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BERNARDO ÉLIS

(da Academia Brasileira de Letras)

O TRONCO
Romance

8ª edição

JOSÉ OLYMPIO EDITORA

RIO DE JANEIRO/1988
Bernardo Élis, 1956

Reservam-se os direitos desta edição à


LIVRARIA JOSÉ OLYMPIO EDITORA, S.A.
Rua Marquês de Olinda, 12
Rio de Janeiro — República Federativa do Brasil
Printed in Brazil / Impresso no Brasil

ISBN 85-03-00252-3

Capa
Montagem
MAURÍCIO DE OLIVEIRA
sobre desenho de
POTY

Diagramação
ANTÔNIO HERRANZ

CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

Élis, Bernardo, 1915E42t O Tronco: romance. — 8. ed. — Rio de Janeiro: José


Olympio, 1988.

Dados biobibliográficos do autor.


Bibliografia.
1. Romance brasileiro I. Título.

CDD — 869.93
Rj-77-0419 CDU — 869.0(81)-31

Ofereço este livro aos


HUMILDES VAQUEIROS,
JAGUNÇOS, SOLDADOS,
HOMENS, MULHERES
e
MENINOS SERTANEJOS

mortos nas lutas dos coronéis


e que não tiveram sequer uma sepultura.
SUMÁRIO

DADOS BIOGRÁFICOS DE BERNARDO ÉLIS vii

BlBLIOGRAFIADEBERNARDOÉLIS ÍX

NOTADAEDITORA XÍ

ROMANCE DE PROTESTO(Francisco de Assis Barbosa) xi

EXPLICAÇÃO xviii

O TRONCO

I. O inventário 3
II. A comissão 59
III. . A prisão 111
IV. O assalto 209
DADOS BIOGRÁFICOS
DE BERNARDO ELIS

BERNARDO ÉLIS é o nome literário de Bernardo Élis Fleury de Campos


Curado, nascido em Corumbá de Goiás (GO), em 15 de novembro de 1915, filho
do poeta Érico José Curado e sua mulher Marieta Fleury Curado.
As primeiras letras fez em casa com os pais, o curso ginasial no liceu de
Goiás, da antiga capital do Estado, o curso jurídico em Goiânia, onde reside
desde 1939. Iniciou-se na carreira pública como Secretário da Prefeitura
Municipal de Goiânia, quando por duas vezes exerceu as funções de prefeito da
Capital; ingressou depois no magistério como professor da Escola Técnica
Federal de Goiânia, lecionando ainda nos colégios Estadual e Municipal e na
rede de ensino gratuito, havendo antes desempenhado as funções de técnico
cooperativista do Departamento Estadual de Cooperativismo.
Foi co-fundador, vice-diretor e professor do Centro de Estudos Brasileiros,
da Universidade Federal de Goiás, daí passando a professor de Literatura da
Universidade Católica e em vários cursos preparatórios ao vestibular das
universidades.
É fundador da União Brasileira de Escritores de Goiás, cuja presidência
ocupou diversas vezes; é membro da Academia Goiana de Letras, da Academia
Brasiliense de Letras, do Instituto Histórico e Geográfico de Goiás e da União
Nacional de Escritores de Brasília, da qual foi presidente.
Tem participado ativamente dos acontecimentos literários a partir de 1934,
fundando e dirigindo órgãos culturais aparecidos no Brasil Central, nos quais
colabora. Participou dos Congressos Brasileiros de Escritores realizados em São
Paulo, Belo Horizonte, Porto Alegre e Goiânia, do Encontro das Academias de
Letras em Goiás (1972), do Congresso de Jornalistas e Escritores. Promoveu o I
Curso de Literatura em Goiás (1953) e realizou palestras, conferências e cursos
literários em oportunidades que ultrapassam uma centena.
Como advogado, militou nos foros de Goiânia, Anápolis, Inhumas e outras
cidades.
Nos Últimos anos desempenhou a função de assessor cultural junto aos
Escritórios de Representação do Estado de Goiás, no Rio de Janeiro e em
Brasília, e reassumiu o cargo de professor da Universidade Federal de Goiás,
exercendo ainda a função de diretor adjunto do Instituto Nacional do Livro
(MEC), em Brasília. É conselheiro do Conselho Federal de Cultura, do Minc e do
Conselho Estadual de Cultura de Goiás.
Pertence à Academia Brasileira de Letras, onde ocupa a Cadeira nº. 1,
para a qual foi eleito em 23 de outubro de 1975, tendo sido ali recebido em 10
de novembro do mesmo ano pelo acadêmico Aurélio Buarque de Holanda
Ferreira. É o primeiro goiano a ingressar na Casa de Machado de Assis.
Foi agraciado pelo Presidente Sarney com a insígnia e o diploma da
Ordem do Rio Branco, no grau de Grande Oficial.
É casado com a professora e pintora Mana Carmelita Fleury Curado.
BIBLIOGRAFIA DE
BERNARDO ÉLIS

ROMANCE
O tronco. São Paulo, Martins, 1956; 2. ed., refundida, Rio de Janeiro, José
Olympio, 1967. Prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro, 1968; 3. ed., Rio de
Janeiro, José Olympio (Coleção Literatura Contemporânea), Civilização
Brasileira/Três, 1974; 4. ed., São Paulo, Círculo do Livro/Abril, 1974; 5. ed., Rio
de Janeiro/ Brasília, José Olympio/INL, 1977; 6. ed., Rio de Janeiro, José
Olympio, 1979. A terra e as carabinas. Em Obra Reunida de Bernardo Élis. Rio
de Janeiro, José Olympio, 1987. Coleção Alma de Goiás. Chegou o governador.
Rio de Janeiro, José Olympio, 1987. Brasileira do Livro, 1967; 2. ed., rev. e aum.
Rio de Janeiro/ Brasília, José Olympio/INL, 1976; 3. ed., Rio de Janeiro, José
Olympio, 1978; 4. ed., Rio de Janeiro, José Olympio, 1979. Nota de Herman
Lima.
Caminhos dos Gerais. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1975;
2. ed., aum., Rio de Janeiro/ Goiânia, Civilização Brasileira/Universidade Federal
de Goiás, 1982. Notas da Prof? Moema C. S. Olival. André Louco. Rio de
Janeiro, José Olympio, 1978. Apenas um violão. Rio de Janeiro, Nova Fronteira,
1984.
Dez contos escolhidos. Brasília, Horizonte, 1985.

POESIA

Prímeira chuva. Goiânia, Escola Técnica Industrial 1955; 2. ed., Goiânia,


Instituto Rio Branco, 1971.

CRÔNICA

Jeca Jica — Jica Jeca. Goiânia, Cultura Goiana, 1986.

CONTO
Ermos e Gerais. São Paulo, Bolsa de Publicações, Hugo de Carvalho Ramos,
1944; 2. ed., Goiânia, OTO, 1955. Prêmio Prefeitura Municipal de Goiânia.
Caminhos e descaminhos. Goiânia, Brasil Central, 1965. Prêmio Afonso Arinos
da Academia Brasileira de Letras.Veranico de janeiro. Rio de Janeiro, José
Olympio, 1966. Prêmio José Lins do Rego da José Olympio, 1965. Prêmio Jabuti
da Câmara

ENSAIO
Marechal Xavier Curado, criador do Exército nacional. Goiânia, Gráfica Oriente,
1973. Prêmio Sesquicentenário da Independência do Brasil, 1972. Vila-Boa de
Goiás. Aspectos turístico-históricos. Desenhos de tom Maia e legendas de
Theresa R. C. Maia. São Paulo/Rio, Nacional/Embratur, 1979. Goiás. Estudos
Sociais (l? grau). Rio de Janeiro, Bloch, 1976. Coleção Nosso Brasil. Os
enigmas de Bartolomeu Antônio Cordovil. Bibliografia seguida de
IX
antologia do primeiro poeta goiano do Brasil-Colônia. Goiânia, Oriente, 1980.
Vila-Boa de Goiás. Álbum fotográfico, texto de Bernardo Elis. Rio de Janeiro,
Berlendis & Vertechia Editores, 1978. Goiás em sol maior. Estudos de história,
sociologia e literatura sobre Goiás. Goiânia, Poligráfica, 1985.
O Centro-Oeste. Álbum de pintura com obras inéditas de A. Poteiro, Ornar
Souto, A. Espíndola e Siron Franco, com apresentação de Bernardo Elis,
patrocinado pelo Banco Francês e Brasileiro S.A.. Rio de Janeiro, Colorama,
1986.

DISCURSO
Cadeira um. Discursos da Academia Brasileira de Letras: Bernardo Elis (posse)
e Aurélio Buarque de Holanda Ferreira (recepção). Rio de Janeiro, Cátedra,
1983. Duo em si menor. Discursos na Academia Brasiliense de Letras, Fundação
da Cadeira n. 3: Herberto Sales (posse) e Bernardo Elis (recepção). Brasília,
Horizonte, 1983.

ANTOLOGIAS
Seleta de Bernardo Elis. Organização de Gilberto Mendonça Teles; estudos e
notas do Prof. Evanildo Bechara. Rio de Janeiro/Brasília, José Olympio/INL,
1974; 2. ed., Rio de Janeiro, José Olympio, 1976. Presença literária de Bernardo
Elis. Antologia. Organização de Nelly Alves de Almeida. Goiânia, UFG, 1970.
A posse da terra: escritores brasileiros hoje. Perfis biobibliográficos e fragmentos
antológicos de autores da atualidade. Co-edição Imprensa Nacional/Casa da
Moeda de Portugal e Secretaria de Cultura de São Paulo, Brasil. Lisboa,
Sociedade Industrial — Gráficajelles da Silva, 1985. Bernardo Elis. Seleção de
textos, notas, estudos biográfico, histórico e crítico e exercícios por Benjamim
Abdala Jr,. São Paulo, Abril Educação, 1983.

TRADUÇÕES NO EXTERIOR
Antologia de contos brasileiros. Tradução para o alemão por Kurt Mayer
Classon. Alemanha Ocidental, 1967. Short Story International. Tradução para o
inglês do conto ”Ontem, como hoje, como amanhã, como depois”, por Silas
Curado. International Cultural Exchange, New York, USA, 1979.

CINEMA E TELEVISÃO
Ermos e Gerais é o título de um documentário cinematográfico em curta
metragem sobre a obra e a vida de Bernardo Elis feito pelo cineasta Carlos Del
Pino (1977). Também com esse título a vida e a obra de Bernardo Elis estão
incluídas num curta-metragem cinematográfico feito pelo MEC. Por ocasião do
cinqüentenário de publicação de Ermos e Gerais, a organização J. Câmara, por
intermédio do Sr. Hamilton Carneiro e outros, elaborou ótimo documentário para
a televisão. A firma Filmes do Triângulo Ltda., ligada à empresa Produções
Cinematográficas L.C. Barreto Ltda. do Rio de Janeiro, produziu e lançou no
mercado brasileiro e mundial o filme índia, a filha do sol, baseado em dois
contos de Bernardo Elis.
X
NOTA DA EDITORA
À 2ª EDIÇÃO

Nosso querido amigo, o escritor Francisco de Assis Barbosa, certo dia, em visita
a esta Casa, viu sobre uma das mesas de trabalho os originais de O tronco.
Virou-se imediatamente e declarou: ”Faço questão de fazer a orelha deste livro.
É um livro importante, de primeira ordem.” Daí a semanas trazia-nos o trabalho.
Excedia um tanto as dimensões rotineiras de uma orelha — daí resolvermos
aproveitar essas páginas — com tanto gosto e entusiasmo escritas pelo autor de
A vida de Lima Barreto — como nota de apresentação nesta 2” edição refundida
de O tronco. Vamos ler o que nos diz Francisco de Assis Barbosa:

ROMANCE DE PROTESTO

FRANCISCO DE ASSIS BARBOSA

DESDE o APARECIMENTO de Ermos e Gerais, em 1944, Bernardo Élis se


tomou vanguardeiro de um novo ciclo da ficção brasileira — o do sertanismo
goiano-mineiro. Cronologicamente, é ele o primeiro. Vieram depois Guimarães
Rosa (Sagarana é de 1946), Mário Palmério (com Vila dos Confins, em 1956) e
José J. Veiga (Os Cavalinhos de Platiplanto, 1959). E a literatura do Oeste
passou a competir em prestígio e significado nacional com a literatura do
Nordeste, que se havia transformado numa literatura líder, a partir da fornada
dos grandes romances de conteúdo social iniciada com A bagaceira, de José
Américo de Almeida. A literatura do Nordeste ficou ligada à Revolução de 1930.
A literatura do Oeste ressurge — já que não deve ser omitida a con-

XI
tribuição pioneira de Bernardo Guimarães, Afonso Arinos e Hugo de Carvalho
Ramos — na fase atual da nossa evolução histórica, a da fundação de Brasília.
Ermos e Gerais bem que pode ser considerado o marco oeste da nossa
rosa-dos-ventos literária, uma antecipação, tal como A bagaceira para o ciclo
nordestino. Naquela coletânea de contos de um rapaz de Goiás, completamente
desconhecido, Monteiro Lobato sentiu, como num espanto, o impacto da
revelação de um escritor acima da bitola comum. Um escritor, reconheceu ao
mesmo tempo Mário de Andrade, capaz de transmitir uma realidade mais ”real”
que a real, o que é, afinal de contas, o segredo do ofício, envolto no mistério da
própria criação literária
Assim é de fato Bernardo Élis, sobretudo neste romance O tronco, por
sinal extraído de uma história real, bem entendido, de um fato histórico ou
simplesmente policial, acontecido em Goiás, nos idos de 1917 e 1918, o qual de
tão real que é parece até coisa inventada. Publicado pela primeira vez em 1956,
O tronco passou contudo despercebido do grande público e da crítica, se é que
ambos existem, apesar do sucesso alcançado por Ermos e Gerais, hoje em
segunda edição. Talvez agora prestem mais atenção em O tronco e por dois
motivos. Primeiro, porque o nome do autor se federalizou, depois de conquistar
prêmios literários seguidos, um da Livraria José Olympio Editora — o José Lins
do Rego — em 1966, e outro da Academia Brasileira de Letras — o Afonso
Arinos — em 1967, com livros de contos de primeira qualidade: Veranico de
janeiro e Caminhos e descaminhos. Segundo, porque O tronco possui força
bastante para atrair os caçadores de assunto para o cinema novo brasileiro, que
tantas obras importantes já produziu em sua rápida eclosão, em termos
artisticamente válidos, adquirindo por isso mesmo em tão pouco tempo uma
dimensão internacional.
O tronco daria um grande filme. E o roteirista não teria muito trabalho na
adaptação para a linguagem cinematográfica da história rude e máscula,
especialmente nas cenas do assalto à Vila do Duro, a luta encarniçada que
então se travou entre contingentes da polícia e a horda de jagunços a serviço do
”coronel” destituído de repente das graças do governo estadual. Tudo parece
escrito para o cinema, com impressionante precisão na marcação das cenas,
sublinhando o autor os momentos de suspense, como nos bons filmes de John
Ford, até o ponto culminante com o sacrifício das vítimas no tronco. O tronco —
descreve o romancista — ”era constituído de dois compridos esteios de madeira

xiv
forte. De espaço a espaço, possuíam esses esteios um corte em meia-lua.
Justapostos, os cortes formavam buracos, nos quais se metia as canelas do
cristão, que ali ficava jungido. De um lado, unindo os dois esteios, havia uma
dobradiça de ferro, grosseira, feita ali mesmo, e de outro, uma espécie de
aldrava com cadeado’’.
Esse instrumento de tortura utilizado nos tempos da escravidão
continuava a servir, em 1918, nas cadeias do interior goiano, como arma dos
sobas municipais para a punição de adversários ou simples desafetos que
ousassem contrariá-los em seus domínios. Não havia nem juiz de direito, nem
delegado, nem ninguém que pudesse torcer a sua vontade. A justiça era (e ainda
é) o ”coronel”. O tronco aparece no massacre de São José do Duro, repetindo
em ponto pequeno a série de horrores que se verificou na sedição de Boa Vista
dos Tocantins, no início da República, numa guerra civil de ”coronéis”
desavindos, que se prolongou por três anos, de 1892 e 1894, embora não
registrada por nenhum compêndio de história, por nenhum livro de história.
A literatura de ficção — assim chamada como por ironia — é que nos
revela o drama até então desconhecido do sertão ”belo e terrível”, com os seus
vaqueiros, jagunços, soldados, sertanejos humildes, mortos nas lutas dos
”coronéis”. A literatura do Nordeste foi que alertou os homens de governo para o
problema não só das secas, como da espoliação e da miséria das populações
marginalizadas de uma vasta região brasileira. Agora chegou a vez do Oeste. A
literatura enche o vazio da história. Pelo menos, os escritores do tipo de
Bernardo Élis mostram que são menos alienados — vá lá a palavra da moda —
do que os historiadores, a grande maioria dos historiadores omissos. Refletindo
a vida brasileira, a nossa literatura tem que ser também, forçosamente, uma
literatura de protesto.

Rio de Janeiro, julho de 1967.

XV
VILA DO DURO

(CLÓVJS DE MAGALHÃES)

PLANTA DA VILA DO DURO

1 — Rancho do Coronel Pedro Melo. 2 — Rancho do Coronel Pedro Melo. 3 —


Residência de Artur Melo (sempre fechada). 4 — Residência de Dr. Herculano
Lima. 5 — Residência de Benedita Fernandes de Melo, depois quartel de
Vicente Lemes e os paisanos.
6 — Residência de Joaquim Alves Leandro, quando vinha à vila. 7 — Residência
de Brasuca. 8 — Residência de Crispiniana. 9 — Residência de Coronel Pedro
Melo. 10 — Oficina de Farinha do Coronel Pedro Melo. 11 — Residência de
Tozão. 12 — Paiol e rancharia do Coronel Pedro Melo. 13 — Residência de
Vicente Lemes, depois residência do Juiz Carvalho e por fim quartel do Alferes
Severo da Veiga. 14 — Igreja. 15 — Residência da velha Josefina. 16 —
Intendência Municipal. 17 — Residência do Pedreiro. 18 — Residência de gente
pobre. 19 — Residência de gente pobre. 20 — Residência de gente pobre. 21 —
Residência de Chica Buena. 22 — Residência de Damião de Bastos, depois
quartel do Alferes Xavier. 23 — Residência de Albininho. 24 — Residência da
velha Chiquinha. 25 — Agência do Correio, Cartório e casa de audiências do
Juiz. 26 — Tapera. 27 — Residência de João Francisco. 28 — Residência de
Marianinha. 29 — Residência de Felipa. 30 — Residência de Argemiro Félix. 31
— Residência de Aleixo. 32 — Residência de Felisrnino. 33 — Residência de
Alexandre de Melo, depois quartel do Tenente Mendes de Assis. 34 —
Residência de Agenor Cavalcante. 35 — Residência de Moisés Melo. 36 —
Sobrado do Coronel Pedro Melo, servindo de mercado e cadeia, depois quartel
do Alferes Enéias Peixoto, onde existia o velho tronco. 37 — Cemitério. 38 —
Residência de Maria Coxa. 39 — Residência de Seu Antônio. 40 — Residência
de Maria Pequena.

XVI
EXPLICAÇÃO

Tirantes os pormenores, os fatos centrais desta narrativa aconteceram


realmente em Goiás.
Os personagens, entretanto, tendo tudo de comum com o tipo social que
representam, são fictícios. O autor não quis retratar ninguém, nem copiou de
nenhum modelo vivo ou já falecido.
Qualquer semelhança com pessoa viva ou morta é mera coincidência.

B.E.

XVII
O
TRONCO

O inventário
UMA INDIGNAÇÃO, uma raiva cheia de desprezo crescia dentro do peito de
Vicente Lemes à proporção que ia lendo os autos. Um homem rico como
Clemente Chapadense e sua viúva apresentam no inventário tão-somente a
casinha do povoado! Veja se tinha cabimento! E as duzentas e tantas cabeças
de gado, gente? E os do sítios no município onde ficaram, onde ficaram? Ora
bolas! Todo mundo sabia da existência desses trens que estavam sendo
ocultados.
Ainda se fossem bens de pequeno valor, vá lá, que inventáno nunca
arrola tudo. Tem muita coisa que fica por fora. Mas naquele caso, não. Eram
dois sítios, duzentas e tantas reses, cuja existència andava no conhecimento
dos habitantes da região. A vila inteira, embora ninguém nada dissesse
claramente, estava de olhos abertos assuntando se tais bens entrariam ou não
entrariam no inventário.
Lugar pequeno, ah, lugar pequeno, em que cada um vive vigiando o
outro!
Pela segunda vez Vicente Lemes lavrou o seu despacho, exigindo que o
inventariante completasse o rol de bens, sob pena de a Coletoria Estadual o
fazer.
Aí, como quem tira um peso da consciência, levantou-se do tamborete e
chegou à janela que dava para o Largo, lançando uma olhadela para a casa
onde funcionava o Cartório. Calma, a Vila cons-

4
.
tituída pelo conjunto de casas do Largo. A manhã de maio, fria e neblinosa,
estendia-se por sobre o povoado de casinhas caiadas de branco, por trás das
quais erguiam-se tufos verdes de laranjeiras, abacateiros, jenipapeiros,
bananeiras e outras plantações. Miúdo, o povoado minguava mais ainda
naquela quadra do ano, com os habitantes pelas fazendas e as casas fechadas
exalando tristeza e abandono.
Do conjunto, destacava-se na esquina a casa do Coronel Pedro Melo,
com a calçada alta, o aspecto imponente; de um lado, o casarão acachapado
sob o amplo telhado, o casarão da velha Benedita Fernandes de Melo, com o
largo portão lateral. A modo que solto no meio do Largo, o sobrado do Coronel
Pedro Melo, misto de prisão e depósito de farinha.
Sim. A casa do coronel, o sobrado do coronel, — pensou Vicente, que se
lembrou que também no inventário havia a vontade do coronel.
Na igrejazinha a casa de Vicente andorinhas voavam. Na grotinha que
cortava o Largo, alguns sapos coaxavam e almas-de-gato piavam, metendo
seus bicos de grandes guias por entre as folhas molhadas de orvalho. Será que
mexiam no cemitério? Sempre que mexiam no cemitério aqueles pássaros
espantavam e saíam piando seus pios entojados pelo Largo.
Será que o juiz chegou? — perguntou Vicente a si mesmo, logo porém se
convencendo do contrário. Naquele dia o juiz vinha do seu sítio, a duas léguas
do povoado, para dar audiência, mas ainda não chegara. Estava tardando um
tiquinho, decerto algum contratempo. Também Cláudio Ribeiro, escrivão do
Cartório de Órfãos, por onde corria o inventário de Clemente Chapadense,
esperava impaciente o seu juiz. Dia de audiência ele costumava aportar no
Cartório às oito horas. Chegava, apeava, largava a mula roendo milho no cocho
do quintal e vinha para o despacho. De tarde, findo o expediente, ia-se ele
embora, para retomar na outra semana.
— O juiz hoje dormiu demais — disse Martim num sorriso.
— De vera — concordou Cláudio Ribeiro que lançou um olhar
pela janela aberta.
— Dormiu devagar — pilheriou Martim, enquanto separava as cartas,
aprontando as malas do Correio. Ele era o agente do Correio. A agência
funcionava naquela casinha que para essa finali-

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dade foi dividida ao meio: de cá, o Cartório, com sala para audiências; de lá o
Correio. Para que o povo não bulisse com os papeis o escrivão Cláudio botou
um gradil de madeira: para dentro do gradil somente ele, o juiz e os amigos
passavam.
Vindo do interior da casa, a velha Januária espichou a cabeça pela porta
e interrogou de mansinho: — Uai, esse menino, a mó que esse juiz nem num
vem em hoje? — Cláudio contestou que viria e podia preparar o almoço. — Para
o juiz não vir, só se acontecesse alguma coisa séria, mas aí ele mandava avisar.
Ah que o juiz era homem de preceito, muito sistemático com seus prometidos.
Como Cláudio e Martim fossem solteiros, Januária cozinhava para eles,
lavava e passava a roupa e cuidava do asseio e arrumação da casa. Preferiam
uma velha. Se botassem dentro de casa uma mulher nova, que é que o povo do
lugar não iria dizer!
— Pró juiz atrasar desse tanto — continuava Cláudio — foi porque a mula
fugiu do pasto.
De sua casa, Vicente chegou à janela porque, parece, ouviu um tropel de
animal, e animal ferrado. E não se enganou, que agora o juiz chegava, entava
por trás da casa do escrivão, como era seu hábito. Vicente só fez virar-se,
apanhar o processo e sair ao encontro do juiz. Precisava conversar com ele
antes do almoço, antes que pegasse a chegar gente para a audiência ou para
conversar com a autoridade.
Os dois homens trocaram bom dia e Vicente falou da demora, até tinha
pensado que fosse alguma doença em casa...
— Diabo dessa mula. Agora, depois de velha, é que deu pra fugir do
pasto e dá pança para a gente achar.
— Bem que eu disse — gritou lá de dentro Cláudio, feliz pelo acerto do
vaticínio. Martim também se riu, enquanto amarrava as cartas: — Bem que
Cláudio tinha dito.
Vicente foi logo abrindo o processo que trazia nas mãos e com um ar de
mofa mostrou ao juiz o que estava exigindo. O juiz leu e riu um riso malicioso.
Os olhos de Vicente também brilharam e, à guisa de fundamentação,
esclareceu: — Está vendo? A viúva não arrolou nem o gado nem os dois sítios!
— Absurdo — disse o juiz. — Absurdo e perigoso. Nós sabemos quem é
Artur Melo, que está por detrás dessa viúva. Ele pode estar querendo negar
estes bens, mas também pode estar arman-

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do uma cilada. A gente aceita a descrição como está e aí ele denuncia para
Goiás que o coletor Vicente Lemes não zela os interesses da Fazenda, que está
recebendo propinas para sonegar bens de menores...
— Como fez no caso da boiada — interferiu Cláudio.
— De um jeito ou de outro, esse inventário vai dar banze — isse Vicente.
—Se a gente não aceitar o rol como está, Artur vai gritar que estamos
perseguindo ele; se a gente aceitar, ele denuncia que estamos com
roubalheira.
Enquanto ouvia, o juiz se aproximava da mesa, onde pegando a caneta,
escreveu seu despacho. Determinava que se desse conhecimento à viúva da
exigêcia do Sr. Coletor. Por trás dos ombros do juiz, lendo o despacho à
proporção que ia sendo lavrado, Cláudio riu-se. Vai haver banze. Artur não vai
aceitar essa exigência de jeito nenhum — pensou Cláudio meio amolado, pois a
ele é que cabia intimar Artur daquele despacho do juiz.
Lá por dentro batiam pratos e talheres. Januária estava pondo a mesa e
Vicente foi-se retirando para sua casa, para almoçar.
— Almoça aqui, Seu Vicente — convidou Cláudio, mas Vicente
agradeceu. O juiz Ferreira também reiterou o convite, embora se desculpasse
por não ser o dono da casa. Vicente, porém, não aceitou. Ia comer em casa.

No PRATO esmaltado, primeiro Vicente botou o feijão, depois a farinha de


mandioca, misturou; a seguir botou arroz com carne seca, misturou novamente e
levou uma garfada à boca. Lina, sua esposa, que servia a mesa e estava de pé
a seu lado, indagou pela mulher de Ferreira.
— Deve de estar boa — respondeu Vicente mastigando —, não perguntei
por ela. — Lina quis fazer outras perguntas, mas pela maneira seca como o
marido respondeu àquela, percebeu que ele não queria conversa. Estava
mergulhado nos seus problemas e só queria saber deles. Por isso, a mulher
afastou-se para a cozinha, deixando-o só. Iria fazer seu prato e comer
sossegadamente com a filha, que quando Vicente estava com a vó atrás do toco
ninguém não agüentava ele.
Mentalmente, Vicente examinava mais uma vez as conseqüências que
poderiam advir de sua exigência no inventário. Não esta-

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ria fazendo besteira? Será que não estava com implicância com Artur Melo?
Bem, mas o fato é que todo mundo estava falando que a viúva possuía as tais
duzentas e tantas reses e mais os dois sítios e no entanto, por que é que Artur
Melo, seu advogado, não apresentou esses bens? Não havia nenhum mal: como
Coletor, sua obrigação era apontá-los. Como muito bem dissera o juiz, era
preciso denunciar o ocultamento das reses e dos sítios. Quem sabe se o próprio
Artur Melo não estava com segundas intenções, querendo lesar os órfãos e a
viúva? Contudo, o certo é que havia caroço naquele angu. A viúva era casada
com um capanga de Artur Melo e esse Artur e seu pai, o Coronel Pedro Melo,
era gente poderosa. O prestígio deles era incontestado desde Pirenópolis até
Boa Vista. Tinham tanto prestígio que logo depois da revolução estadual de
1909 o nome de Artur Melo foi indicado para Presidente do Estado de Goiás;
seus correligionários Eugênio Jardim e Totó Caiado, entretanto, discordaram da
indicação e acabaram rompendo com ele. No pleito que seguiu à revolução,
Artur Melo conseguiu eleger-se Deputado Federal tanto por Goiás como pela
Bahia, mas quem disse de ele tomar posse! No Rio, os Caiados conseguiam
depurá-lo, como então se dizia.
Foi aí que Artur Melo instalou-se na Capital do Estado com seu jornal de
oposição, disposto a atacar o caiadismo na sua própria toca. Em represália, os
Caiados, senhores do Governo, davam apoio político aos opositores dos Melos,
no Norte do Estado, criando as bases para uma firme e poderosa oposição a
Artur Melo e seu pai. Sentindo fugir o prestígio, Artur Melo abandona a Capital, e
regressa para sua região, a fim de recuperar a antiga influência, mas lá
chegando depara um quadro desanimador: os cargos públicos estão em mãos
de adversários, o bafejo político faz do humilde bajulador de ontem um
rancoroso inimigo. Adeus os bons tempos em que a vontade de Artur ou seu pai
era a suprema lei!
Na própria vila do Duro, residência dos Melos, aí mesmo o Governo
contava com dois homens de valor: um era o Juiz Municipal, Valério Ferreira; o
outro, o Coletor Estadual, Vicente Lemes, pessoa de confiança de Eugênio
Jardim. O regresso de Vicente era má coisa para Artur que ainda se lembrava de
como nasceu a rixa com o primo. Artur era então Juiz Municipal e um dia
chamou

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o primo: — Olhe, Vicente, você é gente de casa, pobre, vou te nomear escrivão
do Judicial e Notas.
Antes, porém, nunca o houvesse feito. Era um ingrato o Vicente. O fato foi
que Norato, vaqueiro de Tozão, abandonou a fazenda do patrão e montou sua
própria fazenda, com perto de duzentas reses. ”Norato roubou de Tozão” —
gritavam os Melos, para quem somente pelo roubo poderia um pobre vaqueiro
erguer-se à categoria de fazendeiro. E apesar das ameaças dos Melos, Norato
veio a residir perto do Duro, onde se julgava seguro por trás das suas vacas e
bois. Um dia Norato aparece morto e por uma só boca o povo dizia que o
matador fora Calixto Chapadense. Artur Melo era juiz e em vez de procurar punir
o criminoso, o que fez foi mandar arrecadar as quase duzentas reses do morto
como bens vacantes; mas não as levou à praça, como mandava a lei. Procurou
Vicente e lhe propôs darem um sumiço no processo. Argumentava ele: — Você
sabe, Vicente, que esse gado é mesmo de Tozão. Então, vamos devolver ele a
seu dono. Não acha?
— Isso não, meu primo. Sem provar que o gado não é de Norato, eu não
concordo. De jeito nenhum.
— Mas ninguém fica sabendo, homem de Deus. Aqui tem lá alguém que
entende dessas coisas! — Vicente empacava. Parecia-lhe um absurdo o hábito
que tinham os Melos de roubar o povo valendo-se dos cargos de juiz, coletor e
outros. Inventário ali era meio para legalmente o pessoal do Foro apropriar-se de
bens alheios. Como dinheiro era coisa escassíssima, para pagamento das
custas e demais despesas, que deveriam ser custeadas em dinheiro corrente,
iam-se todos os bens do inventariado. As pessoas que possuíam dinheiro
adquiriam esses cabedais na bacia das almas. Se o ”de cujus” era homem, a
viúva e os órfãos eram esbulhados impiedosamente.
Aí o Juiz Artur Melo veio com outra proposta: — Eu compro a boiada
independente de praça. Meu intuito é poupar serviço inútil para o pessoal do
Foro.
— Bem. Se era assim, quanto daria Artur pelas quase duzentas reses? —
O preço era tão vil que nem se podia aceitar. Uma vergonha a proposta! e
Vicente ainda dessa vez não pôde concordar com o primo Artur Melo. Achava
que havia leis, códigos, posturas municipais. O caminho era fazer como
preceituava a legislação.

9
Artur ficou danado: — Vem cá, você pensa que te nomeei por teus belos
olhos? Achei que ia ter um amigo e quando acaba o que tenho é uma cascavel!
Passaram a se ver de cara torcida. Por fim, um dia, quando Vicente
acordou, quéde o gado de Norato? Ninguém sabia dizer. Chamou Tozão que era
o depositário e lhe disse que a responsabilidade era dele e que o iria processar.
— Ora, Vicente, deixe disso — lhe aconselhou o primo Artur Melo que por
estas alturas era o todo-poderoso rei do Norte. — Não faça nada. Não vê que
Tozão é cunhado da gente...
Vicente sentiu-se desmoralizado. O povo pegou a comentar e ele pensou
consigo que era inútil querer acabar com as roubalheiras do Foro. O melhor era
abandonar o cargo, sair daquele lugar infeliz. Vicente não gostava de quizílias e
se arrependia de ter aceito o diabo do cargo. Que bom tempo aquele em que
ignorava tais safadezas e podia viver em paz com o primo Artur Melo, com o
parente Tozão, fazendo os bailes e as festas na casa da sogra Benedita e em
outras casas. Como era bom. Agora, o que se ouvia era o fuxico, era o diz-que-
diz, era a arrogância de Artur e seu pai. ”Quer saber de uma coisa?” Certa
manhã Vicente ajuntou seus cacarecos, botou tudo no lombo dos burros, tangeu
adiante suas reses e fincou o pé no mundo. Foi esbarrar em Conceição do
Norte.
Era dali que Eugênio Jardim, ex-aliado de Artur, agora trazia Vicente, para
com ele fazer frente aos Melos, no Duro. Dia a dia os correligionários dos Melos
abandonavam suas fileiras, passando de armas e bagagens para as hostes de
Vicente Lemes e Valério Ferreira, onde vinham buscar as delícias do
situacionismo, isto é, vinham buscar dispensa de impostos, vinham obter
impunidade para os crimes e saques.
Embalado por tais pensamentos, Vicente nem percebeu que já havia
engolido a comida e que estava bebendo água no pote. Daí foi para a sala, de
onde deu nova olhadela para o Largo. Tudo ia calmo, o solão esparramado nos
telhados. Avaliava bem a espécie de inimigo que tinha pela frente. Sabia que se
aceitasse o rol de bens como Artur apresentava, o primo o denunciaria para a
Capital como desidioso e desonesto; se exigisse os bens restantes Artur o
denunciaria como perseguidor. O interesse era desmoralizar Vicente e forçá-lo a
deixar novamente a vila, para colocar em seu lugar gente de confiança.

10
De onde estava, Vicente enxergava um trecho do Largo, próximo da
calçada alta da casa do Coronel Pedro Melo. Até havia pouco, ali existia uma
alavanca de ferro enfincada. Certa feita, vindo de Conceição, Vicente viu a
alavanca e estranhou.
— Ah! você não sabe! — E com horror e medo do povo cochichava. —
Foi o Vigilato, esse menino. Sim, esse mesmo, sobrinho do velho Pedro. Não é
que o coronel implicou com o coitadinho? Então para enjerizá-lo e obrigá-lo a
deixar o lugar, o coronel ordenava aos cabras que fossem fazer suas precisões
no terreiro do Vigilato.
Uma manhã a mulher de Vigilato estava na porta da cozinha, quando
senão quando olha ali uns homens obrando na sua frente, no maior dos
desrespeitos para uma senhora direita. Chegando em casa, Vigilato achou a
mulher num pranto de choro, que aquilo era uma coisa por demais, que ela não
ficava mais naquele lugar desgraçado.
O rapaz não era nenhum patife não. Saiu e soube que os cabras eram
camaradas de João Rocha e já ia tomar satisfação desse tal, quando o tio Pedro
Melo atravessou no seu caminho:
— Vigia aqui, esse menino, quem deu ordens aos cabras foi o degas aqui
— e batia no peito entufado.
— Ô velho cachorro! Agora eu estou lá, manda de novo. Vamos ver se
você tem topete para isso, trem à-toa. O velho não gostou da má-criação do
sobrinho e avançou para ele que, mais esperto, passou-lhe uma rasteira, botou
no chão, montou e mão na vasta barbaça branca do coronel: deu-lhe muitos
safanões.
A partir daí, o coronel só falava do sobrinho para desfeitear e xingar. Deu
de emagrecer, uma falta de apetite, boca cheia d’água. Uma úlcera lhe roía a
pacuera, como afirmava o Dr. Rodrigues da Silva, de Barreiras. O velho,
entretanto, não confiava no diagnóstico do clínico. Aquilo não era doença
nenhuma nada. Era raiva, era paixão. O dia que vingasse do sobrinho, nesse dia
a doença ia embora.
Uma noite, Vigilato vinha pelo Largo cambaleando de bêbado. O velho
estava na porta da casa, na calçadona alta, sentado na cadeira. Pelo Largo
deserto rolava a voz do bêbado, cantarolando uma modinha, lutando contra a
treva e a solidão. Vigilato era agente do Correio, vez por outra bebia sua
cachaça e se enchia de lirismo, o qual ele derramava em cantorias pelos cantos

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do Largo, até cansar e cair no sono. Todos já conheciam a mania do moço e
achavam graça. Ele não fazia mal a ninguém, só cantava e ria e contava casos.
Até que, nessas noites, modificava a pasmaceira estagnada do lugarejo de si tão
tristonho.
A voz pastosa do bêbado rolava nas trevas e de sua porta o velho tio
saiu, chamou lá dentro do quintal Tito e Resto-de-Onça. mandou em casa do
genro e sobrinho Tozão buscar o capanga Aleixo, tudo em silêncio, na ponta dos
pés, cochicho nos ouvidos. Muito de sutil os três homens esperaram o bêbado; e
quando ele encostou na calçadona alta do tio para soltar a sua cantiga, foi um
vup e ram; meteram-lhe o porrete no piolho.
Alguma velha que estava rezando no escuro de uma casa, bem que
notou que a voz de Vigilato esbarrou num baque, a mo que engasgada,
deixando o breu da noite ainda mais escuro. Na ponta dos pés e com o dedo na
boca, o Coronel Pedro Melo desceu e sua calçadona, mandou buscar uma
laterna furta-fogo; com ela alumiou a cara do bêbado tombado no chão. Clareou
e meteu fogo, arrebentando-lhe os miolos.
— Carregue o cachorro — ciciou o velho olhando em tomo para ver se
ninguém não chegava. Um cabra pegou por baixo dos ombros, outro pegou as
pernas e lá se foram, com Aleixo na frente alumiando e o velho atrás de Mauser
engatilhada; no Largo negro, uma mancha vermelha que se movia confusa e
incerta.
Chegando à casa do sobrinho, ordenou que batessem. Aleixo bateu, a
mulher abriu a porta e antes que os olhos dela pudessem habituar com à
claridade da laterna, os capangas balangavam o cadáver para lá, para cá e —
zás — atiravam ele aos pés da mulher e dos filhos, dentro da sala, no chão
batido e úmido.
— Um capado procê limpar — roncou a voz do tio Pedro Melo, enquanto
num sopro se apagava a lanterna e tudo caía na mais negra escuridão e no
chumbo do silêncio. Nem cães latiam naquela hora medonha.
Na casa tão pequena e tão frágil que um cavalo derrubaria caso se
cocasse nalgum esteio, aí ficou o espanto, o terror de chorar e esse choro
despertar a ira do poderoso senhor. Nem luz acenderam, que em casa de
bêbado costuma faltar tudo. Gente houve que ouviu o tiro, mas teve medo de
sair de casa e enfrentar o negrume da noite. Quando muito, alguém acendeu
uma candeia de azeite

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e chegou à porta da rua, mas o vento zunindo apagou a débil chama.
Pelo meio-dia é que o Juiz Valério Ferreira foi ver o corpo de Vigilato. O
juiz soube do acontecido lá no seu sítio, embora ignorasse quem fora o portador
da notícia. Foi uma alma caridosa que soprou no ouvido de uma criada; soprou,
mas quando a criada quis ver quem era, só viu um vulto envolto numa capa de
chuva. Assim, ninguém contaria ao Coronel Pedro Melo quem foi o portador da
notícia para o juiz.
Valério foi à procura do delegado de polícia para fazer o auto de corpo de
delito, mas, receoso, o homem já estava longe. Era preciso, pelo menos,
enterrar o defunto. Quem, entretanto, se arriscaria a isso, sabendo que o coronel
estava de espreita?
Na esquina da casa de Pedro Melo, perto da calçadona soberba, no lugar
onde Vigilato caíra morto, Tito, Resto-de-Onça e Aleixo fincavam uma alavanca
de ferro de mais de metro de comprimento. Aquilo era para publicar o feito. Os
jagunços metiam a marreta no ferro que tinia tal qual um sino de defunto.
— Pra exemplar cabra maludo — dizia o tio do alto de sua calçada alta,
na frente da casona mais principal da vila.
— É pra ninguém desrespeitar barba de velho!
A alavanca retinia e Valério Ferreira ali mesmo junto ao corpo de Vigilato
escrevia uma representação ao Governo Estadual, a quem comunicava o fato e
pedia Melos para punir o criminoso.
Da casinha, tão pequena, na qual para se entrar carecia de abaixar a
cabeça, na qual mal cabiam dez pessoas e pessoas sem esporas, daí saía o
defunto para o cemitério, envolvido numa colcha, que nem o fazedor de caixão
teve coragem de trabalhar para o inimigo do coronel. com muito custo o Juiz
Valério conseguiu dois homens pobres para conduzir o defunto até a cova. Os
quais iriam se Valério fosse também com eles, e publicasse que lhes deu
intimação de autoridade.

NA SALA das audiências, Valério Ferreira também pensava. Aquele inventário ia


dar barulho. Os Melos andavam desesperados com o abalo em seu prestígio e
não venderiam mais barato o seu defunto. Haveria outra solução qualquer?
Valério não enxergava.

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Os Melos lhe pareciam invencíveis, completamente invencíveis] Quando, apesar
de tudo, admitisse a derrota deles, achava queoi substituiriam outros homens do
mesmo estofo.
Valério era tuberculoso e talvez daí decorresse o seu pessiraisl mo. Alto,
magro, embodocado, uma fraqueza o dominava constantemente. Qualquer
esforço físico ou mental logo o esgotaw| deixando o homem azedo e irritado.
Contudo, tão logo recuperava o ânimo, voltava a retomar a luta. Reconhecia ser
impossível amarrar a égua com os Melos e não entregava a palha comi|
rapadura.
Num passo macio, sorrindo sempre discretamente, o escrivão Cláudio
trouxe os papéis para o despacho. Ferreira leu-os atenta| mente e deu o
despacho em alguns; noutros, mandou que se completassem tais formalidades.
Cláudio recebeu os papéis com o mesmo riso nos lábios, mas por dentro
remoía-se de raiva: homem ranzinza, meu Deus do céu! Não confia em
ninguém, tudo tem q» ler, reler e mandar corrigir. Mas riu, agradeceu, disse uma
palavra de amizade.
De sua mesa, o juiz ouvia a mula roendo o cocho e alguns sabiás piando
no verde das laranjeiras dos quintais. Novamente lhe veio a lembrança das
exigências do Coletor Vicente e um riso escasso arregaçou seus beiços. Era
sempre um gostinho pisar o inimigo, dar-lhe uma estocada. Quando não também
eles sofriam! irritavam-se, ficavam desesperados, tinham que providenciar
alguma astúcia.
— Artuzinho vai ficar danado — disse a Cláudio, que tambéml riu. Até
Martim, no cômodo do Correio, deu seu palpite: — Isso vai feder a chifre
queimado, gente!
Valério não gostou da pilhéria de Martim. Martim não tinha direito de
desgostar os Melos, que nenhum mal lhe fizeram. Parecia ao Juiz que Martim se
opunha aos Melos por mero dever funcional. Fora nomeado agente do Correio
em substituição a Vigilato, a pedido de Artur Melo; depois que o Governo
Estadual se pôs contra os Melos, Martim também bandeou. Explicava que era
por amizade a Cláudio e ao juiz, por discordar dos atos dos seus protetores de
ontem. Mas Valério embirrava com aquilo. Não dizia, que um aliado a mais
ninguém despreza, ainda mais sendo como era, o controlador da
correspondência. Mas que Martim era] desprezível isso era. ”Artuzinho,
Artuzinho” — Fazia muito que

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Valério não gozava um gostinho como aquele de dar um tapa nos Melos. Com
seu feito de não pactuar com a violência, com seu escrúpulo no fiel cumprimento
das leis, vinha sempre perdendo para os adversários.
Fora, tudo calmo, sem vivalma pelo Largo. Nos assa-peixes da grotinha,
as almas-de-gato voltaram a piar. Será que mexiam no cemitério? Os olhos do
juiz pousavam no ângulo da calçadona da casa do Coronel Pedro Melo. Ali em
antes, havia a alavanca de ferro fincada pelo poderoso chefe. Vigilato com sua
cachaçada, com suas valentias de nada, Vigilato cantando suas cantigas
desafinadas e sem prosseguimento. Talvez se não tivesse feito a tal
representação ao governo de Goiás, talvez tivesse evitado a jeriza dos Melos.
Teria nada! A morte de Vigilato só agravou uma rixa antiga.
Impedido de instaurar um inquérito, mas revoltado com a morte do
inocente bêbado, o Juiz Valério enviou para Goiása representação, pedindo
providências. Esse pedido significou afronta séria para os Melos que passaram a
benzer bicheira com o nome de Ferreira. O juiz riu seu riso fino. Gostava de
atucanar o inimigo. Os Melos gritaram, berraram, mas daí uns dias a notícia
alarmava a vila: o Governo Estadual enviava uma Comissão para apurar o
crime.
O Juiz Valério alegrava-se com a aproximação da comissão. Acreditava
em justiça, em lei, achava que o governo fosse dotado de uma clarividência que
o comum dos homens não possuía, de uma reta intenção de punir o mal e
premiar o bem. Daquele recanto tão afastado, Governo era assim algo de sobre-
humano e inatacável. Antes porém que a Comissão chegasse ao Duro,
aportaram ali notícias do que era ela. Era como o vento que precede a chuva
braba. Quem vinha chefiando a comissão era um juiz togado, com assento em
Porto Nacional, formado pela Faculdade do Recife, com militança no Foro de
Salvador e Belém do Pará, homem de estudo, homem de preparo, homem
sabido e corrido.
Comandando a força policial vinha um tal Tenente Napoleão; vivia
constantemente embriagado e um dia o encontraram caído na estrada, a boca
entupida de excremento humano. Por certo, vingança de algum subalterno. Mas
tais novas não arrefeciam o ânimo dos Melos que aprontavam uma festança de
arromba para receber a Comissão, fazendo crer assim que não temiam qualquer
devassa em suas vidas.

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Com a Comissão no povoado, os dias passavam-se em danças e
banquetes. Tenente Napoleão velho nem se erguia da rede no pileque, de
cambulha com os soldados. Nos potes do quartel, em vez d’água diz que só
existia restilo e restilo forte. Dr. Hermínio Lobato, com sua imensa careca, era o
chefe da Comissão e tudo ignorava. Os Melos o instalaram num sítio fora do
povoado, sob a desculpa de o eximir de solicitações interesseiras de uma ou de
outra parte. Diariamente, de lá vinha o Juiz Hermínio cercado de soldados
embriagados realizar a audiência e voltava de tarde para seu tugúrio.
Era homem de grande bondade, alheio a tudo e a todos, Nas Comarca, à
falta de serviços forenses, fundou um Colégio f meninos pobres, onde era
professor, cozinheiro, médico e diretor, ignorando as rusgas, os ódios, as
maquinações que lavravam entre os jurisdicionados. Conhecedores de suas
virtudes, em Porto Nacional todos confiavam nele, que não fazia inventário, nem
organizava processos escritos para solucionar litígios. Tudo ele resolvia
amigavelmente, como um novo Salomão. Júri resolveu abolí-los: não havia
dinheiro para sustentar os presos e os jurados confiavam em que Doutor
Hermínio julgava melhor do que eles mesmos.
Logo no banquete de recepção que o Coronel Pedro Melo lhe ofereceu,
Valério Ferreira o identificou. No discurso de saudação, Artur disse que o juiz se
considerasse perfeitamente garantido, pois os Melos dispunham de cem
homens armados e municiados para sustentar qualquer ato que emanasse da
Comissão. Diante de tal afirmativa, o Dr. Hermínio ficou inquieto: com ele tinham
vindo 30 praças, essas sim para garantir seus atos. Logo, os homens de Artur
Melo eram uma ameaça à Justiça. O Meritíssimo Juiz suava por baixo do terno
de linho branco, sem atinar com uma resposta adequada, ele que não gostava
de luta, cuja existência e dedicada às coisas pacíficas e sossegadas da vida; a
vasta cara reluzia de suor que ele debalde enxugava no lenço de cambraia fina.
Por fim, chegou a hora do agradecimento. Dr. Hermínio tinha a careca
rebrilhante, a cara cansada, o colarinho era uma sopa por entre as dobras da
papada suarenta; os olhos empapuçados rolavam para um e outro canto. Como
um elefante, moveu o corpanzil, ergueu-se, mal equilibrou-se, arquejante no
esforço mental, soltou um ofego tão forte que o sopro apagou dois lampiões na
sua

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proximidade. Na semi-escuridão, com o pessoal cochichando e trocando idéias
em como reacender os lampiões, gaguejou algumas palavras num tom mofino e
bambo, dando por encerrada a festa.
No outro dia, principiou a correr o inquérito. Mas quem o dirigia, na
verdade, era o Dr. Leite Ribeiro, advogado dos Melos, que o Dr. Hermínio tinha
até vergonha de confessar que já esquecera a maioria das praxes forenses.
Escolhidas a dedo e industriadas com esmero, as testemunhas só falavam para
dizer que o Coronel Pedro Melo era um pobre velho doente, a quem o sobrinho
havia espancado cruelmente alguns meses antes e a quem tentara assassinar
na noite que morreu. O cinismo da mentira era tamanho que o povo pegou a
comentar e a debicar, enviando cartas anônimas ao juiz e membros da
Comissão. Aí, numa audiência, Dr. Hermínio resolveu endurecer a espinha e tão
logo se apresentou a. primeira testemunha, tomou do código e leu o artigo que
punia o falso testemunho, explicando a significação daquelas palavras.
Artur achou aquilo um desaforo. Era uma indireta para ele e seu pai. O Dr.
Leite Ribeiro tratasse de aparar a asa daquele juizinho que não agüentava nem
uma gata pelo rabo!
A testemunha seguinte era Resto-de-Onça, capanga de Pedro Melo, um
dos que participaram diretamente da morte de Vigilato e que deveria estar
apontado como réu. Ao assentar-se no tamborete, em frente do juiz, alguma
coisa tombou ruidosamente no chão. Dr. Hermínio vagarosamente moveu o
vasto corpanzil, tirou os óculos que só permitiam ver próximo, e arregalou os
olhos. No chão estava a imensa garrucha de Resto-de-Onça que, sem pressa,
repuxando a cara com suas caretas habituais de tarado, pegou a arma, soprou
os ouvidos e meteu no largo correão que servia de cinta.
Dr. Hermínio compreendeu a impossibilidade de apurar ali qualquer coisa.
Os Melos eram os donos de tudo. O caminho que lhe ditava a consciência seria
alegar isso e renunciar à comissão. Mas como fazer tal coisa, se não conhecia
ou não lembrava dos caminhos adequados? Depois, tinha já muitos anos de
serviço público, estava esperando aposentar-se em breve, essa atitude não iria
talvez atrapalhar sua aposentadoria? Eram trinta e tantos anos de serviço duro,
de exílio no sertão. O bondoso Juiz Hermínio consertou a garganta, limpou o
suor da careca e nunca mais fez a menor pergunta. As testemunhas depunham
o que bem entendiam,

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seguindo a orientação do advogado Leite Ribeiro, que se tomou o dono do
processo.
Nesse entretanto, a cachaça correndo na soldadesca. Valério Frerreira e
outros amigos remeteram um protesto ao Dr. Hermínio, mas nisso saiu a
sentença da impronúncia do Coronel Pedro Melo, o foguetório enfumaçou o
povoado, as carabinas roncaram nos quartéis e os signatários do protesto
tiveram que fugir e se esconder, ante o risco de serem baleados pelos soldados.
Tais fatos serviram para ensinar a Valério Ferreira o que era a Justiça e a
Lei. Por ela, Vigilato é que era criminoso: Norato é que passava por ladrão.
Ferreira tratou de unir-se aos coronéis opositores dos Melos, contratou seu
cabra de confiança, dando-lhe um rifle papo-amarelo, botou na cintura um
punhal e uma garrucha! E já não foi sem tempo.

SOL DESCAMBANDO, o Juiz Valério encerrou os trabalhos, selou a mula,


abotoou as esporas, montou e partiu. De passagem, abanou a mão para
Vicente, que estava assentado na sala.
A mula espantou um bando de rolinhas caldo-de-feijão que foi pousar
num ruflar de asas na grotinha. Por trás da serra do Duro, o sol se afogava
numa lagoa de sangue e fogo. A tarde esfriava e Ferreira riu seu riso escasso,
tossiu. A luta aproximava-se.
Na sala, Vicente sentiu uma coisa esquisita: receio? Ansiedade? ímpeto
mal sofreado? Vicente tinha consciência de que era preciso levantar-se contra o
tio e o primo, mas no fundo alguma coisa o tolhia: um respeito vindo do tempo
de criança, o temor pelol homem que sempre mandou no lugar. Vicente
pensava. Foi depois! do inquérito sobre a morte de Vigilato, ele chegou para o
Duro com a carta de Eugênio Jardim na algibeira.
Mal desapeou, o Coronel Pedro Melo o foi visitar. Entrou, cumprimentou,
assentou-se no tamborete e ferrou no prosão, campeando sempre um jeitinho
mode saber o motivo da volta de Vicente. O velho sabia que oxsobrinho deixara
o Duro anteriormente porque se indispusera com Artur, e que retomava agora
com incumbência política. Mas queria informação mais precisa, mais por
menorizada. Com Vicente ali, a cantiga era outra. Ele era casado com uma
sobrinha do velho; era, por seu turno, sobrinho da ve-

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lha Aninha, mulher de Pedro Melo; por cima de tudo, Vicente e Artur eram
casados com duas irmãs. Aqueles laços de sangue detinham a mão dos Melos e
deles sabiam utilizar velhacamente os políticos da longínqua Capital.
— Sangue não briga com sangue — diziam os Caiados. O Coronel Pedro
Melo também sabia levar em conta o parentesco, e reconhecia que o sobrinho
Vicente, como os demais, tinha um respeito plantado fundo, um temor biológico
para com o chefão da família. O velho percebia que Vicente algumas vezes até
lhe tomava a bênção.
Do tamborete onde estava, o velho sondava Vicente, jogava seu verde,
queria saber se o sobrinho viera com ânimo de ficar de vez ou só veio a passeio.
— E tinha trazido o gado?
O moço negava estribo, procurava desconversar:
— O senhor está forte, meu tio. Da derradeira vez que eu estive aqui, o
senhor dava um ar que tava perrengado, abatido. Era uma úlcera, parece?
Ali estava um assunto que bulia com o homem. Pedro Melo gostava de
parecer forte. À observação do sobrinho, deu um pulo do tamborete e, no meio
da sala, continuou saltando ora num pé, ora noutro, mostrando que exercício
físico não o cansava, apesar da idade. Pulava para lá e para cá, agachava-se,
erguia-se, chacoalhando os badulaques das algibeiras, agitando a barbaça
branca:
— Estou forte, menino.
— Mesmo, meu tio, — admirava-se Vicente. — Que foi que o senhor fez?
Algum remédio do Dr. Rodrigues da Silva, alguma reza braba?
— Remédio? Que mané remédio! Foi a morte do sem-vergonha do
Vigilato. Desde que matei aquele tranca, olha, a doença exalou. — Na salinha,
entre cangalhas, bruacas e canastras, o velho continuava pulando feito um trem
doido, agitando a barbaça branca, sacolejando os troços que trazia nos bolsos e
na cintura: o artifício, o canivete de corrente, o punhal aparelhado de prata e não
sei o quê mais.
Vicente tinha necessidade de não pisar em falso. Qualquer ato seu
menos refletido podia trazer sérias conseqüências, como foi o caso da boiada.
Um boiadeiro tinha mil e quinhen-

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tos bois para tanger para a Bahia. Até então, os boiadeirosdaü hia passavam
pelas barreira sem nada pagar de impostos a Goiás, pois os Melos eram os
chefes e a troco do imposto obtinham o u político e material desses boiadeiros.
Agora, porém, o Governo estava exigente. Boiadeiro era a base do poder dos
Melos, a quem forneciam eleitores e jagunços. Boiada não saía sem antes cortar
o talão. Aí Artur Melo intercedeu:
— Olha, meu primo, você está certíssimo. Mas cobre impostos só sobre
quinhentas reses. — Nessas horas, Artur se lembrava que era primo de Vicente.
— Não pode, Artur. Você conhece a lei, você como deputado ajudou a
fazer ela. O número de reses é conhecido de todos... Amanhã irão denunciar
para a Capital...
— Nada, meu primo, faça vistas grossas. Esse povo não está habituado a
pagar nada e por isso você tem que primeiro educai cobre menos agora, mais
da outra vez, até que eles não estranhe: É assim mesmo, homem!
Vicente acedeu. Fazia a concessão para que Artur não dissej se que
Vicente repelia acomodações. Para que Artur não ficass] mal servido, ia cobrar
imposto sobre a metade da boiada.
— Muito obrigado, Vicente. Gostei de ver seu espírito de conciliação —
dizia Artur apertando a mão do coletor, a quem m mais chamava de primo. — É
disso que precisamos: compreensão mútua, cooperação. Sem isto esse fim de
mundo aqui não me lhora, não vai pra frente.
Artur se foi e ficou de cá Vicente matutando. Está aí. O diabo não é tão
feio como se pinta. Quem sabe meu primo Artur Melo não está mesmo disposto
a viver cordialmente com a gente? Artur ia pelo Larguinho e Vicente sentia
ternura por ele. O homem tinha seus defeitos, mas tinha também suas
qualidades. Podiam dizer dele o diabo, mas era inteligente, corajoso. Olhe que
saiu daquele meio atrasado, chegou a deputado e estava na bica para
Presidente, quando passou a ser perseguido. Botou jornal na Capital do Estado,
topeando com homens formados, enfrentando Totó Caiado, Eugênio Jardim...
Dois meses depois Vicente recebia um ofício brabo da Secretaria da
Fazenda de Goiás. O Secretário exigia maior severidac na repressão ao
contrabando de gado, pois recebera denúncia de

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que Vicente deixara de cobrar imposto sobre metade da boiada exportada para
Barreiras por fulano de tal, no dia tal. Junto do ofício, um bilhete confidencial: o
autor da denúncia tinha sido o Deputado Artur Melo.
Alguns dias depois, nem por coincidência, apareceu novamente
Artur:
— Meu primo, como vai? Quero lhe apresentar meu amigo João Rocha,
boiadeiro da Bahia, freguês nosso aqui do Duro desde há muitos anos.
— Muito prazer — respondeu Vicente embezerrado. Aquele
”primo” era mau sinal.
— Pois é, o nosso amigo aí tem umas resinhas para passar a barreira e
vem entender-se com o primo... Quem sabe é possível fazer como daquela outra
vez, você sabe, já tem o precedente.!.
— Quantas cabeças? — perguntou Vicente atalhando a poetagem.
— Quinhentos boiequinhos magros, Seu Coletor.
Vicente sabia de fonte segura que a boiada era de mais de mil cabeças;
assim, enquanto ajeitava os talões, foi avisando que João Rocha desculpasse,
mas tinha informações seguras que a boiada era de mais de mil e duzentos bois.
O boiadeiro fechou a cara, cochichando com Artur. Vicente prosseguiu: —
Por mim, eu cortava o talão para quinhentos bois, mas não posso porque há
espiões por aqui. Se eu fizer isso, logo denunciarão para Goiás que estou
recebendo propinas. Aqui tem gente interessada em me tirar do lugar.
Novamente os dois homens confabularam e o boiadeiro atolou o chapéu
na cabeça: — Pois eu não pago é nada, Seu Coletor. Eu me chamo João Rocha,
assisto na fazenda Pedreira, distrito de Santa Rita do Rio Preto. Faça comigo o
que entender! — passou a perna na mula ali na porta, tiniu as esporas, deu dois
tiros no batente da Coletoria e sumiu no mundo.
Vicente lavrou o auto de contrabando, testemunhou-o, enviou para Goiás.
Levaria dois meses para chegar lá, dois para ser informado, mais dois para
retomar ao Duro. Aí Vicente ia requerer força para garantir a execução. Os
soldados viriam de Goiás a pé, gastando cerca de três meses na marcha.
”Uma besteira o diabo daquele auto” — pensava Vicente.

21
ATÉ QUE ENFIM! — disse num desafogo o escrivão Cláudio, esfregando as
mãos e mostrando os dentes num riso largo. Esti satisfeito de ter dado
desempenho à tarefa de intimar a viúva de Clemente Chapadense da exigência
do coletor. Era como arrancar um dente dolorido: — Uf! Agora, eles que são
brancos que se entendam — completou com um gesto de quem afasta de si a
guma coisa repelente.
— Que se desentendam, isso sim — pilheriou o agente do Correio. —
Tozão já anda por aí batendo caixa, espalhando a notícia de casa em casa.
Assim praticavam Cláudio e Martim, na salinha do Correio, enquanto
faziam o quilo do jantar: — E vamos ter barulho grosso.
Fora, a tarde dissolvia-se em beleza, com pássaros-pretos e sanhaços
trinando nas laranjeiras e abacateiros. Na sombra, uma rola gemia tristemente,
num tom merencório de amor abandonado!
— A gente podia mudar de casa — observou Martim. O inesperado e
estapafúrdio da afirmativa, provocou o riso de Cláudio, que exclamou: — Ora,
homem, que tem a casa com tudo isso?
— Em São Marcelo meteram fogo no Cartório e mataram a tamília
inteirinha do escrivão, que estava dentro. Foi o velho, a mulher e parece que
cinco filhos. Uma desgraça!
Cláudio ria: — Aqui, lugar seguro é o cemitério e assim mesmo, olha lá!
Pelas árvores, os derradeiros sanhaços davam seus pulinhosl ágeis,
gorjeando aquele gorjeio de uma beleza simples. Na grotinha do Largo, a
saparia iniciava a orquestra. O cururu velho roncava no papo que dava gosto,
secundado do sapo-cachorro. Martim se ergueu e saiu. Ia ver um conhecido e
entreter as horas jogando um sete-e-meio!
— Vamos, Cláudio. — Mas Cláudio rejeitou. Consigo, pensou que o
melhor seria não sair naquelas noites. Perigoso uma tocaia! como aconteceu ao
Vigilato: — Não. vou trabalhar, que tenho uma serviceira excomungada em
atraso.
Januária remexia no quintal, cuidando de seus pés de planta! molhando
um craveiro e um pé de alfavaca, queimando algum graveto. Cláudio foi ao pote,
bebeu uma cumbuca d’água e voltou ao tamborete. Diacho. A comida da velha
Januária estava salgada! A velha estava pegando a caducar. E o inventário do
Clemente?! Ia dar águas pelas barbas. Esse pessoal de Chapadense era nume-

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roso, valente e perigoso como o diabo. Faça idéia, quem haverá de dizer que um
pobre desejo de Clemente redundasse em tanto barulho?
Clemente Chapadense tinha um cunhado que tinha uma mulherzinha que
tinha olhos verdes, pernas grossas e umas belas ancas de viola. A diabinha da
concunhada ia para lá rebolando as cadeiras, no seu jeitinho de pomba-rola, e o
sangue de Clemente fervia nas veias. Moravam todos em Missões, perto do
Duro. Ora, não vê que o homem é um homem; o gato é um bicho; o menino, um
carrapicho e a mulher um precipício? Vai daqui, vai dacolá, Clemente pegou a
fazer galanteies à concunhada pelas beiras de cerca e de ribeirão. Ela não
gostou, contou ao marido, que tomou satisfação de Clemente. Aí, quem não
gostou foi Clemente, que de homem não se tira satisfação, e sacou a garrucha
380 fogo-central, mas os parentes entraram no meio e deitaram água à fervura.
Saindo daí, Clemente ajustou um jagunço; Tico, que assim era chamado o
marido dabelezinha, ajustou também o seu, e começaram os tiroteios.
Cláudio se lembrava como se fosse hoje. Clemente Chapadense entrou
no Cartório à procura do Juiz Valério. Cláudio ouviu tudo. Clemente se queixava
do Coronel Artur: — O Dr. Artur Melo diz que entrou na pendenga mode fazer
harmonia, mas a harmonia dele é esquisita. Pra mim, ele fala que não devo de
andar armado e devo ter prudência. Para meu cunhado ele fala que não deve de
andar desarmado e que eu sou perigoso.
Na frente do juiz, Clemente Chapadense pedia garantia de vida. — Minha
vida não anda segura, Seu Juiz. Estou muito cismado com esse Artur. Até nem
num sei cuma é que meu irmão Calixto tem confiança nesse trem à-toa. — O sol
estava por aqui assim, obra de uma braça por cima do morro. Clemente
Chapadense montou sua mula e saiu para o sítio. A mula batia o gorgulho e
Ferreira trocava idéias com Cláudio:
— O diabo que entendesse essa gente. Ali estava Clemente no ponto de
ser comido pelo cunhado, Clemente que era carne com unha com Artur Melo!
— Sabe do que andam falando? — interrogou maliciosamente o escrivão,
no rosto mulato o mais neutro dos sorrisos, numa discrição de velho alcoviteiro.
Ferreira balançou a cabeça negativamente.

23
— Artur anda favorecendo Tico, para que ele mate /Clemente. Os
Chapadenses são muito fortes, Seu Juiz; para adonde eles penderem, esse lado
terá a vitória, na certa. Podem pender pro lado de Vicente Lemes... —
completava Cláudio cheio de reticências.
— Sim senhor!
Na tarde, a mula de Clemente comia estrada, que era ana leal, e o pobre
com medo de Artur. Na tarde, a mula de Clemente trotava, e no peito o coração
de Clemente também trotava, relembrando as ancas roliças da concunhada, os
olhos verdolengos assustadiços de veadinha. Por onde andaria Calixto
Chapadera irmão de Clemente, Calixto que tinha morto Norato e era tão valente
quanto João Dias de Boa Vista? Por adonde andaria ele que não vinha acudir o
irmão das manhas de Artur Melo? O diabo era que Calixto tinha um lote de
mortes na cacunda, tinha processo fechado no Cartório, podia ser pego por Artur
e metido no tronco, caso se indispusesse com os Melos. A mula comedeira
comia estrada, e a cabeça de Clemente pensava na concunhada. E Cláudio teve
muita pena de Clemente. De que valia toda aquela valentia de Calixto, meu bão
Jesus da Lapa!
No outro dia, nove horas, um grupo de 15 cavaleiros entrou pela vila,
quebrando a pasmaceira com o matraquear das ferraduras e retinir dos ferros. À
testa estava Artur Melo. Viera de sua fazei da Grota, onde morava. Chegou à
porta do Cartório, sofreou a mulona e gritou para o escrivão Cláudio num tom de
alta solenil dade: — Onde estão as autoridades desta terra, Seu Escrivão?
— Por que pergunta, Seu Coronel? — respondeu solícito o funcionário.
— Porque mataram um homem, o meu amigo Clemente Chapadense, e
nenhuma autoridade compareceu ao local para o auto de corpo de delito. Onde
estão as autoridades? — Artur bradava] em altas vozes, ele próprio alçado nos
estribos, a carabina erguida na mão direita, os arreios ringindo, as rodelas do
freio tinindo.
Cláudio chegou até a porta da casa e levou susto ao ver tanta gente. Por
isso, adoçou mais ainda o sorriso e o semblante: — Seul Coronel, vamos apear,
vamos entrar. Aqui dentro a gente conversa melhor. — E, entre mesuras,
explicava que no povoado era surpresa

24
essa morte. Ali ninguém estava sabendo do desastre, mas que as autoridades
iam agir, por sem dúvida. Artur, dramático, agitando no ar a carabina, clamava
do alto da mulona:
— Você há de provar um dia que entrei na Vila do Duro com meus
rapazes em busca de justiça e não encontrei justiça. Você, Seu Escrivão, você
há de provar!
— Sim senhor, sim senhor — balbuciava Cláudio entre gestos de
subserviência, impressionado com a grandiloqüência do tom do Coronel Artur,
emocionado com a repetição da invocação de sua pessoa: — Mas eu não tenho
nada com isso não, Seu Coronel. Eu nem não sei de nada e a gente é tão-
somente um pau-mandado, o senhor sabe.
Os ferros tiniram, os arreios ringiram, os casos tropearam e atrás da
mulona de Artur saíram os demais cavaleiros. Parece que disse alguém que iam
para a casa de Clemente Chapadense? Quando, mais tarde, sabedor do
ocorrido, para lá acorreu o Juiz Valério, a casa estava cheia: mais de trinta
homens armados para, segundo dizia Artur, prestar as derradeiras homenagens
ao defunto. Ali estavam os grandes amigos de Artur: Tozão, Damião de Bastos,
Joaquim Alves Leandro, Albininho. Num catre, estendia-se o corpo de Clemente;
noutro encourado de couro de boi, amontoavam-se balas. A cama do morto
estava cercada de rifles, a coronha no chão, o fuste escorado na cama. Perto,
um bobo de piraí na mão enxotava os cachorros e porcos que se metiam
debaixo do móvel para beber o sangue que gotejava dos ferimentos do cadáver.
— Como foi que pegaram o coitadinho?
— Ah, só mesmo de tocaia, que esses Chapadenses são gente dura. Não
viam Calixto? Igual a João Dias de Boa Vista.
— Mas como foi o sobrosso, de vera?
— De vera, home não sabia, que ninguém não viu, mas parece que no
atravessar o córrego Corrente, Clemente recebeu dois balázios. A mula
espantou, arrancou, deu com Clemente fora da sela e saiu arrastando ele.
— Quer dizer que o pé engarranchou no estribo, não é?
— Isso mesmo. Engarranchou e ele foi de arrastão até o lugar Rua Nova;
aí a m lher mandou pegar o defunto.
— Perito? Tá precisando de perito para o auto de corpo de delito —
anunciava Cláudio. Ninguém porém queria aceitar a incum-

25
bência. Aquilo era perigoso, podia depois trazer complicação para quem fizesse
declarações.
— Perito. Quem quer servir de perito?
Artur tomou a palavra. Era preciso que os peritos examinassem os
ferimentos e mandassem o escrivão escrever o que era verdade:
— Você aí, Tozão. Também você, Albininho. Compadre!) mião, você
também é homem desenvolvido para essas coisas!
A rede com o defunto saía para o terreiro, seguida da jagunçada de rifle
alceado no ombro. Aí, parou o préstito para Artur Melo deitar falação:
— Esta terra não possui justiça, nem segurança. A justiça tem que ser
essa! — Artur batia na carabina de papo amarelo. As palavras enfáticas e
grandiloqüentes retumbaram pelo chapadão ermo e desolado. Dentro do
casebre minúsculo, a viúva e os filhos choravam, enquanto o grupo se afastava
carregando a rede e retinindo as esporas e as fivelas das armas.

Na salinha de chão batido, Cláudio Ribeiro tinha medo. Cartório era


sempre perigoso, mas com os poderes do Divino Pai Eterno nada havia de
suceder de grave. Era briga de brancos. A noite caiu por completo sobre o
povoado e sobre os campos que a seca principiava a esturricar. A janela aberta
recortava um retângulo de céu, onde a Via-Láctea era uma poeira de ouro.
Voavam morcegos cambaleantes e estridentes; corujinhas gaguejava Na grota,
o sapo-cachorro latia esganiçadamente, seguido do cururu. Tão calmo tudo!
Nem se podia acreditar que sob esta pai germinasse tanto ódio, tanta ambição,
tanta soberba.
Parece que andavam no silêncio. Podia ser Martim, de volta mas também
podia ser...? Num átimo Cláudio se lembrou de Calixto. Que coisa? Por que
Calixto não brigou com Artur por causa da morte do irmão? Cláudio se lembrou
que também tinha um irmão que era gente dos Melos. Seu irmão Abadia fora
visto na casa de Clemente, de rifle alceado, alparcata no pé e chapéu de couro
tombado sobre os olhos.
Um zunzum de vozes veio da treva do Largo. Cláudio se apro-

26
ximou da janela. No Largo movia-se uma mancha luminosa muito vermelha: na
frente, um homem de lanterna furta-fogo; atrás uma mulher com criança. Devia
ser Vicente Lemes que ia para a casa da sogra Benedita, como fazia todas as
noites. Ia com mulher e filha, para comentar os fatos do dia.

