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0 Rosto de Deus anuncia uma nova fase da

Biblioteca René Girard. 0 instigante livro de


Roger Scruton inaugura a vertente “Diálogos",
composta de títulos de autores que não são
exatamente girardianos, pois têm uma obra
própria, assim como preocupações muito bem
definidas e nem sempre convergentes com as
obsessões do pensador francês. Trata-se do
caso do autor de Coração Devotado à Morte -
O Sexo e o Sagrado em Tristão e Isolda. de
Wagner, também publicado pela É Realizações.

Ao mesmo tempo, O Rosto de Deus propõe


uma reflexão aguda sobre temas definidores da
filosofia de René Girard: o fenômeno religio­
so e a experiência do sagrado. Por isso, ainda
que diviija aqui e ali de pressupostos da teoria
mimética, o elegante ensaio de Scruton ilumina
um campo central para o pensamento girardiano.
Daí a oportunidade de encenar o diálogo entre os
dois autores, já que o original estudo acerca dos
sentidos atribuídos ao “rosto de Deus" interessa,
e muito, a todo leitor da obra de René Girard.

Eis a forma mais adequada para realizar o duplo


propósito que anima a Biblioteca René Girard.
De um lado, valorizar títulos fundamentais,
que merecem ser conhecidos pela sua própria
importância. De outro, ampliar a recepção da
teoria mimética, cujo escopo é enriquecido pela
diferença da abordagem.

Contrastes e confrontos: “Diálogos" - portanto.

Filosofia

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0 Rosto de Deus anuncia uma nova fase da Bibliote­
ca René Girard. O instigante livro de Roger Scruton
inaugura a vertente “Diálogos”, composta de títulos de
autores que não são exatamente girardianos, pois têm
uma obra própria, assim como preocupações muito
bem definidas e nem sempre convergentes com as ob­
sessões do pensador francês. Trata-se do caso do autor
de Coração Devotado à Morte -
O Sexo e o Sagrado em Tristão e Isolda, de Wagner.
também publicado pela É Realizações.

Ao mesmo tempo, O Rosto de Deus propõe uma refle­


xão aguda sobre temas definidores da filosofia de René

Por isso, ainda que diviija aqui e ali de pressupostos da


teoria mimética, o elegante ensaio de Scruton ilumina
um campo central para o pensamento girardiano. Daí a
oportunidade de encenar o diálogo entre os dois autores,
já que o original estudo acerca dos sentidos atribuídos ao
“rosto de Deus” interessa, e muito, a todo leitor da obra
de René Girard.

Eis a forma mais adequada para realizar o duplo pro­


pósito que anima a Biblioteca René Girard. De um lado,
valorizar títulos fundamentais, que merecem ser conhe­
cidos pela sua própria importância. De outro, ampliar a
recepção da teoria mimética, cujo escopo é enriquecido
pela diferença da abordagem.

Contrastes e confrontos: “Diálogos” - portanto.

ISBN 978 85 8033 221-6

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IMITATIO
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___________
Roger Scruton
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em acordo com The Janeiro/Feverciro 2011 forma, seja da eletrônica
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João Cezar de Castro www.erealizacoesxom.br
Rocha

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Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

S441r

Scruton, Roger, 1944-


0 rosto de Deus / Roger Scruton ; tradução Pedro Sette-Câmara. -
1. cd. - Sâo Paulo : É Realizações, 2015.
240 p.; 21 cm. (Biblioteca René Girard)

Tradução de: The face of god


ISBN 978-85-8033-221-6

1. Filosofia. 2. Deus. I. Titulo. II. Série.

15-27747 CDD: 100


CDU: 1

29/10/2015 03/11/2015
o rosto de Deus

Roger Scruton
tradução Pedro Sette-Câmara

É Realizações
Editora
Esta edição teve o apoio da Fundação Imitatio.

IMITATIR
MTEGRAT1NQ THE HUMAN SCIENCES

Imitatio foi concebida como uma força para


levar adiante os resultados das interpretações
mais pertinentes de René Girard sobre o
comportamento humano e a cultura.

Eis nossos objetivos:

Promover a investigação e a fecundidade da


Teoria Mimética nas ciências sociais e nas áreas
críticas do comportamento humano.

Dar apoio técnico à educação e ao


desenvolvimento das gerações futuras
de estudiosos da Teoria Mimética.

Promover a divulgação, a tradução e a


publicação de trabalhos fundamentais que
dialoguem com a Teoria Mimética.
I 151
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ii HHfo c suas o rosto da Terra
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Hinha capitulo 6
o rosto de Deus
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prefácio 233
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1/ 235
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Diálogos

0 Rosto de Deus anuncia uma nova fase da Biblioteca


René Girard. 0 instigante livro de Roger Scruton inau­
gura a vertente “Diálogos" Tal desdobramento será
composto de títulos de autores que não são exatamente
girardianos, pois têm uma obra própria, assim como
preocupações muito bem definidas e nem sempre conver­
gentes com as obsessões do pensador francês.

Ao mesmo tempo, 0 Rosto de Deus propõe uma reflexão


aguda sobre temas definidores da filosofia de René Girard:
o fenômeno religioso e a experiência do sagrado. Por
isso, ainda que divirja (por vezes enfaticamente) aqui e
ali de pressupostos da teoria mimética, o elegante ensaio
de Scruton ilumina um campo de estudos central para o
pensamento girardiano. Dai a oportunidade de encenar
o diálogo entre os dois autores, já que a original contri­
buição acerca dos sentidos atribuídos ao “rosto de Deus"
interessa, e muito, ao leitor da obra de René Girard.1
*

1 Professor de Literatura Comparada da Universidade do Estado do Rio de


Janeiro (UERJ).

apresentação 7
No fondo, importa, e muito, a todos que se preocupam
com o entendimento do mundo contemporâneo.

(Originalíssima contribuição, diria José Dias, leitor cuida­


doso de Roger Scruton.)

Aliás, uma relação similar de proximidade relativa e


distância marcada em relação ao pensamento girardia-
no também se encontra na brilhante análise de Scruton
da ópera Tristão e Isolda. Claro, penso no livro Coração
Devotado à Morte,2 pois, de igual modo, Wagner é um
compositor particularmente significativo para o autor de
Mentira Romântica e Verdade Romanesca.

Eis a forma mais adequada para realizar o duplo propósito


da Biblioteca René Girard. De um lado, valorizar títulos
fundamentais, que merecem ser conhecidos pela sua im­
portância intrínseca. De outro, ampliar a recepção da teoria
mimética, cujo escopo é enriquecido pela diferença da
abordagem de autores tão relevantes como Roger Scruton.

Contrastes e confrontos.

“Diálogos” - portanto.

0 contemporâneo: rostos sem face?

Hora, pois, de voltar os olhos para o livro que você tem


em mãos.3

3 Roger Scruton, Coração Devotado à Morte - 0 Sexo e o Sagrado em Tristão


e Isolda, de Wagner. Trad. Pedro Sette-Câmara. São Paulo, É Realizações, 2010.

8 o rosto de Deus
0 Rosto de Deus é um notável ensaio que coloca em cena
os traços mais salientes da obra de Roger Scruton.

De um lado, assinale-se uma erudição sofisticada, capaz


tanto de discutir minúcias da filosofia medieval quanto
de esmiuçar a cultura contemporânea de entretenimento;
um olhar crítico único, tanto hábil em frequentar a me­
lhor tradição das artes plásticas quanto ágil em analisar
as razões ocultas da difusão da pornografia no mundo
atual. Num dos momentos mais argutos de suas análises,
Scruton chama atenção a para um detalhe revelador:

Na pornografia, o rosto não tem um


papel a desempenhar exceto o de ser
submetido ao império do corpo. Os
beijos não têm importância, e os olhos
olham para o nada já que não se busca
nada além do prazer imediato. Tudo isso
corresponde a uma marginalização, efe­
tivamente uma espécie de profanação,
do rosto humano. E essa profanação do
rosto é também uma anulação do sujei­
to. 0 sexo, na cultura pornográfica, não
é uma relação entre sujeitos, mas uma
relação entre objetos.3

Eis a fórmula proposta por Scruton: sujeitos e seus incon­


fundíveis rostos; objetos e seu conspicuo anonimato.
A oposição leva longe e, pelo avesso, desnuda o dilema da
pessoalidade - categoria estruturante do pensamento de

3 Ver, neste livro, p. 144-45

apresentação 9
Scruton4 - no universo da objetificação. Aliás, objetificaçào
ecumênica: das palavras, das coisas e, sobretudo, das pessoas.

De outro lado, destaque-se a elegância da escrita e a


clareza da exposição; aspectos destacados com gosto pelo
autor. Neste ensaio, Scruton associa-se, em suas palavras,
à “filosofia tal como a conhecemos no mundo de língua
inglesa: filosofia como discussão, que tem a verdade
como objetivo" - de preferência, a ser buscada objetiva­
mente. Desse modo, ele consegue driblar “a tradição dos
profetas e dos místicos, que buscam obscuros pensamen­
tos à margem da linguagem, e que lançam sombras sobre
tudo aquilo de que se aproximam".5

Apresentado no âmbito das prestigiosas Palestras Gifford,


O Rosto de Deus oferece uma surpreendente reflexão
acerca da vivência do religioso e da experiência do
sagrado. 0 tema deste livro encontra-se perfeitamente
encapsulado em suas palavras de abertura:

Lorde Giffbrd não era um fiel ortodoxo de


religião nenhuma, mas alguém que mes­
mo assim acreditava que nossa relação
com Deus é a relação mais importante
que temos. Ele viveu entre pessoas que
compartilhavam essa crença, e ele mesmo

4 "É tratando um ao outro por ‘você* que nos atamos à rede de relações

interpessoais, e ê em virtude de nosso lugar na rede que somos pessoas.


A pessoalidade é uma condição relacionai, e sou uma pessoa na medida em
que posso entrar em relações pessoais com outros como eu." Ver, neste livro,
p. 159. Como anotarei adiante, percebe-se com facilidade a vizinhança dessa
noção com a ideia de interdividualidade, tal como proposta por René Girard.
5 Ver, neste livro, p. 106

10 o rosto de Deus
presumia que a filosofia, a psicologia e a
antropologia iriam confinná-la.6

0 fenômeno religioso é entendido como matriz da cultura;


visão de mundo que propicia o primeiro esboço de modos
de convívio, autêntico rascunho de futuras sociedades.

Não é tudo: a emergência das religiões também implica


o enfrentamento da questão da finitude, com todas as
suas consequências propriamente filosóficas, ainda que
tratadas sob outra óptica. Nesse cenário, ilumina-se a
visibilidade do rosto de Deus.

Tal descrição, contudo, não faz justiça ao esforço do filósofo


inglês, pois muito provavelmente soaria aos ouvidos do autor
de Beleza como uma prosa árida, desprovida do senso estéti­
co que desempenha um papel-chave em seu pensamento.7

Dito de maneira mais clara: Scruton concilia, com ad­


mirável lucidez, o olhar treinado do pensador, capaz de
inventar seu próprio fio de Ariadne em meio a intricados
labirintos de conjecturas e refutações, e, em sua perspec­
tiva, o olhar acolhedor do crente, disponível à repentina
iluminação do “mistério da condição humana".8

Daí, a força do título, cujo centro de gravidade é a pala­


vra rosto. 0 livro pode ser visto como o desenvolvimento
de “uma teoria geral do rosto: o rosto da pessoa, o rosto
do mundo e o rosto de Deus”.9

6 Ver, neste livro, p. 17


7 Roger Scruton. Beleza. Trad. Hugo Langonc. Sâo Paulo, É Realizações, 2013.

B Ver, neste livro, p. 45


9 Ver, neste livro, p. 42

apresentação 11
Rosto: palavra-ímâ deste admirável ensaio. No dicionário de
Scruton, rosto é a face que “brilha no mundo dos objetos com
uma luz que não é deste mundo: a luz da subjetividade"10*

Olhar bem nos olhos do outro exige admirar seu rosto, isto
é, reconhecer-lhe integralmente sujeito. Identificar o rosto da
pessoa pode ser uma forma de abrir-se para o rosto do mun­
do. Por fim, afirma Scruton, para o crente, a possibilidade
toma-se plena por meio da contemplação do rosto de Deus."

Mais uma vez, a inteligência de Scruton brilha na obser­


vação inesperada e certeira do dia a dia; estratégia que
traz à superfície o sintoma de certos impasses atuais:

Algo similar pode ser dito a respeito da fast


-food. Ela não apenas apaga o lugar (a refei­
ção compartilhada) em que valores estéticos
entram na vida cotidiana e a ordena, mas
também deixa um rastro de embalagens e
de lixo pela superfície do mundo.12

Outra fórmula ácida vem à mente: detritos e não mais


convívio; dejetos e não mais sujeitos.

Ainda: em detrimento da objetificação que se tomou


o modus operandi do mundo globalizado, este ensaio
parece apostar na utópica subjetificação das coisas, das
palavra, e, sobretudo das pessoas. Em lugar dcfast tudo -

10 Ver, neste livro, p. 76


” Nas palavras do autor: "nossa exploração do rosto da Terra nos guia até o ver­
dadeiro assunto do meu raciocínio, que é o rosto de Deus". Ver, neste livro, p. 199
12 Ver, neste livro, p. 177

12 o rosto de Deus
fast food, fast reading, fast everythingl -, por que não
desacelerar o ritmo frenético do dia a dia?

0 leitor deste livro descobrirá o antídoto: reencontrar


rostos, vale dizer, reinventar sujeitos.

Convergências?

Hora de concluir esta breve apresentação, a fim de não


retardar mais o contato do leitor com as diversas faces da
rica argumentação de Scruton. Por isso mesmo, limito-me
a sublinhar uma convergência possível.

Vamos lá.

A noção de rosto, tal como desenvolvida por Scruton, evo­


ca um dos eixos do teatro shakespeariano. Aqui, William
Shakespeare dá as mãos a Roger Scruton, afirmando a
central idade do outro no reconhecimento do “eu" Ora, não
será casual que a noção de interpessoalidade esteja disse­
minada em sua reflexão - noção que se aproxima, e muito,
do conceito de interdividualidade, definidor da psicologia
mimética, tal como teorizada por René Girard.

Retomemos a Shakespeare.

Em Júlio César, quando Cássio deseja envolver Brutus na


conspiração para assassinar César, ele tira da manga uma
pergunta decisiva:

CASSIUS: [...] Tell me, good Brutus, can


you see your face?

apresentação 13
A resposta de Brutus vale por todo um ensaio; claro que
ele não pode ver o próprio rosto:

No, Cassius, for the eye sees not itself


But by reflection, by some other things.11
*13

A fórmula é perfeita: o olho não pode ver-se a si


mesmo,14 pois, nesse caso, faltaria exatamente o refle­
xo fornecido por uma superfície alheia ao sujeito; aliás,
como o leitor brasileiro de imediato pensa, trata-se de
dilema que o alferes machadiano conheceu como poucos:
sem a farda que o diferencia dos demais, como mirar-
-se no espelho que, no entanto, se encontra diante dos
olhos? Naturalmente, Cássio se oferece como espelho do
amigo, e, assim, convencido de seu valor pela confirma­
ção do olhar do outro, Brutus adere à conspiração.

Na obra de Shakespeare, passagens similares são legião.


O tema estrutura seu teatro, conhecendo as mais distintas
formulações.

Pois é: O Rosto de Deus bem pode ser o espelho que,


hoje mais do que nunca, necessitamos para entender os
impasses do mundo atual.

11 William Shakespeare, Julius Caesar. Org. Marvin Spevack. Cambridge,


Cambridge University Press, 2012, p. 81. René Girard comentou essa pas­
sagem: “Cássio usa o mesmo linguajar de especularidade que Ulisses usou
com Aquiles, desejando, igualmente, agitar o espírito da rivalidade mimética
num homem cuja ambição ficou insegura" René Girard, Teatro da Inveja.
Trad. Pedro Sette-Câmara. São Paulo, É Realizações, 2010, p. 358.

14 0 poeta Haroldo de Campos apropriou-se da ideia no belo poema


"De um Leão Zen": "o olho não pode ver-se / a si mesmo [...] // o olho vê-se
/ no avesso do olho..." Haroldo de Campos, A Educação dos Cinco Sentidos.
São Paulo, Brasiliense, 1985, p. 26.

14 o rosto de Deus
Este livro contém a versão publicada das Palestras
Giffbrd dadas na Universidade de St. Andrews durante
a primavera de 2010. A doação de lorde Gifford tinha o
objetivo de patrocinar palestras públicas nas universi­
dades escocesas que fossem “promover e difundir [...] o
conhecimento de Deus”. E ele esperava que as palestras
fossem acessíveis sem a necessidade de conhecimentos
especializados. Por isso, tentei evitar os pormenores
técnicos que os filósofos acadêmicos podem julgar es­
senciais para o devido desenvolvimento de minha argu­
mentação e meramente mencionei debates que a mim
parecem estar à margem das preocupações de pessoas
comuns de boa formação.

Sou grato à Universidade de St. Andrews por convidar-


-me para dar essas palestras e às platéias animadas
que tomaram a ocasião um grande prazer. Sou parti­
cularmente grato ao professor John Haldane, do De­
partamento de Filosofia, que desempenhou um papel
fundamental tanto para garantir o convite quanto para
assegurar que aceitá-lo seria uma experiência recom-
pensadora e prazerosa.

prefácio 15
Ao preparar essas palestras para publicação, completei
alguns dos argumentos, mas tentei manter o estilo rela­
tivamente informal em que elas foram compostas. Aqui
e ali acrescentei notas de rodapé que guiarão o leitor
interessado às discussões que considerei especializadas ou
intricadas demais para merecer lugar no texto. Versões
anteriores foram lidas por John Cottingham, Fiona Ellis,
Alicja Gçscinska e Raymond Tallis, e sou grato a todos
por seus comentários e por suas criticas.

Malmesbury, junho de 2011.

16 o rosto de Deus
Lorde Gifford nào era um fiel ortodoxo de religião ne­
nhuma, mas alguém que mesmo assim acreditava que
nossa relação com Deus é a relação mais importante que
temos. Ele viveu entre pessoas que compartilhavam essa
crença, e ele mesmo presumia que a filosofia, a psicolo­
gia e a antropologia iriam confirmá-la. Não creio que ele
tenha antevisto a cultura dominante de hoje em dia, em
que a crença em Deus é amplamente rejeitada, considera­
da um sinal de imaturidade emocional e intelectual. Mas
creio que ele teria aprovado a tentativa de explorar o que
está sendo perdido quando essa crença é esquecida. E
esse será um dos meus temas nesta série de palestras. Vou
considerar algumas das consequências da cultura ateista
que cresce à nossa volta e sugerir que este não é apenas
um fenômeno intelectual, que expressa uma descrença
em Deus, mas também um fenômeno moral, que envolve
um distanciar-se de Deus.

Você pode perguntar-se como as pessoas poderíam deli-


beradamente distanciar-se de algo que julgam não existir.
Mas Deus tem uma relação intima até com aqueles que
o rejeitam. Assim como o esposo de um casamento

capitulo 1 - a vista de lugar nenhum 17


sacramental, Deus é inevitável, ou evitável apenas por
meio da criação de um vazio. Esse vazio se abre à nossa
frente quando destruímos o rosto - não apenas o rosto
humano, mas o rosto do mundo também. 0 vazio sem
Deus é aquilo com que nos defrontamos quando nossos
ambientes perdem o rosto. Não nego que ateístas pos­
sam ser pessoas de perfeita retidão, gente muito melhor
do que eu. Mas há mais de uma motivação por trás da
cultura ateísta da nossa época, e o desejo de escapar do
olho que julga é um deles. Escapa-se do olho que julga
apagando o rosto.

Vou começar com a visão de mundo científica, que muitas


pessoas julgam ser a verdadeira origem das dúvidas atuais
a respeito da crença em Deus. Segundo Richard Dawkins,
hoje o mais destacado propagandista do ateísmo, os seres
humanos são “máquinas de sobrevivência” a serviço de
seus genes.1 Somos subprodutos de um processo que é
inteiramente indiferente ao nosso bem-estar, máquinas
desenvolvidas por nosso material genético e adaptadas
pela seleção natural para propagar-se. Os genes mesmos
são moléculas complexas, arranjadas segundo as leis da
química, que surgem da matéria disponível na “sopa pri­
mordial" que um dia ferveu na superfície do planeta.

Ainda não se sabe como isso aconteceu: talvez descar­


gas elétricas tenham feito os átomos de nitrogênio, de
carbono, de hidrogênio e de oxigênio se unirem nas
devidas cadeias, até que uma delas adquirisse a singular1

1 Ver especialmente 0 Relojoeiro Cego: A Teoria da Evolução contra o Desíg­


nio Divino. Trad. Laura Teixeira Motta. São Paulo, Companhia das Letras, 2001.

18 o rosto de Deus
característica que conhecemos como vida, mas que pode
ser mais bem descrita como a codificação de instruções
para sua própria reprodução. Talvez um dia a ciência
possa ser capaz de responder à pergunta sobre como isso
aconteceu. Mas será a ciência, e não a religião, quem vai
dar essa resposta.

Quanto à existência de um planeta em que os elementos


são tão abundantes nas mesmas quantidades em que o
são no planeta Terra, isso também terá de ser explicado
pela ciência - mas pela ciência da astrofísica, e não pela
biologia. A existência da Terra é parte de um grande
processo em desenvolvimento iniciado pelo Big Bang,
que contêm muitos mistérios que os físicos exploram
com espanto crescente. A astrofísica tanto gerou muitas
perguntas quanto respondeu a elas. São, porém, questões
cientificas, a ser respondidas pela descoberta das leis do
movimento que governam as mudanças observáveis em
todos os níveis do mundo físico, da galáxia ao quark,
do buraco negro à supemova. 0 mistério com que nos
defrontamos ao contemplar a Via Láctea, sabendo que as
estrelas cristalizadas naquele borrão de luz são apenas
estrelas de uma única galáxia, a galáxia que nos abriga,
e que, além de seus limites, uma miríade de outras galá­
xias giram pelo espaço, umas morrendo, outras surgindo,
todas para sempre inacessíveis a nós e todas afastando-se
a uma velocidade inimaginável - esse mistério não pede
uma resposta religiosa.

Esse mistério resulta do nosso conhecimento parcial e


só pode ser resolvido por mais conhecimentos do mes­
mo tipo - o conhecimento que chamamos de ciência.
Talvez, se a teoria do Big Bang estiver correta, tenha

capitulo 1 - a vista de lugar nenhum 19


havido um momento em que tudo isso começou. Mas
o que era verdadeiro naquele momento é teoricamente
incognoscível para nós, já que as leis da física só teriam
começado a operar a partir de uma fração infinitesi-
mal de segundo depois (o chamado tempo de Planck),
quando surgiu o continuo espaço-tempo.2 Não existe
uma resposta inteligível para “Como eram as coisas no
começo?”; talvez, por isso, a pergunta é que não seja
inteligível. De fato, o conceito de um inicio, implicando
um tempo quando as coisas começaram, é em si contro­
verso, porque parece que podería haver um tempo, por
assim dizer, fora do contínuo espaço-tempo, um tempo
em que o tempo não havia surgido.

Somente a ignorância podería nos levar a negar o quadro


geral pintado pela ciência moderna, e muitos ateístas
hoje presumem que a religião monoteísta forçosamente
nega esse quadro e, portanto, em algum nível, forçosa­
mente compromete-se com a propagação da ignorância
ou, no mínimo, com o impedimento do conhecimento.
Quanto aos próprios ateístas, eles costumam deduzir da
visão de mundo científica duas doutrinas metafísicas
de imensa envergadura. A primeira é que tudo no mun­
do natural, incluindo o pensamento e a ação humana,
acontece de acordo com as leis científicas, de modo
que essas leis governam acontecimentos no átomo e

2 Parece-me dificílimo saber se a hipótese do Big Bang aumenta ou diminui


o apelo dos argumentos cosmológicos tradicionais para a existência de
Deus. Para perspectivas contrárias, ver Richard Swinburne. The Existence
of God. 2. ed. Oxford. Clarendon Press. 2004, e Herman Philipse, God in the
Age of Science: A Critique ofReligious Reason. Oxford. Oxford University
Press. 2011, Parte III.

20 o rosto de Deus
acontecimentos na galáxia, acontecimentos no oceano e
acontecimentos na mente. A segunda é que tudo o que
acontece é contingente. Não existe razão para que algo
aconteça, exceto que acontece na sequência ditada pelas
leis da natureza. Não há uma explicação final de por que
o mundo existe: ele simplesmente existe.

De fato, há algo de incoerente na pergunta “por quê?"


quando feita a respeito da existência do mundo. Po­
demos, por meio da observação e da experimentação,
chegar a explicações de um acontecimento nos termos de
outros acontecimentos. E também ligar um acontecimen­
to a outro numa cadeia causai continua. Mas a ideia de
que podemos dar um passo para fora da cadeia de acon­
tecimentos e pedir uma explicação sobre ela é semelhante
à ideia de que podemos enxergar além do nosso campo
de visão e assim estabelecer-lhe um limite.

Esse argumento foi desenvolvido por Kant no capítulo


“Antinomias" da Crítica da Razão Pura e vem assom­
brando a filosofia desde então. Em algum momento
somos compelidos a aceitar que é assim que as coisas são
e as explicações acabaram. Qualquer tentativa de ver o
mundo como um todo, a fim de encontrar uma explica­
ção sobre ele, está fadada ao fracasso: de fato, segundo
Kant, tal tentativa termina sempre numa contradição. Ela
só podería ter sucesso se pudéssemos ir além dos limi­
tes do nosso próprio pensamento e chegar à perspectiva
“transcendental" que pertence a Deus. Dessa perspectiva,
é concebível que se pudesse dar uma prova da exis­
tência de Deus; mas, necessariamente, essa perspectiva
nunca podería ser a nossa. Esse argumento de Kant tem
o interessante corolário de que somente Deus podería

capitulo 1 - a vista de lugar nenhum 21


provar a existência de Deus; afinal, só Deus pode ocupar
a posição fora do contínuo espaço-tempo desde a qual o
fundamento último das coisas contingentes podería ser
conhecido.

Podemos resumir a visão ateísta, portanto, a duas doutri­


nas: tudo acontece segundo as leis da natureza, e essas
leis são contingentes, resumindo a maneira como as
coisas são, e desprovidas de qualquer explicação além da
existência dessas mesmas leis. Sabemos que o universo
não tem plano nem objetivo - não porque tenhamos pro­
curado um e outro sem encontrá-los, mas porque nada
que possa ser descoberto pela ciência pode ser plano ou
objetivo para todo o universo. Planos e objetivos são
características biológicas de organismos individuais, que
são sistemas dentro do fluxo contínuo de acontecimentos
físicos, assim como tudo o mais.

Não é fácil se contentar com uma visão de mundo que


sustente essas duas posições. Certamente, sentimos, essa
natureza regida por leis do universo demanda explicação.
Podemos não formular a questão em termos religiosos,
mas mesmo assim existe uma questão: por que o uni­
verso é governado por leis compreensíveis? Se tudo é
contingente, então por que tudo não é também aleatório?
Uma resposta a essa questão tem sido defender a extrema
improbabilidade de um universo regido por leis conter
criaturas como nós. Diversos pensadores recentes enfa­
tizaram que a mínima alteração das constantes funda­
mentais da física levaria a um universo em que a vida e
a consciência estariam excluídas para sempre. Portanto,
concluíram, é tão improvável que esse universo exista
que devemos supor que alguma inteligência divina seja

22 o rosto de Deus
sua causa.3 Esses argumentos, porém, são vazios. Só é
possível falar de probabilidade se for possível fazer juízos
comparativos ou cálculos estatísticos. Dispondo de um e
apenas um universo, esses juízos e cálculos não podem
ser feitos; essas afirmações de probabilidade e de possibi­
lidade, portanto, carecem de fundamento.

Outra resposta está contida no chamado “princípio antró-


pico fraco", segundo o qual, se o universo fosse aleatório,
ele também seria incognoscível, já que é somente num
universo governado por leis, e muito semelhante a este
aqui, que criaturas capazes de conhecimento poderíam
existir. 0 conhecimento, afinal, é uma condição extrema­
mente delicada, por meio da qual estados de coisas são
conectados a sua própria representação mental causal-
mente. Essa condição pressupõe conexões, semelhantes
a leis, de longo alcance. Assim, se temos a mera possibi­
lidade de procurar explicações, o universo não pode ser
aleatório, antes devendo ser governado por leis afinadas.
Que o universo é governado por leis não é algo que “sim­
plesmente acontece". Se não fosse assim, não poderiamos
saber que não é assim.4

3 Ver, por exemplo, Richard Swinburne, "Argument from the Rne-Tuning of the
Universe", em John A. Leslie (ed.). Physical Cosmology and Philosophy. New
York, Macmillan, 1990, p. 160-87. Essa proposta e outras similares são critica­
das por Ellioto Sober, nhe Design Argument" em W. Mann [ed.]. The Blackwell
Companion to Philosophy of Religion. Oxford, Blackwell, 2004, p. 117-47.
4 Para discussões desse principio, ver Stephen Hawking, "The Cosmologi-
cal Constant and the Weak Anthropic Principie". In: M. J. Duff e C. J. Isham
(eds.). Quantum Structure ofSpace and Time. Cambridge, Cambridge Uni-
versity Press, 1982, p. 423-37, e Uma Breve História do Tempo. Rio de Janei­
ro, Rocco, 1988; e B. Carter, "Large Number Coincidences and the Anthropic
Principie in Cosmology". In: M. S. Longair (ed.), Confrontation of Cosmologi-
cal Theories with Observational Data. Dordrecht, Reidel, 1974, p. 291-98.

capítulo 1 - a vista de lugar nenhum 23


Essa sugestão recorda o “idealismo transcendental” de
Kant. 0 mundo, dizia Kant, tem de satisfazer às exigên­
cias a priori do conhecimento. Tem de ser ordenado no
espaço e no tempo e tem de conformar-se às “catego­
rias” - conceitos como substância e causa, sem os quais
não poderiamos emitir juízos. Esses conceitos só podem
ser usados de maneira que faça sentido se certos prin­
cípios forem válidos para o mundo a que são aplicados.
Assim, podemos saber a priori que o mundo obedece
a esses princípios, precondições do conhecimento. Um
desses princípios é a lei da causalidade - de que todo
acontecimento tem uma causa. Assim, essa verdade não
é meramente contingente. É matéria de conhecimento
“sintético a priori".

Parece-me justo dizer que Kant não teve sucesso em levar


seu raciocínio até a conclusão que desejava. 0 melhor
que conseguiu foi provar que o mundo tem de parecer
ordenado se vamos emitir juízos a seu respeito. Mas isso
não é tanto um fato sobre o mundo quanto um fato a
nosso respeito. A questão que estou explorando é bem
diferente daquela defendida por Kant, a saber: por que,
com que finalidade e por que razão vivemos num mundo
regido por leis? Talvez nenhum outro mundo seria um
mundo que contivesse criaturas como nós, capazes de fa­
zer os tipos de pergunta que estou fazendo aqui e agora.
Mas, então, por que, com que finalidade e por que razão
existe um mundo com criaturas como nós?

Quando os teólogos tentaram pela primeira vez enfren­


tar a revolução científica do século XVII, isso aconteceu
no contexto da visão newtoniana da realidade física, da
maneira contida por uma moldura euclidiana estática.

24 o rosto de Deus
0 espaço e o tempo eram concebidos como absolutos,
imutáveis, o pano de fundo contra o qual se desenrola
o drama do “movimento e repouso”. A teoria geral da
relatividade de Einstein trouxe o espaço e o tempo para
o primeiro plano; eles se tomaram parte da rede causai,
matrizes que mudam com as coisas que contêm. Enquan­
to isso, a mecânica quântica abalava os fundamentos da
fisica, prevendo que a condição de uma partícula podería
estar conectada à de outra, mesmo que nenhuma força
passasse entre elas, resultado esse que Einstein não con­
seguia aceitar e contra o qual em vão bateu sua grande
cabeça? No mundo da mecânica quântica, aquilo que
existe e aquilo que pode ser conhecido parecem fundir-
-se mutuamente, como personagens da ficção, que não
são verdadeiramente distintos de suas histórias. 0 uni­
verso newtoniano, que parecia um brinquedo tão robusto
nas mãos do Criador, dissolve-se no nível superior em
flutuações do contínuo espaço-tempo, e no nível inferior
em possibilidades infundamentadas, afirmações sobre
aquilo que pode ser medido, das quais as coisas mesmas
praticamente desapareceram.

E o pior de tudo é que, ainda que a teoria da relatividade


e a mecânica quântica tenham sido confirmadas repetidas
vezes, as duas não foram unificadas, e, no esforço para
juntá-las, os físicos produziram descrições cada vez mais
bizarras e contraintuitivas. Uns creem que uma física
unificada virá da “teoria das cordas”, com seu espaço

5 Ver os debates em torno do Paradoxo de Einstein-Podolsky-Rosen e


a “desigualdade de Bell": eu explico algumas das questões cm Modem
Philosophy: An Introduction and Survey. London, Sindair-Stevenson, 1994,
p. 223-25.

capitulo 1 - a vista de lugar nenhum 25


em nove dimensões e suas constantes aparentemente
arbitrárias. Outros propõem um “multiverso", segundo
o qual nosso universo é apenas um dos contendores por
uma realidade que está distribuída entre um número
indefinido de universos alternativos. Independentemente
do caminho que tomarmos, está claro que, se a ciência
fechou a lacuna entre o mundo e nosso conhecimento,
também dissolveu o mundo no conhecimento. Ao tomar-
-se conhecível, o mundo deixou de ser imaginável. Vive­
mos num vasto enigma matemático e somente um mísero
cantinho dele realmente faz sentido para nós. E, se Deus
existe, podería ter planejado algo tão desconcertante?

Não surpreende, portanto, que a relevância da explicação


cientifica para as pretensões da teologia tenha ficado
totalmente obscura. Dawkins escreve como se a teoria do
gene egoísta resolvesse de vez as dúvidas acerca da ideia
de um Deus criador - não precisamos mais da hipótese
para explicar como viemos a ser. Num certo sentido, isso
é verdade. Porém, e quanto ao gene mesmo? Como ele
veio a ser? E a “sopa primordial"? Essas questões são res­
pondidas dando um passo a mais na cadeia de causalida­
de. Mas a cada passo encontramos um mundo com uma
qualidade singular, isto é, este mundo, deixado a si mes­
mo, produzirá seres conscientes, capazes de procurar a
razão e o sentido das coisas e também sua causa. Aquilo
que é mais impressionante em nosso universo - que ele
contenha consciência racional, juízo, conhecimento do
certo e do errado e todas as outras coisas que tomam a
condição humana tão singular - não fica menos impres­
sionante diante da hipótese de que esse estado de coisas
tenha surgido, ao longo do tempo, de outras condições.
Se isso for verdade, apenas mostra quão impressionantes

26 o rosto de Deus
foram essas outras condições. 0 gene e a “sopa primor­
dial" não podem ser menos impressionantes do que seu
produto, e o fato de que sua evolução se daria nessa dire­
ção, no sentido de um mundo que obteve consciência de
si mesmo, certamente foi a mais intrigante característica
daquele denso pacote de coisas que surgiu IO-43 segundos
após o Big Bang. Mas será esse espanto um vazio que
jamais poderá ser preenchido por uma explicação?

Podemos obter algum auxílio se nos voltarmos para a


pergunta que causa todos os nossos problemas: a per­
gunta “por quê?" Aristóteles afirmava que essa pergun­
ta podia ser respondida de quatro maneiras distintas, e
cada uma dessas maneiras introduzia um tipo diferente
de causa. Sua teoria das quatro causas foi posta de
lado pela visão de mundo científica, que só reconhece
um único tipo de causa - aquela que os aristotêlicos
chamam de causa “eficiente" - e um tipo de lei, que é
a conexão matematicamente expressa das quantidades,
juntando causa e efeito.

Mesmo assim, Aristóteles estava certo em um aspecto.


É da natureza da consciência perguntar tipos de “por
quê?", por definição diferentes daqueles apresentados
pelo cientista. Não ficamos satisfeitos com o “por quê?"
da explicação causai. Qual a razão da existência do mun­
do e o que significa essa existência? 0 “por quê?" da ra­
zão não está necessariamente procurando um propósito;
está, porém, procurando uma explicação que remova o
paradoxo de um mundo governado inteiramente por leis,
aberto à consciência, que no entanto não tem explicação;
que simplesmente é, por razão nenhuma. E o “por quê?"
do sentido não está procurando uma tradução, mas uma

capítulo 1 - a vista de lugar nenhum 27


explicação, um logos, que relacione objeto com sujeito
como um sorriso relaciona você comigo. Desse modo,
você pode perguntar qual o sentido de um motivo em
arquitetura, de um acorde na música, de uma cor na pin­
tura, não procurando o equivalente em palavras, porque
não há equivalente, mas buscando os contextos
e as comparações que oferecem um novo entendimento
em relação ao fenômeno que causou perplexidade.

Os teólogos da Idade Média inspiraram-se na estranha


e árida teologia contida na Metafísica, de Aristóteles,
e nos argumentos teológicos do Kalam muçulmano - a
antiga escola de teologia que considerava a razão um
fundamento suficiente da verdade religiosa.6 Aristóteles
acreditava que o movimento exige explicação e que, por­
tanto, tem de haver um motor imóvel que faça o mundo
girar. Esse motor imóvel age no mundo não como causa
eficiente, mas como causa final; em outras palavras, não
como o produtor mecânico do movimento, porém como o
objeto para o qual todo o movimento tende, assim como
uma ação tende para seu objetivo. E esse objeto universal
do amor tem vida e inteligência. É um espírito no limite
último das coisas, que existe etemamente, sendo ao mes­
mo tempo sujeito e objeto de uma contemplação sem fim.

A visão de Aristóteles propõe de maneira vivida a ques­


tão que desejo discutir nestas palestras: a presença de
Deus. Como pode um ente, como esse que Aristóteles des­
creve, se interessar por nós neste mundo, revelar-se a nós

6 Ver Harry Austrun Wolfson, The Philosophy of the Kalam. Cambridge,


Massachusetts, Harvard University Press, 1976.

28 o rosto de Deus
ou estar relacionado conosco sob qualquer aspecto? Essa
questão se toma ainda mais vivida quando nos voltamos
para os argumentos dos filósofos medievais, e particular­
mente para aquele introduzido por Avicena baseado no
ser contingente.

Esse argumento é uma reconfiguração metafísica do


argumento de Aristóteles para o Primeiro Motor. Ele foi
arquitetado para mostrar que o ser contingente de ab­
solutamente qualquer coisa só é explicável pelo pressu­
posto de que o ser nem sempre é contingente; em outras
palavras, de que existe um ser necessário. A partir desse
momento, a tarefa da teologia passou a ser considerada
a explicação do conceito de um ser necessário. 0 que
mais pode ser verdadeiro a respeito de algo se esse algo
existe de maneira necessária e não contingente? Para o
deleite dos monoteistas da Idade Média, os atributos do
ser necessário, à medida que se desvendavam no pen­
samento, coincidiam com aqueles atribuídos ao Deus
único na Torá, nos Evangelhos e no Corão.7 Vale a pena
dar uma parada e considerar como Avicena chegou a
essa conclusão.8

0 ser, dizia Avicena, está preso a três predicamentos:


existem seres impossíveis (aqueles cuja definição envol­
ve uma contradição), seres contingentes (que poderíam

1 Se esses atributos - onisciência, onipotência, benevolência e caridade -


são compatíveis entre si ê uma questão que não discutirei. Para perspectivas
céticas, ver Anthony Kenny, The God of the Philosophers. Oxford, Oxford
University Press, 1979; e J. L Mackie, The Mirade of Theism: Arguments For
and Against the Existence ofGod. Oxford, Oxford University Press, 1982.
8 Para as fontes e para outra versão do argumento, ver Lenn E. Goodman,
Avicenna, edição atualizada. Ithaca, Cornell University Press, 2005.

capitulo 1 - a vista de lugar nenhum 29


não ter existido) e seres necessários. O ser contingente
tem a potencialidade tanto de ser quanto de não ser, sem
contradição. Você e eu somos seres contingentes nesse
sentido, e, ainda que me seja concedida certa intuição
da minha própria existência, essa certeza é mera posse
pessoal e nem mesmo garante minha sobrevivência, nem
refuta a afirmação de que existem mundos possíveis em
que eu não existo.

Um ser necessário é um ser “verdadeiro em si mesmo” -


em outras palavras, um ser cuja existência se segue de
sua natureza -, ao passo que um ser contingente ê “falso
em si mesmo” e deve sua verdade a outras coisas - em
outras palavras, um ser contingente em relação à coisa
que o causa ou que o mantém. 0 ser necessário não tem
nenhuma essência (mahiyya, ou “quididade”) além da
própria existência. Assim, ele não pode ser distinguido
de outros de sua suposta espécie, sendo todos idênticos a
ele. 0 ser necessário é portanto uno (waHid): esse argu­
mento depois foi retomado por Espinosa e usado para
defender que nada existe exceto o único ser necessário,
mas conectado por Avicena com aquele conceito central
a todo o pensamento islâmico, o conceito de tawHid, que
significa reconhecer, no coração, na mente e na alma,
a unicidade essencial e criativa de Deus, a unicidade de
uma coisa que não pertence à espécie nenhuma por não
poder ser circunscrita por classificação nenhuma.

Avicena dizia que, como todos os seres contingentes


são contingentes em relação a alguma outra coisa a que
devem sua existência, é preciso que exista um ser ne­
cessário do qual todos dependam. Avicena defendeu isso
sob um aspecto, e Santo Tomás de Aquino, retomando

30 o rosto de Deus
a discussão, sob outro.9 Suponhamos, diz Santo Tomás
de Aquino, que não exista ser necessário e que todos
os seres poderíam não ter existido. Como o tempo em
que ocorrem todas as contingências é infinito (já que,
segundo a hipótese, não existe um ser que possa colocar-
-Ihe limites), então pode-se dizer verdadeiramente, sobre
qualquer ser contingente, que haverá algum tempo em
que ele não existirá e, portanto, algum tempo em que
todos os seres contingentes não existirão - um tempo de
nada absoluto. Mas esse ponto nulo do universo já deve
ter existido, uma vez que o tempo passado, assim como
o tempo futuro, é infinito. E como nada pode surgir do
nada, então havería, a partir daquele momento, o nada
eterno. Mas algo há - isto é, essa coisa que está meditan­
do a questão do ser. Por isso, a hipótese deve ser falsa, o
que significa que existe, afinal, o ser necessário de que
todas as outras coisas dependem. E essa coisa é - adap­
tando o linguajar de Avicena - causa sui (wajib al-wujud
bi dhatihi); ela é dependente de si mesma, o sustentáculo
de tudo. E é uma coisa, uma unidade, admitindo, nas
palavras do Corão, “parceiro nenhum".

Uma das muitas intuições contidas nesse argumento - e


em toda a sutil (ainda que por vezes tediosa) metafísica
que veio das escolas medievais - é a implicação de que
o mundo dos seres contingentes, a que pertencemos,
é governado por suas próprias leis, as leis da geração
e da corrupção. Descobrimos essas leis por meio da
investigação científica, e elas são as leis da natureza
que nos constrangem a todos. Elas incluem as leis da

’ Summa Theologiae, 1,2-3.

capitulo 1 - a vista de lugar nenhum 31


genética, que, na visão de Dawkins, apresentam uma
refutação final da crença em Deus. Mas, de acordo com
Avicena, existe outra relação de dependência além
daquela explorada pela ciência: a relação entre o con­
tingente e o necessário, entre o mundo e seu “susten-
táculo** (rabb, usando o termo corânico, que significa
“senhor** ou “aquele que em última instância está no
comando**), e essa relação não está sujeita à investiga­
ção empírica, nem pode ser conhecida ou refutada pelo
progresso científico.

A relação de dependência que liga o mundo a Deus escla­


rece por que as coisas são como são. Mas essa razão não
é uma causa: causas são assunto da ciência e explicadas
pelas leis universais que descobrimos por meio de experi­
mentos e da observação. A relação causai é uma relação
no tempo que liga entes temporais (e portanto contingen­
tes). Ao referir a razão última das coisas, estamos lidando
com outro tipo de resposta para a pergunta “por quê?**;
logo, com outro tipo de portanto. E é isso que dá senti­
do à vida de oração. Não supomos que Deus possa ser
convocado a ajudar-nos a cada momento, nem que esteja
esperando nos bastidores da natureza, dando as cartas.
Se levarmos a sério as idéias por trás do argumento de
Avicena, passamos a uma ideia de Deus diferente da­
quela que informa a mente supersticiosa. A liberdade de
Deus é revelada nas leis que nos obrigam, e às quais ele
também está obrigado, porque a liberdade de Deus seria
diminuída, e não engrandecida, se ele fosse questionar as
leis que governam o mundo criado e que enunciam sua
Providência. Mas isso não significa que Deus esteja além
do nosso alcance. Ele está em nós e em tomo de nós, e
nossas orações dão a forma de nossa relação pessoal com

32 o rosto de Deus
ele. Dirigimo-nos a ele, assim como nos dirigimos àqueles
que amamos, não com o “por quê?” da explicação, mas
com o “por quê?” da razão e com o “por quê?" do senti­
do. Queremos saber a finalidade e o sentido, e também a
causa, e treinar a disciplina da aceitação. É essa postura,
e não a crença em intervenções sobrenaturais, que infor­
ma a visão de mundo religiosa - a postura de submissão,
ou de islã.

Eu costumava ser muito cético em relação a esses argu­


mentos, em grande parte pelos motivos enunciados por
Kant, pois eles exigem ir além dos limites do pensamento
cientifico, e aplicar conceitos como “causa", “substân­
cia", “probabilidade" e “qualidade" ao mundo concebido
como um todo, e não aos itens empiricamente encon­
trados nele. Segundo Kant, há sempre um salto indevido
do campo do entendimento - no qual aplicamos nosso
pensamento à experiência, a fim de conhecer o mundo da
maneira como ele se apresenta para nós - para o campo
da razão pura, em que somos tentados a fazer pergun­
tas que não têm resposta, uma vez que elas aplicam
conceitos fora do domínio em que eles fazem distinções
verdadeiras. Uma dessas questões é exatamente aquela
que venho considerando - a questão “por quê?", feita em
relação ao mundo como um todo.

