
ÂNGELA - Mais uma vez, obrigada mesmo, Luzia! Mas tá tudo ótimo. Você é uma amiga e
tanto! (Ela fala e sai para ajudar a organizar as coisas. A palavra “amiga” fica ecoando na
cabeça de Luzia que até fica cabisbaixa com isso)
26
(Repentinamente, um homem chega ao bar)
BIBITO - O pa, com licença!
BEBELO - Bibito?
BIBITO - B ebelo? Meu querido! (Eles se abraçam)
LUZIA - B ebelo e Bibito? Agora só falta o Babaca… (Falando e rindo consigo mesma)
BEBELO - Pessoal, esse aqui é Bibito, meu primo aqui da cidade!
DONA AUGUSTA - Meu filho, parece que vocês num se veem tem um tempo, se preocupe
não, vá conversar com seu primo. Se tem uma coisa que a gente aprendeu, foi a arrumar a
casa só nós quatro!
BEBELO - Brigado, Dona Augusta. (Ele se volta para Bibito e conversa com ele) Mas o que tu
tá fazendo por aqui?
BIBITO - E u soube que você estava por aqui e vim checar como andavam as coisas.
BEBELO - Foi mamãe, num foi?
BIBITO - Foi ela, sim. Não que eu não quisesse te encontrar, é que eu sempre estou muito
ocupado com o trabalho. Mas a tia tem um jeitinho especial de convencer você.
BEBELO - Na ameaça e no grito, né? (Eles riem) Tem problema não, eu sabia que cedo ou
tarde ela ia mandar alguém me espionar. Por aqui tá tudo bem! Tô trabalhando aqui, eu
canto e ajudo toda noite. Se quiser ver, é só se aprochegar!
BIBITO - Assim como eu arranjei um tempo para te ver hoje, eu também consigo algum dia.
Talvez daqui umas duas semanas, quem sabe, por ti vale à pena.
BEBELO - Eita, imagine se num valesse. Mas e tua vida por aqui? Me diga como tem sido
desde que saiu lá da gente. Tem o quê? Uns quatro anos já? Por que você vive?
(O instrumental de “Máquina II” começa a tocar e Bibito canta - respondendo Bebelo)
BIBITO - Ê
MÊ
E M
27
BEBELO - (Bebelo começa a falar enquanto Bibito canta, sobrepondo-se) Ele começou a
falar e já vi que a vida era só trabalho. Trabalho era razão de viver. Tentava falar de outras
coisas e num conseguia. Ele tava igualzinho o povo que eu vi quando cheguei aqui (Algumas
pessoas vão entrando pelo palco e também cantam a mesma coisa que Bibito. É uma
entrada gradual das pessoas que apareceram em “Bebelo”, representando os robôs da
cidade grande), tudo no automático. De longe parecem tudo focado, mas tavam era
perdidos, ê ê. Sei não viu. Esse povo não sabe o que é viver.
BIBITO - [ E M E A M A
Q U I Q U I
E N E A N A] (x4)
N A (X6)
MÁQUINA (x14)
N A (X6)
(Bibito repete a estrofe infinitamente, enquanto Bebelo começa a cantar uma melodia que
encaixa com o que está acontecendo enquanto os outros cantam. Ele canta “Pequeno Perfil
De Um Cidadão Comum” por cima. Enquanto os “vagantes” são o suporte na música de
Bibito, os quatro que estão no bar são o suporte musical de Bebelo, como coro)
BEBELO - ERA UM CIDADÃO COMUM
COMO ESSES QUE SE VÊ NA RUA
FALAVA DE NEGÓCIOS,
RIA, VIA SHOW DE MULHER NUA
VIVIA O DIA E NÃO O SOL,
A NOITE E NÃO A LUA
ACORDAVA SEMPRE CEDO,
ERA UM PASSARINHO URBANO
EMBARCAVA NO METRÔ,
O NOSSO METROPOLITANO
ERA UM HOMEM DE BONS MODOS
COM LICENÇA, FOI ENGANO
ERA FEITO AQUELA GENTE
HONESTA, BOA E COMOVIDA
QUE CAMINHA PARA A MORTE
PENSANDO EM VENCER NA VIDA
ERA FEITO AQUELA GENTE
HONESTA, BOA E COMOVIDA
QUE TEM NO FIM DA TARDE
28
A SENSAÇÃO DA MISSÃO CUMPRIDA
Que a terra lhe seja leve
(Os dois cessam. Os cidadãos comuns ao redor de Bibito saem de cena)
BIBITO - F alou alguma coisa, Bebelo?
BEBELO - Nada não, primo. Mas oh, tenho-lhe uma proposta: venha me ver aqui, nem que
seja uma noite por semana começando nesta. Se tu vier, eu sempre vou dedicar uma música
pra ti! É o único poder que tenho, não me deixe ao léu usando ele pra nada, hein? Pode ser?
Será que tu podia fazer isso por mim?
BIBITO - B ebelo… Eu vou tentar, juro que vou.
BEBELO - E vai conseguir porque o primo que te ama aqui tá pedindo de coração aberto,
num é não?
BIBITO - (Ele ri) É sim. Pois eu venho nessa semana ainda, me espere por aqui, viu? Foi bom
te rever, meu primo. (Eles se abraçam)
BEBELO - Pois que se torne um hábito!
BIBITO - A té mais, primo! (Saindo)
BEBELO - Inté, primo!
SEU ANÍSIO - ( Vindo do fundo) Já tamo quase abrindo, viu? Vá ajeitar suas coisas.