TOZÃO parecia uma coruja de mato virgem, com o carão comprido, bochechas
caídas, duas grandes orelhas flácidas, os braços muito compridos dependurados
dos ombros arcados. Até para chupar os dentes cariados emitia um chiado igual
ao das corujas: — siu, siu. Naquela noite, ali estava conversando com o Coronel
Pedro Melo.
Pedro Melo Albuquerque possuía uma boa casa, construída por ele
próprio, atijolada, cercada de altos muros crivados de cacos de vidro no topo.
Melhor do que a do Coronel Pedro Melo, só mesmo a casa de sua cunhada
Benedita Fernandes de Melo. Aquela segurança toda dos muros da casa do
Coronel Pedro tinha por escopo prender a criadagem, descendente de antigos
escravos, mantida ali no regime de escravidão. Viviam as criadas maltratadas,
mal vestidas, metidas de seco e verde no trabalho duro de rachar lenha,
cozinhar, fazer queijo, requeijão, manteiga e sabão, refinar açúcar, fazer farinha,
pilar arroz, desleitar as curraleiras, cuidar da casa, fiar e tecer algodão, lavar e
passar roupa, fazer de tudo, no final das contas.
Novinhas ainda, as ”crias da casa”, como eram chamadas as filhas
desses criados, prostituíam-se com os patrões, com os parentes dos patrões,
com os camaradas. O produto da prostituição, entretanto, raramente vingava. A
serviceira era tanta que não dava tempo às mães de cuidar dos filhos.
Esse pessoal não recebia qualquer pagamento: trabalhava a troco da
comida, da cama e da roupa. Para comandar esse batalhão de escravos, estava
ali a velha Aninha, a mulher do Coronel Pedro Melo Albuquerque, atroando a
casa e o povoado com seu vozeirão. No povoado, a derradeira coisa que se
ouvia de noite eram os berros de Aninha e eram também eles os primeiros sons
que se ouviam mal o dia clareava.
Aninha era gordíssima. Vivia deitada na larga cama do quar-

27
to de dormir, de onde comandava a casa, as fazendas e o povoado. Mandona e
exigente, a velha Aninha era uma rainha, sen tirar nem pôr.
Naquela noite, Tozão corujava na sua voz de corujão, narrando as
notícias do dia:
— Num é de ver que Vicente Lemes estava exigindo que a viuva de
Clemente Chapadense completasse o rol de bens dados a inventário... Siu, siu.
— Chupou os dentes podres. Ouvindo aquilo o velho coronel deu o desespero:
— Aquele Vicente Lemes e aquele Valério Ferreira eram uns cascas de
ferida braba! O que eles querem é viver na preguiça e atrapalhar os homens
trabalhadores como nós. Ô gente à-toa!
Dando novos chupões nos dentes, Tozão voltou a crocitar:
— Pois é, oficial de justiça já foi intimar a viúva...
— Isso não fica deste tamanho — esbravejou Pedro, agitando os
badulaques e arrepiando a barbaça branca. Amanhã cedínho vou participar meu
filho Artur. Vou lá na Grota inteirar ele de tudo.
— Tozão, ô Tozão! — do fundo da varanda, que era coma chamava a sala
de jantar, onde conversavam os dois homens, veio a voz tomitruante de Aninha.
Irmão de Aninha e casado com na filha dela, a Anastácia, Tozão se ergueu do
tamborete, chupou| dentes e saiu com os braços descomunais bamboleantes.
Lá contra à irmã e sogra as novidades.
— Esses preguiçosos, esses fuxiqueiros! — continuava o velho
esbravejando na vasta varanda. — É um povo que não faz nada, que não tem
coragem de trabalhar para enriquecer e só quer estar atucanando os que
trabalham.
A luz do lampião de querosene alumiava o chão de tijolos, as portas, as
janelas abertas para o quintal, os escassos móveis: a grande mesa de
jacarandá, os grandes bancos postos ao longo das paredes, tambores de couro,
algumas cadeiras de fechar. Tudo obra das mãos do velho Pedro Melo.
Pedro Melo era um crila quando veio do Piauí com seu pai, que se dizia
descendente dos Albuquerques de Penambuco. Estabeleceram-se numa
fazenda de Santa Maria de Taguatinga, mas comerciavam em Duro, aldeia dos
índios Acroá e Chacriabá, a que chamavam de ”comércio”. Era homem
inteligente, sagaz, audacioso, de ambição sem limites, duro feito uma aroeira,
dotado de

28
normas de conduta que o tomavam muito superior aos naturais da região.
Escolheu para esposa Ana Divina da Rocha, da mais rica, mais numerosa e
mais importante família do Norte de Goiás, o que lhe trouxe prestígio social.
Dispondo de algumas letras, passou a exercer funções de Juiz, Coletor de
Rendas, Delegado, canais que o elevaram ao posto natural de Chefe Político:
era o poder incontestável.
Pedro Melo amava o trabalho, a pontualidade, a energia e a força. Amava
a vida rude e simples. Para o trabalho diário na lida de gado, usava a veste de
vaqueiro piauiense: calça de couro, gibão e chapéu de couro. A calça terminava
em botina. Nas grossas e pesadas mãos, a luva de couro.
Suas vestes eram branquinhas, do melhor couro de catingueiro curtido na
decoada, com casca de angico. Para outros momentos era a roupa de algodão
tecida em casa, pelas negras, no tear que ele mesmo fizera. Detestava o luxo.
Ria-se das roupas de casimira e linho, chamando de boneco quem as vestia.
Que é que o coronel não sabia fazer e fazer melhor do que todo mundo? bom
pedreiro, ali estava a casa que ergueu, os tijolos do piso tão bem ajustados que
mal se discerniam as junturas. Era mestre em trabalho de couro: uma calça ou
chapéu ou gibão de couro feitos por ele eram conhecidos pela elegância do
talhe e finura da trança. Como carapina de mão cheia ali estavam a mesa, os
bancos, os tamboretes, as cadeiras de fechar feitas por suas mãos.
Numa extensão de muitas léguas, quem não falava com admiração do
parafuso de madeira que fizera para uma prensa de farinha! Obra-prima de
paciência e engenho. E o bicame da fazenda Grota? De coqueiro macaúba fez
ele um extenso bicame, colhendo água de um brejo. Como o lugar era
montanhoso e a água devesse ir no nível, nos vales as bicas eram assentadas
em cima de postes de aroeira, cujo topo fora adrede preparado.
Em certos lugares essas bicas passavam a uma altura de mais de oito
metros do chão, por sobre precipícios e perambeiras. Trabalho duro! Requeria
coragem. Foi o velho sozinho, com a ajuda apenas de Tito, que tudo fizera.
Coisa dura era ficar lá naquelas grimpas, andando sobre as vigas que ligavam
um poste ao outro e sustentando nos braços a pesada bica de macaúba que
deveria descansar no cabeçote do poste. O velho enchia-se de orgulho:

29
— Coragem quem tinha era só eu e Tito.
As bicas não eram pregadas nos postes, pois macaúbaiiu prego, racha-
se. As bicas eram soltas:
— A gente tinha que andar equilibrando. Se triscasse na bica, ela caía em
riba da gente.
Uma ocasião, teria Vicente uns dezoito anos, estava passeando perto do
bicame na companhia de Lina, sua noiva, e do tio Pedro Melo. Chegados a
esse lugar em que o bicame passava lá nas grimpas, o velho pegou a exaltar
seus feitos. Para não ficar por debaixo, Vicente disse que o trabalho era
importante, mas não era essa coisa do outro mundo assim como pintava o tio: —
ele estava exagerando.
— Homem, não foi você que fez... — retrucou o velho num muxoxo. Ele
não gostava de se sentir diminuído. E logo aquele menino fazendo pouco de sua
coragem, de sua capacidade de traballho!
— Ainda hoje não tem macho para andar lá por cima, naquela viga posta
por baixo da bica... — falou ele para o vento, os olhos fitos no alto: — Nem para
andar lá em cima, veja só! Que colocar a bica foi muito mais perigoso...
Vicente olhou para onde se dirigiam os olhos do velho. Lá no alto, o
bicame se recortava contra o céu azul de janeiro. De fato a altura era grande,
muito grande mesmo, Vicente jamais atingirã a altura tão elevada em sua vida.
— Pra subir ali, só o preto Tito que é cabra desacismado,- continuava a
voz do velho insistente, tenaz, desafiadora. Apontava para cima, fixando a bica
desenhada contra o céu muito azul, iluminado por um sol claríssimo de janeiro.
— Veja lá — dizia ele. — A gente tem que andar na viga, com a bica na
altura do peito, mas a gente não pode nem pender pra trás, nem pender pra
frente. A bica é solta no poste. Se a gente de| sequilibra, cai mesmo. Na bica
ninguém num pode pegar.
No céu, o sol tremia. Cá embaixo, riscavam-se a sombra da viga e
sombra da bica. Como dois traços negros, paralelos, as sombras galopavam
pelo valo, passando por cima das folhas viçosas do milharal que ali crescia. O
milharal embandeirado tremia ao vento, tatalando suas belas folhas verdes, que
reverberavam ao sol. Um bafo quente subia da terra úmida e do milharal verde.
Ao la-

30
do, os olhos da sobrinha tinham um lampejo indecifrável. Seria terror? Seria
interrogação? Seria ironia?
— Menino, botar a bica lá em riba foi muito dificultoso — voltava a insistir
o coronel de maneira a irritar. — Imagina só: eu ia na frente, equilibrando na
viga, carregando a bica na altura dos peitos. Devagar, devagar! Atrás o Tito,
negro bão de confiança. Bastava um isso e a gente esborrachava cá embaixo.
Vicente compreendia o ardido velho. Toda aquela descrição patética tinha
como objetivo encher o sobrinho de terror. Vicente já tinha certeza que o tio o
desafiaria para andar lá em cima do bicame. Era por isso que os olhos de sua
namorada brilhavam de um brilho tão estranho: ela alcançou o intuito do tio
antes de Vicente.
— Você tem coragem de andar lá em cima? — Embora esperasse, essa
pergunta do velho provocou um estremeção no jovem. O coração perdeu o
compasso. Num momento ele temeu que o sangue lhe fugisse das faces e
denunciasse seu receio.
Forçou o sorriso, aceitou o desafio, e para ocultar sua provável emoção,
saiu correndo por entre o milharal:
— Vamos, meu tio, vamos lá para cima. Mas olha lá que o senhor não é
nenhum mocinho. O senhor fez esse bicame faz muito tempo, meu tio! —
Vicente dizia aquilo da boca para fora, para não dar o braço a torcer, pois o
velho Melo, como um demônio, conhecedor de todos os pormenores da região,
numa agilidade de bicho, galgava facilmente o aclive, tomava a dianteira de
Vicente e já se equilibrava sobre a tal viga, num ponto onde ela era menos alta.
Como lhe permitiam as forças, Vicente também fez a mesma coisa. Entretanto,
do alto da viga, ele pode perceber que o tio não exagerara. Pedro Melo, prático
em transitar por ali, não encontrava dificuldade. Ia avançando, dirigindo-se para
o ponto onde o bicame atingia sua maior altitude, justamente por sobre a roça de
milho.
Com grande custo Vicente conseguia equilibrar-se. A viga, por baixo,
estava no mesmo plano vertical da bica: dessa forma era preciso que a pessoa
se mantivesse na ponta dos pés e projetasse a barriga para a frente, fazendo
recuar o peito, contra o qual roçava a bica, ao mesmo tempo que esticava a
cabeça por sobre a bica. Nessa posição, todo contorcido, ia-se afastando uma
perna

31
para a direita e depois a outra no mesmo sentido, para caminh ao longo da viga.
Uf! .
Até que Vicente se apossasse da técnica, já o velho Coronel Pedro Melo
ia longe. Vicente apressava-se para alcançá-lo, mas o esforço era em vão.
Estavam então no ponto de maior altura. Vendo que o rapaz não desistia, quis
desesperá-lo:
— Espia lá embaixo. Vigia como é bonito! — Vicente olhou, mas nada viu
de bonito. Muito embaixo, no vale, o milharal on deava açoitado do vento. Um
precipício, uma vertigem, sensação nunca antes experimentada. Do vale subia
um bafo quente, úmido, feito uma boca de febrento. Tremia o sol, tremia o
folhame o chão faltava. Entre o verdor do milharal talvez um vulto acenando.
Seria a namorada? Nem podia responder. O suor corria empapando as costas,
sentia-se desamparado e perdido, o milharal rodava, ondeava, tudo fugia ao seu
apoio. O coração batia com força tamanha que lhe parecia estar sendo ouvido
pelo velho: o baticum retumbava nas carótidas, sapateava nos ouvidos, latejavá
nos olhos. Não podia agüentar mais. Foi levando as mãos para agarrar a bica.
— Não pega, não pega! — Era a voz do velho reboando pelo vale.
O grito, como que retemperou Vicente, deu-lhe serenidade. Parado no
meio da viga estava o velho; e o rapaz lhe disse que seguisse. Queria sair
saquele suplício, atingir, alcançar o outro lado, pisar a terra firme:
— Vamos, meu tio. Pra frente!
— Não! Péra aí. Agora é voltar, — respondeu friamente Coronel Pedro
Melo.
— Voltar?
E em seguida o velho passou a explicar: — Fique fixe aí. Eu vou passar
por trás de você, para voltar. Não há perigo; não toco nem num cabelinho seu.
— Vicente percebeu a extensão do perigo. Para passar por trás, o velho tinha
imensa probabilidade de desequilibrar-se e rolar no abismo. Se se
desequilibrasse, tentaria apoiar-se em Vicente, que procuraria apoio na viga, e
aí tudo ia para o fundo do vale, por riba das pontas de pedras, pontas de toco
das árvores que tinham sido derrubadas para feitio da roça. — Não é preciso,
meu tio. Agora eu vou na frente e o senhor

32
vem atrás. — Melo porém não deu ouvidos, já começou a passar por trás de
Vicente a sua perna, que tateou, tateou e afirmou-se adiante, depois passou um
braço, tocou com a mão muito de leve a bica e aí mudou a outra perna. Sem
dizer palavra, prosseguiu andando na viga, até chegar ao ponto onde havia
iniciado a proeza. Num pulo alcançava o chão e gritava para a sobrinha: — Pode
casar, menina. Seu noivo não é patife não.

AH, A CASA! Eis um dos padrões de glória da viúva Benedita Fernandes de


Melo. Nenhuma sequer havia do mesmo tamanho no povoado. Nem a do
cunhado Pedro Melo. Quando o finado marido Antônio Melo Albuquerque
adquiriu a residência, tinha três lances. À proporção, porém, que os filhos foram
se casando, Antônio Melo foi acrescentando novos lances e reunindo filhos e
genros debaixo do mesmo teto, debaixo do seu teto.
No corpo da casa havia uma varanda de quase duas dezenas de metros
de comprimento, para onde davam portas e janelas dos cômodos internos.
Vastas janelas corrediças abriam-se da varanda para um pátio lajeado, onde
cresciam roseiras, gerânios, amores-perfeitos, verbenas, monsenhores,
resedáse jasmineiros. Aí estava o segundo orgulho de Dona Benedita: suas
flores.
Para além, ficavam o quintal com a horta, os currais e os pastos.
Ao tempo das moças solteiras e do velho vivo, nesse varandão sempre
havia bailes e brincadeiras, que deram mais fama à grandeza da casa e à
beleza do jardim. Casa alegre era aquela com a moçada tocando violão,
bandolim, cantando, recitando, atraindo os melhores cortes de noivo de toda a
região. com as filhas de Antônio Melo casaram-se Arthur Melo, deputado
estadual, Vicente Lemes, coletor estadual, um famoso poeta de Goiás, então juiz
de Direito da comarca; Moisés Melo, comerciante no Duro. E até hoje, embora o
velho estivesse enterrado, embora rapazes e moças houvessem casado, a casa
de Dona Benedita era um formigueiro.
Naquela noite, por exemplo, ali na varanda estava um povão danado. No
canto, em frente à porta da capela, aí estava a velha Benedita assentada na
rede, os pés metidos nos chinelos, aos ombros um xale preto. Em derredor,
pelos tamboretes e frasqueiras,

33
espalhavam-se Vicente Lemes, Argemiro Félix, Moisés Melo e as
esposas.
O prosão animado versava sobre o inventário de Clemente Chápadense.
Nisso, porém, a conversa pegou a mancar, a baixar de tom. De sua rede Dona
Benedita falava sua fala mansa e macia, mas cheia de ódio. Ela não entendia
desse negócio de inventário, mas entendia do coração dos homens. Dona
Benedita conhecia o genro Vicente Lemes e conhecia o outro genro Artur Melo.
Se Vicente estava exigindo alguma coisa, o direito estava com Vicente, que já
lhe havia contado, por diversas vezes, as implicâncias de Artur.
— Vicente, meu filho, não baixa a crista. Derrota o malvado,
só, — disse a velhinha, a cujo coração subiu o ódio ao genro Artur, Odiava-o
como odiava o pai dele, o velho Pedro Melo, irmão de seu defunto marido: —
Piauienses de uma figa. É preciso dar uma lição nesses ladrões!
— Não, Dona Benedita, não diz assim — entrou conciliador o genro
Moisés. — Afinal de contas, são nossos parentes.
— Ladrões, ladrões — repetia a velha. — Então o refrigério não
foi furtado?
Todos conheciam de sobra a história do refrigério, mas ninguém ousou
impedir que a velha a repetisse, ouvindo tintim por tintim no mais respeitoso
silêncio.
No caminho de Barreiras, perto do povoado do Duro, no alto da Serra,
havia um terreno de excelentes pastagens durante a seca. Cheio de taquaral,
furnas frescas e cambaúbas. Para aí subia o gado no ardor da seca, onde
permanecia comendo capim verdinho até que cá embaixo se queimassem os
pastos e o capim brotasse, quando então as reses desciam para comer o verde.
Era uma praxe antiqüíssima. O pai e o avô de Dona Benedita assim
procediam e o marido dela continuou nesse sistema. O gado era tão empastado
que logo que o tempo demudava e entrav a seca, ele dava fé e pegava a berrar
uns berros intermitentes. Depois, reunidos em ternadas, aspirando o vento e
berrando intei mitentemente, os curraleiros começavam a galgar a serra
embusca do refrigério, donde só voltariam com a outra mudança da estação,
quando o vento geral anunciasse chuva, revirando de rumo.
Aquilo era uma riqueza. Quem tivesse o refrigério, quem pos-

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suísse a serra, teria reserva de pasto, reserva fresca e boa. Por isso, mal o
sogro de Vicente fechou os olhos, o irmão Pedro Melo trouxe de Barreiras vários
rolos de arame farpado e os estendeu por ali, cercando o refrigério.
— Absurdo! — gritou a viúva. — Que o refrigério é meu.
— Cadê os documentos? — perguntou o cunhado Pedro Melo, assim
muito inocentezinho.
— Que documento? — Ali ninguém possuía título de domínio de terras.
Dono do chão era quem possuísse gado nele empastado. Até onde andasse o
gado com a marca, até aí ia a propriedade do dono desta marca. Era uma lei
que vinha num é d’hoje, se transmitindo de pais a filhos, sem contestação. O
próprio Pedro, que era dono de mais de vinte fazendas, perguntassem a ele se
possuía documento, para ver!
De nada valeram, porém, os protestos da velha. Naquela seca, quando o
vento geral soprou, o gado de Dona Benedita aspirou profundamente o ar, soltou
os berros finos e curtos de curraleiro e marchou pelas veredas que levavam ao
refrigério. Debalde caminhavam pelas veredas. Tudo estava vedado pelas
cercas de cinco fios, apoiados em grossos postes de vinhático e perobinha. A
viúva procurou o cunhado e lhe mostrou que aquilo não podia ser: — O refrigério
sempre foi de minha gente. Eu herdei ele de meu pai, que o herdou do pai dele.
— Tem dúvida não, minha cunhada. É só mostrar os documentos.
Benedita foi atrás dos parentes, mas aquilo era briga de cunhados e
contrariar o Coronel Pedro Melo era coisa muito perigosa. Pelas veredas, o gado
ia e vinha, rondando a cerca, tentando transpô-la, ferindo-se nas farpas do
aramado.
A cerca do Coronel Pedro Melo ganhou fama, sua notícia correu mundo.
De longe, vinha gente para ver a estrovenga. Então, os valos cavados no chão,
as cercas àe pau, os muros àe peàra não tinham mais serventia?
Ao longo da cerca formou-se um aceiro largo de tanto o gado de Benedita
ir e vir em busca de acesso ao refrigério. Benedita reclamou de novo e o
cunhado fez uma pergunta que pareceu à viúva sem pé nem cabeça. Perguntou
ele:
— Minha cunhada, que mal pregunte, para que a senhora está querendo
o refrigério?

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— E você pergunta muito mal mesmo, — respondeu a velha. — Quero o
refrigério para o meu gado, ora essa é boa! — Que vontade que teve ela de lhe
dizer que talvez no Piauí refrigério tivesse outra serventia! Mas qual! Melhor
tolerar.
Pedro Melo riu: — Ora, Benedita, a senhora não tem mais gado não. Seu
gadinho mal vai dar para pagar as custas do inventário de meu irmão.
Dona Benedita chorou três dias e três noites sem cessar, diante de seus
santos, no dia que o oficial de justiça levou seu rebanho o melhor gado do Duro.
— Dê graças a Deus, minha cunhada. A sua valença foi meu filho Artur.
Se não fosse ele, sua casa tinha ido a leilão para pagar as custas. Seu marido
não deixou dinheiro!
Dona Benedita ficou pobre. Tinha a casa que os filhos e os genros
sustentavam. Para pequenos gastos vendia um objeto de oura ou uma afaia de
prata, velha afaia que herdou do pai e que entregava como quem corta fora um
dedo da mão.
Os poucos candeeiros de azeite mal clareavam os cômodos» casarão,
por onde os netos e sobrinhos brincavam de pegar ou brincavam de pique,
numa algazarra dos trezentos.
— Psiu, psiu, aqui não, meninos. Vão brincar no pátio.
— Ai, ai, ai! No pátio não, que vão quebrar as minhas roseiras, —
protestava a velha Benedita.
Na cozinha, à luz das brasas da fornalha, também conersavam os
aderentes da velha Benedita. Do tamanho de uma menina de oito anos, as
sobrancelhas grossas, o arde nanica, Maria Pequena falava. Januária ouvia,
balançando a cabeça, onde o pixain meio branco se escondia por baixo do xale
de franja, chupitamdo com a boca murcha de velha o pito sarrento, de barro.
Januária era velha moradeira do Duro. Já vira e ouvira muita coisa. Dava notícia
do tempo que os mineradores andavam revolvendo as catas que ainda hoje
abriam suas bocas pelos arredores da cidade falava dos índios Acroá e
Chacriabá que foram aldeados ali. A gente não sabia se era contemporânea
desses fatos, ou se misturava suas recordações com o relato dos antepassados.
Naquela noite, como sempre, estava de visita a Maria Pequena, que era
irmã de leite da velha Benedita e com ela residia. Tanto Januária como Maria
Pequena sabiam que os graúdos eram maus e por isso o que falavam, falavam
debaixo do maior segre-

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do. Vez por outra, uma se erguia do pilão onde estava assentada, e ia à porta
espiar se não havia ninguém ouvindo: — Parede tem ouvido, comadre.
— Seguro morreu de velho, — respondia Maria Pequena com sua voz de
anã, juntando as sobrancelhas no alto da testa, aquelas sombrancelhas que
eram que nem duas taturanas. As mulheres não entendiam desse rolo de
inventário, mas quem ignorava que inventário era feito para os graúdos roubar?
— Coitada da viúva! Trem de viúva, a senhora sabe como é.
— Mesmo que carniça, cada bicho quer um taco... Mataram o pobre do
Quelemente e agora tão quereno ficar com os terém do coitadinho...
— Até a mulher, que Deus me perdoe, — falou a Pequena dando tapas
na boca.
— De vera! Diz que essa foi a primeira que o coronel passou a mão... —
Pequena se ergueu, foi espiar na porta, e voltou: — Mas quem será que tá
comendo os terém da viúva, comadre? Seu Vicente ou será o Coronel Artur?
— Essa menina, pra mim, tudo os dois tão engulindo os terém da viúva. A
diferença é que Seu Vicente quer comer um taquinho menos avultado e o
coronel quer comer o defunto inteirinhozinho, sem deixar nem um isso para os
outros. — Ambas riram e a outra completou que não punha a mão no fogo por
Artur: — Esses Melos têm parte com o Cão, comadre. Até Félix Bundão eles
meteram no chinelo!
O caso era muito conhecido. Félix Bundão era um chefe de bando dos
Gerais; um dia entrou na vila para vingar a honra de duas filhas de um amigo
que foram defloradas por gente graúda e que não foram válidas da justiça. Félix
Bundão entrou disparando rifles, cercou a casa do deflorador, deu-lhe vários
tiros, matou-o, depois ficou debaixo dos mulungus, conversando com
conhecidos.
Félix não fez nenhum mal à esposa e filhos do deflorador, dizendo-lhes
que podiam enterrar o defunto em paz. Mais tarde, deixou a vila. Não tocou
numa casa, não buliu numa gaveta, não fez mal nem a uma galinha, não
quebrou nem um raminho de planta. Só entrou na casa da vítima e dali meteu os
pés na estrada, de volta. Pois não lhe conto nada. Foi Félix virar as costas, olhe
ali o boato correndo: Félix Bundão limpou a gaveta da Coletoria Es-

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tadual. O coletor Pedro Melo dizia para quem quisesse ouvir que Félix levara a
renda de seis meses da Coletoria!
Aí, Januária arrematou: — Tá vendo a astúcia do coronel? Tudo mentira.
Foi ele quem limpou a gaveta e botou a culpa em riba da cacunda do Bundão.
— Cruz credo! — fez Pequena, benzendo-se. — É o Coisa-Rui que o
Coronel Pedro tem na garrafa que ensina tanta astúcia para eles, meu Divino.
Embora conhecesse essa história, Januária teve medo. Encolheu-se,
como se defendesse de uma agressão e murmurou:
— Tesconjuro, Bicho.
— É esse Sujo que ajuda os Melos. No dia que o Bicho exallar ou no dia
que aparecer alguém com uma capetinha fêmea, adeus sorte dos Melos. Nós
ainda vamos ver.
— Mas você acredita que esse ”Bicho” dá conta de fugir? Então o
coronel deixa? Olha aqui — Januária com o indicador direíto puxava para baixo
a pálpebra inferior do olho direito, num gesto de quem diz que os Melos estavam
de olho aberto.
— Psiu! — Januária ergueu-se e foi espiar fora, voltando a seguir para
seu lugar no pilão. — Ah, o velho não deixa o ”Coisa” escapulir. O capetinha é
escravo deles desde os tempos do pai do Coronel Pedro, o velho Felipe, que
deve de estar nas profundas dos infernos, com o perdão da má palavra.
— Maria, ô Maria, — chamavam de dentro da casa.
— A mó que Sá Dona Benedita tá te chamando você, essa menina? —
perguntou Januária, que se envolveu no xale para sair. Sim, de fato, era
Benedita que chamava.
Agora o silêncio caía sobre o casarão. Os parentes, tomando a bênção à
velha, tinham saído ou para suas casas, ou para seus aposentos. Como uma
sombra, Benedita tomou o rolo de cera, acendeu-o e chamou Maria Pequena:
— Vamos rezar. Pequena nem respondeu, abriu a porta da capela, as duas
entraram, ajoelharam-se diante do oratório de cedro talhado. A luz fumarenta do
rolo fazia bulir a imagem grosseira de São Miguel. .
— Ajude meu genro Vicente, meu poderoso São Miguel— pedia Benedita.
— Ave Maria, cheia de graça... — resmungava Maria Pequena, pensando
no capeta do Coronel Pedro Melo. — O senhor é convosco, bendita sois vós —
prosseguia Dona Benedita, mas daí em

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diante vieram as lembranças do genro Artur Melo. Desgraçado! — pensou a
velha. Fez a infelicidade de minha filha, de minha pobre Zefa!
Pela sua memória passou o casamento de Zefa com Artur, Zefa tão
novinha, quase menina. Depois o diabo do Artur metido na sua política sem fim,
permanecendo na Capital do Estado anos a fio, largando Zefa abandonada na
vila. Entrava ano, saía ano e Artur mal escrevia uma ou outra cartinha. Na
solidão, no abandono, a pobre Zefa ardia de desejos; ela cujas carnes moças
tinham provado do amor. Nas noites longas e tediosas, a pobrezinha rolava na
cama larga e vazia, até que a madrugada pintasse o telhado, a imaginação
torturando os sentidos exaltados pelas recordações amorosas.
Quando afinal Benedita desconfiou, o mal ia grande. Por Porto Nacional
e Natividade já corria a notícia dos amores de Zefa com uns e com outros. Aí,
Artur surgiu alegando sua honra maculada. Enxotou a esposa de sua casa,
tomou-lhe a filha e a enviou para um amigo João Alves de Castro educar em
Goiás.
Pobre Zefa, por muitos anos rolou de deu em deu, até que a filha voltou
para o Duro, casou com o Doutor Herculano Lima e recolheu para sua casa a
pobre Zefa doente e miserável.
Diante dos santos, a velha até se esqueceu de pedir por Vicente, para
somente descarregar seu ódios contra Artur: — Piauiense maldito!
Aí se lembrou que estava frente a frente com S. Miguel. Afastou o
pensamento mau e começou a recitar: — Salve Rainha, mãe de misericórdia..,
Ao lado, Maria Pequena dormia debruçada num baú.

No FRIO da manhã, o Coronel Pedro Melo ia pela estrada montado na sua


grande mula, a maior de que havia notícia naquela região. Tilintava as esporas,
as rodelas dos freios, as fivelas e bombas do arreio e da cabeçada. Atrás iam os
dois jagunços. Mulato e Resto-de-onça, cada qual com sua repetição alceada no
ombro. Os cascos batiam nas pedras. Pelos baixos, a neblina ia densa,
molhando o capim que pegava a amarelar. Os bem-te-vis cantavam pelos altos
angicos.
Melo dirigia-se para a Grota, ia pôr seu filho Arthur a

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par de tudo que se passava no povoado, queria dar-lhe parte das
exigências de Vicente Lemes.
O velho olhava sobranceiro a paisagem que lhe era tão familiar. Quantas
vezes já passara por ali, nem sabia ao certo! Julga va-se o criador daquela
paisagem, daqueles caminhos, daquelas cercas, daqueles muros e daquelas
pontes. Tudo saíra de suas mãos ou das de seu filho. Era criador e dono daquilo
tudo. No entanto, Vicente Lemes e Valério Ferreira pretendiam governar. Essa
era boa! Uns preguiçosos daquela marca! Que é que eles já haviam feito para a
região, a não ser fuxicos e mais fuxicos? Pela frente corria a estrada orvalhada e
ainda sem sol. Era uma estraída carreira.
Quando o velho era menino, havia ali apenas um trincheiro de jumentos.
Bem se lembrava de quando a abriu. Era mocinho, que bons tempo! A estrada
antiga nem merecia esse nome. Mal dava passagem para os cargueiros de
mantimentos. Para ir a Barreiras era duro. Os comerciantes da Bahia até
debicavam:
— Ei, seu moço, esse seu Goiás é mesmo um fim de mundo!
Por que é que você não traz carro de boi para levar mercadoria?
Pedro Melo enrolava conversa e ria para disfarçar o embaraço. No fundo,
ficava agravado. Na verdade não levava carros de bois a Barreiras porque a
estrada não dava passagem. Dava isso para meter os burros pelas grotas e
serrotes.
Os comerciantes, entretanto, tanto azucrinaram que um dia Pedro não se
conteve:
— Homem, não trago carro porque acho tropa melhor de lidar.
— Quiá, quiá, quiá — estalaram as gargalhadas em redor. -- Ô homem de
boca dura! Tu não traz carro porque por lá não exis te estrada, — chasqueou um
dos caixeiros da ”Rainha da Barateza”, a melhor casa comercial de Barreiras. O
Melo sentiu a cara lascar fogo:
— Pois pro ano, por esse tempo, estou aportando aqui com dois
carros, de boiada baia.
O dono da ”Rainha da Barateza”, onde conversavam, saltou o balcão
para fora, deu dois tapas nas costas de Pedro, mandou um caixeiro trazer a
garrafa de vinho-do-porto e cálices e distribuiu a bebida para todos:
— Olhem, vocês são testemunhas. Se esse goiano entrar aqui,

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pro ano, com um carro de bois, eu mando dizer uma missa cantada. Já não falo
em dois, basta um carro.
De novo as gargalhadas estrondaram, enquanto os cálices se
esvaziavam, como selo do trato. Valendo-se da confusão, o moço Pedro Melo
despedia-se de todos e passava a perna por riba da mula estradeira, metia-lhe
as esporas e saía num trote picado para alcançar a tropa que guizalhava na
saída do comércio.
Pelos pousos e estirões, foi delineando o plano. Adestraria duas boiadas
de 48 bois crioulos baios, faria dois carros de bois. De cá já ia escolhendo os
boiecos: o filho da Beleza mais o da Dinamarca iam para o coice; o filho da
Sertaneja e aquele boizinho que barganhara com mano Antônio iriam para a
guia.
Também pensava nos pés de pau para fazer os carros. Ia fazê-los de
jatobá, daqueles jatobás enormes que cresciam na beira da serra.
E a estrada? Essa era a mais dura, mas ele já tinha em mente como
traçar a danada por aqueles ermos que tanto conhecia. O principal era
despender o menos possível.
Daí uns dias, já os machados roncavam pelos vãos de serras, abrindo a
picada da estrada. Para trás as picaretas e as enxadas retiniam, aplainando
mais ou menos o chão duro. Além, alguns homens davam os últimos repasses
numa junta de bois baios que arrastavam toras de madeiras.
Como um general, todo encourado, Pedro ia e vinha, dando ordens,
distribuindo o pessoal no trabalho, apressando a picada, pois precisava voltar ao
sítio ainda em tempo de ajustar as chedas dos carros, que os carpinteiros
lavravam.
— Vamos ver, vamos ver, minha gente! — As enxadas retiniam no terreno
pedregoso, enquanto os paus seculares baqueavam lá adiante, clareando a
mata.
Numa dessas vezes, Pedro Melo viu um preto alçar a foice para cortar
uma vergôntea que se erguia bela e viçosa nomeio do sarobal. Pedro segurou-
lhe o braço, chamou os demais trabalhadores e se dirigiu ao foiceiro:
— Você sabe o que é isso?
O cabra ficou meio espantado, titubeou, mas o patrão encorajou:
— Vamos, diga, você sabe.
— Apois num é um broto de cedro?
— Isso mesmo, — confirmou Pedro Melo, enquanto com o

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olhar aprovador percorria os demais homens ao redor. Também os outros
suspenderam a faina e estavam curiosos pelo desfecho! da-cena. ”O patrão
mandava derrubar o mato e depois não deixava torar um ramico daquele!”
— Para que serve o cedro? — continuava o moço, sem se dirigir a
ninguém. Num coro, uma vintena de vozes responde:
— Pra fazer cadeira, armário, porta, janela, oratório...
Aí as vozes se calaram, como se tivessem esgotado o rol das serventias.
Pedro Melo percebeu e os concitou:
— Vamos, vamos, para que serve mais?
— Com o perdão da má palavra, serve para caixão, meu amo —
respondeu um mais afoito.
— Isso mesmo, — aprovou Pedro: — é o pau apropriado para caixão. —
Nesse ponto, perguntou: — E vocês sabem quem soa eu?
Cheios de indecisões, uns três responderam que ele era o patrão, o
Coronel Pedro Melo, homem poderoso e rico.
— Vocês podem bater em mim?
— Deus me livre e guarde, — disse o coro de homens descobrindo-se.
--- Vocês podem me matar?
— Cruz credo, Coronel! Larga pra lá essas brincadeiras sem graça.
— Pois esse raminho daí é a mesma coisa que minha pessoa.
Ninguém pode fazer mal para ele. Ele vai crescer, vai ficar um pézão danado de
forte e vai servir para meu caixão... — A frase ficou meio suspensa, enquanto o
moço refletia para, a seguir, dizer com uma firmeza impressionante: — Isso, se
eu morrer!
O silêncio caiu sobre os homens e sobre a paisagem. Pouco a pouco os
cabras foram botando na cabeça suarenta os cacos de chapéu e daí uns
instantes as ferramentas retiniam à cadência de uma canção tristemente
monótona. Perto do cedrinho, ali ficou o moço Pedro Melo com seu porte
arrogante, com seu semblante duro, com sua quase convicção de que não
morreria, de que viveria eternamente, de que ninguém jamais o derrotaria em
qualquer coisa.
Ante seus olhos agora de velho, uma névoa perpassava. A estrada foi
feita, os carros de bois avançaram por ela e chegaram a Barreiras justamente no
dia marcado. Foguetes riscaram o céu da

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cidade e as campainhas da igreja anunciaram a elevação da hóstia, na missa
solene que o Coronel Lima mandava dizer.
”E, na verdade, tudo isso aconteceu, porque no dia exato, nem antes nem
depois, precedido de foguetório, o moço Pedro Melo, na porta da ”Rainha da
Barateza”, gritava: — Ôa, boi, ôa!
— Espia o sol — gritou Resto-de-Onça.
— Eta rodeira bonita! — secundou Mulato. Estas palavras afugentaram as
lembranças do velho Coronel Melo, que logo já avistou o bicame e de imediato
pensou em Vicente Lemes. Vicente foi sempre homem pirracento. Não sei
adonde Artur estava com a cabeça quando encaminhou esse tranca para os
cargos públicos! Por cima, tinha ainda a velha Benedita para emprenhar Vicente
pelos ouvidos com fuxicos sobre Artur e ele, Pedro.
— Foi mole, foi mole sem contia... — Esta frase chegada aos ouvidos do
velhos, fê-lo perder o pensamento. Atrás vinham os dois capangas. Vinham
alegres, souberam do caso do inventário, ouviram o velho conversando com
Tozão e anteviam lutas. Afinal, estavam voltando os bons tempos. Quem é que
foi mole? — indagava a si mesmo o coronel: Seria Artur, seria ele Pedro? Não.
Não era um nem outro, que aqueles dois homens de sua confiança não iam
nunca falar um absurdo desse. Artur não era mole, nem ele...
— Foi: Damião foi mole — reafirmava Resto-de-Onça e agora o coronel
ouviu bem: falavam de Damião, ah, isso sim. O capanga prosseguia: — Falar
procê, se compadre Artur tivesse lá, a escrita era outra.
Mulato concordou e contou um caso de outros tempos, Resto-de-Onça
ainda não trabalhava com eles. Foi em Santa Maria de Taguatinga. O chefe
político mais forte de lá era contra Artur, mas era um homem delicado, que não
gostava de agravar ninguém. Um dia Artur com seus rapazes entrou no
povoado, madrugadinha, dando tiros e gritos, apearam na porta da igreja e
desfilaram pelo Largo.
— Menino, o tal sujeito delicado virou um canguçu. Num ”vupe” arreuniu
seu povo e se nós não saíssemos ligeiro, sei não, era aquele sobrosso.
Os cavalos gemiam e arrastavam os cascos, descendo cautelosamente, a
passo, a bocaina estreita e inclinada em demasia. Papa-capins e grilos voavam
do capim que bordeava o caminho. A

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Grota estava lá embaixo, no fundo de uma furna. Os arreios ringiam e a
conversa calou-se.
Na sombra, um joão-conguinho guinchava. De cá, viam-si casas, o
engenho, as capoeiras pelas encostas mostrando as velhas roças, os currais,
oficina de farinha. O velho teve novamente jeriza. Era aquilo que irritava Ferreira
e Vicente Lemes, era a capacidade de trabalho deles Melos. Isso que enfezava
os inimigos. Afi nal, Artur ali era tudo, sempre fora tudo. Desde novinho vivia
lendo e estudando cada livrão grosso de meter medo, mas aprendeu:era o
médico, o farmacêutico, o advogado, até o padre. Padre, muito bem: padre,
porque Artur descobriu aquele tal de espiritismo, que era religião. E Artur era
médio, como chamava o padre dos espíritas.
O velho sentia-se orgulhoso do filho, sentia-se envaidecido. ”Era um
sábio. Nem Francisco Azevedo, o famoso professor da fazenda das Taipas, que
possuía um mundão de livros, nem esse podia com Artur que o entupia com
duas palavras. Isso era que exasperava o dorminhoco do Vicente e o fuxiqueiro
do Ferreira!’
Se havendo adiantado, Mulato pendurava-se da sela, faze correr as varas
da porteira, franqueando ao velho a entrada do curral. Um bando de cachorros
veio ao encontro dos chegantes,a latidos, mas reconhecendo-os transformaram
a acuação em ganidos de alegria.
Já a pé, Resto-de-Onça segurava com uma mão a camba do freio da
mula, com a outra firmava o estribo e ajudava o velho aapi-ar-se junto à calçada
da frente da fazenda. Pedro Melo estavaai ansioso por contar ao filho a
exigência absurda do Coletor Vicente, mais esse fuxico do diabo do Juiz Valério.
Ô gentinha!

NA SUA FALA arrastada de maranhense, Belisário dizia: — Eu cá num vou.


Num vou nessas tropelias do coronel. Estou aqui para cuidar de gado e não para
fazer arrelias. Se eu gostasse de cangaço, estava mais os jagunços de
Pernambuco. Oxém, apois num vê home de Deus! — Belisário conversava no
rancho de palha perdido no oco do mundo. Seu interlocutor era também
vaqueiro de Pedro Melo, o Casemiro, encarregado daquele sítio.
Casemiro estava sentado no banquinho da sala de chão; Bell

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sário deitava-se na rede. Fora, era noite estrelada de maio, meia fria. Dentro, era
a escuridão. Não uma escuridão total, porque a claridade do céu e o hábito do
escuro permitiam aos dois homens divulgar mal e mal as coisas. De luz, ali,
havia apenas a ponta dos cigarros que se tomavam mais rubras quando os
homens puxavam a fumaça: tão intensamente rubra que chegava a alumiar as
caras.
Nos longes lobo estava uivando. Na frente da casa, um trem lambia o
cocho e tossia: vaca? Capaz.
— Não vou obedecer de jeito nenhum a chamado do Coronel Artur. Bem
que ele mandou no meu retiro, falar pra mim assim que era para comparecer na
Grota. — O vaqueiro fez uma pausa, o cigarro chupado clareou o ambiente
debilmente. — Levar cavalo e repetição... — Nova pausa: — Esse negócio de
rifle, eu logo pensei comigo, é pra proeza, como aquele ataque no Cartório, em
quadra de Reis... Naquela eu fui, porque desconhecia, mas não me pegam
mais... Jeito nenhum...
Casemiro estava quieto, quase nem pondo sentido no que falava o
visitante. Pensava consigo que Belisário era um sujeito desacismado, falando as
coisas assim no rasgado, sem medo de castigo dos Melos. Belisário continuava
dizendo que tinha entrado para o serviço de Artur, mas que não ficaria mais. Não
ficava porque eram uns ladrões: — Vigia só. Este ano morreu muito gado com a
seca; pois não é que o coronel disse que o gado que morreu era tudo o que me
pertencia! O que era dele, esse a seca respeitou! Ora, essa é muito boa! É por
essa e outras que vaqueiro num apruma, seu Casemiro.
Casemiro matutava. com ele, sempre os Melos faziam pela mesma forma
e ele não se revoltava, não percebia o furto, achando um procedimento natural.
Nas fazendas de Artur, como na de todos os criadores, de cada quatro bezerros
nascidos um pertencia ao vaqueiro. Mas se um boi espaduava, se morria, se
sumia, se era roubado por índios, quem pagava era o vaqueiro. O resultado era
que o vaqueiro estava sempre endividado. Belisário tinha razão: aquilo era roubo
e roubo descarado.
O vento frio pegou a soprar. O homem notou e ponderou: — É a seca,
menino. Assunta só o friinho!
Longe, lobo tá uivando. Triste. Casemiro também sentiu um

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arrepio e se ergueu para fechar a porta. Ela pouco vedava. De caules de buriti
unidos com cipó, pelas frinchas o vento assobiava cortante.
— Pra agüentar esses Melos só sendo do calibre de Norato, prosseguia
sem pressa a voz de Belisário. — com Norato eles piaram fino. Gado morria,
Tozão botava na conta de Norato e Norato nem ligava. Norato comprava uma
dúzia de balas.Tozão botava na conta dele três dúzias. Norato não reclamava,
não discutia.Inteirado dez anos. Norato fez as contas, separou o lote de reses
que achou que tinha ganho nesse tempo e abriu o pala, foi montar seu retiro
dele mesmo em Missões. Tozão gritou, esbravejoi Artur entrou no meio, mas
Norato nem fedeu. O que acharam de fazer foi matar o coitadinho de tocaia.
Casemiro sentia a revolta crescer no peito. Ele também tinha sido
chamado para comparecer na Grota. E tinha medo de ir. Eu não gosto de briga,
compadre. Nem num sei dar tiro nenhum nada...
— Pois é, — quase gritava Belisário. — Tu vai é morrer que nem um
passarinho. Vai não, menino. Larga isso pra lá!
— O diabo que a gente deve, — timidamente ponderava Casemiro. — E
como lá diz: quem deve é cativo... Só se pagar..,
A voz de Belisário veio forte e dura como um trovão --: Pagar, pagar! Tu tá
besta, só! Se você não fizer feito o Norato, tu num paga nunca mais. Quem entra
para o serviço deles, quando sai é para a cidade dos pés juntos.
O silêncio caiu, cada homem pensando em suas próprias dificuldades.
Ratos corriam e guinchavam pelo telhado e pelos cantos do rancho onde se
amontoava milho, arroz ou feijão. ’
— Menino, isso num é d’hoje, mas todo mundo dá definiçãl Uma vez
chegou aí no povoado um homem branco, socado, risão e trabucador, por nome
de Folorenço. Conforme chegou, sujou o caráter, quis brigar e foi parar no tronco
do sobrado.
— Que que houve contigo, criatura? — chegou perguntamdo o velho
Melo.
— Num é de ver, seu Coronel, que me botaram eu nesta de graça e eu
num tenho dinheiro para sair.
Pedro Melo trocou umas palavras com o carcereiro, que era gente de sua
confiança, e no sufragante já foi destrancando os cadeados. Dali mesmo
Folorenço saiu para a lida do velho, num retiro.

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Passado muito tempo, Folorenço apareceu: — Coronel, veja aí quanto que devo,
homem.
O cabra trabalhara como um mouro, mas juntara bastante dinheiro para
saldar o débito. Pedro Melo fechou os olhos, resmungou suas contas e disse
que Folorenço devia duzentos mil réis. Embora bom de escrita, o velho nunca
pegava de lápis para fazer seus cálculos. Era no bestudo e não tinha erro.
— Pois está aqui, Coronel, pode riscar a dívida — e Folorenço risão
estendia ante os olhos do velho duas notas de cem mil réis.
Debaixo de sua barbaça o coronel riu: — Tá doido, menino. Eu não
emprestei dinheiro para camarada não. Dinheiro de camarada é serviço. Pode
socar de novo no retiro até pagar tudo. — Diz que nessa hora o risão não riu,
mas despediu meio duro e foi embora. Dia seguinte, quéde o Folorenço? Que
procuraram, que procuraram, nada.
— Mulato, vem cá. — O capanga chegou de chapéu na mão para escutar
as ordens: — Reúne gente e vai no piso do fujão. Gente sarada que o cabra
num é de brincadeira não.
Mulato mais o Tito distribuíram com outros rapazes algumas Comblains
que o velho trazia dependuradas na parede do quarto grande. Essas Comblains
eram armas usadas pela polícia estadual. Quando o Governo resolveu substituir
esse armamento por fuzis Mauser, determinou aos delegados que recolhecem
as armas dos destacamentos locais e as enviassem para a capital. Pedro Melo
era delegado do Duro e recolheu as Comblains do destacamento ali existente,
mas não as remeteu para Goiás. Limpou-as, poliu, consertou com aquela
habilidade que sabia ter, e as dependurou na parede de sua casa. Ficaram
ótimas as armas.
Se pegassem Folorenço, amarrariam ele à trave do sobrado e meteriam o
chicote até o bicho perder os sentidos. A Artur ou ao pai cabia dar as primeiras
chicotadas em sinal de menagem, para mostrar que ninguém podia rebelar
contra sua vontade.
— Esse Resto-de-Onça, ô bicho sem calidade. Veve perseguindo os
companheiros mode agradar o coronel, trem à toa!
Fez-se um curto silêncio, em que Casemiro bocejou sonoramente, depois
do que Belisário falou: — Menino, tu já ouviu falar numa tal de Berandolina?
Casemiro já ouvira, notícia vaga.
— Apois essa mulher é amiga da gente. Ela protege a pobreza

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contra a ganância dos ricos. Mal comparando é que nem o finado Antônio
Silvino, que Deus tenha em sua glória. — Ao falar em Deus o vaqueiro meio se
ergueu na rede, voltando, em seguida, à posição anterior e continuando: — Nhô
pai conheceu esse tal Antônio Silvino, demais...
Novamente a quieteza envolveu tudo. — Tem hora, esse menino, que eu
até que penso de pedir ajuda dessa Berandolina. Ela vem cá e leva nós. Se o
coronel empinar, pior pra ele, que ela é mulher de corpo fechado.
O lobo uivava de novo, agora parece que mais longe. O grito selvagem
ampliava as distâncias, fazia mais espessa a treva viscosa que escorria lá fora.
De novo, o trem tossiu junto do cocho.Cada homem pensava em Berandolina,
”ah, se viesse em socorro deles, os tirasse daquele ermo, os livrasse da dívida
do coronel, os livrasse do perigo daquela luta que o coronel queria meter eles
nela!”
— Frio, gente. Até parece que é S. João. — Belisário disse e abriu a boca
num bocejo ruidoso. Casemiro percebeu que o companheiro tinha sono, mas
não se importou. Era tão raro uma pessoa de fora com quem se pudesse trocar
idéias! De dentro, do único com partimento, da camarinha, veio um choro
comprido e sentido de menino. Chorinho triste que escorria no ermo e no
abandono, num desespero sem nome.
— Bichim num deixa ninguém dormir com a marvada dessa dor nos
ouvidos — gemeu Casemiro, numa resignação covarde.
— Se eu soubesse! Lá em casa ganhei uma estampa que é uma
salvação. É só botar ele em riba da dor e a dor passa na mesma hora; mesmo
que tirar com a mão. — Casemiro ouvia atentamente a narrativa. Deixa estar.
Brevemente Berandolina haveria de buscá-los. Então ele se valeria da estampa
do compadre, para curar o filho que sofria tanto com aquele mal excomungado.
Entre bocejos repetidos Belisário dava provas da estampa:
— Ancê num se alembra da velha Custodiana Mesquita?
— Ua velha arcada que vevia chorando com uma dor assim por riba da
volta da apá?
— Essa mesmo. Pois, esse menino, não te conto nada pra você. Botei a
estampa por riba da dor e foi mesmo que pinchar a desgraçada no mato.
Custodiana hoje em dia até pila arroz no pilãof
Ao longe, mais pra essa de banda de cá um tiquinho o lobo voltou a uivar.
Levantando-se para verter água junto à porta, Belisá-

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rio ponderou que o bicho devia era de estar num vício velhaco. Valendo-se da
saída do visitante, Casemiro despediu-se e foi deitar-se.
A claridade das estrelas coava pela palha do rancho e pelos vãos das
varas alumiando fracamente os cômodos. Na camarinha o menino voltou a
chorar com a danada da dor de ouvidos.
Lá fora, o trem tomou a tossir.

DEPOIS DO ALMOÇO, como fazia todos os dias para espairecer, Lina foi dar
uma espiada na rua. Debruçou à janela e viu a vila parada, calma, a sombra das
árvores e das casas desenhando manchas negras no chão. Pela grota, as
almas-de-gato piavam os pios entojados. Será que estavam mexendo no
cemitério? Mas não estariam. Ninguém havia morrido. Aquilo era assanhamento
dos bichos.
Dentro da sala, Vicente Lemes escrevia alguma coisa. Logo depois do
almoço? A mulher pensou em dizer-lhe para não aplicar a vista assim na hora do
quilo que era perigoso uma congestão, mas desitiu. Vicente andava tão
impaciente! Nisso, uma coisa lá fora chamou sua atenção. Havia um movimento
desusado no Cartório.
— Será que o juiz já chegou? — perguntou ao marido.
— O juiz já chegou? Por quê?— indagou Vicente meio sobressaltado.
Sabia que os Melos estavam reunindo gente e desconfiava que pretendessem
atacar o Cartório em dia que o juiz estivesse presente. Lina passou a descrever
o que via:
— Está chegando um pessoalão... largaram os animais soltos... entraram
correndo... tem gente entrando... gente saindo...
De um pulo Vicente chegou à janela e viu que cercavam a casa do
Cartório. Gente armada entrando e saindo às carreiras, animais de rédea solta
meio espantados, andando pelo Largo. Vozes altas. Vicente ia saindo, mas Lina
se opôs: — Não vai, não vai.
— Vou, uai, pera aí, — desvencilhou-se, pegou na gaveta a arma e saiu.
No corredor, no cabide dos arreios, pegou um chicote de chuço, um estoque. A
pistola que pegou era Browning, carregada com pente de cinco balas. No bolso,
Vicente meteu uma caixa de balas, pega também na gaveta. Enquanto corria
para a casa das audiências, quebrava essa caixa no bolso, soltando as
cápsulas.

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Quis entrar, mas à porta estava postado Mulato com seu rifle, que
interceptou a passagem. Vicente nada disse, retrocedeu e foi para a janela que
dava para a sala do Cartório, de onde vinham vozes.
Dentro viu Ferreira encostado à parede, ao lado de Cláudio Martim. Na
frente deles, falando, estava Artur Melo com a carabina segura pelo delgado da
coronha, tendo de cada lado um homem armado. Um deles era Aleixo, o outro
Vicente conhecia, não sabia o nome.
Artur entrara na sala exibindo ao Juiz Valério uma procuraação do próprio
punho da viúva de Clemente Chapadense eini mando que era o advogado dela:
— Ela não é nenhuma desamparada não. A mim cabe dizer como vai ser
o inventário. Estão pensando que vou me sujeitar às exigências do coletor? É
baixo, moreno! — Num triz já Resto-de-Onça tomava a arma da cintura do Juiz
Valério, que nem teve tempo de reagir.
Artur prosseguia: — Aqui, é preciso que vocês entendam uma vez por
todas, aqui quem manda sou eu, meu pai e meus amigos. Esse pessoal do Foro
anda mangando, mas agora minha paciência chegou ao fim.
Embora encurralado no fundo da sala, com os capangas armados e
rodeado, Valério Ferreira resistia. Artur queria quei recebesse a procuração,
juntasse aos autos e despachasse concordando com a descrição dos bens. Ele,
porém, teimava:
— Não, isso não é comigo. Quem impugnou foi o coletor, ele é que pode
aceitar a descrição da viúva.
Ao ouvir isso, Vicente que chegava à janela, interferiu:
— Ô Valério, eu preciso de você lá em casa agora mesmo. Vamos para
lá, Valério.
Quem respondeu foi Artur, voltando-se para a janela, e reconhecendo a
voz de Vicente:
— Ah, tem graça! Você veio chamar ele, não é?
— É. Preciso dele.
— Mas ele não vai. Não sai daqui.
— Uai, não vai? Num vai por quê?
— Porque não pode, — respondeu Artur energicamente.
— Então ele está preso? Se ele está preso, eu também quero ser.
— Ah, ora! Você também quer ser preso? — respostou Artur.

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em tom de escárnio, afastando-se para um ângulo do qual podia ver Vicente na
janela e os três prisioneiros. — Pois não se quer ser preso, que entre.
Aí Vicente procurou entrar e Mulato não se opôs. Tinha ouvido a ordem
do patrão. Vicente foi colocar-se ao lado de Ferreira e a seguir Artur se pôs ao
lado de Vicente, travando-lhe o braço E dizia:
— Pois é, vocês estão acostumados a fazer o que entendem e eu não
connsinto. Essa pobre mulher, o marido dela morreu por jagunços seus e vocês
querendo espoliar a coitada.
. -- Alto lá, -- protestou Vicerte. – Espoliar, não. Você sabe queestá
hvendo sonegação de bens. Eu tenho que defender a Fazenda Estadual, você
sabe, você é advogado.
Artur largou o braço de Vicente e deu uma risadinha forçada:
— Pois aqui vocês têm que fazer o que ”nós” queremos, nós, os Melos,
está ouvindo? — E batia no peito.
— Eu não faço. Sou funcionário, tenho a quem prestar conas, você sabe
que eu não faço. Lembra do gado do Tozão?
— Pois faz, acaba fazendo — retrucava de lá Artur imitando o tom de voz
de Vicente. — A gente faz muita coisa sem querer...
Na frente da casa já se reunia muita gente. A discussão se acalorava,
Artur dava cada eco que retumbava pela vila. Também Valério gritava. O povo se
apinhavá nas janelas, de onde os jagunços os escorraçavam à custa de cano de
pistolas. Pelas casas, as mulheres e os homens trançavam, esquecendo as
rusgas e ressentimentos. Lina foi procurar Amélia, filha de Artur; os parentes de
Ferreira foram atrás de Tozão; Moisés Melo falava com a velha Aninha, cada
qual querendo botar água na fervura, tentando evitar uma morte ou mal
semelhante.
— Não deixa ninguém entrar, Mulato — ordenou Artur para afastar o
mulherio que chorava e pedia desesperadamente. — Aleixo! —gritou Artur, —
desentope esta sala. Tem gente demais para atrapalhar.
— Pronto, meu patrão.
— O safado desse Martim, amarra ele lá no moirão do Largo, ouviu? A
sala está muito cheia... — Apesar de toda a energia de Mulato, as mulheres não
arredavam. Ali estavam Amélia, filha de Artur; Anastácia, irmã dele; Lina e Alice,
mulher e filha de Vicente, Tozão, Moisés, Argemiro Félix — gemendo, soluçando,
pe-

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dindo, dando gritos. De dentro do gradil, Artur ameaçava com carabina:
— Quem entrar, cai na bala.
Pelos cômodos, pelo Largo, esparramavam-se os companheiros de Artur:
João Rocha, Olímpio e Calixto Chapadense, Hi Melo, filho de Tozão e outros
homens famosos pela valentia e pela truculência. Havia já muito tempo que
durava a contenda, com Artur de lá ameaçando:
— Vocês é que sabem, ”Se nào aceitarem o rol de bens como a viúva
descreveu, ninguèm sai daqui. Hoje ninguèm come, ninguém bebe, ninguém
dorme.
— E nós só aceitamos o rol completo — dizia Valério completamente
calmo e, senhor de. si.
— Não come hoje, come amanhã — objetou Vicente, mas Atur contestou
com ênfase:
— Nem hoje, nem amanhã, nem depois, nem dia nenhum, quanto não
fizer o que ”nós” queremos.
— Vejamos!
— Pois é, uai, vejamos!
Aí apareceu o Coronel Pedro Melo, soproso, empurrando o pessoal, a
cabeça alçada a modo de vaca batedeira, botou a mão no balcão, enquanto
mantinha na outra a Mauser:
— Que é que quer que eu faça, meu filho? — Estava brabo ameaçador, a
barbaça branca tremendo, os olhos fuzilando e narinas arreganhadas. O velho
estava querendo pular o gradil, gritando de raiva: — Pode dizer, meu filho, que é
pra mim fazer? Enquanto dizia, brandia no ar a pistola de matar antas: — pode
dizer, que eu estou aqui pra te adjutorar, meu filho.
Artur se desprendeu do braço de Vicente, por um instante, fez para o pai
um gesto:
— Calma, meu pai. Tem calma. Por enquanto não carece de fazer nada
não. Calma.
— Hem, num carece de mim, hem? — A barbaça se agitava, a Mauser ia
e vinha por sobre as cabeças.
— Não, meu pai, volta pra casa, eu preciso do senhor lá, —dizia Artur
travando novamente do braço de Vicente, mas o velho continuava ameaçando
céus e terra, gritando que aquela arma tinha morto Vigilato e com ela mataria
muita gente mais.
Aquilo estava passando. Vicente não se conteve. O diabo do

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velho era um descarado que confessava publicamente a morte do sobrinho. Que
cachorro! Para o Juiz Hermínio, negou; ali, afirmava. Era demais:
— Olha velho, Vigilato você matou porque era defunto sem choro, mas
comigo vocês engancham. Tenho parentes, tenho amigos, aqui, em Natividade,
em Conceição, Arraias, Porto Nacional, Goiás. Comigo... — Vicente não pôde
terminar. O velho voltou-se num ímpeto, a arma apontada no seu peito:
— Parente... parente...
— Uaá! — ao redor o mulherio abriu o bué no mundo, gente correu
cercando o velho que bufava feito um peba: — Parente, parente...
De seu canto, embora as mulheres e homens pedissem, Vicente não se
calava:
— Se você me matar, velho à toa, sua cabeça também rola. No meio do
povo, o velho quis novamente investir, mas Artur sem largar o braço de Vicente
fazia com a cabeça sinais a Tozão que retirasse o pai.
Vicente tinha no bolso a arma, mas nem tentava sacá-la. Seria pior, no
meio de tantos inimigos armados. E o estoque? É mesmo, quede o diabo do
estoque? Parecia que tinha deixado ele em riba do peitoril da janela, no
momento que falava com o juiz.
Por fim, conseguiram levar o velho, que lá se foi no meio de outros
homens. Chegando em casa, tirou suas armas, as velhas Comblains, chamou os
Chapadenses e com elas armou os jagunços que agora se postavam
acintosamente ao redor da casinha do Cartório. Eles se agachavam, o chapéu
de couro puxado em riba dos olhos, a velha Comblain nas mãos calosas, o
cigarro fumegandono queixo. Além, o povo aguardava ansioso o desfecho de
tudo.
Na sala, Artur continuava exigindo que todo o processado fosse
inutilizado a partir da informação de Vicente Melo.
— Já disse que não faço isso — teimava Vicente.
— Pior para você. Quanto mais tempo teimarem, mais tempo vão ficar
aqui. Eu, por mim, não tenho pressa, — explicava Artur. Ao lado, Ferreira de há
muito deixara de falar.
De certa maneira, o juiz nada tinhacomo fato. Ele apenas mandara
cumprir o pedido do coletor. Artur o mantinha preso com o intuito de fazer o
inventário inteirinho naquele dia. Precisava

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de suas sentenças. Tal situação é que permitia a resistência. Contra Vicente,
Artur se sentia tolhido pelos laços de sangue e afinidade. Ah, se fosse somente
o Valério, talvez Artur já houvesse cometido uma violência.
Pelo Largo, João Rocha ameaçava uns e outros; no fim da rua, Hugo
Melo com José Anísio disparavam as armas.
O tempo correndo e nada de resolver a pendenga. De lá Artur exigia novo
despacho; de cá Vicente Lemes se negava a lavrá-lo. E o tempo correndo.
Quando Artur invadiu o Cartório, sol estava por ali assim, podiam ser nove horas
da manhã; agora já o sol descambava. Os jagunços estiravam as pernas,
assuntava o sol e calculavam que devia de estar beirando bem ali umas três
horas da tarde. Nesse momento, rompendo o cerco, se abeirou da janela
Argemiro Félix, que arriscou um alvitre:
— Gente, não será possível caçar um acordo? Ninguém respondeu, cada
qual achando que era sinal de fraqueza apresentar uma solução adequada.
— É já que vem a noite e vocês trançados aí que nem a los de briga. Que
que adianta um dizer uma coisa práláej responder uma má-criação pra cá?
— Acordo só pode ser um: Vicente faz novo despachou que eu ditar —
disse Artur em tom acintoso.
— Tem graça! — fungou Vicente rolando os olhos
Aí Valério pegou a falar, dirigindo-se a Vicente. Fazia já muitas horas que
ali estavam eles de pé, sem água, sem comida, discutindo atoa. Enquanto
Vicente discutia, Valério pesava a situação. — Não via Vicente que era inútil
resistir? Artur ali estava em maioria e armado. Afinal de contas, não eram nem
mais nem menos que prisioneiros entregues à sorte que lhes quisesse dar o
deputado Artur. O melhor seria concordar com as exigências.
— Mas é um absurdo — protestava Vicente de olhos nadando em
lágrimas. — É um desaforo ter que baixar o cangote para esse pessoal meter a
canga. E o direito está do nosso lado!
— Pois é, isso é que é certo. Vamos largar mão de muita pirraça, de
orgulho e podemos resolver as coisas em paz, — acentuava Artur, valendo-se
das palavras do juiz, que terminava:
— Vamos concordar, Vicente. Mas saindo daqui vamos fazer uma
representação ao Governo, exigindo punição para esses bandidos!

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— Rarará — ria-se Artur, pulando na sala. — Podem denunciar. Ainda
não ficaram satisfeitos com o caso de Vigilato, não é mesmo? Rarará! O
governo vai enviar outro Doutor Hermínio Lobato, virá outro Napoleão, rarará!
Vai ser uma farra, hem, Mulato?
Foi com ódio, foi com vergonha, foi cheio de humilhação que Vicente
tomou do processo e, atendendo às imposições de Artur, rasgou as folhas que
continham os despachos e informações anteriores. Por que não reagir? A
Browing estava ali na algibeira com as balas. Era pegá-la e já ir disparando em
riba daquela gente. Sim, seria morto. Isso não tinha dúvida que Mulato, Resto-
de-Onça, João Rocha não estavam ali apenas para fazer bonito. Morria, mas
ficaria a fama. Amanhã, depois, por muitos anos o povo ia se lembrar que ali
teve um homem de mais coragem do que os Chapadenses, mais valente que
João Dias, de Boa Vista.
Vicente meteu a mão na algibeira, apalpou a Browning, mas sentiu a
coragem esmorecer. Reagir à bala seria o mais inteligente? Estava visto que
não. Vicente reagia, matava Artur ali na sala, mas também seria morto e com ele
o juiz Valério e outros companheiros. E tudo voltava a ser dominado pelo velho
Coronel Pedro Melo. A mão de Vicente saiu do bolso, tomou o encaixe, molhou o
tinteiro, enquanto seus beiços trêmulos murmuravam:
— Pode ditar, Seu Doutor Deputado Artuzinho.
— Não, uai, não vou ditar não. Você sabe fazer. Você está pago para
saber isso.
O coletor mantinha a pena no ar:
— Sei escrever aquilo que minha vontade dita. Agora estou fazendo uma
coisa obrigado por você. Não sei qual é o seu querer.
Até à sala chegavam os estrondos das armas de Hugo Melo e João; no
Largo, os Chapadenses contavam rodelas, aos gritos, como era o seu habitual
modo de conversar. Artur sabia o que queria:
— Bem, escreva aí: concordo com a descrição e a avaliação de bens do
presente inventário. Agora, vire a págna. Cláudio, é a sua vez, íamos lavrar os
termos. — E assim, ora com um, ora com outro, o processo foi correndo,
observados os prazos de praxe, até que o juiz Valério deu a sua sentença de
final julgamento.
— Vá buscar os selos, Vicente — ordenou Artur. O coletor saiu para
buscá-los em casa. Lina não o acompanhou, ficou ali na casa, já que Artur
permitia agora que as pessoas entrassem no Car-

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tório. Na frente da casa, no moirão, Martim suava amarrado no pau, com o
mosqueiro lhe azoinando em tomo, acabeça ao sol. Vicente quis falar com ele,
mas não achou conveniente e foi passando. Vendo-o passar, Aleixo resmungou:
— Bão de meter uma bala na cacunda desse desinfeliz.
Lina ouviu e saiu correndo a abraçar-se com Vicente. Não lhe contou
nada do que ouvira, mas queria que ele não voltasse.
— Não voltar de que jeito, mulher? Os jagunços vêm buscar.
— Não volta. Pega um cavalo por aí e sai fugindo. Artur vai te matar, para
você e Ferreira não denunciarem. — Lina tremia aos soluços. Vicente fez ouvido
mouco. Que valia fugir naquele instante, com o processo todo pronto? Agora
Artur não ia matar mais ninguém, para quê? Tinha obtido tudo!
Deixou Lina aos gritos, voltou ao Cartório, selou o que tinha que selar,
terminou o processo até a derradeira formaralidade.
— Este está pronto — disse Artur, que relanceou os olhos pelo Cartório e
a seguir, continuou a frase: — Como vocês vã me denunciar mesmo, vou
aproveitar e levar alguns processos de eleitor que esse juizinho andou
indeferindo. Me dê aquele maço ali Cláudio.
O escrivão tomou um tamborete, subiu em riba, retirou o maço e entregou
nas mãos de Artur que separou os papéis que quis. Exigiu outros maços, fez a
mesma coisa, depois juntou tudo num grande pacote que entregou a um
homem.
Já seriam cinco horas da tarde, quando Artur Melo deixou o Cartório.
Resto-de-Onça veio na carreira, puxando a mula de sela que ficou na sombra do
quintal do pai, segurou a camba do freio com uma mão, com a outra segurou o
estribo; Artur montou tomou a rédea, e Resto-de-Onça já corria para a outra
banda da mula a ajeitar o pé direito de Artur no outro estribo.
A seguir, outro cabra entregou a Artur a carabina que locou atrás, na sela,
por baixo da bunda. Deu as derradeiras ordens, tocou a mula para a casa do
pai, com quem conversou longamente na janela e daí torou para a Grota,
seguido de seus homens.
Na casa do velho, outros rapazes por ali ficaram limpando Comblains e as
dependurando na parede. Os primeiros morcegos principiavam a cortar
cambaleantes o céu muito diáfano. Na igreja uma coruja soluçou.

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A MADRUGADA ia alta quando a carta ficou pronta. Era dirigida ao Coronel
Eugênio Jardim e relatava minuciosamente os acontecimentos: a morte de
Clemente Chapadense, a ocultação dos bens ao inventário, a exigência do
coletor e por fim o ataque de Artur. Relatando tudo, pedia a carta garantia para o
exercício das funções públicas e para a vida das autoridades estaduais.
À luz do lampião, cansados e sonolentos, estavam reunidos Valério
Ferreira, Vicente Lemes, Júlio de Aquino, Moisés de Melo e Argemiro Félix. Eles
haviam redigido e agora a reliam pela derradeia vez. ”Não, parece que não
faltava nada. Tinham contado tudo e exigiam, com energia, garantias e
punições”. O arremate dizia: ”Não exerceremos nenhuma função dos cargos
enquanto não contarmos com força armada que nos possa garantir”. Ótimo,
aquilo estava ótimo.
Também em casa de Pedro Melo a porta da rua não se fechou. Lá por
dentro havia luz e movimento de gente. Era Resto-de-Onça que chegava. Tinha
estado espionando a casa de Vicente, onde redigiam a denúncia.
— Podem denunciar, cambada -- bradava o velho. — Denunciem. Vigilato
também denunciou.
De para a manhã, Resto-de-Onça chegou com outra notícia:
— Saíram três cavaleiros da casa de Vicente Melo, meu amo.
— Quem você acha que são eles? — perguntava o velho. O capanga
piscava e fazia caretas. Era um tique nervoso que ele possuía. Qualquer esforço
intelectual o obrigava a piscar, contrair os músculos da cara, revirando os olhos.
Diziam que na hora de puxar o gatilho, na tocaia, o desgraçado tinha que fazer
as gatimônias. A resposta do capanga foi cautelosa:
— A gente num pode garantir, meu amo, mas pra mim era o seu Júlio de
Aquino, mais um camarada de Moisés e outro do seu Juiz Valério. — Parou,
pensou, careteou: — É pra ser esse tal de Júlio, eu vi bem que era ele, mode o
jeito...
No frio da manhã, Júlio de Aquino rompia chão levando a carta para
Eugênio Jardim. Só voltaria com um contingente policial, não tivessem dúvida.
A essas horas, mas em rumo diferente, outro cavaleiro fugia do Duro: era o
agente do Correio. Mais tarde, depois do almoço, quem deixava a vila era o Juiz
Valério Ferreira. Para voltar ao exercício da função exigia segurança, soldado
bem armado e disposto

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a matar quem tentasse obrigar uma autoridade a fazer o que não era permitido.
Esse era também o pensamento de Vicente Lemes. Então poderia agora ficar
naquele lugar depois de tudo que aconteceu? Teria ele mais autoridade para
exigir de alguém o pagamento do imposto, quando Artur fazia o que bem
entendia? Podia ele ficar ali para obrigar apenas quem não tinha força para
empinar contra as ordens?
Vicente Lemes mais uma vez reuniu seus pertences, buscou os animais e
se dispôs a deixar o Duro, levando mulher e filhos iria para Conceição, onde
tinha parentela. Quando a força poi-se, voltaria para as funções de coletor, se
tivesse garantia.
— Eu que não fico aqui sozinha! — reclamou de lá a velha Benedita. E
assim, um dia, partiram da Vila Vicente com família Benedita Fernandes com os
agregados, Argemiro Félix e Moisés igualmente com família.
Sentado na calçadona alta, o velho Pedro Melo não achava aquilo muito
bom, mas não confessava. Ficava quieto olhando as casas fechadas, o povoado
mais triste, os passarinhos pousando em nuvens compactas nos assa-peixes da
grota. Eram pássaros-pretos, papa-capins, rolinhas fogo-apagou e o diabo das
almas-de-gato com seus pios entojados, piando, piando horas afio.
Por fim, também as janelas e as portas do casarão de Pedro Melo
deixaram de se abrir. De Barreiras, pelo telégrafo, chegavam notícias que um
contingente policial marchava para o Duro. Diziam que era muita gente, com
muito armamento, e que a coisa era para valer. O chefe da comissão não era do
calibre do Doutor Hermínio não, era nego teso, que vinha com ordem severa dos
Caiados para acabar de vez com Pedro Melo e sua gente.
Seguindo o Coronel Pedro Melo, deixaram suas casasTozão, Doutor
Herculano Lima, Damião de Bastos, Joaquim Alves Leandro e outros moradores.
No Largo as rolinhas fogo-apagou formavam bandos, depois voavam e
iam assentar pelos muros, pelos telhados das casas fechadas, pelos pés de
fruta e cantavam o que dava o dia. Os viajantes que passavam viam aquela
tristeza de tapera e se benziam.
— Duro acabou, Duro acabou — soluçavam as rolin.
Em casa de Dona Benedita, as roseiras morriam por falta de quem as
aguasse.
— Duro acabou — diziam as rolinhas.

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II
A comissão
PELAS SERRAS e pelas bocainas o piraí estalava e os burros gemiam, levando
no lombo pisado os costais de mantimentos roupas de cama, trem de cozinha e
munição. A serra de Jaraguá suas matas ricas ficou para trás; o rio Maranhão
com sua caudal soturna foi transposto. Pelos caminhos do sertão, incertos
caminhos cortados no mato ou no cerrado, a caravana avança sempre ao sol e
ao sereno. No deserto sem fim, as cidades e povoados minúsculas ilhas
distantes umas das outras dezenas delégu sítios ou fazendas, quando existem,
são como navios perdidos no ermo.
Para todos os lados galopa o oceano da campina, da floresta ou do
cerrado, por onde as estradas são tortuosos e indecisos riscos meio apagados
na poeira e na lama. ítaberaí, Jaraguá, São josé do Tocantins ficaram para trás.
Há mais de mês que a comissão nomeada pelo governo estadual para
abrir inquérito sobre os acontecimentos do Duron marcha pelo sertão. Quando
saiu de Goiás, a comitiva era pequei o juiz Carvalho, o escrivão Chaves, o
Alferes Enéias Altino Pexoto, um cabo, dois soldados e o camarada Alexandre.
Mais ia crescendo à proporção que avançava. Em São José do Tocantins uniu-
se a ela o promotor de justiça.
Por sobre montes, vales, rios e chapadões a comitiva ava no rumo do
Duro.

60
O sertão é triste e feio em julho, as queimadas borrando o céu de
fumaça, a vegetação já amarelecida, crestada pelo sol e pelo fogo, as árvores:
despidas de suas folhas pelo rigor da seca. Pelos ermos e descampados o vento
galopa seu febrento bafo de morte, arrastando folhas secas, levantando a poeira
fina, erguendo-a nos espaços em funis de redemunhos.
Nas noites secas, em tomo da fogueira do pouso, os homens reuniam-se.
O promotor Imbaúba pegava o violão e se punha a cantar modinhas, lentas e
chorosas, aprendidas em Salvador, no seu tempo de estudante, ou aquelas em
voga em Goiás.

”Quando vivemos a sonhar amores,


Quando não temos a ilusão perdida,
Quando noss’alma não padece dores
Morrer é triste! Como é doce a vida!”

Sebastião de Rojas Imbaúba, comissionado nas funções de promotor de


justiça no inquérito, era baiano, mulato, magro, alto, inteligente e pernóstico. Em
Goiás, para onde viera como funcionário do Serviço de Proteção aos índios,
andava sempre de fraque e chapéu de coco, limpo e elegante no seu
cavanhaque preto de mágico, o cabelo teimoso alisado à custa de muita
brilhantina. De noite, espantava os ecos do Largo do Chafariz, da Rua da
Abadia, do Largo Detrás do Açougue com seu violão gemebundo, com sua voz
aflautada de mulato namorador, pondo ternuras de amor no coração das
admiradoras. Ali, à luz vermelha da fogueira, entoava outra canção:

”Margarida vai à fonte,


Margarida vai à fonte,
Vai encher a cantarinha.
Brotam lírios pelo monte,
Margarida vai à fonte
Vai à fonte e vem sozinha.”

Ouvindo, os soldados recompunham cenas de suas vidas. Cabo


Ferreirinha revia o dia que deixara Goiás em companhia do juiz. A Assembléia
Legislativa encerrava os trabalhos, a polícia viera prestar-lhe homenagens,
formando-se frente ao edifício, na Rua

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da fundição, junto à igreja da Boa Morte e o Palácio dos Arcos. A banda da
polícia executava justamente a marcha que Imbaúba, no momento cantava:

“Brotam lírios pelo monte,


vai à fonte e vvem sozinha.”.

A voz não era boa, longe disso, mas no ermo, o campo dormindo ao
redor, o vento soprando a fogueira, o luar branco como um povilho derramado,
o coaxar dos sapos acolá na cabeceira da vereda, ao compasso do tilintar dos
polacos dos aniais no encosto – tudo aquilo bulia com o coração de Ferreirinha.
E a namorada? Quando lhe participou sua resolução de vir com a comissão, ela
nada disse, nada protestou. Uma sombra, uma nuvem como que anoiteceu seu
semblante. Ficou velha naquele instante, depois saiu correndo para dentro de
casa.
Se pudesse, Ferreinha casava com ela, mas nem pensar nisso era bom.
Tinha seus planos: ganhar dinheiro na expedição, ir para o Rio de Janeiro fazer
o curso de Medicina. Que futuro havia em Goiás para um jovem pobre como
ele? Quando muito, poderia atingir um lugar de chefe de administração pública
do Estado.
Ferreirinha cursava o Liceu, mas o pai morreu e ele se viu obrigado a
abandonar o estudo para arrimar a família. Nisso, a irmã se casou, a velha mãe
tinha com quem viver, tinha em quem se arrimar. Agora Ferreirinha podia ir para
o Rio, e ele se meteu na polícia, para ganhar dinheiro.
Depois a voz de Imbaúba calou-se, outros sons ergueu-se mais distante.
Era um toque de viola. Ferreirinha conheceu que era do soldado Baianinho. Na
sombra, o praça pinicava o pinho. Terno, osom vinha vinha numa humildade de
choro de mulher amorosa, numa humildade igual à namorada de Ferreirinha que
ficou com sua saudade na casinha térrea do alto do Moreira.
No acampamento tremulava a mágoa da viola de Baianinho.

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Para ouvir melhor, em tomo dele outros soldados vieram se agachar com suas
mulheres e os meninos catarrentos.
Bem diferente era o motivo que trazia Baianinho àquela expedição.
Ferreirinha viera na esperança de ganhar dinheiro com que pudesse seguir para
o Rio. Baianinho ali estava como um cativo. Era camarada do Coronel Batista, a
quem ficara devendo um despropósito. Dívida fantástica, dívida inventada pelo
coronel. Baianinho comprava uma rapadura, o coronel assentava duas em sua
conta; no mercado a rapadura custava quinhentos réis, nos assentamentos do
coronel cada rapadura custava o dobro. com cinco anos Baianinho devia tanto
que não pagaria ainda que trabalhasse o restante da vida.
Aí o coronel trançou os pauzinhos e meteu o devedor na polícia.
Doravante, todo mês, o coronel recebia na boca do cofre o vencimento do
soldado, cobre limpo e certo, cobre preciosíssimo para a região escassa em
moeda.
A mulher de Baianinho que tratasse de sustentar a casa e o marido,
vendendo quitanda, lavando roupa no rio Vermelho ou cozinhando de ganho
aqui e acolá. com o barulho do Duro, Baianinho se meteu na Força, pois o
ganhame de soldado era dobrado.
Na noite, a viola de Baianinho gemia sua dor ignorada. Ele era do Norte
de Goiás, mas dizia que era baiano mode se dar ao respeito. Segundo diziam, já
pertencera a um bando de jagunços, na Bahia. Ferreirinha não podia acreditar.
Era tão manso o Baianinho! É verdade que as aparências enganam, mas
Baianinho não podia enganar.
Da barraca do juiz ergueu-se o toque de silêncio, que foi ecoando pelo
ermo afora. Longe, um curraleiro respondeu com o berro fino, como se fosse um
rebate de corneta. Depois, cada soldado arranjando sua cama, armando a rede
num pé de pau-terra ou pequizeiro, junto à fogueira, as mulheres pitando em
silêncio os cachimbos sarrentos, dando de mamar aos meninos magros e
barrigudos, com eterna diarréia. Alguém gemia de maleita; outro tossia,
encolhendo-se, talvez com a tísica minando os bofes.
E assim avançava a comissão pelo sertão belo e terrível. Breve chegaria
a madrugada, a estrela-d’alva como uma gota d’água tremulando por sobre o
monte, e Baianinho se meteria pela saroba orvalhada e fria em busca dos
animais do juiz e dos oficiais, únicos que viajavam montados.