Kant, porém, era muito ambivalente em relação à sua


própria conclusão. Ele acreditava que a tendência da
razão de exceder os limites da ciência é incorrigível e,
ao mesmo tempo, incontestável. A pergunta “por quê?"
não vai desaparecer só por causa de uma teoria filosó­
fica que a condena por considerá-la indevida. Afinal,
essa pergunta tem a ver com nossa ansiedade mais

capitulo 1 - a vista de lugar nenhum 33


fundamental - a ansiedade da própria existência. “Por
que eu sou?” é uma pergunta que você pode descar­
tar, como se fosse uma pergunta sem resposta. Mas,
ao descartá-la, você também a responde, evocando a
resposta de Sartre em seus textos “existencialistas”. Ao
dizer que não existe resposta para a pergunta “por que
eu sou?”, você abre as portas para a ideia de que a sua
própria existência é uma espécie de absurdo; e é só um
passo dessa ideia até a conclusão existencialista de que
há uma razão para a sua existência, mas cabe a você,
e somente a você, apresentá-la. Essa resposta existen­
cialista então reforça a pergunta, que se impõe dia após
dia, e minuto após minuto, em nossa vida pessoal.

Se você aceitar o argumento de Avicena com base no ser


contingente, então também precisa aceitar que a relação
de dependência entre Deus e o mundo não é uma relação
causai - isto é, não é um caso especial daquelas conexões
semelhantes a leis entre acontecimentos contingentes que
conhecemos pelos métodos da ciência empírica. O “Deus
dos filósofos” não é um ser empírico, mas transcenden­
te; um ser cuja natureza e essência colocam-no fora
do mundo das particularidades empíricas, sustentando
esse mundo de alguma forma, mas não do modo como
uma trave apoia uma viga ou como uma mãe segura seu
filho. Contudo, é difícil entender como um ser como esse,
cuja natureza é etemamente a mesma, podería chegar a
interferir no mundo sob qualquer aspecto.10 De fato, pa­
recemos eterna e irremediavelmente apartados dele - ele
se toma o deus absconditus, o Deus oculto, como Santo

10 Ver o argumento em Kenny, op. cit.

34 o rosto de Deus
Tomás o descreveu. E como podemos nos relacionar
com esse Deus: como podemos amá-lo ou saber que ele
retribui o nosso amor? Se resolvermos a tensão entre as
visões de mundo teísta e científica à maneira de Avicena,
então o risco é terminarmos com um Deus que não pode
ser conhecido nem amado, já que só aquilo que pode ser
conhecido pode ser verdadeiramente amado. E, se assim
for, como podemos obedecer aos dois grandes manda­
mentos de amar a Deus completamente e nosso próximo
como a nós mesmos, os mandamentos, como disse Cristo,
que são utoda a lei e os profetas”? Esse problema ocorre
não apenas com o Deus de Avicena, mas também com
o Deus de Averróis, com o Deus de Moisés Maimônides
e até com o Deus de Aquino. Afinal, o problema surge
precisamente porque nos decidimos a provar a existência
de Deus com base em premissas puramente abstratas,
sem fazer referência ao modo como as coisas existem
no mundo empírico. 0 argumento com que esperamos
responder à ciência acaba escondendo Deus.

Somos levados, portanto, a fazer uma pergunta per­


turbadora: de que nos serve esse ser transcendental a
respeito de quem nada pode ser sabido, exceto que ele
está além do conhecimento? Como podemos também
ter a perspectiva de lugar nenhum, que é justamente a
perspectiva de Deus? Como podemos rezar para um Deus
assim e como podemos abrir espaço para ele em nossa
vida, assim como se abre espaço para um cônjuge ou um
amigo? Certamente Deus há de estar presente no mundo,
se vamos ter fé nele, porque a fé é uma relação pessoal,
uma relação de confiança, que exige o tipo de reciproci­
dade que um ser livre pode oferecer a outro, no mundo
do espaço e do tempo.

capitulo 1 - a vista de lugar nenhum 35


Agora, se a crença em Deus não passasse de uma me­
tafísica abstrata, seria difícil entender por que é impor­
tante ter ou não ter fé. A ciência mais a metafísica é o
equivalente da ciência, quando se trata de decisões reais
e práticas. Mas há outro aspecto da crença religiosa, um
aspecto que tem sido de muito mais interesse para os
antropólogos e psicólogos do que os abstrusos racio­
cínios dos filósofos. Claro está, desde o grande ensaio
de Durkheim sobre As Formas Elementares da Vida
Religiosa, que as religiões existem e persistem em parte
porque oferecem uma filiação.” Você nasce numa reli­
gião, ou se converte a ela, e pode considerar difícil sair
dela sem uma catástrofe existencial. Em alguns casos,
como no islã, você é proibido de abandonar a fé - você
pode cair num estado de ignorância, ou jahiliyya, mas
a conversão para outra religião é uma negação daquilo
que você verdadeiramente é, sendo portanto um cami­
nho interior para a pena de morte, que é a expressão
exterior da sua queda. Levanta-se, assim, uma nova
questão: como pode a crença ser uma forma de filiação?
A resposta, simplesmente, é que a crença é uma forma
de filiação quando define uma comunidade. Ao aderir
à doutrina você é incorporado à comunidade. E essa
incorporação é regularmente reafirmada por meio de
ritos sacros que significam, de algum modo, a relação
coletiva entre a comunidade e seu Deus.

É evidentemente absurdo pensar nesses termos a respeito


de crenças científicas, que não oferecem de modo algum

” Émile Durkheim, Les Formes Èlémentaires de Ia Vie Religieuse. Paris, F.


Alcan, 1912. (Trad. Paulo Neves. São Paulo, Martins Editora, 2003. (N. T.)]

36 o rosto de Deus
uma filiação e, na verdade, nada além de si mesmas,
junto com o desafio de refutá-las - desafio que, segun­
do a abordagem plausível de Popper, é parte essencial
de sua pretensão de ser ciência.12 De fato, quando um
sistema de crenças começa a perseguir aqueles que não
o aceitam, sabemos - ou devíamos saber - que ele não
passa de uma pseudociência. Isso com certeza fica to­
talmente óbvio nos casos do freudismo e do marxismo,
duas supostas ciências que viraram o mundo de cabeça
para baixo ao reivindicar as almas de seus seguidores e
não suas opiniões refletidas.

Acho que é esse aspecto da religião, muito mais do


que qualquer aparente conflito entre suas doutrinas e
as teorias da ciência, que explica a sensação de que de
algum modo a religião e a ciência se opõem mutuamen­
te. Se uma crença oferece filiação, então ela precisa ser
protegida de alguma maneira - o destino da comunidade
humana foi amarrado a ela, e a defesa da crença é a defe­
sa da comunidade. Isso explica o conceito de heresia e por
que os hereges são tratados de maneira tão severa pelas
religiões tradicionais. Explica por que os hereges são tão
mais perseguidos quanto menor for seu desvio da orto­
doxia - se o desvio for grande o bastante, você já não é
parte da comunidade, e suas crenças podem ser ignoradas.
Desvie um centímetro e você ameaça toda a comunidade
da qual faz parte. Por isso, o teólogo polonês Jan Crell
observava no século XVII o contraste entre a intolerância
dos estabelecimentos católicos em relação aos hereges e a

Ver Karl Popper, The Logic ofScientific Discovery. 1934. (Edição inglesa,
Routledge, 1959.)

capitulo 1 - a vista de lugar nenhum 37


fácil aceitação dos judeus e dos muçulmanos com quem
faziam negócios, cujas “blasfêmias contra Cristo” os cató­
licos ignoravam sem o menor problema.13

É esse o aspecto da religião, acho, que mais perturba as


pessoas religiosas que respeitam o método cientifico e
absorveram as lições - as muitíssimas lições - do ilu-
minismo, desejando seguir o caminho da “religião nos
limites da simples razão”, como Kant expressou no título
de seu livro a respeito - livro que lhe trouxe problemas
com a censura exatamente porque parecia expulsar Deus
de seus lugares habituais no mundo empírico. Como po­
demos conciliar a natureza de formação das comunidades
de crenças religiosas e suas pretensões de verdade?

Influenciados por Wittgenstein e Quine, os filósofos às


vezes defendem uma abordagem em terceira pessoa da
teoria do conhecimento, descrevendo nossas capacidades
epistemológicas como traços do mundo natural. Real­
mente existem, dizem eles, as coisas referidas na verda­
deira explicação das nossas crenças. Por exemplo, nossas
crenças a respeito do mundo físico são mais bem explica­
das pelo pressuposto de que ele existe, e evoluímos a fim
de obter informações precisas a respeito de suas linhas
gerais. Crenças verdadeiras têm conexão causai com seu
conteúdo de maneira que facilitem nossos procedimentos.

13 Ver A Learned and Exceeding Well Compiled Vindication of Liberty and


Religion. London, 1646, tradução inglesa do original latino de Crell, cap.
II. Crell era membro de destaque da Irmandade Polonesa (sociniana) e foi
grande influência para John Locke. Ver Sarah Mortimer, Reason and Reli­
gion in the English Revolution: The Challenge of Socinianism. Cambridge,
Cambridge University Press, 2010.

38 o rosto de Deus
Crenças falsas sào o resultado de “cadeias causais des-
viantes”, como no caso das alucinações, que rompem a
conexão entre representação e realidade.

Essa abordagem tem implicações radicais para a teologia.


Se as afirmações comuns da fé são verdadeiras, Deus é
transcendente. Não é parte da natureza e não é um objeto
passível de investigação científica. Nenhuma explicação
científica da crença religiosa jamais podería referir-se a
ele. Segue-se que, se há explicação, ela será “naturalis­
ta”: explicará a crença religiosa valendo-se de forças e
de funções que não fazem nenhuma referência a Deus.
A melhor explicação de nossa crença no transcendente
não pode fazer nenhuma referência ao transcendente.
Segue-se daí que a crença não tem fundamento? Talvez
não. Porque a existência dessa explicação naturalista é
precisamente aquilo que a existência de Deus implicaria.
(Façamos uma comparação com nossa crença na exis­
tência dos números. Nossas crenças matemáticas não são
causadas pelos números, que são objetos abstratos, des­
providos de poderes causais. Contudo, muitas de nossas
crenças a respeito dos números são verdadeiras.)

De onde, então, surge a crença religiosa? Como, e em


resposta a quais pensamentos ou experiências, ela muda?
E a resposta simples e direta parece a resposta correta.
A crença religiosa é recebida de uma comunidade - na
maioria dos casos, a comunidade em que você nasce - e
muda em resposta a mudanças naquela comunidade.
Naturalmente, ela também é adornada pela doutrina
e desenvolvida pela investigação racional. Mas os re­
sultados dessa investigação só são aceitos pela religião
quando a comunidade se remodela em torno deles. E esse

capitulo 1 - a vista de lugar nenhum 39


remodelamento da comunidade nâo costuma acontecer
sem violência - violência do tipo que arrasou a Europa
durante o século XVII.

A ciência pode tentar explicar de algum modo a cren­


ça religiosa. A religião, diria o psicólogo evolucionista,
é uma adaptação que nos permite permanecer unidos,
guardar e defender nosso território, e fazer toda espécie
de sacrifício necessário para a sobrevivência coletiva e,
portanto, para nossa própria sobrevivência, como be­
neficiários desse laço inclusive.14 A natureza e o escopo
dessas explicações evolucionistas são um assunto ao qual
retomarei. Mas não devemos enfatizá-los excessivamen­
te. As adaptações são elas mesmas adaptadas: nos seres
humanos, o processo de adaptação caminha rapidamente,
e de maneira sem precedentes entre os animais inferiores.
Além disso, somos animais racionais e suprimos nossas
necessidades biológicas com comentários justificativos.
Assim, para nós, a vida com religião é em todos os níveis
diferente da vida sem ela. Isso é algo que precisa ser
reafirmado repetidamente, nem que seja porque persiste
a ilusão entre pensadores esclarecidos de que a religião
consiste meramente num conjunto de crenças cuja falsi­
dade há muito foi demonstrada pela ciência, mas a que
as pessoas se agarram mesmo assim por causa do confor­
to que elas proporcionam.

Em quase toda religião, além dos sacramentos e dos atos


coletivos de adoração, há espaço para a solidão, com os

14 Ver David Sloan Wilson. Darwin's Cathedral: Evolution, Religion and the
Nature ofSociety. Chicago, University of Chicago Press, 2002.

40 o rosto de Deus
consolos que ela proporciona. 0 asceta e o anacoreta, o
peregrino solitário e o contemplativo, procuram outra co­
munhão - a comunhão com Deus mesmo, com o espírito
do mundo, com Brama, ou com o Amigo. Esses ramos
solitários do ímpeto religioso original têm importância
enorme em toda religião séria, por oferecer outro caminho
para ela. Eles parecem uma rejeição do mundo; no entan­
to, é o mundo que cria o caminho para eles. E, por meio
da disciplina da autonegação, o santo ou o bodisatva re­
faz a experiência primordial da comunidade como relação
entre si mesmo e o sentido transcendente do mundo.

A conexão entre a crença em Deus e a comunidade de


crentes é reconhecida pelo conceito cristão de comu­
nhão. E essa conexão, longe de lançar dúvidas sobre a
validade da teologia transcendental, aponta o caminho
para que suas carências sejam supridas. A comunhão
é a presença real de Deus entre nós, e é a partir desses
atos de participação que chegamos a ver quem é Deus e
como ele se relaciona conosco. É por meio da comunhão
que ficamos face a face com Deus. Em outras palavras,
aquilo que, do ponto de vista científico, é um defeito da
crença religiosa - isto é, que ela tenha a autoridade de
uma comunidade - é uma força do ponto de vista teoló­
gico. Porque é essa conexão com a comunidade que nos
permite preencher a lacuna aberta pelos argumentos dos
filósofos e encontrar o Deus transcendental que aqueles
argumentos supostamente provariam ser uma presença
transcendental no mundo. Esse, parece-me, é o verdadei­
ro sentido da Eucaristia cristã e uma razão pela qual o
sentido daquele sacramento é tão fácil de experimentar
e tão difícil de explicar - a menos que seja por meio de
uma obra de arte, como Wagner fez em Parsifal.

capitulo 1 - a vista de lugar nenhum 41


Afirmarei que é possível conciliar o Deus dos filósofos
com o Deus que o crente comum adora e para o qual
reza, desde que vejamos que esse Deus é compreendido
não por meio de especulações metafísicas a respeito dos
fundamentos do ser, mas por meio da comunhão com
nossos semelhantes. A comunidade religiosa adapta a
perspectiva de lugar nenhum, que é a perspectiva de
Deus, à perspectiva de algum lugar, que é a nossa. É pos­
sível justificar essa noção, insisto, explorando de maneira
mais completa o sentido de três termos essenciais: “eu**,
“você" e upor quê?” E, ao explorar esses termos, construi­
rei uma teoria geral do rosto: o rosto da pessoa, o rosto
do mundo e o rosto de Deus.

42 o rosto de Deus
Sugeri que os argumentos que podemos usar para conci­
liar a crença em Deus com a visão de mundo científica,
ainda que persuasivos em si mesmos, levantam outra
questão para o crente, que é o problema da presença de
Deus no mundo. Onde podemos encontrá-lo, e como?
Eis o fantasma de uma resposta a essa pergunta: Deus é
uma pessoa, e ele se revela como as pessoas, por meio de
um diálogo que envolve os três termos essenciais “eu",
“você" e “por quê?"1 Essa resposta nos coloca diante de
outro problema levantado pela visão de mundo científica,
que é o de conciliar nossas crenças a respeito de pessoas
com a ciência do ser humano.

0 que quer que os filósofos tenham a dizer, suas teorias


precisam caber na verdade básica, isto é, que somos

’ Os cristãos acreditam que Deus é três pessoas em uma substância, ainda


que a palavra "pessoa" nesse uso deva ser vista como termo técnico, deriva­
do de persona, que é como Santo Agostinho traduz o grego hypostosis em
De Trínitate [Sobre a Trindade]. Como elucidamos, esse termo técnico de­
penderá em parte de como elucidamos o sentido comum do termo "pessoa",
que é uma das tarefas que me proponho no que se segue.

capitulo 2 - a perspectiva de algum lugar 43


organismos distintos de outras espécies por nossa capaci­
dade cerebral, o que permitiu adaptações de uma ordem tal
que nenhuma outra espécie conseguiu igualar. Essas adap­
tações incluem a linguagem, emoções sociais e estratégias
cooperativas que vão muito além das demandas da “apti­
dão indusiva". Elas são aquilo que os filósofos interessados
na condição humana precisam entender antes de mais
nada. E elas são entendidas, no primeiro caso, pela explo­
ração do contexto em que evoluíram e dos problemas evo­
lutivos que solucionam. Daí vem o corpus cada vez maior
de literatura em que biólogos, antropólogos, sociólogos,
cientistas políticos e filósofos evolucionistas trabalham
juntos para postular as raízes de nossos atributos humanos
nas emergências diárias do homem do Pleistoceno.2

Aqueles que contribuem para essa literatura, em sua


maioria, insistem que não são reducionistas; isto é, eles
não estão tentando reduzir o comportamento humano a
algo mais simples do que ele realmente é. Estão tentando
relacionar adaptações altamente complexas às circuns­
tâncias que as selecionaram, a fim de compreender como
e por que essas adaptações foram adquiridas. E isso cer­
tamente esclarecerá como elas funcionam para nós, aqui,
agora, mesmo que essas circunstâncias tenham desde
então desaparecido.

’ Ver, por exemplo. Robert Axelrod, The Evolution of Cooperation. New


York, Basic Books, 1984; John Tooby e Leda Cosmides, “The Psychological
Foundations of Culture" In: Jerome Barkow, Leda Cosmides e John Tooby
(eds.). The Adapted Mind: Evolutionary Psychology and the Generation of
Culture. Oxford, Oxford University Press, 1992; Dan Sperber, Explaining
Culture. Oxford. Blackwell, 1996; Elliott Sober e John Sloan Wilson, Unto
Others: The Evolution and Psychology of Unselfish Behaviour. Cambridge,
Massachusetts, Harvard University Press, 1999.

44 o rosto de Deus
Essa abordagem promete dissipar algo do mistério da
condição humana. Se for possível mostrar que algum
traço da nossa vida mental é uma adaptação enraizada
nas tribulações de nosso passado de caçadores-coleto-
res, então será criada uma ponte entre as peculiaridades
das pessoas civilizadas e as circunstâncias daquelas
criaturas semelhantes a gorilas das quais descendemos.
Aquilo que de outro modo parecería um abismo in­
transponível na ordem natural, entre o animal instinti­
vo e o ser moral plenamente dotado de cultura, começa
a adquirir antes a aparência de uma transição passo
a passo, podendo cada passo ser explicado em termos
evolucionistas.

Por outro lado, o método a priori da filosofia tradicional


retrata a condição humana como algo inteiramente apar­
tado do resto da natureza, como na filosofia de Kant,
para quem o conceito da pessoa é central. No entan­
to, ele escreve sobre pessoas de tal modo que se pode
duvidar, no fim das contas, se elas são mesmo parte do
mundo natural. Afinal, segundo Kant, aquilo que nos
distingue como pessoas é nossa “liberdade transcenden­
tal", que conhecemos com certeza, mas que não conse­
guimos compreender.

Contudo, quando os biólogos tentam desenvolver uma


explicação do ser humano baseada na imagem darwi-
niana de como surgimos, subitamente eles acabam ou
descrevendo-nos de maneira muito mais simples do que
somos ou descrevendo os animais inferiores de maneira
muito mais complexa do que eles são. Esse hábito come­
çou com Darwin, que assim escreve no terceiro capítulo
de The Descent of Man [A Ascendência do Homem]:

capitulo 2 - a perspectiva de algum lugar 45


Se [...] os homens fossem criados sob
as mesmissimas condições das abelhas
de uma colmeia, mal se pode duvidar
de que nossas fêmeas solteiras julgas­
sem, como as abelhas operárias, que é
seu sacro dever matar seus irmãos, e as
mães tentariam matar suas filhas férteis;
e ninguém pensaria em interferir nisso.5

Essa frase faz parte de uma extensiva tentativa de mos­


trar que os sentimentos têm precisas analogias e arqué­
tipos no reino animal e que não é preciso dar um passo
explicativo especial para descrever o senso moral, como
o senso da beleza e a disposição para a religião, como
respostas evoluídas. Mas observe as implicações: as
abelhas operárias, na visão de Darwin, não têm apenas
um senso de dever. Elas também possuem o conceito do
sagrado. Elas são plenas pessoas kantianas, cuja visão
de mundo é exatamente a visão que deveriamos ter
caso desfrutássemos da educação oferecida no interior
da colmeia. Darwin parece estar explicando a emergên­
cia do senso moral com base no comportamento social
instintivo dos animais, descrevendo esse comportamento
como se ele já fosse uma instância do senso moral. Essa
explicação seria circular e termina por ocultar o mistério
mais do que resolvê-lo.

Considere também as “explicações" da benevolência


humana como “altruísmo recíproco", supostamente uma

1 Charles Darwin, Evolutionary Wrítings. Ed. James A. Secord. Oxford, Oxford


University Press, 2008, p. 248-49

46 o rosto de Deus
estratégia evolutivamente estável não apenas para os ge­
nes humanos mas para os genes de qualquer criatura que
possa obter um benefício reprodutivo ao fazer alguma
coisa que beneficie os outros. A origem dessas explica­
ções está na aplicação da teoria dos jogos à genética feita
por John Maynard Smith e à evolução social por Robert
Axelrod, ambas popularizadas por Matt Ridley em The
Origins of Virtue [As Origens da Virtude].4 Ridley sugere
que a virtude moral é uma adaptação, evidenciando que
qualquer outra forma de conduta teria colocado os genes
de um organismo numa situação de clara desvantagem
no jogo da vida. Na linguagem da teoria dos jogos, nas
circunstâncias que prevaleceram ao longo da evolução, o
altruísmo é uma estratégia dominante.

0 argumento de Ridley emprega uma concepção minima­


lista do altruísmo segundo a qual um organismo age de
maneira altruísta se isso beneficia outro organismo, ainda
que essa ação implique um custo. 0 conceito se aplica
tanto à formiga soldado que marcha nas chamas que
ameaçam o formigueiro quanto ao oficial que se joga na
granada que ameaça seu pelotão. 0 conceito de altruísmo,
assim entendido, não consegue explicar, nem reconhecer, a
distinção entre esses dois casos. Contudo, a formiga mar­
cha instintivamente para as chamas, incapaz de compreen­
der o que faz ou de compreender os resultados, ao passo
que o oficial conscientemente dá sua vida pelos amigos.

4 Robert Axelrod, The Evolution of Cooperation. New York, Basic Books,


1984; J. Maynard Smith e G. R. Price, "The Logic of Animal Conflict",
Nature, 246, 1973, p. 15-18; Matt Ridley, The Origins of Virtue: Human
Instincts and the Evolution of Cooperation. London and New York,
Viking (Penguin), 1991.

capitulo 2 - a perspectiva de algum lugar 47


Os seres racionais têm motivação para sacrificar-se a si
mesmos, independentemente da vantagem genética. Essa
motivação seria sentida ainda que o resultado normal de
segui-la fosse aquilo que os gregos observaram com as­
sombro nas Termópilas, ou nossos ancestrais na Batalha
de Maldon. Nessas instâncias, uma comunidade inteira
abraça a morte, com plena consciência do que está fa­
zendo, porque a morte é a única opção honrosa. Mesmo
que você não ache correta a explicação que Kant dá a
isso - talvez porque prefira a de Aristóteles, ou porque
outra teoria moral lhe pareça mais plausível -, o fato
é que essa motivação é observada universalmente nos
seres humanos, e totalmente distinta daquela da formiga
soldado, por nascer de uma consciência do dever e do
custo de cumpri-lo. A motivação moral é essencialmente
interpessoal: aquele que é movido a agir certo, indepen­
dentemente do custo, está observando sua própria ação
do lado de fora, como veria a ação de outro, como uma
ação obrigatória para ele.

Para os psicólogos evolucionistas, a conduta dos espar­


tanos nas Termópilas é sobredeterminada. A explicação
da "estratégia reprodutiva dominante" e a explicação do
“sacrifício honroso” são ambas suficientes para escla­
recer o que se faz. Então qual das duas é a verdadeira?
Ou será que a explicação do “sacrifício honroso” é só
uma história que contamos para nós mesmos para poder
pregar medalhas no peito da “máquina de sobrevivência”
arruinada que morreu obedecendo seus genes?

Com certeza a explicação moral é genuína e suficiente.


Não é possível viver a vida como a conhecemos - a vida
de uma pessoa, que tem de responder a outros e a si

48 o rosto de Deus
mesma - sem experimentar a força das normas morais.
Podemos resistir a essa motivação, mas só em casos
patológicos ela está totalmente ausente. Segue-se que a
explicação genética não tem grande valor. Se os seres
racionais são motivados para agir desse modo, indepen­
dentemente de qualquer estratégia genética, então isso
basta para explicar que eles se comportam assim.
E, considerando a óbvia utilidade social dessa moti­
vação, podemos concluir, sem nenhuma referência à
biologia, que uma espécie concorrente inclinada a agir
de modo distinto a essa altura já teria morrido.

As explicações científicas da vida moral com frequência


exibem aquilo que chamo de “charme do desencanto”,
o apelo que nasce ao se remover aquilo que nos distingue
como seres humanos. Ponha de lado justamente o que
precisa ser explicado - a generosidade humana -, en­
contre algo que se pareça um pouco com ela - a suposta
divisão da presa pela fêmea do morcego-vampiro - e
descreva o comportamento animal num linguajar ade­
quado ao exemplo humano (como um “presente” para
“outro”) e por um breve momento talvez pareça que você
encontrou uma explicação? A mulher que dá seu tempo
e seu dinheiro ao hospital está fazendo o que a fêmea do
morcego-vampiro supostamente estaria fazendo quando
dá o sangue que coletou a seu próximo menos afortuna­
do, pendurado ali perto. 0 soldado que dá sua vida por
seu pelotão e a formiga que morre defendendo o formi­
gueiro estão fazendo exatamente o mesmo - aplicando

ÍJ Há controvérsias quanto ao compartilhamento de sangue pelos morce­


gos; as provas foram inicialmente apresentadas por Gerard S. Wilson. "The
Reciprocai Food Sharing in the Vampire Bat", Nature, 308, 1984, p. 181-84.

capítulo 2 - a perspectiva de algum lugar 49


uma estratégia reprodutiva de sucesso vinda dos genes
que a isso os compelem.

Essas pretensas explicações comparam a conduta humana


à animal dando uma descrição absolutamente superficial
de ambas. Em particular, elas descartam a intencionalida-
de radicalmente distinta da resposta humana. A gene­
rosidade humana é mediada por conceitos como dom,
sacrifício, dever, santidade - conceitos que pressupõem o
reconhecimento do eu e do outro, além do senso, espe­
cifico dos seres racionais, de responsabilidade por aqui­
lo que se é e que se faz e que os obriga a refletir sobre
essas coisas. 0 surgimento desses conceitos é o que mais
pede explicação, já que eles criam aquilo que parece um
abismo intransponível na história evolucionista. Não se
transpõe esse abismo por uma mera descrição equivocada
do comportamento que o cria.

A abordagem evolucionista também não explica a lógica


interna de nossos estados de espírito. Tome a matemáti­
ca. Ela também é uma adaptação. Se você não consegue
somar, não vai saber multiplicar. Mas você não preci­
sa de muita matemática para satisfazer as exigências
reprodutivas dos seus genes; e alguém que, além de fazer
contas básicas, se interesse por cardinais transfinitos e
pela topologia do espaço n-dimensional não está dando
uma grande ajuda às estratégias genéticas que o levaram
a essa situação. Porém, uma vez que se vença o obstá­
culo entre a criatura matematicamente analfabeta e a
criatura matematicamente alfabetizada, a espécie huma­
na pode correr para esse novo pasto, aproveitando seu
maravilhoso fruto de conhecimento futil, construindo
teorias e provas, e, de modo geral, transformando sua

50 o rosto de Deus
visão de mundo sem nenhum benefício para seu poten­
cial reprodutivo - ou com benefícios que chegam tarde
demais para exercer qualquer pressão evolutiva em favor
da pesquisa que os produz.

Ficou célebre a descrição dada por Stephen J. Gould e


Richard C. Lewontin desse tipo de atividade, que cha­
maram de “tímpano” - com base na analogia dos cantos
ornamentados entre a arquitrave e o arco, que não têm
nenhuma função e portanto podem ser livremente deco­
rados, sem prejudicar a estrutura.6 Isso, porém, dá uma
visão equivocada dos fatos. A decoração é uma expressão
livre da escolha pessoal, e é guiada, mas não determi­
nada, por aquilo que veio antes. Uma vez no âmbito da
matemática, porém, só é possível seguir um caminho.
Alguma coisa o constrange, e não é o clamor dos seus
genes por sua imortalidade inútil, mas a restrição da for­
ça e da verdade. Compreendemos essas restrições porque
compreendemos o raciocínio. Explicação evolucionista
nenhuma vai nos dizer o que entendemos. Ela pode nos
dar um mapa causai, mas você conseguiría entender o
mapa sem entender matemática. E fora do raciocínio
matemático surge a verdadeira questão filosófica, que
biologia nenhuma jamais resolvería: de que fala a mate­
mática? Afinal de contas, o que sào números, conjuntos e
cardinais transfinitos?

A matemática nem mesmo é um caso particular. Há


muitas maneiras de as pessoas obterem entendimento

c Stephen J. Gould e Richard C. Lewontin. "The Spandrels of San Marco and


the Panglossian Paradigm", Proc. Roy. Soc. London B 205, 1979, p. 581-98.

capitulo 2 - a perspectiva de algum lugar 51


do mundo pela interpretação de sinais e de símbolos, e
mesmo que haja uma explicação evolucionista de como
viemos a adquirir determinado tipo de entendimento, o
próprio entendimento apresenta outra visão de mundo,
distinta daquela contida na teoria da evolução. A lingua­
gem é o seu exemplo mais evidente. Não sabemos como
ela surgiu; a ideia de “protolinguagens" intermediárias,
que seriam passos no caminho que vai de gritos animais
a sentenças articuladas, foi seriamente questionada (por
Chomsky, entre outros).7 Mas sabemos que a lingua­
gem nos permite compreender o mundo de um jeito que
nenhum animal desprovido dela jamais conseguiría.
Outra vez há um obstáculo e um campo ilimitado além
dele. Caso se salte o obstáculo, estão disponíveis infinitas
representações; vale dizer, os usuários da linguagem têm
acesso às distinções entre verdade e falsidade, entre pas­
sado, presente e futuro, entre possível, atual e necessário,
etc. É justo dizer que eles vivem num mundo diferente
do mundo das criaturas não linguísticas. Como as emo­
ções e as motivações se baseiam nos pensamentos, a vida
emocional e os motivos que elas têm para agir serão de
um tipo totalmente diferente daquele dos outros animais.
Certamente é por isso que hesitamos (ou que devíamos
hesitar) diante de teorias do altruísmo como “estratégia
evolutivamente estável”. Afinal, o altruísmo nas pessoas

' Em Language and Mind. Cambridge: MIT Press. 1968, e em outras obras.
Alguns geneticistas propuseram teorias de "protolinguagens" que tentam
mostrar que podería haver progressos fragmentários no sentido da com­
petência linguística, e que esses progressos seriam selecionados no nível
genético. Ver, por exemplo, John Maynard Smith e Eõrs Szathmáry, The Major
Transitions in Evolution. Oxford e New York, W. H. Freeman, 1995. p. 303-38.
Essas teorias, porém, nunca parecem superar a transição das correlações
entre palavras e coisas para a referência de palavras para coisas.

52 o rosto de Deus
não é algo instintivo. É uma resposta ponderada, às vezes
baseada em ágape ou amor ao próximo, às vezes em
complexas emoções interpessoais como orgulho e ver­
gonha, que por sua vez se baseiam no reconhecimento
do outro como alguém semelhante a mim. Em todos os
casos, o altruísmo nas pessoas envolve o reconhecimento
de que aquilo que é mau para o outro é algo que eu tenho
motivação para remediar.

Essas atitudes dependem da capacidade de nos referir


a nós mesmos em primeira pessoa e usar o pronome
“eu”. Thomas Nagel explica de modo instigante o que tal
emprego pode envolver. Imagine uma descrição com­
pleta do mundo, segundo a verdadeira teoria (qualquer
que seja) da física. Essa descrição descreve a disposição
de todas as partículas, forças e campos que compõem a
realidade e dá coordenadas espaçotemporais para tudo
que existe. Nada foi deixado de fora e, no entanto, há
um fato que a descrição não menciona, que para mim é
o mais importante de todos: qual das coisas menciona­
das na descrição sou eu? Onde estou eu no mundo dos
objetos? E o que exatamente está implicado na afirma­
ção de que esta coisa sou eu?3

Eis uma situação vertiginosa. 0 eu não é uma coisa,


mas uma perspectiva; entretanto, como Nagel observa,
as perspectivas não estão dentro do mundo, mas sobre
o mundo. É a diferença de perspectiva entre os pontos
de vista da primeira e da terceira pessoa que faz surgir

B Thomas Nagel, A Visão a Partir de Lugar Nenhum. Sâo Paulo, Martins


Fontes, 2004.

capitulo 2 - a perspectiva de algum lugar 53


muitos dos quebra-cabeças relacionados à consciência.
Quando você julga que estou com dorJulga baseado em
minhas circunstâncias e em meu comportamento e pode
estar errado. Quando eu mesmo digo que estou com dor,
não faço uso desses indícios. Não verifico que estou com
dor pela observação, nem posso estar errado, exceto em
circunstâncias particulares; aliás, cuja anormalidade é
imediatamente perceptível. Contudo, tal não acontece
porque existe algum outro fato relacionado à minha dor,
acessível apenas a mim, e que consulto a fim de estabe­
lecer o que estou sentindo. Afinal, se essa qualidade in­
terna existisse, eu podería interpretá-la equivocadamente;
podería avaliá-la mal e teria de descobrir se estou com
dor. Eu também teria de inventar um idioma, inteligível
apenas por mim mesmo, com o qual eu descrevería meu
estado interno - e isso, como argumentou Wittgenstein,
de maneira plausível, é impossível. A conclusão a tirar é
que atribuo a dor a mim mesmo não por alguma carac­
terística interior, mas com base em nada. Não há, nesse
caso, possibilidade de averiguação.9

Claro que há uma diferença entre saber o que é a dor e


como é a dor. Mas saber como ela é não é saber de algum
outro fato interior adicional a seu respeito; é guardar
a memória de “corno doía”. Estamos lidando antes com
familiaridade do que com informação. “Como é" não vale
como descrição, porém como uma recusa de descrever.
Essa ideia leva naturalmente a uma distinção entre o
sujeito e o objeto da consciência e aponta para o estatuto

9 Naquele parágrafo resumi um aspecto do famoso argumento da linguagem


privada de Wittgenstein. Para uma exposição mais completa e referências às
fontes, ver, de minha autoria, Modem Philosophy, op. cit., cap. IV.

54 o rosto de Deus
metafísico particular do sujeito. Como sujeito autocons-
ciente, tenho um ponto de vista sobre o mundo. 0 mundo
parece de certo jeito para mim, e esse “parecer” define
minha perspectiva única. Todo ser autoconsciente tem
essa perspectiva, porque é isso que significa ser sujeito e
não um mero objeto. Todavia, quando dou uma explica­
ção científica do mundo, só descrevo os objetos, a manei­
ra como as coisas são e as leis causais que as explicam.
Essa descrição não é oferecida de nenhuma perspectiva
em particular. Ela não contém palavras como “aqui”,
“agora” e “eu": e ainda que ela pretenda explicar o modo
como as coisas parecem, faz isso dando uma teoria de
como elas são.

Em suma, o sujeito é em principio inobservável pela ciên­


cia, não porque ele exista em outro domínio, mas porque
ele não é parte do mundo empírico. Ele está na margem
das coisas, como um horizonte, e nunca podería ser
apreendido ttdo outro lado", o lado da própria subjetivi­
dade. Será que ele é parte real do mundo real? A questão
já começa como se tivesse sido formulada equivocada­
mente. Refiro-me a mim mesmo, mas isso não significa
que existe um eu a que eu me refira. Eu atuo no interesse
do meu amigo, mas não existe tal coisa pela qual eu
esteja agindo. Interesses não são objetos no mundo dos
objetos. E tampouco os “eus”.

Kant escreveu sobre esse assunto de uma forma mais


bonita que qualquer outro filósofo. 0 uso da palavra
“eu", segundo ele, distingue os seres racionais de todos
os outros objetos do mundo natural e também define
sua situação como criaturas simultaneamente presas e
livres. Descartes defendeu a suprema realidade do eu

capitulo 2 - a perspectiva de algum lugar 55


como substância unitária, cuja natureza me é revelada
de maneira infalível por meus pensamentos introspecti-
vos. Essa perspectiva, para Kant, é profundamente pro­
blemática, por tentar fazer do eu o objeto de sua própria
consciência, um item entre outros no mundo empírico.
Conheço a mim mesmo como sujeito, não como ob­
jeto. Estou à margem das coisas e, se posso dizer de
mim mesmo que sou isso, aqui, agora, essas palavras
não contêm nenhuma informação sobre o que sou no
mundo do espaço e do tempo. Tomando uma expressão
de Heidegger, J. J. Valberg afirma que estou no centro
de um horizonte, dentro do qual se desenrola minha
experiência. Porém, ao mesmo tempo que posso saber
que os outros também existem, já que o pensamento
demanda a linguagem e a linguagem é essencialmente
pública e compartilhada, não posso entrar no horizonte
de outro alguém nem ultrapassar meu horizonte para
chegar ao ponto de vista do outro.10

Contudo, há duas coisas que conheço sobre mim mesmo


como sujeito e sobre as quais não posso estar equivoca­
do, já que qualquer argumento contra elas seria pressupor
sua verdade. A primeira é que sou um centro unificado
de consciência. Sei sem observação que meus estados
mentais presentes - este pensamento, esta sensação, este
desejo e esta intenção - pertencem a uma coisa; e sei que
essa coisa persiste no tempo e está sujeita a mudanças.

10 J. J. Valbert, Dream, Death and the Self. Princeton, Princeton University


Press, 2007. Neste breve livro não posso fazer jus à sutileza e à beleza do
argumento de Valberg, mas direi apenas que ele, em diversos momentos,
toca em meu assunto, e sempre de maneira que esclarece seu alcance mais
profundo.

56 o rosto de Deus
Estou diretamente consciente, como diz Kant, da “uni­
dade transcendental da apercepção”: o proprietário
individual unificado de todos os meus estados mentais.
Esse conhecimento privilegiado dos meus estados mentais
presentes e de seu proprietário comum seria descrito por
Wittgenstein como uma característica “gramatical”: um
fato a respeito da gramática do caso de primeira pessoa.
Mas isso não é nem uma explicação, nem um ataque:
continua a ser verdade que há em cada um de nós uma
esfera de autoconhecimento que é privilegiada e que essa
esfera de autoconhecimento define o ponto de vista de
algum lugar que é meu. Sem essa esfera privilegiada, não
havería “eu”: meu mundo seria “sem mim”, e portanto
não seria nem meu nem de ninguém.

A segunda coisa que sei com certeza é que posso dar e


receber razões para ações, juizos e crenças. A questão
“por quê?” faz sentido para mim, e, quando ela é feita a
respeito de minhas próprias crenças, intenções ou atos,
posso responder a ela com a mesma autoridade com que
conheço meu próprio estado de espírito. Minhas cren­
ças podem estar erradas; minhas intenções, más; e meus
sentimentos, corruptos. Mas quando você me pede para
justificá-las sou eu, e não você, que dá a razão por quê.
Há aqui casos difíceis, como sabemos da psicopatologia.
Mas a norma é a certeza, e é só por essa razão que o
“por quê?” faz sentido. 0 seu “por quê?” ê uma pergunta
que posso responder imediatamente, sem nenhuma base,
ao mesmo tempo que ofereço a mim mesmo para o seu
julgamento. E porque a resposta à pergunta está, nesse
sentido, inteiramente ao meu alcance, a sua pergunta é
dirigida a mim - ela procura o eu em mim, assim como a
minha resposta procura o eu em você.

capitulo 2 * a perspectiva de algum lugar 57


Essa característica da condição humana é ao mesmo
tempo fundamental e misteriosa. É fundamental na
medida em que transfigura o mundo humano, dota
nossas ações de um significado que atividade huma­
na nenhuma pode replicar e possibilita a descrição
de agentes humanos de maneiras que os distinguem
completamente do mundo ao redor. É misteriosa na
medida em que não há nada mais a ser dito para expli-
cá-la: toda criatura capaz de dizer “eu" e, portanto, de
referir-se a si mesma é capaz de responder à pergunta
“por quê?" Mas não há nenhum outro dado a respeito
dela que explique esse fato.

Igualmente interessante é o caso da segunda pessoa.


Somos capazes de observar e de compreender muitas
coisas em nosso ambiente, e é natural procurar uma
explicação para as coisas que observamos perguntando
“por quê?" a respeito do Sol, da Lua e das estrelas, do
clima, da paisagem e das coisas que nela crescem e tam­
bém dos animais. Mas esse “por quê?" não é dirigido às
coisas que observamos: não pedimos ao Sol que expli­
que a si mesmo, nem que as árvores nos contem como
crescem. A respeito de uma coisa ao nosso redor, porém,
perguntamos “por quê?”, e essa coisa é aquilo a que
nos dirigimos como “você". Posso dirigir-me a objetos
e a animais como “você", mas só de maneira figurada
- certamente não da maneira como usamos a palavra
entre nós, pedindo-nos uns aos outros explicação de
nossos pensamentos e sentimentos. “Como vai você?"
é normalmente a primeira coisa que uma pessoa diz a
outra; e essa é uma forma verbal que estabelece uma
relação que só pode existir entre aqueles que se referem
a si mesmos como eu.

58 o rosto de Deus
A relação Eu-Você recebeu atenção considerável da
filosofia moderna, sobretudo num famoso livro de Martin
Buber, Eu e Tu (1923), e, mais recentemente, numa obra
cuidadosamente argumentada de Stephen Darwall.11
A relação Eu-Você, ao mesmo tempo que distingue as
pessoas, também as constitui. É tratando um ao outro
por “você” que nos atamos à rede de relações interpes­
soais, e é em virtude de nosso lugar na rede que somos
pessoas. A pessoalidade é uma condição relacionai, e sou
uma pessoa na medida em que posso entrar em relações
pessoais com outros como eu. Isso pode ser parte da­
quilo que Locke quis dizer quando descreveu o conceito
de pessoa como um conceito “forense”:'2 ele denota o
aspecto da condição humana em que assumimos respon­
sabilidade por nossas ações, explicamos uns aos outros
como as coisas nos aparecem, damos razões para decisões
nossas e alheias e elogiamos ou censuramos uns aos ou­
tros segundo as normas e aspirações que nos esforçamos
para compartilhar. Dai o papel do caso de segunda pessoa
como uma maneira de endereçamento e não apenas como
modo de descrever outras pessoas.

A expressão “por quê?” ocupa um lugar especial em


nosso diálogo interpessoal. Quando dita face a face,
“por quê?” tem uma expressão particular, capturada por
Schumann em Warum?" uma pequena obra para piano:

’’ Stephen Darwall, The Second Person Standpoint: Respect, Morality and


Accountability. Cambridge, Massachusetts, Harvard University Press, 2006.
12 John Locke, Ensaio Sobre o Entendimento Humano, 1689, Livro IV.
” A terceira peça de Fantasiestücke, op. 12. Vladimir Jankélévitch descreve
esse “por quê?“ como uma pergunta "eternamente suspensa", já que a mú­
sica não tem respostas. Ver Music and the Ineffable. Trad. Carolyn Abatte.
Princeton, Princeton University Press, 2003, p. 19.

capítulo 2 - a perspectiva de algum lugar 59


a questão olha para você e, ao mesmo tempo, dentro
de você. Esse uso interpessoal ê totalmente diferente do
uso de “por quê?” na explicação científica. Mesmo que
respondamos à questão “por quê?” mencionando a causa
de nosso estado de espirito, estaremos fazendo mais do
que isso. Estaremos dando conta de nós mesmos. E esse
prestar contas de si mesmo a outrem também é algo que
fazemos eu a eu, quando refletimos a respeito de nossas
ações e emoções querendo julgá-las, vendo-as de fora,
como vemos as ações e as emoções dos outros. Está
contido na pergunta “por quê?” o notável fato de que
cada um de nós é, ao mesmo tempo, eu e outro, ligado a
outras pessoas numa rede de encontros face a face.
A questão tira o véu que existe entre nós, criando um
lugar onde, por assim dizer, eu olha para eu.

Duas importantes consequências seguem. A primeira é


que os seres humanos podem se decidir a fazer uma coisa
e não outra. Uma intenção não é a mesma coisa que um
desejo: você pode intencionar fazer o que não quer e
querer fazer aquilo que não intenciona. Intencionar algo
significa ter certeza de que você fará aquilo e estar pre­
parado para responder por quê. Intencionar não é prever.
Prevejo que beberei demais na festa hoje; mas talvez
os deuses me favoreçam e eu encontre a força de voltar
sóbrio para casa. Ao fazer essa previsão, estou olhando
para mim mesmo de fora, avaliando os indícios, extrapo­
lando com observações pregressas e tirando conclusões
como as tiraria se estivesse observando outra pessoa.
Minha previsão pode acabar se mostrando certa ou erra­
da, mas do ponto de vista do autoconhecimento ela não
é mais privilegiada do que minhas previsões a respeito do
conhecimento de outra pessoa.