BEBELO - Pode deixar! (Anísio sai, Bebelo fala com a plateia) Vocês também num ficam
com gastura não? De ver um primo seu ou também parente, amigo, que vive de trabalhar e
esquece que não tem nada como viver? Mas nesse caso aqui, até eu fiquei de boca aberta,
num é que ele veio toda semana mesmo?! Gostou da primeira vez e ficou vindo mesmo. E
tinha semana que ele ainda vinha mais de uma vez… Isso foi gostoso de ver, viu?! E cada vez
que vinha, ele dizia:
BIBITO - (Entrando em cena) Isso que é viver, meu querido! (E vai sentando em uma das
mesas pelo bar)
(Depois que Bibito entra, os outros clientes - e ainda mais gente - vai entrando e se
sentando)
29
BEBELO - (Ele ri) Dá é gosto de ver! Fico feliz que meu primo começou a aproveitar um
tiquinho mais da vida. E ainda foi com muita música, bebida e gente! Se tem uma coisa boa
nesse mundo, é gente! Tem muita gente pra salvar, mas também tem muita gente que salva.
No caso do bar, o tanto de gente que veio nos outros meses salvou meu trabalho e o da anja!
Depois do terceiro mês que eu e ela tava cantando junto, deu tanta gente que tinha que
colocar mesa na calçada também. Tudo tava indo muito bem, melhor que nunca, parecia
que não ia mais parar, nunca mais! Até que chegou aquele dia…
30
BEBELO - JÁ DEI ADEUS AS ARMAS, QUEM ME LIVRARÁ?
TODOS - V IVA LA DOLCEZZA!
BEBELO - SE O RESTO E SOM E FÚRIA, QUE SE CANTARÁ?
TODOS - V IVA LA DOLCEZZA!
(No breve intervalo da música, todos curtem o momento e também alguns conversam entre
si. Vemos também Bebelo e Ângela muito mais entrosados entre si, até já se beijando
livremente na frente de todos)
BEBELO - OS BÁRBAROS VOLTARAM, QUEM DUVIDARÁ?
TODOS - V IVA LA DOLCEZZA!
BEBELO - E A GRAMA QUE PISARAM REVERDECERÁ?
TODOS - V IVA LA DOLCEZZA!
BEBELO - JÁ DEI ADEUS AS ARMAS, QUEM ME LIVRARÁ?
TODOS - V IVA LA DOLCEZZA!
BEBELO - SE O RESTO É PÃO E CIRCO, QUE SE CANTARÁ?
TODOS - V IVA LA DOLCEZZA!
NA NA NA NA NA NA NA NA NA (x2)
(No final, todos comemoram e aplaudem, muito empolgados. Mas toda a empolgação vai
por água abaixo quando dois jovens assaltantes armados e mascarados entram subitamente
no bar, rendendo todo mundo)
(ASSALTANTE) LÍDER - Perdeu, perdeu! Isso é um assalto, ninguém grita, ninguém faz
nada senão leva tiro! (Falando com o seu parceiro) Vá lá pro caixa. (Voltando a falar com
todos enquanto o outro assaltante vai render Seu Anísio e Dona Augusta a fim de pegar o
dinheiro do caixa) A gente só quer o dinheiro da casa, mas quem gritar leva tiro e eu ainda
levo suas coisas também. (Enquanto fala, vai apontando a arma para todos, inclusive a
plateia)
(Todos estão extremamente tensos. Luzia está pálida, Ângela parece estar pensando em
uma forma de resolver a situação e Bebelo está em choque, paralisado)
31
(ASSALTANTE) PUPILO - B ora, Seu Anísio, abra o caixa e coloque tudo nessa sacola aí.
SEU ANÍSIO - E u num vou dar o dinheiro do bar pra ladrão, isso aí é arma é de brinquedo.
DONA AUGUSTA - A nísio, pelo amor de deus!
PUPILO - Como é que é, tá ficando gagá é coroa? (Ele bate com a arma na cabeça de Anísio,
que cai no chão com o impacto)
DONA AUGUSTA - N ão!!! Não faça nada, eu abro o caixa pra tu, pode deixar.
PUPILO - Pois encha tudo aí, minha senhora, que se qualquer um aqui no bar se mexer, eu
vou mostrar pra vocês que isso aqui não é brinquedo não!
LÍDER - (Vendo Ângela se mexer, inquieta) Se você se levantar ou fizer qualquer coisa, eu
estouro a cabeça do cantor aí. (Ela responde acenando, mostrando que entendeu)
PUPILO - (Pegando a sacola com o dinheiro) Valeu, minha senhora. Parece que tu não é
burra como o teu homem aí. (Ele vai saindo com a sacola, até que Seu Anísio, caído ainda,
segura o tornozelo dele)
SEU ANÍSIO - Espere aí! Esse é o dinheiro que vai pagar minha família aqui. Um moleque
que nem tu não tem direito de pegar isso aí.
PUPILO - Só pode tá frescando com minha cara!!! (Ele aponta a arma para Anísio)
LÍDER - Deixe pra lá, só vamo embora! Bora, porra!
PUPILO - Agora só depois de mostrar meu brinquedo aqui pro velho!
(O Pupilo atira em Seu Anísio. Nesse momento tudo fica escuro, B.O., e em silêncio.
Ouvimos apenas Bebelo falando depois de alguns segundos, ainda no breu)
BEBELO - Tudo foi numa piscada só. Num segundo, no segundo que eu pisquei, parece que
tudo aconteceu. Eu fechei os olhos. Assim que eu fechei, veio primeiro todo o barulho do
mundo. (Ele fala isso e, repentinamente, todos começam a falar e gritar, sobrepondo-se)
DONA AUGUSTA - N ãããão!!!