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Com o sol dourando a copa tremulante dos buritis, seus gritos
ecoariam pelo ermo, comandando as bestas, trazendo-as do encosto, raspando
e arreando. Nos espigões, as seriemas garganteavam suas notas álacres.
A seguir, meteria os pés de calcanhar rachado na estrada sem fim, dando
seus gritos com os cargueiros, estalando o piraí assustando o caracará
pachorrento assentado no galho do pau.
— Burro, diacho!
Como um barco ronceiro e moroso, a comissão prossegue sempre
sempre através do sertão ressequido e escaldante. O gaviãozinho e o pinhê-
pinhê estridulavam no risco do vôo cinzento, caçando cobras e grilos zonzos
pelas chamadas das queimadas. Embaixo, no valê, a mataria se derrama a
perder de vista. Os ipês abrem o luar de ouro e paixão de suas copas floridas.
Na monotonia da chapada coberta pelo cerrado, a monotonia dos pios das
perdizes e codornas em busca do amor. Longe, no céu acinzentado pelo fumo e
pela poeira que os ventos incertos sacodem, os urubus abrem grandes círculos
negros: carniça de alguma rês morta na boca do tijuco, aonde fora buscar uma
gota d’água. :
A comissão é um barco que avança. Para trás ficaram o Maranhão, o
Tocantins e o Paraná, rios que rolam águas verdolengas pelos profundos vales,
remansando nos pauis esverdinhados as febres e os miasmas.
Para trás ficou a cidade de Arraias alcandorada na rocha e noouro: ficou
Taipas, a velha fazenda dos Azevedos.
Agora era outro pouso. A noite despencou do alto, num de repente. Na
sombra que sobe do vale, vem o pio da nhambu, ma como um soluço. Mas na
noite não mais se ou via a voz do promotor Imbaúba para despertar sonhos e
saudades na alma de Ferreirinha; a viola de Baianinho não mais soluçava no
catiraoam mato de sua mágoa sem remédio. Enquanto não vinha o toque de
silêncio, os soldados se reuniam para ouvir histórias de assombração, histórias
de crime e valentia, contadas por Mane Vitô,o sua fala bonita e a expressão
fácil; contadas por Nestório, Daniezinho ou Adonias. Eles previam lutas e
bravateavam. Mais para um canto, Peba e Mão Pelada tiravam da algibeira o
baralho encardido e, às escondidas, armavam a roda de sete-e-meio.
O Juiz Carvalho precavia-se. Boatos alarmantes chegavamaté

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seus ouvidos. Artur Melo estava com muita gente reunida, bem armada e melhor
municiada, cangaceiros arrebanhados nas fronteiras da Bahia, Pernambuco,
Maranhão e Piauí. A marcha, nesses dias, era como se estivesse em operação
de guerra.
No ligá em que dormia, Baianinho sentia o cheiro acre da flor de caju, via
no encosto o pequizeiro derrubando a flor sebosa, e seu coração renascia de
esperanças. Se não estivesse na tropa, ia botar uma espera naquele pequizeiro
dacolá; viu rastro de veado por baixo dele. No outro pouso, na beirada do corgo,
vira muito estéreo de capivara. Também peixe. Foi um tropeiro, contou-lhe que
adiante o rio estava secando e peixe lá era um disparate, chegava a fazer
carniça de juntar urubu. Bem capaz que aquelas rodas de urubu que tanto via no
céu não era carniça de gado não, era carniça de peixe, veja só!
No lusco-fusco Baianinho calculava. Era só passar o barulho, iria buscar a
obrigação, voltava para o sertão, para caçar e pescar. Naquela comissão, Deus
adjutorando, brevemente pagaria todas as contas e aí seria um homem livre,
dono de sua vontade, dono do sertão inteiro, das veredas de buritis, dos rios que
escondiam no fundo os peixes misteriosos e engraçados que a gente carecia de
pegar com muita astúcia. Seria dono dos gerais, onde o veado retorce as
orelhas e o focinho molhado campeando no vento sinal de gente. Seria senhor
dos lugares por onde a paca traça seu caminho incerto, num passo elástico de
veludo e seda.

EM ARRAIAS, um tropeiro vindo da Bahia contara que Duro era jagunço só.
Todo o pessoal valente das fronteiras de Goiás, Bahia, Maranhão e Piauí estava
reunido no Duro. Ali estavam Abílio Araújo, mais conhecido por Abílio Batata, e
Roberto Dorado, famosos cabos-de-guerra que alguns anos antes assaltaram e
tomaram a cidade de Pedro Afonso, reduzindo as casas a um montão de ruínas
fumegantes; Calixto Chapadense, tão valente quanto João Dias de Boa Vista, e
Miguel Umbuzeiro, o cangaceiro que atacava rezando as excelências.
Diziam mais que no Duro, diariamente, João Rocha adestrava os
jagunços no manejo das armas. Cortava toras de bananeiras, fincava no chão e
a cada uma dava o nome de um membro

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da comissão: Juíz Carvalho, Promotor Imbaúba, Alferes Enéias e outros. Depois
mandava os cabras meter bala nas toras e atacar de punhal.
Para isso, nos pousos, nada de modinhas de Imbaúbas. A severa
precaução da marcha de campanha: reconhecimento, ligações, sentinelas. Se
era letra, agora a marcha se tomou mais vagarosa, que os soldados também
estavam estropiados. Nas pousadas, cada pelotão tomava posição na ordem em
que se efetuava a caminhada; o primeiro e o terceiro pelotão formavam os
flancos; o segundo pelotão formava o centro.
O Juíz Carvalho era quem dava determinação. Algusto César Carvalho de
Arruda era filho de espírito Santo, onde tomou parte numa revolução. Sufocado
o movimento, derrotados os partidários de Carvalho, meteu-se ele para Goiás
com família e tudo e foi logo momeado Juíz de Direito de Santa Luzia. Era
Bacharel em Direito e trazia para o Presidente de Goiás, Doutor João Alves de
Castro, carta de recomendação.
Quando Júlio de Aquino entregou em Goiás a carta denunciando os
acontecimentos do Duro, começou o governo a procurar um Juíz que quisesse
seguir para lá. Debalde, porém, João Alves de Castro consultava um e outro
magistrado. Ninguém queria aceitar a comissão, meter-se em embrulhada,
enfrentar aquele fim de mundo.
Egênio Jardim, seu cunhado Totó Caiado e seu outro cunhado Doutor
João Alves de Castro estavam em luta contra os Melos, cujo poder político
queriam esmagar a todo custo. O diabo que se metesse numa compliçaão
daquela. Os Melos eram gente de largo prestígio, gente gente muito ligada a
poderosas e riquíssimas famílias da Bahia, como as famílias Rocha, Balbino e
Lima, as quais influenciariam o Governo Federal em favor do amigo de Goiás.
Você é besta de mexer com um trem desse!
Por cima, sabe onde fica o Duro? No fim do mundo. Por aquelas bandas
bandido é mato, e bandido ferozes, apoiados por políticos poderosos. Para essa
gente não há lei, não há nada.
Eram de ontem os horrores de Boa Vista, com gente picada viva, com
mulheres violentadas por dez, vinte homens, com virgensdefloradas e entupidas
de areia. Pedro Afonso ainda estava fumegando, destruída por Abílio Batata e
Roberto Dorado, amigos e companheiros dos Melos. Em Pedro Afonso esse
cangaceiro com

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seus cabras obrigaram a polícia a correr. Enéias Altino Peixoto que lá residia,
teve que fugir, perdendo fazenda, gado, casa comercial. Seu pai, sua mãe,
irmãos, tios foram mortos pela forma mais bárbara.
Depois de muita procura, um juiz aceitou a incumbência: o Doutor
Carvalho. Aquela oportunidade lhe vinha a talho de foice. Metido na pacatez de
Santa Luzia, ligado intimamente ao situacionismo, Carvalho viu nessa comissão
oportunidade para chamar sobre si a atenção dos dirigentes do Estado. No ócio
da comarca, Carvalho tivera tempo para fazer os cálculos.
No Espírito Santo levantou-se contra o governo porque o governo só tinha
funções públicas e oportunidades para os mineiros ádvenas, deixando os filhos
da terra, os capixabas, na penumbra dos carguinhos subalternos e mal
remunerados. Fora derrotado, tivera que vir para Goiás, enfrentar o sertão, o
desconforto, o atraso, a miséria.
Em Goiás, os anos corriam e Carvalho mofava napasmaceira da
comarca, pobre e esquecido. Brevemente os filhos estariam moços e ficariam
por ali sem instrução, casando com roceiros bestas, enquanto ele e sua ambição
se anulariam no comodismo, no atraso do meio, como um outro Doutor Hermínio
Lobato.
Carvalho não se conformava com isso. Via ali o povo inculto, via os
principais homens tão atrasados, e sentia que tinha inteligência e cultura para
sobrepor-se aos demais. Podia ser desembargador, presidente do Tribunal,
talvez até Presidente do Estado. Na pacatez do sertão, na solidão das divisões e
demarcações, Carvalho pensava e pensava seriamente.
No Espírito Santo tomara armas contra o governo que só tinha cargos
para gente de fora, para os mineiros; então, no Espírito Santo, dizia que o
governo de seu Estado utilizava os mineiros, porque eles eram dóceis à vontade
dos políticos, enquanto que os espíritos-santenses de origem não o eram.
Agora, no ermo do sertão de Goiás, Carvalho analisava sua situação e
compreendia que também ele era um estranho ao Estado de Goiás, era para
Goiás o que o mineiro era para o Espírito Santo — um pau-rodado, como diziam
os goianos no seu acendrado bairrismo. Para vencer, o caminho deveria ser
aquele que deu a vitória aos mineiros. Em Goiás deveria ser dócil às
autoridades, ser-lhes ”leal e fiel”, como diziam os mineiros do Espírito Santo,
prestar-se ao desempenho

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daquilo a que os da terra não se prestavam. O que lhe havia faltado era
oportunidade, mas esta agora chegava sob a roupagem do telegrama de João
Alves de Castro, convidando-o para ir ao Duro presidir o inquérito contra os
Melos.
Era uma missão recusada por muitos Juízes. Estivesse Carvalho em sua
terra, não aceitaria incumbência semelhante e ainda censuraria a atitude de
qualquer forasteiro, aceitando-a. Mas estava em Goiás, precisava melhorar de
situação, precisava livrar-se do sertão.
E o Carvalho aceitou chefiar a comissão, “a árdua, a honrosa missão” e
partiu para o Duro. Homem acostumado à luta, não se importou com o
comentário de Moisés Santana, companheiro e amigo de Artur Melo, no jornal O
Estado de Goiás, nem ligou à guerra de silêncio que os goianos de nascimento
fizeram à sua nomeação, ato oficial de um governo oligarca, empenhado em
anular o íntimo e poderoso aliado de ontem.
Pelo sertão, Carvalho marchava fazendo ouvido moucos às
murmurações. Saiba que os Melos erampoderosos, contavam com o apoio dos
Bulhonistas, pois o Coronel Pedro Melo e seu filho Artur foram os únicos chefes
políticos do Norte a apoiar a revolução vitoriosa de 1909, em Goiás. Além dos
Bulhonistas, apoiavam-nos o senador Gonzaga Jaime, o General Braz Abrantes
e o Desembargador Emílio Póvoa.
Este era um homem misterioso. De dentro do Tribunal traria o juís
comissionado sob constante bigilância; por trás das persianas sempre fechadas
de sua casa, trançava os pauzinhos, comandando meio mundo. O medo a
Emílio Póvoa tinha impedido que outros juízes se prontificassem a ir para o
Duro.
No começo em Goiás, com os goianos em hostil silêncio, Carvalho teve
receio de enfrentar a missão, mas sua confiança cresceu à proporção que se
afastava da Serra Dourada, de Emílio Póva, da pena cortante de Moisés
Santana, desses espíritos que viam nos Melos uns rebeldes à tirania dos
políticos dominantes na Capital do Estado
A comitiva já era de mais de meia centena de homens. Soldados e mais
soldados e mais soldados foram se juntando a ela no correr da viagem que
durava uns sessenta dias. Em Arraias, numeroso contingente policial juntaram-
se à comitiva. Algumas dezenas de homens sob

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o comando do Tenente Olavo Mendes, de Assis, de patente mais elevada do que
os Alferes Enéias, Severo, Xavier e Mariano.
De fato quem comandava era o Doutor Carvalho, que se lembrava do seu
tempo de revolucionário em Espírito Santo. Madrugadinha já estava ele de pé,
metido nas botas, enérgico e empertigado. Já havia feito sua ginástica sueca,
barbeara-se e ia acordar o cometeiro Anselmo, para o toque de alvorada. Os
oficiais piavam fino com o bicho!

NAQUELA NOITE, a derradeira que a comissão passaria em marcha, o sono


tardava. Havia a ansiedade de chegar, terminar uma marcha que se prolongava
havia meses ao relento, voltar a dormir, comer e morar debabco de um telhado.
As notícias alarmantes eram sempre renovadas. Não mais diziam que os
jagunços estavam no Duro, diziam que estavam na Grota, e em outras fazendas.
Diziam também que nesta noite, nesta véspera de chegar, nesta é que os
jagunços atacariam.
Outubro principiava, ainda não chovera, mas as águas não tardariam. O
calor e a fumaça sufocavam. As árvores já haviam se recoberto de novas
folhagens e os campos queimados reverdeciam. Boiava no ar o cheiro das mil
flores que nessa quadrada desabotoam pelo sertão. Noite e dia as cigarras
chiavam e os curiangos entravam pela noite adentro resmungando seu mau
agouro, em vôos cambaleantes pelas estradas. Cauãs também cantavam com o
mais rouquenho grito de maldição. Os soldados ouviam e se benziam. As
mulheres balbuciavam uma jaculatória. Era sinal de desgraça. No seu cantar, as
cauãs diziam: — Mata o homem, mata o homem. A isso, os curiangos
respondiam: — Puxa terra, puxa terra.
A comissão estava completa. A ela juntaram-se Vicente Lemes e Valério
Ferreira com suas famílias e mais Cláudio Ribeiro e Júlio de Aquino. No dia
seguinte, se Deus ajudasse, entrariam na vila e o Juiz Carvalho reempossaria
cada um em seu cargo, garantindo os soldados o exercício das funções.
Vicente era um dos que não dormia. Voltava de maneira bem diferente de
como saíra. Tinha saído corrido como um cachorro sem dono, com Artur os
ameaçando como se fossem criminosos ou vagabundos. Agora entravam de
topete levantado. Os Melos

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veriam o que era governo; o povo ficaria sabendo que na terra havia justiça e lei
capazes de submeter o vice-rei do Norte o poderoso Coronel Pedro Melo!
Por seu gosto, Vicente teria enfumaçado o povoado com foguetório.
Amigos e correligionários encomendaram dúzias de foguetes em Conceição e
Natividade para comemorar aquele dia, mas o diabo era a ordem do Juiz
Carvalho. Proibiu qualquer manifestação de agrado ou desagado. Nada disso,
as autoridades entrariam calmamente, seriam repostas em seus lugares e em
suas casas. Nada de represálias, nada de regozije.
— Uma pena! — lamentava-se Vicente Lemes, comentando essa ordem
com Ferreira. — Tanto foguete, oportunidade tão boa para amarrotar aqueles
Melos de uma figa!
— Teremos outras ocasiões... — disse sibilinamente Ferreira sublinhando
o dito com o riso fino. Por baixo da fisionomia de tuberculoso, Vicente Lemes
vislumbrou a ironia. Ferreira viu tudo aquilo, regozijava-se com a derrota dos
Melos, sentia-se envaidecido em poder reassumir seu posto sob garantia de
soldados armados, mas no fundo mantinha sua desconfiança. Sustentaria o
governo até o fim aquela atitude? Política tinha muita força! Valério Ferreira ria
seu riso fino:
— A luta não terminava ali. Apenas estava principiando. Não estava
vendo o promotor de justiça?
Vicente balançava a cabeça. — Pois é. Os Melos viram que Carvalho não
recusava e então usaram de outra tática: compraram o promotor.
A noite sertaneja desdobrava-se calma e bela. Pelos arredores da
minúscula casa de fazenda luziam as fogueiras dos soldados que se
acomodavam por aqui e por ali, debaixo de um jenipapeiro, sob o recavém de
um carro de bois, ou ao relento, sob uma banda de couro de boi, para
agasalhar-se do sereno grosso do fim da seca. Ao longe, o grito rouco de cauãs
e curiangos ou o grito de algum bicho no cio.
O acampamento era um grande pouso de tropeiro, as trempes
sustentando a panelinha de feijão que fervia com uma pele de porco, para o
almoço do dia seguinte, se os bandidos não matassem tudo esta noite.
Na rede, Ferreirinha lembrava a namorada distante, o estudo no Rio de
Janeiro. Teve saudades e se recordou de ímbaúba. Infe-

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lizmente sua voz não quebrava os ecos. Sua voz silenciara não só porque a
ordem do juiz era para permanecerem em silêncio, como porque o próprio
Imbaúba já não fazia parte da comissão. Foi em Arraias, num banquete. O
intendente municipal ergueu um brinde ao Juiz Carvalho. Agradecendo,
Carvalho conclamou:
— Era preciso que o povo do Norte de Goiás se reunisse para acabar de
vez com os jagunços baianos.
— Jagunços baianos não senhor — gritava Imbaúba, de pé, os braços
erguidos e a cara feroz. — Protesto em nome do grande Estado que deu ao
Brasil Rui Barbosa e Castro Alves!
— Precisamos pôr cobro a esses cangaceiros da Bahia — reafirmava
acintosamente Carvalho, com tal veemência que Imbaúba resolveu calar-se.
Ficou o resto do tempo com o focinho torcido, resmungando coisas que os
circunstantes não queriam nem interessavam ouvir.
Mais tarde, quando tudo dormia, Carvalho foi ao quarto de Imbaúba,
bateu, entrou lá dentro e reafirmou o que dissera: — Temos que pôr cobro a
esses jagunços baianos. — Ah, que é um desaforo — Imbaúba quis gritar. O
Juiz Carvalho recomendou-lhe calma e silêncio. Viera a tal hora para evitar
escândalo: — Não grite e nem faça fitinha. Eu disse e digo que são esses
jagunços baianos que infelicitam Goiás. Se você prestar, se você for homem,
venha me tapar a boca. Somos dois homens, um para o outro. Vamos ver quem
pode mais!
Imbaúba velho caiu das carnes, não tugia nem mugia, a cara emburrada.
Desde aí o promotor passou a viajar à parte, em companhia de dois camaradas
de confiança. Vinha atrás da comitiva, com um dia de atraso.
Boatos logo surgiram. Imbaúba era homem dos Melos. Havia sido
nomeado por descuido de João Alves; era uma vitória de Emílio Póvoa e
Gonzaga Jaime.

”Margarida vai à fonte,


Vai encher a cantarinha”

Na madorna Ferreirinha não sabia se era Imbaúba cantando ou se era a


banda da Polícia, na porta da Assembléia, no dia da partida.
Súbito, um tiro rouco de Comblain ecoou na noite. As senti-

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nelas gritaram. O acampamento se contorceu comoumb outras ordens
ergueram-se ali no meio. As armas retiraram»! nobra. Por trás de suas canastras
entrincheirou-se o Juiz Carvalho, na mão a Mauser, olhos na treva. Tudo escuro,
muito escuro, as fogueiras foram apagadas.
Com pouco, de um ponto incerto veio a notícia incerta, depois mais certa:
-- Rebate falso.
— Rebate falso?
— É. Rês. Ponta de rês. Vinha pela estrada em trote estugado
— Decerto pra lamber sal no cocho. Sinal de chuva.
— Gado que vem pra porta da fazenda, sinal de chuva!
— Sinal de chuva, espia lá, por trás do mato. — Eram rei pagos que
acendiam e se apagavam, clareando num breve instante o céu inteiro. E o vento
soprava, um vento diferente, cheira a água.
Lavradores na sua maioria, os soldados trocavam idéias ante a
aproximação das chuvas. Falavam de roças, contavam casos de vaquejadas,
relembravam cenas da infância, ou de tempos passados. Até os doentes, até o
maleitoso se reanimou.
— Esses Melos? A gente pode matar eles que nem bugre, Cê acha que o
governo vai danar? Acha é bom, só! dizia Mané Vitô em voz grave, reacendendo
a fogueira que desmanchara.
Gabriel observou que não fazia cerimônia:
— Quero passar a brasa logo nuns pares deles, que é mode ganhar üas
duas largatixas. Eu tenho que voltar pra Goiás como sargento, se Deus e a
Virgem Santíssima me ajudar eu.
Vento de chuva soprava a fogueira. No escuro, os curiangos gritavam
mais desesperadamente, abafando o choro das crianças dos soldados.

A VILA DO DURO era um formigueiro. Carvalho, primeiro, distribuiu as


autoridades pelas residências, dando-as por reempossadas. Valério Ferreira
voltou para seu sítio, Cláudio Ribeiro foi para o Cartório e Vicente Lemes para a
Coletoria. No sobrado do Largo, misto de prisão, mercado e depósito, aí se
aquartelaram os oficiais. Por outras casas, distribuíram-se os soldados,
entrincheirados em locais adequados, de modo a defender a vila de qualquer
ataque.

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Vicente Lemes ficou no casarão da sogra; não voltou para sua casa
antiga, perto da igreja, na frente da grota. Aí instalou-se o Juiz Carvalho.
Agora, em sua residência, o juiz ordenava o caos das bruacas,
cangalhas, canastras, mesa e livros, ajudado do escrivão Chaves e pelo Cabo
Ferreirinha. Arranjava o gabinete de trabalho.
— Dá licença, meu Juiz — pediu o ordenança, batendo sua continência
na porta.
— Que há?
— Seu Juiz, está aí na porta o Antônio Paulista, arrieiro do doutor
Imbaúba.... Quer falar com vossimecê.
— Reviste o homem, desarme e mande entrar.
Com pouco entrava Paulista de chapéu na mão, na ponta dos pés para
não retinir as esporas, a cara aberta num largo riso bajuldor:
— bom dia, Seu Doutor Juiz.
— Que Há, homem”?
— Seu Doutor, o Doutor Imbaúba... — Carvalho o atalhou, ponderando
que Imbaúba não era doutor não. Que Paulista dissesse Senhor Imbaúba. — ...
apois, o Senhor Imbaúba mandou a gente saber se ele tem permissão de entrar
na vila?
Carvalho não respondeu logo. Continuou como estava limpando da poeira
os livros que trouxera e os empilhando num banco. Na porta, Paulista virava e
revirava o chapéu velho e sebento, os olhos baixos à espera da resposta.
Por fim, Carvalho decidiu: — Imbaúba pode entrar, sim.
Porém Paulista ainda permanecia ali parado feito um dois de paus,
rodando sempre o chapéu, como se receasse dizer alguma coisa. Afinal,
desembuchou:
— O patrão quer saber mais se vossimecê aceita ele como promotor?
Novamente Carvalho embatucou. Continuou arrumando os livros e só
depois respondeu:
— Homem, diga-lhe que acabe de chegar, depois falaremos.
Carvalho vacilava. Será que conservava Imbaúba na Promotoria? Era um
sujeito muito à-toa, atrasado, besta. Mas sua demissão ia atrasar demais a
marcha do inquérito, favorecendo os Melos ou lançando um certo desprestígio à
comissão.
Paulista montou a besta, arrepiou caminho. Na sala, arruman-

73
do os livros, Carvalho sem deliberar. Para demitir o diabo do Imbaúba teria que
nomear outro promotor, o que só poderia ser feito pelo Presidente do Estado.
Essa nomeação dermndaria muitos meses. O meio mais rápido de comunicação
era o telégrafo de .Barreiras, na Bahia. De Duro a Barreiras um cavaleiro
gastava dez dias para ir e voltar, levando o pedido de demissão e trazendo a
resposta do Presidente do Estado de Goiás. Qualquer outro meio de
comunicação seria mais moroso ainda. Um cavaleiro para ir de Duro a Goiás e
voltar, não gastaria menos de quatro meses, prazo que seria dilatado pelas
chuvas que estavam entrando.
E encontrar ali uma pessoa competente para o exercício da promotoria?
Tinha que ser pessoa livre de influências políticas e possuidora de alguma
instrução. Quase impossível encontrar tais qualidades isoladamente, quanto
mais reunidas numa mesma pessoa!
— Vai ser muito difícil — concordava o escrivão Chaves com quem o juiz
trocava idéias.
— Com licença, Seu Juiz! — ”Diabo, de novo o ordenança! Que será que
ainda estava querendo? É verdade que tinha uma cara gaiata e maliciosa.” — O
senhor num quer ver um carnaval, Seu Juiz?
— Carnaval? — admirou-se o juiz, chegando àjanela,para onde já correra
o escrivão Chaves. No Largo passava um homem montado num burrão de oito
palmos de altura, cria de Lagoa Dourada, sem chapéu, envolto na bandeira
nacional, tendo na mão um papel que depois se soube ser a Constituição
Estadual, Pelo porte agigantado, pela cor enfumaçada, pelo cavanhaque de
mágico, Carvalho logo reconheceu: Imbaúba.
Atrás, no mesmo passo solene, num mutismo de doer, seguiam Antônio
Paulista e mais um camarada tocando cargueiro. Ao redor de todo o Largo
surgiam caras espantadas de soldados e paisanos. O espantalho estacou em
frente ao juiz, que mandou o ordenança convidá-lo a apear. ”Certamente está na
cachaça, esse porcaria.”
De cima do burrão, empertigado como um boneco, Imbaúba traçava no
ombro a bandeira que o vento teimava em açoita num tom pausado, proferiu:
— Requeiro para mim e para meus auxiliares uma habitação condigna —
com os longos braços fez um gesto envolvendo os ca-

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maradas. A bandeira despencou, ele a recolocou no ombro, e prosseguiu pelo
Largo no mesmo passo grave de assombração.
— Louco — disse Carvalho. — Só pode ser loucura. — O Tenente Mendes de
Assis aproximou-se da janela: — Como é, Seu Juiz, será que o homem ficou
louco?
— Sei lá! Mas louco ou não, isso não pode continuar. É uma desmoralização: diz
muito mal da comissão. Olha, tenente, vá lá e o intime a parar com a palhaçada
imediatamente. — Mal o oficial foi-se afastando, Carvalho completou: —
Tenente, ô tenente, olhe aqui! Faça esse tipo deixar a vila imediatamente. É pra
sair da vila já-já.
Deixou a janela, abeirou-se da mesa e chamou o escrivão Chaves:
— Redija aí um telegrama ao Presidente do Estado, Chaves, vamos lá.
Pedindo a demissão desse Imbaúba. Em caráter irrevogável, hem! Irrevogável.
Foi até à janela. Tenente Mendes de Assis discutia com Imbaúba, a seguir
tomou do freio do burro e saiu puxando.
— Ah, já ia esquecendo. Solicita a nomeação de outra pessoa para
ocupar a Promotoria. — Daí foi até a porta do fundo da salinha e gritou ao
Matias:
— Diga ao Tenente Mendes de Assis que me mande um soldado de
inteira confiança, um homem esperto, inteligente. É para levar este telegrama a
Barreiras.

RESSABIADOS e temerosos, os habitantes retomavam ao Duro. Dona Benedita


Fernandes chegou e ficou muito triste com o jardim. Tudo esturricado, tudo
morto. Nunca em toda a sua existência sentira uma sensação tão aguda de
abandono, de fim de tudo. Da janela, convocou pessoas para replantar as
roseiras, os craveiros. Queria ver flores logo.
Também Argemiro Félix, Moisés Melo, Alexandre, umas pessoas pobres
reocuparam suas casas e voltaram a suas ocupações.
Os Melos é que permaneciam ausentes, na Grota, onde diziam pululavam
jagunços e facínoras. Era gente vinda de São Marcelo, Formosa e Santa Rita do
Rio Preto. Ali estavam prontos para atacar a vila a qualquer instante, talvez
naquela mesma noite, quem sabe?

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No casarão de Dona Benedita contavam casos de Roberto Dorado,
Abílio Batata, o assalto de Pedro Afonso, o ataque de Porto Nacional. Falavam
de Enéias, a família dele trucidade por jagunços, a mulher grávida defendendo a
barriga donde tiraram o menino vivo.
Meio mês de espera. Afinal chegou o soldado de Barreiras com a
resposta do presidente do Estado: concordava com a demissão de ímbaúba. O
Juiz Carvalho indicasse outro nome.
— Ofície ao Intendente de Natividade, Chaves. Convide-o exercer as
funções de promotor de justiça.
De Duro a Natividade são 25 léguas que o cavaleiro vence em dez dias
debaixo da chuvarada, esbarrando com rios cheios ei estradas apagadas pelo
aguaceiro.
— Capaz do intendente não aceitar... — comentavam no casarão de
Dona Benedita.
— Ah, aceita, ele não aprova esses desmandos dos Melos não.
— Diz que Artur Melo enviou portador pedindo ao intendente para não
aceitar a comissão.
— Quem contou isso?
— Quem contou? Quem contou foi...
Com pouco, pelas estradas enlameadas partiam posítivos levando cartas
de Vicente Lemes, Valério Ferreira, Argemiro Felix e outros. Pediam aos amigos
que animassem o intendente a aceitar a Promotoria. Era preciso continuar o
inquérito que já estava ficando velho, com o povo descrente de algum resultado
positivo.
— Mas é um absurdo! Tem alguém que dê crédito? – É que estava
correndo boato de que o Juiz Carvalho iria recrutar o povo da região para servir
como soldado na defesa da vila,
— Recrutar só as pessoas? Meu marido tem certeza que vão requisitar
tudo quanto é mantimento do povo da roça. Vai ser um deus-nos-acuda!
Com isso, ninguém trazia mantimentos para o abastecimento da cidade e
do pessoal da comissão. Na vila, novas casas apareceram fechadas. Os donos
tinham fugido. A velha Chiquinha, o velho Albininho, Maria Coxa, o pedreiro, uns
pobres, foram de arribada. Nunca mais botavam os pés nessa terra infeliz.
Fugiam da fome, fugiam do recrutamento.
Vicente Lemes, Valério Ferreira, Argemiro Félix, os homens de maior
prestígio tiveram que tomar seus animais e ir de sítio em sí-

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tio, de fazenda em fazenda, de retiro em retiro avisando que aquilo não passava
de boato e ardil para atrapalhar o serviço do Juiz Carvalho: — O pessoal não
tivesse receio e permanecesse em paz.
— Viva o intendente! Aceitou o cargo — gritaram em casa de Dona
Benedita. — Novamente portador seguia para Barreiras, a fim de telegrafar ao
Presidente do Estado, indicando o nome do novo promotoi a ser nomeado.
Nos quartéis, Carvalho determinou uma disciplina férrea: exercícios
diários, trabalho de cavacão de trincheiras para o lado da Grota, sentinelas
dobradas em tomo da vila. Diariamente patrulhas percorriam as imediações,
perseguindo grupos de jagunços que igualmente faziam serviço de ligações.
Apesar, porém, dessa atividade, o fuxico entre a soldadesca e os oficiais era
uma sarna: — Cafubira baiana, quanto mais coça mais dana!
Um dia, Gabriel apareceu baboso, cambaleando, o cabelo caído na cara:
S’embora, pessoale. Isso aqui e o cu do mundo.
— Bamo, uai — responderam outros soldados também encachaçados.
Mendes de Assis meteu-os no tronco e deu uma batida na vila, apreendendo os
garrafões de restilo.
Aí, foi o jogo. Tão logo saiu o pagamento da etapa do primeiro mês, já
havia soldado sem um real, queixando-se ao comandante:
— É uma quadrilha, meu comandante. Uma quadrilha para tomar o
dinheiro da gente...
Peba, Mão Pelada e mais alguns foram trancafiados no tronco velho do
sobradão, mas a quadrilha só deixou mesmo de funcionar depois que o dinheiro
acabou. No segundo mês, a coletoria não tinha renda, o numerário deveria vir de
Goiás. Mas quando?
A jogatina cessou e em seu lugar surgiu a leitura de jornais muito
atrasados, chegados de Goiás.
— Leia aí pra nós, Seu Ferreirinha — pediam os soldados.
— Então, escuta. — E Ferreirinha lia a notícia estampada na folha: — A
gripe espanhola grassava na Capital, vitimando centenas de pessoas. O
governo estadual tomava providências, determinando o isolamento dos
enfermos. Também estava organizado um serviço de saúde para impedir que
pessoas saiam de Goiás e vão contaminar outros centros urbanos.
Adiante, vinham os nomes dos mortos. Era gente conhecida

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dos soldados, até alguns parentes. Lugar pequeno, coma aparentadas na sua
quase totalidade, a notícia da morte alarmava e entristecia o pessoal. Muitos
estavam chorando e lamentando a perda do amigo. O tísico também se
aproximou e com sua cara encaveirada ficou ouvindo a citação dos nomes.
Mané Vitô e Tonhá conversavam: — Tou ficando é cansado. Tomara que
esse juiz chama a gente logo, que eu quero é amarelar o pé desse tal de
Coronel Pedro Melo. Eu vou é logo na cabeceira.
— Mas o bicho tem gente por trás escorando.
— Que nada. A gente passa a brasa, o governo prende uns dias,
adispois vem a recompensa, só. Sou puta nova o quê!
Carvalho também leu os jornais e achou que era perigoso que a gripe
espanhola atingisse os soldados. Estava ali uma oportunidade para tomar uma
medida contra os fuxicos eos boatos. A mulherada de soldado era a maior
causa de rusgas, queixas, boatos e fuxicos. Ia valer-se do perigo da peste e
mandá-las para um sítio distante da cidade quase uma légua. Seria uma
maneira de estancar aquela fonte de inquietação.

AS NOTÍCIAS não transpiravam, trancadas debaixo de sete chaves. O que se


sabia era que o processo corria a galope. Nacasa de Cavalho o povo formigava,
o lampião de querosene aceso até noite velha, os escrivães enchendo folhas e
folhas de papel almaçal a chegada do novo promotor, o processo corria em
segredo de justiça, as autoridades trabalhando dia e noite, ouvindo
testemunhas, fazendo acareações, realizando diligências, intimando mais e mais
pessoas.
Certo dia, a casa do Coronel Pedro Melo, que estava fechada amanheceu
aberta.
— Será que o coronel está aí?
— Não. Foi a polícia que mandou abrir para dar busca.
Por fim, esclareceu-se. Nela estava arranchado o Doutor Leite Ribeiro,
aquele advogado terrível que botara o pobre Juíz Hermínio Lobato no cabresto.
No mesmo dia, de noite, Leite Ribeiro foi visitar o Juiz Carvalho, visita de
cordialidade.
— O senhor compreende, Doutor Carvalho, por aqui são tão raros os
bacharéis, como nós, que me apresso em vir bater umm papinho com o colega...

78
Os oficiais estavam presentes e nenhuma alusão se fez aos Melos, ao
inquérito ou à política. ”Que será que esse excomungado veio fazer?” —
perguntavam em casa de Dona Benedita.
Nas noites seguintes, lá estava Leite Ribeiro em palestra, tão cordial,
falando de tudo, menos do inquérito. Também Carvalho se precavia. Não
perguntava o motivo da estada do colega, afastava qualquer alusão à comissão.
Mas uma noite, Leite Ribeiro se valeu de uma deixa e ponderou que
Carvalho estava sendo mais realista do que o rei, que o caso do Duro era um
simples caso de família. Os políticos é que pretendiam tirar proveito da situação.
Carvalho protestou: — Que caso de família, Doutor Leite! Caso de coação
de autoridades constituídas, de sedição, isto sim.
— Não sejamos trágicos — retrucou o advogado displicentemente, dando
ao incidente proporções ridículas. — O senhor não conhece o sertão. Isto aqui
está na era patriarcal, em pleno período bíblico. O patriarca Pedro Melo puxou
as orelhas ao sobrinho Vicente Lemes e o sobrinho se rebelou contra o
corretivo. Nada mais, nada menos do que um problema doméstico.
— O senhor é quem está torcendo os fatos, Doutor Leite. Vicente não é o
sobrinho. É o coletor estadual.
O advogado prosseguia manhoso:
— Não sou advogado da questão, não tenho interesse algum, devo
grandes favores ao Doutor João Alves de Castro, mas pode estar certo que há
muita exploração em tomo do caso. Olhe, Senhor Juiz, para início de conversa,
vamos indagar: quem chefiava o assalto ao Cartório?
— De acordo com todas as informações foi Artur Melo com ajuda do pai!
— Carvalho estranhava demais uma pergunta daquela. Artur mesmo nunca
escondeu sua chefia no assalto!
— Ah, ah — bradava de seu tamborete o advogado. — Vejam como
distorcem a verdade! Quem chefiava o assalto, meritíssimo, não foi Artur nem
seu pai; foram os irmãos Chapadenses, Seu Juiz, para vingar o irmão. — Nesse
ponto, abaixando a voz e achegando-se do ouvido do juiz segredou-lhe: —
Vossa Excelência sabe quem são os Chapadenses? Uns facínoras, uns
celerados. Ir contra os Chapadenses seria crassa tolice. Então Artur entrou no
meio da turba, para evitar mal maior. Compreende Vossa Excelência? Para
evitar que pessoas morressem, Artur tomou a dianteira e exi-

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giu a reforma do processo, ou seja: sua feitura, logo... Leite Ribeiro tirou o lenço
perfumado, limpou a escuma dos cantos da boca e ajeitou a gravata.
Carvalho balançava a cabeça. Se compreendia! Compreendia de sobra.
Como os Chapadenses viviam foragidos, era muito interessante atirar sobre os
ombros deles a culpa de Artur Melo. Golpe inteligente de advogado, que
Carvalho logo percebeu. Por isso, redargüiu:
— Se o Coronel Artur provar isso, é com o maior prazer que eu o isento
de culpa. Entretanto, bem difícil será a Artur negar que ali nas barbas da
Comissão matinha homens armados para coagir o pronunciamento da justiça,
para cercear o livre exercício das autoridades.
Leite Ribeiro afirmava que o juiz estava com prevenção. Os Melos eram
gente cordata. Ele podia afirmar que os Melos queriam um acordo: Carvalho
desse sua palavra de que os pronunciaria, e a João Rocha, e eles dispersariam
os cabras imediatamente.
Por trás de sua mesa, Carvalho ria:
— Não, meu distinto colega. Os termos do acordo tèm que ser outros:
primeiro, os Melos dispersassem os jagunços, depois conversariam sobre as
possibilidades de impronúncia. De antemão posso dizer que a impronúncia é
muito viável, muito viável -- obtemperou o juiz.
No outro dia cedo, Leite Ribeiro e sua comitiva deixaram a vila. O povo
perguntava curioso qual havia sido o motivo da visita, mas ninguém sabia
informar. O que diziam era que, a menina que Maria Pequena criava tinha
apanhado barriga e era de soldado. Maria Pequena botava a mão na cabeça:
— Filho alheio, brasa no seio, comadre Januária.
— Por que que a senhora não procura o juiz, Dona Maria? Ele é homem
do direito, talvez possa valer à senhora.
O diabo, porém, que a tal ”menina” tinha seus trinta anos bem criados e
curtidos. Como lá diziam, tinha dez de nascimento e vinte de gamela. Vivia por
ali fazendo rendas de bilro, refinando açúcar e torrando café, sem que nenhum
homem se interasse por suas graças, pois que ela as possuía. Agora, no fim, via
a pobrezinha tão desprezada, enxergava seus encantos, dizia-lhe belas coisas
aos ouvidos e lhe deixava um filho no bucho. Pelo po-

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voado Maria Pequena formulava seus lamentos, mas o processo ocupava
demais as atenções.
— A coisa está fedendo a chifre queimado! — exclamavam em casa de
Dona Benedita. No varandão sempre cheio de gente comentavam que o juiz
mandou intimar Doutor Herculano Lima, genro de Artur, e Anastácia, filha de
Pedro Melo, para deporem e que eles não atenderam à intimação. Diziam que o
juiz planejava enviar um grupo de soldados à Grota para trazer as testemunhas
recalcitrantes. O Tenente Mendes de Assis, diziam, separava nos quartéis os
melhores soldados para essa diligência.
— Será que o juiz tem coragem? — perguntava Ferreira. — Olha lá que a
Grota é uma fortaleza, com mais jagunços do que soldados do juiz.
Moisés contava que o juiz ia à Grota para buscar o processo de inventário
da viúva de Clemente Chapadense.
— Que processo de inventário, que nada! O que o juiz quer é pegar o
Imbaúba que agora é gente de Artur e anda ensinando manhas para eles.
Cresceu tanto o diz-que-diz que Carvalho mandou chamar alguns
cidadãos em seu gabinete:
— Então, Seu Moisés, estive sabendo que o senhor anda por aí
espalhando boatos, não é assim?
— Eu, Senhor Doutor? Eu não.
— Sim senhor, é o senhor mesmo, Seu Moisés.
— Deve de ser engano, Seu Juiz. Sou homem que vivo metido só’com
meu trabalho. Isso é mentira de algum inimigo.
— Matias, traga aí do quarto o Malaquias — ordenava o juiz. Ao chegar, o
juiz perguntava: — Então, Seu Malaquias, que foi que o senhor ouviu da boca do
Senhor Moisés de Melo,’esse homem que está na sua frente?
— Ele falou assim pra mim que o senhor ia na Grota, mode trazer o
processo de inventário da viúva e que tava até juntando soldado.
— Está ouvindo, Seu Moisés? Está ouvindo como não é intriga? Agora o
senhor vai para sua casa e não me tome a soltar boatos. Não fique falando
coisas de que não tenha absoluta certeza. Veja lá como se porta de hoje em
diante, hem!
A seguir ordenava ao Matias que recolhesse o Malaquias ao

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quarto e mandasse entrar no gabinete outro boateiro para repetir a cena.
Com isso, os cochichos desapareciam por alguns dias. Voltava à bailaa o
caso de Maria Pequena. A mulherzinhata tanto mexeu, tanto gemeu e chorou,
que um dia Mendes de Assis mandou formar todo o destacamento. Maria
Pequena e a menina passaram em revista os soldados, tentando identificar o
Dom Juan. Debalde! Por uma hora a menina foi e veio por entre as filas de
soldados perfilados, examinado cara, bigode por bigode, corpo por corpo.
— Pudera! É tudo dum jeitinho só — disse depois a menina para a
madrinha Maria Pequena.

LONGAS, longas e silenciosas, as noites do Duro pareciam não ter fim. Os dias,
apesar da pasmaceira, eram cheios com o trabalho. Mas as noites! Os sapos
coaxavam, a chuva chiava na saroba, os grilos trilavam e Carvalho não dormia.
Sobre a mesa de trabalho estavam os autos do processo de inquérito,
onde os depoimentos, as provas indicavam a culpabilidade dos Melos. Por que
então não decretava a prisão deles? – Perguntava-se Carvalho. Não estavam
eles ali ao alcance da mão a poucos quilômetros de seu gabinete?
Na cama, Carvalho virava-se e revirava, sem encontrar jeito de dormir, de
acomodar-se, como se o diabo daquela cama fosse de espinhos, de cacos de
vidro. Que falta sentia da esposa, de sua companhia, de seus carinhos. Seria
uma pessoa com quem conversar, com quem trocar idéias, com quem falar de
amor. Que saudade de seu corpo!
Ali, bem que o promotor lhe falara de umas tantas mulheres com as
quais não seria difícil uma noitada de amor. Entretanto, não queria
complicações. Lugar pequeno, logo a notícia corria e ia acabar em amolação.
Tinha a esposa, achava que devia ter fidelidade e, sobretudo, era preciso
guardar as conveniências.
Contudo, quem sabe se poderia conservar segredo? O promotor até lhe
mostrara alguma. Pareceu bonita, viva, ardente. No vestido malfeito vislumbrou
uma cintura fina, umas ancas forte, grandes nádegas. Seria pulga? Seria
percevejo? Amanhã iria mandar o Matias que examinasse direito a cama. Havia
umas picadelas.

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Lá fora, a chuva chiava, uma chuva igual e sem pressa, os sapos
roncando. Na verdade as provas estavam nos autos, os indiciados ali pertinho,
no sítio da Grota, mas o diabo é que a Grota era uma fortaleza cheia de homens
armados e municiados. Se tentasse atacar a Grota, a polícia seria derrotada,
sua missão fracassaria, seria a perda da confiança de Totó Caiado, seria a perda
do lugar de desembargador, de deputado federal.
Carvalho se viu novamente metido na sua comarca pobre, esquecido,
com os filhos atrasados e brutos, as filhas empencadas de meninos catarrentos,
anêmicos e mal vestidos. Carvalho revirava-se para lá e para cá. E a mulher de
que lhe falou o promotor? Apagava-se, não despertava nele o mesmo desejo de
há pouco.
Sobre um caixote, na cabeceira da cama, empilhavam-se, mudos, os
maçudos livros de direito. Não tinham serventia naquele momento, em que o juiz
necessitava não de letras, mas de uma coisa que os tratados não ensinavam, de
algo imponderável que nem os mais cultos e eficientes professores transmitem
aos alunos. Necessitava de tretas, de muita treta para enfraquecer a Grota, para
dispersar os jagunços dos Melos ou ludibriá-los.
Um animal tosava o capim do Largo, na noite cega e molhada, num ritmo
soturno: — crou, crou, crou. O mesmo ritmo com que as fontes do juiz latejavam
de ansiedade e de desespero. Enfraquecer a Grota era o único recurso. Mas
seria a Grota, de fato, tão forte? Carvalho duvidava. O povo do lugar era muito
fantasioso, era muito ingênuo, receava demasiadamente os Melos, dando a tudo
o que era deles um aspecto assombroso! Ah, se pudesse ir à Grota examinar a
força dos Melos! Se estivessem fracos, a polícia atacaria; se notasse que
estavam fortes, ali mesmo faria um acordo com Artur Melo!
Fora, o diabo do animal parara de pastar e urrava, como se estivesse
com garrotilho, longos e dolorosos acessos de tosse.
Estava tudo muito certo, mas como se apresentar na Grota? Os Melos
não o deixariam entrar... Por cima, acordo? Nas bases propostas por Leite
Ribeiro era impossível.
O animal gemia. Era um cavalo, que vira no dia anterior, com uma coleira
de sabugos queimados, como simpatia contra o garrotilho. Amplas ancas.
Mulher ardente — dissera o promotor.
Súbito, num repelão, Carvalho sentou-se na cama: e o inventário de
Clemente Chapadense? Não estaria ele em poder dos Me-

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leos? Sim. Estava. É sob a alegação de buscá-lo,podiaexaminar a Grota,
certificar-se da força dos Melos.
Na solidão do quarto, Carvalho sorria: -- Essa minha cachola! Nunca
falha! Confiante, acalmava-se, para trocar planos. Iria à Grota para busca e
apreensão do inventário. Seria uma diligência. Se ali percebesse que de fatos
Melos estavam fortes, faria um acordo com Artur Melo. Faria o acordo na base
da proposta do Doutor Leite Ribeiro. Justamente. No momento, rememorou
aproposta e não lhe pareceu apior: Carvalho impronunciaria Artur Melo e o pai,
no caso de eles dispersarem os jagunços e comparecerem a juízo.
Lá fora, a chuva cessava, e uma viração forte soprava, fazendo gemer as
baneiras e mamoeiros do do quintal. Carvalho abriu a janela para refrescar a
cabeça que escaldava. Estrelas brilhavam no céu, onde asnuvens eram
manchadas esgarçadas. O juíz complementava o plano: uma vez que os Melos
dispersem os jjagunços, enfraquece a fortaleza, a polícia prenderá Artur Melo e
o pai, levando-os incontinenti para Goiás.
Aquele era o plano. Agora era executá-lo. O principal era ter coragem, era
ter ânimo para enfrentar os Melos com esse plano de deslealdade e de traição.
Requeria muita habilidade para realizá-lo. Maisque habilidade: arte.
Pela cabeça de Carvalho veio a lenbrança do teatrismo escolar de sua
cidade. Mestre Otacílio repetia a propósito de tudo: o teatro é a vida. Naquele
instante Carvalho percebia a grandeza de tal afirmativa tão trivial e tão simples.
Tinha que representar seu papel muito bem, sob pena de perder a oportunidade
de melhorar de vida, de fugir ao pântano sufocante do sertão, sob pena de
acabar como um Doutor Hermínio Loato, ingênuo e incapaz. Antevendo os
horrores do sertão, sentiu que não tinha tempo a perder. Foi à varanda e sacudiu
levemente o ordenança Matias. Que fosse chamar o Alferes Severo. Mas não
acorde os demais oficiais... é segredo, hem!
Rapidamente os animais chagaram dos pastos, foram arreados e antes
das cinco horas da madrugada, antes que o dia clareasse,o juíz Carvalho, o
Alferes Severo, o escrivão Chaves e o ordenança Matias deixavam a vila e se
dirigiam para a Grota.
Saindo, o juíz Carvalho,ordenou com rispedez:
-- Olhe lá! Nós estamos dormindo. Eu, o Alferes Severo, e es-

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crivão Chaves e o Cabo Matias. Não diga a ninguém — mas a ninguém mesmo
— que nós saímos. Olhe lá -- recomendou mais uma vez ao cozinheiro
Alexandre. — Num carece de ter susto, Seu Doutor.

EM DEZEMBRO o dia acorda cedo. As chuvas já tinham caído abundantemente


e o chão era só verdor. Pela estrada pedrenta, quatro cavaleiros marchavam
quietos. Entre eles, o Juiz Carvalho. Ia em diligência à Grota, fazer busca e
apreensão dos processos subtraídos por Artur Melo ao Cartório.
Os cascos ferrados de novo estalavam nas pedras. As plantas do mato e
do campo floresciam e perfumavam a madrugada na qual os pássaros já
cantavam e os insetos começavam a zumbir. Ninguém conversava, cada qual
metido com seus próprios pensamentos. Ir à Grota era empreitada perigosa.
Que haveria no fundo daqueles socavões?
O juiz imaginava. Logo que chegasse, intimaria Artur Melo a entregar-lhe
o processo de inventário da viúva. Se fosse obedecido, muito bem: se não fosse,
paciência!
O que Carvalho pretendia era tomar pulso da verdadeira situação dos
Melos, saber se estavam mais fortes ou mais fracos do que a polícia. O plano
estava firmado: se os Melos estivessem fracos, era voltar, reunir a tropa, atacar
o reduto e prender os indiciados; se estivessem fortes, aí Carvalho teria que
manobrar, obter um acordo, conseguir um meio de enfraquecer a Grota. O juiz
confiava na sua inteligência, na sua habilidade, relembrando as palavras de
mestre Otacílio: o teatro é a vida.
Pelas pedras, os cascos recém-ferrados dos cavalos estalavam. Em cada
grota, agora, murmurava um filete d’água. Na baixada, a névoa quase encobria
os buritis que retremiam na manhã os penachos de um verdor severo. Carvalho
sabia que estava enfrentando perigo. Grota era uma fortaleza cheia de homens
valentes, violentos e acostumados a dobrar as autoridades que até ali tinham ido
com incumbência de apurar fatos.
O soldado Carajá contara a Carvalho. Carajá tinha esse apelido por
descender dessa tribo indígena. Seu trabalho era vigiar a Grota. com seu faro de
animal do mato, com sua sutileza de andar, com sua capacidade de ocultar-se e
confundir com paus e pedras, desde há muito Carajá vivia pombeando a Grota.
Certa vez

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chegou a entrar dentro do curral da fazenda e espiar os cômodos. Viu muita
arma, cunhetes e cunhetes de balas, muita gente pelo engenho e oficina de
farinha, muita negra lidando na cozinha. Vira o velho Coronel Pedro Melo com
sua barbaça branca trançando uns laços de cabresto.
Uns cavalos deram o alarma. Pegaram a bufar, a correr pelo curral,
relinchando e escavando o chão, como fazem quando pressentem onça. Em
dois pulos Carajá ganhou um vale e, cachorros pegaram a latir e farejar seu
rastro, já estava longe no alto da serra, de onde ainda avistou gente batendo os
arredores do sítio.
Por isso, Carvalho sabia que corria perigo. Não se enganava, nem Carajá
o enganara. A prova estava ali. De um lado e de outro da estrada viam-se
trincheiras abertas, por onde surgiam cabeças de homens e canos de carabina.
O sol nascendo fez brilhar alguma coisa no viso da serra. Era um cano de
Comblain, daquelas espingardas brunidas que Pedro Melo possuía. Por trás da
Comblain alguma coisa alvacenta de agitava.
— Olha lá a barba do velho — disse Severo.
As trincheiras e tocaias principiavam desde um quarto de légua da vila,
desde o cruzeiro das almas.
— Cachorrada! — xingou Severo. — É uma afronta!
Desciam a serra, entravam no aclive que levava à fazenda. Severo disse
para o ar:
— Com jeito que o pessoal foi pego de surpresa, com todo aparato de
defesa... Alferes Severo queria com isso fazer crer que aquela história de que
havia espiões no meio da polícia era apenas maledicência. Carvalho, porém,
acreditava na existência de espiões de Artur e por isso respondeu prontamente:
— Penso o contrário. Justamente o contrário. Parece que estão de
sobreaviso, exibindo o poderio...
Nesse momento, os animais transpunham as grotas do declive que
levava à fazenda, o Cabo abria a porteira do curral. Pelas portas e janelas
aparecia gente que a seguir desaparecia. Dezenas de cachorros avançavam
latindo:
— Passa, cachorro. Sai, bocanegra! — Pessoas que saíam à porta da
casa para receber os chegantes enxotavam os cães. Artur Melo em pessoa e
outros receberam o juiz e seu séquito, introduziram na sala e seguiram-se as
apresentações.

86
— Aqui, meu genro, Doutor Herculano Lima, médico, formado pela
Faculdade do Salvador; este é o rico proprietário Joaquim Alves Leandro.
Carvalho também se apresentou e aos demais, assentando-se todos
pelos bancos e tamboretes. A seguir, levantando-se, o juiz se dirigiu a Artur
Melo, dizendo que ali estavam para proceder a busca e apreensão do processo
de inventário que Artur subtraíra ao Cartório.
Ante o inesperado, Artur amarelou, mas logo protestou: — Não aceito a
intimação... O processo corre irregularmente... Nós estamos cerceados em
nosso direito de defesa e... e... e o processo não está em meu poder. —
Alinhava tantos argumentos que o juiz notou que Artur escondia a verdade, que
procurava naquela abundância de argumentos antes convencer a si do que ao
interlocutor.
Também pálido, Carvalho constatava: — Não havia no processo qualquer
irregularidade; as citações, as notificações tinham sido feitas com observância
da lei; os Melos não se defendiam porque não queriam.
— Nós, nós... — Uma breve altercação se estabeleceu. Mais gente surgiu
de dentro da casa. Carvalho terminou por dominar a situação, afirmando
teatralmente, com sua maneira categoria de falar:
— Estou aqui para apurar a verdade dos fatos. No cumprimento do meu
dever, enfrento até a morte! O senhor me franqueie seus cômodos para busca
do processo.
Artur Melo baqueou. Percebeu que Carvalho ali estava para o que desse
e viesse. Como diziam, Carvalho tinha coragem e não temia a luta. Quem é que
tinha topete para dar busca na Grota, ainda mais sozinho! Artur percebia que o
juiz não estava ali para cumprir um dever funcional. Ele podia ter cometido a
diligência ao oficial de justiça. Carvalho ali estava, principalmente, para mostrar
a Artur e a seu povo que não temia ninguém e que no cumprimento do dever
enfrentaria até o diabo.
Artur vacilava. Sabia que a força de Carvalho era pequena para enfrentar
a Grota, mas, que diabo! Se se atrevia a vir até ali, deveria contar com alguma
garantia! Não estaria Artur enganado sobre o efetivo da tropa do Duro? Não
estava enganado. O que podia haver era que o juiz esperasse tropas de reforço
da Capital... Mas também isso não era verdade. Emílio Póvoa, Senador Gon-

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zaga Jaime não avisaram nada... Artur vacilava. Inteligente e sagaz, sabia
recuar quando nisso havia conveniência. Por isso, mudou de tom:
— Embora reconheça as nulidades do inquérito, Senhor juiz como chefe
político, como ex-deputado, respeito as leis eas autoridades constituídas.
Compreendo e respeito sua missão e sua função de juiz.
Respondeu-lhe prontamente Carvalho, no mesmo tom de quem rasgasse
seda, mas com energia: — Confiado nisso foi que vim aqui, Senhor Deputado.
Fiz ouvido mouco a todas as notícias correntes sobre sua fazenda. Vim à Grota
porque confiava nos senhores. Os senhores não podem ser uns chefes de
jagunços.
Na sala entrou o Coronel Pedro Melo e com ele uma certa inquietação.
Era pouco mais alto do que o filho, enxuto de carnes, mas robusto, com uma
vasta barba branca que lhe vinha até o peito. Estava meio magro. A úlcera do
estômago voltara a roer-lhes os bofes. Foi com muita dificuldade que a filha
Anastácia e o
Genro Tozão o demoveram de entrar na sala armado com a Comblain, como
viera da trincheira. Contudo, ainda veio de esporas, da cabeça aos pés, o
chapéu de couro na cabeça e a taca pendente da munheca... Chegou, postou-
se entre o filho e o juiz, dizendo entre resfôlegos:
—Doutor Carvalho... pela fisionomia vejo... tratar-se de homem de
caráter... e animado... — Em seguida, como o filho lhe dirigisse determinado
olhar, o velho afastou-se e assentou-se num tamborete forrado de couro de
jaguatirica. De pé, Artun afirmava de maneira decisiva que não possuía o
inventário. Os autos
estavam na posse da viúva, Dona Rita Chapadense.
— Se é assim... —Carvalho fez um gesto, como a dizer que ia tomar
outra deliberação, mas Artur o atalhou:
— Contudo, para demonstrar minha atenção ao Meretíssimo Juiz, para
testemunhar-lhe meu desejo de cooperação, vou mandar buscar o processo.
Carvalho não se deixou enlear pela lisonja. Pedia a Artur lhe dissesse em
quanto tempo se comprometia a entregar os autos.
— Daqui a duas horas. — Assim dizendo, o Melo corria os olhos pela
sala. Nas portas e janelas amontoavam-se homens. Dezenas e dezenas de
sertanejos mulatos, negros, louros, foscos, vestidos

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de algodão tecido em casa, pé no chão ou de alpercatas, chapéu de couro na
cabeça, armados de rifle, ou simples garrucha e punhal. Artur dirigiu-se a um
deles, trocou algumas palavras e o bicho saiu, tomou de um cavalo, bateu a
porteira. Artur voltou a ocupar o assento, o juiz dirigiu-lhe a palavra e a palestra
pegou a animar-se, pegou a ficar mais viva, num tom cordial de visita.
— Por que é que você não deixa o terreno das armas e da violência,
Coronel Artur? Você é advogado, parlamentar, jornalista, você sabe que a
violência e a truculência não levam a bom termo.
— Mas nós não podemos confiar no governo! — retrucou Artur. — Ele
coloca os cargos públicos em mãos de nossos adversários, para nos perseguir...
— Entendo que não há essa intenção. Os funcionários são parentes seus,
gente indicada por vocês mesmos.
— Sim senhor. Nos sentimentos sem garantia. Para defender minha vida,
tenho que manter em armas mais de cem rapazes — fez um gesto no rumo das
portas e janelas por onde os cabras já se agachavam, pitando e cuspindo.
— E é já que vamos ter pra mais de trezentos no coice da repetição, com
a graça de minha mãe Maria Santíssima — disse de lá o velho Pedro, tocando o
chapéu com a pontinha do dedo encardido. Carvalho os interrompeu com uma
pergunta:
— Qual é o fato que mostra não ter o governo dado garantias aos
senhores?
— Ih, são tantos, tantos!
— Cite apenas um, coronel — insistia Cavalho, mas Artur prosseguia:
— Sabemos de fonte limpa que o senhor, Seu Juiz, recebeu instruções do
Desembargador João Alves de Castro para nos perseguir.
Novamente a voz clara, de nítido acento piauiense, do velho Pedro Melo
se ergueu:
— Nós sabemos de tudo. Ainda que a gente esteja coberto de razões, o
senhor vai querer meter a gente na cadeia... Rá! Nós sabemos de tudo. Nós não
somos bestas não...
Carvalho formalizou-se:
— Coronel, se não compreendesse que a paixão o está cegando, eu
repelia suas palavras como insultosas à minha toga! — Havia

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tragédia na voz de Carvalho. Os Melos, também eles metidos a cavalheiros, a
inflexíveis, também os Melos se impressionaram com a teatralidade do juiz, que
afirmava dogmaticamente.
— Saibam que sou um juiz. Estou aqui não para perseguir ou fazer
injustiça. Aqui estou para apurar a verdade. Se apurar que o Desembargador
João Alves errou, podem estar certos, ou o condenarei. —Fez-se uma pequena
pausa.
—Posso ser castigado mas condenarei.
As palavras de Carvalho eram ditas com tal firmeza, com tal solenidade,
que comoveram os homens. Carvalho completou:
— Já disse e meus atos são o penhor; no cumprimento do meu dever
enfrento a própria morte. E enfrento sorrindo, satisfeito!
O silêncio caiu. Ninguém falava. Carvalho sentiu que a seuspróprios
ouvidos as palavras soavam bem. Ele mesmo estava emocionado com as
próprias palavras. Alferes Severo tinha cada olho do tamanho de uma laranja, a
boca muito aberta. Nunca vira um juiz tão furioso, tão grandioso na sua ira.
Carvalho sentiu que caíra do goto daquela gente que gostava desse negócio de
“palavra de honra”, ”dever cumprido”, ”enfrentar a própria morte’ “derramar
sangue”. Carvalho também gostava disso.
A cada instante Artur Melo se convencia de que Carvalho ali estava
porque assim achava que devera proceder. Estava ali por coragem, estava ali
por deferência a eles Melos. Tanto era assim que não mandou o oficial de
justiça. Veio em pessoa. Era uma honra, por sem dúvida. Então não saberia o
juiz que a Grota era uma fortaleza, com mais gente e mais armas do que o
destacamento
policial do Duro?
Por trás de tudo havia alguma coisa que Artur não entendia. Novamente
voltava a tomar corpo a idéia de um acordo. De há muito vinha teimando com o
pai que melhor seria fazer um acordo com Carvalho, pois aquele juiz não era
graça não. Agora, naquele momento, isto lhe voltava à cabeça. A luta estava
saindo cara. Havia já meses que mantinham homens em armas, sem nada
produzirem. Os sítios estavam parados, os vaqueiros e camaradas fugiam
diariamente, alguns até levando reses. Não produziam rapadura, nem açúcar,
nem farinha, nem coisa alguma. Nem roça viam plantado. Estavam comprando
mantimento, numa região em que ninguém produzia o bastante para vender. Era
gasto e mais gasto com arma de fogo, munição, mantimento!

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Para agravar, na Grota eles estavam praticamente prisioneiros. A
polícia mantinha, no diário, piquetes pelos arredores, impedindo a saída e a
entrada de gente e de coisas. Por mais de uma vez tinha havido escaramuças
de parte a parte. Se Artur Melo quisesse recuar para a fronteira da Bahia, para
entrar em contato com os boiadeiros amigos e com os amigos baianos, a polícia
não permitia. A polícia podia não tomar a Grota, mas quem podia garantir que o
diabo do Carvalho já não houvesse solicitado e exigido reforços de Goiás?
Como vinha matutando desde muito, Artur caçava um jeito de entrar em
acordo com Carvalho. Diria que estava de pé a proposta feita pelo Doutor Leite
Ribeiro. Aceitava dispersar os cabras e uma vez dispersos, comparecer a juízo
para defender-se. Alegaria que o assalto ao Cartório fora promovido pelos
Chapadenses. A condição era que o juiz impronunciasse a ele, ao pai e ao
compadre João Rocha.
De seu lugar Artur nem ouvia o que dizia o juiz, absorvido em suas
cogitações. É que havia uma particularidade que o juiz não saberia jamais.
Embora prometesse a Carvalho dispersar os rapazes, Artur não os dispersaria.
Ai, é que estava busílis. Levaria os cabras para o Açude, fazenda situada mais
para a fronteira da Bahia, onde teria liberdade de movimento, onde poderia
entrar em contato com os amigos de Barreiras, onde teria tempo de prevenir-se
em caso de um ataque da polícia.
Os planos de Artur estavam bem delineados: enviava os rapazes para o
Açude e apresentava-se a juízo. Se Carvalho não cumprisse o trato, se Carvalho
o pronunciasse ou prendesse os cabras atacariam a vila. Seu plano era esse e
era um plano sem merma. Naquele momento Artur se resolveu. Tinha que
Propô-lo a Carvalho e tinha que executá-loantes que pudesse chegar reforços
para o juiz.

NO SEU ENFÁTICO linguajar de arrazoado, Carvalho pontificava:


-- Ademais, cumpre ponderar que o Doutor João Alves de Castronão é homem
desse feitio. Antes de presidente, é um magistrado, um homem para quem o
direito está com quem o tem. Seria incapaz de me transmitir ordens de per
seguição, não somente porque não é de seu estofo normal, mas também porque
sabe que jus-

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tiça de seu Estado não se presta a oprimir e esbulhar. Eu aconselharia a Vossa
Senhoria que que se defendessem, que fizessem as provas que lhes são garantidas,
para o próprio bem da justiça.
O velho Coronel Pedro Melo, que até ali tudo ouvia em silêncio, sem
compreender quese nada, levantou-se de seu tamburete. O vulto grosseiro, ossudo,
com a grande banha branca, a roupa de couro de catingueiro, a cabeleira desgrenhada
e maltratada, seus gesos estabanados, era simplesmente impressionante. Caminhou
para o escrivão Chaves. A figura jovem do escrivão, seu ar sério, seu semblante
acolhedor parece que comoveram o velho, que estendeu a pesada mão calejada e
encarquihada pelos anos, pousando-a no ombro do rapaz:
-- Moço, mecê é nosso conterrâneo, olhe pela nossa causa.
Era tão ingênuo o pedido do velho, que o moço sentiu-se atrapalhado. Que é
que podia fazer o pobre escrivão pelo todo-poderoso Melo? A ele é que cabia defender-
se, comparecer a juízo, constituir advogado, arrolar testemunhas. O jovem sorriu!
-- Nada depende mim, coronel. Sou uma máquina. O senhor deve ter confiança
nas autoridades, no governo.
Mas por baixo da barbaça, quem ria era o velho Coronel PedroMelo. Ria da
hipocrisia do escrivão. Ou seria ingenuidade dele? Confiar em autoridades, ele que
sempre as manipulou a seu gosdo! Ele que sempre usou do poder da autoridadepara
oprimir, para extorquir dinheiro e bens, para esmagar consciências, para empedernir no
jaguncismo homens simples como Resto-de-Onça ou Mulato! Pedro Melo ria, pensando
como confiar em juiz, se todos eles eram Hermínio Lobato. O velho abraçou o escrivão,
esfregou nele a barbaça branca.
-- Vosmicê é tão novinho, meu conterrâneo!
-- Vocês aceitam cerveja? Senhor juiz, aceita? – perguntava risonho o Doutor
Herculano Lima.
-- Como não! Uma cervejinha fresca nunca faz mal a ninguém – chalaceou
Carvalho.
-- Traga, doutor. Pode mandar trazer – disse Artur ao genro que dentro em
pouco voltava acompanhado de um homem com as garrafas. Uma pretinha nova, os
olhos limpos e muito abertos,no corpo uma camisa de algodão grosseiro espetada pelos
peitinhos, trazia pesados copos de vidro numa salva de prata cheia de arabescos,
ramos e gravações.

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A bebida espumou transbordante nos copos. A conversa tomou um calor cordial.


Doutor Herculano dizia que conhecia o Espírito Santo. Quando estudante de
medicina no Salvador fora numa caravana esportiva. Doutor Herculano era um
homem bonito, fino de trato, a barbicha curta repartida ao meio. Era médico e
deveria brevemente ir para Barreiras, onde montaria consultório. Aliás, dessa
cidade era seu pai e a família toda, gente rica e culta, ligada aos Melos pelo
comércio.
Carvalho chupitava a cerveja e pensava. Pelo que via, Grota era uma
fortaleza e os Melos uma gente danada. Até aquele momento Carvalho não
acreditava em que o pessoal dos Melos fosse mais numeroso e melhor armado
do que a polícia, mas agora não tinha dúvida. Suicídio um ataque à Grota. Além
de menos numerosos, os soldados eram homens fracos, de moral abatida,
armados de Comblains estragadas, com munição velha e imprestável na sua
maior parte. E os oficiais? Eram os piores. Viviam brigando entre si, cada qual
disposto a trair e infelicitar o companheiro, na disputa das promoções e das
vantagens, homens medrosos por lhes faltar conhecimento do papel de policial;
covardes por só confiarem na superioridade que lhes dava a arma na cintura;
venais por saberem que os donos das funções públicas, os políticos, não se
interessavam por ordem ou por justiça, se não por Melos capazes de resguardar
maior ou menor número de votos.
Carvalho tomava ali a deliberação de não sair sem ter feito um acordo, na
base da proposta Leite Ribeiro. O que Carvalho não podia admitir era um
fracasso de sua missão. Estava ficando velho, precisava tirar o pé da miséria.
Não podia perder a confiança de João Alves de Castro. Se vencesse, talvez até
conseguisse eleger-se deputado federal, ir para o Rio de Janeiro, rever os
parentes, os amigos do Espírito Santo. No momento, olhando a espuma que
subia, subia e começava a transbordar o copo, Carvalho estudava um caminho
para aproximar-se desses sagazes, esquives sertanejos que repudiavam a
aproximação.
— Meritíssimo, o senhor gosta de cavalos?
Carvalho levantou os olhos da espuma do copo e viu diante de si o vulto
de Artur Melo. A barba curta alourada, os olhos pardos e vivíssimos, o nariz de
gente sagaz. De tal maneira estava Carvalho entretido com seus pensamentos,
que ficou sem compreender:

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— Cavalos?
Antes de qualquer outra resposta, Artur já o levava pelo braço por um
quarto lateral, cuja porta cerrou discretamente, e chegando a uma janela aberta
sobre o curral, mostrou um belo cavalo arreado, na sombra de um telheiro.
Animal belíssimo, de fato Mas Artur nada falava sobre cavalos. com olhos
brilhantes perguntava:
— O senhor quer saber porque eu não deixo o terreno das armas? —
Olhou fixamente no mais profundo dos olhos de Carvalho e prosseguiu: —
Posso deixar esse terreno, mas em troca dele que é que o senhor me oferece?
O juiz sentiu que o coração parou de bater, para depois socar com uma
força descomunal cá na goela, nas têmporas; sentiu os músculos vibrarem como
se ouvisse a confissão de um imenso amor, de um amor há muito acalentado e
vivido e sofrido e sonhado. Sorveu novo gole, mostrou uma calma longe de
possuir, respondeu:
— Muito fácil. Disperse seus homens, compareça a juízo... Ponha em
execução o plano do Doutor Leite Ribeiro... Não se lembra dele? —
Displicentemente levou o copo novamente aos lábios para um sorvo longo, mais
longo ainda porque sentia que talvez a cerveja derramasse, se desapoiasse o
copo dos lábios, tão forte era o tremor da mão. ”Estaria pálido? Haveria em seu
rosto uma tensão denunciadora da emoção que lhe ia na alma? Ai, mestre
Otacílio. Do meu comportamento agora depende o futuro. Minha esposa com
suas carnes ainda belas e eu aqui suportando a solidão! Um dia que se passa, é
uma dia que não volta, na vida.”
— Como não. Estou lembrado. Eu disperso os cabras, compareco a juízo
e você... Você que fará, Senhor Juiz?
— Que farei eu? — repetiu Carvalho para ordenar a emoção, para conter
o baticum das têmporas, para controlar o raciocínio que sentia fugir.
— Pois é. Disperso meus rapazes, compareço perante o juiz... Que fará
você, o juiz, em troca de tudo isso? — A indagação de Artur era também
ansiosa. Os olhos pardos esvurmavam o semblante do juiz. Os traços
fisionômicos contraíam-se em expectação.
Carvalho pousou o copo na janela para disfarçar o tremor das mãos e
falava pausadamente, como um idiota. Soltava uma palavra que era como um
balão de ensaio; solta a palavra, perscruta-

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va as reações que ela provocava nas feições sensíveis de Artur Melo,
estudando, analisando os sinais denunciàdores de alegria, tristeza, ou
decepção, para depois prosseguir na frase, até completar o pensamento: — tudo
farei para... aceitar... sua inocência... — A fisionomia de Artur denunciava calma,
satisfação. O juiz continuou: — Garanto que... — Carvalho levou o copo aos
lábios, sorveu um gole.
De lá veio a voz aflita de Artur: — Impronunciará a mim, meu pai e o
compadre João Rocha...
— Sim — disse Carvalho correndo a língua pela escuma dos lábios: —
impronunciarei a você, a seu pai e João Rocha, desde que...
—.. os meus rapazes sejam dispersos... — completou de lá Artur Melo. O
juiz balançou a cabeça lentamente e rosnou:
— Isso mesmo. Desde que seus homens sejam dispersos. — Botou nesta
afirmativa o máximo de ênfase, um tom de resolução inabalável.
— Veja lá o que diz, Senhor Juiz!
— Palavra de honra! — afirmou Carvalho como se representasse um
dramalhão no teatrinho de Colatina, enquanto estendia a mão num gesto de
lealdade.
— Palavra de homem! — repetiu Artur Melo com solenidade, domando a
mão do juiz. Os olhos de Artur encheram-se d’água subitamente, enquanto as
mãos dos dois homens se enlaçaram num aperto seco, tal o resultado de um
tique nervoso, de uma contração muscular. As mãos estavam pegajosas, úmidas
de um suor grosso e escorregadio. E ambos os homens retiraram a mão,
tentando ocultar a emoção que havia gerado aquele suor. A porta do quarto
rangeu. Dela veio uma voz:
— O processo está aí, Seu Coronel Artur!
Artur fez um sinal para quem falou e juntamente com o juiz começaram a
se dirigir para a sala de onde tinham vindo. Carvalho repetia.
— Primeiro, dispersar os seus homens. Se não os dispersar, prenderei
você, seu pai ou João Richa na primeira oportunidade. Estejam onde estiverem.
Na sala, a prosa ia animada, com Severo contando casos para

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um lado, o escrivão palestrando com o velho. Ali chegando, Artur entregou a
Carvalho o processo de inventário, determinando o juiz ao escrivão que lavrasse
o auto.
Logo depois a comitiva se despedia, montando os animais. Numa como
homenagem, Doutor Herculano Lima e Joaquim Leandro montaram também
seus animais e acompanharam a comitiva até a ladeira de entrada da Grota,
quando então retomaram.
Na volta, não se viam mais homens na tocaia. O sol do meiodia, claro e
rutilante, tirava faíscas nas pedras e nas folhas reverdecidas, envolvendo tudo
numa atmosfera de caldeira: quente, úmido. Os grilos trilavam, saltando do
capim alto à medida que os cavalos suarentos e soprosos avançavam. Nuvens
pesadas formavam-se ao norte, crescendo sempre, prometendo aguaceiro para
breve. As paisagens desdobravam-se de uma beleza impossível. Vastos
chapadões que se estendiam a modo de escadaria gigantesca, descendo para
as bandas do sudoeste, para os lados de Goiás. Longe, as serras azulavam
contomos, muito longe, a perder de vista. Ao veredas de buritis desciam por
entre capões de mato, com as palmeiras agitando os cocares — um pelotão de
guerreiros tapuios desfilando.
No chão areento de chapada aluviônica, o capim era glabro e duro, capim
dos gerais que o gado comia apenas quando novo.
Um bando de papagaios passou gritando até perder-se além. Vinham de
alguma roça de milho escondida no vale, onde ficavam as terras de cultura.
Súbito, a estrada sombreava, refrescando repentinamente. Era o vale
coberto de mato. Por baixo dos paus-d’óleo, aroeiras, cedros e jatobás a estrada
passava sombria e úmida. No fundo da mata, o pica-pau retinia seu bico,
cutucando um toco.
A comitiva ia quieta. Só quem pairava era o Cabo Matias, contando ao
escrivão Chaves episódios das lutas de Boa Vista.
— Apois, num é que o Cabo Protásio foi-se chegando na trincheira, foi-se
chegando... Aí Joaquim Bala manobrou o rifle e meteu fogo. Protásio velho caiu
em ribinha dos pés, tal e qual um jenipapo maduro, e o tiroteio freveu com a
escuma...
A história era tão atraente, a fala de Matias tão saborosamente viva, que
Carvalho e Alferes Severo esqueceram seus pensamentos e deixaram-se
embalar pela narrativa do Cabo. Mas nesse instante, saltando o córrego, os
animais se retemperaram na água fria

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e galgaram o aclive oposto num chouto picado, entre gemidos. Aí Severo soltou
a lingua:
— Parece que ficaram mais macios, num é, Seu Doutor? Carvalho se fez
de desentendido: — Quem? Quem foi? Severo que vinha atrás do juiz, apertou
as esporas no animal, desviou-se de uns ramos de lobeiras floridos de suas
florzinhas apaixonadas que pendiam sobre a estrada, e emparelhou-se com
Carvalho:
— Estou dizendo que é capaz, que os Melos agora peguem o trote...
botar advogado, arrolar testemunhas...
Carvalho não respondeu logo. Os olhos duros perdidos nos longes, nas
nuvens grossas que se erguiam:
— Vamos ver... Talvez tenham suas razões... Nunca se sabe
perfeitamente o que um homem vai fazer...
No céu, as nuvens caminhavam. Grandes nuvens prenunciadoras de
aguaceiro. Das dobras do chão, de entre tufos do barnburral, surgiram as
primeiras casinholas do povoado. Nas portas, nas janelas, apontavam caras
espantadas, admiradas de ver o juiz chegar assim das bandas da Grota.
— Bem que eu dizia que o juiz não estava dormindo! — exclamava
Mendes de Assis, com ar desapontado e desenxabido. — Eu bem dizia que o
Alexandre estava com indaca... — Mendes de Assis ria sem graça. Por dentro,
remoía-se. ”Carvalho confiara mais em Severo do que nele, que era o
comandante do destacamento. Ali havia dente-de-coeiho! Bem que já estava
desconfiado desse juiz. Será que Carvalho ia tirá-lo do comando e colocar o
Alferes Severo? Isso não podia ser. Ele era oficial de maior graduação. No fundo
do peito, Tenente Mendes de Assis sentia como um espinho dando cutucões.

— COM ESSE JUIZ os Melos vão fumar um fumo forte! — exclavama Moisés.
— Faça idéia: ele mais o escrivão e um alferes entrar na Grota e trazer de lá o
inventário! É preciso ser macho! — Depois da reprimenda, Moisés passara a ter
a cautela de só dizer coisas favoráveis ao juiz.
— Agora esses Melos estão topando pela frente um juiz de verdade. Esse
daí não é nenhum Hermínio Lobato. Quero ver Resto-de-Onça derrubar
garrucha no pé dele! — Isso dizia Vicente

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Lemes sentado no bancão da varanda de Dona Benedita, repletíssima de
gente, cada qual mais entusiasmado com as façanhas do Juiz Carvalho.
Até dona Benedita, de seu natural comedida e ponderada, inflamou-se:
— Deus é pai. Deus tarda mas num falta...
Servindo o café, Maria Pequena também se sentiu no dever de meter sua
colher de pau:
— Num vê que o doutor Carvalho trouxe uma capetinha fêmea na garrafa!
— O capeta-macho que o velho Melo conservava na garrafa, agora estava
querendo unir-se à capetinha-fêmea do juiz. E para conseguir isso, só fazia
aquilo que o Juiz Carvalho desejasse.
— Eu sei — dizia a anã, erguendo as sobrancelhas grossas, — eu sei. O
capeta do coronel está de cabeça inchada pela bichinha do juiz!
— E ninguém como a senhora para entender disso, hem, Dona Maria! Tem
larga experiência com a sobrinha... — pilheriou Júlio de Aquino, por trás das
lentes fortes de seus óculos de míope. O varandão inteiro estrondou uma
gargalhada, percebendo a alusão de Júlio.
Quem não estava achando muita graça na prosa era o velho Valério
Ferreira. Os louvores rasgados ao Juiz Carvalho o deixavam meio irritado. Não
pelos louvores. Os atos do Doutor Carvalho, até o momento pelo que se via,
eram atos de homem honesto, direito, corajoso; mas Valério teimava em aferrar-
se numa eterna desconfiança para com as autoridades. com o tempo, o juiz
arregaçaria as manguinhas.
Na sua exaltação, Vicente Lemes continuava:
— Esse juiz não é o Doutor Hermínio não, minha gente!
— É cedo — gemeu Valério. — Não se sabe ao certo o que se passou na
Grota...
A ponderação foi como falar em corda na casa de enforcado: provocou um
silêncio constrangedor, até que Vicente protestou:
— Ora, não se sabe o que se passou na Grota! Isso, isso... isso é uma... —
Vicente não atinava com a expressão adequada. — Isso é uma safadeza!
— Safadeza, não. Vamos devagar. Vocês parece que não ouvem os
comentários, não vêem as coisas!