60 o rosto de Deus
Quando decido ir sóbrio para casa, eu “me resolvo”, e isso
significa ter certeza sem indício nenhum de que é isso
que farei. Nesse caso, respondo à pergunta “por quê?"
sem apresentar evidências com base em comportamentos
pregressos, mas oferecendo razões para agir. Estou assu­
mindo a responsabilidade pelo meu futuro, e isso significa
colocá-lo dentro do escopo do conhecimento em primeira
pessoa, ter certeza de que será isso que farei. Se no fim
das contas eu não voltar sóbrio para casa, não terá sido
porque eu estava equivocado na afirmação anterior sobre
minha ação futura, mas porque mudei de ideia.

Desde a explicação de Aristóteles sobre a razão prática


na Ética a Nicômaco, os filósofos têm ficado perturbados
com a possibilidade de fragilidade da vontade - chamada
por Aristóteles de akrasia. Parece que às vezes nos deci­
dimos a fazer alguma coisa e, no entanto, não a fazemos,
ainda que nada que se pareça com uma “mudança de
ideia" ocorra entre a decisão e o momento de fraqueza.
Como isso é possível? A pergunta nos leva à margem
indecifrável de nosso ser, o lugar onde liberdade e natu­
reza, sujeito e objeto, se afastam. Na fragilidade da von­
tade, os planos do sujeito, que nada pode derrotar, exceto
uma razão de compensação, são derrotados sem motivo.
Não consigo resolver esse paradoxo, mas aquilo que direi
pode em alguma medida amortecer seu impacto.14

A segunda consequência do uso de “por quê?” é, por­


tanto, a de que os seres humanos são agentes racionais:

14 Esse paradoxo é enfatizado por Donald Davidson num artigo que gerou
extensa literatura. Ver "How Is Weakness of the Will Possible?" (1969). In:
Essoys on Actions Events. 2. ed., Oxford, Clarendon Press, 2001.

capítulo 2 - a perspectiva de algum lugar 61


agimos pela razão e estamos abertos a criticas quando
ela parece inadequada ou problemática. A pergunta upor
quê?” tira nossas ações do domínio de causa e efeito e as
coloca decididamente no campo de razões e objetivos. É
isso, em parte, o que queremos dizer ao chamar uma ação
de intencional, isto é, que ela está dentro da perspectiva
da razão prática. 0 agente pode ser chamado a explicá-la,
ser capaz de responder espontaneamente à pergunta “por
quê?” Algumas ações intencionais são precedidas de uma
decisão: nem todas, porém, são assim. Como afirmou
Elizabeth Anscombe, uma ação só é intencional na me­
dida em que admite a aplicação de “um certo sentido da
pergunta ‘por quê?’” - o sentido que estou considerando
neste capítulo.15 Por isso, uma ação pode ser intencional
mesmo que nenhuma decisão a tenha precedido: a maior
parte das nossas ações é assim.

Há muitas ressalvas e observações a acrescentar a essa


imagem, mas, para os fins da minha argumentação, elas
devem ser postas de lado, porque preciso dar uma vi­
são geral do que significa para nós que as três palavras
metafísicas - “eu”, “você" e “por quê?" - governem nosso
comportamento e imponham sua orientação própria e
abrangente para o mundo. Defrontamo-nos com o mundo
numa postura de prestar contas. Somos chamados a jus­
tificar nossa conduta, a falar a verdade ao revelar nossos
estados de espírito e nossos objetivos e a prestar atenção
na comunidade que está como que num balcão acima de
nossos projetos, esperando que façamos nossa parte.
A culpa, a vergonha, o remorso e o pesar assombram

’5 G. E M. Anscombe. Intention. Oxford. Blackwell. 1957.

62 o rosto de Deus
nossa vida, e nossos esforços são em grande parte gastos
para evitá-los. Vivemos diante dos olhos do julgamento,
olhos que também são os nossos. Disso nasce o grande
anseio do coração humano por justiça, pela vida sem
culpa, a vida devidamente guiada. Ser bem encaminhado
pela luz que brilha além das estrelas - essa é a promessa
da salvação, segundo Al-Ghazali e os poetas sufis.

Algumas pessoas sentem esse anseio por pureza de ma­


neira mais intensa do que outras. Existem heróis da cul­
pa, como Al-Ghazali, Kierkegaard e Santa Teresinha de
Lisieux, para quem o fardo lhes define a direção da vida.
Há grandes artistas - entre os quais Dostoiévski, Dante,
Botticelli e Wagner - que fizeram da busca por pureza
seu tema dominante. E há as pessoas comuns e compla­
centes, como você e eu, para quem a busca por pureza
é uma irritação, algo que se deve varrer do caminho por
meio de algum ritual conveniente no qual possamos, por
um instante abençoado, admitir nossa própria condição e
deixar a luz entrar. Porém, todos nós, qualquer que seja
nossa frouxidão espiritual, sentimos a necessidade cons­
tante de renovação, de purgação de nossas transgressões
e de um recomeço do zero. E essa necessidade está na
raiz de nosso ímpeto religioso. Ela é, simplesmente, o
preço que pagamos pela consciência, o reconhecimento
do “por quê?" onipresente.16 É nosso reconhecimento da
culpa que vem, por ousar existir como um “eu", aqui­
lo que Schopenhauer apropriadamente chamou de das
Schuld des Daseins.

’6 Para idéias correlatas, ver Vladimir Jankélévitch, te Pur et rimpur. Paris,


Flammarion, 1960.

capítulo 2 - a perspectiva de algum lugar 63


Ainda que eu esteja falando de três termos e da gra­
mática do pronome pessoal, não deve ter escapado ao
leitor que também estou discutindo a liberdade. Foi
Kant quem primeiro deixou claro aquilo que estou
veladamente presumindo: que o livre-arbítrio entra em
nosso mundo por meio do “eu". Está contida na pers­
pectiva da primeira pessoa uma postura que distin­
gue as pessoas de todas as outras coisas na natureza,
que é a capacidade de se fazer responsável por algo
que ainda não ocorreu. Eu vou levantar aquela pedra,
atacar aquela fortaleza, beijar aquela mulher. Ao dizer
essas coisas mudo toda a minha postura no mundo,
coloco-me num estado de prontidão, e faço isso por
minha própria escolha. Todo enunciado, toda linha
de raciocínio procede segundo esses gestos livres. E a
esse argumento Kant acrescentou outro, que para ele
era muito mais forte, a consideração, isto é, o fato de
que a razão não apenas me diz para fazer certas coisas,
mas também que eu devo fazê-las. Devo ajudar a pes­
soa em dificuldades, e ao não fazer isso eu mesmo me
culpo. Concentro-me naquele centro mesmo do ser de
onde as decisões fluem na plena força da condenação
moral.17 Toda a nossa maneira de pensar a respeito de
nós mesmos baseia-se na “lei moral", e como “deve"
implica “pode" só podemos raciocinar praticamente
pelo pressuposto de que somos livres.

Contudo, essa reflexão conduz a uma questão inusitada:


que tipo de mundo contém uma coisa como eu - uma

No original, from which decisions flow the full force of moral con-
demnation. 0 Dicionário Oxford nâo registra o uso do verbo to flow com
objeto. (N. T.)

64 o rosto de Deus
coisa com liberdade e autoconhecimento? Deve ser, argu­
mentava Kant, um mundo de objetos duradouros, objetos
com identidade através do tempo. E eu sou um desses
objetos: a coisa que, tendo decidido isso aqui agora, fará
aquilo lá então. Um mundo de coisas duradouras é um
mundo amarrado por leis causais: isso Kant esforçou-se
para aprovar na seção imensamente difícil da Crítica da
Razão Pura intitulada “A Dedução Transcendental das
Categorias”. Sem a teia de causalidade nada “se preser­
va no ser” em tempo suficiente para conhecer ou ser
conhecido. Assim, meu mundo, o mundo do ser livre, é
um mundo ordenado por leis causais. E as leis causais,
pensava Kant, são universais e necessárias. Elas referem
conexões na natureza mesma das coisas, conexões que
não podem ser suspensas nessa ou naquela ocasião, nem
só para a conveniência das pessoas.

Ao construir desse modo seu raciocínio - com passos


demais e uma tal complexidade e controvérsia que
aqui não podemos detalhar -, Kant tirou a seguinte
conclusão: qualquer ser capaz de dizer “eu” sabendo
o que diz é livre; e qualquer ser capaz de dizer “eu”
sabendo o que diz está situado num mundo de leis
causais universalmente vinculativas. Sou governado
por uma lei da liberdade, que compele minhas ações, e
por uma lei da natureza, que me liga à teia da vida or­
gânica. Sou um sujeito livre e um objeto determinado,
mas não sou duas coisas, um corpo determinado com
uma alma livre matraqueando dentro. Sou uma coisa
que pode ser vista de duas maneiras - como sujeito e
como objeto. Isso eu sei que é verdade, mas está além
do entendimento. Nunca saberei como isso é possível,
só que é possível.

capitulo 2 - a perspectiva de algum lugar 65


Esse é um jeito drástico de apresentar algo que tentarei
apresentar de maneira mais suave à medida que meu ra­
ciocínio avançar. Mas é conveniente que isso nos coloque
outra vez frente a frente com a visão de mundo cientifica,
particularmente com a nova maneira de descrever as coi­
sas que surgiu da psicologia evolucionista e da neurociên-
cia. Filósofos como Patrícia Churchland e Daniel Dennett
partem da posição que mencionei no começo deste capi­
tulo dizendo que os seres humanos devem ser entendidos
como membros de uma espécie particular de gorila, que
nossos estados de espírito têm suas raízes em adaptações
formadas durante o longo período pré-histórico da tribo
caçadora-coletora e que, nas palavras de Churchland, es­
sas adaptações estão “entranhadas no cérebro humano".18
Se quisermos saber que espécie de coisa somos, portanto
como somos motivados, satisfeitos, e o que faz sentido
que esperemos, é o cérebro que devemos estudar, não a
misteriosa coisa chamada “eu", palavra que, afinal, não é
nem um nome nem uma descrição, mas simplesmente um
termo indexador dependente de um contexto.

Se assumirmos essa atitude, o que resta do livre-arbítrio?


Numa conhecida série de experimentos, Benjamin Libet
usou primeiro a eletroencefalografia e depois a ressonân­
cia magnética para explorar os antecedentes causais da
escolha humana.19 Seus resultados mostram que, quando

18 Ver Patrícia Churchland. Neurophilosophy: Towards a Unified Science of


the Mind-Brain. Cambridge. Massachusetts, MIT Press, 1986.
19 Os resultados de Libet e as conclusões que ele tira estão resumidas em
sua contribuição a Robert Kane (ed.). The Oxford Componion to Free Will.
Oxford, Oxford University Press, 2002. Kane magistralmente reúne todos os
argumentos e posições que os filósofos analíticos hoje costumam defender.

66 o rosto de Deus
as pessoas escolhem entre alternativas, há uma irrupção
particular de atividade nos centros motores do cérebro
que levam diretamente àquela ação. Mas o sujeito mesmo
só reporta sua decisão alguns instantes depois disso,
quando a ação já está (do ponto de vista do sistema ner­
voso central) “acontecendo" Alguns cientistas cognitivos
(mas não Libet) concluem que nossa impressão do livre-
-arbítrio é, portanto, uma ilusão, já que a “escolha" sem­
pre vem tarde demais, depois de a ação ter sido iniciada
pelo cérebro. Alguns vão ainda mais longe e concluem
que é o cérebro e não a pessoa que faz tudo, e que falar
de pessoas e de suas ações não passa de um modo vago e
ignorante de descrever aquilo que na verdade deveria ser
descrito como um cérebro e o corpo que ele move.

Imagine duas pessoas discutindo o que fazer: Jane quer


fazer X, Bill apresenta-lhe razões para fazer Y, e es­
sas razões a fazem mudar de ideia. Quando ocorre essa
decisão? Certamente, quando as razões foram aceitas, e
quando isso acontece depende do ritmo do diálogo. Eu
não podería raciocinar dessa maneira se não presumis­
se que está em meu próprio poder mudar de ideia: você
também não. A liberdade não reside em um acontecimen­
to que “irrompe" na consciência sem avisos no sistema
nervoso. Ela reside no raciocínio prático, que por sua vez
está fundado na relacionalidade da pessoa humana - o
fato de que as pessoas dependem umas das outras para
se aconselharem, são responsáveis pelo que fazem e são
objetos de elogio e de censura.

A conclusão frequentemente tirada do experimento de


Libet é a de que qualquer representação desse tipo é
confusa. 0 “cérebro", diz-se, decide o que fazer, e nossa

capitulo 2 - a perspectiva de algum lugar 67


consciência só depois o acompanha, quando o interrup­
tor já foi pressionado. Mas essa maneira de interpretar o
experimento de Libet pressupõe que um evento num cére­
bro é idêntico à decisão de uma pessoa,20 que uma ação
só é voluntária se exclusivamente for precedida de um
episódio mental de certo tipo, que intenções e volições
são episódios “sentidos” de um sujeito que podem ser
precisamente datados no tempo. Todos esses pressupostos
são falsos. Às vezes uma ação intencional é precedida por
uma decisão ou por uma escolha, de fato; porém, nor­
malmente a ação é a escolha. E o que a toma intencio­
nal não é que ela tenha surgido de um modo particular,
mas que o sujeito possa dizer sem nenhuma base que eu
fiz isso, ou estou fazendo isso, e, ao fazê-lo, tomar-se
responsável por aquilo. Dizer que somos livres é apontar
para o seguinte fato: podemos justificar e criticar nossas
ações, reivindicá-las como nossas e saber imediatamente
e com certeza o que faremos, não prevendo o que fare­
mos, mas nos decidindo a fazê-lo.

0 experimento de Libet somente leva à negação do livre-


-arbítrio se também presumirmos que a livre escolha é
uma irrupção na corrente dos acontecimentos neuro­
lógicos. Mas ver desse modo o livre-arbítrio é procurá-
-lo no mundo dos objetos e não no ponto de vista do
sujeito, que é seu lugar. A mesma falácia é cometida por

" Esse pressuposto é um exemplo daquilo que Max Bennett e Peter Hacker
condenaram, classificando de "falácia mereológica", isto é, a falácia que há
em explicar a propriedade de um todo atribuindo a mesma propriedade a
uma de suas partes. Ver The Philosophical Foundations of Neuroscience.
Oxford, Blackwell, 2002, Parte I. cap. III. Bennet e Hacker têm suas razões
para rejeitar a interpretação comum dos experimentos de Libet: ver ibidem,
p. 228-31.

68 o rosto de Deus
aqueles que procuram a liberdade nos efeitos quânticos,
acreditando que um ato livre é aquele que nasce nos
quarks e léptons do cérebro, no nível subatômico, onde
nada é rigidamente determinado. Mas argumentar dessa
maneira é interpretar a liberdade dos sujeitos como uma
espécie de indeterminação dos objetos, como um rom­
pimento na cadeia de causalidade, por assim dizer, onde
a vontade pode interferir. Entretanto, a liberdade não é
um tipo de causalidade, e menos ainda uma interrupção
da ordem causai. A liberdade emerge da teia de relações
interpessoais e nasce como corolário de “eu”, “você” e
“por quê?" Ela não é uma falha entre os objetos, mas
uma revelação do sujeito.

Alguns filósofos respondem a esses pensamentos des­


cartando o conceito de liberdade como se fosse folclore
psicológico - parte daquela ciência primitiva da mente
embutida na linguagem comum, que a neurociência
um dia substituirá.21 Imagine, porém, como seria trocar
nossas maneiras comuns de compreender a ação humana
pelas teorias de uma neurociência futura. Suponha que
eu pergunte por que você me tem evitado. Faço a você
uma pergunta direta, e você me acusa de trair nossas
confidências para um rival. Nego a acusação, sabendo
que ela é falsa, e pergunto por que você acha que ela é
verdadeira. Você expõe os indícios e eu os refuto; sua
hostilidade desaparece e concordamos em trabalhar
juntos para conter os danos. Esse tipo de diálogo se dá
o tempo inteiro, e é a maneira como os seres racionais

'• Dai Patrícia Churchland. In: Neurophilosophy, op. cit., mas não Daniel C.
Dcnnett em Frcedom Evolves. New York, Viking Press, 2003.

capitulo 2 * a perspectiva de algum lugar 69


estabelecem e constroem suas relações. Ele pressu­
põe a cada momento que tanto eu quanto você vamos
compreender e usar conceitos como crença e desejo. E
pressupõe que ambos teremos conhecimento em primeira
pessoa de nossas crenças e desejos - que não precisare­
mos descobrir quais são eles, podendo invocá-los ime­
diatamente e sem indícios de resposta às perguntas “por
quê?” e Mo quê?” 0 uso do pronome de primeira pessoa
confere a capacidade de descrever imediatamente, sem
nenhuma base, e com uma imunidade de grande alcance
contra certos tipos de erro, o conteúdo do próprio estado
mental atual e também de se apresentar como responsá­
vel pelos próprios atos.

Suponhamos que agora trocamos o folclore psicológi­


co por alguma explicação da neurociência. 0 resultado
inevitavelmente enfraquecería o uso das nossas três
palavras metafísicas. Estaríamos todos condenados a
uma perspectiva em terceira pessoa de nós mesmos e
dos outros: uma visão de nós mesmos e dos outros como
objetos. Toda pessoa se tomaria um “ele" ou um “ela",
e não havería mais eu e você. Só poderiamos descrever
nossa condição mental investigando nosso cérebro, e o
apresentar e o ouvir razões entre mim e você, por de­
penderem do privilégio de primeira pessoa, desaparece­
ríam. Com eles desaparecería a possibilidade de relações
interpessoais, e com as relações interpessoais desapare­
cería a linguagem e tudo o que foi construído com base
nela. Essa é só uma ideia em meio a muitas que tendem
à conclusão de que nosso modo de representar o mundo
humano não pode ser substituído pela neurociência -
nem mesmo pela neurociência que explica nosso modo
de representar o mundo.

70 o rosto de Deus
Deve-se tirar um corolário interessante da posição cética.
Você pode dizer que os experimentos de Libet tentam
descobrir o lugar do sujeito no mundo dos objetos. Eles
estão procurando o ponto de interseção da autocons-
ciência livre com o mundo em que ela age. E eles não
acham esse ponto. Tudo que eles acham é uma sucessão
de acontecimentos na corrente dos objetos, nenhuma
das quais pode ser identificada com uma escolha livre
autoconsciente. Há aqui um paralelo com a questão que
levantei no primeiro capítulo: a questão da presença de
Deus no mundo. Se você olhar o mundo com os olhos
da ciência, é impossível encontrar o lugar, o momento
ou a sequência particular de acontecimentos que podem
ser interpretados como mostras da presença divina. Deus
desaparece do mundo assim que nos dirigimos a ele com
o “por quê?" da explicação, assim como a pessoa humana
desaparece do mundo quando procuramos a explicação
neurológica de seus atos. Assim, talvez Deus seja uma
pessoa como nós, cujas identidade e vontade estão atadas
à sua natureza de sujeito. Talvez só o encontremos no
mundo em que estamos se pararmos de invocá-lo com o
“por quê?" da causa e nos dirigir a ele com o "por quê?"
da razão. E o "por quê?" da razão precisa ser dirigido
do eu para você. 0 Deus dos filósofos desapareceu atrás
do mundo, porque era descrito na terceira pessoa e não
tratado pela segunda.

0 mundo humano, insisto, é ordenado por conceitos cujas


raízes estão no diálogo, e, portanto, na perspectiva em
primeira pessoa. Mas essa perspectiva não vai aparecer nos
dados de ciência nenhuma. Não há espaço nas teorias cau­
sais para termos como “eu” e “você", e é precisamente isso
que dá origem à repulsa que sentimos - ou, de todo modo,

capitulo 2 - a perspectiva de algum lugar 71


que deveriamos sentir - quando um filósofo “explica" o
amor humano, o desejo, a saudade, a tristeza e o ressenti­
mento em termos como estes:

0 cérebro dos animais sociais está pro­


gramado para sentir prazer no exercício
de disposições sociais, como o treina­
mento e a cooperação, e para sentir dor
quando evitados, censurados e excluí­
dos. Substâncias neuroquimicas como a
vasopressina e a oxitocina intermedeiam
a formação de laços afetivos entre pa­
res, entre pais e filhos e, provavelmente,
entre amigos também...22

Essas observações são de Patrícia Churchland e tipifi­


cam uma corrente de pensamento filosófico que ganhou
força depois de ela clamar por uma “neurofilosofia". Em
resposta devo dizer que o cérebro dos animais sociais não
sente prazer nem dor. Prazer e dor são o que nós senti­
mos, e não somos idênticos a nosso cérebro. E rejeito a
redução dos relacionamentos “eu-você" a formas de cria­
ção de laços que não demandam nem a consciência em
primeira pessoa nem mesmo consciência para que sejam
criados. Se isso é o que é, trocar o “folclore psicológico"
pela “neurociência", então deveriamos protestar, porque

22 Patrícia Churchland, "Human Dignity from a Neurophilosophical Perspec­


tive" In: Human Dignity and Bioethics, ensaios encomendados pelo Conse­
lho Presidencial para Bioética. Washington, 2008, p. 103. Para um ataque
abrangente a esse tipo de pensamento, ver Raymond Tallis, Aping Mankind:
Neuromania, Darwinitis and the Misrepresentation of Humanity. Durham,
Acumen, 2011.

72 o rosto de Deus
a neurociência compra suas explicações pagando com os
fatos. Realmente, não estamos de modo algum lidando
com uma nova ciência do ser humano, mas com uma
torrente de neurononsense.

Esse nonsense aparece porque as pessoas podem ser


conceitualizadas de duas maneiras: como organismos e
como objetos de integração pessoal. A primeira empre­
ga o conceito de “ser humano” (um tipo natural); ela
divide nossas ações nas junções da explicação e deri­
va nosso comportamento de uma ciência biológica do
homem. A segunda usa o conceito de “pessoa”, que não
é o conceito de um tipo natural, mas sui generis.23 Por
meio desse conceito - e das noções associadas de liber­
dade, responsabilidade, razão para agir, direito, dever,
justiça e culpa -, obtemos a descrição segundo a qual
um ser humano é visto por aqueles que respondem a
ele como pessoa. É a descrição de uma criatura que vê
a si própria ao mesmo tempo livre e decaída, uma cria­
tura com um legado de necessidade religiosa. E quando
as pessoas tentam entender essa criatura por meio das
teorias semiformadas da neurociência, elas ficam ten­
tadas a silenciosamente passar por cima de seus traços
distintivos, ou então a atribuí-los a algum homenzinho
interior em forma de cérebro.

Não devo, aqui, levantar a questão da relação entre


as pessoas e seu cérebro, questão que foi assunto das
Conferências Gifford por dois dos grandes pioneiros da

” Ver Robert Spaemann, Persons: The Difference Between 'Someone' and


'Something'. Trad. Oliver 0’Donovan. Oxford. Oxford University Press, 2006.

capitulo 2 - a perspectiva de algum lugar 73


neurociência moderna: Man on His Nature [0 Homem
em Sua Natureza], dadas em 1936 e 1937 por sir Charles
Sherrington, e The Human Mystery, dadas em 1977 e
1978 por sir John Eccles. Esses dois autores acreditavam
que resolveriamos o mistério da consciência encon­
trando o ponto de interação entre mente e cérebro. Mas
nenhum deles via que o “mistério” a que se referiam
nascia da visão privilegiada do sujeito e fica no hori­
zonte dentro do qual se desenrola o mundo do sujeito.
Podemos ver isso em um conhecido experimento mental
de Hilary Putnam, que tem sua contrapartida no popular
filme A Matriz.24 Putnam imagina um cérebro guardado
num tonel de nutrientes e estimulado por um cientista
que o controla para produzir exatamente a atividade
neural de um ser humano normal numa vida normal.
0 exemplo de Putnam é uma reconstrução do argu­
mento cético de Descartes sobre os sonhos e levanta a
seguinte questão: como sei que eu não sou esse cérebro?

Se refletirmos um pouco mais sobre esse exemplo,


porém, poderemos certamente concluir que, se pensa­
mentos do “eu” forem engendrados por esse processo,
eles simplesmente não ocorrerão nesse cérebro. 0 objeto
dessas “experiências” não está nem no mesmo espaço
do cérebro que supostamente faz que elas suijam. Ele
vive num espaço próprio, o espaço de uma vida humana
em que ele se move, sente e pensa. E preciso, para que

74 Reason, Truth and History. Cambridge, Massachusetts, MIT Press, 1981.


Ver também o desenvolvimento de um experimento mental similar por
Robert Nozick. In: Philosophical Explanations. Oxford, Oxford University
Press, 1981, cap. III, e sua discussão por J. J. Valberg, Dream, Death and the
Sdf, op. cit., p. 114-17.

74 o rosto de Deus
sua experiência seja real e metafisicamente possível,
que ele habite um mundo de outras pessoas, que podem
identificá-lo por seu corpo e dialogar com ele. E seu
corpo naquele espaço conterá um cérebro - o cérebro
que é verdadeiramente seu, que pertence à pessoa que ele
identifica quando diz, falando em primeira pessoa, “estou
aqui”. 0 cérebro que o cientista estimula nào tem cone­
xão, nem sequer uma conexão causai, com o cérebro da
pessoa que ele supostamente controla, já que não existe
contínuo espaço-tempo que contenha ambos.

Uma conclusão a tirar é que o experimento mental de


Putnam é incoerente. Outra mais importante: nenhuma
tentativa de demarcar o sujeito no mundo dos objetos
terá sucesso. Você pode extrair quantas partes quiser
do corpo da pessoa, mas nunca encontrará o lugar
onde ela está, o lugar de onde ela se dirige a mim e
ao qual eu, por minha vez, me dirijo. 0 que importa
para nós não são os sistemas nervosos invisíveis que
explicam como as pessoas funcionam, mas as aparên­
cias visíveis a que respondemos quando respondemos a
elas como pessoas. São essas aparências que interpre­
tamos, e por meio da nossa interpretação construímos
respostas que por sua vez devem ser interpretadas por
aqueles a quem elas se dirigem. Parece, então, que há
um abismo metafísico intransponível entre o objeto
humano e o sujeito livre com que nos relacionamos
como pessoa. A mesma dificuldade com que nos de­
frontamos em nossa relação com o Deus dos filósofos
é um obstáculo na nossa relação uns com os outros.
Todavia, constantemente vencemos essa barreira
metafísica aparentemente intransponível. Como isso é
possível? E se podemos entender como isso é possível,

capitulo 2 - a perspectiva de algum lugar 75


será que isso vai nos ajudar a resolver o problema da
relação entre o transcendente e o Deus imanente?

Resumindo: você pode situar os seres humanos inteira­


mente no mundo dos objetos. Ao fazê-lo, você com toda
a probabilidade vai reduzi-los a animais cujo comporta­
mento ê explicado por alguma combinação de psicologia
evolutiva e neurociência. Mas então você se verá descre­
vendo um mundo do qual a ação humana, a intenção, a
responsabilidade, a liberdade e a emoção foram varridas:
será um mundo sem rosto. 0 rosto brilha no mundo dos
objetos com uma luz que não é deste mundo: a luz da
subjetividade. Você pode procurar liberdade no mundo
dos objetos e não encontrará, não porque ela não este­
ja lá, mas porque ela está obrigatoriamente associada à
perspectiva em primeira pessoa e à vista de algum lugar
da criatura capaz de dizer “eu”.

76 o rosto de Deus
À primeira vista, o Deus cujos atos sào contados na Torá
não se parece muito com o Deus dos filósofos. Contudo,
à sua maneira, ele é abscôndito e, apesar de seu interesse
intenso e abrangente nas questões do mundo, age a certa
distância de seus devotos. Em Êxodo, 33,20, Deus diz a
Moisés: “Não poderás ver a minha face, porque o homem
não pode ver-me e continuar vivendo”. Moisés, porém,
tem permissão para ver o Senhor de costas, quando pas­
sa. As imagens no livro do Êxodo são estranhas e pertur­
badoras: Deus é usado como representante de tudo aquilo
que não compreendemos e não conseguimos controlar,
em todas as áreas da vida em que podemos, sem saber,
dar um passo em falso e perder tudo. Ele não está em
lugar nenhum e está em todo lugar, espreitando-nos e
também fugindo assim que é notado.1

Contudo, há uma coisa que Deus diz a respeito de si que


tem importância universal, e ele diz isso em seu primeiro

' Ver, quanto a isso, a instigante desconstrução feita por Jack Miles, Deus:
Uma Biografia. São Pãulo, Companhia das Letras, 1997.

capítulo 3 - onde estou? 77


encontro com Moisés, falando da sarça ardente. Moisés
quer saber o nome de Deus para poder dar testemunho da
autenticidade de sua visão. Deus, porém, se recusa a re­
velar seu nome e diz “Eu sou aquele que é", acrescentan­
do que, se os israelitas pedirem alguma garantia de sua
missão, Moisés deve dizer “EU SOU me enviou até vós".2
Tudo mais a respeito de Deus é acidental; eis o essencial:
ele se refere a si mesmo na primeira pessoa. Em outras
palavras, ele, como nós, é uma pessoa, que pode pronun­
ciar a palavra “eu" e relacionar-se com seus adoradores
de eu para você. Ele deve ser tratado como outro sujeito.
Por isso, ele busca as pessoas não por meio da coerçào e
da força, mas por meio de uma aliança - em outras pala­
vras, por um acordo mútuo, em que ele se toma respon­
sável perante aqueles que aceitam seus termos.

As autoridades talmúdicas consideram a Torá (os primei­


ros cinco livros do Antigo Testamento) um registro das
revelações concedidas a Moisés e escritas por ele.
Os estudos bíblicos modernos consideram a Torá uma
compilação feita durante o exílio babilônico por quatro
ou mais fontes anteriores. De qualquer ângulo que se
olhe, esse documento contém, de forma narrativa e ima-
gística, profundas verdades sobre a relação de Deus com
o mundo, expressas de um modo que imediatamente des­
perta as emoções do leitor. Deus é uma pessoa, um agente
e um “eu". E ele se relaciona com as pessoas por meio de
promessas, de obrigações, de leis e de alianças, todas elas
pressupondo que tanto ele quanto elas são agentes livres,

2 0 texto bíblico adotado nesta tradução foi extraído da Bíblia de Jerusalém -


Nova edição, revista e ampliada. São Paulo, Paulus, 2002.

78 o rosto de Deus
capazes de mudar o fluxo dos acontecimentos e ao mes­
mo tempo de assumir a responsabilidade por fazer isso.
Neste capitulo, quero dizer algo sobre o que está envolvi­
do nessa dimensão de Deus. Em particular, quero levantar
a seguinte questão: o que sou e onde estou no mundo dos
objetos? Essa questão, afirmo, é uma preliminar neces­
sária à questão da presença de Deus: a questão do que é
Deus, de onde está Deus. A questão da presença de Deus
costuma parecer insolúvel. Devidamente compreendida,
porém, ela é semelhante à questão da minha presença e
da sua. E devemos tentar responder às duas juntas.

A Torá constantemente retoma ao paradoxo do Deus


transcendente que está imanente no mundo que criou.
Deus aparece “movendo-se" entre os israelitas. Ele é uma
presença real (shekhinah) em meio a eles, e sua aliança
demanda não apenas que eles obedeçam suas leis, mas
que construam uma casa para ele, um lugar onde ele pos­
sa ser encontrado (ainda que nunca “face a face"). Mas
a ênfase de Deus no ritual, na limpeza e em minuciosos
arranjos associados a sua habitação, que supostamente
são as condições da sua presença, também enfatiza sua
ausência. 0 templo é o ponto de entrada de Deus nes­
te mundo, o “ponto de interseção entre o intemporal e
o tempo", para tomar emprestadas as palavras de T. S.
Eliot. É o lugar de um Deus que age neste mundo, ao
mesmo tempo que está intransponivelmente removido
dele. 0 ritual é projetado para mostrar isso, para manter
o povo distante do Santo dos Santos, distanciado de Deus
por tudo exceto por sua obediência. 0 paradoxo do Deus
transcendente que é imanente no mundo que criou, do
eterno e imutável que se move e se altera no tempo, do
sustentáculo remoto que é objeto e sujeito de amor - esse

capitulo 3 - onde estou? 79


paradoxo é simbolizado nos rituais do templo e também
resolvido ali. Então só dizemos que essas são coisas que
não conseguimos compreender e que o ritual existe para
resgatar o incompreensível reapresentando-o como mis­
tério? Costuma-se dizer isso da eucaristia cristã. Mas isso
toma tênue demais a linha que separa a fé do ceticismo.

Olhemos outra vez a resposta que Deus dá à pergunta


feita por Moisés. Ele perguntou o nome de Deus; em
outras palavras, pediu uma identificação, algo que lhe
permitisse saber com quem é que ele estava falando. E
Deus responde identificando-se em primeira pessoa. Ele
está dizendo a Moisés que ele, Deus, é um sujeito auto-
consciente. Como Moisés, Deus tem um ponto de vista
subjetivo. Ele não existe fora do mundo, com uma visão
de lugar nenhum que ele nunca pode compartilhar. Ele se
move no mundo, num lugar que é seu próprio.

É radical que a causa sui afirme isso. É exatamente o


que provoca arrepios na espinha islâmica. Como pode
Deus ser maior que tudo, uma unidade transcendental
sem partes nem parceiros, se ele também está no mundo,
dirigindo-se a suas criaturas em primeira pessoa? Claro,
ele aqui e ali usa a primeira pessoa (normalmente no plu­
ral) no Corão, mas somente de maneira que deixa claro
que realmente é o outro, e não o eu, que está falando.
Ele fala pelo anjo Gabriel e pelas recitações do Profeta,
que é o que está implicado na palavra qufán (recitação).
Mas ele não é um “eu” entre outros num mundo que ele
compartilha. A unidade de Deus, no pensamento islâmi­
co, não é simplesmente uma questão de Deus ser a única
instância de alguma coisa, é uma condição metafísica
que nada mais pode manifestar. Espinosa levava essa

80 o rosto de Deus
ideia a sério, afirmando que existe pelo menos uma causa
sui e no máximo uma. Por isso, tudo que existe é um
modo da substância única, e não há distinção entre Deus
e o mundo. Acho difícil acreditar que a doutrina islâmica
do tawHid consiga evitar ir na mesma direção. Se vamos
nessa direção, porém, a presença de Deus se toma uma
presença ubíqua, em que estamos todos absorvidos, e ne­
nhum de nós tem com Deus a relação que Moisés julgava
ter: eu para você e você para mim.

Obviamente, precisamos de mais clareza quanto ao senti­


do da palavra “eu”. Os filósofos frequentemente afirmam
que “eu” não funciona como nome e não oferece uma
descrição identificadora do falante. Além disso, quando
me refiro a mim mesmo na primeira pessoa, não aplico
nenhum critério de identidade, nenhum método ou pro­
cedimento que me permita dizer “esta coisa a que estou
me referindo é eu”. Se eu usasse esse procedimento, então
podería aplicá-lo equivocadamente; podería cometer
erros e chegar à conclusão de que essa coisa a que estou
me referindo não é eu mas algo ou outra coisa. E essa
suposição é absurda.

Isso não significa que a palavra “eu” seja vazia. “Eu”


é um termo indicador, como “aqui” e “agora”; mas é
também (apesar das dúvidas de alguns filósofos)1 uma

3 Ver, por exemplo, G. E. M. Anscombe, "The First Person". In: Collected Ra-
pers, vol. 2. Oxford, Blackwell, 1981. As peculiaridades do caso de primeira
pessoa não podem ser explicadas dizendo que "eu" não tem referência, mas
especificando como a palavra "eu" se refere. Ver Christopher Peacocke, "The
First Person as a Case Study", cap. III, Truly Understood. Oxford, Oxford Uni­
versity Press, 2008.

capítulo 3 - onde estou? 81


capacidades implicam atos mentais que dependem de
uma linguagem pública compartilhada. É preciso que eu
compreenda tteu" como um pronome que pode ser usado
por outros, que mantém seu sentido quando o falante (e
portanto a referência) muda e que pode ser substituído
por outros pronomes sem que a sentença resultante deixe
de ser bem formada sintaticamente. Eu sou eu para mim
mesmo somente se também sou você para outros, e isso
significa que é preciso que eu seja capaz daquele diálogo
livre em que assumo minha presença diante da sua pre­
sença. Isso com certeza deve ser igualmente verdadeiro
para Deus, se Moisés vai encontrá-lo.

Você pode perguntar-se como Deus pode ser livre para


agir num mundo em que tudo é governado por leis cien­
tíficas. Você pode pensar que a relação de dependência,
que liga o mundo como um todo ao ser necessário, faz
que seja responsabilidade da ciência dizer o que causa
o quê. E a ciência não consegue, na natureza das coi­
sas, relacionar um acontecimento empírico a uma causa
transcendental. Mas há uma saída dessa objeção ou, ao
menos, um modo de adiar a resposta a isso. Como afirmei
no último capítulo, o ser humano está situado no mundo
dos objetos, sendo ele mesmo um objeto nesse mundo.
Todas as tentativas de localizar precisamente sua liber­
dade e sua função no mundo dos objetos levarão àquele
tipo de nonsense que vemos na explicação de Libet da
neurociência da decisão. Procure a vontade de Deus no
mundo físico e você certamente vai encontrá-la, assim
como você vai encontrar a minha vontade no mundo
em que eu me movo. Mas procure a “lacuna" na ordem
física, a suspensão inexplicável das leis da natureza, que
é a “realidade" física da vontade de Deus, e você não vai

84 o rosto de Deus
encontrar nada. A liberdade, a ação e a responsabilida­
de são propriedades da pessoa, e só quando vemos Deus
como pessoa compreendemos que essa é a verdade dele.
Ele está presente em nosso mundo no mesmo sentido
cm que nós estamos: como sujeito. E quando atribuímos
um acontecimento à sua vontade, estamos dizendo que
esse acontecimento tem uma razão e que essa razão é a
resposta de Deus ao “por quê?" perguntado por nós. Não
estamos dizendo que se trata de uma intervenção miracu­
losa e podemos aceitar o ceticismo de Deus a respeito dos
milagres ao mesmo tempo que reconhecemos a presença
de Deus como agente no espaço e no tempo.

Isso não significa que não exista nenhum enigma rela­


cionado à função de Deus - claro que há. Mas esse é um
caso especial do enigma a respeito da função como tal.
0 que é agir no mundo e como a capacidade de ação está
conectada ao ponto de vista de primeira pessoa? Claro
que seria equivocado abordar essa questão partindo do
problema da função de Deus, que é um caso limite. Preci­
samos partir da nossa própria posição e perguntar como
agimos no mundo e o que é que possibilita a ação.

A primeira coisa a observar é que as pessoas não são


apenas sujeitos; são objetos em meio a outros obje­
tos num mundo que compartilham. São seres vivos,
que respiram, que agem. Além disso, elas não são duas
coisas: um corpo humano e uma alma dentro. Pensar
nesses termos cartesianos é "reificar" o sujeito; em outras
palavras, cometer o erro identificado por Kant no capítu­
lo sobre Paralogismos da Crítica da Razào Pura. Trata-
-se do erro de supor que o sujeito pode ser entendido da
mesma maneira que os objetos, por meio de categorias

capitulo 3 - onde estou? 85


de substância e causa. 0 sujeito é a visão de algum lugar,
mas ele não aparece nessa visão: se ele aparecesse, eu
podería errar quanto à sua identificação ou até concluir
que ele não existe.

É igualmente possível desenvolver uma ciência do ser


humano, assim como é possível desenvolver uma ciência
de qualquer outro animal. A teoria da evolução e a
ciência do cérebro prometem mostrar o que “impele” esse
organismo peculiar: e talvez não seja algo tão diferente
daquilo que impele outros organismos - particularmen­
te aqueles organismos que estão próximos de nós na
árvore evolutiva. Se negamos isso, negamos as melhores
explicações dadas até agora sobre o lugar do homem
na natureza. Os criacionistas julgam ter uma explicação
melhor, mas isso porque eles não enxergam que não têm
nenhuma explicação, apenas uma fórmula para traduzir o
inexplicado para o inexplicável.

Ao mesmo tempo, estamos diante de um problema quan­


do se trata de explicar nossas maneiras de compreender
uns aos outros e de nos relacionar uns com os outros:
afinal, não nos relacionamos como animais, nem quando
estamos fazendo as coisas - a luta, a cataçào, a cópula -
que dominam a vida social dos animais. Vemo-nos uns
aos outros como oríginadores de nossos atos: a pessoa
vem antes de nós como coisa que entra no mundo por
suas ações. As cadeias causais que prendem o passa­
do ao futuro passam por nós, assim como passam por
tudo. Mas não atribuímos nossos pensamentos, ações e
emoções a seu infindável prelúdio no mundo dos obje­
tos, e sim ao sujeito que os explica e em cuja perspec­
tiva em primeira pessoa eles estão. Por isso fazemos,

86 o rosto de Deus
ou deveriamos fazer, uma distinção metafísica entre os
atos humanos e as atividades animais. É verdade que
os animais têm crenças e desejos como nós e que suas
carências, necessidades e sentimentos causam seu com­
portamento. Mas eles não se revelam em seu compor­
tamento, assim como nós não nos revelamos no nosso.
Eles não “intervém” no mundo como nós, não cuidam do
futuro nem assumem a responsabilidade por ele. A pes­
soa é revelada como indivíduo em suas ações, e, segundo
a literatura, por essa razão existe em todas as linguagens
naturais a expressão de “fator causa) agente”.4 Referimos
ações como acontecimentos, mas identificamos suas
causas não como acontecimentos, e sim como agentes.
Não foi o movimento do braço de John que derrubou
Maria, foi John que a empurrou. Ele é a causa de todas
as coisas que emanam imediatamente da sua vontade.

Além disso, apesar de todos pertencermos a um gênero


natural por sermos membros da espécie Homo sapiens,
não é como membros desse gênero que nos identifica­
mos quando nos referimos a nós mesmos na primeira
pessoa. Identificamo-nos como pessoas e presumimos
que continuamos a existir como pessoas. Como ser hu­
mano, tenho passado e futuro; como pessoa, reivindico
esse passado e esse futuro como meus - como coisas
que têm sua origem em mim, nesse mesmo sujeito que
deve prestar contas deles. As pessoas não formam um
gênero natural, e há algo de problemático no concei­
to de identidade pessoal que não existe no conceito

4 Ver Timohty 0’Connor, Persons and Causes. Oxford, Oxford University


Press. 2002.

capitulo 3 - onde estou? 87


de identidade animal. Isso seguramente aprendemos
de inúmeros experimentos mentais, de John Locke a
Sydney Shoemaker e a Derek Parfit.5

Outros animais são conscientes; isso significa que eles


respondem a seu ambiente respondendo a como ele
lhes parece. Os animais são repositórios de parecenças,
e isso, em certa medida, os eleva acima do mundo dos
objetos e os coloca mais próximos de nós. Podemos nos
relacionar com eles não simplesmente os trocando de
lugar, como fazemos com as coisas físicas comuns, mas
mudando a maneira como as coisas se lhes parecem.
Oferecemos recompensas e punições; dirigimo-nos a eles
com gritos e sussurros; nós os afagamos, alimentamos e
os levamos a ver o mundo de um jeito tal que os torna
moldáveis a nossos interesses, incluindo nosso interesse
no bem-estar deles.

Mas consciência não é a mesma coisa que autoconsciên-


cia. Ela implica sensibilidade à informação, capacidade
de responder a estímulos e repertório de necessidades
e desejos. Entretanto, isso não envolve a coisa crucial
afirmada por Deus ao dirigir-se a Moisés: a capacidade
de ter não apenas estados mentais, mas de atribuí-los a
um centro de consciência e de identificar esse centro de
consciência na primeira pessoa, como uma pessoa como
você. 0 antropomorfismo não consiste em atribuir esta­
dos mentais aos animais nem em imaginá-los pensando
e sentindo do modo como nós pensamos e sentimos.

5 Sydney Shoemaker, Sdf-Knowledge and Sdf-ldentity. Ithaca, Cornell Uni-


versity Press. 1963. Derek Parfit, Reasons and Rersons. Oxford, Clarendon
Press. 1984.

88 o rosto de Deus
Ele inclui vê-los como pessoas que se identificam na
primeira pessoa, e que dividem o mundo em “eu" e “não
eu”, eu e outro, mim e você. Conceber os animais dessa
maneira é supor que eles, como nós, possuem o “ponto de
vista do sujeito”, que eles, como nós, dirigem-se ao mun­
do dos objetos proveniente de um lugar em sua margem.
E isso é presumir algo para o qual não temos fundamen­
tos, nem poderiamos ter.6

A divisão entre eu e não-eu, que Fichte corretamente


enxergava como o traço distintivo do intelecto racional,
também está na raiz da vida moral, uma vez que a ideia
do eu traz a do outro - do outro que é outro como eu.
Isso é o que Deus estava salientando para Moisés e que a
revelação judaica transmitiu ao longo dos séculos - que o
ser livre, que pode dizer “eu”, deve reconhecer a existên­
cia igual do outro. É por isso que o mandamento original,
de amar a Deus sobre todas as coisas, contém o segundo,
de amar o próximo como a si mesmo.