ÂNGELA - S eu Anísio!
32
LUZIA - M eu senhor…
LÍDER - Puta que pariu, vamo embora!
PUPILO - Correu, correu, porra!
(Inclusive, todos os clientes também reagem. Subitamente, o silêncio volta)
BEBELO - Quando eu terminei de piscar e abri meu olhos, depois do silêncio, a tristeza já
tinha tomado conta.
(As luzes voltam. Os assaltantes saíram do bar. Dona Augusta está segurando o marido
morto em seu colo. Todos estão ao redor deles, exceto por Bebelo que está ainda em choque,
sentado, observando tudo)
(Depois de algum tempo que vemos todo o lamento das pessoas, começa o instrumental de
“Como Nossos Pais”)
DONA AUGUSTA - N ÃO QUERO LHE FALAR
MEU GRANDE AMOR
DAS COISAS QUE APRENDI
NOS DISCOS
QUERO LHE CONTAR
COMO EU VIVI
E TUDO O QUE
ACONTECEU COMIGO
(Enquanto os homens começam o coro, todas as mulheres cantam a melodia com Dona
Augusta. O único que não canta é Bebelo)
MULHERES - VIVER É MELHOR QUE SONHAR
E EU SEI QUE O AMOR
É UMA COISA BOA
MAS TAMBÉM SEI
QUE QUALQUER CANTO
É MENOR DO QUE A VIDA
DE QUALQUER PESSOA
POR ISSO CUIDADO, MEU BEM
HÁ PERIGO NA ESQUINA
ELES VENCERAM E O SINAL
33
ESTÁ FECHADO PRA NÓS
QUE SOMOS JOVENS
(Dona Augusta canta quebrando a voz de emoção o tempo inteiro. As outras, mesmo
abaladas, e os homens seguram melhor essa emoção fúnebre. Todos representam um
suporte vocal, mas a dor é completamente interpretada por Augusta, que vê momentos dois
e a morte de seu amado, dentre outras coisas. Bebelo observa tudo até o final)
PARA ABRAÇAR MEU IRMÃO
E BEIJAR MINHA MENINA
NA RUA
É QUE SE FEZ O MEU LÁBIO
O MEU BRAÇO
E A MINHA VOZ
VOCÊ ME PERGUNTA
PELA MINHA PAIXÃO
DIGO QUE ESTOU ENCANTADO
COMO UMA NOVA INVENÇÃO
VOU FICAR NESTA CIDADE
NÃO, NÃO VOU VOLTAR PRO SERTÃO
POIS VEJO VIR VINDO NO VENTO
O CHEIRO DA NOVA ESTAÇÃO
E EU SEI DE TUDO
NA FERIDA VIVA
DO MEU CORAÇÃO
JÁ FAZ TEMPO
EU VI VOCÊ NA RUA
CABELO AO VENTO
GENTE JOVEM REUNIDA
NA PAREDE DA MEMÓRIA
ESTA LEMBRANÇA
É O QUADRO QUE DÓI MAIS
MINHA DOR É PERCEBER
QUE APESAR DE TERMOS
FEITO TUDO, TUDO
TUDO O QUE FIZEMOS
34
AINDA SOMOS OS MESMOS
E VIVEMOS
COMO OS NOSSOS PAIS
(Ao fim, Bebelo olha para a plateia, com os olhos cheios de lágrimas. Fim de ato)
35
QUEM VIU, NA VIDA,
NOVIDADE EM ESTAR VIVO?
(No final da canção, aos poucos, todos vão saindo. Luzia sai consolando Dona Augusta. Só
ficam em cena Ângela e Bebelo, ambos olhando para a plateia)
ÂNGELA - (Para a plateia) Naquele dia, há sete dias. Aquele dia que tudo aconteceu. Que
Seu Anísio… Enfim, deu pra entender. Naquele dia, eu achava que ia perder mais do que só
um amigo, mas também um novo amor. Isso porque, enquanto todo mundo tava acudindo
o Seu Anísio, Bebelo começou a passar mal. Não falava coisa com coisa e sentia uma dor
forte que só no peito. Eu achei que fosse só um estado de choque, do susto, mas levei ele pro
hospital com Bibito e João. Chegando lá que a gente descobriu que ele tinha problema no
coração. Irônico né?! Pois é. Eu achava que todo artista não batia bem da cabeça nem do
coração, mas parecia que até nisso Bebelo sentia mais… Bebelo sentia demais as coisas. Pro
bem e pro mal. Tanto que desde d’aquele dia ele tem andado diferente…
BEBELO - (Logo em seguida, também pra plateia, mas falando com Ângela, como se visse
algo) Anja, tu sabia que naquele momento, no momento do tiro, dar dor no peito e do medo,
eu senti falta do interior. Lá também tem tiro, isso não é novidade, mas quem morre, é
quem tá marcado. Quem morre sabia que ia morrer. Aqui não foi assim. Foi do nada.
Parece que por aqui se despedir de quem se gosta é um luxo, né? Mas é um luxo que eu tinha
no interior. Saudade de minha mãe. Minh’irmã. Minha vozinha. E também tinha meu pai.
Saudade da hora do almoço. Não era a melhor coisa do mundo, não. Tinha coisa melhor.