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Vicente pulava de raiva: — São uns bandidos! Quem fala de Carvalho é
porque é gente de Artur. Você, Ferreira, não pode estar repetindo essas
infâmias. Temos obrigação moral de dar mão forte ao Juiz Carvalho.
Valério Ferreira erguia os ombros magros, tossia:
— Não sei, não sei. Nem sou eu que ando batendo caixa por aí. Andam
murmurando que Carvalho foi à Grota negociar um acordo...
— Que acordo? Eu não quero um acordo dessa marca nem desgraçado, —
gritava Vicente entre largos e abundantes gestos.
— Dizem que correu cerveja. O juiz foi recebido com pato assado...
Vicente nem procurava mais defender o Juiz Carvalho; fungava, chupitando
seu cigarrinho de palha, uma raiva danada da impertinência do Valério. Vontade
até de mandar um trem na cara dele.
Valério prosseguia:
— Para apreender um documento é lá preciso que o juiz vá em pessoa?
Por cima, tanto mistério, um segredo de quem está praticando malfeito... Nem o
comandante do destacamento ficou sabendo de nada!
— E você queria que o Juiz Carvalho mandasse avisar aos Melos que iria
lá buscar o processo? Queria que avisasse ao povo do Duro para que os
espiões de Artur o alertassem, não é assim? Tem muita graça!
O boato lavrava, mas Carvalho prosseguia na sua missão com uma
inflexibilidade de herói de romance, uma inexorabilidade de força da natureza,
rompendo obstáculos, transpondo barreiras.
Encerrava-se o inquérito. Imediatamente o juiz abria vistas à Promotoria
que, antes de esgotado o prazo, oferecia denúncia contra os implicados no
assalto do Cartório.
Com pouco a notícia corria a vila, provocando maiores e mais ribombantes
aplausos dos inimigos dos Melos. Eram denunciados Artur Melo e o pai, Coronel
Pedro Albuquerque Melo; João Rocha, Hugo Melo, filho de Tozão; Olímpio
Chapadense e outros.
— Falou, machado! — exultava Vicente no varandão. — Vamos ver,
Ferreira, que é que você inventa de dizer ainda.
Moisés, porém, entrava correndo com notícia fresca: oficial de

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justiça fora para a Grota notificar da denúncia os indiciados que lá se
encontravam.
Vicente Lemes mal se continha, de alegria. Aquele juiz estava lhe
enchendo as medidas. Torrencialmente, incongruentemente, dizia:
— Quero só ver a cara desse tal Ferreira! Eu nunca me enganei. Desde a
primeira vez que vi Carvalho, pensei comigo: está aí um homem macho... —
Nisso, deteve-se e se dirigiu a Ferreira: — Que que é? Que que é? Ferreira, vem
ouvir a última, Ferreira! — E aos berros, contou ao velho juiz municipal: — O
pessoal da Grota já está fugindo, Ferreira!
Da ponta do banco em que estava, o velho nem lhe respondeu. Sabia que
em tais momentos de exaltação não há argumento que convença. Fechou a
carranca e fez com a mão espalmada um gesto que significava: — Espere!
Vicente admirava-se. Sim, senhor! O vice-rei do Norte, o tuntuqueba Artur
Melo ia fugindo, ia dispersando a jagunçama. A notícia era tão extraordinária que
Vicente principiou a perder a graça, começou a ponderar as palavras do velho
Valério Ferreira. Aquilo já estava passando. Seria possível que os Melos
abandonassem a luta assim tão de repente! Não teria algum fundamento aquela
história de um acordo entre o juiz e os Melos? Sei lá! Esse Valério Ferreira era
uma boca excomungada!
TÁ FICANDO dôidio não, menino! — bradava o velho Melo ao filho Artur,
no mais puro sotaque piauiense. Quando ficava enfezado, repontava o vaqueiro
rude, a linguagem mudava:
— Tu tá ficando dôidio!
Logo que Carvalho deixou a Grota, Artur disse ao pai que o juiz não
recuaria. Seria melhor que comparecessem a juízo e se defendessem. Do
contrário o processo correria à revelia e eles seriam condenados.
— Dôidio, menino!
Artur prosseguiu: — Olha, meu pai, eu conversei com o Juiz Carvalho.
Fizemos um trato. Prometi dispersar meus rapazes e apresentar-me, com o
senhor e João Rocha, para nos defender. Nossa defesa será do jeito que o
Doutor Leite Ribeiro estabeleceu. Vamos dizer que acompanhamos o grupo
chefiados por Calixto Cha-

100
padense, a fim de evitar que Valério e Vicente sofressem males maiores. O
senhor está compreendendo?
Pedro Melo tinha grande confiança, amor e admiração pelo filho. O que
Artur fizesse estava bem feito, mas ali, antes de porem em prática o tal acordo
com o juiz, o velho queria examinar as conveniências. Perguntou:
— E o juiz? Que foi que esse tal de Carvalho prometeu?
— Pois é. Aí Carvalho impronuncia a mim, ao senhor, a João Rocha. A
culpa fica tudo na cacunda de Calixto Chapadense e sua gente. Mas eles já
andam foragidos mesmo, pouco altera... Depois nós livramos eles...
O velho ficou quieto muito tempo, enrolando o cigarrão de palha,
acendendo-o no artifício. A seguir, tirou a primeira tragada abundante, soprou a
fumaça cheirosa na própria brasa do cigarro e balançou a cabeça de cabelo
saranhado:
— Tu prometeu dispersar os rapazes? Tu prometeu ficar desguarnecido!
— Sim senhor. Eu prometi dispersar os rapazes, mas não vou cumprir isso
não — explicou Artur. — Sou lá algum besta para mandar meus rapazes
embora! É baixo! vou é mandar eles para o Açude. Ali o juiz vai pensar que eles
foram dispersados...
A cara do velho, no pouco que se podia ver entremeio a barbaça e a
cabeleira, abriu-se num sorriso meloso, ingênuo, ao mesmo tempo que envolvia
o filho no mais terno olhar de admiração. Ele gostava das manhas de Artur, era
um ponto que sentia de alto valor no caráter do filho. Ele, Pedro, não sabia fingir,
não sabia fazer uma treta como aquela. Todavia ainda tinha restrições acerca do
tal acordo.
— E tu vai se apresentar na frente desse juiz?
Artur não respondeu imediatamente. Estava aí uma coisa sobre a qual não
se definira totalmente. Por um momento analisou as conseqüências dessa
apresentação e achando que dela só poderia advir vantagens, respondeu:
— Sim, vamos nos apresentar e vamos nos defender. Pedro Melo tirava
outras densas baforadas, esmigalhando o morrão do cigarro contra a unha do
polegar, grossa e encardida. A fisionomia perdida no matagal da barba estava
parada e morta, numa neutralidade idiota. De repente, soltou o refrão:
— Tu tá dôidio. Nós temos cabras bastantes para derrotar esse

101
juizinho de merda, meu filho. Tu não vê que o excomungado veio cá! Ele
veio pedir menagem. Quem procura é porque está querendo topar. — O velho
balançava a cabeça, sacudia a barbaça, agitava a cabeleira saranhada que não
via pente desde muito tempo:
— Vamo botar esse juizinho de merda pra correr.
— Isso é que não resolve, — acudiu o Doutor Herculano. — Será pior.
Mesmo que matemos todos os soldados, outros virão. Isso é loucura.
O velho estava pegando a ficar irado. Olhava longamente o médico bem
trajado no seu costume de linho branco, a barbicha bem aparada e até
perfumada, as rnãos finas. Dava uma cusparada ali para cima de um onceiro
que dormitava no canto e soltava um palavrão:
— Vocês são uns covardes!
Ninguém não dava ouvidos, mas ele prosseguia:
— Até você, meu filho, até você se agachando para João Alves! Tchá. —
Soltava outra cusparada para ali. — Olha ninguém num sai daqui para ir aonde
está esse juiz não! — O velho esbravejava furioso, batendo o pé no chão,
dispersando em gestos a ira que alagava a alma. — Então Artur não estava
vendo que o inquérito era um mundéu? É só tu botar o pé no povoado e o juiz
manda te prender ocê, manda me prender eu, mete todo mundo no tronco e
remete nós pra Goiás, para as unhas de Totó Caiado! Tá todo mundo dôidio!
O silêncio, um silêncio respeitosamente feudal, caiu em riba dos homens.
Pedro era a suprema autoridade. Artur jamais se levantava contra sua vontade.
Diante da aparente submissão, o velho recuperou em parte a serenidade, mas
prosseguiu:
— Artur, meu filho, tu não aprende! Nossa força é aqui, cuma a força de
Totó Caiado é lá na Capital dele. Tu pode derrotar Totó mais Eugênio Jardim lá
na Capital? Num pode não, meu filho! Pois é. Aqui também eles não são homem
de derrotar nós. — Bateu a binga, bateu, ajeitou o fuzil, procurou uma quina
mais viva da pedra, tomou a bater. Ofereceram-lhe um fósforo, empurrou para
lá. Soprou a binga, tomou a soprar, acendeu o cigarrão, chupou novas
baforadas, cuspinhou.
Ao redor, sentados nos toscos bancos, em tomo da ampla mesa de jantar
da varanda da Grota, Artur Melo, Doutor Hercula-

102
no Lima, Tozão e Joaquim Alves Leandro ouviam de cabeça baixa e
trocavam olhares significativos.
Soprando a fumaça, o velho arrematou:
— É só chegar no povoado e o juiz te mete ocê no tronco, manda prá
Goiás... Isso é mais certo do que existir Deus Nossinhor no céu.
— O senhor tem toda a razão, meu pai, mas tem uma coisa. A lei não
permite ao juiz prender assim sem mais nem menos. Os nossos códigos... —
jeitosamente, Artur procurava convencer o velho, ou antes: convencer o velho
com a sabedoria, com a citação de leis, de códigos, coisas que Pedro Melo não
entendia direito e em cujo terreno se deixava guiar pela sapiência do filho.
— Tchá! — o velho soltou a cusparada para cima do onceiro que dormia no
canto da sala. Parte do cuspo grosso se esparramou na poeira fina do chão. Era
sinal de tempestade:
— Lei, código... Teve lei pra Vigilato? Teve lei pra Norato? Lei é prá quem
está de riba. Pra quem está no chão é pau no vão das orelhas, home!
Humildemente Artur voltava à carga, para dizer que a situação deles na
Grota era insustentável. Eram a bem dizer uns prisioneiros, com uma despesa
imensa para sustentar os cabras, com o serviço das fazendas paralisado. Não
produziam rapadura, nem farinha, não estavam vendendo gado. Pelo contrário,
os vaqueiros estavam fugindo, deixando os retiros ao leu, quando não roubavam
o rebanho.
— Se a gente quiser sair da Grota, Carvalho manda a polícia nos prender.
E será que podemos resistir ao cerco? Será que temos mais gente do que
Carvalho? Para o governo tanto faz ficar com os soldados aqui um dia ou um
século: para nós é que a demora traz complicação. Será que Carvalho não está
esperando mais soldados? Aí não vamos poder resistir!
O Doutor Herculano interferia, mas o velho não dava ouvidos. Tinha muita
consideração para com o marido de sua neta, respeitava-o muito, acatava seu
saber, mas em matéria de luta, de coragem, isso ele não entendia de jeito
nenhum. No fundo, achava que essa gente letrada eram uns pusilânimes, uns
homens com jeito de mulher. Ora bolas, passar água-de-cheiro na barba!
Talvez se João Rocha dissesse alguma coisa, ele atendia; mas compadre
João Rocha tinha a mesma opinião do velho. Na sua

103
voz pausada, mastigada, de quem possuísse a língua desapregada, João
Rocha pontificava:
— Meu compadre Pedro Melo, o quê que a gente deve de fazer é arreunir
os ”meninos”. Por que que Artuzinho não vai atrás de Abílio Batata?
Para Rocha, a razão estava com Batata. Era como Batata dizia. Arreunir os
cabras, atacar a Capital de Goiás, tomar o governo e botar em riba desse
governo o Doutor Artuzinho.
— Se Artur quisesse era gritar que Batata vinha com mil homens
acostumados com a fumaça. Não viram como foi em Pedro Afonso, em São
Marcelo? Abílio Batata, Roberto Dorado, Abade tudo estava ali de grito,
esperando um aceno do compadre Artur Melo.
ARTUR resolveu manobrar, enfrentar outra solução. O pai não concordava
mesmo em comparecer a juízo. Pelo trato, primeiro deveriam os Melos dispersar
os homens em armas. Nessas condições nada impedia a Artur transferir seus
cabras para a fazenda Açude. O juiz não ia saber dessa particularidade. Para
ele, Artur estaria dispersando os jagunços.
Açude era um ponto estratégico importante. Mais distante do Duro, mais na
fronteira com a Bahia, ali ficariam livres da vigilância policial, teriam liberdade de
movimentos para ligar-se com as demais fazendas, teriam maior capacidade de
defesa, pois em caso de ataque, para ir do Duro ao Açude a força gastaria no
mínimo dois dias.
Para atacar o Açude, Carvalho teria que pedir reforços de Goiás, os quais
demorariam a chegar. Nesse meio tempo Artur poderia articular-se com
Gonzaga Jaime, Brás Abrantes, no Rio; com Antônio Balbino e outros em
Barreiras. Aí João Alves ia ver a cor da chita!
Era se valer do acordo. Em vez de dispersar os homens, recuá-los para o
Açude. com os cabras no Açude, Artur dava uma banana para Carvalho: não
comparecia a juízo, ia se articular com os bandos de Abílio Batata, Roberto
Dorado, Abade e outros. Artur sentia-se alegre. Afinal, uma atrapalhação veio
melhorar as coisas. Melhorar muito.

104
— Quiá-quiá-quiá — ria-se Artur explicando o novo plano a Tozão, ao genro
e a Joaquim Alves Leandro. — Bem que o pai tinha razão. Agora teria
oportunidade de lograr o juiz. Carvalho deixaria os homens irem para o Açude na
suposição de que ele, Artur, ia apresentar-se e no fim ficaria chupando o dedo.
Quiáquiá-quiá!
— Será que Carvalho vai na peta? — ponderou o médico alisando a barba
bem tratada, num gesto habitual. — Olhe lá que ele é sujeito de olho limpo, meu
sogro.
Artur nem ouvia a objeção do genro. Sentia-se alegre com a solução que
veio unificar as opiniões de todos com a do velho e do compadre João Rocha.
Se antes eles estariam fortes, agora então é que não haveria o menor perigo de
nada.
Artur deu as ordens e imediatamente os rapazes começaram a se mover,
saindo em magotes de 5 e 6, na maioria de a pé. Vendo o pessoal debandar,
Tozão sentiu medo e procurou Artur para saber se o juiz não ia querer impedir a
dispersão dos rapazes. Tozão receava e o temor punha-lhe o carão ainda mais
comprido, dando cada chupão nos dentes podres.
— Rá-rá-rá, — gargalhava Artur. — Carvalho não vai fazer coisa alguma.
Isso faz parte da combinação.
Por cima, havia o serviço secreto de Artur. Ele informava que na vila
nenhum indício havia de que a tropa tentaria impedir a dispersão. Pensando em
tais coisas, Artur sentia ternura pelo Sargento Alcides. Homem correto. Artur
levava em alta conta a gratidão, a fidelidade pessoal. Em sua memória apareceu
aquele dia distante em que o Sargento Alcides, simples soldado, chegou ao
Duro com uma moça na garupa do cavalo. Vinham fugindo.
Artur o livrara de morte certa, que os cunhados não eram flor de se cheirar.
Agora o sargento ajudava com informações secretas, colhidas junto ao juiz.
Artur ria, enquanto saía à procura do pai pela fazenda. Devia convencer o
velho da necessidade de recuar para o Açude. Pelos currais, pela estrada, Artur
via o pessoal saindo em grupos de 5, 6 , 4. Iria agora argumentar com o velho
com um fato consumado. Iria dizer-lhe que a Grota estava desguarnecida de
jagunços e que era possível que Carvalho atacasse a fazenda quando perdesse
a esperança do comparecimento deles.

105
Ao ouvir isso, o velho exasperou-se: — Vocês estão dôidios varridos. Como
é que desguarnecem a Grota! Que gente mais perrengue hem Mulato!
Mulato era o homem de sua confiaça. Companheiro de caçadas,
companheiro dos tempos de viagem em burros para Barreiras, companheiro de
muitos anos e em todas as circunstâncias.
Mulato soltou sua risada sonora, mostrando os belos dentes apontados a
faca:
— Pessoal de hoje em dia é tudo porrado, meu compadre.
Artur, porém, ali estava insistindo com o pai para ir para o Açude: - Sua
teimosia vai me sacrificar meu pai.
O velho ficou muito incomodado: — Eu vou sacrificar você meu filho? Em
quê? Diga, meu filho.
— Eu não arredo pé daqui sem o senhor... O senhor não querendo ir, a
gente vai ter que enfrentar os soldados de Carvalho.
— E tu tem medo dessa policinha, meu filho?
— Não, — disse prontamente Artur. — Ninguém tem medo de nada. Mas é
que não temos mais ninguém. Nossos homens já despachei eles tudo para o
Açude.
— Tchá! — O velho soltou ali no chão uma de suas vastas cusparadas. A
saliva viscosa caiu no chão e se abriu em estrela. Algumas gotinhas envolveram-
se no pó fino do chão batido e saíram rolando como pequenas gotas de
azougue. Artur prosseguiu:
— Veja tá fora.
No curral ia a azáfama da partida. Gente botando cangalhas e bruacas nos
animais, gente partindo em magotes. Os jagunços recuavam para o Açude, para
onde já seguiram o compadre João Rocha e Calixto Chapadense.
Posteriormente seguiriam as mu lheres e os homens não denunciados, como
Tozão, Doutor Herculano Lima, Joaquim Alves Leandro e outros. Com isso
pretendia Artur mascarar a fuga.
— Mulato, — disse o velho, — meu filho está assustado. Lá na cidade ele
ficou desacostumado dessas coisas. Vamos aproveita para fazer uma caçada de
capivara no Açude. As bichas por lá devem de estar num assanhamento
desgramado, com esse inverno que tá para chegar com a lua- — Ele falava em
caçada, de boca dura que era; para não confessar a retirada que para ele tinha
sabor de derrota.
Lá fora, o pessoal continuava debandando, obedecendo às or-

106
dens de Artur. Iriam para Açude, mais perto da fronteira da Bahia, mais
perto de São Marcelo, de Santa Rita do Rio Preto, onde assistiam os compadres
Roberto Maroto, Abílio Batata.
— Amehã de menhãzinha nós rompemos, Mulato. Pode preparar tua
espingarda e ajeitar os cachorros, — recomendou o velho entre duas
cusparadas.
Artur ouviu e não gostou. Deviam partir logo. Pelo menos ele e o pai
deveriam deixar a Grota ainda naquele dia. Eles eram os mais visados e não
deviam ficar sem muita gente para garanti-los. Contudo, sentia-se sem forças
para dobrar o velho. Foi a custo que obteve sua aquiescência em partir. Se
voltasse a falar no caso, o pai ia emburrar, ia levar para o lado da covardia. Que
ficasse mais aquela noite. Sargento Alcides nada avisou!
— SEU DOUTOR, pissuale tudo fugino. Sai aquela ternada levano
caiguero pesado de trem... carabina munta, bala munto... — era isso que
informava na sua meia língua o Soldado Carajá voltando da Grota, onde estivera
em espionagem.
Carvalho debruçou-se mais sobre a mesa, procurando ocultar atrás da
pilha de livro o riso irreprimível. Artur tinha caído na esparrela com a maior
ingenuidade. Deixasse-o dispersar o povo calmamente. Quando houvesse saído
mais da metade, faria a investida contra a Grota. Supunha os Melos mais
argutos, nunca esperara que fosse tão simples armar uma cilada.
— Muito bem, Carajá. Agora vá chamar o promotor.
Era chegado o momento de o promotor pedir a prisão preventiva dos
denunciados. Estava mais do que comprovada a fuga. O promotor devia pedir a
prisão preventiva imediatamente. Não perder nem um minuto!
— Matias, ô Matias! — O ordenança bateu ali o seu pronto e o juiz
interrogou: — Carajá já foi chamar o promotor?
— Nhor, sim, Seu Juiz.
— É só, — disse Carvalho despachando o Cabo, E, a sós, passou a
examinar as providências que lhe cabia tomar. Decretada a prisão preventiva,
era despachar a tropa incontinenti para a Grota, para prender Artur e o pai. O
oficial de justiça já havia conversado sobre isso. Queria que a Força Policial na
sua maioria o garantisse na execução dessa diligência.

107
Era na manhã seguinte, impreterivelmente, que deveria ser feita a prisão.
Só de madrugada a polícia seria avisada da exigência do oficial de justiça.
Existia espião no meio da tropa. Quem seria? Carvalho ignorava, mas tinha
certeza absoluta de sua existência. Se avisasse a polícia de véspera, Artur e o
pai escapariam.
Por isso, às duas horas, o juiz levaria pessoalmente a Mendes de Assis a
ordem, para prender Artur e Pedro Melo tão logo o dia clareasse.
Mendes de Assis! Esse Mendes de Assis não merecia confiança, mas
infelizmente não era possível. Tinha que obedecer à hierarquia militar.
Uma coisa, porém, no fundo do peito entristecia o Juiz Carvalho. Sentia
que estava cometendo uma traição. Estava traindo os Melos. Planejara isso,
resolvera pôr em prática essa traição, mas agora será que deveria trair? Dera a
Artur sua palavra de que poderia dispersar os homens; agora Artur os dispersara
e ele se valia disso para mandar prendê-los. Era um ato vil, era uma infâmia!
Procurou apaziguar a consciência. Aquilo era uma imposição do cargo.
Com esse ardil evitaria um choque armado com mortes para ambos os lados.
Sua traição era um meio imoral para atingir um fim humanitário e justo.
Mas esse raciocínio não convencia. Na verdade, o que havia era o seu
interesse pessoal. Mas, que diabo! ele também tinha direito de ter seu interesse.
Precisava libertar-se do sertão, precisava galgar a cadeira de desembargador,
de presidente do Tribunal de Justiça, talvez até Presidente do Estado, quem
sabe? Afinal, usara de todos os recursos legais. Os Melos não se apresentaram
antes porque não quiseram. Alguém poderia acusá-lo de haver praticado a
menor transgressão legal? Jamais. Tudo que fizera e tudo que ia fazer estava
estribado na lei. Quem podia dizer que a polícia praticou absurdos? Quem podia
apontar a menor indisciplina?
Mas também ele tinha seus direitos. Havia cinco meses que estava
naquela Sibéria, longe de qualquer conforto, longe de qualquer carinho de
mulher. Sobretudo longe da mulher. Já não suportava. Bem que falavam de
algumas mulheres com quem se poderiam ter relações. O promotor que
conhecia o povo da região já lhe falara de algumas. Mas tinha medo, não podia
confiar em ninguém. Botar tudo a perder por causa de uma mulher!

108
Ele estava certo. A decisão só podia ser aquela. Mandar prender o pessoal,
levá-lo para a Capital. Assim cumpriria a missão, conquistaria a confiança de
Totó Caiado, talvez fosse eleito deputado federal, iria rever o Rio, os parentes do
Espírito Santo. E mulher de soldado? Vira uma novinha, uma lindeza. Mas que
bobagem, bobagem! Nada de sonhos, nada de devaneios. Vamos botar o preto
no branco. É voltar logo para casa, é terminar esse inquérito, é prender logo
essa gente. São uns truculentos, são uns verdadeiros facínoras. ”Eu ouvi o que
contaram deles, eu vi gente chorando por aí!”
— Boa tarde, Senhor Promotor. Pois é, o pessoal está fugindo, Seu
Promotor! — disse Carvalho ao ex-intendente de Natividade, que chegava. —
Talvez tenha chegado o momento de pedir a prisão preventiva, hem! Veja lá,
Senhor Promotor. Isso é com o senhor.
”Traição! Traição nada. Bem que gostaria de que as coisas acontecessem
por forma diferente. Mas o que fazer? A realidade é a realidade e não os nossos
desejos!”

109
III
A prisão
ESTAVA QUERENDO amanhecer quando a Força chegou às imediações
da Grota. Mendes de Assis confabulou com os Alferes Severo e Xavier e
começaram a distribuir os soldados de modo a cercar a fazenda em todas as
suas saídas.
O trabalho não era muito fácil porque poucas pessoas conheciam bem a
topografia e ainda havia o obstáculo do lusco-fusco, e a necessidade de não
espantarem os cães e os animais da fazenda. ”Ainda bem que não havia vigias”.
Na companhia de Mendes de Assis vinha o oficial de justiça com a ordem
de prisão preventiva decretada pelo juiz.
O céu principiava a pegar fogo para o nascente, onde havia nuvens. A
estrela d’alva minguava o brilho, empalidecia diante do sol que chegava. Já se
podia ler uma carta. Cinco horas talvez.
Ninguém no povoado ficara sabendo da expedição, que era para pegar o
pessoal da Grota desprevenido. O próprio Mendes de Assis recebeu a ordem
para a diligência às duas horas da manhã. Carvalho andava muito desconfiado
de espiões de Artur no meio da tropa.
O Duro ficara dormindo seu sono de inocência, enquanto sorrateiramente
saía para a diligência a quase totalidade da Força. No povoado ficaram os
Alferes Enéias e Mariano com mais umas dez praças, sem contar o tísico e
outros doentes de gálico e maleita.
Tenente Mendes de Assis olhou o céu. Todo chamalotado de nuvens, com
uns borrados de sangue. A estrela d’alva, adeus, es-

112
trela d’alva. Era manhã quente, sem vento, pouco orvalho molhava os
ramos. Um ou outro grilo ainda grilava. Além um joão-de-barro começava a
cantar, talvez ensinando os filhotes. Os galos cantavam na fazenda, de onde
vinham grunhir de porcos e mugidos de reses. Para esse lado de cá, um trem
gemia. Talvez inhuma, talvez mutum. Capaz que fosse mutum mesmo.
Vozes, reunir de esporas, freios e ferros, batidos de cascos nas pedras,
assopro de um animal. Os soldados de Mendes de Assis que se dispunham em
linha, deitados no chão, como os outros de Severo e Xavier, — os soldados
encolheram-se, ajeitaram-se melhor. Um magote de gente ia passando. Era
gente da Grota que fugia. As vozes afastaram-se, um cheiro bom de cavalo
suado no ar da manhã.
Ao romper do sol, deveriam bater na porta da casa e intimar o pessoal a
entregar-se. Contudo, se mesmo antes do romper do sol algum indiciado
quisesse fugir, deveria ser preso. O oficial de justiça os conhecia a todos e os
apontaria a Mendes de Assis. Para isso, cercavam a saída principal, aquela que
levava ao Açude, como muito bem informava Carajá. O tenente relanceou os
olhos e sentiu-se reconfortado. A seu lado estavam Daniezinho, Salustiano
Dantas, Mane Vitô, Gabriel, Adonias, Sargento Odilon. Eram bichos que não
vacilavam em matar qualquer um. Não foi à toa que o tenente os colocou ali
perto
O tropel apagou-se, apagaram-se as vozes. Bem-te-vis cantavam nos altos
angicos. No fundo, no mato, o trem continuava gemendo. Sargento Odilon
achava que era um mutum. Ali tinha disparate. Ainda quando vinham, indo na
frente como batedor, por pouco que Sargento Odilon não dava um tiro num
mutum cuidando que era jagunço dos Melos. Precisavam ter muito cuidado.
Nada de atirar em bicho, que iria alarmar o pessoal e fazer eles debandar. Nada
também de atirar à toa. Antes de dar voz de prisão, ver bem se era mesmo um
dos denunciados. Era fácil: o velho tinha barba branca; Artur, tinha barba mais
curta, meia loura.
Com pouco, ruído de conversa, latido de cães, um nhambu piando tão
perto, cavalos bufando, soprando as ventas. Novamente a linha dos soldados se
mexeu, confundiu-se com o solo. Não havia sol, mas já era completamente
claro. Os tropéis aprochegavam, as vozes tinha hora que dava para entender. As
armas manobraram cautelosamente. Tão de leve, o estalo da mola imitou o que-

113
brar de um graveto, o estalar de um preá ou rato do mato. Os bem-te-vis
cantavam e cantavam pelos ramos.

Como havia combinado, o velho se levantou cedo, chamou Mulato e


mandaram pegar os animais no pastinho ao lado. Acordaram a preta Camila
para lhes preparar café e um prato de cuscuz, enquanto eles mesmos arreavam
os animais.
Por esse tempo, um magote de cabras deixava a Grota. Eram, os
derradeiros que ali ficaram para os últimos demãos.
Atrelaram os cachorros, aprontaram as armas, tomaram as capas de
chuva, que o tempo tava mostrando água. Era como se partissem para uma
caçada. Na Grota permaneciam Aninha, Toz; e D’outor Herculano, estes últimos
com as esposas; o próprio. Artur deixaria a Grota mais tarde, ultimando os
negócios. Talvez aguardando um aviso do Sargento Alcides. Artur confiava no
trato do juiz: a dispersão dos rapazes fazia parte do combinado.
Os cães latiam satisfeitos, pulando e correndo, os cavalos sopravam e
sacudiam o pêlo, sorvendo o ar fino daquela manhã de inverno, com névoa
esgarçada pelas grimpas dos morros, cora a fumaça subindo o vale, onde
resmungava o ribeirão. Pelos altos, o dia vinha rompendo. Um bando de gralhas
veio naquela bulha, e ficou gritando por sobre os soldados.
Pedro Melo e Mulato transpunham o curral e ganhavam saída, para o
Açude. A mágoa apertava o coração do velho. Era triste, era humilhante, deixar
sua fazenda daquele jeito, como um fugitivo. Sobretudo, era revoltante ter que
baixar o cangote para aqueles preguiçosos do Vicente e do Valério montar. Eles
que tinham feito aqueles currais, aquelas casas, aqueles bicames! Mas não
alterava choradeira.
— Se a gente for feliz, por esses oito ou dez dias a gente tá de volta, não é
mesmo, Mulato?
Logo que destribui o pessoal pelos pontos estratégicos, de modo a cercar a
fazenda, o Tenete Mendes de Assis percebeu ruídos

114
que vinham da casa. Já teriam atinado com o cerco? Mau, mau! Ali
acordavam, rachavam lenha, cavalos bufavam e pateavam, cachorros latiam e
ganiam. Eram sinais de que iria sair gente. Antes já saíra um magote e depois
de sua partida tudo se aquietara. Será que não restava mais ninguém na Grota.
Ô coisa boa! Assim não teria que prender nenhuma pessoa.
Era uma missão penosa aquela. Os Melos eram poderosos. Se Mendes de
Assis os prendesse, seria perseguido, perderia o posto, que Jaime e Bulhões
não perdoavam. Era um inferno.
O tenente tinha filhos e mulher para tratar. Afora o ordenado mensal, nada
possuía. De momento, o tenente se lembrou de muitos outros oficiais que
perderam as patentes porque cumpriram determinação legal. Mendes de Assis
estava amolado desde que recebera do Juiz Carvalho ordem para efetuar a
prisão preventiva. Depois, de supetão. Estava dormindo, de repente, a ordem do
juiz de seguir imediatamente para a Grota, àquela hora da madrugada. Missão
dura!
O tenente fazia ali um protesto solene perante si mesmo: não aceitaria
nunca mais essas comissões no interior do Estado. Estava escarmentado.
Doravante queria ficar no comando da Força, na Capital, como faziam outros
oficiais. Essas comissões só serviam para desmoralizar oficiais e
incompatibilizá-los com os políticos.
Sempre que uma comissão chegava a seu ponto difícil, Mendes de Assis
fazia tal promessa e depois esquecia. As comissões, afinal de contas, tinham
seu lado bom. Durante elas, Mendes de Assis se sentia um imperador, um todo-
poderoso, com as pessoas o bajulando receosas de prisão e espancamento,
dando-lhe presentes caros. De todas as comissões, a pior tinha sido aquela.
O desgraçado desse juiz mantinha a Força num regime de guerra,
confinada nos quartéis, com serviço de trincheiras, piquetes. Niguém podia fazer
festas, nem jeito de conseguir uma mulher para as necessidades do corpo eles
tinham. Juiz dos diabos!
Mas seria a derradeira comissão. A esperança era a afirmação de Carvalho
de que talvez não houvesse mais ninguém na Grota. Gente havia, mas deviam
ser aqueles que haviam saído fazia pouco: capangas, camaradas.
Se assim fosse, Mendes de Assis não se indisporia com os Me-

115
los, nem descumpriria a ordem judicial. Os Melos era perigosos e
poderosos. Não eram os humildes enxadeiros que Mendes de Assis costumava
prender e espancar e matar, alegando resistência à ordem judicial. Atrás de Artur
havia gente grossa: um desembargador que mandava no Tribunal de Justiça do
Estado: um general do Exército; coronéis ricos e prestigiosos da Bahia. Mendes
de Assis teve vontade de largar a diligência, largar a espada e sair correndo pelo
mundo afora. Estava prevendo tudo: ia haver luta e ia morrer gente.
Novos ruídos vinham da fazenda. Vozes chamando porco e galinha.
— Cuche, cuche, cuche!
— Ti, ti, ti, pururu!
Parece até que vinha gente a cavalo pela estrada. Mendes de Assis
procurou ocultar-se o melhor que pode por trás de umas moitas de veludo e
espinho-agulha. De onde estava, o tenente via os soldados Daniezinho,
Salustiano Dantas e Gabriel agachados por trás das pedras, a Comblain em
meia posição de tiro, tensos, como perdigueiros em caçada.
Gabriel sentia um enjôo no estômago e um tremor dos diabos pelo corpo.
Ressoavam em seus ouvidos as palavras de Nestório e Mane Vitô. ”Quem matar
os Melos pode pegar uma cadeinha para tapear os paisanos, mas depois vai
promovido... O governo é inimigo dos Melos.” Gabriel nunca tinha estado num
serviço assim perigoso. Fazia pouco que estava na Força e tinha vergonha de
parecer covarde. Daniezinho também se sentia mal. O que ele sabia era que a
Grota era uma trincheira inexpugnável e dessa forma estava disposto a vender
caro a sua vida. Já não era moço, tinha vivido muito, agora queria sossego.
Atiraria no primeiro que visse.
Agora, ouviam-se tropéus de animais, até o tinir das ferramentas nas
pedras; chegava-se a ouvir retalhos de conversa dos cavaleiros que davam para
se entender. Dois vultos surgiram na volta do caminho. Divisava-se bem: um dos
vultos só podia ser o velho Melo. A barba branca, a roupa de couro, a mulona
melada muito alta. Era a maior mula que existia por ali, presente de Abílio
Batata. Atrás, também num cavalão graúdo, vinha outro homem, vestido mais
modestamente. Seria Resto-de-Onça, seria Mulato, se-

116
ria o compadre João Rocha? Mendes de Assis não conhecia. Estaria
armado? Difícil saber. Os ramos tapavam, também a manhã era meio escurosa,
tudo incerto.
Um frio percorreu a espinha, retorceu-lhe os intestinos. Naturalmente que o
velho não podia passar.
A última esperança do tenente arrebentava como uma bolha de sabão. Só
lhe restava apegar-se com Deus e com os santos: Que o Divino Padre Eterno o
ajudasse naquele transe, que alumiasse e caminho e soprasse no seu
entendimento uma solução. Em sua imaginação beijou um crucifixo que trazia no
bolso da túnica. Se estivesse sozinho, prendia o que vinha atrás, com jeito de
camarada; prendia ou matava, deixando o velho fugir, sumir no mundo. Tão
simples! Metia a bala no camarada e certamente e velho abria o pala. O próprio
velho depois confirmaria que fugira. Mas o diabo eram os soldados que estavam
ali a seu lado, já com as Comblains armadas. A esses Mendes de Assis não
podia enganar. E Carvalho? pensou o tenente. — Isso mesmo. Havia o Juiz
Carvalho. Se o velho escapulisse, Carvalho não deixaria a fuga como fato
consumado. Outro juiz se daria por satisfeito com a fuga; lavaria as mãos, iria
embora dizendo que não prendera os Melos porque tinham fugido. Com
Carvalho, porém, o riscado era outro. Mobilizaria toda a polícia para pegar os
fugitivos e ainda processaria Mendes de Assis. Podia até arrancar-lhe os galões,
metê-lo na cadeia. E havia Enéias que ficara no povoado. Enéias era inimigo
jurado dos Melos.
Se Mendes de Assis deixasse o velho fugir, Enéias não perdoaria;
denunciaria ao Presidente do Estado. Enéias ingressara na polícia com o fito de
vingar-se dos Melos que apoiaram Abílio Batata no assalto de Pedro Afonso, de
onde expulsou Enéias e sua família.
Vindo de dentro da saroba, feito um bicho feroz, Severo apareceu por trás
de Mendes de Assis. Alferes Severo era cumpridor do dever. Recebeu ordem do
juiz para prender e prenderia mesmo, ainda que tudo levasse o diabo! Ali agora
não tinha meu-pé-me-dói: o velho seria preso, porque esta fora a ordem dada a
Severo. O decreto judicial estava na algibeira da túnica e pronto! O olhar de
Severo fuzilava.
Era o tipo do homem que servia para lidar com o Juiz Carva-

117
lho: não pensava. Desde que lhe dessem uma ordem, ele a cupriria
cegamente. Ignorante, burro, violentíssimo, Severo só tinha uma qualidade: a
coragem.
Mendes de Assis rememorava. Severo era simples sargento quando em
Santa Cruz prendeu um juiz na cadeia por vários dias. Até hoje Severo contava
o causo com aquela tenebrosa escassez de vocábulos: — Num vê que o diabo
do juiz era mesmo que ve o cão! Eu prendia, o j uiz soltava; tomava a prender,
tomava a soltar. Aí perdi a paciência e meti foi desavergonhado do juiz no
xadrez.
Depois, foi para as bandas do Sudoeste. Severo foi prender um graúdo, diz
que houve resistência e o graúdo acabou morrendo. Severo foi metido na
cadeia. Ali estava quando um dia o cabo chegou contando:
— Seu Alferes, a cidade não tem juiz, não tem promotor, nem tem
delegado, num tem nem vigário, Seu Alferes.
Com a tarimba que tinha, Severo sabia que quando uma cidade ficava
assim à matroca era porque os graúdos pretendiam matar alguém.
— Pois é, meu Alferes. O que tem aí é muito parente do morto... Dizem que
vão matar o senhor.Acho bão o senhor fugir, meu Alferes!
— Passa pra cá o fuzil e as balas, Cabo!
— Seu Alferes, mas...
— Passa pra cá a arma, moleque perrengue, e vai-te embora, se não
quiser morrer.
O cabo entregou-lhe a arma e as balas. Quando chegava a esta altura da
narrativa, Alferes Severo usava da seguinte chave de ouro: — Jacaré entrou na
cadeia? Que paisano nenhum num entrou não...
Naquele momento Severo observava Mendes de Assis, queria ver qual
seria o seu procedimento. Depois Severo contaria tudo a Carvalho. Mendes de
Assis teve medo de Severo. Era seu inimigo. Desejava tomar-lhe o lugar de
comandante do destacamento, contando com a simpatia do juiz. Alferes Severo
já estava juntinho de Mendes de Assis e lhe segredava ao ouvido que o barbaça
era o velho Melo. Contra esse o juiz tinha decretado prisão preventiva. O velho
não podia escapar. — Alto. Estão presos!

118
Mal ouviu, o velho deu na rédea e a mulona revivou. Naquele tempo de capim
novo, o excesso d’água fazia os animais pesadões. Mas a mula era arraçoada
no cocho, com milho e rapadura. A bicha tirou um pulo e partiu feito uma bala,
arrepiando caminho, seguida de perto por Mulato, nego teso como o diabo.
Rompiam galhos de veludo e espinho-agulha, de marmelada e murici,
saltavam grotas, fugiam pelos lugares que conheciam tão perfeitamente. Aquele
juiz era o capeta, — pensava o velho. — Estava disposto a levá-los presos. Artur
tinha se engando, julgando enganar o diabo do juiz! Agora a situação era
diferente daquela em que ocorreu a morte de Vigilato. Eles estavam por debaixo.
Artur fizera a besteira, confiando na palavra de Carvalho. O juiz lhe armara uma
arapuca.
A mulona corria, saltava vales, furava moitas de espinhos e taquaral,
chegava em frente ao curral, transpôs a traqueira num salto. Mas nisso
afocinhou, atirando o velho adiante.
Atrás, perseguindo-o, vinham os soldados. Vinham a pé e por isso se
atrasaram. Mulato pulou do cavalo e foi ajudar o velho a erguer-se do chão, mas
o coronel Pedro Melo quase não podia ter-se de pé. Machucara-se. Onde, não
sabia. Um frio por dentro, uma espécie de desmaio, mal-estar geral. Ele
arrastava-se, Mulato o arrastava. Pularam outra cerca, procuraram a porta da
casa da fazenda. Iriam abrigar-se dentro de casa. Ali teriam segurança.
Ouvindo o batuque dos galopes, batidos de paus, Artur achou que devia
ser algum portador que chegava. Saiu à porta do terreiro. Não viu nada. Ouviu
foi o grito:
— Solados, soldados!
A voz era do pai. Num relance, viu soldados que chegavam pulando
cercas, entrando por entre as plantações. Artur retrocedeu, tomou de sua
carabina de oito tiros e já vinha saindo em socorro do pai, mas se deteve. Não
compreendia direito. Seria engano dos oficiais? Seria alguma confusão? Logo,
entretanto, uma conclusão se fixou: o acordo de Carvalho era uma cilada. Filho
da puta! O juiz o traía, antes que ele traísse o juiz!
Um tiro estrondou no quintal. Tiro chocho. Um toque de corneta. A
cachorrada agora latia, latia, embarroava na acuação.

119
Precisava escapulir, custasse o que custasse — pensava Artur. — A casa
deveria estar cercada e já haviam matado ou ferido o velho. Fugir, escapar do
cerco, era impossível.
Pela fresta da porta viu que chegavam muitos soldados, muitos mesmo.
Havia um sapateado em torno da casa. Os únicos indiciados no inquérito que
restavam ali eram ele, o pai e Hugo Melo, filho de Tozão. Todos já haviam saído,
todos já haviam fugido para o Açude.
Lá fora, tudo calava. Um cachorro continuava latindo, embarroando. Depois
deu um ganido e fugiu cainhando. Certamente o esbordoavam. Vozerio para os
lados do canavial.
No fundo da casa, num quarto, havia uma tulha com capacidade para
quinhentas quartas de farinha de mandioca. Trabalho do velho, que a fizera de
madeira aplainada a enxó, rejuntada com tornos de madeira. Ocupava metade do
cômodo, ia até perto do telhado. Quando menino, Artur muitas vezes se
escondera ali dentro, onde havia um ótimo lugar entre as tábuas mal colocadas.
Artur fechou a porta e saiu no rumo da tulha.
Ia um rebuliço pela casa, com o pessoal se erguendo da cama em
sobressalto.
— Em nome da lei, abram a porta!
— Em nome da lei! — Gritavam do lado de fora. Esmurravam as portas.
Artur trepou pelas tábuas, como fazia em criança, e se deixou cair dentro da
farinha.

Veio para entrar na casa. Chegando, porém, à porta se lembrou que se


entrasse a polícia cercaria não somente a ele, mas a seu filho Artur que ainda não
fugira para não o abandonar. E Artur não dissera que ele o iria sacrificar! Não
devia sacrificar o filho. Tinha que atrair a polícia para longe da casa, devia fugir
pelos fundos, onde certamente não havia soldados. E o canavial? Ah, o canavial
era um ótimo esconderijo. Podia se meter numa touceira de cana, dentro de algum
buraco.
— Soldado, soldado! — gritou o velho ao passar perto da casa. ”Era um
aviso para que Artur se prevenisse, se escondesse. Pobre

120

Artur. Confiou no miserável desse juiz!” Prosseguindo na carreira, o velho se


meteu no canavial que havia no fundo da casa.
Entretanto, mal podia correr. Uma moleza danada, uma suadeira. Mulato
a custo avançava, carregando-o. Nos calcanhares vinha soldado.
Conhecedores de todos os meambros do quintal, o velho e Mulato
metiam-se por baixo de uma cuitezeira, ali por baixo de uma cacaueiro,
ludibriando os perseguidores. Por fim, os dois se meteram numa touceira viçosa
de cana que crescia dentro de uma grotinha funda e apertada, já no fim canavial.
Ótimo esconderijo, Muito difícil de acharem eles ali. Também o velho não
agüentava mais, suava muito, a respiração opressa, como que presa no fundo
do peito.
Os Soldados Fabriciano e Freitas Machado que estavam postados ali no
fundo do canavial viram uns vultos bulindo na grota. A princípio cuidaram que
era porco, quem sabe cachorro?
Freitas Machado assuntou melhor e estranhou: — Uai, só, tá parecendo o
velho. Espia só!
Já Fabriciano dava um pulo, metendo a Comblain nos homens: — Estão
presos.
Freitas Machado aproximou-se e tomou a Mauser do velho e ia receber a
carabina que lhe estendia Mulato, quando o canavial estralou. Como se um pé
de vento ou um bando de queixadas o atravessasse. Do meio do mato surgiram
vários soldados. Fabriciano e Freitas Machado tomaram socos e empurrões que
os jogaram para longe.
— Não me mate — dizia o velho de mãos erguidas. Como respostas
coronhadas desceram-lhe na cabeça, prostando-o na terra fofa e úmida do
canavial.
— Me acorde, meu filho. — Um tiro ecoou. O velho punha-se de quatro
pés, tentando levantar.
— Estou aqui, meu patrão — gritou Mulato, mas uma coronhada abriu-lhe
o crânio. Uma baioneta na ponta do cano da comblain meteu-se-lhe no peito,
espetando-o no chão podre. Daniel embebeu o refle no ventre do velho. Gabriel
tirou um punhal e o socou no ventre do homem caído.
— Toque aí o toque de vitória, — ordenou Adonias ao cometeiro Ferraz.
— Na manhã morna e mormacenta, de céu baixo, a

121
corneta retinia seu som triunfal. Os cahorros latiram e vieram até onde estava o
corneíeíro. Ali, cheiraram o velho e Mulato e arrepiaram o cangote, pegando a
acuação.
Na terra úmida do orvalho da noite, por entre folhas e húmus, a barbaça
esparramada no gibão de couro, na mão grossa a taça bem trançada. Os
cachorros se escoravam nas patas dianteiras e embarroavam, arrepiados e
ferozes.
Adonias deu uma coronhada no bicho e o escorraçou para longe, para
onde saiu ganindo.
— Deixem os homens.’ Cerquem a casa! — As ordens vinham do Alferes
Severo que tomava a Mauser das mãos de Freitas Machado.
Havia uma agitação generalizada. Os tiros, o sangue, o toque de corneta
excitavam os homens, como acontece aos onceiros. Tomando sua Comblain
pelo cano, disse Adonias:
— Cobra a gente faz é desse jeito. Hum! — Macetou a cabeça do velho
com o coice da pesada arma e saiu com ela pingando sangue por entre as
canas verdes que tremulavam ao vento da manhã.
— Atenção, atenção! — De riba de um toco o Tenente Mendes de Assis
vociferava: — Vocês vão dizer que o velho e o camarada nos receberam à bala.
Vão dizer que eles resistiram à prisão.
Houve um momento de sossego entre os praças. E a voz repetia: —
Quem não disser isso, vai comer processo. Olha lá!
— Pra casa! — gritava Severo, empurrando os soldados com o cano da
Mauser do velho.

Aí apareceu o Soldado Tonhá. Largou a Comblain no chão, examinou ao


redor, se aproximou dos defuntos e pegou a revistar os bolsos deles. Mulato
tinha uma faca aparelhada de prata. Tonhá tirou e botou ela na cintura. Este não
tinha mais nada. A espora era vagabunda, no pé uma alpercata velha, o chapéu
sebento e roto. Tonhá ouviu passos, voltou-se. Chegavam o Soldado Guia-de-
Cego e o Cabo Bernardino.
Num minuto, Guia-de-Cego passou a revistar o velho. E como o fazia com
rapidez, com coisa que tinha prática. Revirou-lhe as algibeiras, pegou um picuá
onde encontrou fumo, palha e artifício. Passou tudo para seu bolso. Tonhá tinha
ódio. O velho podia

122

ter mais coisas, o miserável do Guia-de-Cego limpava. No entanto, a preferência


devia ser sua. Chegara primeiro.
Guia-de-Cego pegou uma coisa brilhante, levou aos ouvidos.
— Será que é ouro? — indagou. Era um relógio. As mãos sujas de
sangue seguravam o objeto nos ouvidos.
Tonhá não se conteve mais. Avançou, afastou Guia-de-Cego, suspendeu
o gibão de couro do Coronel Pedro Melo e lhe meteu as mãos pela cintura,
escarafunchando as bolsas de um largo cinturão. Com pouco retirava uma das
mãos trazendo um bolo de papel. Eram tantas notas, que não se conteve: — Oh,
que bolão!
— Isso num tá certo, gente. Vocês vão complicar os companheiros...
Entre assustado e nervoso Tonhá se virou para o lugar de onde vinha a voz.
Reconheceu o Cabo Bernardino.
— É mesmo, — dizia outra voz entre as moitas. Tonhá pensava no
Sargento Fuinho. A coisa começava a render. Fazia seis meses que esperava
por essa oportunidade. Outras viriam. Aquilo era apenas o começo. Bem que o
Sargento Fuinho lhe dizia. Em Boa Vista, muito soldado e muito oficial ficou
podre de rico roubando defuntos. Era só não dormir no ponto. Ele quase que
perdia tudo!

O DURO ACORDAVA, como todos os dias. Os telhados baixos fumegando com


o café da manhã, meninos chorando por falta de leite, mulheres preparando
cuscuz para a primeira refeição. O sol não surgia porque a neblina era densa.
De repente, a notícia tomou conta de tudo: — O restante da Força ia seguir para
a Grota, para reforçar o grosso da tropa, que está lá desde a madrugada.
Ficariam apenas o Alferes Mariano com meia dúzia de praças para garantir o
juiz.
Todo mundo perguntava e ninguém sabia informar. A notícia mais certa
era de que a polícia fora prender os Melos, eles resistiram, e o velho Pedro tinha
sido morto. Agora vieram chamar o restante da tropa.
— Então está havendo combate?
— Mataram só o velho?
— Pelo menos, foi o que me falaram.
— Pois eu soube que mataram todo o mundo, de mamando a
caducando...
— Ah, não é possível!

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Atravessando o Largo, lá se ia Enéias com o restante da Força para a Grota.
Nas moitas de assa-peixe e cansação da grotinha do Largo, as almas-de-gato
com seus pios. Por entre a neblina, uns relinchos de animais no cio.
O povoado estava mais triste ainda, as casas fechadas, recolhidas em mistério,
o pessoal raro deslizando mudo e temeroso, cochichando aqui e ali,
completando com a imaginação o que desconheciam.
Lá se iam os soldados num passo acelerado, sacudindo as armas, sacudindo as
mochilas de bala. Pelas moitas, as almas-de-gato piavam: — choó, choó, choó.
As crianças nem choravam, embora o cuscuz ainda custasse a ficar pronto.
MENDES DE ASSIS batia na porta da casa: — Abram a porta em nome da lei!
— Num requinte de delicadeza esperava que o sol doirasse a grimpa dos
angicos da beira do córrego, para então bater: — Abram a porta em nome da lei!
A porta se abriu e apareceu Tozão, com os grande braços balangando, o carão
comprido de mamão macho. Pediu que esperassem um tiquinho, até que as
mulheres se aprontassem mal e mal:
— Estavam se lavando nest’hora. — Deu dois daqueles chupões nos dentes
cariados e fechou a porta.
— Desculpa, — observou Severo. — Querem se preparar para resistir à bala. —
Alferes Xavier achava que era justo o pedido: — casa de família, cheia de
senhoras. Por fim a porta se abriu. Os soldados ficaram de fora, para não
deixarem entrar ou sair ninguém e os oficiais entraram.
Logo de cara Severo pegou algumas pessoas de armas na mão e mandou
prendê-las, ficando os homens numa sala e as mulheres em outra, vigiados por
soldados. Já o Tenente Xavier dava busca na casa, vasculhando os cômodos,
subindo ao telhado, revirando caixotes, armários, camas e colchões. Com prazo
de uma hora, Tenente Xavier voltava dizendo que nada encontrara. Havia um
pouco de armas e munições, mas de Artur nem rastro.
— Ninguém. — admirou-se Severo. — Procurou na tulha? — Xavier afirmava de
pedra e cal que revistara tudo e que ali dentro Artur não se achava.
O Tenente Mendes de Assis fez um gesto com as mãos e deu

124
ao rosto a expressão de quem dizia: Está aí. Fugiu. Não posso fazer nada! —
Mas Severo não se conformava: Artur não estaria ali mais, ao tempo da prisão
do velho, como queria o Alferes Xavier?
— Ah, isso não. Artur estava aqui dentro, — teimava Severo. — Tanto estava
que o velho chamou por seu auxílio.
Ao lado, Carajá informava com toda a certeza, entre curtas frases:
— Carajá tem zóio vivo. Carajá num viu Artur fugi...
— Temos que encontrar ele, — dizia Severo.
— Mas ele não está — repetia Mendes de Assis, demonstrando propósito de
abandonar a busca do homem. Severo dava ordens para nova procura. Tinha
consigo a ordem do juiz e a cumpriria custasse o que custasse.
Por estas alturas, Enéias chegava com seus homens e, ciente da situação,
também se meteu na busca. Enéias não estava ali para cumprir mero dever
militar, nem para roubar, como o Soldado Tonhá. Enéias ali estava para derrotar
os Melos, para destruí-los, para acabar com eles e com seu parceiro Abílio
Batata. Enéias ali estava para vingar a derrota que Batata infligira a seu pessoal
em Pedro Afonso, para vingar as mortes e os prejuízos que Batata, com apoio
dos Melos causara a seus parentes. Alferes Enéias foi lá dentro, procurou o
Cabo Odilon, mandou-o que reunisse quatro praças de coragem e fossem bater
os arredores. Levasse consigo Salustiano Dantas, Daniezinho, Nestório e Zé
Rodrigues. Enéias os conhecia bem.
— Não deixem uma furna, uma grota, uma moita de cambaúba sem exame!
Odilon velho ria mostrando os cacos de dentes, enquanto Enéias lhe segredava:
— É só ver, mete bala... O resto é comigo...
Odilon gritou pelos soldados e saiu estalando as alpercatas de couro cru. Botina
num serviço como aquele só servia para estorvar.
Mendes de Assis veio conversar com Enéias para dizer-lhe que Xavier não viu
nem rastro de Artur:.— Pra mim fugiu.
— Se fugiu, não vai longe. Atrás dele vai gente sacudida. — Aquele Sargento
Odilon era homem do tempo das lutas de Boa Vista e aquilo é que foi luta de
verdade!
Mendes de Assis ergueu o quepe, cocou a cabeleira suada e

125
aproveitou para tirar um tiquinho a perneira, pois um bicho o mordia
dolorosamente na perna. Só podia ser roduleiro que em princípio de águas não
tem carrapato.
— Vamos lavrar o auto de resistência e oficiar ao juiz o resutado da diligência, —
disse Mendes de Assis mais num tom de consulta do que de ordem. Não parecia
ser o comandante.
Enéias não deu ouvidos. Fosse para o diabo aquele Mendes Assis. Era uma
besta. Interessava-lhe pegar Artur, isso sim. Não podia crer que ele houvesse
fugido.
Enéias entrou pela casa e topou Xavier que ainda revirava um bruacas velhas
no cômodo dos arreios, ouvindo de sua boca que não encontrara ninguém.
Enéias não acreditava em Xavier, como Xavier não acreditava em Enéias. Aliás
cada oficial desconfiava do outro. Mendes de Assis não confiava em Severo, em
quem via um rival. Carvalho queria dar-lhe o comando. Enéias por seu lado era
malvisto de todos que enxergavam nele não um militar, mas um paisano
fardonado na última hora, para saciar seu desejo de vingança. Os sargentos
Odilon e Alcides tinham ódio de Enéias, porque obtivera sua nomeacão para o
cargo de alferes; este cargo lhes devia pertencer por direito ou por antigüidade.
Afinal, estavam na polícia há muitos anos.
Sargento Odilon vinha das brigas de Boa Vista, isso fazia vinte e poucos anos.
Tinham bons serviços prestados ao governo e na hora da promoção, na hora de
ganharem mais o governo ia buscar gente de fora, só porque era protegido.
Mendes de Assis também todos desconfiavam dele. Diziam que era medroso,
um vira-folha. Em Xavier viam um sujeito ambicioneiro, capaz de vender até a
alma. Ali mesmo estava Enéias maliciando a atitude de Xavier e de Assis.
Podiam ter qualidades mas eram capazes de proteger os Melos. Xavier então
estava esquisito, cheio de delicadezas com o pessoal da Grota, com coisa que
essa gente não era inimiga.
— Homem, eu também vou dar uma busca na casa, — disse Enéias.
— Vou mais o senhor, Seu Alferes. — Enéias olhou e reconheceu quem lhe
oferecia auxílio: o Sargento Alcides, que passou a dizer que conhecia a casa. Se
alguém estivesse escondido, só podia ser na tulha de farinha, mas era difícil
esconder ali. Custoso

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qualquer pessoa meter-se dentro da farinha sem afogar-se. Contudo...
Enéias e o sargento foram para o cômodo da tulha. Prontamente o sargento
marinhou pelas tábuas, pediu lá de cima a espada do alferes e meteu-a torto e a
direito na farinha.
No meio da farinha estava Artur Melo, para quem o sargento piscava o olho em
sinal de amizade. Artur estava de um lado e o sargento metia a espada do outro.
Depois Artur passava para o outro lado e o sargento metia a espada do lado
contrário. Cá de baixo Enéias orientava a caçada, e achando a espada curta,
tomou uma Comblain, calou a baioneta e mandou que o soldado chuchasse com
ela a tulha. A arma metia-se na farinha até topar o fundo da tulha.
Sargento Alcides suava de esforço e de sobressalto. E se Enéias resolvesse
subir na tulha? Nesse caso, o remédio extremo seria meter-lhe a baioneta e
enterrá-lo ali na farinha.
Sargento Alcides deixava de pensar nisso, para pensar no Alferes Xavier. Que
diabo! Xavier também revistara a tulha. Xavier certamente viu Artur dentro. Será
que Xavier também era espião? Pelo que sabia, Xavier tinha sido delegado
especial, havia uns quatro anos, ali no Duro e fora recolhido porque o
denunciaram como sendo um verdadeiro cabo de chicote dos Melos. Ali tinha
marosca do Xavier!
— Chega, — gritou Enéias. — Aí tem ninguém não!
O sargento tomou alma nova e pulou de cima molhadinho de suor, o fôlego
curto, numa sopração de cachorro que correu veado. Enéias chegou a ignorar:
— Sentindo alguma coisa, só!
— Até agora sem comer nada, meu Alferes... desde as duas horas em pé...
Lá fora aprontavam para levar o cadáver do velho e de Mulato para a rua.
Mendes de Assis lavrara o auto de resistência, já oficiara ao juiz comunicando o
resultado da diligência e o juiz mandara levar os cadáveres para o auto de corpo
de delito.
Enéias pediu permissão ao comandante. Iria juntar-se ao Sargento Odilon e a
seus soldados. Ah, Artur não escaparia! Outra ocasião tão propícia para forjar
um auto de resistência jamais encontraria. Se andasse ligeiro, quem sabe Artur
não seria enterrado de uma só vez com o pai e com Mulato?

127
O cavalo rompia distância e Enéias pensava. Certamente Artur dirigia-
se para o Açude. Ao Açude, porém, Enéias não ia só com um sargento e quatro
praças. Açude devia ter gente muito bem armada. João Rocha estava lá e a
jagunçama de João Rocha era a cabeleira da jagunçama. E Abílio Batata será
que não estava tam bem lá? Homem, nem a companhia inteira do Duro daria
conta do Açude. Quem conhecia Batata e Roberto Dorado era Enéias.

POR VOLTA das dez horas da manhã chegavam à Vila os corpos do Coronel
Pedro Melo e de Mulato. Vinham os dois numa só rede, misturando na morte o
sangue.
A Vila estava deserta e muda, apenas os praças do Alferes Mariano
guardando a casa do juiz, vizinha da igrejinha. A gente dos Melos estava na
Grota, as mulheres de soldado estavam na fazenda, os adversários dos Melos,
poucos, estavam na rua. E os que estavam na Vila, ao saber da notícia,
fecharam-se em suas casas. Portas fechadas, janelas fechadas, apenas uma
frinchinha aberta por onde vigiavam os acontecimentos. Que coisa horrorosa!
Mataram o Coronel Pedro Melo, o homem que supunham imortal! Agora Artur
atacaria o povoado para vingar a morte do pai. Artur era companheiro de Abílio
Batata, Roberto Dorado e Maroto, chefes de bandos famosos pelos massacres
de Pedro Afonso, São Marcelo e Santa Filomena, no Piauí.
— Vai haver castigo, — regougava Januária. — Eles num respeitaram
nem a véspera de Natal!
De seu sítio chegou Valério Ferreira e foi comentar o ocorrido com
Vicente Lemes:
— Coisa malfeita, Valério, o velho não merecia isso. — Valério fechava-se
em copas. Chupitava o cigarrinho, tossia, mas não dizia nem arroz.
A rede lá vinha pelo povoado vazio, vazio, conduzida por dois soldados.
Os passos retumbavam, a carga estava pesada, o sol retremia de quente. Os
soldados deitaram a rede no chão para tomar fôlego. Da terra subia um bafo de
mistura com o trilar dos grilos. Nuvens grossas manchavam o céu azul; nenhum
vento soprava. Iam ter aguaceiro pela tarde.
De cá, Valério cutucava o braço de Vicente, ambos na frincha da janela:

128
— Vejam onde descansaram o velho!
— Meu bom Jesus da Lapa! — bradou Lina, que se encolheu todinha,
assaltada por súbito arrepio. É que haviam pousado a rede justamente no lugar
em que o velho fincara a alavanca para marcar onde caíra morto o sobrinho
Vigilato.
Por trás de cada porta e de cada janela, alguém fez o pelo-sinal e beijou o
bentinho. Aquilo era castigo. E mais castigo estava para vir. Mataram um homem
tão poderoso como o Coronel Pedro Melo e ainda por riba na véspera do Natal!
— Arriba com a rede, — comandou um oficial. Os soldados meteram os
ombros, os passos retumbaram no Largo deserto, foram esbarrar na porta do
juiz, em cuja sala se fez o auto do corpo de delito nos dois cadáveres.
Ambos estavam irreconhecíveis, com as cabeças esmigalhadas, cheios
de balázios e facadas, sujos de sangue e de terra. Doze horas e não haviam
terminado o auto, o grosso da tropa entrou no povoado, conduzindo presas
diversas pessoas. Vinham Melinho, irmão de Artur, e Hugo, filho de Tozão.
Carvalho determinou que todos fossem postos em liberdade, com exceção de
Hugo. Este era um dos indiciados e ficaria preso para o sumário de culpa.
Carvalho determinou a Mendes de Assis que pusesse a tropa em forma.
— Companhia, sentido!
E ali, em frente dos soldados, diante dos dois cadáveres de rostos
descobertos, os oficiais Mendes de Assis, Xavier e Severo juraram solenemente
que os dois homens tinham sido mortos porque ofereceram resistência à ordem
de prisão. Cada um dos oficiais disse isso de sua vez, com voz solene que
reboava pelo Larguinho. A voz rolava clara. Cada palavra era repetida pelo eco
da casa fronteira. Parecia que alguém colocado de lá repetia as palavras num
tom sardônico e terrível.
Feito isso, Carvalho chamou o oficial de justiça e deu ordem para
entregar os cadáveres aos parentes, para o enterro.
Moisés Albuquerque Melo era um dos poucos parentes que ali se
achavam. Sobrinho do velho e cunhado de Artur como de Vicente Lemes, esse
parentesco lhe dava uma posição neutra no conflito. Tanto mantinha relações de
amizade com os Melos, quanto com seus rivais. Moisés levou os dois cadáveres
para sua casa, deu-lhes banho, limpou. Mandou um portador à Grota, onde
ficara

129
Aninha, esposa do velho, Anastácia, filha dele, Tozão, seu cunhado e genro,
para saber as ordens. Mas ninguém veio. Mandaram dizer que Moisés
enterrasse o tio no cemitério da Vila.
Moisés então retirou da casa de calçada alta a roupa de casimira, camisa,
meias, botina e gravata do velho Pedro Melo. Vestiu-o como ele não gostava,
isto é, casimira: vestiu-o como um boneco. Enquanto isso, o carapina
encarregado de fazer o caixão procurava por toda parte as tábuas de cedro que
o velho preparara e guardara para o seu enterro. Mas não encontrava.
Era uma pena! Moisés queria respeitar a vontade do tio. Sabia que ele
queria que seu caixão fosse feito com aquelas tábuas. Debalde enviara
portadores à Grota, mas a velha Aninha nada podia adiantar, parece que estava
passada com o choque.
— Que pena não achar as tais tábuas! — Moisés ainda se lembrava. Foi
quando o velho abria a estrada de Barreiras que viu a vergôntea de cedro
agitando no ar as suas folhas verdes. Viu e não deixou que a cortassem. Era
para crescer e dar tábuas para seu caixão.
O cedro tornou-se intocável, cresceu, virou árvore frandosa ali no meio da
estrada. Todos que por ali passavam, lembravam que aquele cedro era para o
caixão do velho Melo, e o respeitavam. Alguns pensavam: Será que o velho
morre? Ele não se diz imortal! E a história de Maria Pequena, a história que o
capetinha da garrafa o livraria da morte!
Entretanto, apesar dessa compreensão, apesar de se ter como imortal,
com os anos o velho pegou a perrengar. Já não comia, como antes, seus
pratarrões de arroz com carne-seca. Já não suportava, como sobremesa,
aqueles pratos de arroz temperado apenas com sal. Um peso no estômago,
dores, mal-estar, bocejos. Um dia, o Doutor Alípio lhe dissera:
— É úlcera, coronel.
Mas ele danou-se:
— Que mané úlcera. Isso é raiva do desgraçado do Vigilato! E tentou
reagir, fazer suas caçadas, comer seus pratarrões de arroz, mas sentiu que não
era mais o mesmo. Uma morrinha pelo corpo, boca amarga. Aí, calmamente,
chamou Resto-de-Onça, aprontou o carro de bois, meteu-se dentro e lá se foi
pela estrada de Barreiras até topar o cedro. No caminho, juntou mais gente.

130

— Derribem o pau, — ordenou, e tirem as toras para desdobrar em


tabuado.
Ele mesmo catou os raminhos menores de cedro, amontoou dum lado da
estrada com aquele cuidado que ele sabia ter. Depois voltou com as toras para a
rua e deixou elas na frente de sua casa, para secar.
Passado um ano, com a entrada da seca, contratou uns serradores,
armou no Largo o estaleiro, cobriu-o com folhas de buriti e durante vários meses
o povo teve sua distração, que foi a de ver os serradores desdobrando as
tábuas.
Eram dois maranhenses entroncados e contadores de estórias. Um deles,
o Realino, era paralítico das pernas, mas ninguém o agüentava na serra.
Primeiro lavraram as toras a machado, em seguida meteram a serra de
mão. O velho sempre estava por ali olhando o serviço e para a prosa vinham
outras pessoas. Vinham Moisés, Afonso Quinto, Constando. Os rancores ainda
não eram muito profundos. Pouco antes se dera a briga com Vigilato e ali junto
dos serradores o velho arrastava seus bagaços, cuspindo com as dores do
estômago. Realino velho contava estórias de Abílio Batata e dos barulhos da
Boa Vista. Até sabia uma moda de Abílio Batata, que era uma coisa muito
bonita.
Tirou-se dúzia e meia de tábuas boas, que o velho guardou
cuidadosamente para não empenar. Era seu caixão. De vez em quando havia
precisão de cedro e o povo se lembrava: — Bem que o coronel tem umas.
Mas ninguém tinha coragem de falar com ele. Sabiam que eram
especialmente para o caixão dele. Pronto!
Naquela manhã Moisés procurava as tábuas. Perguntava a um e outro,
onde será que o velho tinha guardado elas, mas ninguém não dava definição.
Ainda se Camila estivesse ali, ou Mulato não houvesse morrido, poderiam dar
informações. Ninguém que estava na Grota tinha coragem de vir à Vila. Aninha
só fazia esbravejar, Doutor Herculano não queria vir, negra Camila andava meio
banzeira, a mo que dormindo em pé. Sabia de nada dessa vida. Resto-de-Onça
ninguém sabia por onde andava, nem de Artur se tinha notícia!
Pelas tantas, Moisés tomou deliberação. Largassem as tábuas

131

de cedro de mão. Pegassem aquelas de São José que estavam emcostadas no


sobrado do Largo.
Tardezinha, saiu o enterro. Quase ninguém havia para acompanhar os
dois corpos. Maria Pequena e a velha Januária iam atrás rezando seus terços e,
ao passar pela igreja, bateram síninho. Maria Pequena pensava na capetinha do
juiz. Ela previra que o juiz, ou antes, sua capetinha daria cabo do velho. Os
Melos podiam muito até que Carvalho chegou com a capetinha. Dagora em
diante estavam perdidos.

RUMO AO CEMITÉRIO, ia o cortejo, constituído de umas dez pessoas, se


tantas. Pelas moitas de assa-peixe e de cansançao da grotinha, as almas-de-
gato piavam e piavam de novo, voando o vôo mole daqui prali. Ah, estavam
mexendo no cemitério, já se sabia! Os bichos ficavam assanhados e vinham
para a Vila dar o alarma, protestar contra a invasão de seus domínios. Já
boquinha da noite e os bichos ali na rua voando seu vôo molengo e piando
aqueles pios de mau agouro.
Quem diria que no outro dia era Natal, que no outro dia de festa?
Ninguém estava se lembrando do nascimento do Menino Jesus. O que havia era
o medo, a opressão, o temor ainda não configurado perfeitamente de que Abílio
Batata viria vingar o sangue do velho coronel.
Talvez nem dez pessoas acompanhando o enterro. Para pegar na alça
do caixão apareceram os mais pobres, os mais humildes: o coveiro, o carapina,
o pedreiro. De mais posição, só havia o Moisés. Tal e qual o enterro de Vigilato.
Era castigo. Vicente Lemes se condoeu do abandono, chegou a pegar o paletó
para sair, mas Lina o deteve. Lina era sobrinha do velho e tinha no sangue a
malícia deles.
— Não vai, Vicente. Não vai, que amanhã vão dizer que Você foi para
mostrar grandeza, para regozijar.
Assim dizendo Lina cerrou as portas e as janelas do casarão de Dona
Benedita. Sinal de luto, que duraria sete dias. Ela e a filha poriam vestido preto,
pelo tio. Já entregara a roupa para Maria Pequena tingir no barreiro.
Do alto, vinha a noite — uma noite terrível. Os céus para os lados da
Bahia estavam da cor de carvão, de tão carregados de nu-

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vens. De vez em quando um relâmpago cortava o negrume e o ribombo do
trovão ecoava soturno pelas serras, fazendo retremer as portas e janelas.
Em dezembro, as noites chegam tarde. Em dezembro, oito horas da
noite, a gente ainda pode andar sem candeia dentro de casa. No entanto,
naquele dia, seis horas e já Alice acendia a candeia.
A chuva cairia já-já sobre a cidade. Valério Ferreira não iria para seu sítio.
A chuva já pegava a cair e era chuva dos diabos. Ferreira dormiria ali mesmo.
Lina serviu o jantar.
A seguir Valério Ferreira e Vicente Lemes pegaram a conversar. Já se
sabia muita coisa da ocorrência da Grota. Vicente não queria fazer um juízo
temerário, mas a polícia se excedera. Diziam que o juiz Carvalho estava muito
enfezado com Mendes de Assis. Ô juiz teria dito que a polícia tinha praticado um
crime revoltante.
— Pedro achou o que caçava há muito... Agora falta o filho...
Vicente se admirou da dureza de Valério. Como podia ser assim
intransigente, como podia ter tanto ódio! Vicente Lemes era mole. com o velho
morto, toda a mágoa se fora. A morte punha termo a tudo. Sinceramente que
não sabia odiar. Mesmo para o inimigo, Vicente achava que se devia ser justo e
humano. Sinceramente lamentava a morte do velho. A polícia fizera violência. Se
Carvalho estivesse na Grota, não o teriam morto.
No fundo, um terror atazanava Vicente. Era impossível admitir que o
velho tivesse morrido daquele jeito. Ele que era tão poderoso, tão arrogante! E a
coisa ficaria naquele pé? No fundo, no mais profundo de seu entendimento,
Vicente mesmo achava que um castigo, um castigo qualquer cairia sobre a
cabeça dos habitantes do Duro, pela morte do velho Coronel Pedro Melo.
Valério também acreditava que a polícia se excedera, mas dava de
ombros:
— Se a polícia fez violência, pela primeira vez fez violência útil.
A chuva batia com força. Chuva de vento, ululando nas janelas, entrando
pelo vão das telhas, entrando pelo vão do pau-a-pique meio roído num ou noutro
ponto, apagando as candeias, com cada raio que alumiava meio mundo e
reboava pelas serras num estrondo de ensurdecer.
Valério Ferreira levantou o corpo magro de tuberculoso, tossiu, acendeu
um cigarro e pilheriou amargamente:
— O velho já aportou lá em riba... assunta o barulho!

133
— Uai, amanhã é dia de Natal! — admirou-se a menina Alice Lina não
disse nada, mas sentiu uma pontada no coração. Dona Benedita, aquele ano,
não estava fazendo seu presépio, como de costume. E isso era mau sinal. Ixe,
havia tantos maus sinais naquele dia!