Isso nos leva de volta a um argumento em que me detive


no capítulo anterior, que é o da racionalidade essencial
da pessoa. Pessoas são o gênero de coisa que pode reco­
nhecer outros como pessoas e, por sua vez, ser reconhe­
cidas como pessoas.7 Pessoas são responsáveis perante
outras e veem-se a si mesmas como outras aos olhos dos

h As discussões em torno disso são infindáveis, tediosas e repletas de veneno


não digerido. Expus minha própria posição em Animal Rights and Wrongs.
London, Continuum, 2003.
' Para o desenvolvimento dessa ideia, ver Robert Spaemann, Persons: The
Difference Between 'Someone' and 'Something'. Trad. Oliver 0’Donovan.
Oxford, Oxford University Press, 2007.

capitulo 3 - onde estou? 89


outros. Elas entram no mundo dos objetos como “coisas a
ser julgadas” e são, portanto, comprometidas com deveres
e dotadas de direitos. Essa observação vai radicalmente
contra o hábito moderno, mas na minha opinião sem
nenhum sentido, de enxergar os problemas morais em
termos utilitários, como problemas que resolvemos por
uma espécie de cálculo econômico. A verdadeira morali­
dade começa onde a economia termina: no limiar do ou­
tro. Por meio das idéias de direito e dever estabelecemos
as regras fundamentais para uma vida negociada entre
estranhos. Essas regras nos dizem que os direitos devem
ser respeitados, e os deveres obedecidos. Elas conferem
igualdade de estatuto moral a todos os participantes do
diálogo moral e impõem a nós uma obrigação de justifi­
car nossa conduta diante de críticas adversas. Elas trazem
consigo uma batería de conceitos que transformam intei­
ramente a visão de mundo e as emoções daqueles que os
possuem: conceitos como justiça, mérito e punição, que
estão no coração de nossas respostas interpessoais.

Como precisam pensar dessa maneira, os sujeitos auto-


conscientes adentram o mundo dos objetos já equipados
para a tragédia. Eles sabem que são julgados exatamente
como julgam. Sabem que precisam prestar contas de suas
ações e terão de responder por seus erros e defeitos. Sen­
tem vergonha - Schutzgefühl, como diz Max Scheler, que
os protege de julgamentos adversos8 - e culpa, a autopu-
nição que vem da consciência do errokO pecado original
não é aquele cometido por seus ancestrais distantes no

• Max Scheler, ÜberScham und Schamgefühl, 1913, em Gesammelte Werke.

Bd. 10. Bern, Francke. 1957.

90 o rosto de Deus
Jardim do Éden. É, repetindo as palavras de Schope-
nhauer, das Schuld des Daseins - a culpa da própria exis­
tência, da existência como alguém.

Devemos ainda observar outra característica do con­


ceito de pessoa que causa ainda mais perplexidade. As
pessoas não sâo indivíduos quaisquer; sâo indivíduos.
Podemos distingui-las e contá-las, como fazemos com
os animais. Mas elas também têm, ou parecem ter, uma
identidade forte ao longo do tempo que é produzida por
elas mesmas. Derek Parfit e outros tentaram trocar o
conceito de identidade pessoal pelo de eu momentâneo.
Mas não pode existir um eu momentâneo. Ser um eu não
é uma questão de consciência, é uma questão de assumir
a responsabilidade pelas próprias ações, de reconhecer
os longos feixes de luz lançados no passado e no futuro
pelo “eu” que brilha no agora. Só posso agir no presente
se eu assumir a responsabilidade pelo meu futuro, e isso
significa que devo reconhecer minha identidade como
pessoa ao longo do tempo. Qualquer tentativa de jogar
fora essa identidade não passa de um ceticismo banal
do tipo expresso por Hume, que era cético a respeito da
identidade pessoal pela mesma razão por que era cético
a respeito de todas as afirmações sobre identidade, isto é,
porque elas envolvem afirmações sobre outros momentos
que não o agora. Esse ceticismo é por demais geral para
distinguir um problema especial a respeito da identidade
pessoal, e surpreende-me que sua aplicação por Parfit e
outros tenha sido recebida como algo mais que um jogo.

Mesmo assim, o conceito de identidade pessoal cria


um notável problema filosófico. A pessoalidade não é
uma propriedade que possuo, mas minha maneira de

capitulo 3 - onde estou? 91


ser. Sou uma pessoa apenas porque há um indivíduo
comprometido que sou eu. No mundo dos objetos há
o animal, o membro da espécie Homo sapiens, que
pode ser distinguido da mesma maneira que se dis­
tingue qualquer outra coisa individual. Mas no meu
mundo, no mundo do sujeito, parece haver algo mais,
não um “indivíduo qualquer reidentificável", e sim um
indivíduo livre, cuja identidade ao longo do tempo é
sua própria responsabilidade e, em algum sentido, sua
própria criação. De algum modo, o animal humano no
mundo dos objetos é idêntico à pessoa que eu sou: mas
como e com qual critério de identidade? Há aqueles que
seguem Locke afirmando que a identidade pessoal é a
“continuidade da consciência” e que, de algum modo,
a autorrevelação do sujeito na memória e na intenção
estabelece um tipo de durabilidade diferente daquela do
ser humano corporificado. Ficou famosa a acusação de
circularidade feita contra o argumento de Locke pelo
bispo Joseph Butler. Mais interessante, do meu ponto
de vista, é o fato de que ele repete o erro diagnosticado
por Kant - o erro de situar o sujeito no mundo dos ob­
jetos como mais um objeto entre outros.9 Assim como
vasculhamos em vão o mundo dos objetos em busca
do lugar por onde a liberdade entra, em vão também
o vasculhamos em busca do eu. Contudo, eus não são

1 Ver a discussão de David Wiggins no cap. VII de Sameness and Substance


Renewed. Cambridge, Cambridge University Press, 2001. Wiggins fica ao
lado de Butler contra Locke, entretanto, contrariamente ao imaterialismo
de Butler, argumenta que nossa identidade ao longo do tempo não é go­
vernada pela "mesma pessoa", mas pelo "mesmo ser humano". Uma posição
comparável é assumida, diante de todos os experimentos mentais malucos,
alguns produzidos por ele mesmo, por Mark Johnston em Surviving Death.
Princeton, Princeton University Press, 2011.

92 o rosto de Deus
pessoas que existem e agem nesse mundo, o único
mundo que temos. Como isso é possível?

Esse paradoxo pode ser suavizado por um conceito que


desempenhou um papel importante na filosofia pós-
-kantiana e que tem sido um tema constante da arte e da
literatura modernas - o conceito de autorrealização. Por
nossas ações, não apenas expressamos nossos estados
mentais e intenções; fazemo-nos presentes no mundo.
E ao fazer isso também mudamos. Aquilo que somos para
nós mesmos reflete minuciosamente aquilo que somos
para os outros, porque é por meio de nosso diálogo com
os outros que compreendemos como aparecemos no
mundo. 0 encontro eu-você molda tanto a mim quanto a
você, e a liberdade nào deveria ser vista como a premissa
desse encontro, mas como sua conclusão. Ao aprender a
ver a mim mesmo como você me vê, tenho mais con­
trole da minha situação como ser no mundo. E aprendo
o que sou deixando minha marca naquilo que não sou.
Por meio da vida da sociedade civil, da religião, da arte e
das instituições, moldo-me como um outro aos olhos dos
outros e assim tomo consciência de mim mesmo como
sujeito que age livremente num mundo que compartilho.

Numa famosa passagem da Fenomenologia do Espírito,'0


Hegel afirma que encontros eu-você, que começam
no conflito e passam por um estágio de sujeição, ten­
dem intrinsecamente para a justiça, para a situação
em que cada parte reconhece o direito do outro a um

The Phenomenoiogy of Spirit. Trad. A. Miller. Oxford, Clarendon Press,


1977, p. 111-18.

capítulo 3 - onde estou? 93


tratamento equânime e em que as relações se fundam
nào na coerção, mas no consentimento. Aqui nào é o
lugar de tentar reproduzir o complexo raciocínio de
Hegel. Basta dizer que, enquanto somos pessoas por na­
tureza, essa natureza é realizada ou atualizada naquilo
que nos tomamos. E Hegel mostra, de maneira que ao
menos a mim parece satisfatória, que o processo de se
tomar plenamente individual e autoconsciente implica
vir a enxergar a mim mesmo como os outros me en­
xergam, como um “você” no mundo dos outros, assim
como um Ueu" no mundo que é meu. Por meio de nossas
ações livres, estamos presentes no mundo como pessoas.
Mas só podemos estar presentes porque estamos presen­
tes para outros, e isso significa estar presentes objetiva­
mente, em forma humana. A identidade da pessoa e do
ser humano é, portanto, algo que realizamos, colocan­
do o “eu" em exibição no “ele” ou “ela” visível. É esse
processo que Fichte e Hegel chamam de Entâusserung,
a “formação exterior” ou objetificação do sujeito, que
vem a conhecer-se a si mesmo exatamente desse modo.
E isso se relaciona com aquilo que outros pensadores
chamaram de “liberdade positiva”.11

Uma analogia talvez ajude. Quando os pintores aplicam


tinta à tela, eles criam objetos físicos valendo-se de meios

” Ver o clássico ensaio de Isaiah Berlin intitulado Two Concepts of Liberty


(“Dois Conceitos de Liberdade"], que. porém, nâo é uma defesa e sim uma
advertência contra o culto da autorrealização. Ver também, pelas influen­
tes aplicações do argumento de Hegel às formas básicas da vida moderna,
Alexandre Kojève. Introduction à Ia lecture de Hegel. Ed. Raymond Quene-
au. Paris, Gallimard, 1947; Ernst Bloch, "Phànomenologie des Geistes". In:
Subjekt-Objket: Erlauterungen zu Hegel (1951). 2. ed. Frankfurt am Main,
Suhrkamp, 1962.

94 o rosto de Deus
puramente físicos. Qualquer um desses objetos compõe-se
de áreas e de linhas de pintura dispostas numa superfície
que podemos considerar, para os fins deste raciocínio,
bidimensionais. Quando olhamos a superfície da pintura,
vemos essas áreas e linhas de pintura, e também a super­
fície que as contém. Mas isso nào é tudo. Também vemos,
por exemplo, um rosto que nos vê com olhos sorridentes.
Num sentido, o rosto é uma propriedade da tela, para
além das manchas de tinta; afinal, pode-se observar as
manchas e não enxergar o rosto, e vice-versa. E o rosto
está realmente ali: quem não o percebe não está enxer­
gando corretamente. Por outro lado, há a compreensão de
que o rosto não é uma propriedade adicional da tela, para
além das linhas e das manchas. No mesmo momento em
que as linhas e as manchas aparecem, surge também o
rosto. Nada mais precisa ser acrescentado a fim de gerar
o rosto; se nada mais precisa ser acrescentado, o rosto
certamente não é mais nada. Além disso, todo processo
que produza de modo exato essas manchas de tinta, dis­
postas precisamente dessa maneira, produzirá exatamente
esse rosto - ainda que o artista não esteja consciente do
rosto. (Imagine como você projetaria uma máquina de
produzir Mona Lisas.)

A pessoa surge no ser humano de maneira similar. Ela


não é algo para além da vida e do comportamento com
que a observamos, mas também não pode ser reduzida a
eles. Uma vez que a pessoalidade tenha surgido, é possí­
vel relacionar-se com um ser humano de uma nova ma­
neira - a maneira das relações pessoais. (Analogamente,
podemos nos relacionar com um quadro, mas não pode­
mos nos relacionar com algo que vemos como mera dis­
tribuição de pigmentos.) Com essa nova ordem de relação

capítulo 3 - onde estou? 95


vem uma nova ordem de entendimento, na qual razões
e sentidos, e não causas, são buscados para responder à
pergunta “por quê?": a ordem da aliança. Com pessoas,
estamos em diálogo: pedimos que elas justifiquem sua
conduta a nossos olhos, assim como precisamos justificar
a nossa aos olhos delas. Nesse diálogo, são centrais os
conceitos de liberdade, de escolha e de responsabilidade,
e esses conceitos não têm lugar na descrição do com­
portamento animal, assim como o conceito de um ser
humano não tem lugar na descrição da composição física
de um quadro, ainda que se trate de um quadro no qual
se possa ver um ser humano.

Isso, porém, é só uma analogia, e não deveriamos pensar


que ela resolve os profundos problemas metafísicos que
me têm ocupado. 0 rosto no quadro habita um mundo
imaginado; o rosto diante de mim vive no mundo real
do espaço e do tempo. Discuti o lugar da liberdade no
mundo da causalidade e o lugar do sujeito no mundo dos
objetos. A linguagem parece se calar no limiar dessas
noções problemáticas; estão no limite e só podem ser
apreendidas por um passo a mais, que não podemos dar,
o passo além da margem do mundo. Sabemos que os dois
problemas - liberdade e causalidade, sujeito e objeto -
têm uma estrutura comum e que eles devem ter uma
solução comum. Mas talvez esteja além da capacidade da
mente humana encontrar essa solução.

Um quadro é uma superfície que apresenta ao olho


instruído o aspecto de uma coisa representada. Os
quadros, portanto, formam um gênero funcional: o
gênero de coisa que apresenta um aspecto ao observa­
dor autoconsciente. Entre os membros desse gênero há

96 o rosto de Deus
uma enorme variedade de objetos: telas, folhas de papel,
monitores de computador, hologramas, etc. 0 gênero
funcional agrupa coisas que pertencem a muitos gêne­
ros naturais diferentes.

De modo similar, as pessoas sâo um gênero - ainda que


não um gênero natural. É verdade que a complexidade
comportamental necessária para exemplificar respos­
tas interpessoais, para ter pensamentos de “eun e para
considerar a si e aos outros responsáveis pelas mudanças
no mundo é algo que testemunhamos apenas em mem­
bros de um gênero natural particular - a espécie Homo
sapiens. Mas será que não poderiamos conceber outros
seres, membros de alguma outra espécie ou até de nenhu­
ma espécie biológica, que exibam a mesma complexidade
e sejam capazes de relacionar-se conosco de eu para eu?
Se sim, eles estão juntos de nós na ordem das coisas, e
existe um gênero que nos inclui. Duvido que os golfinhos
sejam como nós nos aspectos relevantes. Para tomarem-
-se semelhantes a nós, eles teriam de viver uns com os
outros face a face. E como seria isso possível para uma
criatura sem rosto? Nos desenhos animados, porém, os
animais adquirem rosto, conversam, dirigem-se uns aos
outros por meio do olhar, retorcem a cabeça para exibir
movimentos faciais e expressões autoconscientes, alegan­
do ser “minha” a voz que fala de dentro deles. 0 mesmo
vale para os alienígenas mais plausivelmente “pessoais”
que aparecem nos filmes de ficção científica.

Retomemos por um momento à teoria evolucionista do


altruísmo. A formiga soldado que em vão marcha para
dentro do fogo, movida pelo imperativo genético de de­
fender o formigueiro, está fazendo algo que se assemelha

capitulo 3 - onde estou? 97


superficial mente àquilo que faz o oficial que se joga
numa granada a fim de proteger suas tropas. A formiga
morre a serviço de seus genes. E os psicólogos evolu-
cionistas gostariam de dizer algo similar a respeito do
oficial. Mas isso não seria verdade. Ele morre a serviço
de outros. Sua motivação é sacrificar a si mesmo por
suas tropas - motivação que só está disponível para um
sujeito que distingue eu e outro, que possui o conceito de
sacrifício e que é capaz de fazer de sua vida um presente
para outro semelhante a ele mesmo. “Ninguém tem amor
maior que este, de dar a vida pelos seus amigos”, disse
Cristo. 0 mundo do ser autoconsciente é um mundo em
que há amor e também apego e no qual os outros existem
como objetos de obrigação, lugares na teia de objetos em
que a luz vem de outra fonte. Trata-se, por isso, de um
mundo em que o justo se distingue do injusto, o virtuoso
do vicioso, o belo do feio, o certo do errado.

0 exemplo mostra como o conceito de “eu” penetra no


mundo humano. 0 mundo percebido dessa perspectiva
cria exigências que animal nenhum é capaz de reco­
nhecer e é disposto segundo conceitos e gêneros que
animal nenhum é capaz de perceber. Não deveriamos
ficar surpresos, portanto, porque nosso entendimento do
mundo humano não pode ser captado pela ciência dos
objetos. A mente autoconsciente pinta o mundo com as
cores da subjetividade, e o resultado não deve de modo
algum ser descartado como se fosse uma ilusão, assim
como não é ilusão o rosto no quadro. Há muito tempo
os filósofos estão cientes desses fatos, reconhecendo que
os seres autoconscientes vivem num mundo que deve
ser interpretado e não apenas explicado. Infelizmente,
aqueles que levaram essa distinção a sério, de Wilhelm

98 o rosto de Deus
Dilthey a Paul Ricoeur, nem sempre escreveram com
clareza a respeito dos sentidos que eles alegam ser tâo
importantes para nós.12

Isso me leva a outra discussão que pode ajudar a suavizar


os paradoxos que venho colocando diante do leitor. Afir­
mei que há mais de um sentido na pergunta “por quê?” e
que o “por quê?” da ciência, que procura causas, deveria
ser distinguido do “por quê?” da razão, que procura ar­
gumentos, e do “por quê?” do entendimento, que procura
sentidos. Não são somente as nossas investigações que
seguem por esses caminhos separados; também seguem
por ele nossas maneiras de ordenar o mundo. A ciência
tenta dividir a natureza nas junções, agrupar as coisas
que compartilham uma estrutura e uma história causai.
Suas teorias empregam conceitos de gêneros naturais e
de variáveis primitivas e respeitam os fenômenos super­
ficiais somente na medida em que isso é necessário para
explicá-los. As coisas que agrupamos para nossos propó­
sitos, como mesas, armas e divertimentos, podem não ter
nada em comum do ponto de vista da ciência, ao passo
que coisas que a ciência agrupa com fins explicativos,
como fungos, silicatos e ondas eletromagnéticas, podem
não ter nada significativo em comum do ponto de vista
dos usos humanos.

Ao descrever o mundo humano - o mundo da forma


como interagimos com ele - frequentemente trocamos

u Há aqui um atalho da vida intelectual que prefiro evitar. 0 leitor interes­


sado verá por que consultando a coletânea de artigos de Ricoeur editada
por John B. Thompson, Paul Ricoeur: Hermeneutics and the Human Scien­
ces. Cambridge, Cambridge University Press, 1981.

capítulo 3 - onde estou? 99


o upor quê?" da explicação, que leva o cientista para as
estruturas fundamentais do mundo, por outra pergunta
“por quê?", que se volta para nossos interesses e dá as
costas para o mundo. Classificamos as coisas segundo
conceitos de gêneros funcionais, morais e estéticos e de
gêneros que são eles mesmos alterados pelo conceito que
deles temos, como o gênero “pessoa" a que pertence­
mos.13 Esses conceitos informam nosso estado de espírito,
e percebemos segundo eles. Olho à minha volta e vejo
mesas e cadeiras, ornamentos e símbolos. Leio o mun­
do como sinal e como convite, e os conceitos que uso
concentram minhas emoções e meus interesses naquilo
que é útil e significativo para mim. 0 temeroso, o trágico,
o divertido, o prazeroso: quem poderá dizer que essas
categorias denotam alguma coisa profunda nas coisas a
que elas se aplicam e não na experiência daquele que as
aplica? Distinguimos o justo do injusto, o confortável do
desconfortável, o vergonhoso do respeitável, assim como
distinguimos cores e padrões sem investigar a noção sub­
jacente que leva essas aparências em sua crista.

Eis um exemplo do que tenho em mente: o conceito


de melodia. Toda pessoa musical é capaz de distinguir
melodias de meras sequências de notas. As melodias
têm começo, meio e fim; elas começam e continuam até
parar; elas têm identidade individual e atmosfera, podem
ser combinadas e desenvolvidas segundo sua lógica inter­
na; podem ser desmontadas, amplificadas, aumentadas e

” Esses “gêneros interativos- foram explorados de maneira interessante por


lan Hacking, “The Looping Effect of Human Kinds" In: Dan Sperber et al.
(eds.), Causai Cognition: An Intcrdisciplinary Approach. Oxford, Oxford Uni-
versity Press, 1995, p. 351-83.

100 o rosto de Deus


diminuídas. Elas são aquilo de que a música é feita, e, a
menos que seja capaz de identificá-las, você será surdo
para o sentido da música. Porém, o conceito de melodia
não tem utilidade para nenhuma ciência do som. No que
diz respeito à acústica, as melodias são sequências de
sons de certa altura como quaisquer outros. As sequên­
cias que ouvimos como melodias não são algo diferente
de sequências que ouvimos como sucessões sem sentido;
e traços fenomênicos como tensão e liberação, movi­
mento para a frente, atração gravitacional e o ressoar no
silêncio não figuram na acústica. O conceito de melodia
classifica os sons segundo um interesse humano altamen­
te sofisticado, e esse interesse é um interesse em superfí­
cies e em sinais, não nos fatos fisicos que os sustentam.14
Contudo, as melodias são indivíduos musicais que persis­
tem na mudança e podem ser identificadas como
ua mesma outra vez"

0 exemplo mostra que há conceitos que dirigem nossos


estados mentais, mas que não desempenham nenhum
papel numa teoria explicativa, porque dividem o mundo
nos tipos errados de gêneros - conceitos como orna­
mento, melodia, dever, liberdade. 0 conceito de pessoa é
um deles, o que não significa que não existam pessoas,
mas que uma teoria científica das pessoas humanas vai
classificá-las junto com outras coisas - por exemplo, jun­
to com gorilas ou com mamíferos - e não será uma teoria
científica de todo tipo de pessoa. (Por exemplo, não será
uma teoria de pessoas jurídicas, de anjos ou de Deus.)

14 Ver Roger Scruton. The Aesthetics ofMusic. Oxford, Oxford University


Press, 1997, caps. I e II.

capítulo 3 - onde estou? 101


Por isso, o gênero a que pertencemos é definido por um
conceito que não aparece na ciência da biologia humana.
A biologia nos vê como objetos e nào como sujeitos, e
suas descrições de nossas respostas não são descrições
daquilo que sentimos. 0 estudo do nosso gênero é assun­
to das Geisteswissenschaften, que não são ciências de
modo algum, mas “humanidades”; em outras palavras,
exercícios de entendimento interpessoal. Tenho em mente
o tipo de entendimento exibido quando explicamos por
que o Rei Lear é uma figura trágica, por que “sorrindo
através de lágrimas” é uma boa descrição da Cavatina no
quarteto em si bemol de Beethoven, por que os autor-
retratos de Rembrandt mostram a morte e a decadência
como objetos pessoais e todas as outras questões que
formam uma verdadeira éducation sentimentale.

0 conceito-gênero em que reunimos os seres humanos


influencia nosso entendimento de seus estados psicológi­
cos, compreendidos como estados de pessoas, não como
os estados que animais não pessoais podem igualmente
exibir. E a maneira como os compreendemos influencia a
maneira como os experimentamos. 0 exemplo dos senti­
mentos sexuais oferece uma ilustração vivida daquilo que
quero dizer. As relações sexuais, poderia dizer o biólogo,
devem ser explicadas como estratégias genéticas. Não há
dificuldade em esclarecer fenômenos como o ciúme, a
modéstia da fêmea, as atitudes predatórias do macho e as
conhecidas tipologias da atração, uma vez que vemos es­
sas coisas como aspectos de um “investimento” genético.
Eis minha resposta: até aí tudo bem. Mas as explicações
dadas subdeterminam o comportamento a ser revelado.
0 traço que mais carece de explicação é precisamente a
intencionalidade interpessoal que nos distingue de nossos

102 o rosto de Deus


vizinhos evolutivos e que faz que nossos apegos “ultra­
passem" as circunstâncias empíricas que ocasionam seu
surgimento e cheguem ao sujeito livre que é seu alvo.
O ciúme sexual numa pessoa não é como seu simulacro
num bonobo, já que envolve a ideia de traição, pela qual
outra pessoa é responsável. A monogamia numa pessoa
não é como a monogamia dos gansos ou dos gibões, por­
quanto implica um voto de devoção pela vida inteira, no
mais das vezes concebido em termos sacramentais.

A verdade filosófica de que nosso gênero não é uma


categoria biológica é varrida de cena pela imagem evolu-
cionista e neurocientífica da condição humana. Ela pode
ressurgir por histórias, por imagens e por invocações, do
mesmo modo que Milton evocou a verdade de nossa con­
dição por meio da matéria-prima do livro do Gênesis. A
alegoria de Milton não é apenas um retrato do nosso gê­
nero; é um convite à generosidade. Ela nos mostra aquilo
que somos, assim como o ideal que deve nos guiar. E
estabelece um padrão para a arte. Tire, porém, a religião,
tire a filosofia, tire os objetivos superiores da arte, e você
privará as pessoas comuns das maneiras pelas quais po­
dem representar aquilo que as distingue. A natureza hu­
mana, que outrora era um ideal em cuja altura se tentava
viver, torna-se algo para esquecer a baixeza. 0 reducio-
nismo biológico incentiva esse “abaixamento", e essa é a
razão de as pessoas caírem tão facilmente nele. Ele toma
o cinismo respeitável, e a degeneração, elegante. Ele su­
prime nosso gênero, e com ele nossa generosidade.

Entre os conceitos mais interessantes que informam e es­


truturam o mundo humano está o do rosto. A ciência do
ser humano não tem nenhuma utilidade verdadeira para

capitulo 3 - onde estou? 103


os rostos. Claro que ela distingue todos os componentes
do ser humano e sua disposição no espaço. Ela identifica
que existe o reconhecimento do rosto e o seu oposto, isto
é, a prosopagnosia. Mas ela não reconhece aquilo que
toma os rostos tão importantes para nós, isto é, o fato
de que eles são a forma e a imagem exteriores da alma,
a lâmpada acesa em nosso mundo pelo sujeito que está
oculto. É por meio do entendimento do rosto que co­
meçamos a ver como os sujeitos podem se conhecer no
mundo dos objetos.

104 o rosto de Deus


Assim se expressa a lamentação no Salmo 13: “Até quan­
do me esquecerás, lahweh? Para sempre? Até quando
esconderás de mim a tua face?" No Salmo 17, lemos:
“Quanto a mim, com justiça eu verei tua face; ao des­
pertar, eu me saciarei com tua imagem". 0 quarto Salmo
implora: “lahweh, levanta sobre nós a luz da tua face!"
Estamos claramente a grande distância da Torá. A espe­
rança de um encontro face a face preenche os Salmos do
começo ao fim, e a esperança é transformada em promes­
sa pelo apóstolo Paulo, que nos diz que agora vemos por
espelho, em enigma, mas “então veremos face a face". 0
rosto de Deus, que Moisés foi proibido de ver, agora está
no centro da fé e da esperança, e o caminho para ele, diz
Paulo, é ágape, a palavra usada no Novo Testamento para
o amor ao próximo, traduzida como caritas na Vulgata e
descrita por Kant como o “amor que nos é ordenado".

Que significa o “rosto de Deus"? Esse será o tema dos ca­


pítulos restantes. E o óbvio ponto de partida, consideran­
do o raciocínio do último, é o rosto humano: que é ele,
exatamente, que papel ele desempenha nas relações in­
terpessoais e qual seu destino na época em que vivemos?

capítulo 4-o rosto da pessoa 105


Temos familiaridade com o tema do rosto graças a certo
tipo de filosofia continental, e Emmanuel Levinas dedi­
cou páginas de desesperadora obscuridade à sua expo­
sição. 0 rosto, escreve Levinas, é “em si e por si mesmo
visitação e transcendência”,1 e com isso ele parece querer
dizer que o rosto entra em nosso mundo compartilhado,
vindo de um lugar além dele, ao mesmo tempo que de
algum modo permanece longe dele, sempre um pouco
fora de alcance. Essa é a ideia que pretendo explorar. E
quero trazer esse importantíssimo tópico para o escopo
da filosofia tal como a conhecemos no mundo de língua
inglesa: filosofia como discussão, tendo a verdade como
objetivo. Levinas pertence a outra tradição - a tradição
dos profetas e dos místicos, que buscam obscuros pensa­
mentos à margem da linguagem e que lançam sombras
sobre tudo aquilo de que se aproximam.

Muitos animais têm olhos, narinas, lábios e orelhas dis­


postos de uma maneira que se assemelham à disposição do
rosto humano. E muitos animais reconhecem-se uns aos
outros por esses traços. Mas seria correto dizer que eles
têm rosto e que dirigem sua atenção para o rosto quan­
do se relacionam com seus semelhantes? E que pergun­
tas são essas? Será que elas podem ser respondidas pela
investigação empírica ou estão amarradas a distinções
ontológicas mais profundas do que o estudo do comporta­
mento? Num famoso livro, Darwin pretendeu mostrar que
a expressão das emoções nos seres humanos é semelhante
à sua expressão em outros animais e deu exemplos que

1 Humanism ofthe Other. Trad. Nidra Poller. Chicago, University of Illinois


Press, 2003, p. 44. Humanismo do Outro Homem. Trad. Pergentino S. Pivatto
(coord.). Petrópolis, Vozes, 2003. (N. T.)

106 o rosto de Deus


teoricamente o mostrariam.2 0 rosto humano, pensava,
distingue-se por sua mobilidade, mas não por seu papel
na comunicação social. As emoções e as motivações são
expressas no rosto, o que permite que outros membros da
espécie conjecturem o comportamento, seja ele agressivo,
seja apaziguador, amoroso, fugitivo ou alarmado.

0 cachorro, o cisne e a pessoa ilustrados na Figura 1


mostram aquilo que Darwin julgou serem variações de
um único padrão, em que os dentes são exibidos ou o
bico apontado para o ataque, as defesas são levantadas,
e as partes vulneráveis são recolhidas por proteção. Parte
do propósito de Darwin ao mostrar essas imagens era in­
dicar que nossas emoções são respostas evoluídas, muitas
das quais compartilhamos com outras espécies, e refletem
as circunstâncias de fundo de nossa vida como organis­
mos vulneráveis.

Certamente é verdade que o rosto, assim como qualquer


outra parte do corpo, pode exibir as forças que agem
sobre ele. Nesse sentido, pode funcionar como aquilo que
o filósofo Paul Grice chamou de “sinais naturais”.3 Grice
expressamente distinguiu esses sinais naturais do ato
humano de significar alguma coisa. Os animais conse­
guem ler os sinais naturais: um cavalo percebe as orelhas
para trás de outro cavalo e sai do caminho; um cachorro
reconhece os gestos submissos de seu antagonista e para
de lutar. Mas isso não significa que qualquer um desses

? The Expression of Emotions in Man and Animais, 1873. Trad. Leon de


Souza Lobo Garcia. A Expressão das Emoções no Homem e nos Animais.
Sâo Pâulo. Companhia das Letras. 2000. (N. T.)
3 H. P. Grice. "Meaning". The Philosophical Review, 66. 1957, p. 377-88.

capitulo 4-o rosto da pessoa 107


animais possa significar coisas assim como nós as dize­
mos ou que eles vejam aquilo que vemos quando enxer­
gamos a expressão num rosto. Temos de nos perguntar:
que vantagem teria um animal em poder ver rostos, assim
como as pistas do comportamento futuro neles contidas?
Certamente nenhuma que pudéssemos captar.
0 rosto, para nós, é um instrumento do dizer, situado
entre o eu e o outro de maneiras que lhe são próprias.

Figura 1. The Expression of the Emotions in Man and Animais


[A Expressão das Emoções no Homem e nos Animais].

A teoria do sentido de Grice gerou uma vasta literatura


que devo evitar aqui. Contudo, uma linha central de seu
argumento deve ser mencionada. Grice estava interes­
sado em analisar o ato de significar alguma coisa - “o
significado do falante”. Significar algo implica uma ação
intencional, mas nem todas as ações intencionais são
maneiras de significar algo. Segundo Grice, significar
envolve uma intenção de “segunda ordem” adicional, a
saber, a intenção de que o outro apreenda o conteúdo
da minha ação reconhecendo que aquela é minha inten­
ção. Deixando de lado todos os refinamentos e qualifi­
cações subsequentes, pode-se entender que a intuição de
Grice capta a natureza eu-você do significar. Ao signi­
ficar algo, dirijo-me a você como outro sujeito, com a

108 o rosto de Deus


intenção de que você reconheça o sujeito em mim. Isso
imediatamente tira aquilo que Grice chamou de signi­
ficado “não natural" do repertório do comportamento
animal e dá-lhe um caráter distintamente intersubjetivo.

A expressão num rosto não é normalmente intencional.


Um ator pode querer que seu rosto tenha uma expressão
de medo ou de raiva, mas a intenção é replicar aquilo
que não é intencional. Mesmo assim, é importante que
o rosto seja a parte do corpo em que a intenção está
inscrita, na forma de palavras, de olhares, de acenos e de
meneios. Quando lemos o rosto, estamos cientes disso.
É nas expressões faciais que está o significado; por isso,
elas servem como sinal natural dos estados de espírito
autoconscientes e interpessoais.

Os animais não têm o conceito de rosto; esse conceito


está associado a distinções que só os usuários da lingua­
gem podem fazer. Mas não se segue que eles não reco­
nheçam rostos. Afinal, cavalo nenhum possui o conceito
de um cavalo; porém, todo cavalo reconhece cavalos,
e é capaz de distinguir cavalo de não cavalo em seu
ambiente. Os animais também são capazes de discrimi­
nar objetos com base na Gestalten - do delineamento e
da similaridade gerais da forma -, mesmo quando isso
não resulta de uma similaridade fragmentada das partes.
Os pássaros são especialmente dotados nesse ponto e
conseguem reconhecer pessoas individuais por meio do
contorno ou das características do rosto.4 Mesmo assim,

4 Ver Science Daily, 19 maio 2009, para o exemplo dos tordos-dos-remédios.


Os corvídeos (corvos, pegas-rabudas, gralhas, etc.) sâo bem conhecidos por sua
capacidade de reconhecer indivíduos pertencentes a espécies diferentes da sua.

capitulo 4 - o rosto da pessoa 109


parece redundante dizer que um animal reconhece algo
ou alguém pelo rosto e nào por seus traços componentes,
como o nariz, a testa, os olhos e a cor. Talvez haja pes­
soas que são como os animais sob esse aspecto: pessoas
que nào conseguem apreender rostos como rostos, mas
que mesmo assim reconhecem as pessoas por seus traços.
Talvez essa pessoa raciocine (de modo subconsciente)
da seguinte maneira: orelhas compridas, olhos grandes,
lábios carnudos, ossos das bochechas mais altos - sim, é
o Bill. Mas esse raciocínio fica aquém da capacidade que
possuímos, que é ver Bill em seu rosto e ver aquele rosto
como um você e, portanto, como um eu. Essa capacidade
está além do repertório dos pássaros e de outros animais.
Eu também nào sugeriría que os gorilas não humanos
a possuam, ainda que eles consigam “reconhecer-se”
em espelhos, isto é, entender por uma imagem espelha­
da que aquilo que eles veem ali é alguma parte de seu
próprio corpo?

Então você podería imaginar uma pessoa cega para


feições, assim como os animais sào cegos para feições,
ainda que ela não seja cega para todos os componentes
dos rostos - talvez alguns casos de prosopagnosia sejam
assim. 0 caso seria como aquilo que Wittgenstein cha­
ma de “cegueira para aspectos”, como quando alguém
consegue ver tudo que compõe a imagem num quadro,

s Isso foi mostrado numa série de experimentos por G. G. Gallup em


1970. Ver G. G. Gallup Jr., "Chimpanzees: Self-recognition", Science, 167,
p. 86-87. Desde então se demonstrou que diversas outras espécies pas­
sam no “teste do espelho", com destaque para os golfinhos. Os pesquisa­
dores com frequência inferiram disso que esses animais têm, portanto, o
sentido - e até o conceito - do eu. Essa inferência, porém, não é permi­
tida pelas evidências.

110 o rosto de Deus


mas não consegue ver a imagem. (Suspeito que algumas
pessoas com amusia sejam assim: elas ouvem todos os
sons que compõem o argumento musical, mas não con­
seguem ouvir a música que os outros ouvem nos sons.)
Ver um rosto como rosto significa ir de algum modo além
dos traços físicos e chegar a um todo que surge deles, as­
sim como uma melodia surge de uma sequência de sons
modulados, e que é, como bem diz Levinas, ao mesmo
tempo visitação e transcendência.

Tenho uma ideia de transcendência que vem do meu


próprio exemplo. Meu rosto é uma parte de mim que
não vejo - a menos, é claro, que eu decida vê-lo de
fora, usando um espelho. As pessoas ficam surpresas
com seu próprio rosto de um jeito que não ficam com
qualquer outra parte do corpo ou com o rosto de outra
pessoa. É pela visão de seu próprio rosto que elas têm
ideia daquilo que são para os outros e do que elas são
como outros. (Elas também têm essa ideia ao ouvir a
própria voz numa gravação, e isso também é ocasião
de surpresa, muitas vezes de desconforto.) Na história
de Narciso, o protagonista responde a si mesmo como
se fosse outro ao se defrontar com o próprio rosto. Até
aquele momento ele tinha estado fechado em si mesmo,
incapaz de reconhecer outros e de fugir de seu amor.
Tirésias profetizara que Narciso teria longa vida des­
de que “não se conhecesse”? Ao ver o próprio rosto na
superfície da água, Narciso vê-se “olhado” pela primeira
vez: ele se reconhece, mas não como ele mesmo. Ele se
defronta com um sujeito que foge dele assim como ele

6 Si se non noverit, Ovidio, Metamorfoses, Parte III. p. 348.

capitulo 4 - o rosto da pessoa 111


tinha fugido dos outros. E, por nào virar o rosto, Narci­
so c destruído por aquilo que vê.

Meu rosto também é aquela parte de mim a que outras


pessoas dirigem sua atençào, sempre que elas se diri­
gem a mim como “você”. Estou atrás do meu rosto e,
contudo, estou presente nele, falando e olhando atra­
vés dele para um mundo de outros, que por sua vez se
ocultam e se revelam como eu. Meu rosto é um limi­
te, um limiar, o lugar onde apareço como o monarca
aparece no balcào do palácio. (Daí vem a boa descrição
que Dante dá, em Convívio, dos olhos e da boca como
“balcões da alma”.) Meu rosto está, portanto, atado
ao pathos da minha condição. Em certo sentido, você
sempre tem uma consciência mais clara do que eu po­
dería ter daquilo que sou no mundo; e, quando encaro
meu próprio rosto, pode haver um momento de medo
na hora em que tento encaixar a pessoa que conheço
tão bem nessa coisa que os outros conhecem melhor.
Como pode a pessoa que conheço como unidade con­
tínua desde meus primeiros dias até agora ser idêntica
a essa carne decadente a que os outros se dirigiram
através de todas as suas mudanças? Essa é a questão
que Rembrandt explorou na série de autorretratos que
fez ao longo de toda a vida. Para Rembrandt, o rosto
é o lugar em que o eu e a carne se fundem e onde o
indivíduo é revelado não apenas na vida que brilha,
que emerge, mas também na morte que vai brotando
nas rugas (Figura 2). 0 autorretrato de Rembrandt é
coisa raríssima - um retrato do eu. Ele mostra o sujeito
encarnado no objeto, abraçado por sua própria morta­
lidade e presente como a morte na margem incognos-
cível das coisas.

112 o rosto de Deus


Figura 2. Rembrandt: Autorretrato.

Quando dizemos que a pessoa está atrás de seu rosto,


estamos falando figurativamente. Claro que ele não é
idêntico a seu rosto; mas isso não implica que ele seja
inteiramente outro em relação a seu rosto e menos
ainda que ele é uma alma clandestina, escondida atrás
da carne como um palhaço atrás de sua maquiagem.
Os sinais naturais que os cachorros leem nos traços de

capitulo 4 - o rosto da pessoa 113


seus semelhantes cachorros são efeitos transparentes das
paixões que os compelem. Mas o rosto do ser humano
não é igualmente transparente. As pessoas são capazes
de enganar com seu rosto e podem usar o rosto para
moldar o mundo em seu próprio favor. Em Macbeth,
Duncan lamenta ter sido enganado pelo traiçoeiro Barão
de Cawdor, o predecessor de Macbeth naquele título,
dizendo que “não existe arte que ensine a ler no rosto as
feições da alma",7 isto é, não há maneira de ficar saben­
do o que espreita atrás de um sorriso enganador. A peça
prova que Duncan tem razão, já que ele é imediatamente
enganado por Macbeth, que o assassina.

Essa possibilidade de engano surge precisamente porque


não fazemos distinção, em nossos encontros comuns, entre
uma pessoa e seu rosto. Quando me defronto com outra
pessoa face a face, não estou me defrontando com uma
parte física dela, como quando, por exemplo, estou olhan­
do seu ombro ou seu joelho. Estou me defrontando com
ela, o centro individual da consciência, o ser livre que se
revela no rosto como outra pessoa como eu. Existem ros­
tos enganadores, mas não existem cotovelos nem joelhos
enganadores. Quando leio um rosto, estou de algum modo
tomando conhecimento da maneira como uma pessoa apa­
rece para outra. E a expressão num rosto já é uma oferta
no mundo das responsabilidades mútuas: é uma projeção
no espaço das relações interpessoais do “estar ali" de uma
pessoa em particular. Dizendo de outro modo: o rosto é o
sujeito, revelando-se no mundo dos objetos.

7 Sempre que a citação nào indicar a referência bibliográfica, trata-se de


tradução assinada pelo tradutor deste livro.

114 o rosto de Deus


Que o rosto tenha essa natureza deve-se em parte ao sig­
nificado maior do corpo humano. Graças a nossa postura
ereta, a nossos braços livres e a nossas mãos que tudo
podem pegar, somos capazes de enfrentar as coisas não
apenas com nossos olhos, mas com todo o nosso ser. Essa
postura penetra nosso entendimento intencional de ma­
neiras sutis que foram em parte esclarecidas por Merleau-
-Ponty.8 0 rosto humano anuncia o corpo humano e o
precede como um emblema. E nossa leitura do rosto reflete
isso. 0 rosto ocorre no mundo dos objetos como se estives­
se iluminado por trás. Por isso ele se toma alvo e expres­
são de nossas atitudes interpessoais, e olhares, olhadelas e
sorrisos tomam-se a moeda corrente de nossos afetos.

Isso significa que o rosto humano tem uma espécie de


ambiguidade intrínseca. Ele pode ser visto de dois jeitos
- como o veículo da subjetividade que brilha nele e como
parte da anatomia humana. A tensão aqui vem para o
primeiro plano no comer, como disseram Leon Kass e Ray-
mond Tallis.9 Ao contrário dos animais, nós não lançamos
nossa boca contra a comida para ingeri-la. Levantamos a
comida até a boca, ao mesmo tempo que retemos a postu­
ra ereta que nos permite conversar com nossos próximos.
Em todas as sociedades (antes da atual), comer é uma oca­
sião social, com um caráter pronunciadamente ritualístico,
muitas vezes precedida de uma prece de agradecimento.

" The Phenomenology of Rerception (1945). Trad. Colin Smith. London, Rout-
ledge e Kegan Paul, 1962. Ver também o excelente ensaio sobre nossa postura
ereta em Erwin Straus, Phenomenological Psychology. New York, Basic Books,
1966, e aquele de Raymond Tallis sobre a mão: The Hand: A Philosophical
Enquiry into Human Being. Edinburg, Edinburgh University Press, 2003.
” Leon Kass, The Hungry Soul: Eating and the Perfecting of Our Nature. New
York, Simon and Schuster, 1994. Raymond Tallis, Hunger. London, Acumen, 2008.

capitulo 4-o rosto da pessoa 115


Ela ocorre num espaço que foi santificado e ritualizado,
e ao qual os deuses foram convidados. Todos os rituais
impõem disciplina ao rosto, e isso é parte daquilo que
experimentamos ao comer. Porém, a natureza ordenada
do encontro entre comida e boca vai além da disciplina
ritual. As maneiras à mesa têm a função de manter o rosto
e a boca em seu aspecto pessoal e conversacional. A boca
bem-educada não é só uma boca e certamente não é uma
abertura pela qual a comida é ingerida. É o lugar da voz,
o escape do pensamento e do sentimento, o “balcão da
alma”. E quando as pessoas enchem a boca avidamente -
sobretudo quando o fazem da maneira solitária e indi­
gente que está ficando comum -, a boca e o rosto mudam
de aspecto, tomando-se meramente anatômicas, e sua
importância pessoal é apagada.

Claro que há aqui um equilíbrio, e a maioria das pessoas


não o atinge perfeitamente e de fato nem deve atingir,
sob o risco de parecerem empoladas e preciosistas à mesa
de jantar. 0 ponto crucial é que, mesmo quando está
servindo a um propósito biológico, meu rosto permanece
sob minha jurisdição. Ele é o lugar onde estou no mundo
dos objetos e o lugar do qual me dirijo a você. E o rosto
tem um repertório interessante de ajustes, que podem ser
entendidos meramente como mudanças físicas do tipo
que observamos nos traços de outras espécies. Por exem­
plo, há o sorrir. Os animais não sorriem; na melhor das
hipóteses eles exibem os dentes, como os chimpanzés. Em
Paraíso Perdido, Milton escreve (descrevendo o amor entre
Adão e Eva) que “da razão correm sorrisos / negados às
bestas, que são o alimento do amor”. 0 sorriso que revela
é o sorriso involuntário, a bênção que uma alma confere
a outra, quando brilha com o eu inteiro num momento de

116 o rosto de Deus


autodoação. Por isso, o sorriso voluntário e deliberada-
mente amplificado não é de modo algum um sorriso, mas
uma máscara. Um dos maiores sorrisos de toda a pintura
é aquele conferido a Rembrandt por sua velha mãe, e por
Rembrandt a ela (Figura 3). Aqui a boca mal se retorce, e
os olhos, cansados pela idade, mesmo assim estão acesos
pelo afeto maternal. Muito poucas pinturas apresentam
um exemplo tão vivido do sujeito revelado no rosto. Nós,
os espectadores, sabemos o que significa para aquela mu­
lher olhar daquele jeito para seu filho.

