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Crítica
Hermenêutica da Falácia Política e
Ideológica do (Conceito de) Tráfico de
Drogas e de Seu Mandado Constitucional
Expresso de Criminalização
T hiago F abres de C arvalho *
D aniel N ascimento D uarte **
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INTRODUÇÃO
Diante das inúmeras e inéditas manifestações em torno da descrimi-
nalização das drogas, do respeito às identidades culturais e às opções indi-
viduais de vida que não afetem direitos alheios, consubstanciados no ideal
moderno de autenticidade e dos processos de luta por reconhecimento das
formas e dos estilos de vida plurais e alternativos aos imperativos de uma vi-
são dominante da ordem social (Taylor, 2000; Honneth, 2003), impõe-se uma
profunda reflexão sobre tema de tão relevante controvérsia.
Isto porque o modelo político adotado pelo Brasil em relação às drogas,
batizado com extrema argúcia por Nilo Batista de “política criminal com der-
ramamento de sangue”, exige uma rápida transformação, sob pena de man-
termos em curso esse verdadeiro massacre cotidiano de indivíduos e grupos
sociais vulneráveis, instrumentalizado de forma acrítica e autoritária pelo
discurso penal e criminológico hegemônico da “guerra às drogas”.
Esse verdadeiro “genocídio em ato”, termo pelo qual Raúl Zaffaroni
(2001) expressa a operacionalidade real dos sistemas penais do capitalismo
tardio, protagonizado pelo confronto armado cotidiano nas favelas e perife-
rias dos grandes centros urbanos, associado ao fenômeno do encarceramento
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1 A concepção de Estado de exceção permanente que será trazida e referenciada neste ensaio é
justamente a visão crítico-filosófica advinda das reflexões de Giorgio Agamben, onde, diante
de um contexto de guerra, e constante descarte de direitos, identifica as balizas da exceção,
como atual regra sustentadora dos intentos governamentais, oportunidade em que, o
pensador, enquadra-a como paradigma governamental da contemporaneidade: “A criação
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projeto antes de realizar um projeto, uma vez que não decide sem mais, mas sempre a partir
de um chão linguístico, histórico, existencial, que torna possível a realização de qualquer
projeto (Almeida, 2002, p. 241 e ss.).
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Diante de tal constatação, importante frisar que uma clara quebra com
o paradigma da filosofia da consciência exterioriza-se também, além das afir-
mações que se revelaram no decorrer da abordagem, no foco agora existente
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5 Tal ponto será melhor esclarecido quando da reflexão acerca da diferença ontológica (tó-
pico 3).
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6 Trata-se de uma reflexão que já feita por Gadamer: “Enquanto tais, os preconceitos e
opiniões prévias que ocupam a consciência do intérprete não se encontram à sua livre
disposição” (2005, p. 391).
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sendo, estabelecer uma relação de ser com seu próprio ser. Isso significa,
explicitamente e de alguma maneira, que a pre-sença se compreende em
seu ser, isto é, sendo. É próprio desde ente que seu ser se lhe abra e mani-
feste com e por meio de seu próprio ser, isto é, sendo. A compreensão do ser
é em si mesmo uma determinação do ser da pre-sença. O privilégio ôntico que
distingue a pre-sença está em ser ela ontológica. (Heidegger, 1988, p. 38)
8 Se fez questão de destacar tal reflexão de Lênio Streck, pois ele a menciona relacionando-a
com o Direito. Ocorre que, e isso deve ser de fato fixado, toda essa reflexão, sejam as do autor
citado como as nossas neste ensaio, é oriunda expressamente das reflexões de Heidegger em
Ser e tempo (1988).
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Nesse sentido, recusa-se, e isto vem sendo feito durante todo momento
nestas reflexões, “uma unidade a priori da razão e a condicionalidade local
das formas de racionalidade” (Reis, 2011, p. 60), e tal premissa será de essen-
cial valia para o enfrentamento do fenômeno de estudo a seguir apresentado.
Logo, por derradeiro, convém ressaltar que, quando se produz algo,
é interessante que se submeta ao diálogo com outras pessoas, dessa forma, talvez, a
verdade, naquele momento, possa ser construída e possa vir a se manifestar; e este é
um ponto central para avançarmos e enfrentarmos o próximo momento.
Definitivamente, sem assumir as limitações temporais (expostas neste
tópico) e sem esse reconhecimento da essencialidade da intersubjetividade
e da divisão (ser-com) na busca pela compreensão, ressaltada supra, o resul-
tado em determinados casos será uma entificação atemporal e objetiva dos
fenômenos (entes/objetos), o que não é o que se espera de um percurso her-
menêutico.
10 Janaína Conceição Paschoal (2003), sob um viés mais crítico e diante de um direito penal
mínimo, não concebe como mandados constitucionais expressos de criminalização os incisos
em que a Constituição refira-se somente em “punição” como é o caso do artigo relacionado
às crianças e adolescentes, pois, segundo a autora, uma punição não necessariamente tem
que se dar sob o âmbito penal. Interessante “saída” interpretativa.