A POLÍCIA abriu novas trincheiras e reforçou as guardas. Esperava-se que Artur


Melo atacasse a qualquer momento com o pessoal do Açude. Vicente chegou
até pensar em mandar buscar em Pedro Afonso o preto Supriano, a única
pessoa que havia conseguido escorar Abílio Batata por aquelas bandas. Nisso,
porém, outras notícias chegaram. Artur havia seguido para a Bahia, talvez em
busca de mais gente, talvez para depois atacar.
Homem resmungão, o Valério Ferreira. Ele falou pra Vicente que o Juiz
Carvalho andava com parte.
— Com parte, como?
. — Está muito apressado. com jeito de quem está louco para terminar o
inquérito e ir embora.
Vicente riu. Para Ferreira tudo ia sempre mal. O juiz não iria sair num
momento como aquele, com a ameaça do ataque a qualquer instante.
Valério disse a esmo: — Sei lá! Já vi tanta gente correr desse Melos...
Não creio que Carvalho saia em paz...
— Ara, ’cê só vê o lado ruim, Ferreira — reclamou Vicente, mas ficou com
a pulga atrás da orelha: Sabia-.se lá! Antes Valério Ferreira falou de um pacto
entre o Juiz Carvalho e Artur Melo; todo mundo achou que era maledicência de
Valério. Quando acaba, Hugo Melo preso na casa do juiz estava agora
afirmando que esse trato existia. Hugo Melo afirmava que o juiz tinha garantido a
seu tio que dispersasse os homens e ele impronunciaria a todos.
Vicente dava tratos à bola, pesando as palavras de Ferreira. Deveras o
processo ia numa corrida dos trezentos. Já se havia realizado o sumário de
culpa, com inquirição de testemunhas, já se tinha feito o interrogatório de Hugo
Melo, preso na Grota, único indiciado presente ao sumário. Para terminar, dera o
juiz sua sentença, pronunciando Artur Melo, João Rocha, Hugo Melo e os irmãos
Chapadenses. Quer dizer que o processo estava terminado.
O que havia era boato demais. Naquele instante, por exemplo,

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comentavam que tinha havido um levante na polícia. Mendes de Assis e Xavier
levantaram-se contra o juiz que não foi preso porque Severo e Enéias não
deixaram. O motivo? O motivo era o dinheiro desaparecido. Dezoito contos
tinham sumido da algibeira do velho, no dia que mataram ele. O juiz determinou
um inquérito e queria prender os suspeitos. Mendes de Assis e Xavier
rebelaram-se.
Cabo Matias, ordenança do juiz, procurou Vicente Lemes: — Doutor
Carvalho está pedindo pro senhor dá um pulinho lá.
— Pois não, uai. — Andando, Vicente pensava nas palavras de Valério
Ferreira. O juiz anda muito apressado. Parece que quer ir embora. E os
jagunços de Abílio Batata, será que atacavam? com certeza o juiz vai me contar
que pediu reforços em Goiás. Mas não vai valer de nada. Mesmo que venha
reforço a cavalo, vai demorar um mês, e até lá Artur já fez disso aqui um outro
Pedro Afonso. Não tem jeito. É castigo da morte do velho’.
Em sua sala, Carvalho estava como sempre: delicado, de uma polidez
que não permitia intimidades, bem-posto no terno de linho branco, a gravata
arrumadinha, barbeado de fresco.
Falava com energia, soltando as palavras como se fossem balas, mas
pronunciando distintamente os sons. Começou por explicar que já havia dado o
seu despacho de pronúncia, havia feito prender quem pôde e, assim, nada mais
havia que fazer ali.
— Minha missão, minha aspérrima missão está finda. Sentado no banco,
Vicente não sabia o que dizer. Carvalho não afirmara, mas Vicente adivinhava
que ele ia partir. Valério desgraçado.
— Vou deixar a Vila — declarou Carvalho, num tom peremptório e solene.
— Comigo seguirão o promotor, o escrivão, o AIferes Mariano, Sargento
Barnabé, nove praças e meu camarada Alexandre.
Tais palavras deram uma dor no coração de Vicente, causaram uma
sensação de imenso susto, despertou nele o sentimento de uma forte ofensa
pessoal. Foi quase num soluço, sem sequer fitar o juiz, que perguntou:
— E a Força? Vai também?
— Não. A Força fica. Afora as pessoas citadas, a tropa inteira fica aqui.
Nesse ponto, o juiz levantou-se procurando talvez fugir ao mu-

135
tismo do interlocutor. Seu vulto atlético foi para lá e veio para cá num passo
firme e elástico, como um tigre. As mãos nos bolsos da calça, o rosto baixo,
continuava no mesmo tom peremptória — Também os doentes, aquele tísico, os
estropiados, aquele enfermo de doença venérea vão embora.
A cabeça de Vicente zoava. Não sabia como reagir. Ficar calado, dizer
alguma coisa, continuar assentado, ir para casa? Pegou o canivete, o fumo,
alisou uma palha e se pôs a picar fumo, enquanto tentava encarrear as idéias.
Cruzou e recruzou as pernas, Ele tinha esse hábito deselegante de estar.
Cruzava as pernas e, como elas eram magras, enrolava-as mais uma vez pelas
canelas. Ficava encolhido, murcho, feioso que nem um macaco doente.
De cabeça baixa fazia o cigarro, a cara contraída no esforço da
concentração mental, o nariz adunco parece que mais adunco. Nos olhos,
olhinhos azulados, sentia um ardume de lágrimas. Era uma merda. Uma merda
aquele tique. Tinha medo que as lágrimas lhe corressem pela cara. Era preciso
reagir, bancar o homem, um homem não chora, Vicente!
Em seus ouvidos zumbiam as palavras de Valério. ”O juiz estava se
sujando. Porque sair naquele momento? Se os jagunços estavam ameaçando
invadir a Vila, a culpa disso cabia a Carvalho que decretou a prisão do velho,
mandou prendê-lo e, de uma ou de outra forma, contribuiu para sua morte.
Agora Artur vinha vingar a morte do pai e nessa hora o Doutor Juiz de Direito ia
embora, dava por finda sua aspérrima missão!”
Essas considerações tiveram o condão de acalmar Vicente, que se sentia
senhor de si, com coragem de fitar Carvalho. E o enxergou com a dimensão de
um homem comum. Perdia a grandiosidade com que sempre Vicente o
enxergou, na sua fantasia de tímido e emotivo. Parado na sua frente, Carvalho
perguntava:
— Você acha, Vicente, que eu devo permanecer aqui uma vez encerrado
o processo? Há motivo para essa permanência?
Vicente fitou-o vagamente, como se estivesse olhando através de seu
vulto, como se uma distância imensa separasse eles dois.
E não respondeu nada.
Estava pensando em sua própria situação. Aquela pergunta feita de
chofre, o desnorteava. Foi o juiz mesmo que contestou, raciocinando em voz
alta:
— Se eu permanecer aqui e Artur atacar, dirão que o ataque

136
foi motivado pela minha permanência. Indo embora, todos dirão que fui covarde,
mas a verdade é que nada há que justifique minha permanência. Fui
comissionado para quê? Para apurar fatos e punir aqueles apontados como
culpados. Foi o que fiz. As decisões legais são cumpridas pelo órgão coator,
pela Força, pelas Forças Armadas.
Parecia que havia terminado, mas ainda acrescentou:
— Minha missão foi cumprida inteiramente. Artur quer vingarse do juiz.
Ora, se o juiz não estiver na Vila, ele não atacará. É um raciocínio mais do que
lógico!
Andou, virou e arrematou:
— vou ficar com nome de covarde. Não importa. Quem sabe se sou
covarde ou não, sou eu.
Carvalho tinha razão. Era duro aceitar seu afastamento, sua figura física e
moral era uma garantia para os moradores, mas não se podia exigir que ficasse.
Vicente não se sentia com forças para convencer o homem a ficar. O raciocínio
dele tinha sido claro e convencedor.
— Está certo, Doutor. Ninguém está dizendo nada de sua atitude não.
Carvalho continuava andando para lá e para cá, parece que querendo
ouvir uma objeção qualquer dos lábios de Vicente, mas este estava atordoado.
Em seus ouvidos zumbiam as palavras de Valério: ”Carvalho tem trato com os
Melos”. Diante de seus olhos, não era o Juiz Carvalho que andava: era Valério
Ferreira, corcunda, a cara magra, a tosse cava, consumido como um defunto.
Vicente sentiu uma idéia surgir, crescer, tomar corpo: também ele devia
abandonar a Vila. Ele apenas? Também Ferreira, também Júlio de Aquino,
também Moisés, também a sogra Benedita, Argemiro Félix, Jugurta e outros.
Deixar a Vila e levar a família, gado, pertences, levar tudo.
Mas seria isso possível, gente? Deixar a Vila seria confessar a derrota,
seria dar a vitória aos Melos. E se saíssem apenas ele, Vicente, e Valério?
Nesse caso, em que situação ficariam os parentes, os amigos, todos aqueles
que acreditaram e confiaram neles dois, seguindo-os, dando-lhes apoio?
Para Vicente, uma retirada naquele momento significava medo,
acovardamento, vergonha para o resto da vida. Além de tudo, deixar a Vila era
entregá-la e a região à sebaça de Artur e seus capan-

137
gas, que roubariam, matariam, violentariam mulheres: Pedro Afonso, Boa Vista,
São Marcelo.
Carvalho assentou-se à mesa, tomou de uma pasta e informou Vicente de
sua última resolução: havia demitido Mendes de Assis do comando do
destacamento. O comandante agora era Severo. — Nesse sentido, enviei um
portador para a Capital, levando correspondência ao governo. Mas não creio
que o portador chegue. Artur o prenderá por aí. Foi por Barreiras.
A esse tempo, a noite vinha caindo. Feia, fria, molhada, de chuva. Fazia
já dias que a chuva não cessava, chuva teimosa, chuva renitente, que o vento
açoitava feito uma neblina. Pelas grotas a saparia roncava, enquanto a
enxurrada gorgolejava. Nas moitas que cresciam com uma exuberância de
milagre, os grilos cricrilavam numa monotonia de dor. No córrego, as saracuras
quebravam seus potes.
Alexandre entrou na sala e disse alguma coisa a Carvalho que se virou
para Vicente Lemes:
— Veja aí. Os animais estão no pátio. Vamos arrear. Novamente invadiu
Vicente a sensação aguda de desamparo, de isolamento, de ameaça dos
jagunços. A idéia de deixar a Vila, de ir embora como o juiz era impraticável.
Quando ia pensar nela com mais profundidade, as idéias fugiam, um abismo se
abria no cérebro, tolhia-o uma inibição irremovível. Fugir não era brincadeira.
Para o resto da vida seria um Enéias Peixoto.
Entretanto, por que razão contar como infalível o ataque deArtur? Ele
podia estar com farronca, mas não atacaria. Artur era político e renome, ex-
deputado estadual, não iria se transformar num cangaceiro. Ah, não tinha perigo.
Vicente conhecia demais Artur. Aquilo não passava de zoada que estava
surtindo efeito, pois Carvalho velho, tão valente, tão destemido, Carvalho já lá ia
de arribada!
Carvalho ergueu a voz:
— Mandei chamá-lo para que me adiante o dinheiro da viagem. — Ele
estava sem um real. Desde que deixara Goiás não recebera vencimentos. —
Depois pagarei à Fazenda, na Capital.
Vicente pediu licença, ergueu-se, foi a casa e trouxe o saldo da Coletoria.
Seis contos de réis. Carvalho contou, botou as notas dobradas dentro da pasta:
— Tem os selos para o recibo?

138
— Não. — Não havia estampilhas federais no povoado.
Carvalho daria uma declaração de recebimento. A pena rangeu no papel
escrevendo a declaração. Vicente dobrou e meteu no bolso, junto com a carta
de Eugênio Jardim e, a seguir, sentindo que nada mais havia que fazer ali,
apertou a mão do juiz:
— Até outra vista.
— Até outra vista — respondeu Carvalho.
— Feliz viagem... — disse Vicente, que quis espichar a frase, dizer
alguma coisa, mas era incapaz. Repentinamente, um muro, uma muralha caía
entre os dois homens. Até parecia que não-se conheciam, que eram dois
estranhos, aos quais nenhum interesse comum jamais ligara. Um desgosto
fundo, um desengano danado, um enfado de tudo apertando o coração de
Vicente Lemes.
Inda ontem entrava ao lado de Carvalho, todo garboso, mostrando o valor
da autoridade, provando que não era somente a violência que imperava no
mundo, afirmando que Artur e seu pai não eram os vice-reis que se diziam.
Afinal, naquela tarde, Vicente Lemes se encontrava novamente no desamparo,
cara a cara com a truculência. E em condições mais difíceis: tendo que
responder por crimes que não cometeu.

ERA NOITE quando Vicente Lemes chegou em casa. A mulher e Alice estavam
deitadas. Foi até o quarto e Lina perguntou o que estava acontecendo.
— Nada — respondeu. — Não há nada. Estava sem sono, iria ficar na
sala ainda um pouco.
Sentia vontade de conversar com alguém, trocar idéias. Se Valério
Ferreira estivesse ali, seria bom. Talvez até aprovasse a idéia de se retirarem do
povoado, de irem embora para outro lugar. Ferreira era compreensivo. Não fora
assim no dia do ataque ao Cartório? Quando não havia mais jeito, concordou
com Artur Melo.
E se procurasse o tio Argemiro Félix, ou os primos Moisés e Júlio de
Aquino? Qual! Não iria procurar ninguém. Era uma solução difícil de aceitar,
essa de deixar a Vila, sair pela segunda yez com medo de Artur e seu povo! Que
é que não iriam dizer os amigos e companheiros? Muita gente quando visse
Vicente e seus amigos pelas costas estaria dando vivas a Artur. E os
companheiros? Certamente que se sentindo livre dos opositores, Artur viria ao
po-

139
voado, prenderia gente, mataria, saquearia, faria o diabo. Não foi assim em
Pedro Afonso? Ali, Salomão Solino, Deocleciano Amorim e outros tiveram que
pagar um pesado resgate por suas vidas a Abílio Batata. Depois de receber
dinheiro, fazenda e outros bens desses homens, Abílio determinou a sebaça na
região, dali foram retiradas mais de seis mil reses, que Abílio, Maroto e dorado
levaram para a Bahia.
Do Largo vinham ruídos. Vicente chegou à janela. No escuro da noite
apenas vislumbrou vultos: era o povo do juiz indo embora.
A noite continuava meio fria, feia, nublada, com grandes nuvens
esgarçadas e baixas sujando o céu. Uma neblina caía molhando tudo. Lá se
foram os cargueiros, o oficial, os soldados. Alguns, a pé, outros montados. Até
os sapos na grota pararam de coaxar, até os grilos nas moitas suspenderam seu
cricrilar de sono para deixar a caravana passar, ir embora. Só os cães latiam
desesperadamente. A Vila dormia. Ninguém sabia que Carvalho ia embora,
ninguém estava vendo. Saía como fugitivo. Isso mesmo: como fugitivo!
Nesse ponto, o desgosto voltou ao espírito de Vicente Lemes. Valério
Ferreira tinha razão. Na hora do pega para capar, o diabo do juiz fazia um
papelão daquele, saía escondido feito um fugitivo, largando a Vila e o povo que
confiou nele em completo desamparo.
Vicente francamente que achava aquilo feio. ”Acabou-se o inquérito,
minha missão está finda”. Aquilo eram frases. Para um homem, sob o aspecto
moral, esse negócio de terminar inquérito, esse negócio de missão finda, eram
palavras. Diante de tudo que aconteceu, Carvalho estava na obrigação de
permanecer na Vila até que Artur Melo pusesse fim às ameaças de ataque.
Vicente também se acusava. Tinha sido mole, tinha sido medroso. Devia
ter argumentado com o juiz, devia ter-lhe dito essas coisas, devia ter exigido que
ficasse ali pelo menos como uma garantia moral. A ameaça de ataque era
fortíssima. Todo mundo dizia que Artur estava reunindo capangas. Carvalho não
ignorava porque Vicente lhe contara. Quem chegou com a notícia foi Umbehno
Ferrador, tropeiro da Bahia, que ia de arribada para Porto Nacional:
— vou de arribada, Seu Vicente. Enquanto não serenar esse barulho, não
volto.

140
— Mas que há, homem de Deus?
— Que há, então não sabe? Estive em São Marcelo com o povo de Artur
Melo. Está reunindo os cabras de Abílio Batata, Roberto Dorado, Maroto,
Passarinho e Umbuzeiro mode acabar com isto aqui. É pra ser pior do que
Pedro Afonso. Enquanto não serenar, eu não ponho os pés pr’essas bandas,
seu mano.
— Você conversou com gente de Artur, com parente dele, ou foi com
capanga? — prosseguiu Vicente puxando a língua do homem, que soltou tudo
que ouvira em São Marcelo.
Quem lhe contou foi um sobrinho de João Rocha, gente de confiança.
Umbelino Ferrador contava que finda a busca na Grota, de noite, Artur deixou a
tulha de farinha adonde estava escondido e meteu os pés pela biboca, fugindo
em demanda do Açude. com as barras do dia, meteu-se pelo mato, desviando
da patrulha, e chegou cedo ainda no Açude, onde topou João Rocha juntando
gado para Abílio Batata. A chegada de Artur foi um alegrão, pois eles o tinham
por morto, como o pai.
De imediato, Artur seguia para Barreiras, a fim de obter dinheiro, armas,
gente e munição para o Duro.
Isso, tal como ouvira da boca do dito Umbelino Ferrador, homem de
respeito, Vicente transmitiu para Carvalho, ponto por ponto. Contou mais aquilo
que o povo vivia boquejando: isto é, que Carvalho havia prometido não
pronunciar os Melos, se eles dispersassem os cabras. E foi só eles pegarem a
dispersar, o juiz mandou prender.
Do quarto Lina chamou Vicente:
— Vem deitar que já é tarde, home!
— Vou já-já. Estou acabando umas cartas.
A madrugada vinha querendo romper. Os sapos voltaram a cantar e os
grilos a sacudir seus guizinhos de prata. Galos cantaram desanimadamente na
manhã enxarcada. Uma neblina densa caiava a Vila, tampando tudo. E como o
tempo esfriasse, Vicente fechou a janela para dormir, mas de novo lhe voltou à
cabeça a história do juiz destituindo Mendes de Assis do comando da Força.
Vicente passou a considerar mal a polícia a partir daquele momento.
Sempre achou que mataram o velho sem precisão. Achou mesmo muito
esquisito quando viu chegar aqueles cadáveres. O velho era violento, brigão,
metido a valente, mas era covarde.
De sua prisão no quartel de Severo, Hugo Melo não calava a

141
boca. Dizia que o velho já se havia entregue, quando os soldados o mataram
com baionetas, tiro e coronhadas. O velho já se havia entregado ao Soldado
Fabriciano e Freitas Machado, quando outros soldados o mataram.
Aquela polícia não merecia confiança. A responsabilidade de Mendes de
Assis era muito grande. Ele estava repetindo as proezas do Capitão Machado,
em Boa Vista. Para Vicente, a retirada do Juiz Carvalho estava ligada aos
desmandos de Mendes de Assis.
À luz indecisa da manhã, Vicente teve medo da polícia: um bando de
facínoras. Ela se mantivera disciplinada até ali porque Carvalho era duro nas
embiras, tinha uma energia de general. Bastou, porém, que não fosse à Grota,
que deixasse as feras às soltas, para que fizessem o que fizeram!
Despertado pela vigília, alertado pelas resoluções de Carvalho, agora ele
ligava uma palavra ouvida aqui com uma deliberação acolá e reconstituía toda a
situação.
Diziam que Artur estava oculto na tulha. Mas se estava lá, como é que o
Alferes Xavier, nem o Sargento Alcides o viram? Talvez tivesse muito
fundamento a história que contavam. Ao entrar na casa, Xavier recebeu uma
bolsa cheia de dinheiro, para não achar Artur.
E roubo dos dezoito contos de réis que estavam na algibeira do
velho? Porque Mendes de Assis não punia os culpados? Todo mundo
estranhava muito que um simples soldado como Tonhá ou Guia-de-Cego
estivesse comprando cavalos caros, no povoado! Carvalho, coitado, acabou
vencido pela polícia. Quis abrir inquérito, apurar os furtos, apurar o crime, mas
Mendes de Assis e Xavier se revoltaram e o obrigaram a sair.
— Vicente, vem deitar! — Lina estava de pé na porta da sala. — Que é
isso, homem, parado aí feito uma assombração?
Arrancado bruscamente de seus pensamentos, Vicente abraçou-se com a
mulher e saiu para o quarto. A luz da manhã metia-se pelos vãos da telha,
desenhando as ripas e os caibros contra a claridade. Lá fora, os galos cantavam
e uma ou outra rês berrava.
Um joão-de-barro cantou mesmo em riba da cumeeira seu canto em
dueto, alegre e acelerado.
— Mau sinal — resmungou Lina, benzendo-se e encolhendo-se
no leito.

142
No CASARÃO de Dona Benedita Fernandes as visitas entravam e saíam. A
grande varanda atijolada estava bem varrida, com a mesa coberta com uma
toalha de crivo, em cima dela a jarra de flores.
Ali estiveram Argemiro Félix, Moisés Melo, Júlio de Aquino e agora Valério
Ferreira. Vinham trazer a Vicente e à sogra os votos de feliz ano-novo. A
conversa decorria num tom apagado e melancólico, como se tivesse doente em
casa, como se o cadáver do velho Coronel Pedro Melo estivesse insepulto ali na
sala, impedindo a alegria e a desenvoltura.
Anualmente vinham do sítio os lavradores, os criadores, a Vila se
transformava, ficava festiva. Dona Benedita armava o presépio, tirava as
ladainhas, servia café-com-leite com biscoito de goma.
Agora, o que se via era a tristeza, a Vila deserta, só com os soldados,
mas mesmo estes confinados nos quartéis, de onde saíam para as trincheiras,
para as patrulhas volantes ou para o banho no córgo.
— A senhora não devia de deixar de armar o presépio, dona Benedita. Faz mal.
Mas Benedita fazia ouvido mouco. Andava apreensiva, amolada, era dela
que Artur mais tinha ódio, dizendo que de sua casa é que saíam os planos que
Valério e Vicente executavam.
Benedita não tinha ilusões. No caso de um ataque, ela seria a primeira a
sofrer maus-tratos e humilhações do pessoal de Artur ou de Abílio Batata. Nem
sabia se iriam deixar ela com vida! Pedia que não judiassem muito, como
fizeram em Pedro Afonso.
Ainda por cima, a notícia da retirada do juiz na noite anterior. Sem ele,
sentiam-se desamparados, atirados às unhas dos jagunços.
Ferreira estava mais azedo:
— Não disse, Vicente! Carvalho custou, mas acabou borrando na
retranca. Foi um Hermínio Lobato mais metido a sebo, mais cheio de farofa. —
Havia na constatação do fracasso de Carvalho uma certa alegria, como se lhe
desse satisfação o desmoronar de reputações.
— Que foi que Carvalho alegou para abandonar a cidade? Ele falou para
você?
— Que estava finda a sua missão...
— Depois da traição que aprontou, só partindo, que se Artur

143
pega ele, fazia desse juizinho um pirão — soprou Valério num muxoxo. E
continuou perguntando: — Prenderam os matadores É velho? Prenderam os
soldados que furtaram o dinheiro e os objetos do cadáver do velho?
Vicente sentia-se constrangido em dizer que não. Para amemzar a
situação, dizia que esses abusos é que levaram o Juiz Carvalho a ir embora.
Mendes de Assis e Xavier haviam impedido qui ele punisse os culpados. Quase
que houve um levante na Força, contra o juiz.
Valério Ferreira balançava a cabeça. De dentro, veio Lina com a bandeja
de café, que serviu e perguntou pela família de Ferreira: — Como iam a mulher
e as filhas? Respondeu que ia trazê-las para o povoado; estavam morrendo de
medo de ficarem na roça.
Lina achou que era justo o receio delas. com o povo de Batata não se
podia brincar. Veja o que fez em Pedro Afonso. Então Valério não estava
lembrado? Aproveitou a ausência de Supriano e atacou a casa dele. Pegou a
pobre da mulher que estava de barriga de seis meses, amarrou num pau e diz
que ele mesmo, com facão, foi abrindo o ventre da coitadinha e tirando o neném.
Gente que viu, diz que o bichinho ainda chorou. Credo!
Lina estava muito amedrontada. Ali mesmo exigiu de Vicente que
escrevesse aos amigos e parentes pedindo para virem auxiliar na defesa da
Vila. Ela não queria cair na unha daqueles malvados, que Deus a livrasse!
— É. Eu também escrevi, mas vou mandar um positivo reforçar o convite
— falou Valério, repondo na bandeja a xícara vazia.
— O senhor acha que Artur ataca mesmo, Seu Valério, ou está
balançando folha?
Valério não vacilou:
— Acho que ataca, Dona Lina. Tá chegando a hora de a gente botar o
preto no branco. Nós precisamos estar prontos para o pior. Artur ataca porque
ele é vaidoso demais, é orgulhoso despropósito. A morte do pai, o enterro sem
gente, a polícia enganando eles, como Hugo Melo está contando, tudo isso foi
uma humilhação para Artur. Ele quer tirar desforra, pode ficar certa.
De pé, Lina demonstrava um grande medo. Desde menina que ouvia
histórias de malvadezas de cangaceiro. Em Boa Vista os jagunços faziam coisas
horríveis. Dez, vinte homens se servindo de

144
uma mulher, na vista do marido, dos filhos, dos pais. De uma, contavam,
puseram ela nua e fazendo tanto pecado, mas tanto, que quando os bundões
foram embora essa coitada se atirou no rio e morreu de vergonha.
E os roubos? Ali mesmo estava Alferes Enéias que ficou pobre como um
peregrino, ele que a família era das mais abastadas de Pedro Afonso! Também
em Boa Vista, Chico Curto mais Capitão Machado acabaram com a família
Wanderley. Mataram dezoito pessoas; e o pai vendo morrer um por um, até
chegar a sua vez.
— Agora, então, com Batata é que vão atacar mesmo. Batata luta é por
via da sebaça. Pedro Afonso lhe deu perto de dez mil reses, não se contando as
fazendas, as peças de ouro, o dinheiro, os haveres que ele roubou. Dessa vez,
somos nós — dizia Valério na sua voz cava, até que a tosse o assaltou.
Dona Benedita lembrava que se devia pedir a ajuda de Supriano, em
Pedro Afonso. Supriano fora o único homem que conseguiu derrotar Abílio
Batata, e isso porque tinha pauta com o cão. Diziam que para matar Supriano
requeria que se fundisse uma bala de prata virgem, marcada com cruz num dia
de Sexta-Feira Santa. E Abílio sabia disso.
— Cadê tempo, minha comadre? Até ir em Pedro Afonso, campear
Supriano e volta com ele aqui, Abílio já fez do Duro uma paçoca.
Lina entrou com a bandeja, debaixo do maior desconsolo, imaginando
que dessa vez ninguém escaparia.
Vicente consultou Valério da conveniência de abandonarem o povoado e
a região, transferirem residência para outra cidade. Podiam ir para o Sul,
Curralinho, Jaraguá, a Capital do Estado.
Valério fechou a boca com força, mordendo os beiços.
— Isso, não. Nosso lugar é aqui. Então largar tudo nas mãos desses
bandidos? E as pessoas que tiveram confiança em nós, que nos estão
acompanhando? Se a gente fugir assim na primeira ameaça, reconhecerão que
somos uns porrados, que Artur é que é homem.
Fez-se uma pausa. Através da janela via-se o céu pardavasco,
ameaçando chuva. A Vila bocejava a pasmaceira do dia-santo, hoje sem nem ao
menos os pios das almas-de-gato. Quieteza, quieteza, como na tarde que o
velho coronel foi enterrado.
Valério voltou a falar, completando seu pensamento:

145
— O juiz pode fugir. É um funcionário público que veio pai! tocar
oinquérito. Mas conosco a música é diferente. Somos moradores, somos de
famílias radicadas aqui há muitos anos, somos os principais responsáveis por
uma luta contra a violência de Artur, contra esse sistema que os Melos têm de
não respeitar o direito dos outros.
Vicente não se convencia. Na verdade, depois da morte do velho, a
situação de Artur melhorara. Agora a polícia é que aparecia como criminosa: o
juiz traindo um trato, soldados matando o velho entregue e roubando o cadáver.
Contudo, Vicente tinha vergonha de convocar o povo para abandonarem o Duro,
para largarem aquela guerra besta. No fundo, sempre uma esperança de que
Artur não atacasse, um receio de enfrentar o desconforto de uma nova vida no
Sul. Deixasse o barco rolar. De hora em hora Deus melhora.
— Acho que não é preciso sair — arrematava Valério. — Temos soldados,
temos amigos. Vamos escorar esse Artuzinho, gente Se ele tem coragem para
atacar, porque não vamos ter coragem de defender! Nem tanto medo, uai!
O dia que amanheceu meio claro, escureceu que danou. Chuva tombava
de toadinha e era chuva de afogar sapo. Embaixo, o córrego empolava, na
cheia, a enxurrada gorgolejando. A Vila estava tristíssima, as casas fechadas.
No Largo não passava ninguém, ninguém.
Nos anos anteriores, o pessoal pobre estaria de casa em casa com a
filharada, pedindo as festas ou o ano bom. Os roceiros estariam vendendo no
sobrado as abobrinhas, pepinos, ovos e frangos, para comprar um pano vistoso,
grampos para cabelo, facas e balas. Na Vila não havia lojas, mas Moisés,
Argemiro Félix, Tozão e outros tinham em casa frasqueiras repletas de artigos
que vendiam a bom preço.
Embora nada dissessem, Valério e Vicente pensavam em Carvalho. A
ausência dele abalava o ânimo de todos, que se sentiam entregues nas mãos
ensangüentadas de Abílio Batata, Maroto e Roberto Dorado. Carvalho era um
só, mas era homem duro, enérgico, resoluto, habituado a lutar e a comandar. Na
testa daqueles soldados, não havia Abílio Batata capaz de resistir.
Agora, sem a energia de Carvalho para proibir os boatos, a cada

146
hora eles cresciam. Abílio Batata estava na boca de todo mundo. Falavam de
sua amizade com Artur, a quem deu de presente um cavalo murzelo muito
bonito. Falavam de um pacto de sangue que tinha com os Melos. Certa vez
Supriano derrotou Maroto e aprisionou a mulher dele e de Abílio Batata. Artur é
que conseguiu de Supriano liberdade para as duas donas, que ele em pessoa
levou para o Piauí.
Batata conhecia a região palmo a palmo. Fora comprador de gado,
fazendeiro em Pedro Afonso, tirador de borracha no Xingu e de maniçoba no
Maranhão e Ceará. Uma vez sitiou Pedro Afonso e após cinqüenta horas de
fogo invadiu a cidade, incendiou, matou muita gente. Foi dessa vez que botou o
pessoal de Enéias para correr de lá, tomando suas fazendas, gado e haveres.
Valério conheceu Abílio Batata em Conceição do Norte. Era baixote, meio
corcunda, amarelo e magricela. Ninguém dava nada por aquela pinóia. Abílio
vivia de seco e verde, metido em terno de linho branco, usava punhos duros
com abotoaduras de ouro, chapéu palheta e sapatos amarelos de fábrica. Tinha
uma voz fanhosa e fraca, ajudada de largos gestos de mãos para mostrar os
anéis de ouro e brilhante que trazia nos dedos. Tinha dedo com três anéis.
Valério se lembrava que ele possuía uma boca larga de sapo e uns olhos
morteiros e revirados, olho de quem estivesse morrendo.
Um dia um seu desafeto pediu-lhe paz. Abílio daria paz a troco da
fazenda e do gado do desafeto, tudo isso com recibo passado como se fosse
compra e venda. O adversário concordou.
Recebidos os bens do homem, Abílio Batata fez um sinal para Roberto
Dorado que pegou o dito cujo, a mulher, os três filhos, amarrou tudo nos paus do
curral e dizem que o próprio Abílio foi matando um a um.

NAS HORAS de folga, nos quartéis, os soldados proseavam longamente, ao


redor do fogo, onde chiava uma espetada de carne ou uma chocolateira de café.
com a saída de Carvalho, a rigidez da disciplina abrandou. As mulheres voltaram
para a Vila e os praças podiam estar mais à vontade.

147
Mané Vitô contava casos muito bem, com a palavra fácil e a voz bonita.
Dizia ele que esse negócio de ter coragem, de ter coração duro, é que nem
gengiva de velho. Quando arranca os dentes, a gente sente dor, mas depois a
gengiva fica feito um pau, de dura. Pode esmoer até coco macaúba. Ao redor,
alguns soldados riam.
Ser mau, ser capaz de matar e espancar era a suprema glória. Soldado
manso não fazia carreira e era debicado.
— Não viam o Alferes Mariano? Aquilo era uma moça. De delicadeza,
coitadinho!
— E Ferreirinha! Ah, esse daí num mata nem uma mosca de tirar o cavalo
da chuva que não chega nunca a oficial.
— Só se for de Intendência — criticou Gabriel.
— Agora, vigia o Severo. Já é comandante! — ponderou Salustiano. — E
Alferes Severo mal e mal assina o nome... Só pra mode a malvadeza. Aquilo,
dizem, tem uma morte em cada dedo, tando os dos pés.
Ouvindo as palavras de Mané Vitô, alguns soldados riam
bajuladoramente, alardeando uma maldade que não possuíam, fingindo uma
coragem completamente falsa. Adonias botou no cabo do revólver cinco piques,
indicando que já matara cinco pessoas. Pura inzona. Adonias nem não tinha
coragem de matar ninguém. Quando muito, esmagava cabeça de um defunto,
como fez com o Coronel Pedro Melo, para ao depois ficar assombrado,
apegando com seus patuás e bentinhos, com medo de estar sozinho.
Feito o preâmbulo, Mané Vitô pegou a narrar o jeito como criou coragem.
Era um madurão de boris dentes, sempre bem calçado e mais ou menos bem
vestido, pois gostava de conquistar as morenas. Magro, uns olhos de animal
selvagem, nada passava despercebido ao seu redor.
Continuava o caso. Quando era crila, era medroso que nem uma mulher.
Foi preciso que o padrinho fizesse uma simpatia para perder o medo.
No dia que enterraram o Puluquero, o padrinho mandou Mané Vitô atirar
três punhados de terra na cara do defunto. Depois disso perdeu o medo.
Mané Vitô fora criado pelo padrinho, o Coronel Teixeira. E bora rico, tinha
o padrinho um sestro excomungado de ruim: gostava de furtar. Tudo que podia,
surripiava. Um dia ele foi mais o padrinho comprar de um mascate, em Catalão,
e o coronel meteu

148
um freme no meio dos objetos comprados. O mascate deu fé, danou, quis
chamar a polícia e aí o coronel jogou o furto pra riba do afilhado. Irritado, o
mascate deu uns puxões de orelha no menino.
A partir desse dia o coronel passou a instigar Mané Vitô:
— Olha, meu afilhado, pode passar a brasa no miserável que eu te
agaranto ocê.
Num mutirão, certo dia, olha ali o mascate com suas bugigangas. Mané
Vitô estava meio chupado, animou-se e meteu uma facada nas costas do turco
que chega varou nos peitos. Mané Vitô foi metido na cadeia, que o turco tinha
seus protetores. Ali ficou meses e meses de cambulha com os soldados, sob o
comando de um tal Tenente Lima, oficial célebre por sua crueldade.
O trabalho mais importante do destacamento era espancar mulheres da
vida. O delegado era um sujeito putanheiro como o diabo e a mulher morria de
ciúmes. Sábado, para satisfazê-la, Tenente Lima dava uma limpa na cidade. Ia
pelas pontas de rua e prendia a ”barre”, como dizia: metia no xadrez as
meretrizes, raspava a cabeça e no outro dia obrigava a deixar a cidade.
Para fazer isso ninguém melhor do que Mané Vitô, que foi granjeando a
confiança do tenente. Outras vezes, Lima mandava Mané Vitô esbordoar
camaradas metidos na prisão por dívidas ou por fuga de fazendas.
Lima foi transferido para Anápolis e levou consigo o protegido que
assentou praça na polícia.
Tonhá também contava casos, mas era de Salustiano Dantas, que era
cria de padre, em Sergipe. Vivia na preguiça batendo o sininho, beliscando as
meninas na sacristia, fazendo pouca-vergonha com os coroinhas, bebendo o
vinho do padre. Um dia, roubou o revólver do vigário e abriu o pala no mundo.
Esteve muito tempo pelo São Francisco e daí veio esbarrar em Goiás,
ingressando na polícia.
— E tu, negro à-toa! — gritava Salustiano para Tonhá. Tonhá bufava, que
esse era seu riso. Ria como se estivesse engasgado com farinha de milho.
— Conta seu caso, moleque safado! — Mas ninguém sabia nada de
Tonhá. Corria que era de uma família muito boa, no Barra do Corda, onde
matara um cunhado. Sua amásia, Maria Ponciana, tinha um defeito na boca e
falava enrolado.

149
— Como foi o causo do Coronel Pedro Melo? — brincou Adonias.
— Com coisa que tu tava lá! — debicou Gabriel, cujo nome era agora
muito respeitado. Ele apunhalou o velho Pedro Melo. — Tu num tava lá coisa
nenhuma, nego de uma figa. Ocê quer passar por corajudo, mas jagunço vem aí
pra tirar prova da valentia de muita gente boa!
— Eu que num tava? Então quem foi que meteu a derradeira coronhada
no piolho do bruto? Vou inté botar mais um pique na coronha do meu chimite.
A turma gargalhou: — Pode botar, que esses pique são ttudo de mentira!
Cuspindo de esguicho, Daniezinho dizia alguma coisa. Era outro ai-Jesus
da turma. Na Grota foi o primeiro a meter o refle no peito do velho, já largado no
chão e já desarmado. Apunhala! covardemente para agora arrotar suas
valentias, como se fosse o maior herói do universo. Daniezinho dizia:
— O velho porrado! Vivia matando os pobres, metendo opiraí neles, mas
na hora da porca torcer o rabo, o desgraçado se borrou. Caiu no chão de
joelhos, pedindo pelo amor de Deus a gente deixasse ele vivo!
— Freitas Machado, ô Freitas Machado! — chamava Mané Vil to. —
Estão dizendo que você é parente muito chegado do velho Melo... — De novo a
gargalhada estrondou no cômodo.
— ... São tudo da famiação dos covardes...
Os mais covardes, riam com mais força, para agradar, para demonstrar
admiração aos valentões.
Freitas Machado não gostou da brincadeira. Era um sujeito caladão e
correto. Respondia com brutalidade:
— Eu num sou de sua laia, Mané Vitô, que só prende mulher da vida e
bate em pobre amarrado no pau.
Agora ninguém ria. Mané Vitô era cabra maludo, com quem ninguém
queria malquistar-se. Mas Freitas não tinha medo:
— Num matei o velho mesmo e vocês só mataram porque tomaram a
minha arma. Se não, ninguém num matava o velho, por que eu já tinha
desarmado e prendido ele...
— Ah, é assim? — interpelava Mané Vitô. — Então a polícia matou o
velho depois de desarmado e entregue, não é? Eu posso contar isso pró
comandante, para o Tenente Mendes de Assis?

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Com esta pergunta ele queria dizer que Freitas estava transgredindo a
ordem de segredo dada por Mendes de Assis. Porém o soldado estava pelo que
desse e viesse:
— Pode, uai! pode contar. Eu já falei isso pra ele na vista do Doutor Juiz e
tomo a repetir quantas vezes for preciso. Eu cá num tenho medo de barulho de
folha não, seu engraçadinho!

”Arara comeu pequi,


Num sei se comeu ou não,
Debaixo do pequizeiro
Tem muito pequi no chão”.

Erguendo-se, Salustiano cantou essa quadrinha para acalmar os ânimos,


enquanto brincava com Adonias:
— Como é, Adonias, já botou mais um pique no seu chimite agaó?
Tonhá conversava com Guia-de-Cego:
— A gente vê logo que Freitas Machado é um reculuta. Ele num vê que
nós é camarada do governo e que os Melo é tudo inimigo do governo. Apois,
entonce, quanto mais Melo a gente matar, mais o governo apreceia, meu Divino
Padre Eterno!
— Quede que prenderam Daniezinho mais Gabriel? — observou Guia-de-
Cego.
— Uai, eles num pode ser preso não. Vão botar é uns par de lagartixa no
braço deles, gente!
Entretanto, Sargento Odilon contava um causo e sua fala chamou logo as
atenções. Explicava que Tenente Mendes de Assis não era homem de mando,
nem de grito. Bão pra mandar era o Capitão Machado, comandante da polícia na
guerra de Boa Vista.
— Era ver um rei, de mandador. Cabra macho danado! Para defender
Boa Vista sitiada por José Dias, Capitão Machado garrou pegar à força os
rapazes ali existentes. Aonde que pegou um que o pai dele não achou bom e foi
reclamar do capitão: Machado requisitou o outro, mais menor: aí o pai botou
uma tocaia, mas o tenente foi mais esperto. Matou o homem, ô coisa boa, gente!

Os POSITIVOS de Vicente Lemes e Valério Ferreira iam e vinham pelas


estradas enlameadas, atravessando rios cheios, chapadões

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escorreguentos, matas e cerrados por onde os trilheiros quase se apagaram.
Faziam apelos a amigos, a parentes, a conhecidos para ajudar na defesa da
Vila. Se conseguissem reunir bastante gente, encher o povoado, Artur não
atacaria com medo de derrota.
Os positivos levavam apelos e traziam boatos. As resoluções de Artur
Melo chegavam ao Duro como se ele estivesse ali dentro. Era o eterno presente,
aquele cuja ausência nunca se dava em coisa alguma.
Sabia-se que Artur prometera a Abílio Batata, a troco de ajuda na tomada
do Duro, entregar-lhe mil e quinhentas reses dele Artur e mais o saque da região
por seis meses. A sebaça ia ser terrível. Era um deus-nos-acuda, um segundo
Pedro Afonso!
Por mais que os positivos clamassem, os sitiantes não virá para a Vila.
Ficando neutro, capaz que Abílio Batata num toma os trem da gente, nem faça
mal para nossas mulheres e filhas pensavam os roceiros. Esperança besta.
Jagunço não respeita nada. Em Pedro Afonso, em Boa Vista, em São Marcelo,
em Santa Rita do Rio Preto, em Formosa do Rio Preto as pessoas que ficaram
de fora do conflito foram as que mais sofreram.
Valério e Vicente escreviam cartas, enviavam recados, iam pessoalmente.
Falavam, argumentavam, davam exemplos, encorajavam, acenavam com a
polícia e o apoio do governo. Meia dúzia de homens atendeu ao apelo, enquanto
outras famílias deixavam a Vila aterrorizadas com a notícia de que Artur ia se
aproximando.
Por baixo dos mulungus da rua, um dia, pousaram uns homen com
mulheres, crianças, jumentos, cabaças e panelas. Vicente foi lá e reconheceu o
Belisário e o Casemíro.
— Iam de arribada?
— Nem num sabemo muito bem pr’adonde..
Vicente os chamou para defender a Vila, mas trancaram-se em copas.
Nem sim, nem não.
No outro dia, cedinho, que Vicente olha para o lugar do pouso, só
restavam uns tições fumegando. Sumiram.
Artur avançava e a defesa era muito fraca. O Duro não dispunha nem de
um terço dos homens de Abílio Batata. Sem o Juiz Carvalho, as conversinhas,
os cochichos, as briguinhas alarmavam o povoado.
Mendes de Assis estava de braços cruzados. Quase não era visto,
passando o tempo deitado na rede, rezando um rosário. Outros

152
diziam que ele estava era acovardado; tinha certeza que os jagunços de Artur
não o poupariam. Seu medo era tamanho que estava exigindo da polícia que
trouxesse da Grota os amigos e parentes dos Melos, pondo-os como refés na
Vila. Pusessem os parentes e amigos dos Melos dentro da Vila que Artur não
atacaria com receio de ferir e matar essas pessoas.
— Foi o Juiz Carvalho que me deu essa ordem — afirmava Mendes de
Assis.
Hugo Melo, na prisão, falava: a polícia tinha roubado dezoito contos do
avô; Mendes de Assis recomendou aos soldados para dizerem que o velho
resistiu com jagunços...
Compradores de gado, compradores de pena de ema, garimpeiros, essa
gente toda que passava dava notícia dos preparativos e do avanço de Artur
Melo. Contava com Roberto Dorado, famoso pelas sebaças de Pedro Afonso e
São Marcelo. Seus homens eram dos mais ferozes de que se tinha notícia.
Numa luta em Formosa do Rio Preto os homens de Roberto Dorado beberam
cachaça com pólvora antes de começar a brigar e arrasaram com a cidade.
Contava com Miguel Umbuzeiro, escorraçado de Pernambuco; Passarinho, o
que falava cantado e era rezador. Na hora de combater, Passarinho vestia um
balandrau de irmão das almas.
Muito difícil resistir. Boa Vista resistiu cinqüenta dias, mas lá tinha um
Capitão Machado que era pior que Supriano. Pedro Afonso agüentou durante
sessenta horas de fogo. Porém em Pedro Afonso existia o negro Supriano que
tinha pauta com o cão, homem tão fechado que Roberto Dorado haverá
encomendado uma bala de prata virgem, fundida na Sexta-Feira da Paixão, com
duas cruzes gravadas, mode ofender o espritado.
— Ei, Mendes de Assis, Severo não ia agüentar nem o primeiro balango!

CEDINHOCEDINHO Valério Ferreira veio acordar Vicente Lemes, e foi logo


contando:
— Você já sabe? A polícia recolheu à casa do finado Pedro Melo o
pessoal de Artur. — E explicou que lá estavam a velha Aninha, Doutor Herculano
Lima com mulher e filhos, Tozão e família, Damião de Bastos e Joaquim Alves
Leandro com família.

153
Não era possível. Ferreira estava brincando. Era um daqueles pegas tão
comuns. E Vicente indagou:
— Uai, mas esse pessoal não estava na Grota?
— Pois é isso. Esse pessoal estava na Grota, mas a polícia trouxe todo
mundo para cá. A polícia trouxe eles como reféns. Paraii pedir um ataque à Vila.
A Vicente pareceu absurda a prisão, absurda e ilegal, Valério porém, não
pensava assim. Para ele a polícia tinha direito de procurar defender a vida dos
habitantes do povoado e aquele era um meio de defesa. Era para Artur ver que
ninguém estava com brincadeira. Se ele atacasse, o pessoal seria morto.
— A polícia não pode fazer e desfazer sem consultar os paisanos. Eu
tenho’aqui na algibeira a Carta de Eugênio Jardim, me credenciando a dirigir a
política. Eu tenho que ser ouvido, ora!
-- Precisa ter calma – pedia Valério entre duas tosses. – Não convêm
dindespor-se com a polícia, já...
— Sim, é preciso calma, mas se eles matam essa gente? Você sabe
como essa polícia é!
Valério concordava que era perigoso, que os militares estavam dispostos
mesmo a matar todos em caso de um ataque, mas era preciso calma e
habilidade. Não ia ter nenhum ataque assim logo logo. Tivesse paciência...
Conversavam, quando uma pretinha, cria da velha Aninha, e trou pela
casa e deu a Vicente um recado da velha:
— Dona Aninha mandou falar assim que é pra Seu Vicente dar um
pulinho lá.
Vicente não foi.
— Capaz de ser negócio da prisão — observou Valério. Fazia muito
tempo que Vicente não falava com a tia. Desde que saiu do Duro, pouco depois
da morte de Vigilato. Era uma situação enjoada, aquela. Em casa da velha
Aninha iria encontrar o pessoal reclamando contra os atos da polícia.
Certamente, os prisioneiros quereriam permissão para retomar à Grota, e essa
permissão Vicente não poderia obter da polícia. Embora fosse medida ilegal
trazer à força aquele pessoal para a cidade, fosse uma arbitrariedade, uma
violência, era, como dizia Valério, medida de precaução, medida capaz de
contomar desastre mais grave. Quem sabe Artur não recuaria, evitando assim a
morte de muita gente,

154
o saque, os vexames? O que não se admitiria era tocar num fio de cabelo de
ninguém.
O dia caminhava e a todo momento a pretinha da velha Aninha voltava:
— Dona Aninha mandou falar assim que é pró senhor dar um pulico lá...
— Vou já-já, ouviu? Pode dizer para esperar um tiquinho — Mas não ia.
Que iria dizer à velha tia? Naturalmente o desejo dela era retomar ao sítio, iria
criticar a medida policial, diria enfim uma porção de coisas certíssimas, mas que
de nada adiantaria. Eles não podiam voltar para a Grota. O que a velha tinha
que fazer era providenciar meio de deter a marcha de Artur, obrigá-lo a desistir
de atacar a Vila.
Argemiro Félix, a mulher de Moisés e a própria Lina começaram a
assediar Vicente.
— Ainda não foi lá? Ah, não podia fazer isso! Era tia, velha, estava num
transe difícil, o marido morreu outro dia. Ah, não fizesse assim!
Informações chegavam. A velha vivia chorando, clamando, dando seus
tremeliques. A polícia afirmava de pedra e cal que mataria sumariamente. Era só
terem certeza que Artur avançava e a faca comia na goela do pessoal.
Tanto falaram, tanto mexeram, que Vicente resolveu ir ver a velha. Uma
das criadas recebeu Vicente no corredor, o conduziu pela varanda até o quarto
onde estava a velha Aninha. Era o quarto do fundo da varanda.
Na cama grande, alta, de madeira, lá estava o corpanzil da tia, no meio
da azáfama dos serviçais e da atenção dos amigos e parentes. Suas banhas
dobravam-se em pregas por baixo do cabeção de rendas de bilro da camisa.
Ela recebeu Vicente discretamente. Meio que se ergueu no travesseiro,
estendeu-lhe a mão para a bênção:
— Deus te abençoe. Assenta aí, Vicente. Como vai Lina e Alice? Ela tá
moça, não é?
Vicente deu as notícias, meio contrafeito. A velha fez um gesto:
— Com tanto sobrosso, Vicente, ficou ruim. Desde que Pedro se morreu,
que ando zonza, sem saber o que fazer.
Vicente baixou o rosto. Tinha a impressão de que a tia o incul-

155
pava. Damião de Bastos e Joaquim Alves Leandro que estavam assentados por
perto, levantaram-se e saíram de cara fechada. Com pouco, entravam o Doutor
Herculano e Tozão, que vieram, apertaram a mão de Vicente, perguntaram pela
família, dando mostras de muita cordialidade. Tozão pareceu ainda mais feio,
com os braços bamboleantes, as orelhas flácidas. Doutor Herculano estava um
pouco abatido, mas com o porte elegante, a barba curta bem tratada,
perfumado. Ambos sentaram-se no lugar dos que saíram.
Habilidosamente, a velha abordava o assunto do recolhimento do pessoal
à Vila. Ela não acusava Vicente Lemes. Dizia que sabia que aquilo era arte da
polícia, mas que Vicente era o homem de maior responsabilidade do lugar e não
podia consentir naqueles absurdos:
— A polícia não pode obrigar a gente a ficar aqui dentro. Nós não fizemos
nada!
— Indas pro riba, querendo matar a gente — regougou Tozão. — Ela não
pode matar.
Nesse ponto, entrou também Anastácia, dizendo que já não bastava o
filho que estava preso injustamente no quartel de Severo? Agora vinham prender
o marido e ela!
Vicente compreendia todo o constrangimento da situação. Na verdade a
polícia estava agindo arbitrariamente, mas era o recurso que possuía para
obrigar Artur a recuar, sem derramamento de sangue. Enquanto reclamavam,
Vicente pensava essas coisas, mas nada dizia. Ali ele não podia ir contra a
polícia. Sentia que se não fosse o medo de morrer, tipos do calibre de Tozão,
Joaquim Alves Leandro e Damião de Bastos não se oporiam ao desejo de Artur
de atacar a Vila. Para apertar o pessoal, para amedrontá-los mais ainda, para
coagi-los a tomar uma medida contra o desejo de Artur, Vicente passou a
defender a polícia:
— Os oficiais têm sua razão, minha tia.
De lá, a velha bufou, começou a exaltar-se. Doutor Herculano procurou
conciliar:
— Vamos ao motivo pelo qual a senhora pediu que seu sobrinho viesse
cá. Essa discussão é inútil. Vamos ao assunto, não é assim, Seu Vicente?
A velha se mexeu na cama e calou-se. O médico continuou:
— Olha, Vicente, a polícia disse que nos matará. E nós não que-

156
remos morrer, é claro. Para nossa salvação resolvemos uma coisa. Vamos
escrever uma carta a meu sogro Artur Melo, explicando-lhe a nossa situação e
pedindo a ele que não ataque a Vila, porque se ele atacar nós seremos mortos.
— Ótima resolução — exclamou prontamente Vicente Lemes. — Vamos
enviar a carta, já-já. Isso é que é preciso.
— Por nosso gosto, a carta já teria ido embora, mas a polícia não permite
— completou o médico entre gestos de desespero.
— Não é possível! A polícia? Logo a polícia! — admirava-se Vicente.
— Pois é — confirmou Aninha, que ouvia em silêncio o médico, que
continuou:
— A polícia diz que a carta vai revelar segredos de defesa da Vila e por
isso não pode seguir. Veja só! Diz que vamos fornecer a meu sogro elementos
de informação. Olha se tem cabimento!
— Tsiu, tsiu — Tozão deu os chupões nos dentes cariados. Anastácia,
temperamental, impetuosa, disse quase gritando:
— A polícia faz de propósito. É plano daquele miserável do João Alves...
Meu irmão ignora tudo, ataca a Vila, a polícia mata todo mundo, depois foge e
fica o serviço feito aí.
— Calma. Chega de bobagem. Isso não adianta — recomendava o
médico.
— A polícia que corte na carta o que achar inconveniente — disse
Vicente.
— Pois é. Mas nada há que cortar. A carta não diz nada além do pedido
para não atacar. Se me permite, vou ler. — com voz clara, o médico desdobrou-
a ante os olhos de Vicente.
A carta contava que a polícia havia recolhido à casa do finado Pedro
Melo, na Vila, os parentes e amigos de Artur, mantendo-os sob vigilância; dizia
mais que a polícia estava no firme propósito de matar sumariamente essas
pessoas no caso de Artur atacar a Vila. Diante disso, as pessoas recolhidas à
casa, por iniciativa própria e sem qual coação, se dirigiam a Artur, pedindo-lhe
que não atacasse a Vila e que dispersasse os homens armados por acaso
reunidos. Terminando, os signatários prometiam indenizar Artur Melo de todos os
gastos que hovesse feito, comprometendo-se igualmente a indenizar os outros
companheiros seus, como Abílio Batata e Roberto Dorado.
— Dê cá a carta — disse Vicente de pé. — com certeza a poli-

157
cia não entendeu o que vocês queriam. — E saiu com acarta para o quartel de
Severo, onde, felizmente, os quatro oficiais estavam reunidos, em descanso.
Uns na rede, outros nas camas, fumando e contando estórias. Embora tivessem
lá suas divergências, entendiam-se mais mais ou menos bem. Xavier até
remexia nas cordas de um violão, cantarolando uma modinha de ímbaúba:

”Quando vivemos a sonhar amores,


Quando não temos a ilusão perdida...

” com a chegada de Vicente, puseram-se em atitude reserva. Sabiam


que Vicente não concordava com a prisão do pessoal e sua visita deveria
prender-se àquilo. Vicente foi diretamente ao assunto:
— Tenho comigo esta carta assinada pelo pessoal recolhido à casa do
finado coronel. Que é que vocês acham da remessa dela para Artur? Vocês
ach...
Enéias atalhou: — Não pode ir.
— Não pode ir por quê? — perguntou Vicente. A pergunta desnorteou
Enéias, que contraiu o rosto num esforço de raciocínio ajeitou o cabelo
castanho, ergueu o corpo magro e corcunda da rede:
— Onde já se viu preso escrevendo.
Os olhos azuis de Mendes de Assis rolavam na cara vermelha de
estrangeiro e foi com certo ódio que falou:
— Esta carta tem segredos militares. Vicente achou graça da solenidade
com que o oficial dizia uma bobagem tão grande. Até riu.
— Tem segredo nenhum, home! — Desdobrou-a, estendeu-a para
Mendes de Assis e perguntou: — Vocês leram? Leram esta carta?
Enéias olhou para Mendes que balançou a cabeça afirmativamente.
— Então, me mostre, onde estáosegredo militar? Se tem.agente corta e
remete só o que pode ser revelado...
Enéias olhou para Mendes, que olhou para Severo.
— A carta não vai — disse Severo de maneira terminante.
Antes, eles se haviam reunido e deliberado que a carta não seguiria
porque continha segredos militares. Agora, Mendes de Assis repetia isso, sem
se dar ao trabalho de examinar a verdade da fra-

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se. Depois, tanto fazia ser verdadeira ou não. Para sua mentalidade, prisioneiro
não tinha razão, não tinha direitos. Mendes de Assis não perdia tempo em
pensar sobre tal caso. O comandante era Severo, ele que se fomentasse.
Vamos ver se ele sabe comandar um destacamento!
Vicente continuava argumentando:
— Uma insensatez não deixar a carta seguir. Que é que a polícia visava
com a prisão do pessoal de Artur? Queria com isso obrigar Artur a desistir do
ataque, para não ter os parentes mortos. Até aí, muito bem. Mas Artur não podia
adivinhar que os parentes estavam presos. Para que ele não avançasse, era
preciso darlhe ciência da prisão e a ciência era dada por meio da carta. A carta
era indispensável seguir. Era uma garantia para a polícia. Sabedor da resolução
da polícia, se Artur teimasse em atacar, era sinal de que não tinha nenhum
interesse pela vida de seus parentes. Era uma garantia para a polícia. Depois, o
que viesse a acontecer era com o conhecimento e com a participação deliberada
de Artur Melo.
Severo já se levantara. Alto e corpulento, seu vulto tomava conta da casa
baixa, entupia o cômodo pequeno, chegava a escurecer a luz que entrava pela
janelinha. Ajeitava a perneira, o culote. Era moreno, cabelos espetados de
ouriço-cacheiro, calado e ríspido, de um moreno lustroso de cuia.
— Dê cá esta carta — disse com ódio.
Tomou, leu-a. Era quase analfabeto. com grande dificuldade soletrou
algumas palavras, mas não deu para entender. Tinha que se segurar na
conclusão de Mendes de Assis. Ele falou que a carta continha segredos. Ficou
olhando vagamente para as letras da carta.
— Não pode ir. Paisano não entende, mas militar e jagunço entende.
Para fazer-se entender melhor, usou de uma imagem:
— Se a gente está tomando refém é porque está fraco. Se eu sei que sou
mais forte, vou logo te macetando você, num carece de ficar rodeando toco.
Jagunço sabe disso.
Apesar, porém, desse ponto de vista, Severo aceitava parte das razões
de Vicente. Era preciso mesmo fazer chegar ao conhecimento de Artur a notícia
de que seus parentes estavam como reféns. Do contrário, que adiantava?

159
Entretanto, o carro pegava noutro ponto: quem fosse levar a carta podia
dar a Artur informações de que a polícia e os defensores da Vila eram poucos.
Vicente propôs que levassem a carta o Doutor Herculano Lima e Argemiro
Félix. Um e outro teriam o maior empenho em que a povoação não fosse
atacada. Deixavam recolhidos à casa do coronel parentes chegadíssimos.
Herculano deixava mulher, filhos e sogra; Argemiro, inimigo de Artur, além de
deixar Aninha que era sua cunhada, deixava mulher e filhos no povoado. Se eles
contribuíssem para que Artur atacasse a Vila, estariam lavrando a sentença de
morte desses parentes, pois estavam convictos de que a polícia os mataria em
caso de ataque dos jagunços.
Os oficiais novamente confabulavam. Mendes de Assis não concordava
com os demais; entretanto, por fim vinham as condições — Herculano e
Argemiro podiam levar aquela carta que estava ali. Tinham porém que fazer um
juramento.
Os dois portadores vieram para o quartel de Severo. Os paisanos da Vila
foram todos chamados para a frente do quartel, e diante de todo mundo,
inclusive dos oficiais, Doutor Herculano e Argemiro fizeram o juramento solene
que lhes era ditado por Enéias. Juravam nada revelar a Artur que pudesse
contribuir para enfraquecer a defesa do Duro.
— Se eu não cumprir esse juramento feito perante Deus e perante o
povo, me considero um vil traidor e aceito que qualquer um cuspa na minha
cara, sem que eu possa me defender!
Enéias falava pausadamente e também pausadamente Doutor Herculano
e Argemiro repetiam as palavras, solenemente.
O dia era embaciado e triste. Em toda a Vila, a vida como que suspendeu
para ouvir o juramento solene. O pessoal reunido em frente à casa guardava um
silêncio religioso e constrangedor.
As palavras reboavam, como no dia do juramento perante o cadáver do
velho coronel. Seu som batia na parede da casa fronteiriça e voltava em eco!
Era como se alguém postado do outro lado zombasse de tudo.
Os animais chegaram arreados. Severo mandou que Sargento Odilon e
mais dois praças revistassem as selas, os baixeiros, ossuadouros. Também as
roupas e os calçados dos portadores foram revistados. Só então veio a ordem
de seguir. Sargento Odilon com

160
um grupo de soldados armados os conduziu até as últimas trincheiras, no rumo
da Grota.
O povo dispersou-se ainda impressionado com a gravidade da cena.
Alferes Severo procurou Vicente Lemes. O cabelo estava mais espetado, as
frases eram mais curtas:
— Você larga de impertinência, hem! Isso não dá certo, não.
— Que impertinência, meu Alferes? Estou ajudando vocês. Afinal, vocês
querem deter o avanço de Artur ou essa prisão é de mentira, é apenas uma
desculpa para matar o pessoal? Como é que você me explica?
Severo botou em Vicente uns olhos frios e tomou a ponderar: — É melhor
você esbarrar de ir na casa dos Melos, ouviu? Dá certo não, ouviu! — Era uma
voz de ameaça, dura e apagada, que irritou Vicente.
”Não dá certo? Não ir à casa dos Melos?” — Vicente procurava conter-se.
A polícia estava com absurdo. Uma proibição assim era um desaforo. Ele ia e ia,
que os Melos eram seus parentes, estavam sendo coagidos. Afinal de contas ter
aquela gente como refém era uma violência. Eles nada deviam. Essa é boa! A
polícia faz as suas bramuras, mata o velho, rouba, e depois os paisanos é que
iam pagar o pato!
Severo gaguejou, abaixou a cabeça um pouco, estendeu a mão
espalmada para cima, no rumo de Vicente, e arrematou:
— Pode continuar indo lá pra ver uma coisa!
Falou e saiu soturnamente, as esporas tinindo no chão batido, a cabeça
quase que batendo nos caibros.
Valério Ferreira ouviu a discussão e quando o oficial se afastou, chamou
a atenção de Vicente. Vicente estava com besteira. Ele devia fechar os olhos e
largar os Melos com a polícia. Se matar, que matou. Temos nada com isso!
— Temos nada com isso! — retrucou Vicente. — Você está muito
enganado, seu barra. Estou lutando contra Artur Melo é por causa dos seus
desmandos e não vou aceitar que a polícia faça a mesma coisa. Eu quero que
imperem as leis e não a vontade de Artur, ou Vicente Lemes ou Severo. Não
concordo com isso, de jeito nenhum!
— Você sai perdendo, Vicente — contestava Valério balançando a
cabeça, desacorçoado, desapontado. — Aqui, não tem disso. Ou

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nós ou os Melos. Você vai perder. Veja o exemplo de Artur. Ele aceita tudo,
aceita até arrasar com o Duro, contanto que continue mandando.
Vicente não concordava.
— Tem gente que está conosco para fazer bandalheira, Vicente. Para
fazer coisa direita eles não precisam de ninguém. Se você continuar com essa
bobagem de justiça, de lei, de não sei mais o quê, você acaba ficando sozinho
na chapada. — Ferreira fecha boca fortemente, apertou os lábios, sacudiu a
cabeça, consertou a garganta, para prosseguir: — Não viu o exemplo de
Carvalho? Estávamos achando que era o direito em figura de gente, no entanto
é isso que se sabe. Tinha trato secreto com Artur para não prender e acabou
traindo.
— Ai, ai, ai! já vem com coisas — protestava Vicente. — Isso é prosa de
gente dos Melos.
— Não, Vicente. É verdade. O pessoal conta que Artur estava
dispersando o povo para comparecer a juízo, confiante no trato que fez com
Carvalho. Hugo Melo está aí e diz para quem quis ouvir. Doutor Herculano
também dizia, Damião de Bastos diz.
Vicente não queria ouvir. Que alterava tudo isso? Entristecia-o o
derrotismo de Ferreira, a sua falta de confiança. Valério Ferreira continuava
falando:
— Olha, menino, nem governo não quer saber de justiça. Ele apoia nós
para fazer aquilo a que a lei não dá direito. Porque é que Artur é respeitado? É
porque segue a lei? Você vai ver. Você fica aí cheio de dedos com a prisão dos
parentes e amigos dele, não é? Pois Artur evém de lá com seus ”rapazes” e não
respeita mãe, não respeita filha, nem cunhados, nem amigos presos. Vai meter
bala em riba de tudo. Fica aí defendendo direito de Artuzinho para tu ver uma
coisa!
Valério Ferreira se foi com sua boca desgraçada, com suas palavras de
fogo e Vicente ficou-se ainda mais desorientado. Então, que fazer? Que
caminho tomar? Aceitar tudo que a polícia queria fazer, não podia ser. Mesmo
sabendo que a polícia tratava os paisanos como nem se sabe o quê, não os
ouvia, não procurava entrar com eles num acordo em nada.
Sinceramente achava Vicente que eles estavam entre dois fogos. Tanto
era perigosa a polícia como os jagunços. E se fugissem? De novo Vicente
passou a pensar seriamente em fugir. Sair enquan-

162
to era tempo, que os homens de Artur estavam querendo fechar o cerco em
tomo da Vila. Fugir e fugir logo.

— DONA ANINHA mandou dizer assim... — Olhe novamente a negrinha.


— Nega, diabo! — A bichinha saiu que saiu ventando. Vicente já sabia
que era para ir à casa da tia e ficou sobressaltado. Havia a proibição de Severo,
havia as palavras de Valério. Mas o coração doía. A velha estava agoniada, tinha
medo de morrer e ver morrer os parentes, como vira morrer o velho.
Na verdade, precisava restringir o contato com os Melos. Astutos como
eram podiam valer-se de Vicente para burlar a polícia e ajudar Artur. Mas agora
tinha que atender ao pedido da velha. Fazia uns dois dias que não a via.
Ao entrar na casa da tia, no corredor, ali estava o Tenente Mendes de
Assis, que veio ao seu encontro:
— O senhor não pode entrar.
— Alto lá, Seu Tenente. Você manda nos seus soldados, no seu quartel.
Em mim, mando eu.
Mendes de Assis engrolava razões, o carão vermelho, os olhinhos azuis
dançando:
— O comando resolveu proibir o senhor de entrar. Magrinho, franzino, o
nariz adunco, Vicente Lemes nesses momentos virava uma piranha. Pulava num
pé e noutro.
— Resolveu o diabo! Tenho nada com o comando! Está aqui a carta de
Eugênio Jardim me autorizando a dirigir a política do Norte e não vou obedecer
a ordem sua.
Metia a mão no bolso de dentro do casaco, tirava de lá a tal carta que
estava esfrangalhada e sacudia a bruta no ar.
Mendes de Assis não discutia. Parece que estava representando um
papel. Haviam determinado que ele montasse guarda, ele veio. Mas não tinha
nada com o peixe. Carvalho o destituíra do comando, botou Severo, não é?
Então, vamos ver em que vai dar o comando desse analfabeto do Severo.
Mendes de Assis tudo faria para o fracasso do rival.
Vicente deixou o oficial de lado e entrou pela casa que estava repleta de
gente, com camas pelos cantos, redes pelo meio da casa, meninos pequenos
chorando, bruacas e cangalhas. No quar-

163
to, a corte de parentes, amigos e crianças. Alguns contando estórias, outros
abanando a velha, outros lhe trazendo chás e cheiros.
Foi vendo o sobrinho e gritando com rispidez:
— Como é, Vicente, alguma resposta?
Falava entre soluços e lágrimas que lhe corriam pela cara gorda, caindo
no colo farto.
— Resposta de quê, minha tia?
Ela se referia à carta que haviam remetido para Artur. Outras
interpelações vieram tumultuadas. Os portadores tinham mesmo partido? Será
que a polícia não estava com eles presos? Será que eles não tinham sido
mortos? A velha ficava quieta e chorava espremido, as lágrimas coleando pelas
dobras da gordura. Depois se lembrava:
— Falaram na carta que nós queremos pagar as despesas já feitas pro
Artur? Despesa para reunir os homens, comprar armamento?
— A carta conta tudo isso, mamãe, pode ficar tranqüila. Tozão tem uma
cópia — explicava Anastácia.
Também Amélia protestava.
— Bem capaz deles matar meu marido. Carvalho prometeu tanto a papai
que não o prenderia e foi só ele dispersar o povo, aquele cachorro meteu a
polícia em cima... Herculano não devia ter ido!
Anastácia se aproximava de Vicente e começava a lhe falar num tom
baixo, confidencial. Pedia, de lágrims nos olhos, que arranjasse um jeito de livrar
o filho. Tinha certeza que os oficiais acabariam matando o coitadinho.
Vicente enxergava o rosto da prima-debruçada perto do dele, pedindo,
implorando, e sem nada poder fazer. Ela queria que os oficiais deixassem o filho
na casa da velha.
— Não estavam todos presos ali? Pois então que ficasse Hugo também.
Severo acaba matando o menino, de medo dele contar o roubo do dinheiro, a
morte do velho já entregue e desarmado...
Vicente procurava acalmar a prima. Ele agora achava que Atur não mais
atacaria. com o recebimento da carta, recuaria. Tanto que não chegavam
notícias de novos avanços. O perigo estava conjurado.
Mas a prima não se conformava. Sua cara estava perto da de Vicente,
que pensava coisas impróprias para o momento. Pensava no que diziam de
Anastácia. Que era mulher que tinha suas aven-

164
turas amorosas. Vicente desviava os olhos dos olhos da prima. Diziam dela com
Norato, com Mulato.
A boca da prima é que era bonita. Uma boca que conservava o frescor da
juventude, os lábios carnudos e cheios. Os lábios mexiam-se sensualmente,
mas Vicente procurava reprimir os pensamentos maus. A pobrezinha estava
sofrendo, estava lutando como uma leoa na defesa do filho. Podiam dizer dela o
diabo, mas a sua coragem, a sua firmeza na defesa dos parentes era uma
atitude bonita.
— Meu filho ouviu Mendes de Assis dar ordem para os soldados
afirmarem que meu pai resistiu...
Vicente saía. Daí a pouquinho a velha queria saber novas notícias.
— Tenha calma, minha tia. Eu acho ,que Artur não vai atacar depois de ler
a carta.
A velha soluçava e voltava aos mesmos refrões:
— Será que mataram os portadores? Será que os portadores entregaram
a carta?
Encostada nos ouvidos de Vicente estava a boca carnuda de Anastácia,
mexendo sensualmente, soprando as palavras com um hálito quente que
arrepiava. A boca parecia um sexo, sexo de mulher, carnuda, vermelha. Quando
adolescente, muitas vezes tinha visto, tinha apalpado o sexo da prima.
Bobagem. Primos sempre são assim com essas intimidades.
— Será que a gente pode ir ao quartel conversar com Severo, Vicente?
Por dentro dele subiu uma coisa ruim. Perto de sua cara a cara da prima,
molhada de lágrimas, a saliva meio visguenta do choro, uma expressão de
súplica nos olhos. Vicente reprimia o pensamento mau, mas tinha para si que a
prima iria tentar o oficial. Ela seria bem capaz de oferecer o corpo pela liberdade
do filho Por dentro de Vicente subia um sentimento confuso. Seriam ciúmes da
prima? Ofendia-se com a idéia de vê-la entre os braços de Severo, aquele
sujeito brutal e odiento, Severo que devia de estar há muitos meses sem mulher
e que já tinha no olhar um laivo de sensualidade. Severo despindo a prima,
apertando-a, abrindo-lhe as coxas.
— Meu filho sabe muita coisa, Vicente. Se falar, esses oficiais estão
perdidos. Se falar, o Juiz Carvalho está rodado!

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Seu hálito escaldava nos lábios polpudos, semi-abertos como um sexo
jovem, hálito que lembrava o milharal naquele dia distante de seu noivado,
quando o velho coronel o desafiou para andar no bicame.
”A prima pelo quintal, nos tempos de infância, mostrando as coxas
grossas, fugindo, mostrando mais distante. Deixe-me pegar um pouquinho só.
Então, só um pouquinho. Aí, chega, que vem gente”.

O PESSOAL cobrou alma nova. A Vila era outra. As pessoas vieram para o
Largo, conversavam, abraçavam-se, batiam palma: As mulheres enfeitaram com
panos vistosos as janelas e as crianças riam contentes.
Alferes Enéias ficou tão satisfeito que veio dar um abraço em Vicente:
— Estou gostando de ver. Vocês não são nenhuns perrengues não.
Mendes de Assis também deixou a rede, abandonou por alguns minutos o
rosário e de chinelos arrastando, a barba por fazer e querendo ficar ruça, zanzou
no meio dos outros quase sem dizer coisa alguma. Podia acontecer o que
acontecesse, continuaria de braços cruzados.
O rebuliço era causado por um contingente que entrava na ViIa. Uns trinta
homens armados e municiados, comandados por Leão de Aquino, bicho brabo,
resolvido, contador de lorotas, acostumado a escorar barulho. Leão distribuía o
pessoal e cuidava da defesa da Vila, mas ao mesmo tempo contava seus casos,
arrota-va valentias, entusiasmando o povo.
Vicente chamou de parte Leão e confiou-lhe alguns segredos:
— Olha, cuidado com a polícia, que não merece a menor confiança. —
Contou-lhe tudo que havia ocorrido. O caso do assassínio do velho já
desarmado e entregue, o furto do dinheiro, da espionagem de Xavier e Alcides.
Contou do levante que tinha havido para depor o Juiz Carvalho. — Leão ficaria
cometido de uma tarefa muito séria. Vigiar a polícia, trazê-la sempre de olho,
No varandão de Dona Benedita a conversa recuperou o calor de outrora.
A velhinha mesma estava entusiasmada, já se interessando pelos canteiros de
flores.

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Das bandas da Bahia, nenhuma notícia chegava. Parece que Artur
estava dissolvendo o seu grupo. Observando tudo isso, Vicente chegava a
sentir-se envergonhado, a cara lascando fogo: E eu que quase abandonei o
Duro, de medo de Artur! Agora, quéde Artur com seus Roberto Dorado, Maroto,
Umbuzeiro, João Rocha e não sei quê mais? Quede esses tutus, minha gente?
Ah, com tanto paisano e com a poícia eles não seriam bestas de atacar a Vila!

ERA VER um galo cansado de tanto correr: cambaleava, vergava os joelhos,


avançava, ficava parado. Será que está ferido! Algum louco? Atravessou o
Largo, entrou na casa de dona Benedita, no oitão do quartel de Enéias.
O pessoal logo entupiu a casa, aglomerando-se em tomo do chegante
que mal podia respirar. Sufocava, a baba grossa e visguenta escorrendo queixo
abaixo, olhos vidrados, narinas dilatadas e a boca arfante. Feito um bêbado,
apoiou-se em Valério Ferreira e amontoou no chão.
— Arreda, gente, arreda, deixa o homem descansar!
Mas ninguém se afastava, curiosos das notícias que certamente trazia.
Vicente mais Valério o pegaram, levaram para um quarto. Na mesma hora caras
surgiram na janela que foi fechada e ali ficaram abanando o pobre, molhando-
lhe a testa e as fontes com água fresca, molhando a língua.
Era Deodato, pessoa da amizade de Vicente Lemes, comerciante no
povoado.
Uma gosma grossa e pegajosa tapava a garganta, não deixava a água
descer, gosma que o engasgava, tomava-lhe o fôlego, obrigava-o a tossir
convulsivamente. Nisso o homem pegou a gritar, feito um condenado,
contorcendo-se. Eram cãibras. A cada movimento os músculos enrolavam-se,
faziam poronós, e o bicho chegava a chorar de dor.
Agora, articulava algumas palavras.
— Que era? Que estava dizendo?
— Abílio Batata e Artur... estavam., na Grota.
Aí o homem esbarrou, não agüentava mais, arquejante feito um bicho na
agonia, uma aflição de matar, os músculos se retorcendo na cãibra.

167
Vicente lhe trouxe água, molhou-lhe as fontes, e perguntou a Valério se ouviu direito.
- Sim, tinha ouvido: Abílio e Artur estavam na Grota.
— É Leão. Quero falar com vocês!
Vicente custava a crer. Parecia um sonho, umpesadelo, uma história de
menino. Quer dizer que Artur ia atacar mesmo. Não era conversa fiada, não era
tutu não. Mas todo perego não parecia afastado, com Vila garantida pelos
refêns, pela polícia, pelos civis? Ainda duvidava. Esperava um acontecimento
acima das forças humanas, que Deus surgisse e empurrasse Abilho Batata com
sua espada de fogo. Uma espécie de moleza invadia Vicente. Vontade de ficar
sentado, deixar Deodato morrer, Deixar os bandidos entrar, pregarem fogo,
matar, jogar fora, pronto, acabou-se.
-- Ei, Vicente, estão batendo! – Foi Ferreira que lhe deu o safonão. É que
batiam na porta. Quem batia anunciava-se:
-- É Leão. Quero falar com vocês!
Feito um doente, com um esforço enorme Vicente ergueu-se, abriu a
porta. Por ela entrou Leão. Entrou feito um pé-de-vento, a cara vermelha, as
armas retinindo, as botas socando o chão.
— Que que está contando? — indagava Leão, que tirava do bols uma
garrafmha: — Isso é bom para animar.
— Que é isso? — queria saber Ferreira.
— Água benta, Seu Juiz. Para espantar os maus espíritos.
Em tomo, riram, percebendo a brincadeira. Leão continuou,:
— Deodato é um pau-d’água dos diabos. O que tem é sede de cachaça.
É ou não é, Deodato!
Leão abraçou-se com o homem, fê-lo levantar-se um pouco, meteu-lhe o
gargalo na boca, para um pequeno gole. Em seguida trouxeram alguma coisa
para o homem comer, enquanto Valério punha Leão a par da notícia de Deodato.
— Pode chegar, jagunçada de uma figa! — No quarto, Leão dava pinotes,
ameaçando jagunços imaginários com seu punhal desembainhado: — Chega
logo, putada!
Ferreira ria e Deodato também ensaiou um riso doloroso e desbotado,
entre gemidos de cãibras. Por fim, Deodato começou a contar.
Estava nas imediações da Grota, quando foi preso por um homem de
Artur e levado para o sítio. Perguntaram-lhe muita coisa, mas depois largaram
de mão, vendo que ele estava fora da Vila há muito. Nisso o pessoal começou a
comer um porco abatido na hora.