Mas saudade da hora do almoço. (Com isso, o instrumental de “Na Hora Do Almoço”
começa a tocar)
(Durante o instrumental inicial, uma mesa é montada e entra a família de Bebelo: mãe, pai,
irmã e avó. Todos sentam-se à mesa, menos Ângela que assiste a cena)
BEBELO - NO CENTRO DA SALA, DIANTE DA MESA
NO FUNDO DE UM PRATO: COMIDA E TRISTEZA
A GENTE SE OLHA, SE TOCA E SE CALA
E SE DESENTENDE NO INSTANTE EM QUE FALA
FAMÍLIA - MEDO, MEDO, MEDO, MEDO, MEDO, MEDO
BEBELO - CADA UM GUARDA MAIS O SEU SEGREDO
A SUA MÃO FECHADA, A SUA BOCA ABERTA
O SEU PEITO DESERTO, A SUA MÃO PARADA
LACRADA E SELADA E MOLHADA DE MEDO
PAI NA CABECEIRA:
36
(Cada vez que um parente de Bebelo canta, esta pessoa se levanta e fica olhando para ele)
PAI DE BEBELO - " É HORA DO ALMOÇO"
BEBELO - MINHA MÃE ME CHAMA:
MÃE DE BEBELO - " É HORA DO ALMOÇO"
BEBELO - MINHA IRMÃ MAIS NOVA, NEGRA CABELEIRA
MINHA AVÓ RECLAMA:
VÓ DE BEBELO - "É HORA DO ALMOÇO"
IRMÃ DE BEBELO - EI, MOÇO!
(Quando a irmã canta, todos estão em pé. Eles começam a se movimentar ao redor de
Bebelo, como se até aquela bela lembrança tivesse sido corrompida por toda dor que ele
carrega no peito nesse momento)
BEBELO - E EU INDA SOU BEM MOÇO PRA TANTA TRISTEZA
DEIXEMOS DE COISAS, CUIDEMOS DA VIDA
SENÃO CHEGA A MORTE OU COISA PARECIDA
E NOS ARRASTA, MOÇO, SEM TER VISTO A VIDA
BEBELO E FAMÍLIA - OU COISA PARECIDA, OU COISA PARECIDA
OU COISA PARECIDA, APARECIDA
OU COISA PARECIDA, OU COISA PARECIDA
OU COISA PARECIDA, APARECIDA
(No final, ele fica em pé enquanto toda a família sai durante os últimos acordes. Um
pequeno momento de silêncio até que Luzia entra, irada, empurrando Bebelo que cai no
chão. Ângela, que estava contemplando toda a memória de Bebelo, desperta e corre para
ajudá-lo)
LUZIA - P orra, Bebelo!!!
ÂNGELA - P ara com isso, Luzia! Pra que isso?
LUZIA - Pra que isso?! Vou te dizer pra que isso!! Duas semanas atrás, Seu Anísio disse pra
Dona Augusta que tinha sonhado com Bebelo tomando de conta do bar. Disse que esse
37
sonho ficou na cabeça dele e que achava que era a coisa certa, que Bebelo tinha uma energia
forte e cativante, que era o melhor pra tomar conta do bar no futuro mesmo.
BEBELO - Eu?
(Bebelo permanece no chão, estático. Ângela está do lado dele)
LUZIA - Você mesmo!!! Pois num é? E sabe qual é a melhor parte? Dona Augusta agorinha
chegou pra mim e disse que tava muito cansada, que não ia dar mais conta do bar e tudo
mais. E adivinha pra quem que ela pensa em passar o bar adiante?
ÂNGELA - B ebelo…
LUZIA - Isso mesmo! Pro cabra que chegou do nada e roubou todas as minhas chances de
vitória nessa vida. Eu amo esse bar, eu tô nele já tem mais de cinco anos! E você, seu merda,
chega aqui e rouba tudo de mim! Eu só queria duas coisas na vida. A primeira foi o bar que
tu roubou mesmo num tendo um ano de estadia com a gente. A outra… (Olhando para
Ângela) Deixa pra lá.
BEBELO - (Ele fala isso com certa lucidez que tem durante um momento que sai do estado
de apatia, solidez) Luzia, espera, vamo tentar resolver isso, eu gosto muito de ti pra que
tudo termine assim, tragédia atrás de tragédia!
LUZIA - Tem coisa que eu não devia ter falado aqui mesmo. Mas, oh, com todo respeito,
agora que o senhor é patrão: eu me demito.
ÂNGELA - Ô, Luzia, não faça isso não, por favor… Chega eu tenho pena de onde a gente
chegou com tudo isso!
(O instrumental de “Balada do Amor Perverso” começa e Luzia, com outras palavras,
começa a colocar para fora tudo que sentiu e, principalmente, que esperava mas deixou de
sentir)
LUZIA - Pena? De todo mundo aqui, a última pessoa que eu precisava ter a pena é tu,
Ângela. Tudo que me restava era o orgulho e até isso tu me tirou com tua pena. É chegada a
hora de parar de lutar e aceitar o que me é devido.
NÃO QUERO AMAR, NÃO!
NUNCA MAIS
QUE ESSE NEGOCIO DE AMOR
JÁ NÃO SE FAZ SEM PUNHAIS
MISTER DE MISTÉRIOS TAIS
38
AH! EU NASCI PERDEDOR
PRA QUÊ MENTIR DE FINGIDOR
DE DORES TÃO REAIS?