11 Em que pese o texto constitucional, sabe-se da polêmica que gira em torno da possibilidade
ou não de responsabilização penal da pessoa jurídica no contexto dos delitos ambientais,
principalmente frente aos princípios da responsabilidade pessoal e da culpabilidade. No
entanto, tal temática, apesar de instigante, não é objeto do presente estudo.
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Com efeito, expõe-se um elo visível entre a proibição das drogas e o in-
cremento das estratégias de controle penal sobre as classes e os grupos estig-
matizados. A sobreposição entre “classes perigosas”, “viciados” e traficantes
12 Nas preciosas palavras de Batista (2003, p. 165), “o sistema penal canônico se apresenta,
assim, como o instrumento de uma ordem totalizante e inexorável, que não admite
contestação ou desobediência, e a submissão do réu é recortada também a partir de uma
drástica redução na operatividade de sua defesa. Sem trocadilho, a repressão às heresias
cria o maniqueísmo penal, onde uma ordem virtuosa, representada pelo Tribunal canônico,
contempla o desviado inerme, cuja alma deve ser reconduzida ao grande programa
salvacional da igreja, ainda que ao custo de seu extermínio físico”.
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13 Em Batista (2004, p. 156), a autora ressalta que “as cruzadas contra as drogas, essa
combinação de elementos morais, religiosos e de confronto, produzem um direito penal
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sem fronteiras forjando em Bangu I algo que aspira ser muito parecido com as imagens
sinistras dos prisioneiros de Guantánamo”.
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Diante de todo esse contexto, importante ter-se frisado que ter cons
ciência (reconhecimento) histórica(o) – conhecer, ainda que superficialmente,
a limitação advinda da localização histórica – é ter a percepção que “o tempo
histórico é um tempo de criação e recepção, sendo, pois, o tempo do acolhi-
mento de heranças do passado e da abertura para as incertezas do futuro” (Reis,
2011, p. 59).
É por isso que uma abertura relacional e o reconhecimento dos limites
da realidade possibilitam uma possível crítica da ideologia. Em nosso caso, é
a melhor forma (e ela é inevitável, ante a toda movimentação hermenêutica
traçada no presente ensaio) para uma eficiente crítica de uma ideologia pe-
nal, repressora e punitiva.
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Não sendo assim, nos veremos diante de um círculo vicioso (sem saída,
sem evolução), onde um constante reprojetar que perfaz o movimento do
compreender e do interpretar, tal qual prega Heidegger, não terá vez. Por
derradeiro, fica o alerta de Gadamer (2007, p. 48), ao enaltecer a estrutura e o
movimento da interrogação heideggeriana: “Me parece um pouco cego que as
pessoas me perguntem o que ainda temos afinal a aprender com Heidegger.
Se ao menos pudéssemos aprender com ele! Não se trata aqui de aprender mas de um
saber-fazer”.
CONCLUSÃO
Partindo-se da viragem linguística e sua essencial importância na que-
bra filosófico-paradigmática que deu asas à filosofia hermenêutica, passando,
posteriormente, pelos conceitos que tangenciam este ser que debruça-se em
compreender, o Ser-aí, bem como o seu movimento circular, e sua localização
histórica e temporal, aportou-se no cerne do debate.
Dessa forma, as reflexões percorreram, fundamentalmente, a impor-
tante crítica hermenêutica ao conteúdo semântico do tráfico de drogas, na
sua manifestação metafísica e objetificadora, bem como aos fundamentos da
cláusula constitucional expressa de criminalização, que legitima o nefasto
e autoritário paradigma da “guerra às drogas”. Nos marcos do paradigma
da hermenêutica filosófica, destaca-se que o conceito de tráfico de drogas
está impregnado de valorações ideológicas negativas, demonizadas, impos-
tas pelo discurso penal e criminológico hegemônico, visto como um mal em
si, um ente enquanto ente, produto de uma visão unívoca e profundamente
antidemocrática sobre tema de tamanha e crucial relevância, absolutamente
descolado de seu ser, isto é, de seus sentidos históricos, sociais, culturais e
ideológicos.
O discurso penal e criminológico dominante, instrumentalizado pela
mídia de massa, cristaliza um sentido da atividade do comércio de drogas
ilícitas que foi absorvido de forma absolutamente acrítica pelo texto constitu-
cional, determinando um modelo de gestão de conflitos pautado pela guerra,
pelo massacre de indivíduos e grupos sociais vulneráveis, abrindo os canais
para a afirmação do paradigma do inimigo e do estado de exceção perma-
nente que dilaceram os horizontes simbólicos da democracia e dos direitos
fundamentais.
Nitidamente, tal modelo punitivo se contrapõe aos próprios horizontes
normativos dos direitos fundamentais expressos no texto constitucional, que
determina em seu próprio preâmbulo o compromisso com a “solução pacífi-
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