Sorrir é um jeito de estar presente no rosto; outro jeito


é beijar. Se um sorriso sincero é involuntário, um beijo
sincero é deliberado. Isso é verdade ao menos em relação
ao beijo de afeição. No beijo de paixão erótica, porém, a
vontade também é parcialmente vencida, e nesse con­
texto o beijo puramente deliberado tem um ar de insin­
ceridade. 0 beijo erótico sincero é ao mesmo tempo uma
expressão da vontade e uma entrega mútua. Por isso ele
demanda uma espécie de govemo da boca, de modo que
a alma possa respirar por ela e também se entregar, ali,
no perímetro do ser individual. Ao descrever a tentação
e a queda de Francesca da Rimini, Dante fala dela re­
cordando o momento em que ela e Paolo leram juntos a
história de Lancelot e Guinevere e chegaram à passagem
em que Lancelot é vitimado pelo sorriso de Guinevere. Ela
se lembra de ter lido como o afetuoso sorriso foi “beijado
por um amante como aquele”. Ela recorda então o beijo
de Paolo, e não seu sorriso, porque não era mais ela que
estava sorrindo, mas sua boca. E por sua boca ela parti­
cipa no tremor de Paolo: la boeca mi baciò tutto treman-
te (Inferno, V, 136). A boca, assim como os olhos, é um
ponto de interseção entre alma e corpo, pessoa e animal.

capitulo 4-o rosto da pessoa 117


Francesca estava ciente, graças a Guinevere, de seu pró­
prio sorriso, já que ela sabia da liberdade de escolha que
estava incitando seu amor. Entào Paolo a beija, e seu sor­
riso toma-se uma boca, cheia de tremor. Ela atribui esse
tremor a Paolo, e nós sentimos quanto a autoimagem de
Francesca foi vencida. Ela experimenta seu desejo como
uma força que vem de fora, algo que a vence, que ela não
tem forças para resistir, já que foi transferida para o eu.

Figura 3. Rcmbrandt: A Mãe do Artista.

118 o rosto de Deus


0 beijo erótico não é só uma questão de lábios; os olhos
c as mãos também estão envolvidos. E certamente Sartre
(em razão ao pensar que, na carícia do desejo, estou, nas
palavras dele, tentando “encarnar o outro” - em outras
palavras, estou tentando colocar na carne que toco com
minhas mãos ou lábios a coisa que Sartre chama de
liberdade e que eu estou chamando de perspectiva em
primeira pessoa.10 Sartre prossegue dizendo que o desejo
sexual é intrinsecamente paradoxal, porque só consegue
atingir seu objetivo “possuindo outro em sua liberdade”
- em outras palavras, possuindo a liberdade alheia ao
mesmo tempo que a retira. Não concordo com isso. Mas
acredito que o beijo de desejo coloca em primeiro plano a
mesmíssima ambiguidade que está presente no comer. Os
lábios oferecidos por um amante a outro estão repletos
de subjetividade; eles são os avatares do eu, convocando
a consciência do outro num dom mútuo. É assim que o
beijo erótico é retratado por Canova, por exemplo, em
sua escultura de Eros e Psiquê, Figura 4, e também por
Rodin em O Beijo, obra que originariamente era chamada
de Paolo e Francesca.

Os lábios são oferecidos como espírito, mas respon­


dem como carne. À pressão dos lábios do outro, eles
se tomam órgãos sensoriais, trazendo consigo toda a
armadilha fatal do prazer sexual, e estão prontos para
entregar-se a uma força que irrompe no eu do lado de
fora. Por isso o beijo é o momento mais importante do
desejo - o momento em que alma e corpo estão unidos

10 0 Ser e o Nada: Ensaio de Ontologia Fenomenológica. Petrópolis, Vozes,


2005, Livro III, cap. III. Discuto as idéias de Sartre em Sexual Desire. London,
Weidenfeld, e New York. Free Press. 1986, p. 120-25.

capitulo 4 - o rosto da pessoa 119


e no qual os amantes estào plenamente face a face e
também totalmente expostos um ao outro, da maneira
como Francesca descreve. 0 prazer do beijo não é um
prazer sensorial, não é matéria de sensações, mas da
intencionalidade eu-você e do que ela significa. Por isso,
pode haver beijos equivocados e um prazer equivocado
no beijar, como experimentado por Lucrécia, na versão
de Ronald Duncan e de Benjamin Britten da história, ao
beijar o homem que ela julgava ser seu marido e que ela
descobriu ser o estuprador Tarquínio, ainda que fosse
tarde demais para se defender.

Figura 4. Canova: Eros e Psiqué.

120 o rosto de Deus


A presença do sujeito no rosto é ainda mais evidente nos
olhos, e os olhos desempenham seu papel tanto nos sor­
risos quanto nos olhares. Os animais podem olhar coisas:
eles também olham uns aos outros. Mas eles não perscru-
lam as coisas. Talvez o mais concentrado de todos os atos
de comunicação não verbal entre as pessoas seja o dos
amantes, quando eles olham um nos olhos do outro. Eles
não estão observando a retina, nem explorando os olhos
por suas peculiaridades anatômicas, como talvez fizesse
um oftalmologista. Então, o que eles estão observando
ou procurando? A resposta certamente é óbvia: cada qual
está procurando e também esperando estar observando o
outro, como uma subjetividade livre que está se esforçan­
do para se encontrar eu a eu.

Voltar meus olhos para você é um ato voluntário. Mas


aquilo que então recebo de você não é resultado do que
laço. Como símbolo de toda percepção, os olhos repre­
sentam aquela “transparência epistêmica" que permite
que a pessoa se revele a outra em sua corporificação;
assim como somos revelados em nossos olhares, sorrisos
c enrubescimentos. A junção de perspectiva que começa
quando um olhar é respondido com um enrubescimento
ou com um sorriso é finalmente realizada em olhares
integralmente retribuídos: o “eu vendo você me vendo”
da atenção plena, em que não se pode dizer que qualquer
um de nós esteja fazendo ou sofrendo o que está se pas­
sando. Eis a descrição de Donne:

Nossas vistas trançadas e tecendo


Os olhos em um duplo filamento;
Enxertar mão em mão é até agora
Nossa única forma de atadura;

capitulo 4-o rosto da pessoa 121


E modelar nos olhos as figuras
A nossa única propagação.11

Olhares são voluntários. Mas a revelação total do sujeito


no rosto não é, via de regra, voluntária. A observação
de Milton de que “da razão correm os sorrisos" é plena­
mente compatível com o fato de que os sorrisos costu­
mam ser involuntários, e os “sorrisos dádivas", como se
podería chamá-los, sempre são. Igualmente o riso, para
ser genuíno, precisa ser involuntário, ainda que o riso
seja algo de que apenas criaturas com intenções, razão e
autoconsciência sejam capazes. 0 riso é um assunto em si
mesmo, e devo passar ao largo dele aqui.12 0 que precisa
ser ressaltado é que, se sorrir e rir são movimentos da
boca, o rosto inteiro fica infundido por eles, de modo que
o sujeito neles é revelado “tomado". Os claros olhos acin­
zentados de Isabel Archer, na descrição de Henry James,
“tinham uma brandura encantadora quando ela sorria",
uma brandura que só podería ser notada pela pessoa que
também visse o sorriso em seus lábios e sentisse a mudan­
ça em seus traços como uma onda involuntária de prazer.

Lágrimas de alegria correm dos olhos, assim como lágri­


mas de tristeza e de dor. Por isso, as lágrimas são símbo­
los do espírito; é como se alguma coisa minha se perdesse
com elas. Por essa razão as pessoas, desde tempos ime­
moriais, sentiram o impulso de coletar suas lágrimas em

" Tradução de Augusto de Campos para "0 Êxtase" ("The Ecstasy"). (N. T.)

12 Para uma discussão pertinente, ver Helmuth Plessner, Laughing and Crying:
A Study ofthe timits ofHuman Behavior. Trad. James Spencer Churchill e
Marjorie Greene. Evanston, Northwestern University Press, 1970, e F. H. Buck-
ley, The Morality ofLaughter. Ann Arbor, University of Michigan Press, 2003.

122 o rosto de Deus


lacrimatórios. No versículo 9 do Salmo 56 há o lamento:
“Já contaste os meus passos de errante, recolhe minhas
lágrimas em teu odrel". As lágrimas são como dores: elas
não podem ser voluntárias, ainda que você possa fazer
alguma outra coisa para produzi-las. Mesmo que existam
atores e hipócritas que possam produzi-las à vontade,
isso não torna as lágrimas ações intencionais; só signi­
fica que há maneiras de fazer correr água nos olhos sem
produzir “lágrimas de verdade” Mas rir e sorrir podem
ser atos deliberados, e quando são deliberados têm uma
qualidade mórbida, ameaçadora, como quando alguém ri
de maneira cínica ou se esconde atrás de um conhecido
sorriso. 0 riso voluntário pode ser também uma espécie
de blindagem espiritual com a qual uma pessoa se defen­
de de um mundo traiçoeiro.

Observações similares valem para enrubescimentos, que


são mais semelhantes às lágrimas do que ao riso na
medida em que não podem ser propositados. Aquilo que
Milton diz sobre os sorrisos podería igualmente ser dito
dos enrubescimentos. Da razão fluem os enrubescimentos,
que são negados às bestase alimentam o amor. Somen­
te um ser racional pode enrubescer, ainda que ninguém
possa enrubescer voluntariamente. Mesmo que, por algum
truque, você seja capaz de fazer o sangue correr para a
superfície das suas bochechas, isso não seria enrubescer,
mas uma espécie de fraude. E é o caráter involuntário do
enrubescimento que transmite seu sentido. 0 enrubesci-
mento de Maria ao encontrar João, por ser involuntário,
imprime nele a sensação de que foi ele quem o produziu,
que é em algum sentido obra sua. Seu enrubescimento é
um fragmento da perspectiva em primeira pessoa, cha­
mado à superfície de seu ser e tomado visível em seu

capitulo 4-o rosto da pessoa 123


rosto. Em nossa experiência de tais coisas, nosso senso da
unidade animal do outro combina com nosso senso de sua
unidade como pessoa, e percebemos essas duas unidades
como um todo indissolúvel. 0 sujeito toma-se, então, uma
presença real no mundo dos objetos.

Espero que não seja exagero estender essa fenomenolo-


gia do rosto um pouco mais e ver o rosto como símbolo
do indivíduo e como mostra de sua individualidade. As
pessoas são animais individuais, mas também são pessoas
individuais, e, como afirmei no capítulo anterior, há um
enigma em elas poderem ser as duas coisas. Segundo
uma tradição - aquela associada a Locke -, a identidade
da pessoa ao longo do tempo é estabelecida pela con­
tinuidade do “eu” e não por referência à constância do
corpo. Ainda que eu não aceite isso, aceito que ser uma
pessoa tem algo a ver com a capacidade de lembrar o
passado e de intencionar o futuro, mantendo-se respon­
sável por ambos. E essa conexão entre a personalidade e
o caso de primeira pessoa tem por sua vez algo a ver com
nossa percepção de que os seres humanos são indivíduos
de um gênero especial e num sentido especial que os
distingue de outros elementos espaçotemporais.

0 conhecimento que tenho de minha própria individuali­


dade, que deriva de minha percepção direta e sem critério
da unidade que liga meus estados mentais, dá substância
à perspectiva de que sou mantido no ser como indiví­
duo, por meio de toda mudança concebível. A Istigkeit,
ou haecceitas, é exemplificada em mim como algo que
não posso perder. Ela é anterior a todos os meus estados
e propriedades e não pode ser reduzida a nenhum de­
les. Nisso também sou semelhante a um deus. E é essa

124 o rosto de Deus


percepção interior da absoluta individualidade que se tra­
duz no rosto e que ali se faz carne. Os olhos que olham
para mim são seus olhos, e também você: a boca que fala
<• as bochechas que enrubescem são você.

0 sentido do rosto tal como irradiado pelo outro e infun­


dido com sua autoidentidade está por trás da força das
máscaras no teatro. No teatro clássico da Grécia, e também
no do Japão, a máscara era considerada não apenas essen­
cial para a elevada tensão do drama, mas também como a
melhor maneira de garantir que as emoções expressas nas
palavras se refletissem no rosto. É o espectador, tomado
pelas palavras, que vê o sentido brilhando na máscara. 0
impedimento da carne humana com suas imperfeições foi
removido, e a máscara parece mudar a cada flutuação das
emoções do personagem, tomando-se o sinal exterior do
sentimento interior, precisamente porque a expressão na
máscara vem não tanto daquele que a usa, mas daquele
que a olha. Fazer uma máscara que possa ser vista desse
modo demanda habilidades adquiridas ao longo de uma
vida inteira, talvez mais do que uma vida, pois os fabri­
cantes de máscaras do teatro nô japonês transmitem sua
arte há muitas gerações; as melhores máscaras ficam nas
coleções particulares dos patronos e dos atores e são usa­
das apenas em ocasiões de extrema solenidade.

A máscara era um símbolo de Dioniso, o deus em cujo


festival as tragédias eram representadas. Ela não significava
o distanciamento do deus em relação aos espectadores -
Dioniso não era nenhum deus absconditus. Ela significava
sua presença real entre eles. Dioniso era o deus da tragédia e
também o deus do renascimento, levado pelo vinho à alma
de seus adoradores, a fim de incluí-los na dança de sua

capitulo 4-o rosto da pessoa 125


própria ressurreição. A máscara era o rosto do deus, ressoan­
do no palco com a voz do sofrimento humano e ressoando
no culto de mistério com uma alegria divina e ditirâmbica.

É significativo que a palavra “pessoa”, que tomamos em­


prestada para expressar todos aqueles aspectos do ser hu­
mano associados à percepção em primeira pessoa, tenha
vindo originalmente do teatro romano, em que persona
denotava a máscara usada pelo ator e, portanto, por ex­
tensão, o personagem retratado.13 Ao tomar o termo em­
prestado, a lei romana dizia que, em certo sentido, sempre
aparecemos mascarados no julgamento. Como disse uma
vez sir Emest Barker: “não é o Ego natural que adentra o
tribunal. É uma pessoa com direitos e deveres, criada pela
lei, que comparece diante da lei".14 0 rosto, assim como a
pessoa, é tanto produto como produtor de julgamento.

Devemos reconhecer também que não é só no teatro que


máscaras são usadas. Há sociedades - a de Veneza a mais
singular - em que máscaras e disfarces adquiriram funções
complexas que os colocam no centro mesmo da vida co­
munitária, tomaram-se itens indispensáveis de vestuário,
sem os quais as pessoas se sentem nuas, indecentes ou
deslocadas. No carnaval veneziano, a máscara tradicio­
nalmente servia a dois propósitos: anular a identidade
cotidiana da pessoa e criar uma nova identidade em seu

13 Há etimologias conflitantes: uns dizem que a palavra vem do latim per-


-sonare, soar através; outros, que a raiz é etrusca, derivada do culto de Per-
séfone, que era o tema principal do teatro etrusco, em que ela tinha papel
semelhante ao de Dioniso no teatro ático.
’4 Sir Ernest Barker, introdução a Otto Gierke, Natural Law and the Theory
ofSociety 1500-1800. Trad. Barker. Cambridge, Cambridge University Press,
1934, p. Ixxi.

126 o rosto de Deus


lugar - uma identidade conferida pelo outro. Assim como
no teatro a máscara usa a expressão projetada pela platéia,
também no carnaval a máscara toma sua personalidade
das pessoas em volta. Assim, longe de afastar as pessoas, a
arte coletiva da máscara faz cada pessoa se transformar no
produto do interesse alheio; o momento do carnaval toma-
-se a mais alta forma de “efervescência social”, para usar a
fecunda frase de Durkheim.

Em seu notável estudo da máscara veneziana, o historia­


dor James Johnson explorou a maneira como a função da
máscara evoluiu ao longo de muitos séculos, como talvez
se possa dizer: de esconder para enquadrar. A máscara
veneziana tomou-se uma maneira não de ocultar quem a
usava, mas de conferir uma presença “incógnita”; a más­
cara era ao mesmo tempo transparente em relação a sua
identidade real e ainda assim um limiar, atrás do qual a
pessoa ficava num espaço próprio. No apogeu de seu uso,
na Veneza setecentista de Goldoni e de Gozzi, a máscara
deixou de ser um modo de retirar-se do mundo e passou a
ser, pelo contrário, um modo de entrar nele, um instrumen­
to de liberdade e um reconhecimento cerimonial do mundo
público. Como diz Johnson, a máscara era “um símbolo de
privacidade e não a privacidade em si, um amortecedor que
permitia uma genuína reserva e uma intimidade inabitual.
Era possível livremente servir-se de seu ‘anonimato’ ritua-
lizado ou ignorá-lo. A máscara honrava a liberdade no
sentido veneziano, o que significava dispor de uma dose de
autonomia dentro de limites ciosamente demarcados”.15

15 James H. Johnson, Venice Incógnito: Masks in the Serene Republic.


Berkeley, University of Califórnia Press, 2011, p. 128.

capitulo 4-o rosto da pessoa 127


A máscara mostra que o rosto individualizado do outro é,
em certa medida, nossa própria criação: tire a máscara e
embaixo dela você encontrará outra máscara (Figura 5).
Essa observação leva a certa ansiedade, por sugerir que a
presença do outro em seu rosto pode ser tão real quanto
sua presença na máscara. Talvez estejamos até equivo­
cados em atribuir a pessoas o tipo de individualidade
absoluta que inevitavelmente enxergamos em seus traços.
Talvez nossas interações cotidianas sejam mais “carnava­
lescas” do que gostaríamos, resultado de um constante e
criativo imaginar que por trás de cada rosto há algo como
a unidade interior que todos conhecemos e que nenhum
de nós consegue descrever.16 Talvez a individualidade
do outro resida meramente em nossa maneira de vê-lo e
tenha pouco ou nada a ver com sua maneira de ser.

Tendo a crer que nào há resposta para a pergunta sobre


o que faz de mim o indivíduo que sou que não seja uma
afirmação banal de identidade. Mas tendo também a
crer que a noção de uma individualidade absoluta surge
espontaneamente das mais fundamentais relações inter­
pessoais. Ela está implicada em todas as nossas tentativas
de ser íntegros e de viver de maneira responsável. E ela
está embutida em nossa maneira de perceber e também
de descrever o mundo humano. Em vez de descartá-la
como ilusão, prefiro dizer que ela é um “fenômeno bem
fundamentado”; no entendimento de Leibniz, um modo
de ver o mundo que é indispensável para nós e que nun­
ca teríamos razões conclusivas para rejeitar.

Devemos o termo "carnavalesco", usado para descrever uma atitude


abrangente em relação à realidade, a Mikhail Bakhtin, Rabdais and His
World. Trad. Hélène Iswolsky. Bloomington, Indiana University Press, 1993.

128 o rosto de Deus


Figura 5. Lorenzo Lippi: Mulher com Máscara.

Além disso, o rosto tem esse significado para nós porque


ele é o limiar em que o outro aparece, oferecendo “essa
coisa que sou” como parceira de diálogo. Essa caracte­
rística está no cerne daquilo que é ser humano. Nossas
relações interpessoais seriam inconcebíveis sem a pre­
sunção de que podemos nos comprometer por meio de

capítulo 4-o rosto da pessoa 129


promessas, assumir responsabilidade agora por algum
acontecimento no futuro ou no passado, fazer votos que
nos atam para sempre àquele que os recebe e cumprir
obrigações que consideramos que não podem ser transfe­
ridas para ninguém. E tudo isso lemos no rosto.

Lemos essas coisas particularmente no rosto do ser ama­


do, no olhar de amor. Nossas emoções sexuais se baseiam
em pensamentos individualizantes: é você que eu quero,
e não o tipo ou padrão. Essa intencional idade individua-
lizante não nasce meramente do fato de que são pessoas
(em outras palavras, indivíduos) que desejamos. Ela nasce
do fato de que o outro é desejado como sujeito corpo-
rificado e não como corpo.17 E o sujeito corporificado é
aquilo que vemos no rosto.

Isso fica claro quando se faz um contraste entre o desejo


e a fome. Suponha que as únicas coisas comestíveis fos­
sem pessoas e que elas não sentissem nenhuma dor em ser
comidas e fossem imediatamente reconstituídas. Quantas
formalidades e desculpas seriam então necessárias para
satisfazer a fome! As pessoas tentariam esconder seu apetite
e aprender a não contar com o consentimento daqueles a
quem contemplavam com olhares esfomeados. Seria crime
fazer uma refeição sem o consentimento da refeição. Talvez
o casamento fosse a melhor solução. Porém, esse dilema
ainda está bem longe do dilema em que o desejo nos coloca.
Ele nasce da ausência de algo impessoal que possa ser
comido, mas não da natureza da fome. A fome é dirigida

17 Defendí longamente isso em Sexual Desire: A Mora! Philosophy of the


Erotic, op. cit. A ideia do "sujeito corporificado" também é fundamental
para a análise da percepção feita por Merleau-Ponty.

130 o rosto de Deus


para o outro apenas como objeto, e qualquer objeto similar
servirá igualmente bem. Ela não individualiza o objeto nem
propõe qualquer união que não seja aquela demandada
pela necessidade. Menos ainda ela exige do objeto aquelas
virtudes intelectuais, morais e espirituais que seria razoável
um amante exigir - e, de acordo com a literatura do amor
cortês, tem de exigir - no objeto de seu desejo.

Quando as atenções sexuais assumem a forma de fome,


elas se tomam profundamente insultuosas. E de todo modo
elas comprometem não apenas a pessoa que as dirige mas
também a pessoa a quem elas são dirigidas. Precisamente
porque o desejo propõe uma relação entre sujeitos; ele for­
ça as duas partes a serem responsáveis por si mesmas: ele
é uma expressão da minha liberdade, que busca a liberda­
de em você. Por isso a modéstia e a vergonha são parte do
fenômeno, um reconhecimento de que o Ueu" está sendo
exibido no corpo e que sua liberdade está em risco. Isso
fica claro na pintura Susana e os Anciãos, de Rembrandt
(Figura 6) em que o corpo de Susana é forçado a encolher-
-se em si mesmo pelos olhos lúbricos que a observam,
como a carne de um molusco que foi separada da concha.

Avanços indesejados são, portanto, também proibidos por


aquele a quem eles podem ser dirigidos, e toda transgres­
são é sentida como uma contaminação. É por isso que o
estupro é um crime tão sério: é uma invasão da liberda­
de da vitima, em que o sujeito é forçado ao mundo das
coisas. Não preciso enfatizar quanto nosso entendimento
do desejo foi influenciado e até subvertido pela literatu­
ra, de Havelock Eli is até os Relatórios Kinsey, passando
por Freud, que afirmava levantar o véu de nossos desejos
coletivos. Mas vale a pena observar que se você descreve

capitulo 4-o rosto da pessoa 131


o desejo nos termos que se tomaram elegantes, como
a busca de sensações prazerosas nas partes pudendas,
então toma-se impossível explicar o ultraje e os males
do estupro. Ser estuprado, nessa visão, é tão ruim quanto
ser cuspido, mas não pior. Na verdade, fica impossível
explicar praticamente tudo no comportamento sexual
humano, e é somente aquilo que chamei de “encanto do
desencantamento" que leva as pessoas a receber como
verdade as descrições que hoje são elegantes.

Figura 6. Rembrandt: Susana e os Anciãos.

132 o rosto de Deus


0 estupro não é apenas uma questão de contato indeseja-
do. É um ataque existencial e uma aniquilação do sujeito.
Raramente alguém captou isso de modo mais pungente
do que Goya, em uma de suas pinturas dedicadas a cenas
de bandidagem. A menina nessa pintura (Figura 7) está
tendo as roupas tiradas por seus captores, que manuseiam
aquela matéria preciosa com uma delícia concupiscente
que é ainda mais excruciante porque sabemos que eles
estão prestes a apalpar a menina. Ela se esconde deles,
não o corpo, mas o rosto, o lugar onde sua vergonha é
revelada, e ao esconder-se ela faz tudo que pode para se
retirar daquilo que está prestes a acontecer.

0 desejo sexual é intrinsecamente comprometedor, e


expressá-lo ou ceder a ele é uma escolha existencial, em
que o eu está em risco. Não surpreende, portanto, que o
ato sexual seja cercado de proibições: ele traz consigo um
peso de vergonha, de culpa e de ciúme, assim como de
alegria e de felicidade. 0 sexo, portanto, está profunda­
mente implicado no sentido do pecado original, como o
descreví antes, o sentido de sermos separados daquilo que
de fato somos, por nossa queda no mundo dos objetos.

Há uma intuição importante contida no livro do Gênesis


a respeito da perda do eros quando o corpo assume o
centro da cena. Adão e Eva comeram do fruto proibido e
obtiveram o “conhecimento do bem e do mal"; em outras
palavras, a capacidade de inventar por si próprios o có­
digo que rege seu comportamento. Deus entra no jardim
e eles se escondem, conscientes pela primeira vez de
seus corpos como objetos de vergonha. Essa “vergonha
do corpo" é um sentimento extraordinário, um senti­
mento que não se podería conceber que animal nenhum

capitulo 4 - o rosto da pessoa 133


tivesse. Ele é um reconhecimento do corpo como algo
de certa maneira alheio - a coisa que entrou no mundo
dos objetos como se fosse por conta própria, tornando-
-se vítima de olhares indesejados. Adão e Eva adquiriram
consciência de que não apenas estão face a face, mas
unidos de outra maneira, como corpos, e que o olhar da
luxúria agora objetiva envenenar seu desejo, que antes
era inocente. A descrição de Milton dessa transição, do
puro eros que precedeu a queda até a poluída luxúria que
se seguiu a ela, é um dos grandes triunfos psicológicos da
literatura inglesa. Mas de que maneira brilhante e sucin­
ta o autor do Gênesis cobre a mesma transição! Usando
a folha de parreira, Adão e Eva conseguem resgatar-se
do pior: garantir, ainda que de maneira provisória, que
podem estar face a face, mesmo que o erótico tenha sido
privatizado e associado às partes pudendas.

Figura 7. Goya: Bandido Despindo uma Mulher.

134 o rosto de Deus


Em seu conhecido afresco da expulsão do Paraíso, Ma-
saccio mostra a distinção entre as duas vergonhas - a
do corpo, que faz Eva esconder os seios e a genitália, e a
da alma, que faz Adão esconder o rosto (Figura 8). Como
a mulher no quadro de Goya, Adão esconde o eu; Eva
mostra o eu em toda a sua confusa angústia, mas ainda
protege o corpo, porque ele, como agora ela sabe, pode
ser manchado por olhos alheios.

Detive-me no fenômeno do erotismo porque ele ilustra


a importância do rosto e daquilo que é transmitido pelo
rosto, em nossos encontros pessoais, mesmo naqueles
motivados pelo que muitos julgam ser um desejo que com­
partilhamos com outros animais e que surge diretamente
das estratégias reprodutivas dos nossos genes. Na minha
visão, o desejo sexual, como os humanos o experimentam,
é uma resposta interpessoal, uma resposta que pressupõe
a autoconsciência tanto no sujeito quanto no objeto e que
singulariza seu alvo como indivíduo livre e responsável,
capaz de dar e de recusar à vontade. Ele tem suas formas
pervertidas, mas é precisamente a norma interpessoal que
nos permite descrevê-las como pervertidas. As relações se­
xuais entre membros de outras espécies têm, materialmen­
te falando, muito em comum com aquelas entre pessoas.
Mas, do ponto de vista intencional, elas são totalmente
diferentes. Mesmo aquelas criaturas que se acasalam pela
vida inteira, como os lobos e os gansos, não são movi­
das por promessas, pela devoção que brilha no rosto ou
pelo desejo de unir-se com o outro, que é um outro como
eu. 0 empreendimento sexual humano tem peso moral,
como nenhum empreendimento animal tem. E seu foco no
indivíduo é mediado pela ideia daquele indivíduo como
sujeito, que escolhe livremente, e em cuja perspectiva de

capítulo 4 - o rosto da pessoa 135


primeira pessoa apareço assim como ele ou ela aparece na
minha. Em termos mais simples, e na linguagem da Torá, a
sexualidade humana faz parte do campo da aliança.

Figura 8. Masaccio: Expulsão do Paraíso.

Alguém podería responder que descreví algo que na


melhor das hipóteses é um ideal e que a realidade pode
ser bem diferente. Nosso mundo está repleto de práticas
sexuais que ignoram ou negligenciam a subjetividade
do outro; encontros sexuais em salas escuras em que o

136 o rosto de Deus


rosto nào pode ser visto, encontros com “bonecas rea­
listas" que respondem com uma caricatura da excitação
humana, encontros imaginados pela tela ou realizados
de maneira vicária por meio da pornografia, do voyeu-
rismo e dos jogos sexuais por vídeo. Mas eu respondería
que, em quase todos os casos em que não nos referímos
diretamente à perversão (como na bestialidade e na ne-
crofilia), o objeto de interesse sexual está sendo tratado
como substituto: o objeto é o outro imaginário, o sujeito
fantasiado, e serve a um propósito sexual precisamente
por estar na minha imaginação ligado ao meu eu, que
realmente deseja. Objetos podem ser substitutos nas
situações em que se almeja a excitação sexual, mas não
podem substituí-los. Não é o sapato que o fetichista
deseja, mas a mulher imaginária que o preencheu com a
aura do objeto.

Por isso, há um importante sentido em que o dese­


jo sexual humano não pode ser transferido. À pessoa
que deseja Jane, é absurdo perguntar “Por que não a
Elizabeth? Ela também serve". Afinal, o que ele quer é
uma ação da qual Jane é constituinte e não só um ins­
trumento. É verdade que Elizabeth podería ser trocada
por Jane, como Lia foi trocada por Raquel na história do
casamento de Jacó no Antigo Testamento (Gênesis 29,21-
28). Mas o desejo de Jacó não foi transferido para Lia; ele
simplesmente cometeu um erro, acreditando que ela era
Raquel. É verdade que você também pode desejar mais de
uma pessoa, ou promiscuamente passar de uma pessoa
a outra. Mas há uma profunda diferença entre o sexo
orgiástico, em que o outro só é relevante como meio, e a
sedução em série, em que a intencionalidade interpessoal
do desejo é mantida de forma truncada.

capitulo 4-o rosto da pessoa 137


Considere Don Juan. A essência de sua personalidade
é a sedução, e seduzir significa obter consentimento ao
representar seu intenso desejo em obtê-lo. Don Juan é se­
dutor porque sente paixão por toda mulher que encontra,
contudo sua paixão não é transferível. Seria absurdo in­
terromper sua sedução de Zerlina (na versão que devemos
a Da Ponte e a Mozart) para dizer: “olha essa aqui, ela
serve também” (daí vem o pathos da interrupção de Don-
na Elvira). Esse ponto é deixado claro por Casanova em
suas Memórias, em que seu desejo intenso e interrogativo
singulariza cada objeto a cada momento como a pessoa
mesma que ela é e que ninguém podería substituir - razão
pela qual Casanova era irresistível. Se pensássemos no
desejo apenas como uma espécie de fome, ora satisfeita
por esse hambúrguer humano, ora por aquele, faria sen­
tido pensar que ele é transferível. Mas, como sugeri, até
em casos patológicos como os de Don Juan e de Casanova
é o interesse pelo outro que é o coração intencional do
desejo - e pelo outro como pessoa corporificada, com uma
subjetividade única que define seu ponto de vista.

Num livro outrora lido por muita gente, Eros and Agape
[Eros e Ágape], o teólogo protestante sueco Anders Nygren
fez uma distinção radical entre o amor erótico, que é moti­
vado por seu objeto, e o amor cristão recomendado por São
Paulo no capítulo 13 da Primeira Epístola aos Coríntios, que
é motivado por Deus. 0 grego distingue os dois como eros
e ágape, e nós como amor romântico e amor ao próximo.
E uma grande mudança aconteceu no mundo, segundo
Nygren, quando ágape tomou o lugar de eros como matéria-
-prima do amor de Deus. Em Platão, eros surge de maneira
divinal, isto é, como força externa e invasiva que avassala a
psique. Mas ele ascende como um fogo e leva o sujeito para

138 o rosto de Deus


o céu, para o domínio das formas que é o reino de Deus.
Sào Paulo, por contraste, enfatiza ágape, que vem para nós
de Deus, em vez de nos elevar para ele. 0 amor descenden­
te do todo-poderoso nos enche de gratidão, e retribuímos
espalhando-o para nossos vizinhos aqui na Terra.

Seria certamente equivocado confundir eros e ágape.


0 amor sexual não é em si um beneficio conferido ao
objeto; ele pode perfeitamente ser uma aflição. 0 amor
sexual deseja possuir e normalmente possuir de maneira
exclusiva, ou ao menos com uma desconfiança alerta dos
rivais. 0 amor sexual pode ser cruel e cheio de raiva; ele
tem uma relação ambivalente com a virtude moral, e em
certas formas - como aquela descrita por Jean Genet em
Diário do Ladrão e em Nossa Senhora das Flores - é ins­
pirado e excitado pelo vício. Ele faz discriminações maci­
ças e injustas entre os belos e os feios, entre os fortes e os
fracos, entre os jovens e os velhos. Ele é ciumento e não
consegue se alegrar nas coisas boas dadas por um rival.
Uma pessoa pode assassinar o objeto de seu amor erótico,
como fez Otelo, e quando as pessoas se apaixonam elas
estão cientes de estar enveredando por um caminho que é
tanto uma ameaça à ordem social quanto o fruto natu­
ral dela. Por isso os amantes são furtivos; eles escondem
seus sentimentos sabendo que há as mesmas chances de o
mundo zangar-se e agradar-se com a visão de seu laço.18

Nenhuma dessas coisas é verdadeira a respeito de ágape


(a caridade), e nenhuma sociedade podería basear-se no

Schopenhauer dá muita importância a esse ponto no ensaio sobre o amor


sexual em 0 Mundo como Vontade e Representação, vol. 2.

capítulo 4-o rosto da pessoa 139


amor erótico da mesma maneira que uma sociedade po­
dería basear-se no amor ao próximo. Por isso, eros é um
risco: ele é uma força que mina a confiança na mesma
medida em que constrói a confiança, e o maior risco é que
ele possa ser inteiramente separado das relações inter­
pessoais e devolvido a suas origens animais. Era isso que
Platão temia, e foi por isso que ele desenvolveu sua teoria
no que hoje conhecemos como amor platônico, talvez a
mais influente teoria psicológica da história. Para Platão,
o impulso fisico deve ser reprimido, de modo que o desejo
dirigido para o belo garoto possa ser redirecionado para
seu devido objeto, que é a forma do próprio belo.

0 erro de Platão foi pensar que o desejo sexual normal di­


rige-se para o corpo belo e não para o sujeito corporifica-
do. A solução do problema do desejo não é superá-lo, mas
garantir que ele mantenha seu foco pessoal. Uma socieda­
de baseada exclusivamente em ágape, tudo bem, mas ela
não vai se reproduzir nem vai produzir aquela relação cru­
cial entre pai e filho que é a base para a compreensão da
nossa relação com Deus. Por isso, a redenção do erotismo
está no coração de toda ordem social viável, fato muito
bem entendido pelas religiões tradicionais, as quais veem,
todas, a união sexual como um “rito de passagem” em que
toda a sociedade está envolvida e que produz uma mudan­
ça existencial naqueles que une. Essa mudança existencial
demanda uma bênção, para ser erguida do reino do apetite
mútuo e refeita como união espiritual.

Na Catedral de Reims está a escultura de um anjo (Fi­


gura 9) cujo sorriso representaria o amor de Deus pelos
homens, o amor descendente e que tudo abarca, definidor
de ágape. 0 escultor tentou representar o tipo de suporte

140 o rosto de Deus


existencial que recebemos de Deus na visão cristã. Ele
deseja mostrar a essência do amor tal como Santo Tomás
de Aquino a descreveu - o desejo do bem do outro.19 Na
visão tomista, o amor e a amizade devem ser entendidos
como endossos, maneiras de dizer a outra pessoa que
"seu ser é o meu desejo”. Por essa mesma razão, porém,
o sorriso no rosto do anjo nos deixa desconfortável. Não
é um sorriso temo, o sorriso da carne, que um amante
confere a outro ou que uma mãe confere a seu filho. Ele
tem uma qualidade deliberada e abstrata. Esse sorriso não
foi "convocado” ao rosto do anjo pela pessoa especifica
que é seu objeto, porque ágape não faz distinções, e pode
nào ter nenhuma pessoa específica em mente. Por isso, o
sorriso tem um aspecto duplo: ora parece deliberado, por­
tanto falso; ora involuntário, portanto repleto de benevo­
lência extramundana.

Figura 9. Catedral de Reims: Detalhe de Anjo Sorridente.

,,J Suma Teológica, 2a 2ae, questões 25-28.

capítulo 4 - o rosto da pessoa 141


Há uma verdade na visão de amor de Santo Tomás de
Aquino: ele implica o desejo do bem do outro. Mas somen­
te alguns tipos de amor são assim. 0 amor erótico pode
desejar o não ser de seu objeto tanto quanto o ser, algo
que poderiamos ter percebido perfeitamente sem Tristâo e
Isolda, de Wagner. Se sinto amor erótico por outra pessoa,
endosso seu ser por minha causa tanto quanto por causa
dela. E podem surgir circunstâncias em que meu endosso
é retirado; assim como Otelo, posso, num acesso de ciúme,
tentar destruí-la. Se sinto por ela amor de caridade, então
a endosso inteiramente por causa dela. Ele é incondicional
de um jeito que o amor erótico jamais podería ser. Con­
tudo, mais incondicional, claro, é o amor que brilha no
velho rosto da mãe de Rembrandt, que de maneira quieta
e discreta faz uma doação de si mesma para seu filho.
0 anjo não está fazendo uma doação de si mesmo; está
retransmitindo o amor de Deus. E ainda que os cristãos
acreditem que Deus também fez uma doação de si mesmo,
por intermédio de Cristo, isso é uma peculiaridade da reli­
gião cristã, que não se reflete na maneira como o amor de
Deus é apresentado nas demais fés abraâmicas.

Num dos entendimentos cristãos, o matrimônio é um


sacramento, o que significa uma união foijada na presença
de Deus. E o propósito do sacramento é incorporar eros ao
mundo de ágape, a fim de garantir que o rosto do amante
ainda pode estar voltado para o mundo dos outros. As so­
ciedades humanas diferem quanto à maneira como lidam
com esse fenômeno, e algumas nem sequer tentam fazê-lo.
Mas o propósito, onde existe, é por toda parte o mesmo:
garantir que o rosto privado do amante possa também
ser o rosto público do cidadão, ou o rosto extrovertido do
amigo. Assim, onde o casamento não é considerado um

142 o rosto de Deus


sacramento, mas apenas um contrato entre o marido e os
pais da noiva, o rosto da noiva muitas vezes permane­
ce oculto após o casamento; o casamento nada faz para
transferi-la das formas privadas de amor para suas formas
públicas. Essa é a explicação profunda da burca: ela é
um modo de ressaltar a exclusão das mulheres da esfera
pública. Elas podem aparecer nela na forma de um monte
de roupas, mas nunca como um rosto; para ser plenamente
uma pessoa, a mulher tem de retirar-se para a esfera priva­
da, onde eros, e não ágape, é soberano.

A noção tomista do amor como querer o ser e o florescer


do outro presume uma espécie de separação existencial
entre o amante e o amado. Eu quero seu ser querendo que
você seja alheio a mim. No amor erótico, porém, há um
laço existencial: os parceiros estão amarrados um no outro
(ou “envolvidos”, como se costuma dizer), e isso é um
impedimento para a atitude descrita por Santo Tomás. Não
quero que meu amante seja inteiramente alheio a mim,
nem fico “feliz por ele” no mesmo sentido em que fico fe­
liz por outros quando eles obtêm algo que desejam. E isso
é uma explicação parcial do fato observado anteriormente
de que os amantes não olham um para o outro, mas se
perscrutam e vasculham os olhos e o rosto do amado atrás
da coisa com que buscam unir-se (e com a qual nunca po­
dem verdadeiramente unir-se, porque não se trata de uma
coisa, mas de uma perspectiva, definida por toda a eterni­
dade como alheia à minha). C. S. Lewis formula isso muito
bem quando diz que os amigos permanecem lado a lado,
ao passo que os amantes permanecem face a face.20

'll Os Quatro Amores. Trad. Paulo Salles. London, Harvest Books, 1960.

capítulo 4-o rosto da pessoa 143


Talvez isso ajude a explicar por que os grandes místicos e
poetas religiosos, quando tentam descrever o amor que a
alma sente por Deus, quase sempre seguem o exemplo de
Platão e tomam o amor erótico como base da analogia.
Isso vale para São João da Cruz, Santa Teresa d’Ávila,
Rumi e Hafiz. Afinal, o amor de Deus é também um
reconhecimento de uma completa dependência existen­
cial, do nada que é meu ser até que seja completado por
ele. Talvez esse amor que desce até mim e passa para
meus semelhantes seja ágape. Mas o meu, que aspira por
Deus e o busca em servidão absoluta, está mais próximo
de eros, uma condição de necessidade existencial. Nas
formas extremas de êxtase, religiosas ou sexuais, o rosto
é de fato eclipsado, o eu é totalmente expulso dele, vaga
como que fora do corpo, e é isso que vemos no rosto de
Santa Teresa tal como Bemini a retratou (Figura 10). Eis
um rosto não mais habitado pelo eu, um lugar abandona­
do e caindo em ruínas.

Como conclusão, é apropriado dizer algo sobre o destino


do rosto no mundo em que entramos - um mundo em
que eros está sendo rapidamente desassociado de com­
promissos interpessoais e redesenhado como mercadoria.
A primeira vítima desse processo é o rosto, que tem de
ser submetido ao domínio do corpo para ser mostrado
como vencido, apagado ou cuspido. A tendência subja­
cente das imagens eróticas de nossa época é mostrar o
corpo como foco e sentido do desejo, o lugar onde tudo
ocorre, no espasmo momentâneo de prazer sensual em
que a alma é, na melhor das hipóteses, uma espectado­
ra e não parte do jogo. Na pornografia, o rosto não tem
um papel a desempenhar exceto o de ser submetido ao
império do corpo. Os beijos não têm importância, e os

144 o rosto de Deus


olhos olham para o nada, já que não buscam nada além
do prazer imediato. Tudo isso corresponde a uma margi-
nalização - efetivamente uma espécie de profanação - do
rosto humano. E essa profanação do rosto é também uma
anulação do sujeito. 0 sexo, na cultura pornográfica,
não é uma relação entre sujeitos, mas uma relação entre
objetos. E qualquer coisa que possa entrar para impedir
essa concepção do ato sexual - o rosto em particular -
tem de ser coberta, desfigurada ou cuspida, como se fosse
uma intrusão inconveniente do juízo numa esfera em
que tudo acontece. Tudo isso é antecipado pelo romance
pornográfico A História de 0, em que mulheres escravi­
zadas e aprisionadas são instruídas a ignorar a identidade
dos homens que desfrutam delas e a submeter o rosto ao
pênis e são desfiguradas por ele.

Figura 10. Bcrnini: Detalhe do Êxtase de Santa Teresa.

capitulo 4 - o rosto da pessoa 145


Um desenvolvimento paralelo pode ser testemunhado no
mundo dos ídolos sexuais. Modelos e estrelas pop tendem
a exibir rosto retraído, carrancudo e fechado. Pouco ou
nada é dado pelo rosto deles, que nào oferecem convite
nenhum ao amor ou ao companheirismo. A função do
rosto dos modelos é colocar o corpo em destaque; o rosto
é apenas uma das atrações do corpo, sem nenhum papel
a desempenhar como foco no interesse do outro. Ele é
caracterizado por um vazio quase metafísico, como se não
houvesse alma dentro, mas apenas, como Henry James
certa vez escreveu, um gatinho morto e um novelo. Como
chegamos a esse ponto é uma questão profunda, que devo
evitar. Uma coisa, porém, é certa: nem sempre as coisas
foram assim. Os símbolos e ídolos sexuais sempre existi­
ram. Mas raramente, antes, eles careceram de um rosto.

Um desses símbolos mais famosos, Simonetta Vespucci,


amante de Lorenzo de Mediei, tanto enfeitiçou o coração de
Botticelli que ele a usou como modelo para sua grande pin­
tura O Nascimento de Vênus (Figura 11). Na figura central, o
único sentido do corpo é a difusão e o transbordamento da
alma que sonha no rosto; anatomicamente ele é totalmente
deformado, e uma mulher que efetivamente tivesse aquela
aparência não teria nenhuma chance num desfile contempo­
râneo. Botticelli nos apresenta o verdadeiro eros platônico da
maneira como o via - o rosto que brilha com uma luz que
não é deste mundo e que nos convida a transcender nossos
apetites e a aspirar àquele mundo superior onde estamos
unidos às formas -, a versão de Platão de um mundo em que
apenas indivíduos são almas. Por isso o corpo da Vênus de
Botticelli é subserviente ao rosto, uma espécie de caricatura
da anatomia feminina que mesmo assim ganha seu sentido
do convite sagrado que lemos nos seus olhos acima.

146 o rosto de Deus


Figura 11. Botticelli: Detalhe de 0 Nascimento de Vênus.

A Vênus de Botticelli não é um objeto sexual, mas um


sujeito sexual. A intrusão do objeto sexual na arte já
pode ser testemunhada nos salons franceses do século
XIX. Veja-se 0 Nascimento de Vênus, de Bouguereau, bri­
lhantemente realizado, inspirado por Ingres e totalmente
açucarado. Nele, vápidos rostos sensuais lançam olhares
vazios à deusa, enquanto ela afasta o rosto do espectador

capitulo 4-o rosto da pessoa 147


a fim de cheirar suas axilas recém-depiladas e brincar
narcisisticamente com o cabelo (Figura 12).21 Seria injus­
to dizer que a pintura é pornográfica. Mas nào há sujeito,
só um vazio, nessa Vênus de carne.

0 grande quadro de Botticelli nos recorda que o rosto


humano deve ser entendido de maneira muito diferente
daquela como se entende as partes do corpo de um animal.
Os animais não veem rostos, já que não podem ver aquilo
que organiza olhos, nariz, boca e testa como um rosto, isto
é, o eu que reside nesses traços. Nossa compreensão do
mundo como algo iluminado pela liberdade deriva em par­
te de nossa experiência do rosto. 0 rosto é, portanto, não
apenas um objeto entre objetos; e quando as pessoas nos
convidam a percebê-lo assim, à maneira do modelo e da
estrela pop, elas só fazem desfigurar a forma humana. Essa
desfiguração é algo que testemunhamos em todo lugar à
nossa volta e também é experimentada, sobretudo em sua
aplicação sexual, como profanação. Para mim, não é por
acaso que somos inclinados a falar de profanação quando
o assunto é sexo. Só podemos profanar o que é sagrado.
E, ao descrever o papel do rosto nas relações interpessoais,
dei os primeiros passos para uma teoria do sagrado.