QUE ROMANTISMO E INSOLÊNCIA
TORNA-SE O AMOR EM VIOLÊNCIA
SÓ A PAIXÃO LUZ NATURAL
TESÃO DE DEUSA PAGÃ
QUE VENCE O AMOR A LA DON JUAN
CERTEZA E GLÓRIA DE FAZER O MAL
AMOR QUE MOVE O SOL E OUTRAS ESTRELAS
AH! QUEM PENOU A LUZ DELAS
ESSES EU CONHEÇO JÁ DЕ OUTROS CARNAVAIS
DEIXEM-ME SЕR APRENDIZ
DO AMOR PERVERSO, DO AMOR FELIZ
LUGAR-COMUM DE ANJOS E DE ANIMAIS
DEIXEM-ME SER APRENDIZ
DO AMOR PERVERSO, DO AMOR FELIZ
LUGAR-COMUM DE ANJOS E DE ANIMAIS
(Ela quebra o olhar final, pedinte de amor, para voltar a perceber sua própria realidade)
Mas tem coisas que a gente não merece mesmo e a vida deixa isso bem claro. Agora, me
pergunte Bebelo, “Por que tu vive?”. Pergunte. Eu não vou saber responder nada porque vou
ter que começar do zero de novo a procurar o que me faz querer viver…
(Dito isso, ela sai de cena. Bebelo sai com os olhos todos marejados. Ângela fica em cena,
sem saber o que fazer)
39
Bebelo pra fazer algo nele mesmo… Mas eu sozinha não consigo, eu preciso de ajudar pra
tirar ele desse… (É interrompida por Bebelo, que entra em cena)
BEBELO - Tá pensando no quê?
ÂNGELA - N ada.
BEBELO - Em mim?
ÂNGELA - T alvez. Mas acima de tudo, ainda agradecendo.
BEBELO - Pelo quê?
ÂNGELA - Pelo tanto de coisa que a vida tem pra oferecer. Por mesmo com tudo isso eu
ainda te ter. Entende?
BEBELO - Não mais.
ÂNGELA - C omo assim “não mais”?
BEBELO - Não mais ué. Não consigo lembrar desses bons tempos aí que tu diz.
ÂNGELA - Mas eu não tô nem falando do ontem, tô falando é do hoje. Hoje eu ainda tenho
muito o que agradecer. Tenho mais que agradecer do que reclamar até!
BEBELO - Isso quer dizer que tu tá vivendo numa ilusão, não na realidade.
ÂNGELA - Ilusão, realidade, tanto faz! Você vive no que acredita! No que sente, no que vê,
no que quer! Queira melhorar, Bebelo! Esse é o primeiro passo. Vem comigo, eu quero
muito que você consiga voltar a ver a vida como ela é. Eu queria que você visse que a tua
realidade é você quem faz! (Ela fala quase o chacoalhando, puxando sua camisa)
(Então, começa o instrumental de “Alucinação” e Bebelo começa a cantar sobre como está
vendo seu mundo cinza e no que não mais o interessa)
BEBELO - EU NÃO ESTOU INTERESSADO
EM NENHUMA TEORIA
EM NENHUMA FANTASIA
NEM NO ALGO MAIS
NEM EM TINTA PRO MEU ROSTO
OU OBA OBA, OU MELODIA
40
PARA ACOMPANHAR BOCEJOS
SONHOS MATINAIS
EU NÃO ESTOU INTERESSADO
EM NENHUMA TEORIA
NEM NESSAS COISAS DO ORIENTE
ROMANCES ASTRAIS
A MINHA ALUCINAÇÃO
É SUPORTAR O DIA-A-DIA
E MEU DELÍRIO É A EXPERIÊNCIA
COM COISAS REAIS
UM PRETO, UM POBRE, UM ESTUDANTE
ÂNGELA - U ma mulher sozinha
BLUE JEANS E MOTOCICLETAS
PESSOAS CINZAS NORMAIS
GAROTAS DENTRO DA NOITE
REVÓLVER: CHEIRA CACHORRO
OS HUMILHADOS DO PARQUE
COM OS SEUS JORNAIS
CARNEIROS, MESA, TRABALHO
MEU CORPO QUE CAI DO OITAVO ANDAR
E A SOLIDÃO DAS PESSOAS
DESSAS CAPITAIS
A VIOLÊNCIA DA NOITE
O MOVIMENTO DO TRÁFEGO
(Ângela começa a contestar a visão que ele tem sobre a realidade)
ÂNGELA - U M RAPAZ DELICADO E ALEGRE
QUE CANTA E REQUEBRA
É DEMAIS!
BEBELO - CRAVOS, ESPINHAS NO ROSTO
ROCK, HOT DOG
"PLAY IT COOL, BABY"
DOZE JOVENS COLORIDOS
41
DOIS POLICIAIS
ÂNGELA - C UMPRINDO O SEU DURO DEVER
E DEFENDENDO O SEU AMOR
E NOSSA VIDA
CUMPRINDO O SEU DURO DEVER
E DEFENDENDO O SEU AMOR
E NOSSA VIDA
BEBELO - MAS EU NÃO ESTOU INTERESSADO
EM NENHUMA TEORIA
EM NENHUMA FANTASIA
NEM NO ALGO MAIS
ÂNGELA - L ONGE O PROFETA DO TERROR
QUE A LARANJA MECÂNICA ANUNCIA
AMAR E MUDAR AS COISAS
ME INTERESSA MAIS
AMAR E MUDAR AS COISAS
AMAR E MUDAR AS COISAS
ME INTERESSA MAIS
(Logo em seguida já começa, por uma transição da música anterior, o instrumental de
“Ypê”)
BEBELO - Para com isso.
ÂNGELA - Isso o quê? Tentar te mostrar o que eu vejo nesse mesmo cenário que você tá
descrevendo aí? Sabe o que eu realmente vejo no presente, no passado e no futuro?