168
Deodato pegou seu pedaço de entrecosto e saiu por ali mode obter uma vara
para espeto.
Quando deu fé, estava meio longinho, não havia ninguém o vigiando.
Deodato continuou caçando espeto, já agora de mentira. Não tinha ninguém por
perto, Deodato meteu os pés. Lá adiante, alguém gritou, um jagunço saiu no seu
encalço, deu uns tiros, mas o homem conhecia tintim por tintim os atalhos e
cabreiros da região e em breve ganhou dianteira.
Corria o que lhe davam as forças, sentia-se desfalecer, sentia as pernas
arderem, a garganta queimava como se fosse brasa e não ar o que respirava,
mas Deodato não se detinha.
Leão percebeu nos olhos de Vicente um laivo de incredulidade. Mas as
palavras do homem não eram palavras de mentira. Dizia ele:
— Lá na Grota eu vi o Coronel Artur Melo, Abílio Batata, Miguel
Umbuzeiro... Tem mais de trezentos homens, tudo com Winchester nova e bala
que é um despropósito.
Leão, Valério e Vicente ouviam em silêncio.
— Diz que tão esperando a chegada de Roberto Dorado para atacar... Ai,
ai, ai! — Eram as cãibras torturando o condenado que se retorcia e chorava de
dor.
Novas pancadas na porta do quarto.
— É o Tenente Assis — gritavam de fora. A porta se abriu muito pouco, o
tenente passou deixando entrever pela fresta um pessoalão com cara de
curiosidade e de pavor. Alguém ainda avançou, forçou a porta para entrar, mas
Leão impediu. Convinha guardar segredo. Era besteira alarmar a população.
— Vamos tomar providência, gente! — concitava Leão, enquanto Vicente
narrava ao ouvido de Mendes de Assis as novidades. O tenente, porém, não
dava crédito a paisano: queria ouvir da própria boca de Deodato. Enquanto
ouvia, contraía a cara, coçava-se nervosamente, metia o dedo no nariz.
— Seu tenente, Leão é o comandante dos civis, o senhor podia acertar
com ele as providências que deve tomar, não é? — aventurava Vicente Lemes,
enxergando que urgia um entrosamento dos civis com os militares. O número de
pessoas dentro da Vila era bem dizer uma terça parte dos homens de Abílio.
Não se podia perder esforço.
— Depois a gente chama Leão. Por enquanto... — A resposta

169
de Mendes de Assis era uma evasiva. Também ele não mandava nada. Carecia
de procurar Severo.
De novo batiam na porta. Batiam, batiam. Era um recado de Dona Aninha.
Quem trazia era Moisés, que pedia a Vicente que fosse imediatamente à casa
da velha.
— Coisa grave — dizia Moisés, num tom misterioso, quem estivesse visto
o capeta.
— E eu que vou procurar esses oficiais! — exclamou Leão, deixando o
quarto. — Preciso preparar meu povo.
O povo queria invadir o comodozinho, mas Vicente impediu.
— Não fizesse isso que Deodato estava muito fraco. Ferreira também
saiu. Iria encontrar-se com Ângelo e Júlio de Aquino para prepararem a defesa.
Era chegado o momento de faz armazenamento d’água, de alimento, de lenha,
de tudo que foi necessário para enfrentar o cerco. Estavam completamente
desprevenidos, confiantes em que Artur não atacaria, confiante e que respeitaria
os reféns. Precisava distribuir o povo por determinadas casas, estrategicamente,
a fim de favorecer a resistência.
— Vamos embora, Vicente, — reclamara Moisés, que o pegou pelo braço
e saiu arrastando em direção à casa da velha.
Quando Vicente pisou a soleira da porta da rua, já ouviu o fuá que ia lá
por dentro. Choro, gritos, correrias, portas fechadas, canastras, bancos, mesas,
bruacas e cangalhas as escorando.
— Que é isso? Onde está a velha?
Aninha encontrava-se no quarto grande do fundo da varanda, deitada na
cama larga, cercada de almofadas, com o pessoalão em tomo: mulheres,
homens, meninos, servicais. Uns a abanavam outros lhe traziam chá, outros lhe
davam cheiros.
Quando a velha ficava nervosa, pegava a querer dar chiliques, tremia,
perdia os sentidos, era um deus-nos-acuda. Naquele momento, todavia, embora
todos receassem o ataque, ela não o sofria. Estava bem lúcida.
Caminhando, Vicente foi-se inteirando do ocorrido. A polícia tinha ido à
casa da velha e prendido os homens. Todos: Damião de Bastos e os dois filhos;
Joaquim Alves Leandro e um filho; Melo Filho, irmão de Artur, Tozão, Abadia
Ribeiro, irmão de Cláudio, e Damasceno, camarada de Damião.
Esse pessoal havia sido recolhido ao sobrado, — informavam
— onde Enéias tinha o seu quartel. Aí, na parte térrea, era aca-

170
deia local. Os nove homens lá estavam, os pés metidos no tronco, que era
constituído de dois compridos esteios de madeira forte. De espaço em espaço,
possuíam esses esteios um corte em meia-lua. Justapostos, os cortes formavam
buracos, nos quais se metia a canela do cristão, que ali ficava jungido. De um
lado, unindoos dois esteios, havia uma dobradiça de ferro, grosseira, feita ali
mesmo, e de outro, uma espécie de aldrava com cadeado.
Os homens protestaram, relutaram, mas foram levados à força, alguns
arrastados pelos soldados que os ameaçavam de matar ali mesmo.
Tozão velho sacudiu as orelhas e balbuciou alguma coisa. Dizia que não
podiam prendê-lo. Era capitão da Guarda Nacional e só poderia ser preso por
oficial de patente superior.
— Tá bestando, só, — retrucou Enéias. Agora é lei de guerra! Joaquim
Leandro, esse tentou resistir, correu para pegar sua arma no quarto. Mane Vitô
deu-lhe uma rasteira, derrubou-o a fio comprido na sala, montou no bicho e
meteu o refle na cabeça. Diziam que foi levado carregado, sangrando feito um
capado.
Enéias com os soldados enfiaram a canela de cada um em cada um dos
buracos, passou o cadeado e meteu a chave na algibeira.
— Quero ver esse Artuzinho de merda nos atacar! — dizia ele para
Mendes de Assis e Severo. E já saindo, Enéias avisou aos prisioneiros:
— Pois é, vão se apegando com Deus e os santos, mode Artur não
atacar. Se ele atacar, vocês podem liquidar com eles, viu?
Aquele ”vocês” a quem Enéias se referia eram Mane Vitô e Nestório que
ajudaram na prisão e garroteamento dos homens e que ali estavam risonhos e
satisfeitos, sentindo-se importantíssimos com a missão de guardar aquela
gente..
— Tou fazendo mas é força pra esse tal de Artuzinho atacar... — disse
Mane Vitô, cuspindo de esguicho. Sentia-se poderoso. No meio de tantos
soldados, foi ele que Enéias escolheu para vigiar aqueles prisioneiros. Seus
companheiros de farda e os paisanos ficariam sabendo que era um cabra
macho, cabra perigoso. Estava vendo que quando acabasse aquela luta, teria
uns pares de lagartixa no braço.
Alferes Enéias ajeitou a farda que se amarrotara com os movimentos
feitos para prender o pessoal. Puxou a túnica, acertou a gola, arranjou o
talabarte, e saiu, deixando Mane Vitô de guar-

171
da. Ia reunir-se com os demais oficiais no quartel. com aConblain na mão, o
picuá de balas a tiracolo, na cinta o refle e o revólver, ficaram de guarda Mane
Vitô e Nestório.
Passeavam para lá e para cá e já nutriam um ódio de morte os
prisioneiros do tronco. Olhavam eles como se fossem inimigos pessoais, como
se os odiassem de muitos e muitos anos. Queriam que te reclamassem a menor
coisinha para meter a coronha logo na cabeça, rebentar os miolos. Mane Vitô
cuspinhou de esguicho no canto da sala, os olhos feitos duas brasas:
— Bamo ver, cachorrada. Fala alguma coisinha aí para ver eu é que um
cachorro morre!
Nestório agachou-se, puxou o quepe para os olhos e ficou feito um toco
de pau. Quem visse pensava que estava dormindo. No entretanto, se Mane Vitô
assuntasse bem, haverá de ver os beiços do cafuzo mexendo. Nestório recitava
o credo às avessas e fazia muito esforço. Tinha cabeça dura e a reza era reza
muito fina de propósito. Se errasse uma palavrinha, a reza não surtia efeito.
Carecia de botar todo sentido, que era reza braba igual jararaca.
”Não creio em Deus Padre todo-poderoso, nem criador do céu e da terra,
nem creio em Jesus Cristo, que não foi concebido por obra e graça do Espírito
Santo!’
A VELHA Aninha chorava, como costumam chorar as velhas, de uma
maneira profundamente dolorosa. As lágrimas corriam,os soluços subiam numa
convulsão profunda e sofrida, o rosto se contraía, contorcia-se a boca.
Mas no estava acovardada. Assim que viu Vicente, falou fui me e
fortemente:
— É de vera que Artur chegou?
— Deodato está contando isso, minha tia.
— Pois a polícia veio cá e fez uma limpa, — dizia ela, que enumerou os
presos.
Dentre os circunstantes, Anastácia informou que Tozão também fora
preso. A velha protestou que não, que Tozão não tinha sido recolhido ao tronco.
— Foi, sim senhora, — teimava de lá a filha, entre soluços, ocultando o
rosto com as mãos: — Mataram meu pai, prenderam meu

172
filho e agora prendem meu marido! — Um choro brutal, um choro selvagem, uivo
de cão.
— Coitado de Tozão — disse a velha, como para si mesma, — que é que
tinha com isso?
Ao redor comentavam a prisão de Joaquim Alves Leandro. Era igual à
morte do velho Pedro Melo — um sacrilégio. Talvez se os soldados tivessem
quebrado os santos do oratório de Dona Benedita o povo não houvesse achado
tão espantoso. Ninguém contava o caso diretamente ou por inteiro. Referia-o
aos pedaços, por meio de vagas alusões.
Era o homem mais rico da região. Muito poderoso. Sua fazenda perto de
Natividade imitava um palácio, com cortinas de veludo, vasilhame de prata e
ouro. Além de dois capangas Joaquim Leandro fazia-se acompanhar de um
estribeiro, um rapaz vestido de seda de cor, montando num cavalo bonito, que
tinha por tarefa segurar a rédea para o Senhor Joaquim, e depois ajeitar-lhe o pé
no estribo.
Os arreios dele eram uma beleza, todo tauxiado de ouro e prata, com as
ferragens da cabeçada feitas de prata. Joaquim Leandro andava com um
chicotinho de cabo de ouro na mão, para bater nos empregados. Lambadas de
tirar sangue.
Nunca ninguém não tivera idéia de triscar ao menos nos animais desses
Alves Leandro, que eram gente soberba, confiada no alto poderio das barras de
ouro enterradas nos alicerces da fazenda. No entanto, naquele dia a polícia deu
com o alto senhor no chão, amontou em riba e meteu o sabre.
Ali no chão havia sangue do homem mais rico do Norte de Goiás.
Ninguém tocou no sangue, em sinal de respeito. Quem passava, passava por
longe, nem pular aquele sangue ninguém podia, que não era sinal de bom
preceito.
Os empregados, os criados e os amigos se benziam. Aquilo era mesmo o
fim do mundo. Bem que Maria Pequena tinha dito que Carvalho possuía uma
”coisa” fêmea!
Com seu império de sempre, com coisa que fosse senhora da situação e
com coisa que não estivesse na dependência de Vicente, a velha virou-se para o
sobrinho:
— Olha, meu sobrinho, é preciso que você ponha cobro nisso. Você não
pode deixar esse pessoal morrer assim sem mais nem me-

173
nos. O sangue desses pais de família vai cair na sua cacunda e na cacunda de
Valério Ferreira.
— Jeito quem dá é Artur, minha tia. Ele que não ataque o povoado se
quiser os parentes com vida!
Para perto de Vicente veio Anastácia e pegou a lhe encher os ouvidos, o
hálito quente lhe queimando as orelhas, os beicosa da mais grossos, mais
intumescidos pelo pranto.
— Vicente devia ir ver os presos, não desamparasse eles que os
soldados estavam dispostos a matar. A polícia os mataria para que não
contassem o roubo dos dezoito contos do velho, para que revelassem que o
velho morreu depois de se haver entregue à polícia; para que não contassem
que Carvalho prometera a Artur não o prender, se dispersasse o pessoal da
Grota.
Vicente ficava quieto ali no meio do povo, com Anastácia quase montando
em riba de seus joelhos, esfregando-se nele, a cara molhada de lágrimas, num
desespero tremendo, o bafo quente como se estivesse com febre.
Numa ânsia de animal ela perguntava:
— E Hugo? Você falou com Severo? Será que ele deixa meu filho vir pra
cá?
Aí se lembrava da prisão do marido:
— Ah, agora é besteira. Agora eles não deixam mais Hugo vir para cá!
O choro vinha do fundo do peito, aos solavancos. Anastácia tombava com
a cara ali na cama da mãe e gritava pedia:
— Vicente, vai vigiar os presos. Os soldados matam eles, Vicente!
Era preciso mesmo ver os prisioneiros. E Vicente saía com essa intenção.
Na cama ficou a velha resmungando. Não mais estranhava o avanço do
filho. No seu egoísmo, achava que Artur estava certo; o grupo de Vicente é que
tinha que recuar, que tinha que abaixar o cangote.
Vicente afastava-se e ela dava vazão a seu sentimento:
— Ora, essa é boa! O pessoal de Vicente que se fomentasse. Artur disse
que ataca e ataca mesmo. Até parece que não conhecem Artur! — Havia
soberba nessas palavras. A velha se envaidecia da dureza, da inflexibilidade do
filho, passando por cima de todo

174
pedido, do pedido de todo mundo, para vingar a morte do pai, para cumprir uma
promessa de vingança.
Ainda no corredor, Anastácia se atravessou na frente de Vicente:
— Defenda Tozão, meu primo! — A voz vinha quente, os beiços ardendo,
como se tivesse comido pimenta. Ela devia ser uma brasa na cama. Bem que
diziam. Tentava afastar o pensamento libidinoso, ele voltava insistentemente.
Norato falava. Uma brasa, uma cobra na cama. E quando queria, queria sempre
mais. Vicente sentia vergonha de pensar isso naquele momento em que ela
sofria tanto. Logo agora que ele ia enxergar a prima! Logo agora que a
pobrezinha estava tão desgraçada. Será que ela procurou os oficiais? Se
procurasse, os oficiais iam fazer proposta desonesta. Estavam havia muito sem
mulher, em dieta de família naquele oco. Por certo não resistiriam a uma mulher
assim naquele estado.
Vicente atravessou o Largo e chegou ao sobrado que servia de quartel,
em cuja parte térrea estavam os prisioneiros. Ali, porém, não pôde entrar. Mal se
aproximou, Mane Vitô manobrou a arma e botou bala na agulha.
— Passe de largo — gritou na sua voz bonita.
Aquilo irritou Vicente. Afinal de contas ele possuía autorização de Eugênio
Jardim para dirigir a política do Norte, e um soldado boçal daquele o mandava
passar ao largo!
Tentou impor-se. com aquela gente era preciso tomar atitude, endurecer o
espinhaço, mostrar-se arrogante.
— Alto lá, soldado. Quero falar com os prisioneiros, alto lá! A Comblain de
novo mastigou e a voz veio mais forte: — Se teimar, meto fogo. É ordem! —
Vicente viu Mane Vitô levar a espingarda à cara, apontando para seu peito.
Que fazer! Vicente se dirigiu para o quartel do Tenente Mendes de Assis,
onde deviam estar reunidos os oficiais.
Chegou com jeito, conversou com Mendes de Assis sobre as prisões,
disse que vinha da parte de Anastácia, que tinha o marido no tronco e o filho em
casa de Severo.
Severo o interrompeu. Pelo tom de voz, notava-se que se continha para
não explodir em xingatório:
— Se você vem pedir pelos Melos, é tempo perdido, é tempo perdido... —
Disse e considerou o assunto morto. Já saiu chamando um sargento e dando
ordem para reunir mantimentos, para juntar lenha, armazenar água.

175
Vicente Lemes quis dirigir-se ao Alferes Xavier que era o mais delicado e
o mais compreensivo. Talvez por isso dissessem que era aliado dos Melos, que
havia recebido uma bolsa de dinheiro ao entrar na casa. Coisas! Também o
encontrou fechado. Mais baixo do que Severo e mais claro, Xavier não tinha, no
momento, calma habitual. Não deu ouvidos aos argumentos de Vicente. Xavier
ouvia as razões com a cara de enfado, sem dizer nada, mostrando-se indiferente
ao assunto.
De lá, quem falou foi Mendes de Assis:
— Precisa prender essa corja, em antes que eles acabem com nossa
gente. Isso é que é certo!
— Quero dizer que não é preciso meter no tronco. Pode prender sem ser
no tronco.
— Sei lá — retrucou Mendes. — Sei lá. São do lado de Artur e estão
querendo vingar a morte do velho. Gente muito perigos:
O tenente proferia as frases num tom terrivelmente nervoso com cara de
meter medo. Até parecia que estava embriagado. Seria possível?
Vicente compreendeu ser inútil querer convencer os oficiais de qualquer
coisa. Estavam assombrados com a aproximação de Artur. Depois, talvez
obtivesse alguma medida favorável aos prisioneiros; no momento era mais hábil
não teimar.

A TARDE chegou e Vicente nem percebeu, atarefado com uma e outra


providência. Novos recados vinham da parte da velha Aninha, mas que ia
Vicente dizer? Que a polícia não atendia a nenhuma reclamação? A tarde
avançava e era horrível. A aflição dominava a todos. Já ninguém se iludia.
Vicente parece que acorda de um sonho, parece que estava vivendo uma
história fantástica.
A realidade agora era dura. Os bandidos estavam de grito, atacariam a
qualquer momento. A esperança eram as balas, eram as armas, era a coragem
dos sitiados, depois da proteção divina.
E aquela demora irritante! Que atacassem, os miseráveis! Aquela demora
é que matava, é que arrasava os nervos. Tinha hora que Vicente pensava em
desesperar-se, pegar o pessoal e atacar a Grota, atacar o reduto, levar o diabo,
mas pôr um termo à aflição.
Lina chegou com um caldo na tigela. Vicente não tinha pingo

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de fome, mas ela instou. Era preciso enfrentar a situação, reconhecer o perigo
que estava à porta, escorá-lo bem alimentado e disposto. As palavras dela
entravam por um ouvido e saíam pelo outro. Até o irritavam. Ele só pensava no
ataque, na defesa da Vila, na maneira de evitar a morte dos homens metidos no
tronco, em como salvar Hugo Melo que não tinha ainda vinte anos de idade.
O homem ingeria o caldo, de qualquer maneira. Caldo de quê seria? De
carne, por certo, engrossado com farinha de milho. Tozão, Hugo Melo, Tozão,
Anastácia, Abadia.
Lina era tão diferente de Anastácia! Anastácia era uma fogueira, uma
cobra na cama, no testemunho de Norato. Pressentia-se isso pelo calor de sua
boca, pelo ímpeto que punha nas suas resoluções. Vicente desejou a prima,
desejo besta de que se envergonhou. Lina, tão diferente, tão boa, tão digna de
confiança! Mas seria fria? Como seria uma mulher ardente, feito uma cobra na
cama?
Num assomo de ternura, Vicente passou o braço em tomo da cintura da
mulher e apertou contra si. Remorso de pensar em Anastácia.
Desabituada com essas demonstrações de carinho, Lina desvencilhou-se
e fugiu, levando a tigela. Seria Lina uma mulher fria? Lina amava como quem se
desincumbe de uma tarefa amolante, não tinha ardor, não tinha entusiasmo.
Vicente até desconfiava que ela o estimasse como a um irmão, como a um
arrimo. Lina não sabia o que era amar.
Vicente saiu para o Largo. A lufa-lufa o envolveu. De tempo em tempo,
revezavam-se as sentinelas e os destacamentos das trincheiras. Homens
armados entravam e saíam. A tarde era murcha, fria, cinzenta, de céu baixo,
mas sem chuva. Passaram uns urubus de vôo molengo, rumo ao poente.
Pelo povoado, a polícia trabalhava vazando muros e paredes, de modo a
permitir que as pessoas se pudessem comunicar de casa em casa, passando
por esses buracos. Rodear pela porta da rua seria expor-se às balas inimigas.
Era uma experiência de Pedro Afonso, que Enéias transmitia.
Nos muros, o trabalho não oferecia dificuldades. A taipa era mole, mas as
paredes, feitas geralmente de pau-a-pique, deviam ter os barrotes serrados, a
fim de não enfraquecer a construção.

177
Serrote crocava, enxadas e alavancas tiniam, ribombavam móveis arrastados
para escorar portas e janelas. Mesas, canastras, frasqueiras, bancos
amontoavam-se nas portas e janelas.
Uma grande mudança operava-se no povoado. A polícia localizava-se em
quatro quartéis. O do Alferes Enéias era o sobrado; dos Melos, onde estavam os
homens presos no tronco; desse mesmo lado era o do Tenente Mendes de
Assis, em frente à igreja, junto da grotinha que cortava o Largo, perto do
pontilhão aí colocado Em frente deste quartel de Mendes de Assis, ao lado da
igreja, na casa que fora de Vicente Lemes, se localizara o quartel do Alferes
Severo, onde estava preso, sob sua responsabilidade, o menor Hugo Melo; no
oitão da igreja, ficava o quartel do Alferes Xavier. Nesse quartel havia umas
quarenta pessoas, dentre as quais Valério Ferreira e Cláudio Ribeiro, além dos
soldados com suas mulheres e filhos.
Aí, na véspera, cinco casas foram furadas, de modo a formar um
passadiço só. Nas paredes externas fizeram-se buracos para o cano das armas,
buracos mais largos por dentro e estreitos por fora, permitindo que as armas se
movimentassem.
Aí também estava o Soldado Carajá, valente como as armas Severo,
naquele momento, o mandava espionar a redondeza, ele que sabia farejar tal
qual um animal do mato e rastejar igual a uma onça-pintada.
Na sala de casas oposta ao quartel de Xavier, no casarão de dona
Benedita, estava a trincheira de Vicente Lemes, que obedecia às ordens do
Alferes Enéias, de cujo quartel ficava no oitão. Era mais uma casa de civis, aí
estavam mais de cem pessoas: Vicente Lemes, Moisés, Jugurta e as
respectivas famílias. Estavam a mulher e os filhos de Argemiro Félix; ele mesmo
tinha ido parlamentar com Artur e não retomara. Deodato o vira e o Dr.
Herculano presos na Grota. Também a velha Benedita estava nessa trincheira.
A este quartel ainda pertenciam os homens de Ângelo Lemes, sob o
comando de Leão de Aquino, que estavam postados pelos corredores da Vila.
Competia-lhes atacar os jagunços pela retaguarda.
Andando, Vicente recebia as reclamações. Brasica queria sair do quartel
de Xavier e ir para o de Vicente.
— Você sabe, Vicente, tenho aquelas meninas-moças... No meio

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daquela soldadesca que veve sem mulher nem num sei desde quando...
Por baixo do xale preto, Benedita Melo reclamava. Tinha medo que Artur
lhe fizesse algum mal:
Quem sabe era mais prudente abandonar a Vila, fugir para o mato?
— Logo neste momento, minha sogra? -Uai!
— Ah, não è possível. Se a senhora sair pode topar com um piquete de
jagunços e aí tudo leva o diabo!
Contavam de um soldado que desguaritou e passou moreno para não ser
morto. Aliás, ninguém acreditava que o praça tinha desguaritado. Isso ele tinha é
tentado desertar, mas viu que fora a coisa era pior do que dentro do povoado.
Também a seu conhecimento chegavam os conflitos dos militares.
Mendes de Assis estava de braços cruzados. Não queria combater. Xavier
estava de olho em Severo. O cometeiro Anselmo e o cabo Bernardino estavam
apavorados. Tonhá e Guia-de-Cego prometiam matá-los, receando que
revelassem o roubo do cadáver. Freitas Machado temia Mendes de Assis. Ele
deu voz de prisão no velho Pedro Melo, o desarmou e foi aí que Daniezinho e
Gabriel mataram o coronel. O velho não resistiu. Era mentira de Mendes de
Assis.
— Olha uma tropa chegando!
Era o povo de Moisés que tinha saído para buscar mantimentos no sítio
Balança. Os cargueiros chegaram pesados, as bruacas cheias de feijão, arroz,
farinha de mandioca; frutas, galinhas, ovos, milho, carne-seca, toucinho,
lingüiça, rapadura, açúcar, amendoim, buriti raspado — provisões para os
quartéis.
Os camaradas de Moisés chegavam contando que as fazendas estavam
desertas. Para encontrar fazenda com gente, tinha que andar muitas léguas.
Eram homens habituados com viagens, com seus lenços de alcobaça,
descarregando as bruacas e os dobros. — Chuva por demais, meu amo. O
Palmital estava que não dava vau de jeito nenhum.
A estrada de Taipas tinha acabado. No lugar do atoleiro estava uma
lagoa. E por falar em atoleiro, o Penacho, macho forçoso, metera-se no tijuco e
deu upa para tirar o cujo. Quando saiu, estava com uma estrepada por baixo do
sovaco direito:

179
— Larguei o bicho na Balança.
— Burro, diacho! — gritava um cabra de Ângelo, seminu, rapinha
pingando água com três machos, trazia água da fonte enchendo os potes,
pipotes, gamelas, talhas e pipas. A água do povoado era salobra nas cisternas;
para beber buscavam nas fontes colocadas fora da Vila.
Novamente a moleca de Dona Aninha estava chamando Vicente Lemes.
Vestida com uma camisola de algodão por cima do corpo, no qual começavam a
brotar as graças de mulher. Seu nome era Tifuque. Não largou mais Vicente.
Decerto Aninha lhe prometera taça, e muita taça, se não trouxesse
Vicente.
Para onde ele ia, ia também a moleca que ficava parada, muito séria, os
grandes olhos muito brancos, o rosto fino e aqueles peitinhos apontando, as
coxas meio arredondadas. Quando passava, os soldados ficavam olhando
longamente.
— Bota uma pidrinha de sale na boca!
Tinha homem que já estava há mais de seis meses sem aproximar de
uma mulher e quando via a bichinha com seus peitinhos pontudos, chega
mudava de cor, o coração pegava a escoicearo peito, uma tremura pelo corpo.
Dava até vergonha. Leão ia chegando e chalaceou:
— Uai, Vicente, você arranjou um bom ajudante-de-ordem, hem, seu
barra! — Vicente encabulou e resolveu ir ver a velha,
A tarde corria, feia, uma neblina baixa, uma cruviana que ia e vinha, ora
mais grossa, ora mais fina. Quando fazia silêncio, ou via-se o gorgolejar das
enxurradas e o coaxar dos sapos.
Um ou outro galo cantava. bom sinal: se um galo cantasse, um cachorro
latisse e um gato miasse, não aconteceria desgraça naquele dia.
Vicente marchava lépido, de corpo leve. Notou que o coração batia e que
uma emoção diferente o invadia. Pensava em Anastácia, seus beiços
intumescidos, sua voz quente. Que coisa besta, gente! Até parece namoro de
juventude.

BOBAGEM, nhá tia. Artur não pode atender, ele não manda mais nada. É
prisioneiro de Batata — contestou Vicente.
A velha teimava:

180
— Agora quem vai é Anastácia.
— Inútil. Deodato viu o povo na Grota. Quem mandava era Batata. Seu
filho é mesmo prisioneiro de Batata; num decide coisa alguma.
A mulher prosseguia:
— Anastácia está desesperada, com o filho preso, com o marido no
tronco. Ela não tem sossego imaginando só coisa ruim.
Do fundo da casa, a prima saiu. Desfigurada. Abatida. Os cabelos todos
caídos, as vestes desarrumadas no corpo. Vinha como se estivesse em transe,
os olhos arregalados. A cada momento imaginava que no instante imediato o
primeiro tiro disparado e que, ato contínuo, Severo matasse o menino, Enéias
matasse o pobre do Tozão.
Vicente recebeu a notícia meio sem graça. No íntimo, doía-lhe o
afastamento da mulher, mas logo reagiu: sonhava com o impossível!
A prima acercou-se e pegou com aqueles seus modos, falando quase no
ouvido de Vicente, numa aflição que lembrava mulher na cama.
— Não agüento mais. Ai, não suporto. vou topar com Artur. Depressa,
Vicente, me arranje um jeito de ir na Grota. Quero ir, preciso ir, eu fico louca,
Vicente! — Já se ergueu, torceu as mãos, empurrava Vicente pelas costas:
— Ligeiro, Vicente! Um soldado por descuido dispara um tiro, um engano
qualquer, a polícia mata meu filho, Vicente, mata o pobre do Tozão. — Tapava o
rosto com as mãos, como que afastando a visão terrível. — Coitado de Tozão,
tão bom, tão incapaz de fazer mal aos outros!
A idéia de que um equívoco pudesse levar o filho à morte, parece que
aumentava o medo, fazia o perigo mais pavoroso. A mulher não tinha sossego,
não tirava isso da cabeça, não conseguia dormir um minuto desde os dias
anteriores. Podiam dar-lhe um pouco de cachaça. Cachaça numa hora dessas
bem que ajudava.
Anastácia tomou as mãos de Vicente e começou a beijá-la nas vistas de
todo mundo. Vicente teve vergonha, era insuportável uma coisa dessa! Beijar a
sua mão, ela mulher de sua idade, mãe de família sua prima!
Vicente retirou as mãos, escondeu-as, limpou-as, e saiu nem sabe como,
saiu como um embriagado. Enquanto andava, sentia

181
na mão ainda o frio das mãos da prima. Nada daquele calor do dias anteriores.
Agora, era gelo, era um frio de morte que tona as mãos de Anastácia. Também
seu hálito, seus lábios tinham podido aquela sensualidade que tanto incendiou
Vicente. Era inútil. Agora quem mandava eram Batata e Dorado e estes não
desistiriam de atacar. Queriam receber o gado prometido, queriam fazer a
sebaça da região por seis meses.
Foi com a cara lascando fogo que Vicente Lemes se apresentou perante
os oficiais.
Todo argumento de Vicente foi fraco. Às primeiras palavras, Severo virou
as costas, saiu pisando duro, embezerrado.
Mendes de Assis ouviu e bufou:
— Outro emissário para enredar, para denunciar nossos planos?
Só Xavier que, por uma deferência, lhe dava ouvidos, talvez constrangido
pelo jeito contrafeito com que Vicente encaminhava a conversa. Ele dizia que
era inútil:
— Dois positivos seguiram quando Artur estava na Bahia e podia
arrepender-se... No entanto, ele não desistiu.
— Bem, mas aquele tempo era diferente. Não havia ninguém preso no
tronco, como agora, esperando o ataque para ser morto.
— A mulher pode chegar lá e contar que estamos fracos, qu não podemos
resistir ao ataque...
— Qual!— retrucava Vicente. — Ninguém não está sabendo dessas
coisas, muito menos uma mulher. E é preciso compreender que ela terá o maior
empenho em defender o povoado. Ela deixa aqui um filho preso com Severo,
deixa o marido no tronco, ambos a bem dizer com o pé na cova. É sair um tiro e
eles estarão mo tos. Deixa ainda mãe, irmãos...
O oficial atalhava com ar de enfado, com cara de fastio:
— Mulher é bicho fraco. Abílio Batata é cangaceiro antigo. Prende ela,
ameaça e ela acaba contando tudo. Além disso é irmã de Artur, é filho do velho...
Sangue puxa muito... Acaba ficando na banda dele. Não vê o caso do Doutor
Herculano?
— Doutor Herculano está preso, Seu Alferes. Deodato viu e e Argemiro
presos.
— Qual nada. Chegando lá essa Anastácia vai contar que c soldados
estão numa medorréia danada, que as Comblains são velhas e imprestáveis,
que a munição não presta...

182
Ao ouvir aquilo, Vicente sobressaltou-se.
— O quê? A munição não presta, as armas são más? Xavier levantou os
olhos de incontida raiva:
— Pois é esse o segredo militar, meu velho! A munição não vale nada.
Veja só. — Tomou um punhado de cartuchos sobre a mesa e mostrou-os a
Vicente.
— Olha, em cada dez, um detona! A munição é velha, imprestável. O que
vai valer um pouquinho são as armas e a munição dos paisanos de Leão de
Aquino. Essas mesmo valem pouco. Nós estamos é perdido. Completamente
perdido, se Deus não ajudar!
Vicente estava tonto, estava zonzo.
— Mas não é possível uma coisa desta! Vocês fizeram muito mal em
esperar Artur, sabendo que estavam tão fracos!
— Pois é, — disse Xavier num gesto evasivo. — Achamos que recuasse
com a tomada de reféns, nunca acreditamos nesse ataque.’..
— Fugir, fugir agora é impossível! — disse Vicente monologando, com
cara de quem viu o fim do mundo, completamente confuso, sem nenhuma
determinação.
— Ah, nem precisa pensar em fugir! Aqui pelo menos temos trincheiras,
casas, mantimentos, algum recurso. Se fizermos uma retirada, Artur nos atacará
no campo aberto e aí, sim: não escapa ninguém...
Os dois permaneciam perplexos, as cabeças vazias, as idéias
turbilhonando, um zumbido nos ouvidos. ”Um soldado tinha desguaritado
(desertado, isso sim) e topou tanta patrulha de jagunços que resolveu voltar para
o povoado. Era o que ele contava para quem quisesse ouvir!”
Xavier arrematou:
— É entregar para Deus Nossinhor que é pai. E fazer o impossível...
Ante os olhos de Vicente pintou-se a figura de Anastácia, o cabelo
despenteado, o rosto transtomado, aquelas mãos de gelo apertando as suas,
depondo nelas um beijo de defunto.
— Não, alferes, o senhor não viu o sofrimento de Anastácia. O senhor
não viu o que eu vi. Se a mulher não for falar com o irmão, se não lhe der um
jeito de fazer uma coisa qualquer, de salvar o filho, o marido, ela enlouquece.
Pode ficar certo. Fica doida, sai por aí falando besteira feito uma endemoniada.

183
Xavier impressionou-se com o calor das palavras de Vicente e disse:
— Eu não mando nada. Quem manda é Severo. Vicente perdeu a
paciência. Afinal de contas, os civis não eram bonecos, nem bestas. Ele,
Vicente, tinha na algibeira a carta dsEngênio Jardim; eles, os civis, é que tinham
armas e munições; portanto, nada tinham que estar pedindo permissão para a
polícia, como se pedissem pelo amor de Deus.
— Quer saber de uma coisa, Seu Xavier. Eu vim aqui foi para comunicar
que Anastácia vai embora. Está perdido mesmo!
Virou as costas, saiu duro.
A tarde era um resto. Morcegos voavam tropegamente, recortando-se no
poente sombrio. Galos cantavam acomodando-se nos poleiros. Tudo molhado,
tudo quieto, como se esperando uma coisa qualquer.
Chegando à casa de Dona Benedita, mandou arrear um cavalo, mandou
chamar a prima, montou-a no animal. A seguir pegou um molecote que ela
criava e o montou na garupa, para servir-lhe de companhia.
Daí chamou Leão de Aquino e recomendou que acompanhasse a mulher
até as suas trincheiras que ficavam a uns quinhentos metros daí, junto à cruz
das almas, no caminho da Grota: — Urgente, que a noite despencava e a chuva
inda por riba!
Ao tomar as rédeas, Anastácia agarrou as mãos de Vicente e apertou
com uma ânsia estranha. Suas mãos eram pegajosas, frias, imitando um sapo,
um peixe, mão de defunto:
— Se Artur quiser atacar, olha aqui o que é que eu levo para ele.
A voz da mulher vinha rouca, feito uma voz de velha. Anastácia ergueu o
corpete da saia e mostrou uma garrucha fogo-central. Os olhos dela eram
turvos. Vicente a achou muito velha. A boca que lhe dava tamanha graça, aquela
boca carnuda, úmida, com uma candura de juventude, aquela boca nessa hora
caía nos cantos num traço de ódio.
Vicente arrepiou-se, chegou a sentir medo. ”Uma fera, tal e qual uma
fera.”
A mulher chicoteou o cavalo e partiu num trote apressado, com o
molecote se agarrando à cintura feito um macaquinho.
Já era noite. O vulto da mulher, do cavalo, do molecote e de

184

Leão de Aquino recortaram-se no céu por um instante, mas logo se perderam na


dubiedade do lusco-fusco. Um bicho, coruja talvez, soluçava e um pirilampo
pegou a fuzilar sua luz de ouro num raminho molhado do chão.
Vicente pensou nos reféns. Era preciso libertá-los sem perda de tempo. E
a conversa de Xavier? Cachorrada! Agora que vinham dizer que não possuíam
armas, nem munições? Agora que já não se podia fugir. Quanta
irresponsabilidade! Por isso que o Juiz Carvalho tratou de escafeder-se. Será
que valia a pena revelar isso aos companheiros? Qual! Preferível que
ignorassem. Assim lutariam com mais coragem e com mais entusiasmo; não
cairiam naquele desânimo em que se encontrava Vicente. Era melhor não
revelar nada.
Mas os reféns, esses carecia libertar. Tirá-los do tronco já e já, antes que
o primeiro tiro fosse disparado. Se os oficiais endurecessem, quem tinha arma e
munição eram os paisanos. Leão de Aquino derrotaria a polícia facilmente.

PARECE que o povoado se agachava, diluía-se acovardado na sombra do


crepúsculo. Para agravar, a chuva: incessante. Quando não era pancada forte,
caía serenando, librina que molhava fundo, que o vento suave açoitava para lá e
para cá.
Os homens chegavam das trincheiras que eram a pura lama, que nem
uns pebas. As casas que serviam de quartéis metiam medo. A criançada ali sem
poder sair, tanto choro, tanto mijo, tanto cocô. Gente de mais, entupindo os
cômodos, estorvando os outros de se mexerem, de andarem, dando
embarroadas, empurrões para lá e para cá. Os cachorros, as galinhas, os
porcos, umas cabrinhas leiteiras, essas não saíam de forma alguma, soltando os
berros tremidos e trepando nas canastras, roendo os paus, espirrando.
Fogo não pegava, com a lenha encharcada, o fumaceiro desgraçado
sufocando as pessoas, invadindo os quartos.
— Tão tirando paca do buraco!
Lá fora, as bicas dos telhados escorrendo sem parar, o limo
esverdinhando o terreiro, escorregadio feito quiabo, com a vegetação crescendo
com uma rapidez de milagre.

185
Nas trempes improvisadas, ao bafo úmido das brasas, panelas ferviam,
o mosqueiro esvoaçante. Cada mosca de ventre cheio de ovos, voando
lerdamente, caindo no arroz quente cozido com carne-seca, que o povo comia
apressadamente, raspando o sobejo no chão, para os cahorros e porcos que
zanzavam no meio da gente. Bafo de inhaca, de subaco suado, de roupa
preguenta de suor e de lama. Chulé.
Com a boca da noite, lá pelo córrego, as saracuras quebravam seus
potes. Vaga-lumes vagavam no breu ou se apinhavam nos tamboris, nos
mulungus, e ali ficavam a noite inteirinha, quando não se entregavam a uma
farândola misteriosa de ouro e diamantes.
Ouvindo a água do córrego gorgolejar crescida, com os bichos quebrando
potes, alguns soldados que conversavam tiveram o pensamento voltado para o
rio.
— Devia de estar dando muito peixe. Mesmo no banheiro, pouco antes do
barulho da Grota, o Sargento Alcides pegara uns mandis-chorões que eram uma
beleza.
— E paca? — disse alguém da sombra.
— Pois é. Ali tinha paca que era um despropósito!
A mesma voz dizia que havia antas e capivaras. Inda outro dia o Soldado
Benedito estava bestando no rio, quando ouviu tropel delas no mato. Mesmo
que tropel de novilha.
Houve uma exclamação generalizada.
— Deixa estar. Passado o barulho, quero pescar e caçar todo santo dia!
Um soldado com aspecto de roceiro, falripas de barba na cara murcha,
principiou a falar na sua voz mofina:
— Que pena terem estado de prontidão o tempo todo que passaram ali!
Nunca que sobrou uma horica para uma caçada, tiração de mel de pau... — A
voz mofina morreu com a chuva e ficou um silêncio fedendo a suor e cada um
avaliou a perda imensa que era não terem caçado, nem pescado. Naquela noite
mesmo talvez morressem, talvez ficassem aleijados para o resto da vida.
Parece que rezavam? Sim, havia uma voz monocórdia talvez rezando,
algumas vezes cantando? Quem seria?
— Mas passa, gente, tudo passa. Ao depois ocês pesca, — falou Maria
Ponciana, que se levantou de perto do amásio, Soldado Tonhá, acendeu na
fornalha o pito de barro, voltou-se, repuxou a saia de modo a ajustá-la bem às
pernas e se agachou. A saia

186
escondeu totalmente as pernas finas e musculosas. Tomou um menino que
estava no chão, equilibrou-o meio por cima dos joelhos, e tirando a pelanca
comprida de um peito entre os panos da roupa suja, meteu-o na boca do filho.
Como por encanto, de todos os lados partiram choros. De recém-
nascidos, de crianças mais taludinhas, de crianças que já sabiam queixar-se e
protestar. Houve um rebuliço de saias pelo cômodo exíguo, de teto baixo, mal
alumiado pelo fogo vermelho e fumacento da fogueira.
Os homens não tomavam conhecimento dos choros. Continuavam
agachados, em tomo da fogueira da sala, pitando e soltando monossílabos. No
escuro, as brasinhas dos cigarros acendiam-se, chupadas pelos homens,
clareavam um pedaço de cara barbuda, macilenta, estralavam suavemente e se
apagavam, deixando ouvir agora o resmungo de reza, uma voz se arrastando
pesada, monótona, de quem rezasse, de quem confidenciasse um segredo.
Quem seria, gente?
Na sombra, as mulheres movimentavam-se e as crianças surgiam de
todos os cantos, magricelas, catarrentas, barrigudas, elas penduravam das saias
e choravam. Num estoicismo animal as mulheres agachavam-se perto de seus
homens, indiferentes à choradeira que enchia a noite. Vez por outra, tomavam o
cigarro do companheiro, tiravam uma baforada, davam ao menino para chupar e
devolviam o cigarro.
Agora, um menino soltava um vento ruidosamente e a roda inteira
fungava de riso.
Num tom monótono, mastigado e pausado de roceiro, a conversa rolava.
No escuro havia olhos famintos seguindo o gesto das mulheres. Tão feia, magra,
piolhenta e marcada de placas arroxeadas de sífilis, Ponciana balançava o
coração do Soldado Gabriel que tinha corpo jovem e pouco conhecia de mulher.
Tonhá era homem perigoso, Gabriel tinha medo de Tonhá e tinha mais respeito.
Tonhá esculhambava com quem quisesse. Mas Ponciana era uma mulher muito
boa, dozeira dos outros, inda outro dia Gabriel teve um cangolê e foi Ponciana
que preparou um chá para ele. Ponciana tinha um cheiro de parto que bulia com
o sangue do Soldado Gabriel.
— Jagunço é bicho custoso de morrer. Para tiro ofender jagunço, só se
ele estiver com os pés no ar, por riba de uma cerca, pas-

187
sando numa ponte. Não viram José Dias, de Boa Vista? Tinha estado em muitas
batalhas, mais de uma vez recebeu tiro à quem roupa e nunca não teve nada.
Quebrou uma perna, mais foi de rodada de rosilho que ele montava nele.
Para os soldados, os oficiais eram muito inferiores a Abílio Batata,
Roberto Dorado ou Miguel Umbuzeiro. Se tivessem mandado buscar o negro
Supriano ou Salomão Solino em Pedro Afonso, aí a cantiga era diferente.
Também Supriano era negro sarados quem contou conhecia da fazenda. Quem
contou foi o soldado Nestório que sabia a oração de Santa Justina e o credo-às-
avessas, oração das mais brabas que haverá no mundo.
Cantavam? É, tinha muita gente cantando ali, cantando baixo. Uma
excelência será?
— Ser jagunço é que é bom — afirmava um soldado fazendo elogio do
cangaço. — Soldado num pode saquear, num pode fazer sebaça. Jagunço é que
é bão. Num ataque cuma esse, são muitos que enriquecem, que ficam podres
de rico para o resto da vida.
Foram citados nomes de várias pessoas hoje respeitadas e importantes
que haviam sido jagunços antigamente, ou chefes debando. Um soldado velho,
que estava na polícia havia muitos e muitos anos, dizia que soldado não pode
roubar.
— Nem roubar nem passar para o lado do inimigo. Eram verdades
dogmáticas para ele que repetia como um realejo. À falta de argumento, só fazia
repetir a afirmativa uma vez, duas, três, vinte vezes, como uma máquina.
No começo, os outros ouviram, mas depois passaram a falar de outra
coisa e o soldado velho se contentava em dizer para algumas mulheres ao seu
lado a sua grande verdade:
— Soldado não pode roubar. Não. Nem roubar, nem passar para a banda
do inimigo.
Mas por falar nisso, contavam que já tinha soldado desertando João
Ferreira, Soldado João Ferreira estava sumido. Diz que desertou. Será? Severo
tinha baixado ordem. Desertor que fosse pego tomava uma tunda de varas. Era
o quadrado, vinte soldados dispostos em quadro, o desertor no meio. Cada
soldado dava uma varada no homem. Tantas varadas até o bicho mijar-se.
Os meninos aquietaram-se.

188
Na grota a saparia roncava. Da ronda, encharcado como um
pinto, Chegou um Soldado. Estava feliz, o Sargento Gerson lhe deu um golinho
de pinga, bebida que não viam fora de serviço.
— Mas tem uma gente rezando por aí, gente! Ou será que eu tou com
zoeira nos ouvidos, catarro na cabeça...
— Diz que jagunço num fica sem cachaça. Eles quando ataca é tudo
xilado que nem uma cabra.
Baianinho informava que Roberto Dorado costumava dar de beber pinga
com pólvora a seus homens, para tomá-los mais valentes. Esse Baianinho sabia
tanta coisa a respeito de cangaceiro! Diziam que fora de um bando, mas
ninguém acreditava: homem manso e bão como ele só!
Escondendo-se como pôde, o soldado encharcado tirou a roupa, deixou-a
secando perto dos tições, enrolou-se num cobertor imundo e soltou seus boatos.
Ouviu dizer que os emissários enviados à Grota eram feitos prisioneiros à
medida que apeavam lá. Anastácia, o derradeiro, caiu de joelhos aos pés do
irmão Artur, pedindo que não atacasse, chorando feito um demente. Debalde
relatou a Artur que o filho estava preso, que o marido estava no tronco, que a
mãe velha seria morta pela polícia mal Artur disparasse o primeiro tiro.
Meio bêbado, o soldado enfeitava o caso:
— E ali num tinha meu-pé-me-doi. Bastava que os bandidos dessem um
tiro e a faca entrava na goela do filho e do marido de Anastácia. Para isso Mane
Vitô estava de vista e Mane Vitô era negro macho, era cabra mais ruim do que
uma boicininga das velhas.
Os soldados ouviam emocionados, cheios de pena da mulher. E Artur,
que foi que fez? — quis saber Teresa.
— Fez nada, uai! — informou o praça. — Ele num manda mais não.
Quem manda agora é o Abílio Batata e Roberto Dorado. Artur é preso deles.
— É tal e qual, — confirmou Baianinho. — Um chefe costuma prender o
outro que está pegando a amolecer. No cerco de Pedro Afonso foi desse jeitinho,
sem tirar nem pôr. Lá, na hora do pega pra capar, Abílio Batata pegou a bestar
com a sela, pegou a cair das carnes, aí Roberto Dorado prendeu ele e mandou a
mecha. Isso é lá deles.
— Pois é, — disse o soldado molhado retomando a palavra.
189
— Diz que Batata falou assim para Anastácia. Pode ficar sós gada,
minha dona. Nosso ataque será tão de supetão que quando a polícia der por pé,
já tomamos os presos do tronco. Num cai ficar com medo.
— Ataque assim que nem um corisco, — observou Baianinho mas
soldado não lhe deu trela, era o dono da palavra.
— Diz que essa mulher virou uma onça, caiu no choro e no sufragrante já
foi caindo em riba do irmão com a garrucha escachada...
Ao redor, o povo riu alegre, solidarizando-se com a valentia de Anastácia.
— ... diz-que os jagunços pegaram ela e Batata falava: acalma minha
dona, o ataque vai ser tão de supetão que a polícia não vai ter tempo pra matar
seu marido, não. Os presos num vão sofrer nenhum arranhãozinho. No de
repente trancaram a pobrezinha num quarto. Artur Melo é prisioneiro de Batata e
Batata que recua? E baixo, moreno!
O pessoal em tomo permanecia em silêncio, imaginando o a que dos
bandidos, imaginando como seria terrível ter que lutar c os homens
embriagados, com aqueles homens que tinham o corpo fechado, que davam
tiros aos pinotes, feito uns grilos. Jaguncada era gente muito acostumada com
luta e diziam que tinha muitá gente, era três dobro dos soldados, tudo com
Winchester nova, com bala boa. Ah, ninguém resistia! Ali era tentear o fogo para
dar tempo de fugir. Soldado João Ferreira que não foi bobo, tratou de desertar,
de abrir o pala enquanto era tempo. É verdade que outro soldado que
desguaritou, será que não era deserção? Viu muito jagunço e voltou com medo
de morrer.
— Aqui tem gente morrendo de medo — disse o Soldado Daniezinho,
com coisa que não se dirigia a ninguém. Daniezinho sentia medo, mas
procurava esconder seu temor. Tem certeza de que não escapará, pois o
pessoal de Artur sabe que ele meteu o refleno no peito do velho e não o deixará
escapar.
As palavras de Daniezinho parece que não se dirigiam a ninguém, mas a
maioria dos soldados sabia que ele estava jogando uma indireta em Freitas
Machado.
Adonias respondeu de lá:
— Eu cá num sou. Quero entupir o cabo de meu chimite de piques.

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— Tu que vai ficar cheio de pique de punhal, seu besta, — dizendo isso
Tonhá deu seus bufados, como se estivesse engasgado com farinha de milho —
bufe, bufe.
Freitas Machado botou a carapuça na sua cabeça:
— Quem quiser saber se eu estou com medo, é só correr dentro! — Falou
de pé e foi tirando o punhal da bainha.
Ninguém piou. Só o fogo estalava. Aí Gabriel falou num tom acanalhado:
— Uai, só, ninguém tá bulindo contigo não, moço! Tu tá com a pulga atrás
da zoreia à toa.
Entretanto, a fala de Freitas Machado era de resolução, de quem
estivesse pelo que desse e viesse.
— Só porque matou o velho desarmado, já preso, acha que é muito
valente! Pois eu estou aqui, eu não meti o punhal no velho porque num sou
covarde. Vamos ver quem é o medroso, vamos, é só chegar!
Ninguém, todavia, lhe dava mais atenção. Outros casos eram narrados.
Baianinho perorava:
— É desse jeitim, sem tirar nem pôr. Artur agora é prisioneiro do outro.
Agora, ele num manda mais não. Agora adeus padrinho, adeus madrinha, adeus
filho. Num tem irmão num tem irmã aqui pra doer no coração dele. Agora quem
está comandando é Batata e Batata num tem nenhum parente, nenhum amigo
dentro do Duro. O que Batata está querendo é a sebaça, minha gente!
— Tal e qual, — disse Maria Ponciana com sua voz horrorosa, ajeitando o
menino no peito pelanquento, sem perceber os olhares de fogo que o soldado
Gabriel deita sobre ela.
— Com essa sebaça, num tem jagunço que deseste, — observou
alguém, e essa observação doeu no coração de Gabriel. Ele queria que os
jagunços não atacassem. Gabriel era novo, mal conhecia as mulheres e queria
ainda viver muitos anos, abraçar mulheres, beijar muita moça bonita, ter em
seus braços muita mulher, que isso é que é um trem bão na vida.
— Jagunço é que é bão, — repetia o tal soldado que enaltecia o cangaço,
sob os protestos do praça velho.
— Soldado é otoridade.
Afirmou uma vez, olhou para a cara de uns soldados próximos que o
fitavam e repetiu a frase: — É otoridade. É. É otoridade. Mais calmo, Freitas
Machado ruminava seus pensamentos. Na

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na primeira ocasião haveria de mostrar que não era medroso. Tinha que passar
a brasa num cristão qualquer, para se dar ao respeito, para publicar sua valentia.
O soldado molhado, agora muito tonto pontificava:
_ Pode não, gente, Tempo de paz. Os poderosos arrancam nosso couro no
trabalho; vai daí brigam e a gente é que vai morrer defendendo esses trem ruim!
Ah, não, isso também é demais.

— Pecador, atendei! Atendei, ô pecador! Atendei!

Era uma voz grave e profunda. Uma voz que impunha silêncio e respeito, que
obrigava cada pessoa da sala a calar a boca e cambar de onde e-vinha essa
fala.

Pelo meio da sala vínha um homem. Era soldado. A luz da fogueira era muito
débil e não deixava ninguém ver nada, mas diziam que quem falava assim era
Salustiano Dantas.

— Pecador, atendei!

O silêncio era completo e a voz terrível, pausada, prosseguia: quem poderá


dizer que viverá ainda quando o galo cantar pela terceira vez? Meu irmão
pecador, atendei a voz de Deus, tua hora chegou pecador! É tempo de pensar
na vida de voz. É tempo de arrepender os pecados que nós cometemos.
Chegou a hora do Juízo Final meus irmãos!
O silêncio era um silêncio pegajoso. Maria Ponciana caiu de joelho e
pegou a chorar, escondendo o rosto com as mãos. Toodos os soldados estavam
aterrados e cada um procurava pensar nas suas faltas, procurava dar um
balanço em sua vida de pecadore de privações. Outras mulheres e outros
homens estavam de joelho chorando e se lamentando.
— Irmão, atendei! — A voz campeava soberana dobrando todas as
vontades. — Vamos rezar uma oração muito poderosa. Esta oração, um capitão
espanhol viajando por terras perto de Barcelona viu uma cabeça cortada do
corpo, a qual lhe falou assim: viajante, como vais a Barcelona, vou dar-me uma
confissão para quem já faz três dias que os ladrões me mataram e não posso
morrer sem me confessar. O capitão conduziu logo sua confissão ao mesmo
lugar a cabeça vivinte se confessou e expirou e foram ver o corpo qual a cabeça
estava cortada e acharam-lhe a dita oração a qual foi aprovada de vários
tribunais de santa religião e da rainha de Espanha.
Ninguém podia duvidar daquelas palavras. Salustiano tinha

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sido sacristão lá na terra dele e foi certamente com os padres que aprendeu
tanta sabedoria. Salustiano Santas era ainda mais apreparado do que o Soldado
Nestório com sua oração da Cabra Preta. Salustiano tinha um papel na mão e
logo trouxeram uma candeia de azeite, a chama aprumada e clara. Teresa tirou
um grampo do cabelo, espevitou o pavio a luz do sopro do vento.
— Eu vou falando e vocês vão repetindo.
A voz soturna e poderosa passou a recitar, lendo o papel:
”Cópia de uma letra de oração achada no Santo Sepucro de Nosso
Senhor Jesus Cristo e conservada de sua Santidade e Carlos Segundo,
Imperador em seu oratório em coroa de prata desejando Santa Izabel Rainha da
Ungria e Santa Mafrides e Santa Brísida saber alguma Cousa da Paixão de
Cristo, fizeram muitas Particulares orações em seguida das quais apareceu
Jesus Cristo falando” com elas assim cervas minhas prediletas: Sabei soldados
armados foram 150 assim os que me conduziram armados foram 23 e os
ezecutores da Justiça foram 33 socos que deram na cabeça foram 150 no Peito
108 golpes nas espadas 70 fui arrastadas com cordas 23 vezes me gorpearão
no rosto 30 vezes pancadas me deram no corpo forão 666—destas as que
arrecebi na cabeça forão 110 me deram um murro mortal no coração estive no
ar pelos cabelos 2 horas dei um tempo 192 suspiros fui arrastados e puxados
pela barba 23 vezes Chagas na Cabeça 20 espinhos de Junco marinho 92
espetaduras de espinhos na cabeça 110 espinhos mortais na testa 3 depois foi
flagelado Vestirão-me de rrei de Burla e me cuspirão no rosto 150 vezes Chagas
no corpo 1000 Soldados me conduzirão ao Calvário 908 os quem me vigiaram
terno 3 goctas de sangue que derramei 38.430 todas pessoas quem rezar 7P.N.
e Av.M. e Glória Patripelo espaço de 15 anos continuados pá. completar o
número de goctas de Sangue q. eu derramei lhe concedo 5 graças; q. são 1ª
Indulgência plenária e rèmição de todos os pecados; 2.” será livrado das penas
do porgatorio; 3.” se morrer antes de ter completado os 15 annos será como se
tivesse completado; 4.” Será com se foçi um marthyr e derramaci todo seu
sangue pela santa fé. 5.” Virei sim do séo pellas suas almas aindapella alma de
seusparentis athéa 9. ”jeração; Aquelle que trouxer concigo Esta oração não
morre afogado nem de má morte. Será livrado do contágio da peste e do rraio;
não morrerá sem confição Será livre de seus inimigos e do poder da Justiça e
de

193
assons más; e do f alço testtimunho; e a mulher que não puder rir pondo-lhe
esta oração ao pescoço parirá logo; e sairá do perigo e nas casas onde estiver
esta oração não sofrerão tormentos e nem outras couzas más e 40 dias antes
da ora da morte Verão a Biata Virgem Maria; Oração Qual todas as vezes que
Rezar livrarão uma Alma do Porgatorio. Miserenóbis Jesus, Binigne qui passur
es;
Clementia pro nobis Domine ezaude Onestione mean. Et Amor meos ao
tenesmiat oremos Deos que nobis em santa semdone qua Corpus Hocturum
Sacratissimus de Cruce depositarum a b. Jozephum tum fruit panistam
mimoziam relepuiste concedit proctis ut per mortem ab sepultorum tuam em
ressurctonem. Gloriam perducamous que cicist et regnas in Secula Seculorum
Amem. N.B. Esta oração
foi rezada em praça em Roma por ordem do papa.”
Salustiano dobrou o papel, a cara séria, meio triste, iluminada de baixo
para cima pela luz da candeia; pôs a oração na algibeira e recomendou:
— Agora vamos pensar nos pecados de nós, meus irmãos! Cada um se
arrepende das más ações, das coisas vergonhosas, mode num morrer em
pecado mortal.
E novamente o silêncio morno envolveu tudo, com a inhaca de sovaco
recendendo pelo cômodo baixo e dubiamente alumiado pelas brasas no meio e
pela candeia que passava daqui prali.
Num tom de falsete, uma voz principiou a cantar:

”Pecador, agora é tempo,


De contrição e de temor,
Serve a Deus, despreza o mundo;
Não sejais mais pecador!”

Muitas vozes cantavam. Algumas num baixo profundo, outras oitavas


mais alto. Soturnamente, como um carro que rolasse na escuridão.

ERA UMA AGONIA aquela noite que não passava, que se arrastava mais negra,
mais ensopada. Uma ordem de Enéias mandava que se apagassem as luzes e
as fogueiras, até as fornalhas. A jagunçada devia estar de espreita e talvez
atacasse a qualquer mo-

194
mento. Para se mexer era difícil, com tanta escuridão, com tanta lama, com
tanta gente amontoada nas casas exíguas.
No alto, o céu parado, leitoso, onde não brilhava nenhuma estrela, onde
nenhum relâmpago anunciava estiagem.
Alguém teria dito que ouvira trovão para as bandas do Maranhão.
Estórias! O tempo não era para trovão. Para o tempo levantar, só com a outra
lua.
Vicente queria tirar uma soneca, mas quem diz poder? Sentia o corpo
moído, meio zonzo, uma apatia pesada, uma não vontade de fazer nada, tudo o
irritava e contrariava. A cabeça girando e os pensamentos sempre presos a uns
tantos problemas: a safadeza da polícia, a aproximação dos jagunços, o pessoal
da polícia, a aproximação dos jagunços, o pessoal no tronco, Hugo nas mãos de
Severo. Será que não fez uma besteira ficando no Duro? Não teria sido mais
certo uma fuga, como a do Juiz Carvalho?
Ainda há pouco a velha tia Aninha mandara Tifuque chamá-lo. Não foi.
Aninha queria saber notícias de Anastácia, se a polícia não a tinha prendido
adiante. A velha estava insistindo no envio de outro emissário, mas quem a isso
se opunha era Vicente.
— Chega. Ninguém iria mais.
Para mandar Anastácia, Vicente chamou sobre sua cabeça o ódio de toda
a polícia. Não podia exasperar os oficiais com novos pedidos, precisava reservar
sua autoridade moral para ocasiões mais graves.
Até o quarto onde estava deitado, tentando tirar uma pestana, até aí
chegavam abafados os rumores da Vila que parece estava à espreita: uma
pomba-rola encolhida na moita, sabendo que o gavião rondava por riba. O
pouco movimento era dos soldados que Severo recolhera dos arredores, das
trincheiras ali cavadas, e concentrara nos quartéis da Vila. Até o choro dos
meninos era abafado para não despertar a jagunçama.
Lina entrou no quarto, assentou-se na cama, perto de Vicente. Ela
também queixava canseira, queria que aquele momento escoasse logo, sugeria
um parto difícil, uma agonia demorada. Que viesse ou bem ou mal, mas que
viesse logo!
Vicente sentiu perto de si o calor da mulher e pensou em Anastácia, na
sua ardência, na boca quente e molhada, feito um sexo, tempos distantes, fundo
de quintal, deixa a gente ver, prima, só ver, um pouco só. As mãos de Vicente
alisavam as costas da mu-

195
her que tinha o pensamento perdido no medo da jagunçama, negro deflorando
menina de sete anos, mulheres servindo a vinte jagunços famintos de prazer
sexual.
Há quanto tempo Vicente e Lina não se encontravam como marido e
mulher, não trocavam um carinho! Sempre os separando a preocupação do
ataque, a incerteza do momento seguinte! No entanto, talvez fosse aquela a
última oportunidade de estarem juntos. Talvez nesse momento já a jagunçama
estivesse atacando. A resistência era fraca e Vicente um dos mais visados.
Quem pod dizer que iria escapar com vida ou que não ficasse aleijado para o
resto dos dias!
De dentro da casa vinha o som de rezas. Dona Benedita reun o pessoal
ao pé do oratório, pedindo proteção a São Miguel e suas almas do purgatório.
Lina quis erguer-se, ir para diante do oratório, mas Vicente a segurou e apertou
contra o peito. Ela entregou-se, mas como um molambo. Vicente teve raiva.
Porque a esposa não tinha o calor de Anastácia? Lina não participava do amor:
sofria o amor, deixava que a usassem como um objeto. Será que não gostava de
Vicente? Será que ele não conseguia despertar nela esse imenso impacto que é
o desejo, que é a vontade de amar, que é amar!
Apesar, as mãos de Vicente viajavam por sombrias veredas do corpo da
esposa. Já que a escuridão não deixava ver nada, o homem via com o tato e
com imaginação. Ela estava em plena maturidade, os peitos apojados, as coxas
roliças e lisas...
”Ave, Ave, Ave Maria!”
Tornava a bater na porta e Lina procurava levantar-se,mas o homem a
reteve com força, meio brutal. Ela então perguntou quem era, quem desejava?
-- Chamando para a reza, uma mãe!
-- Já vou – e novamente tentou sair, desvenciliar-se, mas novamente
assegurava o homem:
— Não vai. Há quanto não se viam, ora! Você já pensou? Talvez seja a
derradeira vez...
Mas Lina debatia-se:

196
— Não. Agora não, Vicente, olha a reza, minha mãe chamando, a casa
cheia de gente...
As mãos de Vicente caminhavam, beijava-a impedindo as palavras,
afastava pano e pano, era a saia pesada e longa, tocava o ponto dos sonhos.
No escuro, um ímpeto estranhoo nascia por dentro de Vicente, era como se
roubasse, com se menino mexesse numa coisa proibida, era como um jagunço
que achasse uma mulher no meio da guerra e também com ela se empenhasse
na grande luta do amor. E a dominasse fatigada e exausta e chorasse com a
boca cheia de cuspe, a prima Anastácia, as rezas ao longe, homens morrendo
no tronco.
”Ave, Ave, Ave Maria!” A cantoria revoava pela casa. A porta do quarto
aberta, Vicente a sós na cama. Será que Lina não gosta da gente? Sebo! Ele se
lembrou dos homens no tronco, da agonia deles esperando o assalto,
aguardando a morte sem nada poderem fazer. Ah, e ele que estaperando Leão
de Aquino para libertá-los. Era um absurdo aqueles homens e eles seriam
mortos se não os libertassem. Os militares estavam completamente
acovardados, cente levantou-se de um pulo e saiu do quarto, onde esbarm
alguém. Era Tifuque, os olhos brancos muito abertos. Na escuridão notou que
por perto havia outra pessoa, um sol, os olhos faiscando na treva.
Lá fora, a bica do telhado pingando sem parar, o lameiro invadindo tudo, a
casa atravancada de coisas, gente por todos os cantos. Detritos de alimentos,
cuspos, escarros, cocô de menino e de urina. Aquilo fedia, aquilo juntava
moscas. Pulos cômodos uns varais com roupa enxugando-se, entupindo a sala.
No tronco, o pessoal não tinha liberdade nem para fazer suas precisões.
Era ali mesmo, na frente um dos outros, pouco distante com a catinga e o
mosqueiro.
De certo tempo para cá, Tifuque já não falava. Sua presença por si
mesma era um memento. A pretinha estava mudada, tinha uns toques de
vaidade. Na cintura uma cordinha, à guisa de cinto,a carapinha penteada e
domada com tutano, a saia ajustada, evidenciando as coxas grossas. Por perto,
o praça a comia com os olhos.

197
— Quem seria?
— Gente de Uberabinha — contara Enéias.
Logo se notava que era homem de cidade grande, habituado com
mulherio, com bordel, para ser tão descarado, para andar assim rebeando
Tifuque com cara de tanto desejo que chegava a e vergonhar os outros.
Coisa danada. Foi Lina que observou:
— Esse soldado olha Tifuque com uma cara que dá vergonha na gente.
Mas também podia ser um espião de Severo. Muito capaz, polícia estava
desconfiada de Vicente, achava que estava passando para a banda de Artur.
Vicente tomava tento para tirar a limpo. Diziam que Sargento Alcides estava
detido e que Alferes Xavier também não era visto com bons olhos. Um e outro
eram considerados aliados de Artur.
A verdade era que não se sabia em quem confiar. Os oficiais, cada qual
querendo engolir o outro, jogando a culpa da morte do velho nas costas do Juiz
Carvalho, ameaçando certos soldados de morte para não revelarem algumas
verdades.
Precisava precaver-se — pensava Vicente, que estava resolvido a não
atender à velha. Não consentiria na saída de mais ninguém. Não tinha
cabimento. Anastácia havia saído não fazia nem cinco horas. Se Artur quisesse
atacar, que atacasse, mas outro positivo não iria. Fora isso que Vicente já
dissera à velha:
— Nenhum portador sairá mais, minha tia!
Com seu império, a velha pegou a amarelar, as criadas se amontoaram por
cima dela, com a velha tremendo feito uma possuída do diabo. Vicente teve dó.
Afinal de contas, era mãe de Anatásicia, irmã de Tozão, avó de Hugo, mas que
podia Vicente fazer? Resolveu afastar-se, largando o quarto em polvorosa.
A velha era renitente. Depois de querer uma coisa, ninguém fazia ela tirar
da cabeça. Tifuque estava ali pajeando Vicente, enquanto o soldado pajeava a
pretinha.
A velha queria enviar como emissário um moleque, cria da casa.
— Que é que esse coitadinho pode enredar? — interrogava ela.
Para obter concessão para essa ida, Aninha mobilizava o mulherio. Lina,
Dona Benedita, Amélia intercediam por ela. Vicente chegou a pensar que a
velha ignorasse a história que corria de
198
que Artur Melo prendia os emissários. Isolada na casa, não chegavam,
talvez, até seus ouvidos esses fatos. Entretanto a velha sabia tudo, tanto quanto
Vicente. Foi ele principiar a falar e ele retrucou de lá:
— Quem viu Anastácia presa na Grota? Quem viu Artur preso por Abílio
Batata?
— Deodato viu, minha tia, e também um soldado que andou por dentro da
fazenda, disfarçado.
— Inzona. Tudo inzona dessa polícia, Vicente! — Ela agarrava-se uma
explicação dada por Anastácia. Para esta, a polícia impedia que Artur
conhecesse a prisão dos homens. Ignorando tal prisão, Artur atacaria o povoado
e a polícia se valeria desse pé para matar o pessoal, para liquidar com os
opositores de Eugênio jardim.
— Está vendo, Vicente? Para a polícia vai ser muito bom que Artur ataque.
— Nada, minha tia. Eu tenho conversado muito com os oficias. A polícia
não tem interesse em matar ninguém. Os oficiais estão com medo e com muito
medo, isto sim.
— Não tem, hem! Para a polícia é bom que meu filho ataque. Se ele atacar,
aí num tem mais Hugo para contar a verdade: os roubos. a traição, — gritava a
velha secundada por Amélia, que chorava a ausência do marido.
Lá fora, a noite estagnada como uma lagoa de piche, as enxuradas
roncando nos socavões.
Vicente Lemes não agüentava mais tanta latomia nos ouvidos, essa leréia
dos infernos. Ia satisfazer a velha mais uma vez.
A noite ia alta, madrugando, os sapos coaxavam. Pelas casas, a conversa
molenga, em regougo de reza, como se estivessem em velório, à espera do
araque que não vinha nunca. Era igualzinho um velório.
Vicente Lemes chamou Valério, Júlio de Aquino e Ângelo e saíram, foram
conversar os oficiais, no quartel de Severo. O Alferes lhes respondeu o
cumprimento assim como quem cuspisse. Um sargento chegou e disse qualquer
coisa. Esse oficial lhe gritou tantos absurdos, tantas palavras pesadas, com a
mesma cara amarrada, com a mesma indigência de palavras que fazia medo.
Chegou ameaçar de bofetões o sargento.
Na sua rede, Tenente Mendes de Assis tinha cara de medo. Ele

199
deitado, sem perneiras, sem camisa, os cabelos caídos pela cara desfiava
o rosário, batendo os beiços que nem velha beata. Parecia mais lerdo, mais
tardo nos gestos, como se estivesse profundamente cansado, os olhos azuis de
estampa de santo, o rosto comprido. Estaria bêbedo, o malvado! Desde que se
positivara oavanço de Artur, o tenente caiu das carnes. Tinha certeza da derrota.
Encasquetou que Artur o visava especialmente, como comandante do
destacamento que matou o velho Pedro Melo. Mendes Assis tinha certeza plena
de que não escaparia com vida.
Para sua defesa, pois, teve a lembrança de pôr em prática uma medida já
usada em Boa Vista e Pedro Afonso. Mandou prender os parentes e amigos de
Artur Melo, trazê-los para o povoado ali estavam como reféns. Se, Artur
atacasse, aquela gente morreria.
No começo era apenas ameaça de morte. com o correr dos dias, no
entanto, a morte dos reféns passou a parecer uma solução normal. À proporção
que os acontecimentos se desdobravam, à proporção que os oficiais viam que
Artur avançava, o plano de matar os reféns foi-se tomando deliberação
inabalável. A farda seria desmoralizada. Duro não resistiria, é certo; mas os
oficiais não seriam postos para correr como simples paisanos, pelos jagunços.
Os militares podiam fugir, mas depois de deixar para trás os cadáveres dos
parentes e dos amigos de Artuzinho.
E naquele momento, quando os jagunços irromperiam a qualquer instante,
os quatro oficiais firmavam definitivamente solução: — É só principar o ataque,
os prisioneiros serão mortos.
Um silêncio curto seguiu-se, enquanto os oficiais trocavam si rápidos e
furtivos olhares, temeroso cada qual de que sobre si recaísse a tarefa da
execução. Severo falou:
— Quem vai matar o pessoal do tronco é Enéias. — Escolheu Enéias por
ser o menos experiente deles nas manhas policiais ser um paisano ingresso
ontem nas lides militares. Contudo, Severo quis justificar a escolha:
— Os presos estão no quartel dele.
— E o menor Hugo Melo? — interrogou Mendes de Assis. morizado por
aquela boca que dizia tanta coisa perigosa.
— Esse fica por minha conta. — Como Hugo estivesse em quartel, Severo
quis fazer crer que usava do mesmo critério pregado para a determinação da
tarefa de Enéias.

200
Depois de uma pequena pausa, Mendes de Assis perguntou de novo:
- E as mulheres que estão na casa do finado coronel?
Os olhos de Severo mexeram-se lentamente, pousando em cada um dos
oficiais postados na salinha. Por fim, os lábios moveram-se:
- Essas são do Tenente Mendes de Assis.
Os ganchos da rede de Mendes de Assis pararam de ranger, Severo
ergueu-se, mas se ouviam passos.
Vicente Lemes que entrava com os seus. Num átimo, viram que era esteira
fazer qualquer pedido aos oficiais. Melhor desistir de tudo, deixar o barco vogar.
Tinham saído das unhas de Artur e caíam nos dentes da polícia. Tão boa a
tampa como o balaio.
Ferreira ali estava unicamente para interceder por um amigo, Abadia
Ribeiro, irmão de Cláudio, também estava no tronco. Era inocente. Valério vinha
pedir que o soltassem, atendendo a um pedido de Cláudio que queria porque
queria a liberdade do irmão. Vendo os paisanos chegar, Severo foi-lhes dizendo:
- Foi bom topar vocês. Nós resolvemos matar o pessoal.
Olhares cruzaram-se na sala, escassamente alumiada, como relumiar de
punhal. Valério ficou branco, nariz afilado, ver um defunto. Já esperava aquilo, já
sabia, mas ouvir com rodas as letras, duro, era assombroso.
— Não pode — protestou Vicente. — Isso é crime!
— Todas as garantias estão suspensas. Lei de guerra, — rosnava Severo.
— Nós podemos morrer, jagunço é demais da conta, mas a gente num morre
sozinho!
— Nada disso, Alferes. Só certas autoridades podem suspenders garantias
constitucionais. — Vicente não sabia ao certo, mas completou o pensamento na
convicção de que os militares sabiam muito menos: — só o Presidente da
República, só o Senado... E matar, matar ninguém pode.
— Pois eu suspendi as garantias. O pessoal vai morrer e posso madar
matar qualquer um.
Vicente esperou que os companheiros dissessem alguma coisas de seus
lábios nada se ouvia. Estavam confusos, estavam sados? Sabe-se lá! Vicente
então procurou usar da razão e disse:
— Venha cá, meu comandante. Que vantagem vai haver em ma-

201
tar essas pessoas? Você acha que com a morte delas os jagunços vão
deixar de atacar?
Severo olhou para Xavier e Mendes de Assis, balançou a cabeça num
gesto de descrença:
— Esses paisanos!
Os oficiais compreenderam sua exclamação. Queria dizer que os paisanos
não entendiam o que significava resguardar a honra militar, não manchar a
farda. Vicente, porém, não tomava conhecimento.
— Pelo contrário. Matando gente, aí que Artur terá maiores razões para
atacar o povoado e massacrar todo mundo. Se vocês matam os presos, vocês
são uns assassinos, uns bandidos piores do que os jagunços.
No silêncio da noite alta, naquele silêncio de espera, naquele silêncio que
até os meninos respeitavam, naquele silêncio apenas conspurcado pelos passos
dos soldados na ronda, — sua voz cresceu dentro da sala e retumbou pelo
Largo deserto.
— Não consinto nesse crime. Eu sou responsável pela vida deles!
Mas nesse ponto Vicente falava para a rede vazia, falava para os colchões
postos no chão, falava para o tamborete repleto de botões de farda, fumo, palha,
canivete, bala e um punhal. Mendes de Assis saíra, Severo se fora, Enéias e
Xavier também haviam desaparecido. Valério tomava Vicente pelo braço:
— Vamos embora, calma.
Havia receios nos modos de Valério, cuja mão Vicente afastava de si,
enquanto dizia:
— Não. De jeito nenhum. Não podemos abandonar os presos. A polícia
pode matá-los, a polícia vai matá-los.
— Psiu, — fez Valério rolando os olhos aflitos pelos arredores. — Pelo
amor de Deus, cale-se. Você quer que eles nos metam no tronco? Está ficando
louco?
Atrás de Vicente que saiu levado pela mão de Valério seguiram. Ângelo e
Júlio de Aquino, como autômatos. No Largo a madrugada elaborava o seu
grande mistério, com a chuva caindo violentamente, com as bicas do telhado
jorrando longe. No oriente, umas tintas de arrebol, pobres tintas na madrugada
feia. O resto era escuridão.
Até aí Vicente não havia sentido medo propriamente. O assal,

202
to o horrorizava e atemorizava pelos riscos e pelos males inúmeros que
traria, mas Vicente não sentia um perigo dirigido especialicnte contra sua pessoa
ou contra as pessoas de sua família. A morte do velho fora coisa da polícia. Artur
e os jagunços não tinham nenhum motivo para odiar particularmente Vicente.
Entretanto, agora, a situação era outra. Se matassem aqueles homens com a
complacência, com o consentimento dos civis, aí então o ódio de Artur Melo era
justo, era um ódio sagrado.
Vicente, naquele momento, sentia em seus ombros o peso tragico da culpa
da morte dos reféns. Culpa por ter acreditado que prisão deles era mero
expediente para forçar Artur a desistir do ataque, culpa por não ter tido coragem
de impedir o crime.
Com a madrugada chegando, Vicente tinha medo, um medo incoercível,
um medo terrível. A eterna mancha de haver concorrido para a morte de nove
homens indefesos, a culpa de não haver inpedido o crime por uma forma
qualquer.
Num relance, viu os jagunços por ali com seus punhais reluzentes, com
seus rifles mortíferos, atacando uns e outros; viu gente amarrada no pau,
sangrada aos poucos; Lina servindo ao prazer de vinte, de trinta cabras e depois
entupida de areia. A desgraça, os aleijões, a invalidez.
Se pudessem fugir, reunir o pessoal, deixar o povoado, largar apenas a
polícia... Pouco importava que o chamassem de covarde, de medroso, do diabo,
contando que não fosse ele o fator de tanta desgraça, de tanto mal-estar, de
tanta dor. Mas era impossível fugir. Estavam cercados. A polícia não ia consentir
que paisanos se retirassem, os paisanos que eram a trincheira da polícia, em
cuja munição residia a esperança dela. Se tentassem fugir a polícia abriria fogo
contra eles e aí que a viola estava em caco: fogo da polícia de um lado, fogo dos
jagunços de outro.
Do temor e da esperança, gerava-se o dia: a madrugada rompia. Um suor
frio molhava o rosto e as mãos de Vicente, que se achou sob o beiral da casa da
sogra. O dia surgia com as cores desbotadas de arrebol na manhã chuvosa e
feia. Seria aquela a derradeira manhã que seus olhos viam? Seria aquela
derradeira vez que veria o Largo da Vila, o Largo tão amigo e familiar? Vicente
sentia uma como saudade, sensação de festa finda, de tempos que não voltam
mais, nunca mais. Quéde Ângelo, quéde Júlio de Aquino? Ninguém a seu lado, o
suor correndo, molhando o sovaco, mo-

203
lhando o cabelo do peito, uma tremura lhe tomando o corpo, aquela terrível
sensação de encurralamento, de que todas as portas estão fechadas e todas as
saídas tomadas, com o inimigo chegando para perto, botando na goela,
empurrando devagarzinho.
Apagado e besta, o dia vinha brotando, como um espectro. Artur e seus
bandidos aproximavam-se. Os oficiais estavam de atalaia, prontos para matar os
reféns ao primeiro tiro.
Não alterava ter medo, ficar com lamúrias. Agora era olhar a menina dos
olhos da realidade e fazer algo, fazer algo inteligentemente.
— Não vou ouvir polícia nenhuma — proferiu Vicente em voz alta, como
um demente. Como Anastácia, o moleque seguiria para o acampamento de
Artur, levando recado da velha Aninha. Severo que se dane, que me recolha ao
tronco, mas mandarei o menino. Vou mostrar a essa cachorrada!
Sua resolução ia adiante: era mandar o menino sumir no Largo Vicente
estaria no quartel de Enéias exigindo a soltura dos reféns. Exigiria de Severo
que os soltasse, sob pena de eles, os civis passarem para o lado de Artur,
ficarem contra a polícia. Os civis contavam com a força de Leão de Aquino, suas
Winchester e munições.
— Mil vezes morrer lutando contra a polícia do que comete um crime
daquele, — tomou a proferir Vicente, para se convencer melhor ao som de sua
própria voz.
Vicente entrou, chamou um camarada de Moisés, deu-lhe a ordens.
Imediatamente, à beira da cara, abrigados da chuva, chegaram o cavalo e o
moleque da tia Aninha. Prontos para seguir.
Vicente mandou que esperassem um pouco, pois mandara chamar Leão
de Aquino em sua trincheira, para levar o menino até fora do povoado. Daí,
Vicente iria soltar os presos. Isso é que era positivo. Ida do menino, besteira:
para contentar a velha, para que amanhã não dissessem que estorvou uma
tentativa de conciliação
O principal, o importante, o decisivo era soltar os reféns, tira-los do tronco,
livrá-los da morte certa e já à vista, dependendo de um tirinho por ali.
— E esse Leão que não chega, gente! — Vicente tinha pressa estava aflito
por chegar ao quartel de Enéias, impor a libertação dos reféns. Uma espécie de
comichão pelo corpo, aflição inconti-

204
da, angústia que não o deixava parar, as idéias turbilhonando,
incontroladas.
— Menino, quer saber de uma coisa? Monte a cavalo e vá-se embora. No
cruzeiro, você encontra Leão. — Vicente perdera a paciência. Urgia ir
imediatamente ao quartel, ir correndo, antes que matassem todos. Talvez nem
esperassem o primeiro tiro.
— Monte, meu filho, toque!
O moleque briquitava, tentando meter o vão do dedo do pé na canela do
animal, para pular-lhe no lombo. Iria em pêlo. O menino briquitava mas o cavalo
era alto, estava molhado, escorregava o pé, não se firmava.
Aquele era o derradeiro emissário. Agora a velha Aninha tirasse o cavalo
da chuva, que ninguém mais seguiria.
— Monta, menino! Que diabo de moleza, trem!
NÃO TARDARIA a irromper a jagunçada. Diziam que eram uns quinhentos,
mas não estariam com exageros? — Ao pensar nisso, Mendes de Assis que
estava deitado na rede, sentiu um frio pelo corpo aIgumas contorções pelo
intestino.
Oh, comissão desgraçada! Se escapasse com vida, nunca mais, nunca
mais entraria noutra. Aquele Carvalho é que era um patife.
O tenente não conseguia ficar deitado. Levantou-se. Os Melos eram
poderosos. Os jornais estavam comentando a morte do velho, não somente as
folhas de Goiás, como as do Rio, S. Paulo e Bahia. Quem lhe contara? Valério
ou Vicente? Mendes de Assis sentia-se perdido. Se escapasse aos jagunços,
que era dificílimo, não escaparia aos Melos. Com que contava a policia para sua
defesa? Pela milésima vez se perguntava e pela milésima vez respondia: pouca
gente, trincheiras fracas, pouco mantimento, pouca arma, quase nenhuma
munição. Perder a vida inutilmente, bestamente. Tantos anos ainda por viver,
tanta coisa fazer, e sacrificar-se por uma briga dos outros, por uma questão que
nada lhe interessava. Quem iria depois educar seus filhos? A quanto vexame, a
quanta privação não ficaria a viúva, num lugar como Goiás, desprovido de
qualquer meio de vida! Carvalho é que não foi besta, botou os quartos de fora.