Levinas escreve que o rosto é o obstáculo absoluto ao as­


sassinato, cuja visão faz que a mão do assassino se detenha.
Seria ótimo se a afirmação de Levinas fosse verdadeira.
Existe, porém, uma verdade contida nela. Pelo rosto o sujeito
aparece em nosso mundo - e aparece cercado de proibições.

21 Anônimo (Anne Desclos), Histoire d'0. Paris. Pauvert, 1954. [Há uma tra­
dução publicada pela Ediouro em 2005, atualmente fora de catálogo. (N. T.)]

148 o rosto de Deus


Ele é intocável, inviolável, consagrado. Não deve ser tratado
como objeto, nem jogado no grande computador e reduzido
a cálculos. Levinas escreveu atormentado, pensando no as­
sassinato de seus próprios amigos e amigas no Holocausto. E
certamente é adequado dizer que os genocídios do século XX
só aconteceram porque os sujeitos foram primeiro reduzidos
a objetos, de modo que todos os rostos desapareceram. Isso
foi obra do campo de concentração - e foi uma obra descrita
para sempre por Primo Levi, por Soljenítsin e pela angelical
Nijole Sadunaite, pessoas que mantiveram seu rosto, mesmo
encarando a máquina que tudo desfigurava.

Figura 12. Bouguereau: 0 Nascimento de Vênus.

capitulo 4 - o rosto da pessoa 149


Ninguém podería dizer que o crescimento da cultura
pornográfica é um crime comparável aos descritos por
aqueles autores, ainda que, assim como aqueles crimes,
seja um crime contra a humanidade.22 Mesmo assim, a
pornografia chegou sozinha àquele primeiro estágio do
caminho da profanação - o estágio da objetificação, em
que o rosto desaparece e o ser humano se desintegra
numa colagem de partes do corpo. Minha própria opi­
nião é que deveriamos ver isso como um aviso. 0 que
fazer a respeito e o que ele nos diz são questões às quais
retomarei. Minhas observações, porém, só farão o devido
sentido, creio, quando eu considerar outro tipo de rosto
contra o qual o espírito de profanação hoje opera: o rosto
da Terra, tal como nós, seres humanos, o construímos.

” Como eu justificaria essa acusação? Ver Donna M. Hughes e James R.


Stoner (eds.), The Social Costs of Pornography: A Collection ofPapers.
Princeton, Whiterspoon Institute, 2010.

150 o rosto de Deus


Em seu encontro com Moisés, Deus deixa três pontos cla­
ros para seu povo. Em primeiro lugar, ele é uma pessoa.
Depois, existe um corpo de regras e de alianças segundo
o qual se pode viver em paz com ele. Por fim, devemos
abrir espaço para ele no meio de nós, criando um templo
que seja sua casa. Neste capitulo, quero voltar minha
atenção para a terceira dessas declarações.

Ao estudar o rosto humano, eu estava explorando uma


parte do que significa dizer que as pessoas revelam a si
mesmas no mundo. A presença real da pessoa, eu defen­
dia, traz a busca por justiça e a possibilidade de culpa,
já que vivemos diante dos olhos de estranhos e somos
julgados por eles. E quando procuramos refugio na
intimidade, a fim de perscrutar olhos que perscrutam os
nossos, nos defrontamos com uma barreira moral pecu­
liar. Eros não é um lugar de segurança ordinária, mas um
santuário, um recinto ameaçado pela poluição e prote­
gido pelo tabu. A tentação é entrar nesse lugar com um
espírito iconoclasta, destruindo ou mascarando o rosto.
Isso, como sugeri, é o caminho comum da profanação,
que não traz nem paz nem amor. Afinal, o amor é uma

capítulo S-o rosto da Terra 151


relação entre sujeitos, e, quando as pessoas se tomam
objetos uma para a outra, o amor definha e morre. 0
resultado dessa desfiguração do erótico não é o ódio, mas
um desalmamento que só se faz expandir.

0 destino de eros em nosso tempo nos recorda das mui­


tas outras maneiras como procuramos o lugar sem cul­
pa, o lugar livre de juízos adversos. Na Torá, a dádiva
de Deus, corporificada em leis e alianças, mostra como
chegar a esse lugar; ele nos guia no caminho do Senhor.
Mas a lei no Antigo Testamento não fica de pé por si só,
nem os mandamentos de Deus são apresentados como
se fossem arbitrários, desprovidos de fundamento nas
relações pessoais que Deus sustenta e reivindica. Pelo
contrário, a lei está relacionada desde o princípio com
o conceito de amor ao próximo, o amor que São Paulo
chama de ágape e que (para usar a expressão de Kant) é
ordenado como lei.

Por isso, a lei na Torá não é um caminho inexplicado.


Não é como o Corão, um registro da vontade arbitrária de
Deus, da qual ele não precisa prestar contas. A lei da Torá
está integralmente associada à identidade de Deus como
pessoa e, nos Salmos e no Livro de Jó, Deus é chamado a
prestar contas a seus servos fiéis e a dar explicações. Jacó
adquiriu o nome Israel (aquele que “luta com Deus”) em
seu encontro com o anjo do Senhor (Gênesis, 32; Oseias,
12). E o povo que tomou o nome de Jacó continua a lutar
com o Deus que os escolheu. Por meio da lei, Deus coloca
as relações com suas criaturas num pé interpessoal, e
deixando claro que sua lei, no fim das contas, estabelece
a vida justa - a vida sem culpa, na qual estamos unidos
uns com os outros e com nosso próprio “estar no mundo”.

152 o rosto de Deus


Além disso, porque Deus responde a meu clamor, posso
retomar esse caminho quando me desviar dele. “Ó Deus
cria em mim, um coração puro, renova um espírito firme
no meu peito;" (Salmo 51), implora o salmista, acrescen­
tando que “Sacrifício a Deus é espírito contrito, coração
contrito e esmagado, ó Deus, tu não desprezas". 0 arre­
pendimento está imbricado em nossa relação com o Deus
de Moisés: como num casamento, é pedindo perdão que
recuperamos o rosto desviado.

Tudo isso precisa ser levado em conta ao considerar a


terceira declaração de Deus: de que ele exige um lar neste
mundo, um templo em que a arquitetura e os rituais
transmitam uma concepção clara de sua natureza e de
sua presença.

Um traço notável da narrativa do Antigo Testamento é


que ele com frequência se refere a lugares sagrados. Os
patriarcas erigem altares, fazem sacrifícios, conferem
nomes a lugares que se tomam sagrados em virtude de
algum encontro com Deus e com seus anjos. Isso não
nos deveria surpreender. A ideia do lugar sagrado parece
um universal humano. Diversas explicações são dadas
para isso. Para algumas culturas, deuses, espíritos e ou­
tros agentes sobrenaturais vivem entre nós e devem ser
adorados ou reconhecidos no lugar em que residem. Para
outros, um lugar se toma sagrado porque é o covil de
um fantasma, talvez o fantasma de alguém que morreu
com alguma profunda necessidade insatisfeita ou algum
profundo amor recusado e cujo momento de crise acon­
teceu ali mesmo. Essa ideia aparece no xintoísmo e é
dramatizada no teatro nô japonês. Nossas tristezas, escre­
veu Rilke, são “nicht nur / Zeit - sind Stelle, Siedelung,

capitulo 5-o rosto da Terra 153


Lager, Boden, Wohnorf (décima Elegia de Duíno): elas
não são só tempo, são lugar, assentamento, acampamen­
to, chão, morada. As tristezas habitam o mundo e assom­
bram os lugares onde foram sofridas.

Outras culturas conectam lugares sagrados com lendas


de heróis ou com grandes batalhas do passado, que são
homenageados por algum sacrifício patriótico. Em todas as
sociedades em que pessoas mortas são enterradas cerimo­
nialmente, o lugar do enterro toma-se “campo santo", e
considera-se que atos e palavras ritualizados são adequa­
dos quando se anda ali. Ritos funerários, crenças a respeito
dos deuses e da vida após a morte, invocações de ances­
trais e declarações de solidariedade com os mortos e com
os não nascidos - essas são as experiências fundamentais
de que derivam culturas duradouras e são expressas em
lápides e tumbas de todas as eras e de todos os lugares.

Num livro perspicaz, Ken Worpole registrou a impressio­


nante variedade de tentativas de tomar a morte aceitável,
depois de ela ter acontecido, por meio da arquitetura, do
paisagismo e de rituais do cemitério. E, como ele mostra, é
nos cemitérios que as pessoas mostraram de maneira mais
persuasiva seu respeito pela paisagem e pela terra.1 É aqui,
mesmo numa era de declínio religioso e de ceticismo, que o
senso do sagrado permanece e estende sua mão protetora.

Um sentimento comparável está associado a ruínas,


e foi da tentativa de representar ruínas e seu sentido

’ Ken Worpole, Last Landscapes: The Architecture of Cemeteries in the


West London, Reaktion Books, 2003.

154 o rosto de Deus


que nasceu nossa tradição de pinturas de paisagens. As
ruínas imaginárias de Piranesi e de Canaletto, as ruí­
nas reconstruídas de Poussin e de Claude, os pitorescos
castelos de Richard Wilson, todos mostram uma paisa­
gem assombrada pelas pessoas, para quem ela em algum
momento foi, num grande trauma ou numa grande
emergência, aqui e agora. Os pintores podem se adiantar
às ruínas, à maneira de Hubert Robert, resgatando um
prédio do presente e mostrando-o num estado futuro
de decadência. Nossos monumentos, lembra Robert, são
tanto maneiras de recordar quanto sinais de que esque­
cemos. Ruínas são os fragmentos enigmáticos de uma
vida que nunca pode ser remontada. E, como elas se
fundem à paisagem, conferem ao mundo natural o rosto
dos muitos que morreram.

0 lugar sagrado é um lugar que foi singularizado pelo


sofrimento ou pelo sacrifício, pela revelação ou pela
oração. Ele é marcado por uma pedra, por um altar
ou por um santuário, e é um lugar de peregrinação. A
peregrinação pode ser um dever sagrado, como a hajj;
uma busca por cura, como o caminho de Santiago; ou
uma penitência, como a jornada à Cantuária, termi­
nada sobre mãos e joelhos, que purgou o crime de
Henrique II. Ela pode pertencer a uma religião especí­
fica, ou a muitas religiões, como Ma Estrada Dourada
para Samarcanda”, ou a nenhuma. Richard Jefferies,
que caminhou pelo mundo em busca da intensa au-
tocomunhão que descrevia como “prece”, referia-se a
suas caminhadas como “peregrinações” (The Story of
My Heart} e encontrou em seus variados destinos uma
revelação de sua própria alma, misturada à matéria,
que é a alma do universo.

capitulo 5-o rosto da Terra 155


Neste capítulo, quero explorar as emoções e as moti­
vações que nos levam a respeitar algum lugar como se
fosse sagrado ou, de algum modo relacionado, pro­
tegido de violações, e que governa no sentido de que
existem maneiras certas e erradas de tratar a terra em
que vivemos e construímos. É evidente que esse tema
era fundamental para o Israel dos patriarcas. 0 mundo
deles era muito diferente do nosso, com uma popu­
lação muito menos densa, muito mais perigoso (ao
menos no que diz respeito à vida cotidiana) e muito
menos sujeito a abusos. Mas eles, como nós, estavam
conscientes de que seu território era único, de que era
preciso respeitá-lo e santificá-lo. Eles consideravam a
Terra Prometida não algo que seria consumido e des­
cartado, mas uma herança a ser cuidada e transmitida.
E esse sentimento, para eles, estava amarrado a outros
dois: sua convicção de que Deus era uma presença
real no meio deles e sua percepção da terra como um
presente, não um presente que a geração contemporâ­
nea devesse usar à vontade, mas um presente para um
povo inteiro para sempre, um recurso a ser renovado e
repassado. E isso registra uma verdade geral a res­
peito do sagrado. Os lugares sagrados sâo protegidos
da espoliação, estão mergulhados nas esperanças e
nos sofrimentos daqueles que lutaram por eles. E eles
pertencem a outros que ainda virão. Isso, a meu ver, é
um paradigma de proteção ambiental, um paradigma
que devemos outra vez assimilar se queremos entender
o que está acontecendo agora em nosso mundo, sendo
desfigurado pelo hábito de consumi-lo.

Leitores de Pausânias, geógrafo e viajante do século


II, observarão que os templos dos deuses, os bosques

156 o rosto de Deus


sagrados e os túmulos dos heróis ainda estavam intatos
quando Pausânias os visitou, mantidos como bens públi­
cos por sacerdotes e devotos da antiga religião, naque­
les últimos anos antes de o cristianismo varrer tudo. A
piedade proibia sua destruição, e era a piedade que movia
Pausânias a visitá-los e a registrar seus encantos. Essa
motivação é universal e, como disse Simon Schama em
sua eloquente homenagem ao paisagismo e aos mitos e
mistérios da vida sedentária, terra e paisagem vêm sendo
retratadas como algo sagrado em todas as nossas tentati­
vas humanas de pertença do mundo.2

Essa experiência de santidade está profundamente


ligada à memória. Carregamos conosco a impressão de
laços primitivos. A memória corrige e esclarece nossas
recordações e molda o oikos recordado em termos que
são tão imaginados quanto reais. Vemos o processo
segundo o qual uma casa perdida se toma sagrada, e
purgada de toda sua vulgaridade irritante, na invocação
de Mickiewicz da antiga Lituânia (Pan Tadeusz] e na in­
vocação de Proust de Combray. E reconhecemos nesses
tours de force literários um tributo a uma relação com
o mundo diferente daquela em que fomos aprisionados
por nossos hábitos de consumo. 0 mundo descrito por
Proust olha de volta para Proust pelos olhos de Proust.
Não se trata apenas de um mundo de objetos a ser usa­
dos e descartados, mas de um mundo de sentidos reve­
lados, em que a coisa mais ordinária pode subitamente
deixar escapar seus segredos, ou em que uma paisagem
pode começar a chorar.

2 Simon Schama. Landscape and Memory. New York, Alfred Knopf, 1995.

capitulo 5-o rosto da Terra 157


Esse sentimento amarrava os israelitas à Terra Prome­
tida e à Cidade Santa construída nela. Por isso, além
dos dez mandamentos, Deus deu a Moisés um proje­
to do santuário, “para que eu possa habitar no meio
deles” (Êxodo 25,8). Complexas instruções estabelecem
a arquitetura e o ritual do templo, e foi em tomo desse
templo que a cidade de Jerusalém foi construída - a ful­
gurante cidade na colina que é o lugar sagrado para o
qual o povo de Deus se volta depois de suas tributações.
Na época dos Salmos, a santidade do templo e a da
cidade equivaliam-se, porque o verdadeiro assentamen­
to é aquele em que Deus habita no meio de nós, e sua
destruição é um ato de sacrilégio que muda o rosto do
mundo. Certamente ninguém duvidará de que a emoção
que liga sujeitos humanos a seus lugares sagrados é sua
mais profunda indicação do que significa estar no mun­
do e em diálogo com ele:

Se eu me esquecer de ti, Jerusalém, que


me segue a mão direita!
Que me cole a língua ao paladar caso eu
não lembre de ti;
caso eu não eleve Jerusalém ao topo da
minha alegria!

A pilhagem da terra e o vandalismo contra nossos há-


bitats humanos produzem em nós um eco da desolação
registrada pelo salmista: a desolação que aparece quando
os recursos espirituais de que dependemos são expulsos
de seus santuários, e os santuários, destruídos. E parece-
-me que não compreenderemos o que realmente está em
jogo na consciência ambiental que capturou a imagina­
ção de tanta gente hoje se não reconhecermos que há

158 o rosto de Deus


em seu coração uma memória religiosa. A mensagem de
Deus a respeito do templo não era simplesmente a fun­
dação de um culto especifico, dedicado a um deus tribal,
hra uma mensagem para todos nós, dizendo-nos que
Deus habitará no meio de nós somente se nós também
habitarmos, e esse habitar não significa consumir a Terra
nem desperdiçá-la, mas conservá-la, a fim de fazer dela
um santuário duradouro para Deus e para o homem. Por
isso, a promessa do reino de Deus no livro do Apocalipse
é uma promessa da “Nova Jerusalém”, a Cidade Santa,
em que vivemos lado a lado e face a face com Deus. E o
tema da Cidade Santa, que é a medida e o ideal de todos
os nossos assentamentos, foi tomado central para a vida
cristã por Santo Agostinho em A Cidade de Deus. Pode­
mos resumir da seguinte maneira a mensagem a respeito
do templo: uma verdadeira cidade começa com um ato
de consagração, e é o templo, a morada de Deus, que é
o modelo para todas as outras moradas. É com o templo
que podemos aprender a construir.

0 templo é duplamente sagrado. Não só é consagrado


a Deus como ainda o contém. É o lugar onde ele está e
onde os fiéis podem encontrá-lo. Mas ele também está
oculto ali, escondido no santuário interior, ou em rituais
que só os iniciados conseguem decifrar. Igrejas, mesqui­
tas e templos ainda transmitem esse sentimento, até para
aquele que os adentra numa atitude de descrença. Qual
exatamente é sua fonte, sua fonte profunda na psique
humana, ou seja, não nos mitos e nas histórias? São
Paulo encontra a resposta em 1 Coríntios 6,19: “Ou não
sabeis que o vosso corpo é templo do Espírito Santo, que
está em vós e que recebestes de Deus? ...e que, portanto,
não pertenceis a vós mesmos?”

capitulo 5 - o rosto da Terra 159


0 corpo humano é o templo da alma, o lugar onde o ou­
tro está tanto presente quanto oculto, protegido de mim,
mas mesmo assim revelado quando as palavras certas são
pronunciadas e os gestos corretos são feitos. “Só existe
um templo no mundo”, escreveu Novalis (Hinos à Noite),
“e é o corpo do homem Tocamos o Paraíso quando
colocamos a mão num corpo humano.” Na vida cotidiana
não vemos as coisas exatamente desse jeito. As agita­
das transações do trabalho, do lazer e do mercado são
como o meticuloso ir e vir dos sacerdotes diante do altar.
Eles afastam a atenção da presença real, que exige ritos
purificadores para ser revelada a nós. Mas na intimidade
do amor, da raiva ou do desejo encontro o outro tal como
assombrado por si mesmo. Perscruto-o e ele se toma uma
presença que sinto, mas que foge de minhas tentativas
de invocá-la, até que o olhar ou a palavra certa subita­
mente a fazem repousar e ficar face a face comigo. É essa
experiência que nos serve de base, creio, quando respon­
demos ao templo como santuário. Deus é uma presença
real nesse templo, assim como eu sou no meu corpo,
ainda que “reservada”, como no “Sacramento reservado”
da Igreja Católica.

Na sociedade tradicional japonesa, cujos contornos


dignos de um balé foram imortalizados em imagens e
em peças, vemos as pessoas tratando-se dessa maneira
especial e “reservada” Cada pessoa no palco do teatro
nô está num espaço sagrado: o espaço consagrado ao
eu. E os olhos ardem naquele espaço como a lâmpada
no altar, mesmo quando ardem atrás de uma máscara. A
santidade da pessoa é um universal humano, e quando
nos curvamos diante do outro, mesmo quando estende­
mos a mão para apertar a dele, demonstramos aceitar

160 o rosto de Deus


que o espaço que ele ocupa não pode ser violado, que
um gesto de submissão e de aquiescência é necessário
a fim de reconhecer seu sacro direito de estar presente
exatamente ali, onde seu corpo está. Pela mesma razão,
muitas maneiras de atacar pessoas são profanações, re­
conhecimentos negativos da natureza sagrada do corpo.
É por isso que Shakespeare, para completar a profana­
ção que é posta em movimento quando Lear não en­
xerga os verdadeiros olhos do amor, leva a peça a uma
reviravolta no momento em que os olhos de Gloucester
são arrancados. Essa violação do templo pressagia a
violação final, que deixa Cordélia morta, com seu pai
segurando uma pena diante de seu rosto, na vã esperan­
ça de que a alma ainda sopre ali.

0 paralelo entre o corpo e o templo influencia as


formas da arquitetura sacra. Como o corpo humano, o
templo fica de pé. Ele não é um monólito, assim como
o corpo humano não é um sólido continuo. É a esfo-
liação de um código gerativo, cujas dimensões dão a
medida escalar do prédio inteiro. A natureza gerativa
da arquitetura dos templos é um de seus traços profun­
damente espiritualizantes. Por toda parte a pedra traz
a marca de uma intenção moldadora. Os elementos são
encaixados segundo a relação que Alberti descreveu
como concinnitas, que significa a correspondência pre­
cisa de parte a parte, a capacidade de cada detalhe de
dar uma resposta visual clara ao “por quê?” apresen­
tado por outro detalhe.3 A coluna é talhada, estriada,
adornada com pedestal e capitel, coroada por um friso

3 De rc aedifícatoria, 1452. Trad. Leoni, 1726.

capitulo 5 - o rosto da Terra 161


ou por um arco, ou unida em abaulamentos celestiais,
em que a pedra ganha a leveza do céu. Por meio de
ornamentos e detalhes a pedra fica cheia de sombra,
adquire a aparência de luz cristalizada, translúcida,
assim como o rosto é translúcido, mostrando o espírito
que há dentro (Figura 13).

Figura 13. Federal Hall, Nova York.

Numa nota manuscrita deixada pelo arquiteto sir John


Soane, lemos que “ornamentos são tão essenciais e

162 o rosto de Deus


Importantes para o arquiteto quanto as cores para o
pintor".4 Soane era um arquiteto clássico, e um dos
maiores. Mas sua observação se aplica a todos os
estilos associados ao templo de pedra. A coluna reta,
enfeitada com um abaulamento ou com uma arqui-
trave, e animada por ornamentos, é a língua franca
da arquitetura sagrada do antigo Oriente Médio e do
Mediterrâneo até os dias de hoje. E as características
exteriores da arquitetura do templo foram tomadas
emprestadas e normalizadas pelos estilos vernáculos
em que nossas cidades, grandes e pequenas, foram
construídas? Nossas cidades são a casa do povo que
nelas vive em parte porque perpetuam a experiência
do rosto. Isso vemos na Figura 14, uma rua simples da
cidadezinha de Whitby, em que a postura do templo e
o resíduo desgastado de formas e de ornamentos anti­
gos conferem um rosto a cada prédio despretensioso e
erguem a lâmpada sobre a rua como uma bênção. As
pessoas são feridas pelos blocos sem rosto que hoje se
intrometem nessas ruas não só porque elas desgostam
do estilo ou ainda precisam se acostumar com ele mas
porque a conexão com a tradição da arquitetura do
templo foi finalmente cortada. A ordem das colunas,
os ornamentos, a fachada e a delicada maneira como o
prédio é alinhavado entre a rua abaixo e o céu acima,
tudo isso hoje está sendo descartado. E o resultado
provoca um sentimento peculiar de desolação, que é
a resposta normal, ainda que hoje amplamente mal-
-entendida, a um ato de profanação.

4 Sir John Soane's Museum Archives 1/164/6. Foi. [1]. Devo essa referência a
David Watkin.
4 Defendi isso em The Classical Vernacular. Manchester. Carcanet Press. 1992.

capitulo 5 - o rosto da Terra 163


Figura 14. Rua em Whitby, Yorkshire.

Os lugares sagrados são os primeiros a ser destruídos por


invasores e por iconoclastas, para os quais nada é mais
ofensivo do que os deuses do inimigo. E devemos reco­
nhecer que, hoje, boa parte da destruição de nosso meio
ambiente é deliberada, o resultado de um ataque pensado
em antigas e desprezadas formas de tranquilidade. Em ter­
mos amplos, há duas maneiras de abordar a construção:
o assentamento e a disrupção. Muitas vezes, quando nos
assentamos, encaixamos nossa vida num padrão já exis­
tente e consagrado, esforçamo-nos para herdar a ordem

164 o rosto de Deus


estabelecida por aqueles que vieram antes de nós e para
honrar o espírito do lugar; nesse sentido, como Heidegger
observa num importante ensaio, construir é habitar.6 0
iconoclasta, porém, quer trocar os antigos deuses pelos
novos, desencantar a paisagem e marcar o lugar com os
sinais de sua rebeldia. Esse espírito iconoclasta pode ser
visto em muitos projetos modernos, não apenas nas corti­
nas de paredes sem rosto dos novos tipos de prédios mas
nas monótonas e intrusivas fazendas eólicas que estão
abocanhando a paisagem, ou nas máculas pós-modemas
deliberadamente inseridas em arranjos urbanos estáveis
por arquitetos como Daniel Libeskind e Thom Mayne.

0 movimento ambientalista começou na Grã-Bretanha


como reação à Revolução Industrial e nos Estados Unidos
como lamento pelo desaparecimento das áreas virgens.
Nesses dois lugares, autores e ativistas começaram a re­
tratar a Terra como um ser quase dotado de alma, com o
qual poderiamos nos relacionar assim como os pagãos se
relacionavam com seus deuses. 0 apelo de John Muir pelo
Vale de Yosemite, assim como a campanha de Ruskin para
preservar a região dos lagos da Inglaterra, foi feito em
nome de um lugar considerado sagrado - um lugar cujo
valor jamais podería ser definido pelo cálculo de custo e
beneficio. A “hipótese de Gaia” de James Lovelock, mais
recente, é uma tentativa de traduzir essa ideia na lingua­
gem da ciência.7 Do ponto de vista da filosofia, porém, a
hipótese de Gaia erra o verdadeiro alvo. Algo fica de fora

* Martin Heidegeger, "Building, Dwelling, Thinking", In: Roetry, Language,


Thought Trad. Albert Hofstadter. New York. Harper Colophon, 1971.
' James lovelock, Gaia: A New Look at Life on Earth, 1979. 3. ed. Oxford.
Oxford University Press, 2000.

capitulo 5 - o rosto da Terra 165


de todas as explicações cientificas de nossa relação com
nosso ambiente: o encontro entre Eu e Você e o sentido de
responsabilidade por ele precipitado. Foi isso que nossos
antepassados construíram em seus templos, e é por isso
que os templos são simultaneamente lugares sagrados e
candidatos à profanação. Mas o que podería significar di­
zer que a Terra mesma pode ser encontrada dessa maneira?

Na nona Elegia de Duino, Rilke tenta responder a essa


pergunta. Ele busca a subjetividade da Terra e a descobre
em nós - é a nós que cabe a tarefa de traduzir para a
consciência as coisas que nos cercam e assim resgatá-las
do mundo de obter e gastar:

Erde, ist es nicht dies, ivas du willst:


unsichtbar
in uns erstehn? - Ist es dein Traum nicht,
einmal unsichtbar zu sein? - Erde!
unsichtbar!
IVas, wenn Verwandlung nicht, ist dein
drângender Auftrag
Erde, du liebe, ich ivill. Oh glaub, es
bedürfte
nicht deiner Frühlinge mehr, mich dir
zu gewinnen, - einer,
ach, ein einziger ist schon dem Blute
zu viel*

8 Terra, não é isto que queres: invisivelmente subir em nós? Não é seu sonho
um dia tornar-se invisível? Terra! Invisível! 0 quê, senão a transformação,
ê a tua demanda insistente! Terra, querida, irei! Oh, creia-me, não é preciso
mais das tuas primaveras para conquistar-me. Uma, só uma, já é muito para
o meu sangue.

166 o rosto de Deus


Nessas linhas, Rilke tenta reconsagrar a Terra ao dissolvê-
-la, por assim dizer, em sua perspectiva de primeira pes­
soa. 0 poeta repudiava todo tipo de fé transcendental e
acreditava que não existia vida após a morte, mas só esta
vida aqui na Terra, a qual podemos, com nossas escolhas,
desperdiçar ou realizar. Mas ele também acreditava que a
vida é sagrada, assim como todas as coisas que encontra­
mos ao longo dela. Ele acreditava no Deus dentro de nós
que é o Deus da subjetividade, um Deus tào solitário e
vulnerável quanto o poeta que o abriga, mas que é capaz
de estender a mão e encantar o mundo do poeta. 0 pro­
pósito de Rilke em Elegias de Duíno era usar a matéria-
-prima de que deriva toda experiência do sagrado - isto
é, a experiência em primeira pessoa da corporificaçào - e
usá-la para construir um caminho de saída do niilismo.
A Terra não é só um monte de objetos; ela tem sua pró­
pria subjetividade e realiza essa subjetividade em mim.

As preocupações expressas pelos ambientalistas surgiram


sobretudo por oposição ao hábito de ver todo valor em
termos instrumentais. As pessoas tratavam a terra e seu en­
torno como coisas para serem usadas e, quando exauridas,
descartadas; e então lavadas numa pia qualquer, como os
oceanos ou a atmosfera, que não precisamos limpar. Mas as
pias são finitas, nosso lixo se acumula sem parar, e os ocea­
nos e a atmosfera já se cansaram de nós. Diz-se que uma
plataforma de lixo plástico duas vezes maior que o Texas
vaga pelo Pacífico; gases de efeito estufa acumulam-se na
atmosfera, elevando a temperatura do planeta e ameaçando
tudo aquilo que conhecemos e de que precisamos. E por
toda parte a nossa volta vemos os resíduos de nossa gulodi-
ce, como nas palavras de William Empson: “Lento o veneno
o sangue inteiro toma:/ É o lixo, o lixo fica e mata”.

capitulo 5 - o rosto da Terra 167


Quando os governos tocam no problema, eles o formulam
em termos fiscais, considerando os custos econômicos de
nossa negligência e os custos econômicos de repará-la. 0
governo britânico encomendou um relatório a sir Nicholas
Stem considerando “os custos econômicos da mudança
climática" e das políticas necessárias para corrigi-la. E esse
relatório serviu de base para praticamente todas as discus­
sões na arena política desde então, dando a impressão de
que a Terra e nosso meio ambiente devem ser vistos em
termos puramente instrumentais, e sem considerar nada de
seu valor intrínseco.9 Talvez seja inevitável esse triunfo do
raciocínio instrumental que descreve coisas dotadas de valor
como coisas que se reduzem a um mero preço. Mas ele é
também um dos traços do mundo moderno contra o qual os
ambientalistas se rebelam ou deveríam se rebelar. 0 proble­
ma ambiental surge porque tratamos a Terra como objeto
e instrumento, tanto como tratamos o ser humano como
objeto e instrumento. E certamente não é irrealista conec­
tar esses dois desenvolvimentos. Caímos no hábito de ver
tudo, inclusive a nós mesmos, como uma coisa a ser usada e
consumida, e é justo chamar isso de queda. De fato, é nisso
que consiste a “queda do homem" Comer o fruto proibido
significa acreditar que cabe a nós definir a distinção entre
o bem e o mal. Então reescrevemos a distinção em termos
puramente humanos: o bem e o mal tomam-se beneficio e
custo, de modo que nada é santo, nada é consagrado, nada
é resgatado do escambo e da troca. Lidamos com o mundo
precificando-o. As coisas que só são valorizadas por seu

9 Sir Nicholas Stern, The Economics of Climate Change. Cambridge.


Cambridge University Press, 2007. Ver a critica devastadora da abordagem
instrumental do meio ambiente feita por Mark Sagoff em Príce, Principie
and the Environment. Cambridge, Cambridge University Press, 2004.

168 o rosto de Deus


uso podem ser comparadas, trocadas e vendidas por outras
coisas do mesmo tipo. Elas podem ser consumidas, esgota­
das e descartadas pela pessoa que mesmo assim reconhece o
único valor que elas têm, que é o custo de uma substituição,
í* isso que hoje fazemos uns com os outros e com a Terra.
Contudo, a Terra, assim como nós, é insubstituível.

0 senso do sagrado coloca um freio nessa atitude instru­


mental. Diante de um lugar ou artefato sagrado, recua­
mos numa postura de respeito. Essa parte do mundo,
creio, é inviolável. Eu podería danificá-la, e talvez eu não
seja punido se fizer isso. Mas ela fala a mim, e diz que
devo conter minha mão. Assim como o sujeito apare­
ce no rosto humano e coloca diante do assassino e do
abusador o “não" absoluto, também um “eu” observador,
perscrutador, interrogador aparece no lugar sagrado e nos
ordena que o respeitemos.

Os céticos dirão que isso tudo é conversa figurativa,


uma queda naquilo que Ruskin chamava de “falácia
patética”.10 Eles argumentarão que estou expressando
emoções subjetivas que não têm correlato objetivo nas
coisas em que são projetadas. É nossa maneira de tratar
lugares e artefatos que os toma sagrados, e nossa decisão
de fazê-lo é invariavelmente anulada no tempo.

É preciso replicar fazendo duas observações. A primeira


é que a experiência do sagrado é interpessoal. Somente
criaturas com pensamentos de “eu” podem ver o mun­
do dessa maneira, e elas dependem de uma espécie de

Modem Pointers, Parte IV. cap. XIII.

capítulo 5-o rosto da Terra 169


prontidão interpessoal para fazê-lo, de uma disposição para
encontrar sentidos e razões, inclusive em coisas que não
têm olhos para vê-las nem têm boca para falar. Isso é o que
Alberti quis dizer por buscar concinnitas. Os verdadeiros
arquitetos não subjugam seu material por algum propósito
externo; eles conversam com ele, permitem que o material
interrogue o espaço em que eles constroem. 0 antropólogo
podería dizer que a experiência do sagrado é um resíduo do
animismo primitivo. Eu respondería dizendo que o animis-
mo não é uma coisa primitiva, mas uma legitima extensão
de nosso senso de responsabilidade. Por sermos sujeitos, o
mundo nos observa de volta com um olhar questionador,
e respondemos organizando-o e conceitualizando-o de
maneiras diferentes daquelas endossadas pela ciência. 0
mundo em que vivemos não é o mundo tal como a ciência
o explica, assim como o sorriso da Mona Lisa não ê uma
mancha de pigmentos sobre uma tela. Mas esse mundo
vivido é tão real quanto o sorriso da Mona Lisa.

Figura 15. Sunset Boulevard, Los Angeles.

170 o rosto de Deus


A segunda observação é que a experiência das coisas
sagradas é um caso particular de uma capacidade mais
geral de encontrar sentido e revigoramento moral nas
coisas deste mundo. Criaturas com pensamentos de “eu”
têm uma relação com seu entorno que não se assemelha
à relação de um animal com seu hábitat. A pergunta
Mpor que estou aqui?”, que é um refrão constante na
vida do ser racional, desdobra-se na pergunta “por que
aqui é aqui?” - em outras palavras, qual é a importân­
cia, para mim, do fato de que essa coisa, esse lugar, esse
Umwelt com que me defronto é a coisa com que me de­
fronto? Isso recorda a rejeição de Gertrude Stein das ci-
dadezinhas americanas em Everybody's Autobiography:
Mali não há ali”. Stein deu mostras de uma verdadeira
intuição da nossa relação com a Terra. Às vezes não há
nada ali, e às vezes somos nós que fazemos aquele nada,
ao desfigurar o mundo, como na cidade-tralha deixada
pelo carro motorizado.11

A Figura 15 mostra uma parte de Sunset Boulevard, em


Los Angeles, uma pilha de tralha feita pelo homem em
que, aqui e ali, podem-se distinguir antigos arremedos
de moradias, mas em que tudo tem a aparência de algo
provisório e descartado. Contraste com o desarrumado
canal veneziano da Figura 16. Por que isso não é um
amontoamento, e por que é um lugar de moradia? Olhe
os detalhes, e logo você verá, no lado a lado das jane­
las, em seu entorno de pedra e nas pilastras da porta,
nos ornamentos arredondados ao longo do canal e no

” Veja James Howard Kunstler, The Geography ofNowhere: The Rise and
Decline of America^ Man-Made Landscape. New York, Free Press, 1993, e
acompanhe a coluna "Eyesore of the Month" no website de Kunstler.

capitulo 5-o rosto da Terra 171


arco de pedra da ponte, em cada elemento a desmoronar
e a se descascar, alguma reminiscência do templo e de
sua ordem encantada. É transparente que se vive nesse
canal, e que cada detalhe tem utilidade, mas nenhum
detalhe foi ditado por seu uso, de modo que uma espécie
de alegre redundância habita cada fachada. Esses exem­
plos nos ajudam a entender o que foi perdido quando o
vernáculo modernista assumiu o controle e a cidade de
lajes tomou o lugar da cidade de colunas. Le Corbusier
apresentou adequadamente o linguajar modernista com
a frase "uma casa é uma máquina de morar", em outras
palavras, minha casa não é um sujeito, mas um objeto -
um lugar sem rosto.

Figura 16. Canal de Veneza.

Aqui nos encontramos no território filosófico que foi ma­


peado por Kant em Crítica do Juízo. 0 tópico da primeira

172 o rosto de Deus


parte desse livro é o juízo sobre a beleza - um juízo que
todos fazemos e que temos de fazer, acreditava Kant, se
pretendemos obter um entendimento pleno do mundo e
de nossas capacidades racionais. A beleza reside nas apa­
rências, mas as aparências também sâo realidades e coi­
sas que compartilhamos. Nosso interesse nas aparências
vem do desejo de estarmos em casa, em nosso entorno,
e de encontrar inscrito no mundo dos objetos algum re­
gistro de nossas preocupações pessoais. Oscar Wilde disse
que só pessoas superficiais não julgam pelas aparências;
eu acrescentaria que julgar pelas aparências é aquilo que
toma as pessoas possíveis. É no mundo das aparências
que nos tomamos quem verdadeiramente somos, e uma
prova disso é o rosto humano - o lugar em que o sujeito
humano fica à vista e se prepara para os outros.

A Crítica da Razào Pura estabeleceu que as aparências


nào sâo as “impressões” passivamente recebidas do mito
empirista, mas os produtos de uma profunda interação
entre sujeito e objeto, pela qual impomos forma e ordem
ao input recebido pelos sentidos. Em nossa interação
cotidiana com o mundo, os objetos de experiência nos
aparecem como “para ser conhecido” ou “para ser usa­
do*'. Mas há outra postura disponível para nós, em que as
aparências são ordenadas com objetos a ser contempla­
dos. Na experiência do belo levamos o mundo à cons­
ciência e o deixamos flutuar ali. Dizendo de outro modo:
saboreamos o mundo, como algo dado, e não só como
algo recebido. Isso não é como saborear um gosto ou um
cheiro, mas implica um estudo reflexivo de significados
e uma tentativa de encontrar a importância humana das
coisas que aparecem diante de nós, da maneira como
aparecem. Esse saborear das impressões leva por si a uma

capítulo 5-o rosto da Terra 173


atitude crítica, e a escolhas regidas pela razão. Meço o
objeto observado contra o sujeito que o observa e coloco
os dois em questão. Isso acontece quando assisto a uma
peça e respondo à ação no palco como se a estivesse vi­
vendo, ou como quando sento numa paisagem tranquila
e permito que a aparência se infiltre em meus sentimen­
tos e se tome parte de mim.

Na atenção estética, desfruto os objetos em si mesmos,


e ainda que sua utilidade seja parte daquilo que eles
significam para mim (como quando admiro um belo
prédio ou uma bela charrua), não é usando esses ob­
jetos que aprecio seu valor estético. Uma das questões
mais profundas e difíceis da filosofia é como expressar
exatamente esse ponto. Digamos simplesmente que os
valores estéticos são valores intrínsecos e que, quando
encontro beleza em algum objeto, encontro-a porque
vejo esse objeto como um fim em si mesmo e não ape­
nas como meio. E seu sentido intrínseco para mim está
em sua forma apresentada, em sua maneira de aparecer
diante de minha percepção, para desafiar-me no aqui e
no agora. Essa maneira de encontrar os objetos no mun­
do é, sob um aspecto importante, semelhante à minha
maneira de ver as pessoas quando elas estão face a face
comigo e reconheço que sou responsável perante elas e
elas perante mim. Na experiência estética, temos algo
como um encontro face a face com o próprio mundo e
com as coisas que ele contém, assim como na experiên­
cia das coisas e dos lugares sagrados.12

” Rara uma discussão mais ampla desse tema, ver Roger Scruton. Beauty:
A VeryShort Introduction. Oxford. Oxford University Press, 2009.

174 o rosto de Deus


Ainda que, por definição, os valores intrínsecos não
possam ser traduzidos em valores utilitários, isso não
significa que eles não tenham utilidade. Considere a
amizade. Seu amigo é tão valioso para você quanto
a coisa que é. Tratá-lo como meio - usá-lo para seus
propósitos - é sabotar a amizade. E, contudo, os amigos
são úteis: eles dão ajuda em tempos de necessidade e
ampliam as alegrias da vida cotidiana. A amizade é
supremamente útil enquanto não a vimos sob o aspecto
da utilidade. 0 mesmo vale para o meio ambiente. Não
é que os economistas estejam errados em pensar que o
ambiente é útil para nós, ou que os custos e os benefí­
cios possam ser calculados e pesados na balança. É que
os benefícios mais importantes chegam a nós quando
não os pesamos na balança. Recebemos os benefícios
da Terra quando paramos de buscá-los. E esse é o papel
da beleza, que se coloca diante do vândalo e do abusa-
dor assim como o rosto da vítima diante do assassino.
Ele profere um “não" silencioso mas absoluto que pode
ser posto de lado pela violência, mas não removido
pelo cálculo. E muitas vezes esse “não" é recebido
como um desafio face a face, como se o objeto estivesse
falando ao espectador, Eu a Você. 0 monge que incen­
diou o famoso templo do Pavilhão Dourado de Quioto -
o maior tesouro da arquitetura japonesa - disse que o
incendiou porque o templo era tão belo que sua beleza
era uma sentença contra si próprio.13 Com certeza, uma
resposta interpessoal.

13 0 episódio foi retratado de maneira brilhante por Yukio Mishima em seu


romance The Temple ofthe Golden Pavilion, de 1956. Trad. Ivan Morris. New
York, Alfred A Knopf, 1959. [0 Pavilhão Dourado. Tradução brasileira de
Shintaro Hayashi. São Paulo, Companhia das Letras. 2010. (N. TJ]

capitulo 5-o rosto da Terra 175


Isso me leva a uma observação muito importante: a
beleza pode ser desfigurada, e onde há valor estético
também há a possibilidade de profanação. Discuti o
desejo de desfigurar relacionado à experiência sexual
humana. Um desejo similar está presente no confronto
com nosso entorno. A beleza, a ordem e o lar criam
demandas que devem ser respeitadas, e sentimo-nos
julgados por elas, assim como somos julgados por ou­
tros sujeitos. Dai surge o desejo de vingar-se, de apa­
gar o sorriso sabichão com que eles olham para nossas
imperfeições. 0 objeto belo demanda ser contemplado,
mas não consumido. E, num mundo de valores ins­
trumentais, essa demanda pode ser recebida como
uma reprovação. 0 hábito de consumir e jogar no
chão é em parte uma resposta a isso. Lugares em que
a ordem e a beleza podem entrar em nosso mundo e
fazer diferença são privatizados, a fim de se tomarem
ocasiões voltadas para “mim” e de perderem o aspecto
de diálogo em que sua beleza reside.

Dois aspectos da cultura popular ilustram a atitude


“mim" (the 'me’ atitude) e o prejuízo que ela causa no
espaço público: a pichação e afast-food. Pichações são
atos de agressão contra o domínio público, maneiras de
“desfigurá-lo". Muitas vezes elas envolvem caricaturas de
escrita feitas por pessoas que estão se vingando daquela
capacidade que, acima de qualquer outra, simboliza o
ato de comunicação interpessoal. Na maioria dos casos,
o vândalo pichador sente-se ofendido pela visão de um
lugar assentado, um lugar que o exclui, já que ele não
se encaixa ali nem pode encaixar-se. Ele se encaixa não
num lugar, mas numa gangue nômade que passa, enfure­
cida pela visão do assentamento alheio.

176 o rosto de Deus


Algo similar pode ser dito a respeito dafast-food. Ela
não apenas apaga o lugar (a refeição compartilhada)
em que valores estéticos entram na vida cotidiana e
a ordenam mas também deixa um rastro de embala­
gens e de lixo pela superfície do mundo. Ela profana
paisagens urbanas e rurais com logotipos infantiloi-
des, de uma espécie que reforça a mensagem de que
o comer acontece fora da sociedade, em lugares a que
retornamos quando saímos do mundo das obrigações,
como as crianças retomam ao peito. Se você estivesse
procurando um jeito de desfigurar o mundo e de fechar
a avenida que leva ao significado, dificilmente teria
encontrado algo mais eficaz.

0 assunto da estética decolou quando Kant e Hume


reconheceram ao mesmo tempo (ainda que com bases
muito diferentes) que a fruição estética envolve um
juízo. Ela se funda num senso da correção do objeto
fruido, tal como é apresentado à minha atenção. Kant e
Hume escreveram, em relação a isso, sobre o “juízo do
gosto”. Essa maneira setecentista de se expressar é enga­
nosa, uma vez que hoje a palavra “gosto” é usada para
descrever nossas preferências mais arbitrárias de comida
e bebida. Pode-se expressar melhor esse ponto falan­
do do caráter normativo das escolhas estéticas. Nossos
julgamentos estéticos comuns dizem respeito ao que é
certo e errado, ao que se encaixa e se harmoniza, ao que
soa e parece apropriado. Vestir-se para uma festa, pre­
parar uma mesa, decorar um salão, etc. são atividades
que se voltam à aparência correta, e o prazer sentido
é inseparável do juízo de que a coisa parece ser como
deveria. Há aqui uma relação interna entre preferência
e juízo. Por isso, quer gostemos ou não (e a maioria

capitulo 5-o rosto da Terra 177


das pessoas não gosta), os outros podem nos cobrar
por nossas escolhas estéticas. Por meio dessas escolhas
criamos presenças no mundo dos outros; e aquilo que
eles pensam do resultado é parte da importância que ele
tem tanto para eles quanto para nós. Isso não quer dizer
que podemos encontrar razões para nossas escolhas,
e menos ainda que podemos encontrar razões que as
justifiquem. Mas em algum sentido estamos comprome­
tidos com a existência dessas razões, e a arte da crítica
consiste em descobrir caminhos para elas.