CONTEMPLO O RIO, QUE CORRE PARADO
E A DANÇARINA DE PEDRA QUE EVOLUI
COMPLETAMENTE SEM METAS, SENTADO
NÃO TENHO SIDO, EU SOU NÃO SEREI NEM FUI
A MENTE QUER SER, MAS QUERENDO ERRA
POIS SÓ SEM DESEJOS É QUE SE VIVE O AGORA
VEDE O PÉ DO YPÊ, APENASMENTE FLORA
42
REVOLUCIONARIAMENTE
APENSO AO PÉ DA SERRA
VEDE O PÉ DO YPÊ, APENASMENTE FLORA
REVOLUCIONARIAMENTE
APENSO AO PÉ DA SERRA
(Da mesma forma anterior, a música transiciona agora para “Antes do Fim”)
BEBELO - Pois que seja, eu não quero mais um presente. Cada presente que esperei foi por
água abaixo! Tá na hora de desistir e se despedir.
QUERO DESEJAR, ANTES DO FIM
PRA MIM E OS MEUS AMIGOS
MUITO AMOR E TUDO MAIS;
QUE FIQUEM SEMPRE JOVENS
E TENHAM AS MÃOS LIMPAS
E APRENDAM O DELÍRIO COM COISAS REAIS
NÃO TOME CUIDADO
NÃO TOME CUIDADO COMIGO:
O CANTO FOI APROVADO
E DEUS É SEU AMIGO
NÃO TOME CUIDADO
NÃO TOME CUIDADO COMIGO
QUE EU NÃO SOU PERIGOSO:
- VIVER É QUE É O GRANDE PERIGO
ÂNGELA - B ebelo…
BEBELO - Por hoje é só, Ângela.
ÂNGELA - E u ainda não desisti. (Ela sai)
BEBELO - (Falando com a plateia) Pois eu já. Se você aí acham que eu gosto de discutir, eu
odeio… Nunca que eu imaginei chegar aqui, desse jeito. Ainda mais falando isso, desse
jeito, com a minha anja. Anja. Até com ela eu perdi o controle… Depois dessa briga, nós não
falamos mais um com o outro durante um tempo, uns dois dias. A única coisa que ela disse,
no dia depois da discussão, foi:
43
ÂNGELA - Tá bem, se você quer desistir, ótimo. Mas vai ter que fazer uma coisa, em
respeito a Seu Anísio: sábado nós vamos lá no bar. A gente vai se despedir de tudo por lá,
antes de abandonar. Se é pra fugir, que faça direito.
BEBELO - Aquilo eu não podia dizer não. Mesmo querendo, eu também sabia que era certo
dar adeus a tudo por lá, o espaço, Dona Augusta… É a honra dos que sofrem. E era Ângela
pedindo, difícil negar depois de ter sido grosso com uma anja. Ô vida. E será que isso um
dia vai passar? Tudo que eu queria era saber responder minha própria pergunta.
44
COMO VER É COMOVER
NADA COMO VIVER DE REPENTE
DONA AUGUSTA - Q UANDO A VIDA ACONTECER
TÃO BONITA MOCIDADE
A PALAVRA INDEPENDENTE
O CORPO QUE SENTE
SABE FAZER
ZÉ DO CÔCO - AMAR, PRAZER, POR QUE NÃO DIZER
O PALAVRÃO, A PALAVRA, SENSAÇÃO
LUZIA - A MAR, PRAZER, POR QUE NÃO DIZER
O PALAVRÃO, A PALAVRA, SEM O SENÃO
TODOS - N ADA
NADA COMO VIVER
NADA COMO VIVER DE REPENTE
(Bebelo chega com Ângela e aos poucos todos vão percebendo, até que, claramente, cantam
a última frase direcionada a ele)
NADA
NADA, NADA, NADA, NADA
NADA COMO VIVER
NADA COMO TE VER TÃO CONTENTE
BEBELO - Ora, eu sabia que tinha coisa nesse convite teu, Ângela.
ÂNGELA - É , tinha. Mas eu não sabia que ia ser desse jeito, que iam tá aqui assim…
BEBELO - E como é que ia ser?
DONA AUGUSTA - Bebelo, pare. A culpa não é de Ângela, não. Pelo menos não só dela. Todo
mundo aqui, sem tirar ninguém, se preocupou contigo.
BEBELO - A troco de quê, minha gente? Agora vamo fazer uma roda do AA pra mim
também?
BIBITO - Não é isso, primo. A gente percebeu que, se era pra fechar o bar, ainda tinha
muita coisa a ser dita. Não só uns aos outros aqui, mas pra ti. Então, se ajeite por aí, pegue
logo uma cadeira se quiser, porque você não sai daqui antes de ouvir tudo!
45
BEBELO - (Suspirando) O que é que vocês ainda querem me dizer?
DONA AUGUSTA - Eita, homem agoniado!!! Espere ainda. A gente quer mais tirar essas
coisas pra fora contigo do que mudar tua cabeça! Teimoso do jeito que tu é! Só escute! (Ele
aceita, afinal é um pedido de Dona Augusta) Me digam aí, quem vai começar?
(Todos se olham um instante, com uma breve vergonha, até que João toma a iniciativa)
JOÃO - Eu vou logo começar dizendo que eu acho que todo mundo aqui tem uma dívida
contigo e talvez a minha seja a maior de todas. Lembra quando você veio falar comigo
naquele primeiro dia? Eu não sei se foi por curiosidade, pena ou carência, mas me fez bem.
Hoje em dia é tão difícil achar alguém que escute, que se importe mesmo, ainda mais com
quem não se conhece! Minha dívida contigo, por mais que você ache que não, é a vida, meu
amigo. Pra tirar um peso disso: não é a vida, vida mesmo, é a beleza dela. É conseguir ver
que vale à pena ainda. Depois daquele dia Bebelo, tu, tua música, o povo do bar, as
conversas, tudo me fez me sentir vivo de novo. Tudo porque tu me convidou a ver a vida
desse jeito. Só queria te dizer isso porque foi nesse bar que minha história contigo se deu e,
já que ele vai se acabar, achei que era o momento certo de te dizer isso. Obrigado, meu
amigo.