205
O medo cresceu tanto sob os maus conselhos da treva noturna que
Mendes teve vontade de sair correndo e pedir de joelhos aos jagunços que não
o matassem, que poupassem um pobre pai de família que não foi culpado da
morte do velho. Bem que recomendou para não o matarem, mas não lhe
obedeceram, não seguiram suas instruções. Ele era um instrumento, cumpria
ordens do Juíz Carvalho, isso é que valia, isso que Artur carecia de enxergar.
Chegou a ir até a porta da rua para fugir. Outros soldados não haviam
desertado? Também ele o faria, mas a noite estava um breu, a chuva molhando
tudo. Será que Artur aceitava aquele discurso? Sei lá! Em Boa Vista, Dona
Teresa entregou ao Capitão Machado o seu gado, seus ouros, dinheiro, suas
fazendas, a troco da vida de dois filhos tomados como reféns. Pois Capitão
Machado recebeu tudo isso e no fim chamou Dona Teresa para ver os soldados
fuzilando os dois rapazes. E a farda? A dignidade militar? Depois, se Artur não
atacasse, se os sitiados repelissem o ataque que posição seria a dele? De um
covarde, de um medroso!
Voltava novamente ao início. Não tinha se levantado fugir? E porque
desistia da luta e voltava para o quarto?
Deus, que fazer? Que Deus o alumiasse, os santos, a Virgem Santíssima.
Estava ali para que os santos fizessem dele o que entendessem. Era um boi, era
um carneiro nas mãos de Deus te poderoso criador do céu e da terra. E a reza
do soldado Nestório, o credo-às-avessas? Também o diabo, o diabo poderia
ajudar.
No que seus olhos pousaram num dos cantos do quarto: seis garrafões de
cachaça empoeirados, mas rebrilhantes à luz escassa da candeia. Cachaça que
apreendeu no comércio, para evitar que os praças se embriagassem. Abriu um
garrafão, encheu copo e sorveu a pinga com sofreguidão.
Não muito forte, porém, boa.
À luz da candeia via a sua cor avermelhada, aspecto meio oleoso. Bebeu
novos tragos e sentiu calor pelos bofes, numa reação salutar, os pensamentos
se ordenavam, embora sobrasse uma borra de pressão, mágoa profunda
machucando por dentro, permanentemente: sensação de que havia chorado.
Destituindo-o do comando do destacamento, Carvalho lhe fizera uma afronta
sem nome.
Bem que Mendes de Assis percebeu que Severo, ajudado por

206
Enéias, o solapava. Enéias odiava Mendes de Assis, desde que Mendes o
metera na cadeia, um dia, por motivo de indisciplina.
O pensamentos opressivos dissipavam-se. Tomou do garrafão, no copo
outra talagada, virou na goela e riu-se. Pode odiar, miserável. Se você escapar
com vida daqui, da cadeia tu não escapa não bandido. Tu vai matar os três
reféns. Nove pais de família trem à-toa!
Novo gole desceu pela garganta de Mendes de Assis. As idéias clareando
sempre. Também de Severo estava vingado. Severo ia matar o nenor Hugo
Melo. A boca de Hugo não revelaria nada sobre o roubo dos dezoito contos de
réis. Pena que aquela mesma boca não pudesse contar do trato do Juiz
Carvalho com Artur Melo
No silêncio, gerava-se o mistério da madrugada, pobre madrugada
chuvosa, sem galos nem pássaros, gerada no medo e na covardia.
No oriente, leves tintas prenunciavam o dia que queria surgir.

207
IV
O assalto
INCESSANTEMENTE, ininterruptamente, a água tombava sobre as casas,
sobre o Largo deserto. Um ou outro urubu que ficava em riba da cumeeira ou
alguns bem-te-vis que davam seus mergulhos, pegando as mariposas voejantes
sobre os cupins.
Nem as almas-de-gato piavam.
A erva crescia com viço extraordinário. Há poucos dias. se não se notava
o mato que chegava agora a esconder um O caruru-de-porco, o fedegoso brabo,
a erva-de-santa-maria cresciam com uma pujança de feitiço. Havia no ar um
cheiro de verde, de coisa apodrecida, de semente germinando.
Nem o mais leve indício de estiagem. Haviam dito que uns trovões
roncaram pras bandas do Maranhão, mas era estória, suspender o tempo, só
mesmo com a entrada da outra lua.
O moleque, cria da casa de tia Aninha, briquitava para montar no cavalo,
todo encharcado, a roupa de algodão pingando chapéu pingando. Era moreno,
mas de tão encharcado tinha pés e mãos brancacentos e engelhados. Estendeu
a mão para Vicente:
— A bênção.
E esforçava-se para trepar, mas não dava conta. Vicente foi para ajudá-lo.
Nisso, um foguetão arrebentou para os lados da Grota. Ao estrondo,
pipocavam tiros ao redor de todo o povoado, como se

210
fosse um rastilho de pólvora. Parecia fogo em tabocal: tiros mais fortes, outros
mais fracos. Ao mesmo tempo, a barulheira: toque de caixas, tambores, latas,
ronco de buzina, gritos, gemidos, cholamentos. Zurro de jumento, relincho de
cavalo, canto de galo.
O cavalo tomou o cabresto e saiu correndo. Vicente e o menino ali
parados, sem entender.
Já não eram estalos de taboca, eram estampidos que se percebido
aproximarem.
- Jagunço, minha gente!
Gente correndo para as trincheiras, tomando posição nos esconderijos,
pegando as armas que lhes estavam reservadas. Qué menino? Vicente se
refugiou na casa da sogra. Por sobre os zurros, relinchos e zoada de tambor,
uma voz potentíssima anunciava.
- Roberto Dorado táqui!
Balas casqueavam as telhas com um ruído horroroso. Lascas de telhas
caíam dentro de casa. A grita crescia, parecia que estavam no Largo. istinguiam-
se as frases.
- Tu vai cair na faca, Vicente!
Outras vezes imitavam gritos de dor, como se um homem estivesse
sendo sangrado. Os gritos e imprecações sucediam-se:
- Ai, meu Deus, me acode, Valério!
- A faca dói! A faca corta!
Os tiros cresciam de quantidade e de intensidade. Um tiroteio
cerradíssimo, com as balas não mais casqueando as telhas, mas entando
portas, janelas, paredes.
-- Roberto Dorado tá aqui!
--Vicente Lemes já morreu!
Tomado de surpresa, o pessoal julgava que os gritos de dor, que as
pragas, já eram de pessoas do povoado perecendo às mãos dos atacantes.
Mulheres, crianças, homens choravam apavorados, correndo daqui para ali,
tentando abrir portas e janelas, a fim de fugir para fora, receosos de que a casa
caísse, esperando achar lá fora mais garantia do que cá dentro.

Calma, ordem, calma! — gritavam Vicente Lemes, Afonso Quinto. Júlio, Ângelo
e outros procurando deter o pânico que era imenso. Aqui e acolá, homens
tremendo, chorando, totalmente desilados pelo pavor.

211
— Não judie de mim desse jeito. Mata de uma vez! O cedro, a peroba, o
pau-d’arco das janelas, portas e portais estalavam com estrondo, atirando lascas
longe. A balbúrdia era completa. Meninos, homens e mulheres engatinhando
pelo chão feito bicho e ocultando-se por debaixo dos bancos, das mesas, dos
catres. Os que procuravam atirar, a esses as mulheres estoi agarrando-se a eles
em busca de proteção.
— Roberto Dorado tá aqui! — a voz retumbava num fortíssimo, já meio
enrouquecida, boiando sobre a latomia dos, relinchos, zoada de latas velhas e
roncar de buzina.
”No céu, no céu,
com minha mãe estarei!
No céu, no céu,
com minha mãe estarei!”
A reza escorria do quarto da velha Benedita, o oratório aberto, a velinha
tremendo. As vozes eram um rio vindo do quarto, alagando tudo, inundando a
casa, impondo calma. De cá as mulheres se benziam, esticavam as mãos para o
oratório, como se pegassem alguma coisa que depois levavam aos lábios;
ajoelhadas pegavam na cantoria. Também os homens se lembravam e beijavam
o patuá do pescoço.
— Como dói a faca, meu Divino!
— Mendes de Assis tá morto!
”No céu, no céu,
com minha mãe estarei!
No céu, no céu...”
As casas enchiam-se de fumaça das detonações. Ao longo paredes, por
trás das janelas, no alto do telhado, as carabinas gaguejavam seus tiros, com
homens fazendo pontaria. A ordem estabelecia-se. A resistência crescia.
Sargentos, cabos e alguns civis agarravam os homens acovardados, metiam-lhe
tapa na cara, pontapés, ameaçavam com o punhal e botavam o dito arma na
mão, numa seteira qualquer.
Com pouco, olha jagunço por cima dos muros, passando correndo com sua
carreira curta e rápida, arcado, a arma roçando no

212
chão, sacolejando o cangaço, sacudindo as patronas, bentinhos, santos e
patuás.
- Mete a faca na goela desse Valério fé-da-puta! faca corta, a faca dói!
Numa casa arruinada na entrada do povoado, vizinha do Cartório, no fim
das casas que servia de quartel a Xavier, aí se im muitos jagunços que, ocultos
nas ruínas, faziam fogo contra o quartel do Tenente Mendes de Assis.
- Poupar bala. Atirar para matar — era a ordem que os resistentes se
transmitiam. Por trás da carabina, o cheiro de pólvora no nariz , a leréia dos
bandidos nos ouvidos, os homens repetiam mentalmente a frase tão comentada:
o primeiro ataque é o mais : não cair no primeiro balanço, não cai mais.
- Gritando, pulando daqui pra ali e disparando os rifles, os jagunços
surgiam de todos os pontos. Vinham pelos quintais, tenular o muro, mas as
balas dos resistentes os obrigavam a retroceder.
- A faca corta, a faca dói!
De repente, vigia aqui um bando de jagunços investindo. De dentro das
casas, a fuzilaria estrondava. Alguns recuavam, outros mortos em riba do muro,
as pernas para lá, os braços para cá, o rifle no chão, as capangas, picuás,
bentinhos e santos pendurados balançando. Mas algum deles conseguia chegar
até a casa e cutucava com seu punhal o buraco por onde passava a boca da
Comblain, tentando alargar o buraco e tomar a arma. Futucava e xingava:
- Apronta a goela, cachorro do governo! Bala pegava o bruto de jeito e o
derrubava ali mesmo junto, enquanto outros chapéus de couro pulavam daqui
pra li, desapareciam por trás dos muros, das pedras, das moitas. A zoada, o
batido de lata, de caixa, zurro, troar de buzina, cresce. Parecia dentro das casas,
com gritos e imprecações fortíssimas:
- Me larga, Seu Passarinho!
- Mendes de Assis já morreu...
Num agüento, me mate logo, pelo amor de Deus!
Uma porta cedia ao baque de coronhas. A cara larga de um jagunço, a faca
na boca, os dentes em serra, a repetição na mão. Ia

213
entrar, mas uma saraivada de balas jogava ele por terra, o obrigava a fugir
nos seus pulos ágeis.

”Com minha mãe estarei,


Na santa glória um dia...”

As vozes erguiam-se ferozes, num tom esganiçado de desespero, tentando


abafar a barulheira infernal que vinha de fora. Não tinha dúvida, a jagunçama
estava bêbada, completamente bêbada. Era a desgramada da cachaça com
pólvora que Roberto Dorado costumava distribuir ao seu povo em antes de
atacar.
Entrando pela grota que cortava o Largo, os bandidos dirigiam um fogo
nutrido contra o quartel de Mendes de Assis. As casas mais afastadas,
colocadas nas pontas do Largo, estavam ocupadas pelos jagunços: casa de
Argemiro Félix, de Januária, do Pedreiro.

”Eles é de cair
de dez em dez, ;
de nove em nove,
de oito em oito...”

Era um soldado velho sacudindo para o rumo da Grota alguma coisa e


proferindo essas palavras num tom profético e funéreo. As mulheres e alguns
homens choravam e se ajoelhavam a ouvir essa oração. Era uma reza muito
braba demais da conta. Era a oração do cordão do lado esquerdo da cintura de
São Francisco, mó de cortar o poder dos pactuários. Oração suficiente para
suspender a pauta de corpo fechado.

”Oremos, meus irmãos, oremos!”

O QUARTEL de Enéias era o visado. De acordo com o plano de Abílio


Batata, o fogo deveria concentrar-se nele, a fim de libertar os prisioneiros, no
primeiro ímpeto do ataque. O quartel, porém estava resguardado pela sua
posição. Para atingi-lo, tinham os atacantes que passar pelo quartel do Tenente
Mendes de Assis, colocado entre a grota e o quartel de Enéias. Por esta grota
entrava os homens de Batata.

214
Por isso, desde o início, o quartel de Mendes de Assis sofria muito, que aos
primeiros minutos Severo, cujo quartel estava frente, reconheceu sua
vulnerabilidade e mandou alguns solos, sob o comando do Sargento Odilon,
ocupar a casa de Argemiro Félix, que ficava próxima, um pouco para o fundo. A
posição da casa de Argemiro permitia defender com vantagem o quartel do
Tenente Assis. Quando, entretanto, Odilon e seus homens tentaram entrar na
casa, já aí estavam os jagunços, que os repeliram.
Para não perecerem, o sargento e seus homens abrigaram-se no quartel
de Mendes de Assis, mais ao alcance.
Severo, porém, cujo quartel ficava fronteiro à casa de Argemiro Félix, não
se apercebeu do fracasso do Sargento Odilon: achou que ele tinha ocupado a
posição pretendida. A partir daí, o tiroteiro vindo da casa que devia estar
ocupada por Odilon, castigava Severo que não podia reagir, para não matar os
homens de Odilon. Severo fazia sinais, tocava corneta, mas a resposta que tinha
era bala e mais bala.
- Será que o diabo desse sargento endoidou!
Severo enviou emissários, mas eles não conseguiram passar. A grota era
uma fortaleza dos diabos. Comunicar-se com outros quartéis era impraticável.
Os bandidos haviam ocupado as casas vazias, de modo a isolar os quartéis
entre si, proibindo qualquer comunicação. Cada quartel era uma unidade isolada
debatendo-se as cegas.
Severo em pessoa quis chegar até a casa que supunha ocupada por
Odilon, mas uma bala o atingiu na pá direita, casqueou a espinha, e veio alojar-
se no lado esquerdo. Ele voltou ao quartel, amarrou uns panos, continuando na
luta para agora desalojar-se de sua frente quem o castigava tão terrivelmente,
fosse Odilon ou fosse o diabo!
Com fogo pelos fundos, pela frente e por um dos flancos, o quartel de
Mendes de Assis pegou a cair. A casa era fraca, feita de pau-a-pique barreado.
Os torrões de barro caíam, deixando apenas o trançado dos barrotes e taquaras
amarrados com embiras. Tenente Mendes de Assis estava no maior dos
pavores. Não restava pingo de dúvida. Queriam pegá-lo, matá-lo friamente,
chuçando aos poucos com punhal.
Desfiando o rosário, o tenente ordenou a evacuação do quartel,

215
mas o tiroteio era tal que ninguém se encorajava a sair. O medo agarrava o
oficial, pintáva-lhe os jagunços chegando, o amarrando num pau e picando vivo,
aos tiquinhos. Brevemente ele gritaria como Vicente Lemes, cuja morte os
bandidos proclamavam.
— E os garrafões de cachaça! — lembrou o homem, tomou de um sem
esperar por copo e virou na goela. A seu lado viu Sargento Odilon e o Soldado
Gabriel que mamavam em outros.
— Aqui pra mim, um tiquinho — pedia Daniezinho, que encheu um coité de
pinga e bebeu de um soco. Ah! — exclamou estalando a língua e lambendo os
beiços: — Nada como uma cachacinha para estimular a coragem.
Agora estavam prontos para lutar, prontos para enfrentrar o tiroteio e fazer
a retirada, mas a cachaça os fazia esquecer o perigo. Naquele justo instante o
Soldado Gabriel caía por cima do Comblain, morto com um tiro na cabeça. Outro
já gemia com as mãos ambas comprimindo os intestinos, agachando
agachando-se pelos cantos da casa que desmoronava a cada balázio.
— Evacuar o quartel — gritou Mendes de Assis fugindo paro o único lado
que ainda não estava tomado, para o lado do quartel de Enéias, onde estavam
os prisioneiros no tronco, sobrado que era o principal objetivo dos assaltantes.
Os homens de Mendes de Assis foram vazando paredes sando para a casa
vizinha, que fora de Vigilato, e daí para a seguinte, que estava vazia. Nesta
última só tinha um bobo que ficara vigiando. Encontrando-o, Sargento Odilon o
botou para o muro que separava esta casa do quartel de Enéias.
O bobo era surdo-mudo, nada percebia do que se estava acontecendo em
torno e na sua estupidez metia a enxada, furando a taipa. Cambaleando, Odilon
o ameaçava com revólver, obrigava a fazer o serviço com presteza:
— Fura, peste!
Do outro lado do muro, no quartel de Enéias, os soldados alarmaram-se:
— Meu Alferes, os bandidos já e-vêm vindo aí. Tão ronbando o muro, vigia
só, meu Alferes.
De cá se ouvia o batido da enxada no muro, no outro lado os soldados
procuravam esconder-se por ali. A enxada batia, cavucava, vozes ditavam
ordens, a enxada voltava a bater. No muro

216
abriu-se um buraco, um homem meteu a cara espiando para cá. A fuzilaria
pipocou e o homem caiu entupindo o buraco.
Enéias não teve dúvida. Foi topar Mané Vitô na porta da sala do tronco,
montando guarda aos reféns. Ninguém agüentaria aquele assalto. Em Pedro
Afonso tinha sido muito mais fraco. Era fugir e fugir já, se não quisesse largar o
couro na unha de Batata. Os bandidos já arrombavam o muro, já invadiam o
quartel. Aquilo significava que o quartel de Mendes de Assis e seus homens
estavam mortos. Era verdade o que os bandidos anunciavam: Mendes de Assis
estava no inferno. Ah, não tinha dúvida! Batata cumpria com o prometido: o
ataque seria tão fulminante que a polícia não ia ter tempo de matar os
prisioneiros. Mas Batata estava redondamente enganado. Os sitiados não
tinham salvação, é verdade: todos mortos pelos jagunços, mas também os
prisioneiros não ficariam com vida. Isso não ficariam!
Pálido, mas corcunda, Enéias deu a ordem:
- Matar os reféns.
Lá de fora vinha o grito que punha arrepios em Enéias: Roberto Dorado tá
aqui!
Era o mesmo grito de Pedro Afonso, era o mesmo desespero, nesma fúria.
Ante a ordem que esperava desde a véspera, Mane Vitô manobrou a arma,
abriu a pesada porta da sala. Nove homens de joelhos ajuntaram as mãos em
súplica: Pelo amor de Deus, não mata, não mata!
A Winchester de Mane Vitô roncou sinistra, até engasgar. Gritos dos
encheram a casa, de par com a fumaceira. Nisso, do escuro do quarto, o rosto
de Damião de Bastos se destacou, cresceu para o soldado Mane Vitô. Damião
de Bastos tinha cara ruim e único prisioneiro que jamais pediu coisa alguma
durante a prisão. Aquela cara máscula cresceu no escuro do quarto, contraiu-se
e pegou a chorar feito um menino!
- Me mata premero. Num quero ver meus filhos morrer na minha frente. Me
mata!
Rapidamente Mane Vitô encheu a carabina e novas detonações
retumbaram pelo velho sobrado. Outros homens tombaram e novamente a
súplica de Damião de Bastos que tentava defender os filhos, um dos quais jazia
morto. Mais tiros e do meio da fumaça

217
ardia o rosto de Damião de Bastos sempre surgia horroroso, aos brados, com
uma fúria tal que Mane Vitô recuou. Aquilo certamente pissuía corpo fechado!
Por certamente era algua oração muito braba demais, algum patuá de S. Marcos
Brabo. Não via que nem sua repetição queria funcionar mais!
Mane Vitô saiu de fasto, tacou a carabina fumegante no chão, fugiu.
— Acaba o serviço — era Enéias com a Mauser no seu peito.
— Matar filho na frente do pai, isso é demais, meu Alferes, eu nem num
tenho coragem nenhüa não! — Mane Vitô estava trêmulo, desfigurado, olhando
para o quarto do tronco como se estivesse encerrada uma fera terrível, como se
dali viesse um fantasma pronto para matá-lo:
— Esse homem num morre não, meu Alferes. Ele pissui uma oração
desgraçada de forte, meu Alferes!
Aí Nestório meteu o pé na porta e começou a desfechar tiros. Deu no
gatilho até que a carabina esgotou a carga. Depois, puxou a porta e disse:
— Pronto, meu Alferes. Num mato mais ninguém preso. Agora vou é
enfrentar gente solta e vou pegar essa jagunçama aí fora, mó de num dizer que
a gente só mata homem amarrado.
Enéias aproximou-se da porta do quarto. Por baixo e pelas frinchas a
fumaça saía mansamente, ondulando no ar parado. De dentro vinham gemidos
e roncos. O Alferes empurrou outra vez a pesada porta de pau-d’arco. No lusco-f
usco, gente estrebuchava, gente avançava com uma dificuldade medonha,
arrastando no pé o tronco empecado de defuntos e agonizantes. Aquele que
avançava vinha arquejante, soproso, aluindo a custo a penca monstruosa de
cadáveres, espichava o braço tremente, espichava a cabeça num gesto
descontrolado e humilhante. E falava e falava e falava.
Quê diria aquele defunto? Quê estaria ele pedindo com tanta teimosia?
Enéias gritou-lhe com mais pavor do que o Soldado Mané Vitô:
— Tu não pára de pedir! Num morre nunca? — E como um louco acionava
o gatilho da arma até que o cão principiou a mascar em falso.
Nesse momento, por trás de Enéias, chegou o Sargento Rubens que lhe
dizia não serem os bandidos que vazavam o muro.

218
— Uai, não são os bandidos, uai! Então, quem é que está rombando o
muro? Fala depressa, trem.
— Deve ser os soldados do Tenente Mendes de Assis, meu Alferes. Eucuta
a corneta. — E o sargento com o dedo indicador erguido apontava os acordes
do outro lado do muro.
Enéias ouviu o toque de corneta. Vinha do outro lado do muro furado. O
Alferes compreendeu tudo. A corneta era do Tenente Mendes de Assis que
estava vazando o muro, a fim de passar para cá, para o quartel de Enéias, onde
procurava refúgio, certamente.
Enéias mandou o corneteiro responder ao toque do tenente. De cá, o som
da corneta se sobrepôs à barulheira dos tambores, dos murros, relinchos, gritos
e impropérios. Novamente, o Tenente Mendes respondeu. Um pano branco
apareceu no buraco, na ponta de ima Comblain; um soldado surgiu, passou para
cá, outro, mais outro, o pessoal todo entrou no quartel de Enéias.
Lá fora, a inferneira nunca fora tão atroadora. Caixas, buzilas, canto de
galo, tambores, lata velha.
— A faca corta, a faca dói!
— Apronta a goela, Severo, que o Mendes de Assis já tá sem couro!
— Ai, ai, ai, não me mata, Roberto Dorado!
- NÃO SEI o que está acontecendo, Vicente. O pessoal do Tenene Mendes
veio todo para o quartel de Enéias. — Isto contava Afonso Quinto que trepou no
telhado da casa de Dona Benedita, onde era o quartel de Vicente Lemes. Dali,
vira a movimentação do Tenente Mendes de Assis.
— Uai será que a polícia já está entregando os pontos! — fez Vicente, que
neste instante era chamado por um sargento:
— Olhe, Seu Major, o sentinela Boa Ventura está aí.
— Sentinela? Que sentinela? — perguntou Vicente, mas por ali já Boa
Ventura contava: — Estava na estrada da Grota,quando os jagunços atacaram.
Boa Ventura tinha cochilado e...
O tiroteio era cerradíssimo, com terra, lascas de madeira saltando pela
casa inteira. Não. Não era possível resistir. O tiroteio

219

era um absurdo. Aquele negócio de primeiro ímpeto era pura leia. A cada
instante o ataque crescia de violência.
Agora, além do assalto em si, os jagunços estavam apoiados p fogo dos
companheiros entricheirados nas casas, nas grotas, i moitas, nas dobras do
terreno. O cerco fechava-se sobre cada gru de casas em que os resistentes se
abrigavam. Alguém informa
— Mendes de Assis já entregou a palha com a rapadura.
— Morreu?
— Diz-que fugiu...
— Severo tá baleado — contava outro.
Jagunços pulando os muros, correndo agachados daqui pra feito um bicho
feroz, em pulos ágeis de grilo, metendo os punh, pelos buracos das paredes,
das fechaduras.
— A faca corta...
Pelas casas, as mulheres de galinhas, sem incomodar de me trar a
vergonha. O clarinetista Pião, esse nem tinha força para alu se do lugar.
Chiquinho da Penha não caía das carnes. Estava, no pau furado, derrubando
negro, mas a merda lhe corria pel pernas, tal qual boi de carro em tempo de
verde. Fazia força c gando, o danado.
Calogi, sobrinho de Aninha, perdeu a vontade, feito uma cria ca, fazendo o
que mandavam, sem nenhuma determinação pr pria. Acabou um jagunço
abrindo a janela, encostou-lhe o cai da repetição na barriga e arrebentou tudo.
Júlio de Aquino, Ângelo e Vicente faziam ali um jurament não se
entregariam vivos nas mãos de Artur. Quando se visse perdidos, a derradeira
bala seria para o ouvido.
Desfigurado, branco ver cera, com o jeito mais esquisito « mundo, Afonso
Quinto foi-se chegando para perto de Vicente.
— Que isso, homem? — Estaria ferido o infeliz? Afonso Quin rolava uns
olhos esgazeados. Do fundo do peito vinham os eng lhos que o impediam de
falar. Entre ânsias de vômito, por fim exprimiu-se:
— Fui no quartel de Enéias...
— Tá aí! Não fique zanzando, vamos ver que já tomou uma bala!
— ... já mataram os reféns — terminou Afonso, a quem as ai sias
novamente assaltaram, fazendo porejar suor na cara esquálida.
Foi como se houvessem metido uma porretada na cabeça de

220
Vicente: a cabeça rodou, a boca amargou a guiné. Vicente tomou Afonso
pelo peito da camisa, sujigou-o ali na parede, sem coragem de repetir a palavra
”morte”.
— Que é homem? Fale direito!
A voz de Afonso vinha entrecortada pelas vascas:
— Eu achei o movimento de Mendes de Assis esquisito, então fui no
quartel de Enéias... lá num tem ninguém... só tem defunto... mataram os homens
do tronco...
Vicente não ouvia tiros, nem gritos, nem nada. Um vazio, a cabeça oca
girando. Relanceou os olhos e em tomo de si estavam todos do mesmo modo:
parados, a cara estuporada.
Afonso prosseguia entre espasmos:
— Mendes de Assis e Enéias com os soldados atravessaram o Largo,
entraram na casa da velha Aninha...
Uma mulher de soldado aproximou-se de Afonso.
— Arca o corpo, meu amo, mode gumitar sossegado... — e segurou-lhe a
testa.
Duvidavam: — Ah, será possível!
— Os soldados vão matar as mulheres.
Um silêncio perdurou até que a mesma voz que duvidou, completou:
— Se já não mataram!
Num átimo, Vicente teve compreensão de tudo: mortos os prosioneiros do
tronco, a polícia iria matar as mulheres, na casa da velha Aninha.
Num ponto qualquer lamentavam:
— Vocês deviam de ter tomado os presos de Enéias. A polícia sempre
prometeu matar eles. Que estavam esperando? Agora cumpria salvar as
mulheres. Era uma dívida de honra para com os mortos. Nada de
contemporização.
— Tenho que salvar as mulheres, — gritou Vicente. Ele mesmo percebeu
que dissera isto alto demais.
Lina, sua sogra, a mulher de Júlio de Aquino, a de Moisés o agarraram:
— Está louco, homem. É só chegar lá e a polícia te mata, te pica em
pedacinhos. Os oficiais estão prevenidos contra você.
— Me largue, me largue, — relutava Vicente. — Tenho que ir à casa da
velha. Não posso ouvir ninguém. Foi por estar dando ouvidos a uns e a outros
que afinal a polícia acabou matando os

221
prisioneiros. Agora, ninguém me impede de ir à casa da velha salvar as
mulheres.
— Nós também vamos com você — diziam Lina e Benedita — Assim eles
não vão poder te ofender.
— Mas eu tenho pressa e até vocês passarem... E Vicente rompeu a frase
ante outra lembrança que lhe acudia:
— Nesse caso, vão Ângelo e Júlio de Aquino.
— Bobagem — contraditava Júlio. — Mendes de Assis vai escutar
conversa minha mais de Ângelo? Tem que ser você ir para discutir com a polícia,
para estorvar os oficiais de matar as mulheres.
— Ai, ai, ai! — gemiam por ali. O gemido crescia e era cortar o coração.
— Quem será, meu Deus!
Afonso Quinto lá vinha nos braços de dois homens. Tentaram sair para a
casa da velha. No que abriu a porta uma bala esbagaçou-lhe a coxa. O sangue
jorrava em bicas.
Era o primeiro ferimento grave, em gente importante, com sangueira dos
diabos. Ah, se houvesse médico! Nem desinfetante havia. A cena atemorizava
as mulheres que perceberam o risco que corriam, o perigo que pesava
constantemente sobre a cabíeça cada pessoa, de cada filho, do marido. Diante
do ferido, percebiam que a fuzilaria era de uma intensidade nunca vista,
derrubando reboco, cacos de telhas, lascas de pau. Lá fora, a gritaria:
— A faca corta, a faca dói.
O cerco apertava-se. As mulheres de soldado se mantinham firmes.
Agüentavam o fogo fazendo seus cigarrões de palha, soltando baforadas, indo
e vindo com os meninos nos braços. Algumas ficavam pelo chão, dando de
mamar ao filho catarrento,a cara mais sossegada dessa vida.
— Teresa, ô Teresa! — chamava o soldado, suspendendo o tiroteio da
seteira, em que estava. Teresa ajeitava a criança na cintura e ia lá. O soldado
deixava-lhe a arma e saía para descansar fumar o cigarro que Teresa preparara
e metera na pituca. Tereza depunha a criança no chão, pegava a Comblain e
disparava bem. O soldado voltava, retomava a arma, e Teresa ali ao pé dele
escolhendo os cartuchos que prestassem, aqueles que não falhassem. A
munição velha era quase inútil. Tinha cartucho que chia-

222
va feito um traque, produzia um fumaceiro dos trezentos e a bala nem
aluía.
Contavam pormenores: quando Tenente Mendes de Assis refugiou-se no
quartel de Enéias, os presos já haviam sido mortos.
— A bala ou punhal?
— Diz-que foi sangrado. Que nem porco.
— Aquele Mane Vitô é um bandido!
— Mane Vitô nada: Enéias. Enéias que é um bandido. A ordem fou dele.
— Psiu! Tem soldado ouvindo. Cuidado!
As vozes se amorteciam.
— Quando Mendes de Assis chegou, já todos estavam mortos. Aí,
combinaram ele e Enéias de passar para a casa da velha Aninha e matar as
mulheres. Era para acabar com a raça dos Melos.
Quem informava, dizia ter ouvido essas coisas da boca de Afonso Quinto
que as ouvira do próprio Enéias.
— Depressa, gente! — exigia Vicente dos homens que, lá fora, vazavam os
muros, a fim de permitir que chegassem à casa da tia Aninha.
— Tomou a bala na cabeça que chega rançou fora o coité.
— Quem? Quem foi esse?
— Crispim, menino cria de Joaquim Alves Leandro. — O menino estava
num grupo de jagunços que ocupou a casa do Pedreiro, mesmo em frente ao
quartel de Xavier. De vez em quando Crispim abria um tiquinho a porta, botava a
cara de fora, e gritava:
—”Valério fé-da-puta!
Numa das vezes, zás — a bala tirou-lhe o coité.
OS HOMENS de Vicente arrombavam o muro que dava para o Beco da
Fonte. Este Beco separava a casa de Dona Benedita da casa do Doutor
Herculano Lima. Depois eles arrombaram o muro da casa do Doutor Herculano.
A frente dela dava para o oitão da casa da velha tia Aninha, aonde Vicente
precisava chegar.
A casa do Doutor Herculano estava vazia. Ele tinha ido parlamentar com o
sogro e lá ficara preso; sua mulher e sogra tinham sido recolhidas à casa da
velha Aninha.
Oh, arrombamento demorado, meu Deus! Coisa difícil com

223
os tiros comendo, com os homens se escondendo, com o medo tomando
conta. Soldados e civis saíam para cavar, enquanto os demais resistentes, de
dentro da casa, faziam nutrida fuzilaria, a fim de espantar os jagunços. Assim
mesmo a todo momento viam-se obrigados a abandonar o trabalho e a
ocultarem-se em casa.
Quando menos se esperava, olhe ali por cima do muro um chapéu duro, o
rifle aos baques. Vinham jagunços aos magotes, na sua ousadia imprudente,
chamando os soldados como se fossem pintinhos:
— Piu, piu.piu.
Uma rajada vinha da casa, metia-os por terra.
— Depressa, que matam as mulheres! — Incitava Vicente, que fora ver o
pobre do Afonso Quinto. Nem gemia, desmaio sobre desmaio, quase exangue.
Era incrível como uma bala pudesse fazer tamanho estrago. Moisés achava que
os jagunços estavam usando bala dum-dum.
Abertos os rombos, iniciou-se a passagem do pessoal da casa de Dona
Benedita para a de Doutor Herculano, levando crianças, roupa, mantimento,
vasilhame, o diabo. Até o oratório Dona Benedita queria levar, mas terminou
transportando apenas o São Miguel.
O passo mais difícil seria aquele que consistia em deixar a casa do Doutor
Herculano, pela porta da frente atravessar a rua, e entrar pela porta da frente da
casa da velha Aninha. O espaço entre a porta de uma casa e a de outra seria de
vinte e poucos metros. Mas dava para o Largo, à vista da jagunçada, exposto
abertamente às balas inimigas.
As pessoas da casa de Dona Benedita abriam fogo para os lados. com o
tiroteio cerrado, os homens de Artur não tinham coragem de erguer a cabeça e
atirar. Ante a fúria do fogo, os jagunços aquietavam, paravam completamente de
atirar. No auge da fuzilaria, passavam as mulheres rapidamente, em grupos de
três e quatro, agachadas ou de quatro pés. De tempo em tempo, sustavam-se
os disparos de cá, e de lá a cabroeira despejava estanho à vontade.
Depois chegou a vez dos homens atravessar, mas aí os jagunços já tinham
atinado com o ardil e surgiam pela grotinha, pelos quintais, avançavam numa
fúria de demônios.

224
Vicente, Júlio de Aquino, Ângelo e outros passavam, enquanto os soldados
e alguns civis permaneciam nas casas, para impedir que os jagunços ali se
entrincheirassem. Em casa de Dona Benedita também ficou o infeliz do Afonso
espichado na cama, branco feito um defunto, as pernas envolvidas numa trouxa
de panos.
Ao entrar na casa da velha, Vicente foi chamado por sua filha Alice que
chorava desesperadamente. Alice agarrava-se ao pai, chorando e clamando.
Vicente tinha pressa de chegar aos aposentos da velha tia, receando não mais
encontrá-la com vida. A menina, entretanto, gritava de tal maneira que Vicente
teve de tomá-la nos braços e procurar saber o que era, dentro da balbúrdia
infernal de gritos, choros, protestos. Aqui reclamavam que uma criança tinha
ficado lá, separada da mãe; ali, outra queria voltar para buscar panos que
esquecera.
— Diga, menina, que foi? Quede sua mãe? — perguntava Vicente. Dentro
da barulheira não entendia patavína do que dizia a menina.
— Pára de chorar, fala direito, vamos! — Mas não entendia. O que
percebia eram estrondos, como se batessem em porta ou num grande caixote:
— bum, bum, bum. — O ruído ressoava pelo casarão, fazendo tremer as
janelas, derrubando torrões de reboco.
Arrombando porta — pensou Vicente, que saiu correndo pela casa imensa,
cheia de quartos, corredores, salas. Já não tinha dúvida. Eram coronhadas em
portas. As pancadas cresciam à proporção que Vicente entrava no corredor e
chegava à varanda, de cujos fundos vinham os estrondos. Deviam partir daquele
quarto imenso que servia de dormitório à velha, onde Vicente fora tantas e
tantas vezes nesses últimos dias.
Vicente sentiu no rosto as unhinhas de Alice que exigia do pai que a
ouvisse. E ele teve que ouvir: — Brasica morreu.
Brasica era a filha de Argemiro Félix, da mesma idade de Alice, sua
companheira de brinquedos. com a ausência do pai, viera para a companhia de
Vicente, que a via sempre brincando. Brincando de bonecas, brincando de
comadre por baixo dos cacaueiros do quintal.
A mulher de Moisés contava-num tom doloroso como ocorrera a desgraça.
Alice vinha abraçada com Brasica, quando a bala

225
a pegou na barriguinha, do lado esquerdo. A coitadinha ainda agüentou e
veio cair no corredor:
— A gente até cuidou que tivesse trupicado à toa.
Vicente entregou a filha à mulher de Moisés. Soldados trançavam pela
casa. Distinguiam-se dos civis pelas correias, mas trajavam roupa de paisano.
Na porta do quarto da velha Aninha, vários soldados metiam coice de Comblain.
Batiam, batiam, batiam, tentando quebrar as tábuas; a seguir, enfiavam os
ombros, resfolegando no esforço. A porta de pau-d’arco, grossa, presa com
dobradiças possantes, porta feita com aquele capricho, aquela perícia do velho
Melo, ah, nela podia amontoar soldado!
— Epa, que isso aí!— veio gritando Vicente. — Alto lá! — continuou ele,
entrando no meio da soldadesca, enquanto procurava divisar alguém graduado
ali por perto. Agachado de um lado estava o Tenente Mendes de Assis; Alferes
Enéias estava de pé, ambos tinham os olhos pregados em Vicente, a cara
parada numa completa boçalidade.
— Que é que vocês estão querendo aqui? — argüiu Vicente em tom de
cólera. — Saiam, saiam, aqui só tem mulheres.
U’a mão de ferro agarrou Vicente pela gola, deu-lhe um safanão que o
botou tonto, ao mesmo tempo que um’ punhal brilhava à altura do nariz de
Vicente. Quem o agarrava, berrava: — Traidor. Quer nos matar!
Numa agilidade que jamais desconfiou possuir, Vicente safouse da mão
que o detinha. Tirou da algibeira sua automática, mas já o rodeavam Ângelo,
Júlio de Aquino e Moisés. Tenente Mendes de Assis também interferiu, levando
para longe o agressor. Era o Sargento Odilon: foi-se resmungando, bracejando,
sacudindo os ombros. Odilon velho estava na cachaça, como também estavam
Mendes de Assis e outros soldados.
— Retirem-se, retirem-se, — prosseguiu Vicente. — Que é que vocês
querem com estas mulheres? Vão dar tiros nos jagunços que estão aí fora,
cambada de covardes!
Enéias e Mendes de Assis permaneciam parados, os olhos arregalados,
sem nada dizerem de concreto. Mendes de Assis, via-se que estava
embriagado, fedendo a pinga, vermelho, olhos congestionados; mas Enéias,
não.
O que eles respondiam era besteira:

226
— Precisa segurar esse povo, Vicente. Esse povo pode ajudar os
bandidos, pode atacar a polícia pelas costas.
— Atacar o quê, tenente! Só se elas derem tiro com a boca. Elas não têm
arma, não sabem atirar. — Vicente tinha ódio aos oficiais, mas entendia que era
necessário agir com cuidado, tê-los em boa concórdia.
Os soldados não forçavam mais a porta e Vicente pôs-se a bater e a
chamar:
— Amélia, ô Amélia!
Ninguém respondia. No quarto era como se não houvesse vivalma. Algum
ruído que pudesse existir era abafado pela baruIheira dos jagunços.
— Amélia, quem está aqui é Vicente.
Mendes de Assis notou que Vicente desconfiava de que ali dentro não
restava ninguém; e resmungou:
— Tá tudo aí dentro... tão com medo.
— Aninha, minha tia, aqui quem fala é Vicente Lemes. Os soldados já
saíram, pode abrir a porta. Preciso conversar com a senhora.
De dentro veio uma voz que Vicente identificou sendo de Amélia. Num tom
de súplica:
— Não deixe a polícia nos matar, Vicente.
Daniezinho, que até ali permaneceu por perto, afastou-se cambaleando,
gritando ameaças, indo unir-se ao Sargento Odilon, Mane Vitô e outros que
estavam assim mais pra lá. Os dois oficiais, quietos. Mendes de Assis agachou-
se e tirando o rosário, rezava batendo os beiços flácidos, tremendo as
bochechas vermelhas, nas quais a barba de dois dias punha um ar de
convalescença. Estava na pinga, via-se bem. Enéias tinha um jeito selvagem, o
olhar vago, de sonâmbulo.
— Amélia, eu estou aqui com toda a família, com Lina, Alice, Júlio de
Aquino, Ângelo, Saturnino, sua avó Benedita. Pode abrir sem susto que os
soldados já arredaram... — Vicente procurava falar bastante, fornecer o máximo
de elementos capazes de identificá-lo. Vicente sabia que Amélia desconfiava de
alguma cilada. Certamente os soldados tinham cometido violência, tinham
procurado assustá-las.
— Podem abrir. Viemos defender vocês e somos muitos.

227
Ouviram-se ruídos do outro lado: móveis arrastados, objetos mudados de
lugar, gungunando de vozes, em conversa, choi menino. Tiravam os trastes que
haviam botado como escora.
— Olhe a chave, — dizia Amélia, enquanto um chavão escorregava por
baixo da porta.
Aberta a porta, eis novamente ali o Sargento Odilon com cara de nem sei o
quê, querendo entrar! Por trás dele a tropa toda: Daniezinho, Mane Vitô,
Nestório, com as caras congestionadas, tando palavrões:
— Os macho já foram tudo, agora é a vez das fema...
— Pra trás, Seu Sargento. Nenhum passo mais, que eu não estou para
brincadeira, — disse Vicente pondo-se entre a porta soldados, segurando
novamente a pistola automática.
O sargento remanchava, mas Vicente dava no brabo:
— Pra fora e já. Seu lugar é defendendo a Vila e não querendo matar mães
de família. Seu lugar é lá junto de Severo. Você, o tenente Mendes de Assis,
Enéias deviam ter vergonha de estar a querendo matar mulheres desarmadas.
Vão lutar com os jagunços, seus covardes! Escuta eles chamando vocês,
escuta!
Odilon e os outros coçavam-se e olhavam para os dois oficiais que nada
diziam.
— Vocês mataram os prisioneiros porque estavam amarrados no tronco.
Vocês queriam matar estas mulheres porque não existia nenhum homem aqui.
Entrem agora, covardes! — Na mão,, Vicente segurava a Browning de cinco
tiros, bala niquelada.
Inquietos, os soldados olhavam para Mendes de Assis, que parara de bater
o queixo na reza e permanecia agachado. De pé, Enéias permanecia como que
estupidificado. Alheio a tudo, com o sentido voltado para outros problemas.
De repente, aproximou-se de Mane Vitô e lhe segredou alguma coisa ao
ouvido, voltando para seu lugar.
Um toque claro e diáfano de corneta chegou até a sala, como se fosse um
raio de sol. As notas metálicas brincaram alegremente no ar e Vicente teve a
perfeita noção de que não estava só, que não estava abandonado: nalgum
ponto, alguém também lutava.
Alferes Enéias trocou de pernas. Um frêmito agitou os soldados, como se
um choque elétrico os alertasse:
— Uai, é o Alferes Severo, — disse Daniezinho rindo imbecilmente, como
se aquele toque de corneta também lhe pertencesse.

228
A corneta continuava tocando. Ia-se distanciando. À proporção que o som
morria, o rosto de Daniezinho se apagava, uma dolorosa sombra de terror o
envolvia. Apressadamente, os soldados dispersaram-se. Enéias também se
mexeu, lentamente. E como se estivesse dormindo, caminhou pela casa, sem
rumo certo, feito um sonâmbulo, a costa arcada, mais corcunda.
Enéias tinha a cabeça tomada de dúvidas, de incertezas. As mortes do
sobrado não ficariam em silêncio. Vicente já falava delas. Os soldados bateriam
língua, denunciariam. Nada valia ordenar silêncio, ordenar segredo. Não vira o
caso da Grota? Tanto que Mendes de Assis recomendou segredo, tanto que
ameaçou Fabriciano e Freitas Machado; no entanto, todos contavam para gato e
cachorro que o velho fora morto sem armas e já entregue! E se matasse Mane
Vitô e Nestório? Era uma solução: metia-lhes um tiro pelas costas, jogava a
culpa na cacunda dos jagunços. Heim! Mas talvez fosse mais interessante
deixar os soldados vivos e jogar nas costas deles a chacina. Poderia dizer que
não mandou ninguém matar os reféns. Quem ouviu as ordens? Podia jogar a
culpa das mortes nas costas dos soldados, como Carvalho jogou a
responsabilidade da morte do velho nas costas de Mendes de Assis e como
Mendes de Assis estava jogando essa culpa nas costas dos soldados. Era a
solução mais acertada: jogar a responsabilidade de tudo na cacunda dos
soldados, depois deixar os soldados sumir no mundo. Não era esse o sistema
usado?
Enéias ora resolvia matar os soldados, ora desistia do intento,
completamente absorvido pelos pensamentos, completamente dominado pelas
dúvidas. Lá de longe ele voltou-se:
— Tá ouvindo? — E com o dedo espetado para o alto, para o som da
corneta: — Tão debandando. — Falou para Mendes de Assis, que, agachado,
voltava a desfiar o rosário.
Como um sonâmbulo, Enéias voltou de novo, como um zonzo, esbarrando
nas pessoas, tropeçando nas coisas. A corneta era um fiapinho de som
perdendo-se ao longe.
— Fugir, tenente, fugir enquanto é tempo, — disse Enéias como se
sonhasse.
UA MULHER de soldado lá e-vinha de pé no chão, mal vestida, um menino
na cintura enganchado. Vinha naquele passo descan-

229
sado, naquela calma que Vicente tanto admirava, como se a morte não
rondasse por ali. Novamente a gritaria dos jagunços se erguia:
— A faca corta, ai, ai!
A mulher perguntava a Vicente de quem era um menino que estava nos
fundos da casa. Aí Vicente se lembrou. Nos fundos da casa, num quarto isolado,
havia um rapazinho de catorze anos, por nome Luís, filho de Tozão e Anastácia,
neto da velha Aninha. Era tuberculoso e fora isolado por causa do mal. No corre-
corre ante os soldados ou talvez porque receassem seu contágio, Luís ficara
largado lá nos fundos da casa, enquanto o pessoal todo se escondia naquele
único quarto que, embora grande, era pequeno para tantas mulheres.
— Tão querendo sangrar ele, — disse a mulher com a mesma calma, como
se aquilo nada significasse de horroroso, de horripilante.
— Meu filho, açode meu filho! — a voz veio de dentro do quarto e tinha um
tom asperamente selvagem. Parecia um ganido, parecia um uivo. Quem será
que gritava daquele jeito? Anastácia não era porque ela não estava ali.
Vicente correu ao quarto e viu o rapazinho que mal podia mover-se,
consumido pela tísica. Luís nada disse, mas seus olhos denotavam pavor, eram
uns olhos de cortar coração, exprimindo fatalismo e renúncia.
A mulher vinha entrando pelo quarto com a mesma calma:
— Fiz isso! pra num deixar Daniezinho matar o desinfeliz.
Agora a corneta de Severo vinha voltando. Seu som crescia, ficava mais
perto, ficava mais perto, como um hino de vitória, como um raio de sol.
— Olha, você vai ficar encarregada desse menino, ouviu? disse Vicente à
mulher. — Você vai ser a mãe dele. Não deixe ninguém lhe fazer mal.
Morena, forte, grande cabeleira mei pixaim, umas ancas fornidas, a mulher
sentou-se na cama do doente e disse a Vicente que podia confiar nela.
— Dê água a ele, dê de comer e defenda como a um filho, está me
ouvindo?
— Nhor sim, — ria ela, mostrando uns dentes que eram uma perfeição.

230
Sobre o tiroteio, sobre os impropérios, sobre a cruviana que não parava de
molhar tudo, a corneta de Severo era uma esperança.
— Roberto Dorado tá aqui ! — gritava o bandido, enrouquecido,
respondendo à corneta.
No quarto, a mulher jurava pelo Divino Padre Eterno que velaria o
tuberculoso. Lá fora, o tiroteio ia rijo. Os soldados e suas mulheres iam e vinham
pela -casa, indiferentes a tudo, comendo bananas, doces e biscoitos.
A casa da velha Aninha não era visada pelos atacantes. Atacavam as
outras residências, mas esta eles respeitavam.
Porque o diabo daquele Mendes de Assis não largava o rosário e não ia
obrigar os soldados a repelir os jagunços? Não ia fazer como Severo e Xavier?
Bandidos! Matar presos, atacar mulheres, atacar tuberculosos, isso eles sabiam!
A corneta parecia tocar dentro da casa. de tão forte. Vicente tomava seu
lugar na porta do quarto novamente e Enéias veio para seu lado:
- Vamos embora, Seu Vicente. Isso está perdido!
Vicente balançou a cabeça negativamente e exculpou-se:
— Não dou conta de andar a pé.
- Te carrego nas costas... Os soldados carregam Dona Lina e a menina . -
Enéias falou e ficou olhando a cara de Vicente que balançou novamente a
cabeça em sinal de negação, dizendo-lhe que fosse atirar nos bandidos.
- Os soldados desertaram, Vicente. Munição num presta.
- Munição não presta para você, respondeu Vicente. - Como é que os
homens de Severo não param de atirar.
Vicente tinha ódio de Enéias e de Mendes de Assis. Bandidos! Se os
soldados não prestavam, se a munição era má, então para que foi que
resistiram? Se sabiam disso porque não saíram da Vila como fez Carvlho? Não.
Ficaram, deixaram os bandidos atacar, mataram os prisioneiros e agora, depois
que os mataram e que vinham dizer que não tinham munição, que os soldados
estavam desertando.
Perto de Nestório e Mane Vitô. Eles não abandonavam Enéias, pregavam-
se a eles, solidários no crime. Receavam que Enéias fugisse.
Novamente a corneta de Severo tocava. Enéias falou surdamen-

231
— Os soldados estão debandando... não atendem mais o toque de reunir...
Por onde andariam Lina e Alice? — perguntava-se Vicente. Certamente
estariam num dos quartos da casa, em companhia de Dona Benedita e das
outras mulheres. E Brasica, que seria dela? Pobrezinha! Sem nenhum recurso
médico para salvá-la. Tudo culpa dessa polícia que não falou a verdade sobre a
situação da defesa.
A corneta de Severo boiava no meio da cruviana que não parava,
empapando tudo, enchendo a grota que gorgolejava, assanhando a saparia, que
roncava grosso.
Cada vez mais o cerco se apertava. Pelos arredores, os defuntos já
começavam a inchar. O bobo do quintal de Moisés, um soldado, o Gabriel, no
largo; um jagunço na grotinha e outro na casa arruinada, mortos, enquanto
outros se arrastavam feridos e embriagados estrebuchando na lama. Dentro do
quarto começavam a falar, com crianças chorando, a bulha se confundindo com
a bulha dos atacantes.
Valente era o Alferes Severo. Resistia com denodo. De vez em quando
deixava o quartel com alguns soldados distraindo os jagunços e saía com uma
coluna volante pelos arredores, afastando os jagunços para longe, batendo,
matando-os. Depois, de volta para seu posto, procurava contato com os demais
militares, tocando sua corneta, dando ordens e transmitindo mensagens.
Alferes Xavier só que respondia, dando sinal de vida e encorajando na
defesa. Suas trincheiras vomitavam fogo e mais fogo. Alferes Severo debalde
chamava pelo Tenente Mendes de Assis e pelo Alferes Enéias. Alferes Severo
revirava a saroba e as bibocas do povoado, levantando a moral dos sitiados e
castigando o povo de Artur.
Se Alferes Severo não tivesse o ombro arrebentado pela bala, se não
estivesse delirando de tanta febre, se contasse com o auxílio de Enéias e
Mendes de Assis, há muito que os jagunços de Artur tinham levado o diabo. Mas
Severo era um só, com os braços quase paralisados, com o inchaço tomando
conta do corpo. Por onde andariam Mendes de Assis e Enéias? Teriam fugido?
Teriam sido massacrados? Os quartéis deles estavam silenciosos. Lá não
estavam os bandidos ainda alojados, mas também não havia soldados, porque
de lá não partiam tiros.
— Toque reunir — ordenava Severo.

232
A corneta cortava a chuva. A jagunçama respondia ao toque com seus
tambores, batidos de latas velhas, zurros de jumentos e gritos de alarma. O som
da corneta morria num derradeiro eco.
De seu canto, Tenente Mendes de Assis não reagia. Era um molambo, os
olhos azuis arregalados, os dedos desfiando o rosário, os beiços batendo a ave-
maria, aqueles mesmos lábios que tinham tramado a prisão dos cidadãos,
aqueles mesmos lábios que, com uma só palavra, poderiam ter evitado a morte
de muitos homens.
Nos ouvidos de Mendes de Assis ainda ecoavam os pedidos de
misericórdia, os rogos e protestos dos moribundos. Quando chegou ao quartel
de Enéias, os reféns agonizavam e pediam, imploravam, seguravam a vida com
unhas e dentes.
À corneta tocava.
Enéias lá vinha como um doente:
— Embora, Vicente. Te levo na cacunda...
— Vai pró diabo com seus soldados, — lhe respondia Vicente, a quem
aqueles dois oficiais não mereciam a menor consideração. — Que fossem para
o diabo que os carregue!
Mas Enéias insistia. Apavorados com a execução dos inocentes, Enéias e
Mendes de Assis sabiam que Artur, se os pegasse, mataria aos pouquinhos.
Imaginavam-se cutucados de faca, os jagunços os sangrando vagarosamente.
Seria inútil pedir, rogar, pois também os reféns pediram e rogaram muito.
Sacrifício besta. Eles morrendo ali, enquanto na Capital e no Rio de Janeiro
os políticos estariam gozando a vida, criando os filhos, vivendo alegremente.
Mendes de Assis se comparava a um jagunço. Sim. Tal e qual um jagunço,
embora com maiores responsabilidades. A verdade é que seriam mortos pelos
bandidos, enquanto nas cidades os políticos continuariam na boa vida!
— Embora, Vicente!
— Não vou, gente. Já disse! Fugir agora seria uma covardia. Não posso
abandonar os companheiros. Se eu saísse, minha consciência ia doer para o
resto da vida.
Enéias afastou-se sonambulicamente. ”Minha consciência ia doer..!” Na
sua memória estampou-se a cena do sobrado. Damião de Bastos, de joelhos,
chorando feito um menino. Enéias passou as mãos pelos olhos, mas a visão
persistia. Damião de Bastos, oh homem de cara feia de macho! Mas chorava
feito um menino. Damião pedia que o matasse antes dos filhos.

233
Enéias reviveu a cena da manhã: Mane Vitô fugindo de dó. Até Mane Vitô
teve pena. Enéias nunca pensou que Mane Vitô tivesse coração, fosse tão
dozento.
Enéias revia tudo, tintin por tintin, com uma viveza de demência. Mane Vitô
atirou a arma no chão e saiu na carreira, a mão na cara: — matar o filho na
frente do pai era demais. Não tinha coragem! Aí Nestório começou a matança.
Leão de Aquino entrou pela casa, contando suas proezas e contando
casos de Severo que, certa feita, tinham ido bater nas trincheiras de Artur Melo,
botando o bicho para correr. Depois continuou contando que já-havia muito
morto e que muita gente já estava debandando mesmo.
Ao ouvir isso, Enéias se interessou. Ficou assuntando na conversa com a
cara pasmada, os olhos vagos. Ele não conseguia desviar sua atenção da cena
do sobrado: ”os reféns chorando e implorando misericórdia!’
— Vicente! Ô Vicente! — chamavam de dentro do quarto.
VICENTE! entre aqui, meu sobrinho — pedia a velha Aninha de dentro do
quarto. Vicente entrou e debalde procurava a velha por todos os cantos, sem a
poder enxergar.
— Está debaixo da cama, informou Amélia.
— Debaixo da cama! Uai, mas aí ela não pode ficar, — estranhou Vicente.
Vamos tirá-la, gente. — E com o auxílio das outras mulheres, pegou nas mãos
da velha e tocou a puxá-la de sob o móvel, ao mesmo tempo que puxavam seus
pés. A tarefa não era fácil. Além do corpanzil, a velha não possuía agilidade,
engastalhando-se por baixo do catre, esbarrando nas canastras, nas bruacas,
nas mil e uma coisas que entupiam o quarto. com muito custo, deram com ela
em riba da cama, de onde começou a perguntar que tiroteio era aquele.
— Ora, então a senhora não sabe, minha tia? São os jagunços de seu
filho!
-Nem estou acreditando. Será que é mesmo meu filho Artur? Mandei pedir
tanto a esse rapaz para não atacar, gente! É incrível!
— Pois é ele em carne e osso.

234
A velha chorava um choro longo e igual, enquanto Vicente repetia: — Pois
é o seu Artur, minha tia.
— E minha filha Anastácia, quede ela? Vocês não mataram?
— Lhe garanto que daqui ela saiu inteirinhazinha e com vida. Leão a levou
até fora da Vila. Se alguém matou, foi seu filho Artur.
— Tanto que eu pedi a Artur, meu Deus do céu!
O choro prosseguia com mais força, repetindo as mesmas coisas:
— Vocês mataram minha filha. Mataram ela como mataram os outros e
estão mentindo para mim. Artur não ia me desobedecer, depois de receber
aquela carta! Vocês mataram Anastácia... Esse tiroteio é de mentira... Para a
polícia matar o resto...
A velha Aninha já pegava a tremer e ia perder os sentidos. O pessoal do
quarto se abalou, abanando-a, dando-lhe os cheiros.
Vicente notava que a criadagem estava muito por menos. Grande parte
havia fugido, decerto, valendo-se da confusão, conquistando a liberdade. Notava
também o quarto. Imundo. Excremento pelo chão, que estava mijado de menino.
O pessoal ali amontoado, só mulheres e crianças, sem água para higiene, fedia,
fedia a azedo.
— Os soldados vão matar nós, Vicente. Estavam arrombando a porta.
— E brigando, — informou Amélia. — Ferraram a mutuca aí na porta, cada
um querendo que o outro matasse e ninguém querendo fazer o serviço.
— Eu quero me esconder — berrou a velha, tomada de súbito pânico,
movimentando-se na cama, procurando fugir para debaixo do catre imenso,
trançado de couro cru de boi. Amélia e Zefa seguraram a velha, deram-lhe
cachaça canforada para cheirar, enquanto Vicente a acalmava, dizia para não
ter medo, que ele já havia proibido a qualquer pessoa de entrar ali.
— Já mataram muita gente... os prisioneiros são tudo defunto... mataram
Tozão... — O choro corria longo e grosso: — Olhe, Vicente, vou lhe dizer com
franqueza, Tozão era uma alma nobre, Vicente, era medroso demais...
Por falar em morte dos prisioneiros, parece que a consciência do perigo
brotou novamente na cabeça das mulheres que se toma-

235
ram de pavor. Amélia abriu a janela que dava para o quintal e queria pular.
Fugiria para onde estava o pai.
— Tá louca, menina — gritava Vicente. — Se sair aí, a polícia mete bala ou
os jagunços mesmo. Você não tem nenhuma estrela na testa.
Contou-lhe o caso de Afonso, ferido, que ficou em casa de Dona Benedita
esvaindo-se em sangue; contou o caso do Crispim, com o tampo da cabeça
arrancado; falou da menina de Argemiro Félix. Quando tudo serenava, outro
rebuliço sacudiu o quarto. Vinha entrando um soldado. Vicente o conhecia: era
Baianinho, gente sob o comando de Mendes de Assis.
Mesmo com seu comandante acovardado, Baianinho não esmoreceu:
combatia por conta própria. Ora estava num ponto, ora noutro. Ele, Salustiano,
José Flores, Freitas Machado, Carajá, Catarino e outros tomaram-se famosos na
luta do Duro.
Baianinho dizia que já havia morto muita gente e queria descansar um
pouco. Vicente o tomou pela mão e saiu com ele para o cômodo que servia
antigamente de loja, onde havia um balcãozinho de jatobá. Deitou aí o soldado,
que disse haver morto muito negro, mas que agora tinha chegado a sua vez.
Disse e mostrou a bunda da calça empapada de sangue, que lhe corria pela
perna e pelo pé descalço.
— Me deixa ver — falou Vicente, — para botar um remédio.
— Não. Num tá doendo não. Quero amostrar presses trem à toa que
soldado é bicho duro.
— É preciso ver, para não agravar. Vire-se.
Baianinho virou-se, Vicente desceu-lhe a calça de algodão, suspendeu a
camisola e na meia escuridão enxergou na nádega um sinal de bala. Não
sangrava muito. Vicente meteu o dedo na cisura e não alcançou o fundo. Aquele
cômodo de loja era usado para guardar uns restos de remédio, alcaide da velha
farmácia de Artur. Vicente procurou pelas prateleiras e achou um vidro de
Bálsamo Vulnerário, com que embebeu um pedaço de algodão em rama e
meteu na ferida. Era um remédio tão velho que podia fazer mais mal do que
bem. Contudo...
Por estas alturas, já era quase noite. A chuva continuava caindo e o tiroteio
minguara. Afora investidas isoladas, o pipoco comia de casa para casa. O
pessoal estava entrincheirado, cada qual

236
querendo desalojar o inimigo. Vez por outra, Severo saía nas suas sortidas,
afastando os jagunços, a corneta tocando.
Deixando a loja, Vicente foi topar com Lina e Alice, as quais — lhe
disseram — estavam num quarto do fundo. Brasica, pobrezinha! agonizava,
esvaía em sangue, sem qualquer remédio, sem o menor tratamento, sem
qualquer recurso para minorar seu sofrimento. Morria lentamente, delirando,
com os circunstantes morrendo de dó, no mesmo passo que a menina. Que
coisa horrível! Tudo irresponsabilidade daquele governo que enviara soldados
escassos, mal armados, com munição quase nenhuma. Porque não confessou a
fraqueza e não recuou a tempo!
Pela casa da velha Aninha havia poucos soldados. Diziam que Enéias e
Mendes de Assis já tinham batido a linda plumagem levando a soldadesca. E
devia de ser verdade. Ali na casa de Aninha eles não estavam. Também no
quartel de Enéias não estariam. A cadeia estava quieta. De lá não partia um só
tiro! Baianinho passara por lá e não vira ninguém, afora os defuntos que
estavam feitos uns surrões de tão inchados.
No balcão, Baianinho dormia aos solavancos, sacudido pela febre, a boca
estalando de seca. O cômodo estava sombrio, janelas e porta fechadas.
A corneta de Severo tocou seu toque de reunir. Enéias e Mendes de Assis
não davam respostas ao toque de Severo. Certamente os dois já iam longe,
Mendes de Assis, com a cara vermelha de estrangeiro, batendo os beiços na
reza, Enéias corcunda, com aquele ar apalermado. Ouviriam o toque, mas
fariam de conta que não entendiam, que nada tinham com aquilo. Queriam fugir
o mais depressa, queriam correr para se esconder dos mortos e dos vivos.
Sabiam que se Artur Melo e Roberto Dorado os pegassem, teriam morte
horrível. Picados aos poucos, chuchados de punhais, com as partes arrancadas
ainda em vida.
Sob a chuva, sob o vento frio, com os pés metidos na lama, cansado da
caminhada, Enéias ainda tinha as cenas do sobrado diante dos olhos. Soldado
Mane Vitô baqueou diante da fúria de Damião de Bastos, defendendo os filhos.
Enéias nunca pensou que um homem como Mane Vitô tivesse coração, mas
tinha. Mane Vitô chorava e pedia a Enéias que não o mandasse continuar na
matança. Soldado mau aquele Nestório! Enéias não esperava desse tama-

237
nha maldade. Quem visse sua cara, não diria. Tão ”sim senhor”, tão risão,
tão chegado com os santos, com as rezas brabas. Nestório então matou outros
homens, até que achou que chegava.
— Não mato mais — disse. E não matou. Não ficou choramingando feito
um Mané Vitô. Matou alguns e saiu para fora, foi matar jagunço:
— Vou matar gente solta aí fora para não dizerem que só mato gente
amarrada!
Depois... depois Mendes de Assis entrava no sobrado e tinha um suspiro
de alívio, vendo os mortos e os agonizantes. As pessoas que podiam vingar a
morte do velho diminuíam.
Enéias então deliberou terminar a obra: — Já que começamos, é bom
acabar. Precisava valer-se do momento para vingar-se de Artur, para vingar-se
da sua ajuda a Abílio Batata, que matara seus parentes em Pedro Afonso.
Enéias deu um pulo e comandou:
— Vamos para a casa da velha Aninha. Já acabamos com os machos,
agora é acabar com as fêmeas.
Aí seus soldados e os de Mendes de Assis puseram-se a atravessar o
Largo e a entrar na casa da velha.
— É uma grota, meu Alferes, o senhor parece que está dormindo! — Era a
voz de Nestório. Enéias não vira a grota e caíra.
Nestório o levantava para reiniciarem a caminhada. Bem que Nestório
podia passar a faca em Enéias, jogar-lhe a culpa das mortes, mas não o faria.
Enéias teve confiança em Nestório e por isso o soldado o protegeria contra tudo.
Quanto às mortes, Enéias lhe recomendara muito segredo. Dissesse que foram
os paisanos, pronto!
Pela biboca molhada, marchavam os homens. Para trás ficara a cometa de
Severo, como um chicote a cortar a carne de Enéias e lembrar-lhe o
cumprimento do dever militar, do dever de defender a Vila, de repelir os
bandidos. Alferes Severo era mesmo um militar. Era o único que defendia a Vila
com valentia e com dignidade. Felizmente que sua cometa já não chamava nos
ouvidos de Enéias. Ela chamava nos ouvidos de Baianinho, que acordava no
balcão duro. Seu corpo não era aquele corpo leve de sempre, não era aquele
corpo de atleta, servido de músculos elásticos e sadios. Tinha o corpo lerdo e
um calafrio o percorria, como se fosse um boi com aftosa.