Nem Kant nem Hume chegaram a um argumento que


realmente pudesse servir de base para essa busca pelo
“padrão do gosto", ainda que ambos tivessem coisas
interessantes e muito perspicazes para dizer a respeito.
Mas o fenômeno parece menos misterioso, creio, quan­
do o vemos como algo que surge da relação Eu-Você e
de nossa tendência intrínseca para a responsabilidade.
0 juízo estético é um elemento fundamental na postura
descrita pelos românticos alemães, como Heimkehr - o
voltar para casa. 0 amor da beleza está fundamentado na
necessidade de assentamento, de um lugar que comparti­
lhemos, onde, como disse Hõlderlin,

Alies scheinet vertraut, der vorübereilende


Gruss auch
Scheint von Freunden, es scheint jegliche
Miene venvandt...

“tudo parece familiar, até o cumprimento casual


parece o de um amigo, e todo rosto parece aparenta­
do" (Heimkunft - “A volta ao lar"). Ao projetar nosso
entorno, nós o colocamos dentro de nossa esfera de

178 o rosto de Deus


responsabilidade para com os outros e da responsa­
bilidade deles para conosco. Desfiguramos o mundo
quando escrevemos “eu" nele inteiro e convidamos os
outros a fazer o mesmo. A beleza é o rosto da comu­
nidade, e a feiura é o ataque do solipsista e do catador
contra esse rosto.

É por essa razão que os pensadores e os artistas do


iluminismo valeram-se da beleza natural para preen­
cher o buraco deixado pela ausência de Deus em sua
cosmovisão. 0 movimento romântico foi um movimen­
to de almas desassentadas em busca de assentamento,
e esse é o tema das pinturas de Caspar David Friedrich,
em que homem e natureza ficam face a face, numa
espécie de alienação que anseia (Figura 17). Na paisa­
gem romântica, o belo toma o lugar do sagrado como
fonte de sentido. Deus um dia prometeu uma casa e
instou-nos a consagrá-la a seu nome. Mas o caminho
para essa casa foi tapado, e a promessa perdeu credibi­
lidade. Os românticos estavam criando outro caminho:
o caminho da “educação estética”.14 A beleza, para
eles, era uma promessa, uma promessa de comunidade,
ainda que fosse apenas uma comunidade imaginada
que ainda tinha de encontrar um lugar na Terra. Eles
trocaram o sagrado pelo belo sem notar que haviam
feito isso. E não devemos ver nada de estranho nisso,
uma vez que reconheçamos que as duas concepções
nascem da mesma fonte metafísica, que é a relação Eu-
-Você, estendida de pessoas a coisas.

14 Ver Friederich von Schiller, Letters upon the Aesthetic Education of Man.
Trad. E. Wilkinson e L A. Willoughby. Oxford, Clarendon Press, 1967.

capitulo 5-o rosto da Terra 179


Figura 17. Friedrich: Caminhante sobre o Mar de Névoa.

A natureza bela, porém, não acontece simplesmente:


ela costuma ser construída, e, mesmo quando com­
preendida como algo inteiramente “natural", é vivida
nos termos das possibilidades vitais que oferece. Isso
vale para a mata virgem americana que Thoreau, Emer­
son e Muir queriam proteger da predaçào humana. Para
os americanos nativos, a paisagem efetivamente tinha

180 o rosto de Deus


sido um lar administrado, em que cada contorno dava
testemunho do estilo de vida que o homem branco ti­
nha extinguido. Os poetas românticos e os pintores dos
novos Estados Unidos estavam reconfigurando a pai­
sagem como mata virgem, e a concepção de sua beleza
era um subproduto de outra forma de assentamento,
diferente daquela destruida. Não é que os românticos
vissem beleza na natureza: antes, eles criaram e trans­
figuraram a natureza por meio da busca da beleza, que
é a busca pelo lar.

Moldamos nosso entorno cultivando, construindo, dis­


pondo o mundo. Valores estéticos governam toda forma
de assentamento, e são os nômades, aqueles que “estão
passando”, que não reconhecem responsabilidade ne­
nhuma pelo modo como as coisas aparecem à sua volta.
0 rosto da natureza, como o vemos nas grandes pintu­
ras de paisagens de Constable e de Crome, de Courbet
e de Corot, é um rosto voltado para nós, dando e rece­
bendo tanto semblante de desagrado quanto sorrisos. E
artistas posteriores mostraram outro tipo de expressão,
chamada ao rosto da natureza pelo desejo urgente de
encontrar o que está realmente lá, independentemente
de todos os mitos e histórias. Nas pinturas de Van Gogh,
árvores, flores, pomares, campos e construções abrem-se
ao pincel do artista, um tanto como um rosto humano
pode abrir-se em resposta a um sorriso, revelando uma
intensa vida interior e uma afirmação do ser. Ao longo
do século XIX, artistas, poetas e compositores estavam
explorando e implorando o rosto da natureza, ansiosos
por um encontro direto Eu a Eu. 0 desejo de perpetuar
esse rosto e de protegê-lo de máculas desnecessárias
motivou o movimento ambientalista, que era (em suas

capitulo 5-o rosto da Terra 181


origens, ao menos) a expressão política de uma sensibi­
lidade profundamente romântica.

Na Inglaterra, o movimento levou à fundação do Na­


tional Trust por Octavia Hill e outros em 1895. Octavia
Hill era uma seguidora de Ruskin e, como ele, acreditava
que a beleza natural pertence a todos. Ao respeitá-la e
conservá-la, acreditava, preservamos o rosto que proíbe
o destruidor. Por mais dignas de louvor que sejam essas
iniciativas, elas tendem a concentrar-se na herança
acumulada de construções, de paisagens urbanas e rurais,
sem considerar a vida humana que lhes dotou de alma.
Os parques e as casas preservados pelo National Trust
devem sua beleza aos padrões de propriedade que o pró­
prio National Trust destrói. A beleza dessas coisas pode
ser um bem comum; mas ela foi produzida pela proprie­
dade privada, e é a propriedade que salva nossas cidades
e nossos parques do ameaçador vazio da arquitetura de
laje - o tipo de arquitetura exemplificado pelas “mono-
cidades" soviéticas, construídas em tomo de uma única
linha de produção, e hoje em grande parte lugares deso­
lados, ruínas de tralhas pré-fabricadas. 0 templo é nosso
paradigma, porque, ainda que não seja posse de nenhum
ser humano, é posse de Deus, que faz dele sua casa. E o
resto da paisagem urbana cresce com base em tentativas
privadas de enfeitar o lar, usando a linguagem da alma
falada pelo templo nas portadas, nas arquitraves e nas
esquadrias que emolduram a vida do lado de dentro.

0 “almamento" do mundo por meio da propriedade é


transmitido na história do Antigo Testamento da primeira
dádiva de Deus ao homem, o Jardim do Éden. Um jardim
é um lugar cultivado, um lugar transformado por escolhas

182 o rosto de Deus


estéticas, um lugar que traz a marca do trabalho humano
c do desejo humano. Essa é a imagem mesma do processo
que Locke julgava ser o fundamento da propriedade pri­
vada: a “mistura” do trabalho com as coisas da terra.15 Por
isso, os jardins têm sua fenomenologia distintiva própria,
em que a natureza é tomada, domesticada e marcada pelo
interesse humano. Um jardim não é um espaço aberto
como uma paisagem, mas um espaço que envolve. E aqui­
lo que cresce e fica nele cresce e fica em volta do obser­
vador. Uma árvore num jardim não é como uma árvore
numa floresta ou num campo. Ela não está simplesmente
ali, crescendo acidentalmente a partir de sementes espa­
lhadas. Ela foi plantada ali e, como resultado, fica de pé e
observa o observador, assim como o observador, por sua
vez, fica de pé e observa a árvore. E, ainda que ela não se
mova, a árvore conversa com aqueles que andam embaixo
dela e que olham o céu por entre seus galhos. As árvores
postas num jardim estão postas entre o mundo humano
e o reino da pura natureza. De fato, há uma “entre-dade”
que infecta todas as nossas maneiras comuns de fruir um
jardim. Essa experiência alimenta nosso entendimento
das formas arquitetônicas e das decorações como coisas
projetadas para conquistar o espaço e fechá-lo, capturá-lo
da natureza e apresentá-lo como nosso.

Um espaço público, portanto, não é um espaço não


possuído, mas um espaço em que as muitas esferas da
propriedade encontram um limite negociado. Esse limi­
te pode ser uma rua, uma sequência de fachadas ou a
silhueta dos prédios. Ele representa o assentamento lado

,s Ver o Segundo Tratado de Governo.

capítulo 5-o rosto da Terra 183


a lado de proprietários privados e a maneira de viver
que eles compartilham. Assim, quando o limite é rompi­
do ou roubado por algum interesse privado, reagimos a
isso como uma profanação. Isso vale especialmente para
as cidades, que têm sido, e em certa medida ainda são,
espaços sagrados, cujos contornos registram um diálogo
contínuo ao longo de séculos entre “vizinhos", aqueles
que “constroem perto", dando a etimologia anglo-saxã da
palavra.16 A cultura de consumo varre-as como um fura­
cão, espalhando em seu rastro as imagens de modelos de
propaganda, que mais parecem bonecas, e que escorrem
ao longo dos prédios, tapando-os, como nas ruas cober­
tas de outdoors e de imagens digitais da Bucareste de
hoje em dia, a Bucareste que já foi descrita como a “Paris
do Leste” (Figura 18).

Aqui nos defrontamos com um paradoxo interessante:


nada tem tanto poder de desfigurar quanto o rosto. A
apresentação realista de um rosto humano sempre leva
ao risco de enfear o prédio em que é exibida. A forma
humana pode ser representada numa fachada em escultu­
ras, bustos e cariátides sem perturbar a ordem arquitetô­
nica, mas isso porque esses detalhes incorporam a figura
à arquitetura, subjugam sua reivindicação preeminente à
nossa atenção e nos permitem abstrair do imediatismo e
do excesso viciante a que as imagens realísticas de nossa
espécie podem nos tentar. Por contraste, outdoors e pôs­
teres profanam os espaços públicos que os contêm, sobre­
tudo quando um rosto humano aparece neles, lançando
seu apelo urgente a ocupar o centro das atenções.

16 No original, “neighbours - those who build nearbf. (N. TJ

184 o rosto de Deus


figura 18. Praça Uniri. Bucareste.

Esse paradoxo é em certa medida esclarecido pela atitude


judaica e muçulmana em relação à idolatria. 0 segundo
mandamento não meramente proíbe “imagens de escultu­
ra" que representariam Deus. Ele proíbe “qualquer seme­
lhança do que há em cima nos céus, ou embaixo na terra,
ou nas águas debaixo da terra". Um hadith de Maomé
proíbe imagens na casa, dizendo que qualquer pessoa que
faça uma imagem não apenas será punida no Último Dia,
mas será forçada a dar vida à coisa que criou.17

Essas interdições que parecem tão estranhas permanecem


obrigatórias, o que depreendemos não só da recente con­
trovérsia a respeito de cartuns do Profeta como também
da longa tradição da arte e da tapeçaria islâmicas, em

n Sahih Buhari, vol. 4, Livro 54, Número 447.

capítulo 5-o rosto da Terra 185


que elementos figurativos sào evitados e deliberadamen-
te “geometrizados”, a fim de privá-los de seus nafs, ou
“alma”. Também na cultura cristã a produção de imagens
muitas vezes foi controversa, com momentos de icono-
clastia altemando-se com períodos de devota produção
de imagens, como na antiga Bizâncio e na Europa pós-
-medieval. Num vasto estudo, o filósofo francês Alain
Besançon afirmou que o medo e a suspeita em relação a
imagens influenciou o desenvolvimento da religião e da
filosofia ao longo da história conhecida, e só não desa­
pareceu porque hoje vivemos cercados e distraídos por
imagens por todo lado e em todos os momento do dia.18
De fato, boa parte do que nos perturba em nossa situação
atual é aquilo que perturbava os teólogos islâmicos,
isto é, que a “imagem de escultura”, que começa como
representação, logo se toma um substituto. E substitutos
corrompem os sentimentos a que convidam, assim como
os ídolos corrompem o culto e a pornografia corrompe o
desejo. Afinal, os substitutos convidam a respostas fáceis
e mecânicas. Eles dão curto-circuito no custoso processo
pelo qual formamos relacionamentos verdadeiros e colo­
cam em seu lugar reflexos mecânicos e viciantes. 0 ídolo
não representa Deus; ele o desfigura.

A desordem emocional envolvida nisso é o tema da


pintura O Bezerro de Ouro, de Poussin (Figura 19). 0
primeiro plano é dominado pelo bezerro, elevado em
seu pedestal. 0 ídolo é um substituto brilhoso, realístico,
mas morto, com a enfática indiferença do metal. Aarão

18 Alain Besançon. L'lmage Interdite: Une Histoire Intellectuelle de


1'lconoclasme. Paris, Gallimard, 2000.

186 o rosto de Deus


faz gestos de sacerdotal astúcia para sua criação, en­
quanto o povo, ébrio, indefeso e preso no delírio cole­
tivo, dança inconsciente em volta daquela coisa menos
sagrada do que eles mesmos. Ao focar-se no bezerro,
suas emoções também perdem o foco - desorientadas,
adoecidas, rodopiando no vazio. Mal visível, distante,
está a figura de Moisés, que desce do Monte Sinai com
as Tábuas da Lei: os decretos abstratos de um Deus
abstrato, que não podem ser entendidos por nenhuma
imagem terrena, mas só pela lei. Moisés joga as tábuas
de pedra no chão, assim destruindo não a lei, mas seu
registro terreno. A imensidão de Aarão, com o rosto
irradiado por uma calma ilusória e satisfeita, contrasta
com a pequenez e a fragilidade de Moisés, corpo re-
curvado de raiva, mudo diante da servidão voluntária,
como viria a ser retratado depois por Schoenberg em sua
grande ópera inacabada sobre o tema.

Figura 19. Nicolas Poussin: A Adoração do Bezerro de Ouro.

capitulo 5 - o rosto da Terra 187


Por trás da visão de Poussin está um contraste entre o
trabalho ativo do intelecto, que aponta para um deus
além do mundo sensorial, e a força passiva da fantasia,
que cria seu próprio deus fora dos desejos sensoriais. Há
também um contraste entre dois tipos de autoridade: uma
baseada na lei, a outra baseada em carisma. 0 esforço
da religião, mostra Poussin, é erguer a alma humana,
tirando-a das imagens fantasiosas e dos apetites mortais,
e dirigi-la para uma relação real com um Deus transcen­
dental. Mas esse esforço é difícil e não pode ter sucesso
sem a “presença real" que só Moisés tinha encontrado.
Procurando o rosto de Deus, o povo se volta para um
substituto. Sua idolatria toma-se um obstáculo para a
religião e não uma forma de religião. Nela emoções, pen­
samentos e ações que se devem a Deus são desviados de
seu verdadeiro curso.

Ao devoto muçulmano, até a pintura de Poussin é uma


forma de idolatria - uma “semelhança” que, ao imitar
a força criativa, dilui a autoridade de Deus. Os cristãos
de tendência puritana destruíram estátuas, pinturas,
vitrais e todos os outros objetos que serviam aos usos
religiosos das pessoas simples, acreditando que eles
também eram ídolos, e que, ao destruí-los, estavam a
serviço de Deus. Há de fato uma tradição no protestan­
tismo que vê a própria religião organizada como uma
espécie de idolatria - que repudia todas as cerimônias,
textos e palavras litúrgicas, considerando-os produtos
humanos, e enxerga santidade numa coisa só, que é a
relação interior com um Deus transcendental. Essa ma­
neira de pensar pode ser levada a extremos paradoxais.
Na árida teologia de Karl Barth, por exemplo, não há
nada para conhecer a respeito de Deus, exceto que ele é

188 o rosto de Deus


Incognoscível, que está escondido atrás de toda imagem,
de toda história e até de toda ideia que pretenda revelá-
-lo. O caminho da religião é a via negativa de Avicena e
de Maimônides, que leva para longe de todos os pen­
samentos e de todas as coisas do mundo. A adoração
toma-se assim uma iconoclastia perpetuamente renova­
da, voltada para o mundo humano inteiro.

Para Poussin, a idolatria implica a perda da alma. Os


israelitas dançam com movimentos informes, dando
voltas, com o rosto retorcido em sorrisos idiotas, emoções
de manada, confusas. Eles não são mais seres morais, que
respondem perante a lei, mas animais, movidos por ins­
tintos coletivos que não reconhecem lei nenhuma, exceto
a mágica de Aarão, o encantador.

0 contraste aqui não é com o protestante barthiano, que


contempla mudo seu Deus incognoscível, nem com o Moi­
sés de Schoenberg, igualmente mudo. 0 contraste é com o
crente comum, que adora a Deus a seu modo, reconhecen­
do que a adoração implica obediência, e que associa sua
adoração à vida ética. Esse crente bem podería fazer uso
de imagens e de intermediários. Aqueles que adoram dian­
te do crucifixo ou da estátua da Virgem Maria não estão
adorando o objeto, mas a pessoa santa que ele representa.
Os exemplos aqui são muitos, e descrevê-los todos como
idolatria é perder as distinções importantes - em particu­
lar, a distinção entre uma representação e um substituto, e
entre o foco de um sentimento e seu objeto.

Ao nos concentrar no rosto, alimentamos nosso amor


e nos deleitamos nele. Ao nos concentrar nas funções
corporais, estragamos o amor e nos privamos de sua

capítulo 5 - o rosto da Terra 189


autoridade ética. E é esse o contraste que Poussin coloca
diante de nós. Os israelitas fixaram seu olhar numa cria­
ção humana e assim enfraqueceram a intencionalidade
voltada para Deus da adoração. Sua adoração foi esvazia­
da de seu significado interpessoal, e eles estão à deriva,
sem direção, desorientados. Para Poussin, não é Deus
que é ameaçado pela idolatria, mas o homem: a idolatria
literalmente destrói a alma. E, no inebriamento dos israe­
litas, Poussin captou a natureza essencialmente viciante
da resposta idólatra: sua natureza de “curto-circuito”, que
leva a uma recompensa vazia.

0 conflito em tomo da idolatria nos ajuda a entender


o que está em jogo nas questões ambientais de hoje.
Lamentos acerca do aumento da sujeira na paisagem
urbana assumiram uma forma estética não porque diga
respeito a “uma questão de gosto”, que portanto esta­
ria além de qualquer solução política, mas porque diz
respeito a uma questão de alma. Os debates em tomo do
modernismo e do pós-modemismo, em tomo do novo
urbanismo e do domínio de “arquitetos estrelas”, dizem
respeito a algo de primeira importância para todos nós,
que é o rosto do mundo. E nós os compreenderemos me­
lhor se retomarmos à orientação original dada a Moisés.

As instruções de Deus mandavam construir seu templo


em tomo de seus pilares. Como já sugeri, não é extra­
vagante relacionar os pilares do templo com as ordens
clássicas - as regras, baseadas em colunas, para a organi­
zação do aspecto exterior das construções, que forneciam
uma espécie de gramática gerativa da fachada significati­
va. As ordens clássicas, assim entendidas, eram a discipli­
na básica da arquitetura urbana na tradição ocidental, da

190 o rosto de Deus


Antiguidade até o começo da Primeira Guerra Mundial,
em outras palavras, do nascimento de nossa civilização
até sua primeira tentativa de suicídio.

Como lugares sagrados, as cidades têm de nascer de um


ato de consagração. A consagração é algo que fazemos, é
apresentar uma coisa para que receba endosso divino. É o
tema de todos os ritos de passagem pelos quais as comu­
nidades se renovam. E é o começo de qualquer construção
que vá ser permanente, de qualquer construção em que o
objetivo é o assentamento. 0 segredo da tradição clássi­
ca é que ela pega o ato de consagração e o generaliza. A
postura ereta da coluna, em que o prédio se põe diante
de mim, Eu para Você, recebe um rosto, com a divisão
em seções e com a elaboração de ornamentos e de transi­
ções. Nossa capacidade de conferir rostos a construções é
semelhante à nossa capacidade de enxergar caráter numa
máscara teatral. Ao encarar um prédio, evocamos nele
uma cara, e ao nos dirigir a ele em silêncio permitimos
que ele, por sua vez, se dirija a nós. Esse “encaramento”
de uma construção está para a profanação por um outdoor
assim como a devoção verdadeira está para a idolatria.

A partir da concepção do templo, permeável à cidade


ainda que sagrado e distanciado dela, veio da coluna­
ta, e daí a da coluna singular como unidade de sentido.
As ordens conferem o máximo poder sacro à unidade
arquitetural, ao mesmo tempo em que estabelecem uma
lei para o prédio como um todo. Elas também dão corpo
a soluções imensamente sofisticadas para problemas de
projeto: como apresentar um único aspecto desde muitos
pontos de vista; como traduzir idéias de força, de varie­
dade e de permanência em mil planos e fachadas.

capitulo 5-o rosto da Terra 191


Os tipos arquitetônicos romanos - arco, edícula, colu­
na engastada, pilastra, abaulamento e domo - podem
todos ser considerados tentativas de reter a presença
sagrada da coluna em todos os usos da vida cívica.
Neles vemos a interpenetração do sagrado e do secular
e, portanto, a santificação da comunidade humana e a
humanização do divino. Essa é a origem de seu apelo e
a razão de sua durabilidade. Com os tipos arquitetôni­
cos romanos começou a verdadeira história da arqui­
tetura ocidental, que é a história da Ordem implícita.
Essa é a ordem contida nos livros de padrões e preser­
vada nas cornijas, nas molduras de janelas, nos frisos e
nas portadas, nas chaminés e nos parapeitos, em todas
as ruas das nossas cidades antes do século XIX (ver
novamente as Figuras 13 e 14).

Ainda que seja possível exagerar a diferença entre o


templo clássico e a igreja gótica, ao menos isso sempre
deveria ser lembrado: que o templo clássico demarca
um santuário interior no espaço do nosso mundo, ao
passo que a catedral gótica é o portal para outro espaço,
potencialmente infinito, e fora da esfera da vida coti­
diana. Por suas portas passamos a um domínio celestial,
para sempre estendendo-se para cima e para fora, e seu
movimento infindo nos convida a um descontentamento
divino com as coisas terrenas. Como seu sentido sagra­
do não é deste mundo, suas formas prestam-se apenas
precariamente a usos civis e domésticos, e o vernáculo
gótico nunca foi mais do que um sonho passageiro - o
sonho de um Pugin, que ansiava por recapturar o mundo
da obediência cristã numa época de fé minguante. 0 re­
nascimento gótico produziu paisagens oníricas e castelos
de contos de fadas - não o rosto de Deus no mundo dos

192 o rosto de Deus


homens, mas uma miragem divina, retratada do pais não
descoberto além da margem do mundo.

As formas clássicas sobreviveram às forças secularizantes


da modernidade e foram usadas até para dar a essas for­
ças expressão arquitetônica. De fato, o principio da Ordem
subentendida ajudou a abrandar para nós o mundo secu­
lar, retendo o plano de fundo calmo e discreto de nossos
“experimentos do viver". Ali estão as Ordens, afirmando
o que é perene no meio da mudança e endossando nosso
senso de que pertencemos ao lugar onde estamos e a que
pertencemos como comunidade. Elas são a licença visivel
para habitar, a afirmação de nosso direito de ocupação e
o lembrete de que pertencemos a uma comunidade que
inclui não só os vivos, mas também os mortos e os que
ainda não nasceram. Esse é o segredo de sua civilidade,
que é mais do que polidez; antes, é uma espécie de pieda­
de e uma consagração do lugar onde se situam.

Como as Ordens deixam claro, a verdadeira disciplina da


forma enfatiza a linha vertical. A arte do projeto é em
grande medida a arte do acúmulo vertical, de colocar
uma coisa em cima da outra, de modo a criar uma ordem
que possa ser espalhada ritmicamente de um lado a ou­
tro, como na colunata ou na rua uniforme.”

Para dar ordem vertical a uma fachada, é preciso explo­


rar a luz, a sombra e o clima, dividir o espaço das pare­
des e enfatizar as fendas. Em outras palavras, é preciso

19 No original, terraced Street A expressão se refere às ruas (não incomuns


nas cidades europeias e americanas) em que todas as construções têm o
mesmo nível e estilo. (N. TJ

capitulo 5-o rosto da Terra 193


usar ornamentos. Nos primeiros anos do arranha-céu, os
prédios altos eram concebidos como o prédio da Chrysler
em Nova York - como dedos exultantes apontando
para o céu. A verdadeira feiura veio depois, quando o
arranha-céu foi despido de todas aquelas linhas, som­
bras e curvas que eram a fonte de sua vida e alegria.
Sem ornamentos, espaço nenhum é articulado. As quinas
tomam-se lâminas, os prédios perdem suas coroas, e as
paredes, sua direção (porque o movimento para o lado
tem a mesma ênfase visual que o movimento para cima
e para baixo). As janelas e as portas ou desaparecem to­
talmente ou perdem seu caráter de ediculas, tomando-se
meros buracos na parede. Nenhuma parte é emoldurada,
marcada, enfatizada ou suavizada. Tudo é abrupto, árido,
inflexível, frio. Sem ornamentos não se constrói mais
com luz e sombra, mas com as formas plásticas derra­
madas de engenhocas - objetos sem orientação e sem
nenhum lugar propriamente seu.

Assim, carecendo daquela espécie de ordem vertical, os


arranha-céus contemporâneos são concebidos como pi­
lhas de camadas horizontais postas umas sobre as outras,
sem demandar qualquer projeto além da planta do térreo,
como no tão admirado prédio da Seagram, projetado por
Mies van der Rohe em 1958, modelo de mil prédios de
escritórios de aço e vidro construídos no mundo des­
de então. 0 prédio de Mies oferece o modelo para uma
arquitetura gerada não a partir da coluna vertical e da
linguagem da sombra, mas da planta térrea horizontal.
0 resultado pode ter a altura que você quiser - até a do
prédio da Seagram -, mas nunca terá postura vertical e
nunca o encontrará face a face. Aquilo que deveria ser
um rosto é só a borda da planta.

194 o rosto de Deus


Num prédio como esse, os limites e as unidades de
sentido estão emudecidos ou ausentes. Não há janelas;
não há quinas decoradas; não há nenhum lugar de onde
o prédio olha para os passantes. Ele é uma caixa sela­
da, com paredes translúcidas - mas feitas de vidro e de
bronze em faixas alternadas. Ele lembra você daquelas
pessoas que, acompanhadas, usam óculos escuros atrás
dos quais - você é obrigado a pensar - não existe um
eu, já que o eu só existe na medida em que é reconheci­
do pelos outros. Essas pessoas escondem o eu dos olhos,
porque os olhos são juizes.

Um prédio construído pelo principio Seagram vive numa


dieta constante de energia - para aquecê-lo no inver­
no e para esfriá-lo no verão. Além disso, como ele está
selado em relação ao ar exterior, é preciso ainda mais
energia para fazer o ar circular em seu interior, e esse ar
vai abrigando cada vez mais as muitas doenças trazidas
pela força de trabalho, de modo que o prédio mesmo fica
doente. Contudo, o modelo Seagram vem sendo seguido
há meio século: sem o bronze, e com uma moldura de
aço e uma fachada de vidro ou de painéis de concreto.
Foi a existência desse estilo de arquitetura, mais do que
qualquer outra causa, que levou à desertificação dos cen­
tros comerciais dos Estados Unidos. Esses prédios podem
abrigar escritórios, mas são desconfortáveis e alienantes
como apartamentos e raramente são mudados para uso
doméstico. Além disso, eles vandalizam a rua e a cidade
em que ficam, lançando sombras que duram o dia inteiro
por toda parte. Eles transformam a paisagem urbana em
paisagem lunar e trocam o morar pelo mover-se. 0 tapa
na cara que resulta não é apenas uma ofensa estética:
é um desastre ecológico, que leva as pessoas para os

capitulo 5-o rosto da Terra 195


subúrbios e contribui maciçamente para o momento cen­
trifugo da paisagem urbana.

Construções mais recentes cometem um ataque não apenas


à fachada, mas a toda a ideia de espaço público. Muitos
prédios pós-modemistas são projetados como engenhocas
- “supostos objetos”, nas palavras de Léon Krier,20 como
o “utensílio de cozinha" projetado pela Morphosis em
tamanho gigante que está na Praça Cooper em Nova York
(Figura 20). 0 efeito disso na rua é catastrófico; compare-o
com o digno prédio à sua esquerda, mas observe também o
prédio um tanto similar ou ao menos igualmente ofensivo
que fica arbitrariamente a seu lado. Para limpar as janelas
desse prédio, é preciso fechar a rua com uma grua.
E, como aquilo parece uma tralha, logo vai ser tralha,
porque o custo de manutenção será maior do que o custo
de derrubar tudo e construir outra coisa.

Esse tipo de arquitetura-engenhoca (gadget architecture)


está brotando por nosso mundo inteiro: arquitetura
projetada no computador, como objeto autocontido,
em desprezo pelo contexto, que não tem nem escala,
nem material, e nem vocabulário em comum com seus
vizinhos. Esses prédios não têm rosto, nem orientação
privilegiada, e efetivamente não pertencem ao lugar que
ocupam, assim como uma espaçonave não “pertence" ao
lugar que ocupa em dado momento. Sua natureza de “en­
genhoca" é uma tentativa de tomar emprestada a estética
do utensílio doméstico: eles abrem a cidade assim como
um abridor de latas abre uma lata. Seu efeito é recriar o

20 Léon Krier, Architecture: Choice orFote. London, Papadakis, 1998.

196 o rosto de Deus


espaço exterior da cidade como um lugar de interiores
descartados - de lixo doméstico jogado na rua. Esse é o
sentimento do “mim", sem o eu que dá uma explicação,
ou o você que a recebe. Esses prédios não podem perma­
necer felizes ao lado de outros prédios pela simples razão
de que não permanecem. Eles são projetados como lixo,
uma arquitetura do desperdício que inclui material que
demanda grande quantidade de energia, que não po­
dem facilmente mudar de função; e serão demolidos em
vinte anos. As paisagens urbanas feitas dessa arquitetura
parecem aterros sanitários - onde há pilhas espalhadas de
plástico e ninguém se assenta.

Figura 20. Edifício Cooper Union, de Morphosis. Praça Cooper, Nova York.

capitulo 5 - o rosto da Terra 197


Aquilo a que me refiro aqui é o equivalente na prática
arquitetônica da anulação do rosto humano que comen­
tei no capítulo precedente. A arquitetura-engenhoca
nem permanece nem olha: ela é jogada na paisagem ur­
bana como lixo, e nem encara o passante nem o inclui.
Ela pode oferecer abrigo, mas não pode fazer uma casa.
0 prédio-engenhoca também é um produto de consu­
mo. Ele deve ser descartado depois de ser consumido
e mantém sua aparência de impermanência estagnada,
como uma sujeira que ninguém tem a responsabilida­
de de limpar. Nesse sentido, ele contribui para a ampla
anulação da esfera pública. Praças e ruas estão deixan­
do de ser lugares em que andamos e conversamos; em
vez disso, são lugares pelos quais passamos apressados,
a caminho de uma casa que talvez nunca encontremos.
A engenhoca exige um espaço livre em volta de si; ela
não pode ficar Mao lado” de nada, a ideia mesma de Mao
lado” é anulada por suas formas que não admitem com­
binação. Ela é um ataque ao princípio de vizinhança - e
sua falta de rosto é uma negação do amor ao próximo.

Aquilo que todos esses exemplos mostram, porém, é


que a degradação ambiental vem da mesma maneira
que a degradação moral, por meio da desfiguração das
coisas - da representação das pessoas e dos lugares de
maneiras impessoais, como objetos a ser usados e não
como sujeitos a ser respeitados. Mas, talvez diga o leitor,
o ambiente é só um objeto ou uma coleção de objetos. É
na melhor das hipóteses uma metáfora, e na pior, uma
superstição pensar que há um espírito nas coisas à nossa
volta, a que podemos nos dirigir e pelo qual podemos ser
consolados, assim como nos dirigimos uns aos outros e
somos consolados uns pelos outros. Claro que os poetas e

198 o rosto de Deus


os pintores apresentaram a natureza desse jeito, à manei­
ra de Wordsworth, de Hõlderlin e de Samuel Palmer. Mas,
para nós, isso é só um modo de falar ou de ver, um modo
de ressaltar nossa dependência emocional das coisas à
nossa volta. Até o tratamento apaixonado de Rilke da
Terra, como Du Hebe, não é mais do que uma oferta de
subjetividade, uma promessa de dissolução da Terra no
eu do poeta.

Mas será que é só isso mesmo? 0 senso da beleza coloca


um freio na destruição, representando seu objeto como
algo insubstituível. Quando o mundo me olha de volta
com meus olhos, como faz na experiência estética, ele
também se dirige a mim de outro modo. Algo está sendo
revelado a mim, que me faz ficar parado e absorvê-lo.
Claro que é um nonsense sugerir que há náiades nas ár­
vores e dríades nos bosques. 0 que é revelado para mim
na experiência da beleza é uma verdade fundamental
do ser - a verdade de que o ser é uma dádiva, e de que
recebê-la é uma tarefa. Essa é uma verdade da teologia,
que demanda ser exposta teologicamente. Por isso, nossa
exploração do rosto da Terra nos guia até o verdadeiro
assunto do meu raciocínio, que é o rosto de Deus.

capítulo 5-o rosto da Terra 199


ca»'w'° LveuS

Os seres humanos sofrem de solidão em todas as circuns­


tâncias de sua vida terrena. Eles podem ficar sozinhos
a sós ou sozinhos acompanhados; podem entrar numa
sala repleta de pessoas amigáveis e simplesmente ver que
sua solidão é aprofundada por ela; eles podem sentir-se
sozinhos até mesmo na companhia de um amigo ou de
um cônjuge. Existe uma solidão humana que nasce de
alguma fonte que não a falta de companhia, e não tenho
dúvida de que os místicos que meditaram sobre esse fato
têm razão de vê-lo em termos metafísicos. A separação
entre o ser autoconsciente e seu mundo não é superada
por nenhum processo natural. Ela é um defeito sobrena­
tural, que só pode ser remediado pela graça.

Essa é a conclusão a que relutantemente cheguei, e neste


capítulo quero completar meu argumento sobre o rosto
dizendo algo sobre a presença de Deus neste mundo e por
que o fato de não o encontrarmos é a razão dessa inquie­
tação tão profunda. A posição que me atrai foi expressa
por muitos pensadores. Mas toda tentativa de formulá-la
esbarra em dificuldades lógicas e metafísicas. Talvez não
exista modo de formular essa posição que não contenha

capítulo 6-0 rosto de Deus 201


alguma falha fundamental. Os autores que veem a soli­
dão existencial do homem tal como a vejo - como um
anseio por dissolver-se na subjetividade de Deus - escre­
veram de modo tão obscuro que duvido que eu consiga
fazer algo melhor. Estou pensando em Kierkegaard, em
Levinas e em Berdiaeff - e também em Hegel, à sombra
de quem escreveram, e cuja visão confirmaram pela vee­
mência mesma de seus ataques ao filósofo alemão.

Hegel afirmava que nós, seres autoconscientes, nos tor­


namos aquilo que essencialmente somos por meio de um
processo de conflito e resolução. A autoconsciência é
implantada em nós como condição a ser realizada, e a
adquirimos por meio da Entâusserung - por meio da cons­
trução da arena pública em que o diálogo entre o eu e o
outro pode ocorrer. 0 eu se toma real mediante o reconhe­
cimento do outro. A linguagem, as instituições e as leis são
os veiculos por meio dos quais obtemos Selbstbestimmung,
a certeza do eu, que também é uma limitação do eu e um
reconhecimento do limite entre eu e o outro.

0 processo que leva a me ver como outro para outros


também me toma outro para mim mesmo, e esse é o
“momento", para usar o linguajar de Hegel, da autoa-
lienação, em que os sujeitos se tomam estranhos para si
mesmos, obrigados por leis externas, impedidos em sua
liberdade, rebelando-se contra os constrangimentos que
os oprimem de fora.

É desse modo que uma fratura fatal divide nosso mundo,


a fratura entre sujeito e objeto que corre através de mim.
Curar essa fratura significa reconciliar minha própria
perspectiva de algum lugar com as visões concorrentes

202 o rosto de Deus


que me cercam, de modo que aquilo que sou aos olhos
dos outros se encaixe naquilo que sou para mim mesmo.
Para Hegel, isso é objetivamente obtido por meio da lei
e das instituições e subjetivamente por meio da arte e da
religião. Essas são maneiras pelas quais nos reconectamos
com o mundo do qual nossa própria luta por liberdade e
por autoconhecimento nos tinha separado. Hõlderlin ex­
pressou um fenômeno similar em suas grandes evocações
do lar e da volta ao lar - a jornada para o exterior, que
também é uma jornada de volta. E a jornada espiritual
de Hõlderlin foi seguida em nossa época - e por meio de
uma geografia emocional alterada - por T. S. Eliot em
Quatro Quartetos.

Para a pessoa religiosa, a jornada para o exterior, para


a alienação (que judeus e cristãos captam na história do
pecado original e na nossa expulsão do Paraíso), exige
uma jornada adiante, isto é, para a redenção. Essa exi­
gência é registrada por Santo Agostinho em suas famosas
palavras: “nosso coração está inquieto enquanto não
repousa em ti, Senhor” (Confissões 1,1). E ela é registrada
pelos místicos sufi em sua evocação da unidade final com
a fonte de luz concedida ao murshid, ou líder espiritual.
De fato, muitas das grandes religiões parecem ter a
estrutura da dialética hegeliana: uma inocência original,
em que a alma está unida ao mundo e a seu criador; uma
“queda” ou rebelião, em que a alma “se realiza” como
indivíduo livre e também é separada de sua verdadeira
realização, e uma volta final ao lar por meio da disciplina
e do sacrifício, em que outra vez está em harmonia com
o cosmos - redimida pelo salvador, liberada no nirvana,
nos braços de Brama, ou simplesmente adormecida junto
aos ancestrais no lugar final de descanso.

capitulo 6-0 rosto de Deus 203


A solidão metafísica do sujeito não é uma condição his­
toricamente transitória. É um humano universal. E, como
afirmei, a criatura com pensamentos de “eu" é responsá­
vel perante os outros e vê a si mesma do exterior, como
outra aos olhos dos outros. Essa luta infinda para unir o
eu que julga com o eu que é julgado é a maneira de vida
religiosa, e todas as grandes religiões são fórmulas para
conduzir essa tal disputa, pela qual buscamos ser “restau­
rados por aquele fogo que refina, / no qual você tem de
mover-se comedido, como um dançarino". Toda religião
promete a unidade com o cosmos; toda religião descre­
ve o caminho da piedade e da obediência; toda religião
distingue o puro do impuro; e toda religião está repleta
de épocas, lugares e ritos sacros, pelos quais o eterno
pode ser encontrado no tempo e por meio dos quais o
indivíduo pode ser purificado e redimido. Toda religião
envolve o indivíduo nos confortos de uma comunidade
duradoura. E todas essas características da religião são
consequências naturais da condição metafísica que nos
compele - a condição de criaturas que devem prestar
conta daquilo que são e daquilo que fazem e que olham
em tomo de si em busca do lugar onde o perdão e a acei­
tação podem ser conquistados e recebidos.

A religião, portanto, começa na experiência da comuni­


dade e no desejo de nos reconciliar com aqueles que nos
julgam e de cujo amor dependemos. Afirmei que a culpa,
a vergonha e o remorso são traços necessários da condi­
ção humana. Eles são o resíduo de nossos erros e o sinal
de que temos a liberdade de cometê-los. Mas eles nos
dirigem para uma forma superior de reconciliação, uma
reconciliação em que nossa culpa é reconhecida e per­
doada de modo abrangente. Para o ateu, essa aspiração

204 o rosto de Deus


tem de ser suprimida ou voltada para uma direção estoica
- a direção de alguém que deseja aquilo que está fadado
a acontecer e assim obtém outro gênero de unidade entre
si e o mundo. Para o religioso, porém, a redenção é uma
emancipação das coisas deste mundo e uma identifica­
ção com um “EU SOU” transcendental. Para aquele que
confia em Deus, esse é o consolo para os males humanos.
Nossos sofrimentos vêm do ônus de responsabilidade
que assumimos por sermos membros da comunidade
de pessoas. A culpa é o preço de nossa, por assim dizer,
“sujeito-dade”, e a “sujeito-dade" de Deus é sua cura.

Como afirmei, isso não é só um jeito delirante de inter­


pretar os temores e os desejos comuns. Trata-se de uma
tentativa de ver nossa relação com o mundo da maneira
como vemos nossa relação uns com os outros - como
algo que se estende através do tecido de objetos e chega
à coisa intencionada. Sugeri que ampliemos essa maneira
de nos relacionarmos além da sociedade de nossos seme­
lhantes para o todo da natureza, encontrando a subjeti­
vidade como que envolvida no mundo à nossa volta. Se
existe mesmo algo como a presença real de Deus no meio
de nós, é assim que essa presença deve ser entendida:
não como um sistema abstrato de direito, mas como uma
visão subjetiva que compreende o mundo como um todo.
E nessa visão de lugar nenhum somos julgados, assim
como somos julgados por todo “eu” que volta seu rosto
para nós. É vendo o mundo e cada um de nós desse modo
que nos desenvolvemos como seres autoconscientes, e à
medida que nos desenvolvemos também desenvolvemos
à nossa volta as formas exteriores de nossa liberdade
interior - redes sociais, instituições e leis; obras de arte,
construções e paisagens que são o rosto do nosso mundo.

capítulo 6-0 rosto de Deus 205


Mas isso significa que as religiões são inseparáveis das
comunidades dos fiéis. Sem a comunidade, a presen­
ça real do outro nunca é concedida, e sem os ritos de
passagem e sem os rituais de adoração uma comunidade
não pode tomar-se um assentamento, associado à terra
e responsável por mantê-la. Isso leva a um problema
profundo: como pode uma religião defender seu legado
teológico com base na verdade quando também precisa
defendê-lo como posse comum e teste de pertença dos
membros? Não haverá aqui um conflito fundamental
entre as exigências da razão e as exigências da coesão
social? E se não há, será só porque definimos a comuni­
dade de maneira tão ampla que a fé não é mais relevante
ou porque fizemos da fé, como no islã, a definição da
ummah universal, a que todos pertencemos por natureza?

Como afirmei no primeiro capítulo, considero essas


questões sérios obstáculos que devem ser superados por
qualquer um que deseje conciliar a prática da ciência
com as reivindicações da religião. E elas só podem ser
respondidas para satisfazer a fé, ao que me parece, se
considerarmos a experiência da comunidade uma prepa­
ração para a experiência de Deus, e a experiência de Deus
uma revelação concedida em resposta a ela.

A filosofia moral moderna reconhece que a pessoalidade


é uma categoria central e também que a pessoalidade
é uma ideia relacionai: você é uma pessoa na medida
em que pode participar de uma rede de relacionamen­
tos interpessoais. Para ser uma pessoa, portanto, você
precisa ter as capacidades que possibilitam esses rela­
cionamentos - algumas das quais discuti neste livro. As
pessoas estão no escopo da lei moral de Kant: elas devem

206 o rosto de Deus


respeitar uns aos outros como fins em si mesmos. Em
outras palavras, elas deveríam conceder umas às outras
uma esfera de soberania. Dentro da sua esfera de sobe*
rania, aquilo que você faz - e o que acontece com você
- na medida em que depende de escolhas humanas, de*
pende das escolhas que você faz. Isso só pode ser garan-
tido se as pessoas forem protegidas umas das outras por
um muro de direitos. Sem direitos, os indivíduos não são
soberanos, mas súditos; c esses direitos são “naturais” na
medida em que são intrínsecos à condição da pessoalida-
de e não derivados de qualquer convenção ou acordo.

Tudo isso, ao filósofo moderno, parece mero bom senso


e uma apologia da vida em liberdade, que é um dos
mais importantes legados do iluminismo europeu. Po­
rém, ela leva não apenas à privatização da necessidade
religiosa como também a uma visão particularmente in­
cruenta da comunidade - uma visão em que as “concep­
ções do bem”, como Rawls as descreve, são igualmente
removidas das arenas pública e privada.1 0 conceito
liberal abstrato da pessoa como centro da livre escolha,
cuja vontade é soberana e cujos direitos determinam
nossos deveres para com ela, oferece, na melhor das
hipóteses, uma parte de pensamento moral. As pessoas
podem ser prejudicadas de formas não adequadamente
contidas pela ideia de violação de direitos. Elas podem
ser poluídas, profanadas, conspurcadas - e em mui­
tos casos esse desastre assume forma corporal. Se não
enxergamos isso, então não apenas a moralidade sexual
vai nos parecer opaca e inexplicável, como também

1 Ver Uma Teoria da Justiça. São Paulo, Martins Editora, 2008.

capitulo 6-o rosto de Deus 207


perderemos de vista os caminhos pelos quais a vida mo­
ral é vivida por meio do corpo e exibida no rosto.

Muitas de nossas obrigações morais são escolhidas e


fazem parte do domínio público da justiça e do contra­
to. Mas as obrigações de que a comunidade duradoura
depende são destinos. São obrigações de piedade - a
antiga pietas que, para muitos pensadores romanos, se
identificava com o verdadeiro núcleo da prática religiosa
e do modo de pensar religioso e que, ao temperamento
descontraído da época de César Augusto, parecia não
demandar muito mais do que a crença nos deuses ou em
qualquer coisa além da ordem natural.