(Todos aplaudem e Bebelo, Ângela e Luzia estranham)
ÂNGELA - Pelo amor de deus, aplauso não, né, gente? Aí sim vai ficar parecendo reunião do
AA. Não foi assim que a gente combin… (Bebelo olha para ela) Pois é, Zé do Côco, pense em
ir pro AA, tá precisando!
ZÉ DO CÔCO - Valha, tava bem quietinho aqui no meu canto…
PUTA MARIA - Eu vou falar é agora! Preciso dizer a verdade, minha vó morreu faz é
tempo… (Alguns se surpreendem, outros dizem que já sabiam) E aí, eu mentia e falava da
tristeza da morte dela - foi triste mesmo, viu, gente - porque ganhava umas coisas de graça
e era melhor que ficar fazendo programa. Mas eu também ainda mantinha uns clientes de
sempre, né… Mas foi só quando Bebelo me perguntou porque eu vivia que eu percebi que
tava era perdendo tempo, que eu tava apaixonada pelo meu cliente, o que pagava mais né, e
agora vou me casar com ele! Esse cliente é Seu Padre!
SEU PADRE - (Extremamente desconcertado) Com a graça do senhor! (Beija Puta Maria)
Não precisava anunciar assim agora, não é, Maria?
PUTA MARIA - Mas eu não consigo controlar, eu te amo, Jorjão!
SEU PADRE - V em cá, pitchulinha!
46
ZÉ DO CÔCO - Seu Padre é Jorjão? O teu cliente conhecido por causa do… Eita, menino!
BIBITO - V ai pagar o casório com nosso dízimo, né não?
JOÃO - Se o Seu Padre vai casar, quem é que vai ser o padre do casamento? Ele pode se
casar?
DONA AUGUSTA - M inha Nossa Senhora e meu Bom Senhor Jesus, perdoe essas almas!
(Todo mundo fica comentando várias coisas diferentes a respeito do casório, até que Zé do
Côco se prontifica)
ZÉ DO CÔCO - Já que todo mundo tá falando mesmo, eu vou falar também!
DONA AUGUSTA - P ois fale, meu filho.
ZÉ DO CÔCO - Se não fosse Bebelo, eu nunca tinha pensado nos côco com álcool. Hoje eu
me sinto um homem de negócios justamente porque Bebelo me fez vender essa ideia boa.
Pode ver ali, ó, todo dia tem gente desmaiada na praia de tanto beber “Cocoipirinha, o
drinkoco da galera”!
BIBITO - É com essa deixa, que eu também quero falar de negócios. Obrigado, Zé, por
antecipar isso.
ZÉ DO CÔCO - Metido da peste.
BIBITO - Vou ser bem breve porque senão isso aqui não acaba hoje. Mas, como João disse,
obrigado, Bebelo, por me fazer ver a vida como ela pode ser vista, tudo por conta de quem
você é e das suas músicas. Eu mudei muito já, mas sei que o caminho é longo ainda…
ZÉ DO CÔCO - E pense como é longo pra ti viu!
BIBITO - (Incomodado pela interrupção) Enfim! Mas você me mostrou o caminho que eu
preciso seguir pra me sentir melhor e não deixar ninguém mais dizer quais são minhas
prioridades a não ser eu mesmo! Pode deixar que eu vou fazer jus ao teu esforço comigo,
meu querido. Obrigado, primo!
(Todo mundo bate palma de novo)
ÂNGELA - G alera!
SEU PADRE - F oi mal, anja, é a emoção do senhor nessas horas!
47
ÂNGELA - Sei. (Voltando-se para Bebelo, com muito afago) Bebelo, eu… Eu já te falei tudo e
mais um pouco. Mas eu precisava que você visse o quão bem você também fez pras pessoas!
Eu sei que foi difícil acreditar, porque tudo desmoronou do nada e você não sabia o que
fazer. Você achava que era sua culpa. Mas você é culpado só de ter dado teu melhor e ter
mostrado pra todo mundo aqui, eu inclusa, que a vida é linda! E tudo que a gente queria é
que você visse isso também agora…
BEBELO - Anja…
DONA AUGUSTA - Bebelo, olhe, tu não sabe, mas o bar aqui tava numa crise doida. Mas foi
só tu chegar aqui que numas poucas semanas tudo se ajeitou. Quem chegava por aqui ficava
até a hora de fechar e toda semana ficava vindo. Quando o Anísio falou comigo sobre tu, foi
falando disso mesmo, que tu mudou a energia daqui, mudou até como a gente via e ouvia
música. É por isso que a proposta de tu assumir o bar ainda tá de pé… Eu não vou sumir do
nada, mas também num tenho mais idade pra ficar nesse movimento todo não. O que tu
acha disso? A gente precisa de tu, home.
BEBELO - Eu… Não sei ainda… (Agora para a plateia) Eu sabia era demais, queria voltar
depois de tudo isso sim, mas tinha que fazer esse joguinho porque tava achando era bom
ficar ouvindo o povo dizendo aquelas coisas! (Ele ri e volta a ficar sério para falar com o
pessoal novamente) Gente, eu agradeço demais, mas não sei… Por que Luzia não assume?
LUZIA - Bebelo, me desculpa, tá? Eu errei contigo. Eu não deveria ter feito nada daquilo.
Até depois da briga tu ainda continuou me ajudando porque eu só fiquei pensando no que
me fazia viver. A resposta é esse bar aqui e isso não depende do que eu seja nele. Vivo feliz
aqui. Mas não tem como num ver que depois que tu chegou aqui, as coisas mudaram.