238
A cometa chamava e Baianinho tinha que atender e Baianinho tinha que
sair, embora a perna estivesse dura e não lhe obedecesse.
Vicente chegou a um vão de janela, viu Baianinho que lá ia pelo Largo,
mancando, arrastando-se como um boi com peste de unha, até perder-se na
chuva. Não era mais o belo sertanejo musculoso e esperto. Sua agilidade não o
defenderia mais das balas.
E foi isso que Baianinho percebeu, quando atingiu a grotinha.
Vendo-se doente, com a gangrena lhe apodrecendo a perna, com a morte
subindo pelo seu corpo progressivamente, Baianinho procurou o quartel de
Severo, de onde o chamava a cometa.
A noite era negra, mas as balas passavam por perto de sua cabeça,
assoviando. Baianinho relembrava as palavras do velho soldado: ”Soldado num
pode roubar, nem passar para a banda do inimigo”. E de cá Baianinho disparava
sua arma sobre os bandidos, sobre uns vultos que sua vista turva lobrigava. Era
preciso poupar os tiros. Bala andava vasqueiro, — recomendava o comandante.
COISA ESTRANHA! Mesmo no quarto, mesmo presa no meio das
mulheres, no meio da fedentina dos vômitos, fezes e mijo de meninos, mesmo
ali a velha Aninha sabia de tudo. Ela chamou Vicente Lemes. Não mais o vinha
chamar a pretinha de olhos muito abertos, com seus peitinhos espetados. A
velha Aninha a estava procurando insistentemente.
— Será que Tifuque fugiu, Amélia?
Consigo, Vicente pensou no soldado de olhos imorais. Estaria em lua-de-
mel com a bichinha pelas bibocas, debaixo da chuvarada. Coitadinha! Antes
assim, do que ali no cativeiro da velha, para amanhã se perder com qualquer
Resto-de-Onça.
Mas a velha estava na frente de Vicente, na camona, e dizia que Severo
tinha matado Hugo Melo. A velha não saía, mas por ela saíam e entravam no
quarto as negras, os serviçais, os parentes e os aderentes, que levavam e
traziam as notícias e os fuxicos. Aninha não discutia a morte do neto, recebia o
fato como era: Severo matou Hugo Melo.
Isto era de madrugadinha e a velha contava o fato sem protestos e sem
choro. Hugo Melo era seu neto. Fora o único que estive-

239
ra presente ao sumário de culpa, por ter sido preso na Grota. Hugo tinha
menos de vinte anos.
Pobre Anastácia, tanto que sofrera, tanto que padecera de temor pela
morte do filho! Vicente se lembrou dela fugindo no cavalo, no crepúsculo, um
destroço do que sempre fora, fria e macilenta, feito uma velha, ela possuía um
hálito de fogueira, uma boca tão fresca de juventude!
Mais uma vez considerou a irresponsabilidade da polícia. Se soubesse
antes dessas coisas, teria fugido, teria ido embora. Resistir daquela forma era
um crime maior do que o fuzilamento dos reféns. Por causa da vaidade, do
orgulho besta, sacrificou parentes e amigos.
A corneta de Severo não soava mais aos ouvidos de Vicente Lemes como
um hino de esperança. Nada disso. Na madrugada fria e feia, o tiroteio
cochilava. Ele devia recrudescer a qualquer momento. Naquela noite, os
jagunços ainda não haviam atacado, mas o fariam. A chuva caía. Uma névoa
densa cobria a povoação, com os tiros pipocando aqui e ali. Os sitiados tinham
passado a noite todinha esperando o ataque, mas ele estava custando. A
corneta de Severo era uma lâmina de punhal entrando vagarosamente no peito
de Vicente Lemes. Severo não matara o menor Hugo Melo; Severo matara a
esperança do coração de Vicente.
Severo era seu orgulho e sua esperança. Quando a velha Aninha dizia que
os soldados eram assassinos, Vicente citava a valentia de Severo, perguntava-
lhe se Hugo fora sacrificado. E ela tinha que ficar quieta. Xavier fora comprado
na Grota, Mendes era o responsável, Enéias um assassino, mas Severo, contra
Severo que é que se podia dizer?
Era digno e valente. Sua corneta era uma bandeira de esperança, era uma
chama na treva da incerteza. Ultimamente, Mendes de Assis e Enéias haviam
sumido, haviam debandado. De Xavier, pouco se sabia, mas a corneta de
Severo estava em toda a parte, era o sinal de que os sitiados não estavam
desamparados, de que os jagunços não eram senhores do povoado. Severo
podia mais do que Abílio Batata e Roberto Dorado. Seus soldados, uns quinze
no máximo, eram destemidos, eram mais poderosos do que os jagunços com
seus corpos fechados e com sua agilidade.
Leão de Aquino vira Severo ir até as trincheiras de Artur Melo, que teve de
fugir. Severo podia mais do que as feridas, do que

240
a morte. Para ele nada valiam esses feitiços, essas mandingas de corpo
fechado, de patuá, de não sei mais o quê! Seu corpo não era fechado, mas os
ferimentos não o baqueavam.
Tudo isso, porém, tinha ido por água abaixo. A corneta de Severo era um
aviso fúnebre, era um sinal de insegurança, que contava da morte de um menor
confiado à sua guarda. Quem podia garantir que ele não estivesse a caminho da
casa da velha Aninha para exterminar a geração dos Melos? Quem poderia dizer
que Severo não considerasse Vicente um traidor, um covarde?
— Essa polícia só tem assassinos, — dizia a velha Aninha com voz firme.
Vicente baixou o rosto. Ninguém melhor do que ela para dizer tal coisa. Até
ontem seu marido, seu filho e ela eram gente do governo, cujos soldados
conheciam de sobejo. Ninguém melhor do que a velha para dar semelhante
parecer.
— Olha, pelo que vejo, vocês não têm defesa. Vocês estão derrotados.
Estão sitiados, e vai faltando de um tudo... Se parar de chover, que é que vamos
beber, nem?
Agora quem estava serrando de riba era a velha. Aninha, com sua
inteligência, confiava no filho. Ele derrotaria a polícia e daria segurança aos
seus. Seu receio ia-se acabando, porque percebia que seus inimigos, a polícia,
já não valiam nada, estavam totalmente desmoralizados.
Ouvia Vicente Lemes repreendendo Mendes de Assis e Enéias que
consentiam no arrombamento da porta de seu quarto, a fim de as matar; vira-os
acovardados ali na casa, ébrios, fugindo como se fossem cães espancados,
depois de matar cidadãos indefesos. Só quem ainda sustentava os inimigos de
seu filho era aquele tal de Severo. Aquele era perigoso porque era direito.
Severo, porém, se desgraçara. Matar um menor inocente, cuja vida estava
confiada à sua guarda! Severo não era militar, Severo não representava o
governo do Estado, Severo era pior do que Batata, era pior do que Capitão
Machado de Boa Vista!
Vicente estava quieto, ouvindo as palavras de Aninha e seguindo o
pensamento dela, que dizia:
— Eu quero salvar você, meu sobrinho, como você me salvou. Enéias e
Mendes vieram para me passar a faca na minha goela, eles ficaram brigando aí
na porta, cada qual querendo que o outro fizesse o serviço. Mas você não
deixou, enfrentou as balas dos jagunços, o punhal do Sargento Odilon, o estorvo
dos aliados. Eu

241
quero que você fuja com tudo que for seu. Do contrário, meu sobrinho, seu
fim é igualzinho ao de Tozão: morto com toda a perversidade. Eu não quero sua
morte, Vicente. Pelo amor de Deus, pelo amor de sua filha Alice, você fuja.
Ao redor, o silêncio era desconcertante, até os meninos se aquietaram,
aventurando-se já pela casa, onde os soldados escasseavam.
Aí irrompeu a barulheira. Os jagunços desfechavam seu tão esperado
ataque da noite. O tiroteio fazia medo e o ruído das balas, batido de latas, zurro
de jumentos.
— A faca corta, corta, corta!
— Não mata eu, Seu Passarinho. Eu não tinha culpa de nada não, pelo
amor de seus filhos!
Fugir era o diabo — pensava Vicente. — Podia ser mentira, mas podia ser
verdade que Mendes caíra nas mãos dos jagunços. Fugir, romper o cerco era
coisa muito difícil.
De novo a meninada abriu o choro, com o mulherio correndo feito doidas,
escondendo por baixo dos móveis. Alguns homens que ainda estavam
dormindo, despertaram e disparavam suas armas. Para surpresa geral também
alguns soldados, que Vicente não conhecia.
Cacos de telhas e caliça caindo. Do quarto, a velha Aninha berrava, como
nos velhos tempos:
— Não atirem, não atirem! De dentro de minha casa ninguém dá tiro não.
Ela não queria que atirassem dali, para não atrair sobre sua casa a fúria
dos jagunços, para conservar a neutralidade do refúgio. Nos quartos do fundo,
onde estava a sogra de Vicente, mulher e filha, de lá vinham zoadas de reza. A
velha Benedita era devota das Almas. Estaria desfiando o rosário e recitando as
jaculatórias defronte da imagem de S. Miguel.
O resto da casa permanecia quieto, vazio, tamboretes tombados, um pé de
chinelo largado no corredor, um traste qualquer abandonado, uma embira, uma
cabeça de palha.
— Ô Vicente! — chamava a velha com voz calma, muito segura de si.
Tinha certeza de que Artur dominava a situação. Por cima de mortes, por cima
de dores, mas dominava.
O sobrinho aproximou-se, a tia tomou-lhe as mãos, fê-lo sentar-se e
continuava convencendo-o: Por quase meio século vivera em contato com a
brutalidade e aspereza do marido, de modo que

242
tivera que desenvolver a lábia, a sagacidade de mulher, capaz de dobrar o
ânimo dos homens.
— Mas como sair com mulher, filha, sogra e parentes?
A noite era um breu, com chuva incessante. As mulheres não agüentariam
a caminhada e os jagunços liquidariam com elas. Morrer por morrer, melhor
morrer ali dentro, sem tanto sofrimento...
— Mas para que levar Lina, Alice e Benedita? Para quê, Vicente? Deixa
esse pessoal aqui, que eu garanto. Você sabe que eu tenho força e energia.
Pode deixar.
— Ah, não vou deixar minha família — contestava Vicente
peremptoriamente. — Abandonar meu povo numa hora dessa! É uma covardia,
é uma desumanidade, é um absurdo!
— E você está abandonando, menino? Eu tomo conta. Então você entende
que minha proteção é abandono, hem? Você acha assim?
A fala de Aninha era mansa, como fala de mãe, macia, jeitosa, inspirando
confiança e ternura:
— Veja como fez Artur. Você sabe que Artur não tem medo e é homem leal.
Ele tem lá seus defeitos dele, mas ser medroso e traidor, isso ele não é. Pois
bem, Artur abandonou tudo e fugiu, quando se viu perdido na Grota. Está
vendo? Foi a salvação dele, foi ou não foi?
Como Vicente emburrasse, sem dizer nem sim nem não, a velha
prosseguiu:
— Você saindo, você salvará a vida de seus companheiros. Você ficando,
eles vão ser mortos. Isto não tem meu-pé-me-dói... Sei lá! Tu ficando, menino,
até as mulheres é capaz que elas entrem na dança...
Esse argumento abalou Vicente. Isso era verdade. Artur vingar-se-ia dos
homens e não das mulheres. Se ao entrar na Vila só encontrasse mulheres, ele
se encheria de glória, se envaideceria e não faria mal a ninguém; mas se
pegasse algum homem aí a coisa seria outra. Sua vingança sobraria para as
mulheres, porque elas iriam interceder pelos maridos.
Depois, após aquelas mortes praticadas pela polícia, quem é que tinha
ânimo de enfrentar os jagunços? Vicente sentia-se abatido moralmente. Sentia-
se muito inferior aos bandidos, muito mais sem razão. Cometeram crimes
inomináveis matando dez pes-

243
soas inocentes, inermes, indefesas, completamente indefesas. Como
justificar tais assassinatos?
Vicente saiu.
A corneta de Severo sobrepunha-se ao barulho como um toque de luto e
de derrota, evocando o sangue de Hugo, evocando o sangue de Tozão, as
súplicas de Damião de Bastos.
Júlio de Aquino, Ângelo, Saturnino e Leão ouviram as palavras de Vicente,
repetindo a conversa da velha Aninha.
— Não seria alguma cilada, para que todos fossem pegos pelos jagunços?
— indagava Júlio de Aquino por trás de seus óculos e de sua malícia.
— Ah, não creio — informava Vicente. — A velha é sincera. Leão também
achava que não haveria perigo. A verdade era que todo mundo estava fugindo,
sem que os jagunços pudessem pegar ninguém.
— Estão gritando aí que Mendes de Assis foi morto — objetou Saturnino.
— Mentira. Para meter medo — disse Leão. — Os bandidos proclamavam
a morte dele desde que entraram, como já tinham anunciado a morte de Vicente
e a de Ferreira.
Os demais companheiros aprovavam a idéia da fuga. Não era possível
agüentar mais. Leão adiantava:
— Para ser franco, de nossa gente, mais da metade fugiu. Da polícia, só
tem Severo e Xavier, mas estes já estão dispersando seus homens. Severo
matou Hugo Melo para fugir melhor, mais desembaraçadamente. O melhor era
fugir naquele instante, enquanto ainda era possível.
Vinham as últimas exigências-da velha, agora com aquela arrogância de
outros tempos:
— Espera aí, Vicente. Tem uma coisa. Você vai prometer que só sairá
depois que não houver nenhum soldado, nenhum paisano de arma na mão aqui
dentro de casa... Do outro lado, eu não receio de nada. Meu medo é dessa
cambada — e apontava para o lado da corneta.
Aninha confirmava:
— Vai em paz. Artur chegando, vou exigir dele respeito e segurança para a
família de todos. Podem ir descansados.
Obedecendo a um plano, o pessoal começou a retirar-se, saindo em
grupos de três. Vicente conversava com os poucos solda-

244
dos restantes, convencendo-os a abandonar a casa da velha tia. Eles,
porém, relutavam energicamente. A ordem que haviam recebido era de defender
o povoado e o fariam, nem que fosse para morrer. Nada tinham com que Enéias
e Mendes de Assis houvessem fugido. Eles não iam fugir, eles queriam mostrar
aos jagunços quanto valia um soldado da Força Pública estadual.
Entre eles, estava Freitas Machado. Vicente o chamou: — Olha, Freitas, é
preciso sair desta casa.
— Nhor não. Saio daqui nenhuns nada, — disse irritado. — Jagunço, se
quiser, vem me buscar eu.
— Não é isso. Nós vamos sair e a dona da casa não aceita homem
nenhum aqui dentro. Aqui é pra ficar só as mulheres, tá entendendo?
— Tenho nada com isso. Me deram ordem de ficar aqui e pronto. Mecê tá
pensando que eu sou aquele sem-vergonha do Mané Vitô? Tá muito enganado.
Mané Vitô veve falando que eu sou covarde pramode num matei o velho.
Covarde é ele que já fugiu. Agora que eu quero ver quem que é valente, quem
que tem saco no vão das pernas. Eu num saio da Vila. Quero mostrar presses
jaguncinho quem é o Soldado Freitas Machado.
— Então você vai para o quartel de Severo ou de Xavier. Aqui é que não
pode ficar. A dona da casa não quer homem nenhum aqui.
— Bão, entonce aí já é outra cantiga... Se a dona num quer, é outra
conversa, a gente vai embora... A gente num carece de ficar na casa alheia. —
Assim resmungando o soldado tirou o correame, deixou-o ali no corredor e, com
seus companheiros, uns três, se tantos, saiu pela porta da rua, quase de rasto
no chão. Iria para o quartel de Xavier. Se lá não houvesse ninguém, combateria
sozinho. Jagunço comeria fogo com ele.
Aí, Vicente inteirou a velha de tudo: já não havia um único homem na casa;
os paisanos restantes iriam sair com ele Vicente. O mulherio cercava Vicente:
— Vai depressa, homem. Vai antes que o dia clareie,

— Ligeiro, homem, se não tu não passa mais — repetia a sogra Benedita


nos ouvidos de Vicente. A velha Aninha havia feito o trabalho, havia convencido
todas da necessidade de fuga dos homens. Elas agora tratavam de realizar o
plano da velha. Vicente quis ir ver Brasica, no quarto perto da cozinha. Bem

245
dizer, era um defuntinho. O nariz azulado, muito afilado, os beicinhos roxos
e o diabo do sangue sempre minando. Coitadinha! Tão bonitinha, tão viva, tão
alegre de sua pequena vida. Ainda outro dia brincando por baixo dos cacaueiros
do quintal, sem nunca pensar no mal que a esperava feito uma jararaca na
moita.
Novamente vinha à cabeça de Vicente a mágoa contra a polícia. Muito
preferível que houvessem fugido como o Juiz Carvalho, que houvessem
evacuado a cidade, em lugar de se sacrificarem estupidamente vidas como a de
Brasica.
— Vicente, depressa!
— Tome a bênção a seu pai, menina — dizia Lina a Alice. Vicente sentiu os
olhos arderem e afagou a filha. Tanta coisa lhe correndo pela cabeça! Alice
chorava abraçada ao pai.
— Troque de roupa, Vicente — dizia a sogra Benedita. — com essa roupa
branca dá muito na vista. Põe seu terno de casimira escura: mais quente...
Vicente se escondeu por trás de uma porta e trocou a roupa. Veio
apressadamente e abraçou Lina, ardendo de lágrimas que já saltavam. Na
cabeça, um redemunho de idéias, de lembranças, de dúvidas, de incertezas.
Alguém lhe tomou a mão e saiu arrastando-o pela casa escura.
Atravessaram a sala de jantar, passaram o corredor, vararam a dispensa e
chegaram na cozinha. Daí pularam uma janela alta, saindo no beco que levava
para fora do povoado.
Podiam ser umas três horas da manhã e chovia fininho, uma chuva que
nem chiava. O tiroteio era cerrado, mas não havia mais gritos. Um a um,
saltaram os homens que, espaçadamente, foram-se afastando nas pontas dos
pés. Foram pelo beco, passaram os currais do velho Pedro Melo, meteram-se no
pasto do fundo, atravessaram o córrego e atingiram um matinho.
Perto da grota, um homem gemia, demais. Dentro da grota uma coisa clara
dava a impressão de defunto.
Aí pegaram o córrego, subindo-o até sair num pasto conhecido por pasto
da pedra branca. No lusco-fusco da noite chuvosa, lá iam os homens um atrás
do outro, em fila, cada qual mais arcado para ocultar-se. Vicente ia-se
retardando aos poucos, até ficar atrás de todos.
Não se sentia seguro. No fundo, a consciência o acusava. Parecia que
praticava um ato mau e indigno. Fugir, deixando a famí-

246
lia na mão de jagunços! Agora, no silêncio do campo, a fala da velha lhe
aparecia falsa e mentirosa. Podia lá essa velha defender ninguém? Por acaso
Artur atendeu aos seus rogos de não atacar o povoado? Fugir, deixando amigos,
parentes, gente que atendera a seu apelo e viera de longe, sem nada ter com o
barulho. Não seria uma covardia? Estaria praticando um ato vil? Censurara tanto
Carvalho, censurara Mendes de Assis e estava obrando igualzinho a eles.
Na frente, uma grande coisa branquejava na noite. Era a pedra branca que
dava nome ao pasto. Aí Vicente assentou-se e deixou que os companheiros se
fossem, arcados, procurando ocultar-se na macega, cada qual com o coração
mais cheio de dúvidas e de esperanças.
Quando Vicente fora consultar os companheiros sobre a fuga, na casa da
velha Aninha, surgira-lhe uma solução: aceitaria fugir porque assim os
companheiros fugiriam também. Logo, porém, que eles se fossem, Vicente
voltaria para receber os jagunços, para combatê-los até morrer. Não fugiria. Não
praticaria uma ação igual à de Carvalho ou Mendes de Assis. Ficaria, como
ficavam muitos soldados, lutando por conta própria, fiel ao juramento militar.
Dele, haveriam de dizer, como diziam de muitos outros de Boa Vista ou de
Pedro Afonso: morreu mas não fugiu. Sim, ia morrer, mas ia morrer dentro do
povoado, brigando com os bundões.
A corneta de Severo riscou novamente o silêncio com seu toque de morte e
de derrota. Outro dia, Vicente entrava no povoado ao lado do Juiz Carvalho,
obrigando Artur a fugir. Então Vicente estava alegre, vaidoso. Também a corneta
tocava.
Agora era a derrota, era a fuga, com a polícia em que depositara tanta
esperança, tanta confiança, massacrando gente inocente, acovardando-se.
Afinal de contas de que valera toda a luta? Lutara contra os Melos por causa dos
crimes e dos desmandos; no entanto, poderia haver maiores crimes e maiores
desmandos do que os cometidos pela polícia?
Sentado na pedra fria, e molhada, uma idéia crescia na cabeça de Vicente:
não fugiria.
Lana casa de Aninha aceitara a idéia da fuga para que os companheiros
saíssem, para que os companheiros se salvassem. Entretanto, agora, Vicente
queria fugir de verdade. Estava cansado, estava exausto, faminto,
desacoroçoado, tinha medo de enfrentar

247
os bandidos, tinha medo de enfrentar Severo com seus homens. Vicente
estava disposto a não voltar para a Vila. No campo estava a calma, a paz, a
segurança. Lá no povoado era o perigo, o tiroteio, pondo em risco a cada
momento a vida Para a frente, quanto mais para a frente, quanto mais para
longe do Duro, maior seria a segurança, a garantia.
Alguns pirilampos piscavam nos ramos molhados. Os sapos voltaram a
coaxar valentemente, cientes de que ninguém os perturbaria.
Da grota vinha o gemido do ferido, muito fraco e dolorido. Quem seria que
gemia daquela forma? Quem seria esse homem valente, esse herói que
entregou a vida por uma causa que Vicente não tinha coragem de defender?
Certamente, algum jagunço, algum sertanejo completamente alheio a todo
aquele conflito de interesses, arrastado à morte pelo espírito de aventura, pelo
ingênuo sentimento de solidariedade para com algum amigo ou patrão que o
explorava impiedosamente, que o trazia escravizado e dominado como uma
besta de carga.
A corneta de Severo era um fiapinho de som, afastando-se, afastando-se.
Vicente Lemes sentiu a cara vermelha de vergonha: fugissem todos, mas ele
não fugiria. Ele não podia fugir, ele tinha o dever e a obrigação de ficar, de lutar
até morrer.
Ergueu-se como um velho, como o Soldado Baianinho. Nem se dava ao
trabalho de agachar-se.ou esconder-se. Que o matassem. Que o matassem logo
de uma vez.
Desfez o caminho e entrou pela porta da frente da casa da velha Aninha.
Não tinha ânimo de fugir!
Nos QUARTÉIS dos Alferes Xavier e Severo, homens e mulheres
preparavam-se para fugir. Alferes Severo acabava de chegar do acampamento
de Artur, convicto da impossibilidade de resistir. Os Oficiais Mendes de Assis e
Enéias tinham sumido com seus homens, tudo fazendo crer que fugiram. Os
paisanos de Vicente Lemes, Ângelo, Júlio de Aquino, Saturnino, Moisés e outros
também haviam deixado o quartel. Severo constatara que só estavam no
povoado ele, Xavier e seus homens. De seus quartéis, ninguém fugira. Nem os
paisanos que estavam com eles, como Valério Fer-

248

reíra e Cláudio Ribeiro, mas a resistência não era mais possível. O número
de resistentes era mínimo em confronto com a jagunçama.
Artur Melo não tomava a Vila, porque supunha dispusessem os sitiados de
maiores forças.
Severo não se sentia bem: o ferimento do ombro lhe produzia febres, sem
qualquer medicamento para tomar ou aplicar no local. Maria Ponciana é que
fazia suas benzeções, fazia seus feitiços sobre a ferida do alferes, que piorava
sempre e sempre. Salustiano também deu seu demão, recitando umas par de
vez a oração do Santo Sepulcro de Nosso Senhor Jesus Cristo.
Ponciana explicava:
— Benzedura num tem força, mode a bala que é de arma curada. Quando
Severo voltou daquela investida contra o acampamento de Artur, para desforra,
os jagunços desfecharam um ataque violentíssimo. Alferes Xavier já não possuía
munição, seu quartel estava praticamente arrasado, com as paredes
arrebentadas e por isso enviou o Soldado Freitas Machado ao quartel de
Severo, para pedir-lhe socorro.
Em seu quartel, Severo também procurava fugir. A posição era
insustentável. As paredes caíam, restando apenas o trançado de barrotes e
taquaras amarrados com cipó. A munição escasseava. Do terreiro vinha a
catinga do cadáver da mulher de Adelino Silva, cujo filho desapareceu. A mulher
morreu nos primeiros momentos da luta e fora enterrada numa cova rasa ali na
porta da cozinha. Agora o fedor empestava tudo.
Severo deliberou fugir.
— Vem cá — disse ele ao Soldado José Rodrigues que já não tinha balas
— toma esta chave e mata o preso, mata Hugo Melo. Tá aqui a Mauser.
A chave era do quarto, onde estava Hugo preso desde o começo da luta,
esperando a morte. Já lhe haviam anunciado que seria morto a qualquer
instante, mas inexplicavelmente não cumpriam a ameaça, deixando que o pobre
imaginasse que a todo momento era chegado o seu derradeiro instante. José
Rodrigues tomou a arma e a chave, abriu a porta, entrou e procurou o rapaz
pelo quarto.
Sentia um tremor pelo corpo, mas procurava não pensar. Nunca imaginara
que tivesse de chegar a isso, de ter que matar um sujei-

249
to do qual não tinha o menor rancor, uma pessoa que nem ao menos
nunca vira antes. Mas ordem era ordem: era bom não pensar, era abrir a porta e
meter fogo.
Entretanto, José Rodrigues, procurava Hugo e não o encontrava. Onde
estava o infeliz, meu Deus do céu? Nisso, olhou atrás da porta. Estava aí o
mocinho, a cara tão desgraçada, tão aniquilado, tão rente com a parede,
ocupando um espaço tão apertado, tão exíguo, que José Rodrigues baqueou: Ai,
meu Divino, não tinha coragem de matar aquele infeliz! Depois, tão mocinho
ainda, tão forte, com tanta vida para viver pela frente, com tamanha força no seu
coração de jovem! Soldado José Rodrigues sentiu um nó na garganta e uma
aceleração no coração. Não. Sua coragem não dava para isso! Se fazer carreira
na polícia dependia de tanta malvadeza, preferia sair da corporação, largar a
farda, se danar no cabo do guatambu, agüentando gritos de patrões, passando
fome.
— Aí dentro num tem ninguém, meu Alferes — disse o soldado a Severo,
devolvendo-lhe a chave a Mauser.
O oficial ordenava o recuo do pessoal para o quartel de Xavier e ouvindo o
que dizia José Rodrigues, espantou-se:
— Num tem ninguém aí dentro! Será possível!
— Nhor não, meu Alferes. Num vi ninguenzinho dessa vida... Severo logo
percebeu que José Rodrigues se deixara comover, não tivera coragem de
executar a ordem.
— Covarde, medroso — xingou Severo, avançando para o quarto. De cá,
José Rodrigues ouviu o batuque dos pés de Severo e de Hugo, atracados no
aloite mais feroz dessa vida.
Ambos bufavam feito marruás em luta. Aos trancos, de dentro do quartinho
surgiu Severo agarrado com uma mão no cachaço do moço, que lutava para
defender-se. Hugo tinha a mão em sangue, pois estava seguro duro no refle de
Severo, que procurava arrebatá-lo a Hugo.
José Rodrigues sentiu pavor, um pavor tremendo, e correu para fora. Ia
juntar-se ao pessoal de Xavier e fazer sua retirada. Ia sumir. Nunca mais entraria
num quartel, nunca mais botaria uma farda no corpo. Deus me livre!
Na salinha de chão batido, com o telhado baixo quebrado de balas, na
semi-escuridão de uma candeia morre-não-morre posta no chão, o aloite
continuava, curto e terrível. Severo tomou o

250
refle, ia socá-lo em Hugo, mas a arma lhe escapa das mãos; aí Severo
abarca o pescoço de Hugo com as mãos ambas, sujiga-o contra a parede,
procurando asfixiá-lo.
Freitas Machado está por perto. Na Grota ele não quis matar o velho
desarmado e entregue e por isso o viviam humilhando, chamando-o de covarde
e de medroso. O momento de limpar sua honra era chegado. Na sua frente
estava Hugo Melo sujigado por Severo, com as mãos de ferro arrochando sua
garganta; Hugo estava completamente desarmado, enfraquecido pela fome e
pela agonia da espera da morte; Hugo não agüentaria Severo que, embora
ferido, era muito mais forte e muito mais habituado com lutas. Era uma covardia
matar Hugo naquelas condições, pois Severo o liquidaria num piscar de olhos.
Todavia, Freitas carecia de limpar seu nome, precisava de mostrar
coragem, precisava fazer jus, ao nome de soldado valente. Freitas se aproximou
e, num gesto rápido, meteu um tiro de Comblain no peito de Hugo, que
amoleceu nas mãos de Severo e se amontoou ali no chão batido da salinha
baixa, de paredes esburacads, feito um boneco de trapo.
— Vamos embora, vamos embora! — comandou Severo fugindo.
No chão, Hugo estertorava, gemendo:
— Gente, um copo d’água!
— Vamos depressa — comandava o alferes.
— Está doendo muito, acaba de me matar!
No quartel de Xavier, onde se refugiou, Severo despachou alguns soldados
para fazer fogo cerrado no setor que ficava para os lados de Natividade. Os
soldados foram e voltaram com boas novas: o setor estava limpo de jagunços.
Aí principiou a fuga. Soldados, mulheres e paisanos saíam em pequenos
grupos, a pequenos intervalos.
”Cada qual que se defendesse. Deveriam juntar-se em Natividade” —
essas eram as ordens.
Na madrugada, os homens partiam derrotados e exaustos. Apolinário,
Salustiano, Freitas Machado, Zé Rodrigues e Adelino haviam sido escalados
para ficar resistindo ao fogo, a fim de permitir que os demais fugissem. Deveriam
atirar para iludir os jagunços e não deixá-los perceber a retirada.
Soldados e paisanos partiam tristes, uns até choravam. Ape-

251

sar da falta de comando, da munição má, apesar das armas defeituosas,


queriam resistir, queriam escorar a jagunçama. Também Cabo Ferreirinha
esperava para fugir. Felizmente não sofrerá nada e estava com vida. Ferreirinha
parou de atirar e voltou o rosto para o meio da salinha.
Ali estava estendido o Soldado Baianinho, delirando de febre. O ferimento
arruinara muito, com a gangrena tomando o corpo. Não tardaria a morrer. —
Pensando nisto Ferreirinha se condoeu, largou a arma por alguns instantes e
veio passar um pouco de água nos lábios gretados do praça estendido na
esteira.
Baianinho dizia coisas desconexas, não tardaria a morrer. Uma tristeza
imensa se apoderou de Ferreirinha. Logo aquele homem que nada tinha com o
barulho é que ia morrer! Ferreirinha ali estava para ganhar dinheiro e fazer seu
curso de medicina no Rio; Tonhá ali estava para furtar; Enéias viera para vingar
os parentes mortos por Abílio Batata; Mendes de Assis e Severo vieram no
exercício da profissão; Artur Melo combatia para conservar o direito exclusivo de
oprimir e explorar o próximo; Vicente Lemes e Valério Ferreira lutavam porque
era impossível viver sem o mínimo de liberdade que permitisse o exercício da
profissão de comerciante, lavrador, criador ou burocrata. Fomentando a luta e
tirando partido dela, estavam os coronéis que dominavam a política do Estado
de Goiás, homens do mesmo estofo dos Melos, com seus mesmo hábitos e
costumes, homens que criaram e aqueceram até ontem, no seio, os Melos e que
hoje os combatiam com o mesmo impulso que um animal morde e escoiceia o
seu igual de tropa na beira do cocho de milho. Contudo, alguma coisa de bom ia
restar. O sangue ingênuo e heróico não correria inutilmente. Depois de tudo
aquilo, Duro não seria o mesmo, tinha que transformar-se, tinha que modificar-
se.
No chão Baianinho estrebuchava, contorcia-se em espasmos. Pobre
camarada! Tudo que desejava do mundo era caçar, pescar, viver livre, com suas
ínfimas e humildes necessidades. Queria caçar pacas e caititus, antas e
queixadas. Se tivesse uma espingarda, bem; se não tivesse, sabia armar
mundéus e arapucas. Essa, a grande ambição de Baianinho. Muito lutara
naquela batalha, porque depois dela teria resgatado a conta do Coronel Batista
e tomar-se-ia um caçador, vivendo pelos matos e pelos campos, livre como o
vento de agosto, livre como a água da chuva.

252
— ’Bora, pessoal! — gritava Xavier. — Não tem mais ninguém na Vila. Nós
é os derradeiro! — Em tomo de Baianinho os soldados vacilavam. Não era
possível deixar ali aquele homem agonizante. Os jagunços entrariam no
povoado tão logo eles saíssem e acabariam de matar o pobre.
— ’Bora que a jagunçada num tarda! — Xavier ignorava o problema do
moribundo. Agora todos os soldados estavam em volta do corpo magricela de
Baianinho, que agonizava. As falripas de barba e bigode lhe davam um ar de
roceiro, de queijeiro, um ar pacífico e manso de vaqueiro ou enxadeiro.
— Tadinho! Queria era caçar seus bichos...
— Debandar, debandar! — E o alferes empurrava já o pessoal com o cano
de sua arma.
Freitas Machado não teve dúvidas: tomou o corpo quase sem vida de
Baianinho, jogou às costas e ajudado de Salustiano e Ferreirinha que levavam
as armas, saíram correndo.
Deviam aproveitar o resto da noite para romper o cerco e deixar o povoado.
Eram os derradeiros homens. No escuro, lá se foram eles. Atingiram o córrego
com o tiroteio roncando pelos lados. Estão atirando no vento — pensava
Ferreirinha.
Do outro lado do córrego, estendia-se uma cerca de arame. A passagem aí
requeria cuidados, de um lado e de outro havia trincheiras de inimigos. Para
passar, Freitas Machado depôs o corpo do soldado no capim molhado e ia
arrastá-lo para o outro lado. Porém notou que Baianinho já era defunto. Freitas
estava sozinho: Salustiano e Ferreirinha tinham se adiantado. Por um segundo,
o soldado vacilou levá-lo ou deixá-lo? Já era um cadáver!
— Gente fugindo! — gritaram de dentro da noite. Uma saraivada de balas
zunia por ali. De todos os lados partiam tiros e mais tiros, sublinhados por gritos
e xingatório.
Freitas Machado saiu de gatinhas para o rumo em que supunha iam os
companheiros.
A CASA da velha Aninha continuava como Vicente deixara: a varanda
vazia, as portas escancaradas. Do quarto grande do fundo da varanda vinha
choro de menino. Vicente chegou à porta e bateu. Tudo se apagou, morreu, o
menino silenciou. Vicente tomou a bater e anunciou-se:

253
— Lina, sou eu, Vicente Lemes, pode abrir.
A porta se abriu e Vicente se viu rodeado de vintena de mãos, de olhos e
de perguntas.
— Você voltou?
— Quede os outros?
— Ai, meu Deus do céu! Os jagunços não deixam sair. Lina chorava
agarrada a Vicente, a quem implorava que saísse e saísse imediatamente:
— Ouça, quase que não atiram. No povoado ninguém resiste. Artur entra
já-já. Vai embora, homem de Deus!
De riba de seu tatre alto, a voz de Aninha dominava a leréia:
— Vicente, venha cá! — Era a voz que comandava as negras e a
criadagem. Voz que não admitia réplica, voz forte e cheia, partida de cima do
catre, onde a velha conservava seu vasto corpanzil. A voz era calma, de uma
terrível energia:
— Volta já-já. Tu não é nenhum menino, Vicente! Vicente dizia não ter
coragem de largar a família.
— Que família, senhor! Só quem conhece sua mulher é Artur e esse daí eu
dou volta nele. Ninguém precisa saber que Lina e a filha ficaram aqui...
Já refeito, Vicente tomava tenência e respondia com macheza:
— Não saio daqui, minha tia. Fugir é covardia! — Havia-se erguido contra
Artur, havia tomado armas, morreria na trincheira defendendo seus amigos e
correligionários. Outros não tinham morrido na defesade uma causa que não
lhes pertencia? Muitos jagunços não estavam morrendo bestamente,
ingenuamente, na defesa dos próprios algozes, na defesa do próprio Artur Melo
que os oprimia e matava? — Pois eu também morrerei!
— Então vai morrer pra lá — dizia a velha num muxoxo. — Não fique
dentro de minha casa, que vai atrair par cá os jagunços e os tiros deles. Vai pra
onde você quiser, mas aqui num fica.
Exclamações de espanto erguiam-se entre as mulheres. Provocava-as a
chegada de Júlio de Aquino, Ângelo e Saturnino.
Ao notarem no pasto a falta de Vicente, logo atinaram que ele tinha
regressado, e agora ali estavam. Esses homens não discutiam nem falavam.
Como Vicente exigisse deles que se retirassem do povoado, responderam
resolutantemente:
— Vai na frente, nós vamos atrás.

254
Dito isto, pegaram a fazer buracos nas paredes da casa, a fim de iniciarem
a defesa. Era clara a intenção de não saírem.
Em tomo de Vicente, o mulherio discutia. A presença dos homens no
povoado era um perigo, como as convencera a velha Aninha. Se Artur chegasse
e não topasse um só inimigo, pronto. Estaria de peito lavado, não tinha sobre
quem descarregar sua ira e cantaria de alegria. O tempo seria pouco para
festejar a vitória. Mas se topasse Vicente, Júlio de Aquino, Ângelo ou qualquer
outro, aí não havia rogo de Aninha que o fizesse retroceder. Mataria Vicente do
mesmo jeito que os prisioneiros morreram. E não pararia aí, mataria também as
mulheres e até as crianças.
E a jagunçada? Quem poderia impedir um jagunço de fazer mal a um dos
homens, a alguma das mulheres?
— Na minha casa não fica — esbravejava a velha de seu catre. — Passa
pra fora e é já!
A velha Benedita também exigia que Vicente partisse. A sogra estava
aterrorizada e procurava apoio e proteção na prima Aninha. Agora, lá estava ela
ao lado da gordona, penteando-lhe os cabelos, alisando-os. Pouco antes,
Vicente a vira trazendo uma chávena de chá para Aninha.
Vicente sentiu que a sogra Benedita se punha contra ele. Recebeu-o de
cara feia e lhe dizia:
— Vai-te embora, Vicente. Vocês não deram conta do recado e ainda
querem nos encalacrar! — Havia um ar de remoque na cara da velha.
Ora, veja só! Logo Dona Benedita, ela que enxergava em Vicente a pessoa
capaz de quebrar o topete de Artur, daqueles piauienses de uma figa, como dizia
a sogra.
Também Lina, tão doce, tão suave, até Lina Vicente observou que estava
de má cara e lhe disse num tom áspero que ele devia sair, que a presença dele
ia pôr em perigo a vida de sua filha.
Quando Vicente deu por fé, estava novamente diante da pedra branca.
— Que me deixassem sentar ali por alguns instantes, pedia ele. Não
voltaria mais ao povoado. Queria analisar a situação, queria assentar os
pensamentos que batucavam no cérebro.
Ao seu redor assentaram-se Júlio, Saturnino e Ângelo. A chuva caía
impertinentemente. Não era uma chuva, mas uma garoa

255
fria e branca, que se transformava em neblina, com a saparia roncando,
com uns últimos pirilampos piscando sua humildade luminosa na erva molhada.
O ferido não gemia. Quem seria aquele que tivera coragem de dar a vida por
uma causa que Vicente defendera, que Vicente criara e que abandonva
covardemente, como se fosse um Enéias? Devia ser um pobre vaqueiro igual a
Casemiro, Belisário, Norato ou qualquer outro, morrendo na defesa de seu
algoz, o Coronel Melo.
E as palavras da sogra Benedita! Até Lina, tão sem ódio, tão cordata, até
Lina o ofendera. Vicente nunca se lembrava de ter visto no semblante de Lina
um ar de tão grande enfado, um ar de tão profundo desgosto pela presença de
Vicente na casa. Lina que havia poucas horas Vicente ainda a tinha em seus
braços, rendida de amor; assustada, mas entregue. Era a derrota. Um homem
derrotado, não lhe cabia nenhuma razão, nenhum direito!
No de repente, os tiros aumentaram, respondendo à corneta de Severo
que pegou a tocar. Toque quase morto na distância e na neblina, mas que
crescia, crescia como se caminhasse para Vicente, como se o estivesse
convocando a não fugir, a resistir. A seguir, porém, foi-se amortecendo, foi
sumindo. Debalde Vicente esvurmava o silêncio com os ouvidos, mas o som
falecera por completo, ficando a cegueira da branquidão do nevoeiro como um
fantasma, como uma coisa imponderável e de sonho.
Vicente tinha os pés frios e a roupa molhada. Ali estava para pensar, mas
não conseguia encadear os pensamentos, diante do atropelo das emoções. Ao
redor, Ângelo, Saturnino e Júlio tinham o rosto voltado para o chão, para os
ramos rasteiros que principiavam a ser clareados pela manhã que
desabrochava.
Da pedra branca vinha o soluço de Vicente Lemes, um soluço fundo e
sentido, feito soluço de criança. Júlio sentia que se fitasse o semblante de
Vicente ou de qualquer dos companheiros naquele instante estaria cometendo
uma ação vil, uma ação impiedosa. Júlio tinha o rosto voltado para o chão, o
chão amigo e fraterno, chão empapado que se entremostrava entremeio os
capinzinhos e ramos anônimos: um chão branco, areento, onde a água da chuva
corria que nem lágrima, chão que a madrugada vinha alumiando como um
sorriso na cara da criança que ainda chora.
Vicente já não soluçava. Do outro lado, o pipocar prosseguia. Da grota veio
um engrolo, ou seria um medroso grito de sapo?

256
Quando Júlio de Aquino ergueu os olhos ardentes de sono, na madrugada
neblinosa, o vulto de Vicente ia rompendo por entre os ramos de lobeira, lixeira e
espinho-agulha. Ia meio agachado, elástico feito um gato, na mão sua Browning
de cinco tiros. Num átimo, Júlio de Aquino percebeu que ninguém mais deteria
Vicente. Se um jagunço saltasse à sua frente, ele o derrubaria para defender a
vida, para defender o direito de continuar vivendo.
DURO só tinha aquelas mulheres da casa da velha Aninha, mas essas
mesmas minguavam. A pretinha Tifuque fugira e com ela outras criadas. A velha
abria os peitos, dando seus gritos, a que ninguém respondia. Na lida da casa
ajudavam Amélia, Lina e a velha Benedita, na falta de gente para fazer os
serviços costumeiros.
— Gente ingrata — reclamava Aninha. — Tinha de um tudo e foi sópegar
uma folguinha, abriu o pala no mundo! Adonde vão encontrar o trato que tinham
aqui?
Camila, uma preta velha, filha de escravos, multiplicava-se para atender à
velha, indo e vindo pela casa no seu passo manco, os pés repletos de cravos.
Camila não abandonava a velha e a servia com carinho, a que Aninha respondia
com gritos e maus-tratos. Para Aninha, servir era uma obrigação apenas, da
preta.
Pelos arredores, o povo fugia, caminhando de a pé, levando aquilo que
podia, desviando-se dos jagunços que não se sabia nunca por onde andavam
escondidos.
O povoado calava-se, com a chuva molhando tudo, as grotas
resmungando de cheias, as almas-de-gato novamente pelas moitas cantando
seus gritos entojados; no córrego do Godinho as saracuras quebravam seus
potes, sem ninguém para incomodá-las. Artur Melo, Abílio Batata, Roberto
Dorado, Miguel Umbuzeiro, Passarinho, Pernambuco não tinham coragem de
entrar no povoado. Imaginavam que podia tratar-se de alguma cilada. Não fora
assim em São Marcelo? Por três dias a Vila quieta feito um defunto: sem uma
fumacinha no telhado, sem um tiro. Aí os sitiantes resolveram entrar. No Largo,
olha o berreiro, olha o tiroteio. Quando os jagunços quiseram retroceder, era
tarde. Estavam cercados, as saídas tomadas: teve jagunço morto a pau que
nem tracajá.
Nada de pressa. Vez por outra um tirinho.

257
Só em casa da velha Aninha havia gente. A chuva era aquela cruviana
incessante. Os bichos tomavam conta da Vila. O vento soprava trazendo a
fedentina dos defuntos, com os cachorros comendo o bolo no buraco do muro,
com os urubus naqueles pulos feios, tentando levantar as telhas do sobrado. No
antigo quartel de Mendes, diziam, tinha dois soldados mortos.
Pelos fundos dos quintais e na grotinha os homens mortos inchavam, iam
ficando empanzinados, arrebentavam os cinturões com um estouro fofo, como
se fosse jenipapo caindo. As varejeiras eram tantas que ninguém suportava. Os
ovos surgiam em cachos brancos nas ripas, nos caibros, nas telhas, caindo no
chão, nas panelas de comida, nos pratos. A casa estava suja, mais suja do que
chiqueiro, sem gente para assear, com os meninos obrando, com os panos
molhados de urina e sujos de cocô sem ser lavados, empestando o ambiente
com sua catinga.
Brasica, coitadinha, pegou a feder no quarto. Então a velha chamou Pedro-
Papo e mandou enterrar a menina junto à porta da cozinha, numa cova rasa,
feito um bicho de casa, um sabiá ou periquito.
Pedro-Papo era um dos dois homens adultos existentes no povoado. Não
quisera fugir. Era gente de Artur Melo. Viera para o povoado trazido por Severo,
que o prendeu numa de suas batidas pelo acampamento de Artur.
Outro que existia era Afonso Quinto. Na casa da velha Benedita ele
apodrecia, com as pernas fedendo, morrendo aos poucos de fraqueza. Estava
ali sozinho, roendo um taco de carne-seca com farinha de mandioca, que os
homens de Ângelo lhe deixaram ao fugir, bebendo água da chuva. Talvez
pudesse chegar até a casa da velha Aninha, mas cadê coragem, cadê ânimo?
Arrastando-se daquele jeito, na travessia do Largo os jagunços dariam cabo de
seu canastro.
Pelas macegas e bibocas dos arredores, o povo fugia ante a sebaça que
principiava. Freitas Machado, que levava Baianinho, o deixara morto debaixo do
arame. Lá ficou ele de olhos semi-abertos para o céu que amava, a cabeça no
capim verde que alimentava os bichinhos do mato que tanto o intrigavam; cerca,
deslizava o córrego com seus peixes, suas pacas, com os mistérios que davam
tanto encanto ao pobre Baianinho.

258
Pelo cerrado encharcado, os soldados fugiam. Só de tarde é que vieram a
se encontrar Ferreirinha, Freitas Machado e Salustiano. Embora sentissem
fome, não paravam para comer. Era perigoso. Não souberam do caso do
Soldado José Flores? Saiu de noite do povoado, ganhou o cerrado, mas
desorientou-se e ficou rondando em tomo das casas. Nessa andança topou com
Marcelino de Aguiar, gente de Artur, homem brabo como as armas.
No escuro, Marcelino e Flores se bateram de punhal, até que Marcelino foi
abatido. Para ensiná-lo, Flores roletou as munhecas e cortou-lhe os jarretes,
largando-o por ali. O miserável foi encontrado por uma patrulha de jagunços,
que saiu no encalço de José Flores. Deram com o soldado dormindo debaixo de
uma latada de maracujá e o mataram. Dizem que foi picado miudinho, como se
bate carne picadinha. Era o exemplo. Nada de descuidos.
Pelo cerrado gotejante, molhados até os ossos, cansados e famintos, os
soldados continuavam se arrastando, arrastando as armas. De vez em quando,
atiravam à boca um bolo de farinha de mandioca que estava molhada,
parecendo cataplasma. Cabeça baixa, Ferreirinha perdia-se em sonhos.
Lembrava Goiás, a namorada, a Banda da Força Pública em frente à
Assembléia Legislativa executando as peças.

”Margarida vai à fonte,


Margarida vai à fonte...”

Seria a Banda ou seria Imbaúba com sua voz de mulato? Na sua frente,
Salustiano e Freitas Machado marchavam. Eram homens simples, ignorantes,
do tipo de Baianinho, do tipo de centenas de jagunços, homens que possuíam
apenas a força dos braços, a força do coração.

”Margarida vai à fonte,


Margarida vai à fonte,
Vai encher a cantarinha.
Brotam lírios pelos montes,
Margarida vai à fonte,
Vai à fonte e vem sozinha”.

259
Seria a Banda ou seria Imbaúba cantando? Na sua frente Salustiano
recitava a oração do Santo Sepulcro de Nosso Senhor Jesus Cristo e Freitas
Machado ouvia compungido.

ERA o SERTÃO vasto lamaçal. com o clarear do dia, a chuva fina e


insistente transformou-se em neblina, neblina de prata, escondendo os morros
altos”.
”Neblina na serra, chuva na terra” — pensou Vicente, que aí notou que
estava encharcado, molhado da cabeça aos pés.
Já haviam descambado a serra, rompido mais de légua, chegavam às
margens do córrego Gameleira. Não era o rio manso e cristalino de costume.
Rolava águas barrentas, espumejando no meio da garrancheira. Atravessaram-
no com água pelo peito. Do outro lado, estendia-se a mata ribeirinha,
transformada em tijuco. O pé fincava-se no barro negro e peganhento, quando
saía, lá ficava a botina. A gente tirava a botina da lama, calçava, dava novo
passo e novamente os pés se prendiam no barro.
Passada a mata, estava a fazenda Santo Antônio. Vicente chegou aí com o
sol alto, umas onze horas mais ou menos, mas o diabo do solzinho
desenxabido, frio, lançou os raios sifilíticos e logo sumiu submerso nas nuvens
que se desfizeram em chuva.
A fazenda parecia que estava em festa, com o pessoal da redondeza ali
concentrado. O dono, Joaquim da Silva, era abastado, amigo de Vicente, a
quem recebeu com muitos agrados. Na sala, havia uma rede e Vicente se
assentou imediatamente.
— Estamos de arribada, Seu Joaquim — explicou Vicente. Queremos que
arranje para nós animais arreados, dinheiro e mantimentos.
Joaquim já sabia que Vicente e os companheiros fugiam. Por sua casa,
desde dois dias, passavam fugitivos, levando-lhe os animais. Agora mesmo,
pelos currais e pastos, dezenas de pessoas movimentavam-se pegando os
derradeiros jumentos para seguir viagem.
— Tudo que é meu está à disposição de vocês — disse o sitiante, que
meteu a mão na algibeira da calça, tirou um pacote de notas e deu três contos
de réis a Vicente. — Mantimento também está aí. Pegue à vontade. O que eu
não tenho é animal. Levaram tudo.

260
Assim dizendo, Joaquim se despediu. Também ia de arribada, pois o
pessoal de Artur não tardaria.
Vicente quis partir, mas quede ânimo? O corpo doía, a cabeça zunia. Se
não havia segurança completa ali, se os jagunços podiam surgir a qualquer
momento, em compensação não havia o estalar dos tiros, o quebrar das telhas,
o alarido dos bandidos.
Uma moleza morna tomou os nervos de Vicente, em cujos ouvidos foram
morrendo os gritos dos homens que partiam pela estrada. Ele meteu a mão no
bolso e segurou os três contos de réis, que lhe deram algum conforto.
Agora, estava bem melhor. O que não podia era sair para terras estranhas
sem um níquel, como ia. Que esquecimento! Na meia madorna, Vicente se
lembrava. Foi na véspera do ataque. Tomou dos valores que possuía: moedas
de ouro e prata, ouro e prata lavrados, brilhantes, anéis, relógio de ouro, dinheiro
em papel, meteu dentro de uma lata, que botou dentro de um vidro de boca
larga. Na despensa da casa da sogra, retirou uns dois tijolos, fez o buraco,
enterrou tudo.
Para testemunhar e para que não se perdesse em caso de sua morte, Lina
e Alice assistiam. Reservou para si apenas seiscentos mil-réis, que meteu no
bolso.
Na hora da fuga, de madrugada, a sogra lembrou que seria bom trocar de
roupa.
— com essa roupa branca, dá muito na vista. Ponha o terno de casimira
escuro. É mais quente...
Vicente trocou de roupa, mas na calça branca ficaram os seiscentos mil-
réis.
— Acorde, homem, vamos embora! — Júlio de Aquino sacudia Vicente
Lemes, pondo-o de pé, exigindo dele que acordasse e andasse. Vicente erguia-
se tonto, o corpo dolorido, os olhos ardentes, o sono pesando nas pálpebras que
não se abriam. Os companheiros saíram arrastando-o até que voltou a si.
Deixavam a fazenda e se dirigiam para a fazenda Olhos-d’Água, de Vicente
Lemes mesmo, onde talvez encontrassem algum recurso. Olhos-d’Água não
ficava à margem da estrada salineira como Santo Antônio. Ficava retirada e de
lá certamente os fugitivos não teriam levado os animais.
Senão quando, tropéis de animais na estrada obrigaram os ho-

261
mens a se amoitarem. Mas o cavaleiro era gente amiga: Pedro Joca da
Silva, cunhado de Vicente Lemes.
— Ei, Pedro!
O homem sofreou o cavalo: — Que é isso? Vocês a pé por aqui?
A explicação foi rápida: — Iam de fugida. Os jagunços estavam fortíssimos.
Joca logo compreendeu a situação. Apeou-se, tirou o indispensável e deu o
cavalo, arreios e tudo para Vicente, que seguiu para Olhos-d’Água mais
confortavelmente. Nessa fazenda obtiveram animais, arreios, mantimentos. A
chuva não cessava e Vicente com os companheiros a tomavam de rijo, sem ao
menos um chapéu. Aí é que obtiveram chapéus e umas caroças para se
defenderem um pouco do aguaceiro.
— Apronte os animais, depressa! — gritava Júlio, nervoso, com o
camarada. Era preciso pressa. O rio Tabocas enchia muito, as chuvas ali
estavam dependuradas das nuvens, prontinhas para cair. Era preciso transpor o
Tabocas antes da enchente, senão ficariam presos de cá, sujeitos a serem
alcançados pelos jagunços.
— Gente chegando — avisou o camarada, que tratou de esconder-se na
saroba. Houve um corre-corre, mas logo se esclareceu. Quem chegava era o
Alferes Enéias com Nestório e Mané Vitô. Queriam animais para a viagem; mas
não havia. O restante da tropa o pessoal da fazenda ia fugir nele. O vaqueiro
não ficaria ali por dinheiro nenhum. Sabia que a região estava entregue ao
saque dos jagunços de Abílio Batata. Ia ser um segundo Pedro Afonso!
Enéias e os dois soldados já rompiam pela estrada enlameada. Azar deles
terem chegado a fazenda de propriedade de gente amiga. Se fosse de inimigo,
tomavam os cavalos à força. Enéias rompeu para os cabaceiros.
— Depressa, depressa — ordenava Júlio, tomado de pânico.
Os cavalos desferrados escorregavam na lama, metiam-se pelos buracos
de enxurrada. A tarde caía, feia, triste e fria, com nuvens grossas e negras
rondando por ali como bandos de urubus. Pela cabeceira do Tabocas, a chuva
caía. De cá se ouvia o estrondo da danada. Brevemente o aguaceiro chegava
para os viajantes, encharcando-os mais ainda. De tão molhados, os cavalos
fumegavam. No céu os bem-te-vis davam seus mergulhos, pegando as siriricas
que se erguiam dos cupins. Além, uns sapinhos cantavam numa nostalgia
terrível.

262
Vicente sentia na alma o peso da desgraça, sentia a dor dessa derrota,
dessa partida para um lugar ignorado. Como seria sua vida dali para diante?
Como seria o dia de amanhã? Ele nunca saíra do seu meio, da roda familiar, e
agora era como enfrentar o oceano largo numa pequena jangada. Teria que
reiniciar a vida, como se fosse um chegante, um baiano, um piauiense.
Na tarde fria e feia, a chuva continuava a cair. Que história mal contada
aquela de trovões para as bandas do Maranhão! Há-deo. O tempo só levantaria
com a entrada de outra lua!
Nisso, começaram a descer para o vale do rio, que era grande de caixa.
Desciam os contrafortes de pedras escalavradas, com os animais desferrados
escorregando a cada passo, à proporção que se aproximavam do leito, cujas
margens eram cobertas de mataria fechada e carrancuda.
Era escuro quando transpuseram o Tabocas, que principiava a pegar água.
Do outro lado, havia um grande lajedo, com pedras chatas, sobre as quais os
fugitivos acamparam. Embaixo, o rio arrastava seu dorso brilhante à luz mortiça
do crepúsculo, cheio de escuma, cheio de garranchos. A escuridão caía em
bloco, cegando tudo, como o gorgolejar das águas que subiam sempre.
Peados num furo de mato, perto do acampamento, os animais
resfolegávam alegremente, espojando-se no capim. Por riba das lajes, o pessoal
estendeu um liga, escorando as pontas com varas, e debaixo desse toldo,
resguardado do chuvisqueiro, acenderam uma fogueirinha, para assar um
pedaço de carne-seca. Mal, porém, pegou a carne a chiar, a chuva chegou
roncando feito um bando de queixadas, batendo nas árvores do mato e
tombando de rijo sobre o couro de boi: amolecendo-o, apagando a fogueira.
A escuridão era completa; o rio correndo embaixo aos gorgolejos: as águas
subiam e talvez o pessoal tivesse que mudar o pouso para não se ver arrastado.
No mato, pelo chão, os vagalumes, os caga-fogos dançavam seu bailado de
fantasmas, cortando os ares com seus lanhos de fogo. Envoltos em velhas
caroças trazidas de Olhos-d’Água, os homens ensopavam-se meticulosamente
pela chuva que enregelava.
E a chuva não cessava. Empós de uma pancada, quando esperavam
estiagem, já se ouvia o estalo de outra corrimaça de água pela mata; e
novamente a chuva caía como um lençol, fazendo o rio subir e gemer de cheio,
com paus e sujeira correndo pelo dor-

263
só empolado. Perto, os cavalos se mexiam. Os queixos tosavam o capim
tenro ritmadamente e vez por outra bufavam de alegria. Vicente cochilava, para
acordar sobressaltado, com receio dos jagunços, com medo de algum bicho,
com medo das águas que cresciam e gemiam ameaçadoramente.
Muito cedo, levantaram acampamento, mas logo tiveram que deter a
marcha. O córrego Cocos estava represado pelo Tabocas, formando uma lagoa.
Tinham que esperar clarear o dia, para localizar a pinguela por baixo das águas,
pela qual passariam, arrastando os animais a nado. Mal se acharam do outro
lado, ouviram bufar de cavalos. Deviam ser jagunços no encalço deles.
Meteram-se no mato, espantaram os cavalos para longe com arreios e tudo, e
entrincheiraram-se, esperando o chegante que não tardou a apear de lá e veio
localizar a pinguela submersa.
— Ora, veja quem é, Vicente.
— É o Pedro Joca de novo, gente.
Pedro Joca reuniu-se à comitiva e seguiram viagem. Lá pelas três horas,
na chapada, a chuva estiou e um sol brancacento iluminou a paisagem
molhadíssima, onde as poças d’água e os filetes de enxurrada punham reflexos
de espelho quebrado. Pedro Joca era tapejara sacudido e breve a comitiva
estava amarrando os cabrestos num rancho de palha levantado na beira do
caminho, para pouso de tropas.
Foi uma redenção. Apearam, deixaram os animais pastando desarreados,
nas peias, e entraram pra debaixo do agasalho. Aquilo até que imitava um
palácio, de conforto. Fizeram bom fogo, assaram mandioca, carne-seca e se
puseram a comer. Fazia vinte e quatro horas que não comiam nadinha dessa
vida e aquela mandioca dava sintoma de manjar fino de mesada de imperador.
Nos jiraus do rancho, Vicente e os companheiros dormiram sossegadamente,
depois de vestirem alguma roupa menos encharcada.

Tarde da noite, aportou ali um viajante. Júlio de Aquino era seu


conhecedor. Assistia no Duro e também ia de fugida.
Contou caso da morte do Flores, contou que pelas fazendas já tinha
principiado a sebaça, com bando de jagunços caçando Valério e Vicente, mode
eliminar. O homem contava que para trás a estrada dava imitação de estrada de
romaria; poder de soldado, mulheres com meninos, famílias inteiras fugindo, uns
de pé, ou-

264
tros de cavalo, todos molhados, varados de fome, amedrontados,
pisoteando lama que a chuva acrescentava a cada nova pancada.

Vicente encontrou deserta a cidade de Conceição. Os parentes que


moravam aí, em grande número, haviam seguido para a fazenda Titara, onde
estavam as famílias de Júlio de Aquino, Ângelo, Saturnino, Leão e José Lemes.
As poucas pessoas que estavam na rua, contavam horrores: Artur Melo entrara
no Duro e matara muita gente.
— Que mal pergunte, você sabe o nome de algumas dessas pessoas que
foram mortas? — perguntava Vicente, a quem aquela notícia amargurava. Havia
deixado lá mulher, filha, sogra, amigos.
O informante, entretanto, tinha uma noção vaga e errônea de tudo; mas
sabia de fonte segura que vinham jagunços no piso de Vicente Lemes e Valério
Ferreira. Esses dois deveriam ser mortos sumariamente.
No mesmo dia, Vicente e os companheiros seguiram para a fazenda Titara,
onde encontraram o cuidado e o carinho dos parentes. Sentiam no corpo a
delícia da roupa lavada e seca, comiam comida temperada e quente, bebiam um
café, tinham cama para dormir. Dolorosos eram os boatos. Quem teria sido
morto, no Duro? Teriam os jagunços prendido alguns de seus companheiros?
Tudo incertezas.
Conceição era lugar visado por Artur Melo, que sabia residir ali muitos
parentes de Vicente, os quais contribuíram decisivamente para a luta com
homens armados. As fazendas dos Lemes espalhadas pelos arredores com
muito gado, muita criação, muito mantimento, muita riqueza, eram presas
cobiçadas da jagunçada.
Por üa manhã, novamente a comitiva se pôs em marcha, constituída de
camaradas, cargueiros, levavam agasalhos, mantimentos. As mulheres, a
criadagem e os demais homens seguiriam para Natividade.
Dia morrendo, a comitiva de Vicente chegou ao rio Palmas, aboletando-se
no rancho de tropas, na margem. Enquanto preparavam o jantar, um camarada
foi chamar o passador, que morava um pouco para baixo. O rio Palmas,
volumoso e correntoso, es-

265
tava muito cheio, com a ramaria das árvores emergindo aqui e ali,
soturnamente, na noite que baixava.
— Naquele dia num podia trevessar ninguém não senhor — explicava o
passador — mode a barca que estava doutra banda. Mas no outro dia, em
cedinho, Toniquinho de Sá Veva trazia ela e aí, se o rio tivesse mais baixo, o
pessoal e podia passar... — diante disso, o recurso era pousar, mas nesse
Ínterim, Júlio de Aquino levantou uma dúvida:
— Será que não seria mais prudente pousar no mato?
Os boatos que chegavam não eram animadores. Um piquete de jagunços
saqueara um sítio a cinco léguas do porto. Ora, para quem viaja escoteiro, cinco
léguas são um pulo!
— Seguro morreu de velho — lembrou Ângelo.
— E ainda morreu — completou o arrieiro.
E assim pensando, o pessoal deixou o conforto do rancho para se internar
no mato, armando as redes nos pés de pau.
Embora não chovesse, a mata era só lama, com as árvores molhadas, tudo
pingando, tudo pegajento. Um luão bonito pendurou do céu, prateando a mata,
clareando o dorso do rio que parecia uma tacha de mercúrio. Em tomo das
redes as muriçocas tiniam sua música enfadonha, picando e ocupando os
homens, que não conseguiam pregar os olhos. Mesmo através da rede e da
coberta, as desgraçadas ferroavam. Puxa!

— GENTE batendo na porta, será? — interrogou a velha Aninha de riba do


catre.
Camila saiu por ali arrastando os pés cheios de cravos e com pouco prazo
voltava para dizer que era o Aleixo, camarada de Tozão. — E-vinha da parte do
Coronel Artur Melo.
— E nem num mandou entar, negra burra! Aleixo ficou ali junto da cama,
conversando.
— Quéde Anastácia?
Aleixo informou que ela estava com Artur e que já conhecia da morte do
marido e do filho: — Tá quaje dôidia, nha.
Aleixo indagou de tudo e por tudo, revirou as casas e lá se foi no burrinho
de cabeça baixa, por baixo do chapéu de couro, a repetição alceada no ombro,
os freios tinindo, os arreios ringindo

266

na sola molhada, as esporas graúdas tilintando e retinindo nos cachorros


de ferro.
O povoado persistia em completo abandono, a chuva molhando os
defuntos, que apodreciam por ali, com as varejeiras botando os cachos de ovos
brancos que caíam no chão a cada momento. Menino carecia de dormir de cara
tampada, em perigo de varejeira botar os ovos dentro do nariz ou nos ouvidos
do bichinho.
Nas grotas, a urubuzada brigava com os cachorros e com os porcos,
devorando os cadáveres. Um bando de urubus permanecia o dia inteiro
futucando o bico pelo vão das telhas do sobrado, por debaixo das portas, donde
saía o fedor dos mortos. No Largo, as almas-de-gato voltaram a piar horas
inteiras: — choó, choó, choó. Quando assoprava o vento, quando a chuva
açoitava com força, o povoado estremecia com o estrondo das portas e janelas
que se abriam e fechavam rangendo nos gonzos, estrondando nos batentes.
Um dia, afinal, os cascos estalaram no Largo, esporas retiniram pela casa,
cavalos soprando lá fora, e no quarto da velha Aninha entraram os três: Artur
Melo, Abílio Batata e Doutor Herculano Lima. Camila veio correndo com os
assentos, Amélia se abraçou com o marido, aos soluços, tanta pergunta pra lá e
pra cá.
Artur tomou a bênção da mãe e ficaram conversando com a velha. A seguir
vieram as apresentações. Doutor Herculano apresentava Batata à sua esposa, à
sogra, à Dona Aninha.
Do catre, de roupa sujíssima, a velha contava pormenores da luta,
enaltecendo a atuação de Vicente Lemes, preparando já o terreno para
futuramente exigir garantias para o pessoal do sobrinho. De seu tamborete, Artur
Melo xingava a velha Benedita Melo, sua sogra, a quem atribuía todos os males:
— Foi ela com seu despeito sem medida, com sua soberba que botou fogo
na fogueira.
No terno de linho branco, chapéu-de-panamá na cabeça, punhos duros e
lenço de seda no pescoço, Abílio Batata dava ordens, fazendo faiscar os
diamantes dos anéis. Mulheres e crianças seriam respeitadas. Contudo era bom
que elas não se mostrassem muito por enquanto. Até deviam de se esconder
nas camarinhas. Ele não podia responder por certos jagunços, por certos
amigos e parentes das vítimas do sobrado...
Aí, os homens se retiraram, a ferragem dos freios e dos estri-

267
bos e das esporas retilintaram, os cascos ferrados batucaram nas lajes.
Ficou um cheiro de cavalo suado e um cachorro cansado, babento, resfolegando
tal e qual um fole, caçando ninguém sabe o que pelos cômodos da casa, cheira
um e cheira outro. No quarto da velha Aninha continuaram as mulheres como
prisioneiras, como se o povoado ainda estivesse sitiado.
Até a elas novas notícias chegavam tão alarmantes quanto as do tempo do
ataque. Primeiro foi a notícia da morte de Afonso Quinto. Pegaram o pobre, que
estava inchado ver uma pipa, esperando a morte a qualquer momento, e lá
foram com ele pulando numa perna só, até o Beco da Fonte. Aí os tiros
reboaram, acabando com o restinho de vida do desinfeliz.
No quarto, a velha botou a mão na cabeça:
— Chega de morte, gente. — E virando-se para Camila, mandou-a que
fosse buscar Artur Melo, seu filho. Se Tifuque estivesse ali, a pretinha é que teria
ido chamar, mas ela devia de estar pelas estradas, em companhia do tal soldado
que vivia pajeando ela.
Artur chegou e a velha esbravejou:
— Carecia de esbarrar com tanta morte. Aquilo era um pecado muito
grande. Eles estavam tentando a Deus e procurando provocar a ira de Nosso
Senhor em riba de suas cabeças.
Mas quem disse que Artur podia fazer alguma coisa? Quem mandava era
Abílio Batata, quem deliberava era Roberto Dorado e para esses o choro da
velha Aninha era mesmo que nada. Valia tanto, como valeram os rogos de
Anastácia, de Doutor Herculano ou de outros.
Lá se foi Artur Melo sacudindo as esporonas pelas tábuas da varanda, a
arma entufando o paletó dessa banda de cá. E Camila já voltou contando outra
história: Pedro-Papo estava amarrado num pau, na beira do córrego, com os
meninos se divertindo em lhe furar o papo com faca, para ver que é que
continha.
Pedro-Papo era considerado traidor. Por fim, deram-lhe um tiro na barriga,
deixando-o morrer aos tiquinhos.
Os defuntos do sobrado e o cadáver de Hugo Melo foram deitados numa
carroça e enterrados numa cova comum perto da povoação. Os jagunços que
apodreciam pelas grotas, esses foram enterrados por ali mesmo. Na maioria,
esses defuntos eram vaqueiros. Na hora do ataque, foram embebedados e
tangidos na frente pelos jagunços, que vinham atrás os ameaçando. Para os
vaquei-

268
ros não existia nem sepultura, com coisa que não fossem gente batizada e
que não soubesse rezar um creindeuspadre. Também os soldados, os cachorros
e urubus comeram.
Pela região, os piquetes de jagunços vasculhavam as fazendas, os
ranchos, os sítios, arrebanhando o gado, tangendo-o para Formosa do Rio Preto
e São Marcelo. Por adonde passavam, levavam tudo: mantimento, utensílios,
armas, tudo, tudo. Se alguém tentava defender seus teres, era morto.
Vez por outra, um tiroteio, a notícia de uma resistência.
Passaram as semanas, os meses, anos se passariam com a jagunçada na
sebaça, saqueando, matando, violentando. A miséria caiu sobre a região, onde
só podia viver quem possuísse seu bando armado.
Cangaceiro proliferou que nem roduleiro em capoeira. Surgiram homens
terríveis, como Abade, Piauí, João Rocha, Aldo Borges que fugira da cadeia de
Uberaba, e muitos outros. Debalde a polícia de Goiás, Bahia, Maranhão e Piauí
escorraçava matava e perseguia sem trégua os bandidos que desapareciam
aqui para surgir ali com apoio de chefes políticos e coronéis locais. Ei, a sebaça!
A MADRUGADA azulava, calma e neblinosa. O Palma era aquele monstro
imenso, rolando as águas soturnas e espumarentas, com o dorso empolado de
garranchos e paus imensos derivando. Toniquinho trouxera a canoa, mas não
aconselhava travessia. Esperar mais tempo, porém, era impossível para os
fugitivos. Um tropeiro, conhecido de Ângelo, chegou contando que os jagunços
evinham de rota batida para o porto.
— É levar menos coisa possível — recomendou Júlio de Aquino.
Nas mãos do camarada que ficou de cá, deixariam os animais, a carga
quase toda, roupa e mantimentos. Fariam a travessia só daquilo que fosse
mesmo indispensável: numa bruaca, uma pouca de farinha, arroz, toucinho,
rapadura, um arreio e um burro, aquele em que vinha Vicente, bicho forte e
espirituoso.
Assim arranjada a velha e pesada canoa, com o burro amarrado pelo
látego do cabresto, para segui-la a nado, o passador pegou a remar. Foram
subindo o rio, beiradeando a margem, desviando-se da correnteza, encolhendo-
se sob os ramos que pendiam

269
pró riba das águas sujas e paradas. Foram, foram, até muito encima, e aí
enfrentaram o largo. O remo comeu duro, mas a correnteza do meio do rio
agarrou essa canoa, fez a bicha rodopiar e a foi levando de bubuia que nem
uma bala.
— Segura, gente, upa!
A canoa ia aos pinotes, ameaçando virar, metendo na água ora a proa, ora
a popa, fazendo água. Agarrados à borda, os passageiros nem piavam, de
medo, vendo a morte diante do nariz. De lá, o canoeiro metia o remo mas
mesmo que nada. A bicha ia aos boléus, pegando água que era um deus-nos-
acuda.
— Carecendo de aliviar a canoa — ponderou o remeiro. Imediatamente
Ângelo atirou ao rio os arreios e a bruaca de mantimentos. Nessa hora, já o
burro arrebentava o cabo de cabresto, batia as patas por ali, sumia-se, tornava a
aparecer soprando como se visse assombração, para mergulhar de uma vez nas
águas turbilhonantes.
— Lá se foi o burro!
Súbito, a canoa moderou a marcha, principiando a descrever grandes
círculos:
— É o rebojo — informou o passador, numa voz apagada pela canseira e
pelo medo. Seus músculos retesavam-se no esforço de manejar o remo, corn o
suor escorrendo pelo peito e pela nuca, dando-lhe um brilho pegajoso, como se
o tivesem besuntado de azeite.
Naquele ponto do rio, tudo rodopiava, como um imenso carrossel. Galhos,
ciscos, garranchos, escuma. No centro, vez por outra, as águas se abriam numa
garganta imensa, que dava um estalo imitando um beijo gigantesco, fechava-se,
para de novo abrir-se noutro beijo. De cá, o canoeiro metia o remo como um
louco, o suor correndo pela cabeça e pelo fio do lombo. Era preciso safar-se
logo. Quanto mais a canoa se internasse no redemunho, pior.
Dentro, Vicente, Ângelo e Júlio de Aquino nada faziam, petrificados, os
músculos doendo da contração de se agarrarem à borda. Seguiam corn a vista
os giros cada vez mais velozes de um velho tronco colhido pelo rebojo. Por fim,
o velho tronco ergueu-se como se fosse saltar, pôs-se de pé e foi tragado pela
garganta das águas: desapareceu, acabou-se. Iria surgir umas centenas de
metros abaixo. ”Este também seria o destino da canoa” — pensava

270
Vicente, ”era questão de uns minutos a mais. corn a diferença que nesse
percurso por baixo das águas nenhum ser vivo resistiria!’
— Uf! — fez o barqueiro, abandonando o remo dentro da embarcação e
deixando-se tombar no fundo da canoa, como um fardo, arquejante e rebrilhante
de suor. Vicente, Ângelo e Júlio trocaram entre si um olhar de horror e de
espanto. ”Será que o remador esmorecera reconhecendo a inutilidade de
qualquer esforço? Será que se arrebentou de tanto lutar? Ninguém sabia remar,
nem dava conta! O recurso era meter a Browning nos ouvidos do desgraçado do
remeiro e obrigá-lo a retomar o remo. Iam lá se entregar à morte como um
passarinho!”
— Uai, quê isso? Num rema, só? — interrogava Ângelo.
— Rurum curuchou — roncou de lá o passador no meio da suadeira, da
baba que escorria por entre a barba e a bigodeira crescida.
— Hem, como é? Rema ou não rema?
— Tem perigo mais não — gemeu o canoeiro bufando.
— Num tem perigo, hem? — Uai, mas porque que não tem mais perigo?
O homem não tinha nem força nem ânimo para explicar nada, afrontado ali
no fundo da canoa, o peito subindo e descendo, a cabeleira saranhada
empastada de suor, as narinas palpitantes no meio do bigode e da barba.
Na verdade, reparando melhor, Vicente via que o barco ia calmamente
escorregando nas águas sujas e espumarentas, beiradeando a margem, de
onde emergiam as copas de coqueiros e outras árvores. Calmamente ia a
canoa, ora parando, esbarrando num pau, numa fronde, ora rodando. Lá ia ela,
já livre do funil. Da margem saiu um bater forte de asas e uns grasnados: dois
patos brabos levantaram o vôo pesado e lá se foram rio abaixo, grasnando.
Com pouco, o barqueiro reanimou-se, tomou o remo, meteu o danado corn
raiva na água, e em curtas remadas atirou a embarcação num ponto onde
puderam saltar.
Ali o canoeiro explicava que haviam descido abaixo do porto bem umas
quatro léguas, que o rebojo é três léguas e coisa mais prodebaixo do porto, uai!
— Então, vamos voltar, vamos subir o rio — resolveu Vicente. — O que
não podemos é ficar parados aqui neste deserto, sem nada para comer, sem
nenhum agasalho!

271
Por esse tempo, a chuva voltava a cair. Desde cedo que o céu estava
carregado, cinzento, baixo, mas sem chuva. Agora ela tombava e tombava com
vontade, fazendo o rio ainda mais soturno, mais ameaçador, com um tom
escuroso, uns gemidos cavernosos que metiam medo. De seu lugar, o barqueiro
engrolava seus ”quer dizer”, ”num vê que”, ”a-mó-quê” mas no fim Vicente
entendeu que para subir o rio de canoa era obra para dois dias ou mais. Chegar
ao porto por terra exigia um percurso de outros tantos dias, num vê que carecia
de fazer um arco, afastando-se muito da margem, que estava alagada... Esperar
abaixar as águas era esperar alguns meses.
— Temos que tomar uma deliberação qualquer — afirmava Ângelo. — Não
temos comida, não temos abrigo de espécie alguma, e essa chuva que não
cessa.
— ’Cês pensa, que a gente já volta — assim dizendo o barqueiro foi para
trás de umas moitas aliviar os intestinos maltratados tão duramente com as
emoções da travessia. Quando voltou, trazia uma idéia. Mais pra baixo, umas
quatro léguas, retirado do rio também coisa de uma légua, morava o vaqueiro
Brasilino de Araújo, casado com a Etelvininha da velha Liduína, aquela que
morou em Conceição e tinha uma ferida braba pró riba do beiço de riba.
”Liduína, Liduína? Quem seria essa, com ferida braba?” — pensava
Vicente.
— Nossa prima — recordava-se de lá Júlio de Aquino. — É a Vivinha do tio
Joca.
— Ah, meu Deus do céu! Quando é que ia lembrar! — Vicente exultava.
Entraram novamente na canoa e remaram, remaram, saltaram lá num
ponto mais enxuto, arrastaram a canoa para o seco, amarraram e se meteram
pela mata enlameada, cheia d’água. Os córregos e regatos que afluíam para o
rio estavam represados e cheios de meter medo, obrigando os homens a dar
voltas e mais voltas. Perigo eram bichos. Nesse tempo sucuri fica alvoroçado,
cobra sai da loca.
Pela boca da noite, chegaram ao rancho do vaqueiro. A chuva caía e era
água em massa, que não tinha fim. No meio da macega, o rancho minúsculo do
vaqueiro parecia um monte de capim maduro, tão molhado por dentro como por
fora. No seu interior o foguinho fumarento e um homem amarelo, balofo, com um
ven-

272
tre imenso, olhos empapuçados, minado pela maleita, pela desnutrição e
pelos vermes. Foi com receio que recebeu os visitantes e teria certamente
fugido se não reconhecesse logo o passador, pessoa de sua confiança e estima.
— Quê que é isso, horn’, nem cachorro tu num tem mais? — exclamou o
barqueiro ao entrar.
Numa linguagem escassa, tartamudo, como se estivesse com a língua
emperrada, o vaqueiro passou a explicar que obra de três dias as onças
pegaram o derradeiro cachorro que restava, o Ferrabrás, aquele que um
canguçu tinha espaduado em antes. E era um cachorrinho tão bão. Óia que ele
morreu, mas morreu brigando com os bichos.
Tomando a iniciativa das coisas, o barqueiro perguntava por comida:
— Tamo sem comer em desde cedinho, horn’.
— É... eu tomem tou mei desaprivinido, só — regougou o caco de gente
cocando a cabeleira caída sobre os olhos, por baixo do bagaço de chapéu. O
barqueiro, porém, vislumbrava sobre a fornalha feita em cima do jirau, umas
misérrimas costeletas de porco, minúsculas e enegrecidas, cobertas de
varejeiras. Será que não seriam as costelas do Ferrabrás?
Sem pedir, tomou daquilo, avivou o fogo e as botou para assar. Em breve
os quatro homens comiam o tiquinho de carne com uma boca de quem comesse
o manjar mais fino do universo. De seu canto, o vaqueiro lançava tristes olhares
para sua provisão que desaparecia.
Agora, o pessoal caçava jeito de dormir. O chão estava úmido demais e
jirau só havia dois, para cinco homens. Era preciso fazer outros, mas só se fosse
por cima do travejamento do rancho, pois o vaqueiro trouxe lá de fora sua
éguinha, mode as onças não comer ela como já haviam procedido com o
famoso Ferrabrás.
De noite, ficou combinado que o vaqueiro partiria no dia seguinte cedo para
a fazenda de Brasilino. Levaria recado de Vicente Lemes que estava ali e que
Brasilino mandasse três cavalos arreados para eles irem para a fazenda.
— Não esqueça de trazer mantimento, hem!
Entretanto, como não havia nada que comer, pela manhã, o vaqueiro
vendeu a Vicente uma vaquinha maninha, para que fosse abatida. Morta a
bicha, o vaqueiro comeu um pedaço assado

273
e lá se foi na sua égüinha de lombo arcado, as pernas quase se arrastando
pelo chão. Levaria bem uns quatro dias para ir e voltar. Na frente da casa
ficaram Vicente, Ângelo, Júlio de Aquino e o canoeiro, esquartejando a
minúscula curraleira, dependurando nos caibros do rancho os quartos e
costelas, enquanto no braseiro assavam uns churrascos.
— Um salzinho, hem, Vicente! — brincou Ângelo, já que no rancho não
existia nenhuma pedrinha de sal. Isto, porém, não era problema para o canoeiro,
que foi no quintal e voltou com um coité de pimenta malagueta. Macetou aquilo
bem e com esse caldo recobriu o churrasco, que comia estalando a beiçorra e
chupando o ardume. Lá fora, a chuvarada não cessava.
Ao redor, estendiam-se o mato e o cerrado, numa paisagem baixa, em cujo
horizonte nem um monte se erguia. Ali, a noite despencava cedo e só muito
tarde despontava a manhã.

Espichado no jirau, fumando seu cigarrinho, os pensamentos torturavam


Vicente Lemes. ”Que teriam feito de Alice, de Lina e da velha Benedita? Que é
que estaria acontecendo com Valério Ferreira, Leão e outros companheiros de
luta? Teriam conseguido fugir também, será que não caíram nas unhas dos
jagunços?”
— Luta besta — ponderava Ângelo. — Que resultou de tanta canseira? —
Perguntava e respondia: — Resultou sofrimento, morte de inocentes, miséria
para nós.
— É, mas podia ter sido pior, não é mesmo? — dizia Vicente, achando que
nas palavras de Ângelo havia uma censura à sua conduta. — Procuramos todos
os Meios de evitá-la e não foi possível. Vamos dar graças a Deus de não
estarmos mortos...
Fora, a chuva chiava na saroba, com grilos e bichos gritando, raspando.
Certamente que por ali havia cobras e sucuris a valer. O canoeiro ouvira um
gemido muito esquisito, dando sintoma de porco d’água.
Pela cabeça de Vicente os pensamentos galopavam. Agora teria que
enfrentar o Sul do Estado, uma vida diferente, um meio totalmente
desconhecido. No Norte, onde quer que chegasse, era só dar o nome e o
pessoal se abria em amabilidades: — Ah, gente dos Lemes, sim senhor! Gente
importante, gente de haveres! —

274
Agora não teria nada disso. Ninguém o conhecia, ninguém lhe daria
nenhum valor, tinha que labutar duramente para obter sua subistência, sem
gado, sem dinheiro, sem meio de vida, principalmente isso: sem meio de vida.
Na lembrança de Vicente, surgiu a figura da velha sogra, mas surgiu como
Vicente a vira no dia da partida: penteando os cabelos da velha Aninha, o
semblante carregado e sua voz de censura a Vicente. Como teria ela dito?
Vocês não deram conta do recado e querem nos encalacrar ainda mais! Ah, a
derrota! Até a velha Benedita, tão intransigente no seu ódio a Artur, até ela agora
entendia de culpar Vicente e criticar seus atos.
— A situação inda vai piorar — disse Júlio de Aquino, com azedume,
mascando as palavras. — O governo não pode aceitar a derrota da polícia. O
governo terá que enviar para o Norte novos contingentes, derrotar os bandidos e
dar garantia às autoridades e aos habitantes. E nós temos que forçar o governo
a prosseguir nessa luta.
— Assunta, gente, a carne tá azulando, tá zangando — avisava o canoeiro,
examinando os quartos dependurados. com tanta chuva, brevemente a carne
estaria putrefata e imprestável.
— Quê que a gente pode fazer! — suspirou Ângelo, espichando o beiço
inferior e erguendo os ombros: — Não existe sal para curar.
— Carece de sale nenhuns nada — respondeu o barqueiro todo lampeiro.
— Quer ver uma coisa? — Pulou do jirau, tomou da faca e foi desdobrando as
peças de carne em mantas finas. Cobriu tudo com pimenta malagueta pisada,
até ficar vermelho, e a seguir foi assando mal e mal, no braseiro, as mantas de
carne que, assim meio assadas, eram espichadas em varais dentro de casa.
Vicente olhou para Ângelo e deu uma risadinha, daquelas suas velhas
risadas, enquanto os olhos brilhavam de malícia:
— Estão vendo? Quando a coisa está muito ruim, é sinal de que vai
melhorar.
Entre si, Júlio de Aquino e Ângelo trocaram um olhar significativo: estavam
banzando que aquele Vicente Lemes sempre fora um homem de boa fé, um
sujeito de uma ingenuidade de menino. Bem que Leão e Saturnino diziam.
Pela estrada já deveriam vir para o rancho os animais de Brasilino, que
levariam os fugitivos até sua fazenda e daí pelo vasto Estado afora até a Capital,
até Goiás. Na cabeça de Vicente, as

275
idéias continuavam em tumulto. Uma coisa, porém, lhe dizia que nem tudo
resultará inútil. Do sangue derramado, da miséria, da dor, das lágrimas
espalhadas nas terras do Duro, uma vida melhor iria despontar.
Ele tinha vontade de dizer isto aos companheiros, mas tinha receio. Diziam
sempre que ele era um homem de boa fé, ingênuo. Podia ser, mas uma coisa lá
dentro do peito lhe contava que era preciso acabar com o poderio absoluto do
Coronel Melo, com a soberba das famílias poderosas, para que ali pudessem
vigorar as leis e não a vontade de um potentado.
Apesar de tudo, a luta tinha sido o primeiro passo para mostrar que um
Alves Leandro também podia morrer; para mostrar a Belisário e Casemiro que
podiam reconquistar sua liberdade; para ensejar a uma Tifuque unir-se com
quem seu coração queria e não prostituir-se nos quintais da velha Aninha com
Hugo Melo ou com Resto-de-Onça.
Pela estrada, o vaqueiro trazia os animais que conduziriam os fugitivos
para Goiás. Dentro do rancho, as chamas da fogueira crepitavam, refletindo-se
na pupila de Vicente Lemes que, pensando no seu mundo, no velho Duro que
ficara para trás e que não voltaria nunca mais, sentiu os olhos arderem como se
fosse chorar.
Foi quando um trovão roncou.
— Agora, sim — falaram os quatro homens ao mesmo tempo. — Agora o
tempo vai suspender.

Pelo vale do rio abaixo, o trovão retumbava, trepidando nos ecos distantes.
Nos olhos de Ângelo e de Júlio de Aquino, Vicente não surpreendeu aquele ar
de desprezível ironia, de há pouco: surpreendeu agora um traço de profunda
fraternidade, de inabalável confiança.
Outro trovão, longo e sonoro, abalou as nuvens que se moviam como se
fossem pesados e tardos bois de carro.

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Este livro foi composto em MCS pela
TRANSTYPE LTDA
Av. Erasmo Braga, 277/1109-1112 — Rio de Janeiro, RJ e impresso nas oficinas
da EDITORA VOZES LTDA Rua Frei Luís, 100 — Petrópohs, RJ
para a LIVRARIA JOSÉ OLYMPIO EDITORA S.A. em fevereiro de 1988
ANO DA X BIENAL INTERNACIONAL DO LIVRO
(São Paulo, 24 de agosto a 9 de setembro)
Centenário da Lei Áurea (assinada pela Princesa Isabel em 13.5.1888)
Bicentenário de nascimento de Byron (22.1.1788 — 19.4.1824)
Bicentenário de nascimento de Arthur Schopenhauer (22.2.1788 — 21.9.1860)
Centenário de nascimento de Gastão Cruls (4.5.1888 — 5.6.1959)
Centenário de nascimento de Fernando Pessoa (18 6 1888 — 30.11.1935)
Cinqüentenário de publicação dos romances
Vidas secas, de Graciliano Ramos (3.1938) e
Pedra Bonita, de José Lins do Rego (4.1938)
23° aniversário de fundação da Xerox do Brasil (15.6.1965)
57º aniversário de fundação desta Casa de livros (29.11.1931)

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