Então, assuma logo de uma vez isso aqui!
BEBELO - E que tal, sócios? (Todos se surpreendem)
BIBITO - E sse é meu primo!
BEBELO - Eu também num posso ficar à frente disso aqui sozinho, tem que ter alguém
comigo pra eu ficar cantando com a anja!
LUZIA - B ebelo…
BEBELO - Eu só fico se tu aceitar! A gente vai trabalhar é junto!
LUZIA - E u aceito sim! Bora nessa!
(Todos comemoram)
48
BEBELO - Oh, gente. Enquanto vocês falavam aí, eu tava prestando atenção né, claro, fico
feliz com tudo. Mas eu não conseguia tirar da minha cabeça o tanto de coisa que eu tava
perdendo com vocês. Eu fiquei foi com ciúmes de ver todo mundo aí feliz, cantando, sem
mim! Eu num podia deixar isso acontecer, eu queria de novo vocês na minha vida. É por
isso que foi fácil voltar ao que eu queria ser de novo, alguém feliz. Feliz por sentir tudo que a
vida tem pra sentir, podendo ser até tristeza mesmo. Mas precisou disso tudo mesmo pra
eu perceber o que tava perdendo. Obrigado mesmo, pessoal. Obrigado, minha anja!
(Bebelo beija Ângela, todos comemoram com a nova notícia.)
JOÃO - P ois, então, Bebelo, hoje tem?!
BEBELO - Hoje tem que ter! (Fala tudo euforicamente com todos satisfeitos ao seu redor.
Aos poucos vai direcionando sua fala ao público) Vamo reabrir isso aqui porque a vida é
música, arte e o agora! Vamo viver o agora porque o passado já se foi e o amanhã ainda nem
é nosso. Amor, arte, vida! Que a gente aprenda que não precisa saber porquê se vive pra
viver! A vida é o presente que a gente tem que usar bem, do jeito que você preferir. E eu tô
falando da gente porque é gente, gente é a melhor coisa que tem, eu não ia ser nada se não
fosse por essa gente e nem por essa gente! (Falando primeiro dos atores e depois do público)
Obrigado por estarem todos aqui, comigo, porque se um tivesse faltado, já não ia ser bonito
desse jeito. E vamo continuar cantando porque é o que cria nosso sorriso e se tem uma coisa
que a gente tem que fazer mais, é sorrir nessa vida!!! (O instrumental de “Sujeito de Sorte”
começa)
BEBELO - PRESENTEMENTE EU POSSO ME CONSIDERAR UM SUJEITO DE SORTE
PORQUE, APESAR DE MUITO MOÇO, ME SINTO SÃO E SALVO E FORTE
E TENHO COMIGO PENSADO: "DEUS É BRASILEIRO E ANDA DO MEU LADO"
E ASSIM JÁ NÃO POSSO SOFRER NO ANO PASSADO
TENHO SANGRADO DEMAIS, TENHO CHORADO PRA CACHORRO
ANO PASSADO EU MORRI, MAS ESSE ANO EU NÃO MORRO
TENHO SANGRADO DEMAIS, TENHO CHORADO PRA CACHORRO
ANO PASSADO EU MORRI, MAS ESSE ANO EU NÃO MORRO
ANO PASSADO EU MORRI, MAS ESSE ANO EU NÃO MORRO
ANO PASSADO EU MORRI, MAS ESSE ANO EU NÃO MORRO
(Durante o instrumental vemos todos comemorando, dançando, cantando no bar e também
interagindo com a plateia)
TODOS - P RESENTEMENTE EU POSSO ME CONSIDERAR UM SUJEITO DE SORTE
49
PORQUE, APESAR DE MUITO MOÇO, ME SINTO SÃO E SALVO E FORTE
E TENHO COMIGO PENSADO: "DEUS É BRASILEIRO E ANDA DO MEU LADO"
E ASSIM JÁ NÃO POSSO SOFRER NO ANO PASSADO
TENHO SANGRADO DEMAIS, TENHO CHORADO PRA CACHORRO
ANO PASSADO EU MORRI, MAS ESSE ANO EU NÃO MORRO
TENHO SANGRADO DEMAIS, TENHO CHORADO PRA CACHORRO
ANO PASSADO EU MORRI, MAS ESSE ANO EU NÃO MORRO
ANO PASSADO EU MORRI, MAS ESSE ANO EU NÃO MORRO
ANO PASSADO EU MORRI, MAS ESSE ANO EU NÃO MORRO
PRESENTEMENTE EU POSSO ME CONSIDERAR UM SUJEITO DE SORTE
PORQUE, APESAR DE MUITO MOÇO, ME SINTO SÃO E SALVO E FORTE
E TENHO COMIGO PENSADO: "DEUS É BRASILEIRO E ANDA DO MEU LADO"
E ASSIM JÁ NÃO POSSO SOFRER NO ANO PASSADO
TENHO SANGRADO DEMAIS, TENHO CHORADO PRA CACHORRO
ANO PASSADO EU MORRI, MAS ESSE ANO EU NÃO MORRO
TENHO SANGRADO DEMAIS, TENHO CHORADO PRA CACHORRO
ANO PASSADO EU MORRI, MAS ESSE ANO EU NÃO MORRO
ANO PASSADO EU MORRI, MAS ESSE ANO EU NÃO MORRO
ANO PASSADO EU MORRI, MAS ESSE ANO EU NÃO MORRO…
(Palmas. Comemoração. Sorrisos.)
50
Obrigado, Belchior.
51