A piedade é uma postura de submissão e de obediência


para com autoridades que você nunca escolheu. As obri­
gações da piedade, ao contrário das obrigações contra­
tuais, não surgem do consentimento a ser obrigado por
elas. Elas surgem da situação ontológica do indivíduo.
Considere as obrigações filiais. Nào consenti em nascer
dessa mulher nem em ser criado por ela. Não adquiri
obrigações perante ela por meio de um contrato, e nào
há como saber de antemão qual será a qualquer mo­
mento minha obrigação para com ela nem o que pode
vir a cumpri-la. A filosofia confuciana atribui um peso
enorme a obrigações desse tipo - obrigações de “Li” - e
considera a virtude de uma pessoa algo que se mede
inteiramente pela escala da piedade. A capacidade de
reconhecer obrigações não escolhidas e de agir diante
delas indica um caráter mais profundamente imbuído de
sentimentos dignos de confiança do que a capacidade
de fazer tratos e cumpri-los - essa é a ideia. Como diz
Cordélia, quando recebe o injusto pedido para reescrever

208 o rosto de Deus


um laço de piedade como contrato: “Segundo meu laço,
nem mais nem menos"

A piedade nos conecta com o sagrado e com o sacra­


mental. Sentimentos piedosos convocam momentos de
sacrifício, em que as pessoas se devotam, assumindo
obrigações que são vastas demais - ou indeterminadas
demais - para caber num contrato. Esses momentos
estão relacionados ao nascimento, à iniciação, à união
sexual e à morte. São momentos em que a tribo tem
um interesse seu próprio, tão grande quanto o interesse
do indivíduo. Casamentos estão junto de batizados,
bar mitzvahs e funerais, fazendo parte das cerimônias
que os antropólogos, seguindo Van Gennep, agruparam
como “ritos de passagem", momentos, como descreveu
Durkheim, de “efervescência social".2 Em todas as socie­
dades os ritos de passagem têm um caráter religioso. Eles
são episódios em que os mortos e os não nascidos estão
presentes e nos quais os deuses têm profundo interesse,
às vezes comparecendo em pessoa. Nesses momentos, o
tempo para, ou melhor, esses momentos são peculiar­
mente intemporais. A passagem de uma condição a outra
acontece fora do tempo, como se os participantes se ba­
nhassem por um momento na eternidade e retomassem
purificados para a ordem temporal.

Essa maneira de entender os ritos de passagem como


sacramentos não nos deveria surpreender. Afinal, esses
são momentos em que os indivíduos assumem o ônus
total da responsabilidade perante os olhos daqueles que

2 Arnold Van Gennep, Les Rites de Possage. Paris, Émile Nourry, 1909.

capitulo 6-0 rosto de Deus 209


vão chamá-los a prestar conta de quem são e do que
fazem. Há muitas coisas que um psicólogo evolucionista
podería dizer ao explicar por que esses momentos teriam
sido selecionados e protegidos. Mas meu interesse está
na intencionalidade das emoções que nascem dentro
deles. Esses momentos são entendidos por seus partici­
pantes como sagrados, e temos, no conceito do sagrado,
uma pista não apenas daquilo que distingue a condição
humana, como também da necessidade religiosa que a
anima. As explicações evolucionistas de nossos desejos
profundos e de nossas recusas profundas são indiferentes
à sua intencionalidade. Do ponto de vista evolucionista,
é indeterminado se o incesto, por exemplo, deveria ser
fisicamente repulsivo, como as fezes, ou uma violação
da lei moral, como o roubo, ou uma profanação do lar,
como uma grosseria rude. Qualquer uma dessas maneiras
de pensar garantiría que a repulsa ao incesto seja “sele­
cionada”. As explicações evolucionistas, portanto, nada
dirão sobre conceitos como piedade, pureza e o sagrado,
que precisam ser mencionados para definir a intenciona­
lidade especifica do tabu do incesto.

A ideia do sagrado influencia nossa resposta ao compor­


tamento sexual, aos ritos de passagem da comunidade e
aos momentos de consagração em que a profunda sole­
nidade da condição humana é ensaiada e sancionada. Em
vez de sugerir uma genealogia biológica dessa ideia, eu
proporia em seu lugar um fundamento metafísico. A ideia
do sagrado está associada a tempos e a lugares em que a
presença real do sujeito mostra-se vividamente, de modo
que pressentimos um abismo sem fundo na ordem das
coisas, uma queda no transcendental, e nós mesmos nos
equilibrando na margem. É isso que acontece, parece-me,

210 o rosto de Deus


no sexo e na morte - ao menos quando eles estão devi­
damente contidos e focados pelas proibições, a fim de
garantir que seu algo é o sujeito e não o objeto.

Ao ver lugares, construções e artefatos como sagrados,


efetivamente projetamos no mundo material a experiên­
cia que recebemos uns dos outros, quando a encarnação
se toma uma “presença real" e percebemos que o outro
está interditado para nós, além de ser intocável. Por isso,
o desejo sexual nos dá algo do material primário de que
a experiência do sagrado é construída. É por isso que ele
tinha apelo para Wagner, que fez dele o assunto nuclear
de seus dramas musicais.

A morte também nos apresenta o mistério da nossa


encarnação, ainda que o faça de outro modo. Na morte
defrontamo-nos com o corpo destituído da alma, um
objeto sem sujeito, mole, desgovernado e inerme. 0
temor que sentimos diante da morte é uma resposta ao
insondável espetáculo da carne humana sem o eu. De
fato, o corpo morto não é tanto um objeto quanto um
vazio no mundo dos objetos, algo que não deveria estar
ali, já que não deveria estar ali como coisa. A visão é
estranha, unheimlich, e exige ser rearranjada, mas rear-
ranjada como que metafisicamente para curar o vazio.
Por isso, em todas as sociedades os mortos são tratados
com reverência; eles se tornam intocáveis no exato
momento em que o eu se retira deles. De algum modo
aquele corpo ainda pertence à pessoa que desapareceu
e imagino-a reivindicando-o, mas de regiões espectrais,
onde é intocável. Ao encontrar a morte, portanto, nossa
imaginação se volta espontaneamente para o sobre­
natural. O corpo morto, ao tomar-se sagrado, também

capítulo 6-0 rosto de Deus 211


se expõe à profanação - fato tratado pelo drama de
Antígona. Assim como o sexo e a morte nos dão nossas
duas experiências primárias do sagrado, eles também
nos apresentam uma primeira ameaça de profanação.

Essa teoria provisória do sagrado não é uma obra de


antropologia empírica nem um exercício de genealogia,
do tipo apresentado por René Girard em sua explicação
do sacrifício ritual. Segundo Girard, todas as sociedades
estão envolvidas em conflito devido ao “desejo mimético”
de seus membros.3 Essa rivalidade por meio da imitação
ameaça dilacerar a comunidade, prendendo seus mem­
bros em ciclos de vingança. Em toda comunidade, porém,
existem aqueles marcados como o Outro por algum erro
existencial, como o incesto, a realeza, a hubris ou algum
outro sinal similar de “separação” ontológica. Ao sele­
cionar essa pessoa como vitima e condená-la à morte, a
comunidade consegue escapar do ciclo de vinganças. Por
isso sua morte, num ato de sacrifício comum, vai concen­
trar e apaziguar as hostilidades existentes e trazer paz e
reconciliação a seus assassinos - que não serão assassi­
nos sob aspecto nenhum, mas membros de uma comuni­
dade renovada e purificada. Assim, diz Girard, o suspiro
comum de alívio será projetado na vítima morta, que será
considerada uma oferenda, algo de valor infinito, um
precioso redentor que deve receber gratidão e reverência.
Segundo Girard, essa é a emoção primai, de que deriva
nosso senso do sagrado. E subsequentemente esse senso
se espalha, abrangendo todos os rituais e objetos conec­
tados com o ato do sacrifício.

3 A Violência e o Sagrado. Rio de Janeiro, Paz c Terra, 2008.

212 o rosto de Deus


Essa genealogia do sagrado é intrigante, mas, como
tantas genealogias, ela convida a uma óbvia objeção,
porque só explica a aquisição de um senso do sagrado
presumindo que as pessoas já o possuem. 0 temor que a
comunidade original dirige para a vítima sacrificial não
é um temor qualquer. É o temor devido às coisas sagra­
das - coisas mantidas a distância, intocáveis. 0 que ex­
plica essa emoção? Essa é certamente a pergunta que a
genealogia pretende responder e não responde. Por con­
traste, a explicação que dei não é um “mito das origens”.
É filosofia, uma tentativa de derivar a intencionalidade
do temor religioso a priori, a partir da metafísica kantia-
na em que me baseei ao longo de todo meu raciocínio.
Não é, ouso sugerir, o ato do sacrifício que gera o temor
em tomo do bode expiatório. É a morte - e o momento
da morte. Olhamos com temor o corpo humano do qual
a vida fugiu. Ele não é mais uma pessoa, mas os “restos
mortais” de uma pessoa. E esse pensamento nos deixa
repletos do senso do estranho. Podemos sentir relutância
em tocar o corpo morto; nós o vemos de algum modo
não propriamente como parte do nosso mundo, ainda
que ele tenha nos deixado e passado a outra esfera, onde
não pode ser alcançado.

Essa experiência exige de nós uma espécie de reconheci­


mento cerimonial. 0 corpo morto é objeto de rituais e de
rituais de purificação, concebidos não apenas para enviar
seu antigo ocupante na felicidade para o além; afinal,
essas práticas são feitas até por aqueles que não têm
qualquer crença no além, mas a fim de superar o estra­
nhamento, a qualidade sobrenatural, da forma humana
morta. 0 corpo está sendo reclamado para este mundo
pelos rituais que reconhecem que ele está fora dele.

capitulo 6 - o rosto de Deus 213


Os rituais, para dizer de outro jeito, consagram o corpo e
purificam-no de seu miasma. Por isso eles podem ser ma­
téria de um dever sagrado, que eclipsa todos os deveres
rivais, como na peça Antígona, de Sófocles.

Ao lidar com o corpo morto, estamos de algum modo no


horizonte do nosso mundo, em contato direto, mas inefá­
vel, com aquilo que não pertence a ele. Isso, ouso suge­
rir, é a essência do sagrado. E a experiência do sagrado
não precisa de nenhum comentário teológico para nos
invadir. Ela é, de algum modo, uma experiência primiti­
va, básica como a dor, o medo ou a exultação, esperando
talvez um comentário teológico, mas em si mesma a pre­
cipitação inevitável da autoconsciência, que nos compele
a viver para sempre na margem das coisas, presentes no
mundo, mas também apartados dele.

Somente aquilo que é sagrado pode ser profanado. Por


isso, a profanação habitual da morte e do amor sexual
são, ouso sugerir, provas de sua natureza sagrada. E
numa cultura que está em plena fuga do sagrado, a prá­
tica da profanação torna-se uma espécie de necessidade
moral, algo que precisa ser realizado constantemente -
e realizado coletivamente -, a fim de destruir as coisas
que nos estão a julgar. Por toda parte vemos um hábito
incansável de “objetificação”: a exibição de seres huma­
nos e de seus assentamentos como objetos a ser consu­
midos e descartados, a redução do sexo a uma relação
entre partes do corpo e a exibição da morte em imagens
de destruição ensandecida, como naquelas apresenta­
das nos filmes de Quentin Tarantino. A regra do teatro
trágico grego era que a morte deveria acontecer fora do
palco e ser relatada pelo coro ou por um mensageiro.

214 o rosto de Deus


Nào era o excesso de pudor que ditava essa regra (o que
podería ser mais medonho do que a morte de Penteu
tal como o coro a conta nas Bacantes, de Eurípides?). A
regra era ditada pelas profundas emoções a que a morte
convida, a aura sagrada da vitima e o sentido real da
tragédia para nós, os sobreviventes. Na tragédia a morte
é encarada; no cinema violento de hoje, ela é desfigu­
rada. Além disso, adquirímos o hábito de desfigurar
não apenas a forma humana, mas todos os aspectos de
nosso mundo em que reconhecemos sermos chamados a
prestar conta. E a explicação é simples: não acreditamos
mais na intencionalidade de nossas atitudes sacramen­
tais: elas buscam o sagrado, mas não o encontram. Deus
nenhum, acreditamos, abaixa-se para tocar os braços
que se estendem em sua direção, e nossos braços caem,
impotentes, para o lado.

Por isso a questão que sempre retoma ao centro da mi­


nha discussão é a do rosto de Deus. Admitindo a inten­
cionalidade de nossos “anseios imortais", o que podemos
dizer sobre sua epistemologia? Haverá algum jeito de
raciocinar a partir de nossa experiência neste mundo e
concluir que Deus é imanente a ele, ou deve tudo isso
permanecer um “como se", cujas falhas epistemológicas
são suplementadas, se é que chegam a sê-lo, somente
pela fé e nunca pela razão?

Alguns pensadores místicos e religiosos disseram ter tido


experiência direta de Deus, e seus relatos foram genera­
lizados por Rudolf Otto em sua teoria do “numinoso": o
“mysterium tremendum et fascinans” que foge à nossa
capacidade de descrevê-lo e que é identificado por aque­
les que o experimentam como uma intrusão neste mundo

capítulo 6-0 rosto de Deus 215


por meio de uma realidade indescritível além dele.4 Sem
dúvida há experiências que só conseguimos começar a
entender referindo-as ao transcendente. A experiência de
estar “nas mãos de Deus", de estar absolutamente seguro,
que pode vir como uma súbita dádiva ou bênção até no
momento do supremo perigo é bem conhecida na litera­
tura e sem dúvida também o é para muitos leitores deste
livro. A experiência de estar sendo guiado, impedido,
incentivado por uma pessoa que tudo vê: isso também é
familiar. E até para aqueles que não encontraram Deus
desse modo, há outra coisa, mais desoladora: o senso
de culpa e de poluição, que pode vir como uma nuvem
atravessando nossa vida.

Sem dúvida essas experiências existem. Mas pelo que


é transmitido pelo linguajar de Otto, elas não contêm
a prova de sua própria veracidade. Nem podemos ava­
liar, por meio da investigação empírica, como são essas
experiências. Voltando por um instante a idéias expostas
no primeiro capitulo, ciência nenhuma jamais podería
conectar essas experiências com uma realidade trans­
cendental, pela simples razão de que a ciência trata de
relações causais entre objetos. Uma explicação causai do
mysterium tremendum podería conectar a experiência
com distúrbios do sistema digestório ou com alguma per­
turbação neurológica induzida pelo jejum e pela oração.
Porém, descrever a experiência como um encontro com
o transcendente é colocá-la automaticamente fora do
alcance do raciocínio causai.

4 Das Heilige, 1917, traduzido como The Idea ofthe Holy. Oxford, Oxford
University Press, 1923.

216 o rosto de Deus


Mesmo assim, como William James mostrou em The Va-
rieties ofReligious Experience [Variedades da Experiência
Religiosa] - livro derivado de uma das primeiras séries
de palestras Gifford é dessa maneira que a experiên­
cia é compreendida pelos próprios sujeitos. A questão
filosófica não é se conseguimos conectar cada caso de
experiência do “numinoso” com alguma origem transcen­
dente - porque isso é impossível -, mas se somos capa­
zes de apresentar um retrato do mundo que nos permita
interpretar a experiência religiosa desse modo. Se con­
seguirmos fazer isso, então teremos aberto caminho para
a única coisa que pode sustentar a verdade daquilo que
sentimos, a confiança num Deus pessoal que se revela.

Vale a pena deter-se nesse ponto, já que ele parece tão


absolutamente mal entendido nos debates atuais entre
ateístas e teístas. A explicação por causa e efeito en­
volve a descoberta de conexões semelhantes a leis entre
acontecimentos. Os conceitos em cujos termos essas leis
são formuladas são conceitos de objetos - partículas,
campos e forças, situados dentro do continuo espaço-
-tempo. Os sujeitos não têm lugar nessas leis, não
porque eles sejam misteriosos ou sobrenaturais, mas
porque só existem uns para os outros através da rede de
responsabilidade interpessoal. Procure-os no mundo dos
objetos e você não vai encontrá-los. Isso é válido a meu
e a seu respeito; e também é válido para Deus. A física
dá uma explicação completa do mundo dos objetos,
porque é isso que “física” significa. Deus não é uma “hi­
pótese" a ser posta ao lado das constantes fundamentais
e das leis da dinâmica quântica. Procure-o no mundo
dos objetos e você não vai encontrá-lo, assim como não
vai encontrar a liberdade humana numa tomografia do

capitulo 6-0 rosto de Deus 217


cérebro, nem um eu com um microscópio, nem uma
motivação durante o banho.

Essa observação nos leva de volta ao assunto com o qual


comecei: o assunto do ser contingente. A ideia do “ser
como ser”, como Aristóteles e Santo Tomás de Aquino
a apresentam, não goza de muito boa opinião entre os
Filósofos mais recentes. 0 ataque de Kant ao argumento
ontológico, a teoria de Frege do quantificador existen­
cial e a explicação de Quine da relatividade ontológica
alimentam a visão hoje ortodoxa de que o assunto “ser
como ser” não existe. Podemos descrever aquilo que é
como uma girafa ou uma canção pop, mas não aqui­
lo que é pura e simplesmente ser. Qualquer explicação
do ser pressuporia a si mesmo, já que teria de presumir
que compreendemos o que significa atribuir ser a entes
referidos na explicação. Se você não acha que isso é
prova suficiente, passe os olhos nos rios de nonsense que
correm das páginas de Heidegger, de Rahner e de outros
sobre esse assunto. Heidegger tem muito a nos dizer, mas
o que ele tem a dizer só é obscurecido pela invenção do
ser em suas muitas variedades - “ser antes de si mesmo”,
“ser à mão”, “ser para a morte”, etc. -, como se ser fosse
uma espécie de propriedade que você pode possuir num
momento e perder no momento seguinte.

E, contudo, não há, afinal, uma “questão do ser”? Ou


talvez mais de uma questão? 0 Deus dos filósofos entrou
em minha discussão em resposta à questão do ser contin­
gente. “Por que há alguma coisa?” parece uma questão
razoável. Claro que, se interpretarmos a questão como
uma pergunta por uma causa, então ela pode perfeita-
mente não ser razoável. Assim, ela estaria perguntando

218 o rosto de Deus


por uma causa do próprio contínuo espaço-tempo, isso
por uma causa do sistema de causas, que não é um item
dentro do sistema e portanto não é uma causa. Em outras
palavras, essa é uma questão que só pode ser respondida
por uma autocontradição. Mas não é assim que a questão
é entendida por aqueles que tradicionalmente a apresen­
taram. Os teólogos vêm procurando um “fundamento do
ser”, em outras palavras, uma entidade que ofereça uma
razão para o todo das coisas, e não uma causa. Não é a
causalidade, mas a revelação, que nos leva a esse ente -
o tipo de revelação que venho descrevendo neste livro.

0 ser é obrigatoriamente um enigma para nós. Explicar


o ser de uma coisa sempre é presumir o ser de outra:
e ou a regressão é infinita, ou o ser nos apresenta, em
algum lugar, de algum modo, sua própria lógica. Essa
lógica nos levaria para fora do mundo empírico - o
mundo da investigação científica -, de modo a ob­
ter aquilo que Kant diz ser impossível: a perspectiva
transcendental, a visão de lugar nenhum, que abraça o
mundo como um todo. Temos a ideia dessa perspectiva,
porém muitas vezes achamos que conseguimos entender
o ser das coisas - das coisas individuais e da totalidade
das coisas - porque fomos capazes de entender o ser
como algo dado. Meditando dessa maneira sobre o ser,
vislumbramos uma trilha para fora do sistema de cau­
sas, que leva a uma imagem relacionai do mundo - uma
imagem do mundo como algo em relação a algo revela­
do dentro dele.

Santo Tomás de Aquino afirmava que o ser apresenta


três características: verdade, unidade e bondade. Como
essas três características pertencem a tudo que é real, são

capítulo 6 * o rosto de Deus 219


chamadas “transcendentais”.5 Isto é, sua presença nâo
pode ser explicada por alguma condição especifica ou lo­
cal das coisas, mas só em referência ao mundo como um
todo. Talvez exista um quarto transcendental - a beleza.
Mas, de qualquer modo, esses três existem. E compre­
endemos o ser como aquilo que é coextensivo com a
verdade, a unidade e a bondade. Tudo que é - todo ser
- também é verdadeiro, uno e bom. (Santo Tomás adota­
va a visão medieval padrão de que o mal não é ser, mas
privação dele.) Deus quer o ser das coisas - é nisso que
seu amor consiste. Por isso, ele quer verdade, unidade e
bondade em todas as suas diversas realizações.

A um leitor moderno, muitas vezes há a impressão de que


tudo isso fica dando voltas, usando uma abstração para
tomar o lugar de outra até que voltemos ao lugar de onde
saimos. Porém, uma leitura simpática de Santo Tomás su­
geriría, antes, que ele está mostrando a conexão profunda
entre o mundo das contingências e o mundo dos valores.
0 ser nos apresenta indivíduos unificados, e, portanto,
a plenitude; ele nos apresenta a verdade, e, portanto, o
conhecimento; e ele nos apresenta a bondade, e, portanto,
a finalidade ou o propósito do mundo. Esses são traços a
priori do ser e maneiras como o ser dá-se a conhecer a nós.

Não foram apenas os pensadores cristãos que buscaram


uma chave para o mistério do ser. Os hindus acreditam
que, caso a caso, podemos encontrar nosso caminho
para a subjetividade dos objetos, a fim de compreender
cada ser de dentro, como manifestação do atman, o “eu

5 Questões Disputadas sobre a Verdade, q 1 a 1.

220 o rosto de Deus


do mundo". Aquilo que parecia arbitrário é em vez disso
referido ao ser de que tudo depende. 0 ser entào faz
sentido para nós não como mero ser, nem como user ali",
mas como “ser dado”. Recebemos o mundo como dádiva,
relacionando-o à subjetividade transcendental, o “eu"
primordial, em que cada coisa ocorre como pensamento
livre. Parece-me que essa é a mensagem da religião em
todas as suas formas: e nós a entendemos encontrando o
espirito de doação dentro de nós.

Nas religiões que conhecemos, a ideia de graça tem


importância fundamental. 0 termo gratia em latim tra­
duz diversas palavras do hebraico, do grego, do árabe e
do sânscrito, mas todos os nossos textos sacros parecem
apontar na mesma direção, afirmando que a relação de
Deus com o mundo como um todo, e com cada um de nós
em particular, é de doação. A súplica da graça de Deus é
o traço central da liturgia anglicana. A grande prece da
Igreja Católica, baseada num poema do Novo Testamen­
to, cumprimenta a Virgem Maria com as palavras “Ave
Maria, cheia de graça, bendita sois vós entre as mulheres,
e bendito é o fruto do vosso ventre, Jesus”. 0 Corão inicia
com o verso que forma um refrão na vida de todos os
muçulmanos: bism illah il-raHmân il-raHim, em nome de
Deus, cheio de graça, cheio de graciosidade, na tradução
de Mohamed Asad, sendo que a raiz rHm é compartilhada
com o hebraico e usada muitas vezes no Antigo Testa­
mento para denotar a preocupação de Deus conosco, seu
reconhecimento de nossa fraqueza e sua abundância de
dádivas. A ideia de que o mundo é sustentado pela dádiva
é uma segunda natureza para as pessoas religiosas, que
acreditam que elas também deveríam ser doadoras se espe­
ram receber o dom de que dependem para sua salvação.

capitulo 6-o rosto de Deus 221


Como afirmei no Capitulo IV, ágape não nos eleva para
Deus, mas chega até nós por Deus. É recebido como dom
e então distribuido a cada um de nós e a nossos próximos
como outra dádiva. Por isso C. S. Lewis, em Os Quatro
Amores, chamou-o de “amor-dádiva”. Ele enche o mun­
do com o espírito do dom, mas não um dom pessoal,
exclusivo ou ciumento, como o amor erótico. Trata-se
de um dom que não pede nada; ágape busca o interesse
do outro e não o do eu. Mefistófeles descreve-se para
Fausto como der Geist der stets vemeint, o espírito que
sempre nega. Ágape é exatamente o oposto - o espírito
que sempre afirma, seguindo o caminho do dom e do
sacrifício. Por meio de ágape superamos a culpa de nossa
própria existência; reconhecemos que a contingência
traz o sofrimento e que o sofrimento é um chamado ao
sacrifício. Essa transformação espiritual, por meio da
qual aceitamos tanto o sofrimento quanto o sacrifício - e
neles encontramos a ordem moral que dá sentido a nossa
vida - é corretamente descrita como “redenção”.

Certamente há uma grande diferença, que todos com­


preendemos, entre ver algo como simplesmente ali (para
quem quiser pegar) e ver esse algo como uma dádiva.
Somente aquilo que é possuído pode ser dado, e os dons,
portanto, vêm embrulhados na perspectiva do doador,
que os reivindicou como “meus” e também abdicou dessa
reivindicação em prol do outro. E aquele que recebe algo
como um dom recebe essa dádiva como sinal da preocu­
pação do outro com ele; a gratidão não é apenas nor­
mal - ela é o reconhecimento de que a coisa realmente
foi dada e não é o primeiro passo de uma barganha. Os
dons envolvem uma reflexão consciente sobre o eu e o
outro, sobre direitos e deveres, sobre a propriedade e sua

222 o rosto de Deus


transcendência. Por isso eles só podem ser oferecidos de
eu a eu, e os dons sâo atos de reconhecimento entre pes­
soas, em que cada uma reconhece a liberdade da outra.
Aquilo que parece um dom em outras espécies é outra
coisa; por exemplo, uma retirada instintiva em favor de
um membro do bando. Como afirmei antes, os psicólogos
evolutivos que descrevem o “altruísmo” geneticamente
motivado dos animais usando o linguajar do autossacrifí-
cio humano negligenciam aquilo que é mais distintivo do
caso humano, que é a decisão de se sacrificar no interesse
de outrem. Anteriormente observei que nâo faz sentido
falar do eu como um objeto, assim como falar do mesmo
modo de um interesse. Talvez valha a pena observar que
só um eu pode compreender um interesse e que fazer
sacrifícios no interesse alheio é caminhar com Deus.

A mentalidade religiosa envolve dois “momentos”, como


talvez dissesse Hegel. Há o momento da comunhão e
o momento da dádiva. A pessoa religiosa é aquela que
experimenta a profunda necessidade de dar graças; e ela
experimenta essa necessidade como impulso comunitário,
algo que compartilha e que a une a uma comunidade,
ainda que seja apenas uma pretensa comunidade, uma
“comunhão dos santos” cuja “Cidade Santa” ainda está
por se realizar na Terra. Sua necessidade de dar graças
não é circunstancial, mas metafísica. Ela está enraiza­
da na experiência do próprio ser, em sua maneira de
compreender o que é ser. 0 ser, para a pessoa religiosa, é
um dom, não um fato. É entendendo isso que superamos
nossa solidão metafísica, e entender isso pode demandar
privações e sofrimentos, por meio dos quais descartamos
o lixo de nossas próprias distrações. Por isso, o mundo
e os objetos contidos nele aparecem para a consciência

capitulo 6-0 rosto de Deus 223


religiosa como sinais de outra perspectiva, a perspectiva
que "deu essas coisas a mim" Essa perspectiva, que os
hindus chamam de Brama, está ocultada de nós da mes­
ma maneira que todo outro “eu” está oculto. Mas, com
aqueles outros "eus", ela pode aparecer em nosso mundo
como uma presença real. A reunião da comunidade no
momento de ação de graças prepara o caminho para isso.

As ocasiões mais importantes para ações de graças co­


munitárias são as cerimônias em que a pertença social
é renovada. Para os participantes, o rito de passagem é
uma experiência acentuada do ser em que o aspecto do
dom é enfatizado e solenizado. 0 nascimento é o dom da
vida nova; o rito de iniciação é um dom do mundo e de
seu conhecimento para o jovem e do jovem para a tribo;
o funeral é um culto de agradecimento por uma vida e
um luto ritual por alguém cuja vida é nele reapresentada
em retrospecto como um doar-se, e seu caráter anterior
de “tomar" é inteiramente extirpado.

0 dom está também no coração da religião sacrificial.


A oferenda no altar é um dom para o deus, que a devol­
ve ele mesmo como dom para seus adoradores. Há um
misterioso sentimento de unidade experienciado pelos
adoradores nesse momento - o momento do sacramento,
quando aquilo que é dado também é recebido, mas re­
cebido de outra forma. Todos os momentos sagrados são
momentos de dom, de dom revelado como o jeito que as
coisas são. A distintividade da Eucaristia cristã é que ela
toma isso inteiramente específico. A Eucaristia comemo­
ra o supremo dom de Deus, que é o dom de si mesmo,
sua própria descida ao mundo de sofrimento e de culpa,
a fim de mostrar por seu exemplo que há uma saída para

224 o rosto de Deus


o conflito e para o ressentimento, um modo de restaurar,
por meio da graça, o caráter de doação do mundo.

Para mim, a visão cristã da questão é aquela que ofere­


ce a maior intuição de nossa situação. 0 Deus cristão é
ágape e, mesmo num mundo que tomou o caminho da
profanação, ele pode mostrar-se nos atos sacrificiais de
pessoas individuais, quando elas põem de lado o chama­
do do interesse próprio e agem no interesse alheio. Atos
de autossacrificio aparecem no mundo dos objetos e das
causas como revelações: o eu que se dá abre uma janela
na ordem das coisas pela qual vislumbramos a luz além -
o EU SOU que falou a Moisés.

Deus revelou-se naquela ocasião como nós nos revela­


mos - vindo ao limiar de si mesmo. Ele se colocou diante
de Moisés com um ponto de vista, uma perspectiva em
primeira pessoa, o “eu sou” transcendental que não pode
ser conhecido como objeto, mas apenas como sujeito.
Essa perspectiva pode tornar-se uma presença real entre
nós somente se puder ser revelada no mundo dos objetos,
assim com o sujeito humano é revelado no rosto humano.
Mas como isso pode acontecer?

0 cristianismo tem uma resposta a essa pergunta: a


encarnação. Deus, na pessoa de Cristo, está presente no
meio de nós. É com base na vida de Cristo que podemos
entender a verdadeira natureza da bondade de Deus. Os
cristãos acreditam que, ao ser crucificado, Cristo tomou
para si os sofrimentos do mundo - em outras palavras,
ele tirou o sofrimento da negatividade em que tendemos
a vê-lo e mostrou-o como atributo de Deus, algo que
não é, portanto, alheio ao mundo da criação, mas parte

capitulo 6-o rosto de Deus 225


integral dele. Por meio do sofrimento Cristo nos mostrou
que nosso próprio sofrimento vale a pena e que é a oca­
sião por meio da qual crescemos moralmente, imitando-o.
Ao disponibilizar-se para o sofrimento, por assim dizer,
Deus podia fazer um dom de si mesmo em Cristo, um
sacrifício que nos aponta a salvação, mostrando que o
sacrifício é aquilo em que consiste a vida na Terra.6

A força dessa ideia é evidente. Ela faz que a presença real de


Deus seja fácil de entender, porque ela se toma tão somente
um caso especial da presença real do sujeito humano (uma
experiência que domina de modo independente a vida
dos seres humanos). Mas ela nos deixa com um conceito
residual - o da encarnação tão enigmático e misterioso
quanto aquele que ela pretendia explicar: um conceito que,
outra vez, está inexplicavelmente suspenso entre a causa­
lidade e a revelação. Então, é só até aqui que conseguimos
chegar. Talvez, do ponto de vista metafísico. Mas do ponto
de vista moral, há algumas idéias a acrescentar, idéias tão
relevantes para um ateu quanto para um crente. Aliás, foi
um não crente que lhes deu sua mais profunda expressão.

Quando Wagner começou a escrever 0 Anel do Nibelun-


go, ele não era cristão, mas um agnóstico fortemente in­
fluenciado pela explicação projecionista de Feuerbach da
religião e, em particular, do cristianismo.7 Mas ele fez a si

6 Ver a esclarecedora explicação de Max Scheler, "The Meaning of Suffering".


In: On Feeling, Knowing and Valuing. Trad. Harold J. Bershady. Chicago,
University of Chicago Press, 1992.
7 A alegoria de Feuerbach que inspirou o poema original de Wagner e que
fornece uma camada de significado num palimpsesto de muitas camadas foi
explicada com grande autoridade por Paul Heise. Ver sua magistral análise
do Ane/em www.wagnerheim.com. Acesso em: 4 nov. 2015.

226 o rosto de Deus


mesmo uma pergunta interessante, que Feuerbach tinha
ignorado: suponha que os deuses sejam nossa invenção,
Feitos à nossa imagem, infundidos com as nossas próprias
paixões, como os deuses de Homero, mas com o atributo
adicional de manter a lei e a ordem entre os homens. Do
que esses deuses precisariam para ser verdadeiros objetos
de amor? Wagner retrata a tentativa de Wotan, rei dos
deuses e senhor do mundo, de obter aquela serenidade
que vem do controle absoluto do universo, um universo
que antecedeu sua ascensão ao poder e que obedeceu a
suas próprias leis inescrutáveis e primordiais. Ele mostra
que Wotan não pode fazer isso sem desafiar a lei moral
e que seu estatuto de guardião da lei e da ordem é uma
fraude. Ele não é mau, mas carece de alguma coisa que é
necessária para se obter a verdadeira virtude. Enquanto
isso, em sua tentativa de manter o poder que adquiriu in­
justamente, ele cria uma raça de seres terrenos que terão
a liberdade que ele não mais possui e que guiados, mas
não compelidos por ele, desfarão o mal que ele desenca­
deou ao querer ser o regente supremo do mundo.

0 mundo humano que ele criou é retratado em A Valquíria


como um mundo de conflito e de ressentimento. Contudo,
ele contém dois preciosos atributos que Wotan mesmo
não possui, ainda que ele tenha um verniz polido que faz
as vezes daqueles atributos: os atributos de liberdade e
de amor. A liberdade do ser humano, como Siegmund e
Sieglinde exemplificam, é a liberdade de desafiar as leis, o
destino, a própria morte, no interesse do outro; a liberdade
de fazer um dom de si mesmo. E essa liberdade só é possí­
vel onde também há sofrimento, porque de outro modo o
dom não tem custo e não é um sacrifício genuíno. 0 eu e o
interesse tomam-se um no momento do sacrifício.

capitulo 6-0 rosto de Deus 227


No segundo ato de A Valquíria defrontamo-nos com esse
processo de dom sacrificial desenrolando-se no perso­
nagem de Siegmund, e no grande diálogo esticométrico
entre Siegmund e Brünnhilde vemos um mortal livre,
aceitando a morte e o sofrimento por amor de outro, en­
frentando um imortal de coração frio e despertando nele
o sentido daquilo que lhe falta. As questões de Siegmund
são formuladas assim (Exemplo 1):

Exemplo 1

A melodia ascende por uma oitava, à medida que o baixo


descende na mesma medida, levando consigo harmonias
suspensas que se movem para uma sétima dominante,
deixada sem resolução, expectante, peticionante. Essa
epítome de nossas preces mortais só recebe reformulações
implacáveis e inflexíveis do decreto divino. Quando vem
uma resposta, é Siegmund quem a oferece:

So jung und schôn erschimmerst du mir,


Doch wie kalt und hart erkennt dich
mein Herz!

Exemplo 2

228 o rosto de Deus


E a melodia vê-se completada num gesto de desafio
(o motivo de quatro notas em mi, fá sustenido e sol,
Exemplo 2), que dai por diante passa a dominar a linha
musical. A necessidade de Siegmund adentra a alma
de Brünnhilde e sua fachada de implacabilidade divina
é rompida. Ele a força a prestar conta de si mesma e,
ao fazê-lo, ela o enfrenta de eu para eu e assim cai no
mundo humano de amor e de sofrimento. À medida que
vai desabando sua fachada divina, aparece um rosto, um
rosto pronto para o amor e destinado ao sacrifício. No
terceiro ato, Brünnhilde prepara-se para as provações da
mortalidade. Ela lança sua sorte junto do mundo do amor
humano. Mas ela sofrerá como sofrem os humanos, sen­
do usada e descartada pela pessoa a quem ela tinha feito
uma dádiva de seu eu inteiro.

0 terceiro ato de A Valquíria é uma profunda reflexão


filosófica sobre a ideia da encarnação, sugerindo que
as coisas que verdadeiramente valorizamos - e que
são para nós a avenida para o sentido - estão intima­
mente relacionadas com o sofrimento e com a capa­
cidade - definidora de nossa humanidade - de aceitar
o sofrimento em nome do amor. As obras posteriores
de Wagner - sobretudo Tris tão e Isolda e Parsifal -
aprofundam esse tema. Mas a conclusão do Anel já
depende da ideia de que os deuses só obtêm a redenção
aceitando a condição da mortalidade, já que só isso os
toma capazes de sacrifício e do amor de que o sacrifí­
cio é prova. Ao aceitar isso, também eles aprendem a
sofrer. E por meio desse sofrimento um deus adquire a
capacidade de fazer uma doação de si mesmo, renun­
ciando à vida (e, portanto, à imortalidade).

capítulo 6-o rosto de Deus 229


0 Anel do Nibelungo pode ser entendido como uma ten­
tativa de mostrar, valendo-se de meios antes artísticos do
que intelectuais, a profunda conexão entre a liberdade e
o sofrimento. É nos termos dessa conexão que compreen­
demos a forma mais elevada de amor - o amor em que a
doação é total. Se Deus fruirá esse amor - e a redenção
que lhe é inata - a implicação é que ele também deve
encamar-se em forma mortal. 0 amor pertence à con­
dição humana, e Deus toma-se um completo objeto de
amor aceitando essa condição como sua.

Ainda que, como observei, a trama de Wagner tenha


sido concebida contra o plano de fundo da explicação
projecionista de Feuerbach da crença religiosa, ela
contém uma moral importante também para os crentes.
Ela tenta mostrar, no nível emocional mais profundo,
que tudo aquilo que verdadeiramente estimamos, in­
clusive o amor, depende no fim das contas do sofri­
mento e de nossa liberdade de aceitar o sofrimento no
interesse do outro. Essa ideia está contida no motivo
(Exemplo 3) que ocorre duas vezes, uma no agradeci­
mento de Sieglinde pelo sacrifício que Brünnhilde mal
conjecturou, e outra no fim do ciclo inteiro, quando
as águas do Reno cobrem os destroços e a natureza é
restaurada. 0 sofrimento é disponibilizado para Deus
mesmo pelo ato da encarnação, e esse é o modo -
talvez o único - como podemos mostrar que ele nos
ama com um amor humanamente inteligível, sofrendo
em nosso interesse. Como incorporar essa ideia numa
teologia coerente da criação é evidentemente uma
questão difícil, mas em si mesma a ideia é perfeita-
mente coerente e fundamental para o entendimento
cristão de nossa relação com Deus.

230 o rosto de Deus


Soprano

4*sr

•J

Exemplo 3

Então o que é e onde está o rosto de Deus para aquele


que acredita em sua presença real no meio de nós? A
resposta é que encontramos essa presença por toda parte,
em tudo aquilo que sofre e que renuncia pelo interesse
alheio. As coisas com rosto são iluminadas pela subjeti­
vidade que brilha nelas e que espalha em sua volta um
halo de proibições. Quando alguém entra no momento
do sacrifício, jogando fora aquilo que é mais precioso,
inclusive a própria vida, no interesse do outro, então
encontramos o momento supremo de doação. Nesse ato,
o eu aparece completamente. Ele também é uma revela­
ção. No sacrifício e na renúncia, o eu faz uma doação do
seu próprio ser e assim nos mostra que ser é um dom. No
momento do sacrifício, as pessoas ficam face a face com
Deus, que também está presente naqueles lugares onde a
tristeza deixou sua marca ou "a prece foi válida".

Não devíamos ficar surpresos, portanto, se Deus hoje é


encontrado tão raramente. A cultura de consumo não
tem sacrifícios: o entretenimento fácil nos distrai de
nossa solidão metafísica. A reordenação do mundo como
objeto de apetite obscurece seu sentido enquanto dom.
A desfiguração de eros e a perda dos ritos de passagem
eliminam a velha concepção da vida humana como aven­
tura dentro da comunidade e como oferenda a outrem.
É inevitável, portanto, que momentos de temor sagrado
sejam raros entre nós. E certamente foi isso, e não os

capitulo 6-0 rosto de Deus 231


argumentos dos ateus, que levou ao declínio da religião.
Nosso mundo continha muitas aberturas para o transcen­
dente, mas elas foram tapadas pelo lixo. Você pode achar
que isso não importa, que a humanidade já teve a sua
dose de mistérios sagrados e de seus conhecidos riscos.
Mas acho que nenhum de nós está tranquilo com o resul­
tado. Nossa vida desencantada é, para usar a expressão
de Sócrates, “uma vida inadequada a um ser humano". Ao
refazer os seres humanos e seu hábitat como objetos a ser
consumidos em vez de sujeitos a reverenciar, convidamos
à degradação de ambos. As pessoas pós-modemas ne­
garão que sua inquietação com essas coisas tenham um
sentido religioso. Mas espero que minha discussão tenha
contribuído um pouco para mostrar que estão erradas.

232 o rosto de Deus


Figura 1: The Erpression ofthe Emotions in Man and Animais
[A Expressão das Emoções no Homem e nos Animais]: três
ilustrações de agressão e de raiva por Charles Darwin, 1872.
Reproduzidas com a permissão de John van Wyhe ed. 2002.
The Complete Works of Charles Darwin Online. (http://darwin-
-online.org.uk/)

Figura 2: Autorretrato, de Rembrandt van Rijn (° akg-images /


Eric Lessing)

Figura 3: A Mãe do Artista, de Rembrandt van Rijn, Coleção


Privada (® The Bridgeman Art Library)

Figura 4: Eros e Psique, de Antonio Canova (° Peter Barritt /


Alamy)

Figura 5: Mulher com Máscara, de Lorenzo Lippi (® The Art


Gallery Collection / Alamy)

Figura 6: Susana e os Anciãos, de Rembrandt van Rijn, Haia,


Maurishuis (° 2011. Photo Scala, Florença)

Figura 7: Bandido Despindo uma Mulher, de Francisco Goya


(® akg-images / Album / Oronoz)

Figura 8: Expulsão do Paraíso, de Masaccio, Florença, Santa Maria


dei Carmine. (€ 2011. Photo Scala, Florença / Fondo Edifici di
Culto - min. delTIntemo)

créditos das imagens 233


Figura 9: Detalhe de Anjo Sorridente, Catedral de Reims
(® JTB Photo Communications, Inc. / Alamy)

Figura 10: Detalhe do Êxtase de Santa Teresa, de Gian Lorenzo


Bemini (® Bettmann / CORBIS)

Figura 11: Detalhe de 0 Nascimento de Vênus, de Sandro Botticelli


(® Classic Image / Alamy)

Figura 12: Detalhe de O Nascimento de Vênus, de William


Bouguereau (1825-1905) Paris, Musée d’Orsay. Óleo sobre tela
(® 2011. Photo Scala, Florença)

Figura 13: Detalhe do Federal Hall em Nova York (• Craig Lovell /


Eagle Visions Photography / Alamy)

Figura 14: Uma rua em Whitby, Yorkshire (® Geoff Holdsworth /


Alamy)

Figura 15: Sunset Boulevard, Los Angeles (® Nik Wheeler / Alamy)

Figura 16: Canal de Veneza (® Freefoto.com)

Figura 17: Detalhe de Caminhante sobre o Mar de Névoa, de


Caspar David Friedrich (1774-1840): c. 1817. Hamburgo,
Hamburger Kunsthalle. Óleo sobre tela, 94,8 x 74,8 cm. Inv.:
5161. Empréstimo permanente da Fundação para a Promoção
das Coleções de Arte de Hamburgo. Foto: Elke Walford. ® 2011.
Photo Scala, Florence / BPK, Bildagentur für Kunst, Kultur und
Geschichte, Berlim

Figura 18: Praça Uniri, Bucareste (® Gianni Muratore / Alamy)

Figura 19: A Adoração do Bezerro de Ouro, de Nicolas Poussin


1633-4. Londres, National Galleiy. Óleo sobre tela, 153,4 x 211,8
cm. Comprado com uma contribuição de The Art Fund, 1945.
Acc.n.: 3559 (® 2011. Copyright The National Galleiy, Londres /
Scala, Florença)

Figura 20: Edifício Cooper Union, de Morphosis, Praça Cooper,


Nova York

234 o rosto de Deus


«a*. „
a<a''w

Absurdo, 34 cultura do, 18 Comer, 115-16


Ação, intencionalidade Ateísta, 17-22 “Como é?“, 54
da, 62 Autoconhecimento, 65 Comunhão, 41-42, 223
Ágape, 105. 138-40, 140- Autoconsdênda, 88 concdto cristão de, 41
44. 222 Autonegação, disciplina sentido da, 41
Agentes racionais, 61-62, da. 41 Concinnitas, 161, 170
69-70 Autonealização, 93 Consagração, 191
Akfasia, 61 culto da, 94 Consdênda, 88-89
Alma, vergonha da, 135 Bar Mitzvah, 209 Corporificação, 121, 167
Altruísmo, 47-53, 97-98, Batalha de Maldon, 48 Corpo, vergonha do,
222-23 Batizados, 209 133-35
conceito de, 47 Bdjo, 9, 64. 117-20, 144 Criadonista, 86
concepção minimalista Beleza, 172, 199 Cristianismo, 28, 34, 37,
do, 47 como quarto 41, 142-43, 186, 188,
teoria evolucionista transcendental, 220 220, 230
do, 97 papel da, 175 Cultura
teorias do, 52 Bizãndo, 186 de consumo, 231
Ambientalismo, 165, 181 Bode expiatório, 213 popular, 176
como reação à Bucareste, 184-85 Declínio religioso, 154, 232
rrvoluçflo industrial, Burka, sentido da, 143 Desejo, 131
165 Caçadorcs-coletores, 45 coletivo, 131
Amizade. 175 Caritus, 105 dilema do, 130
Amor Carnaval, 126 mimético, 212
cortês, 131 Casamento, 142-43, 153, sexual, 133, 135
cristão, 138 209 Desencanto, 49
erótico, 138, 222 Causalidade, 24,65, 69, Desigualdade de Bdl, 25n
noção tomista do, 143 96, 219, 226 Deus absconditus, 34, 125
platônico, 140 cadda de, 26 Deus,
Animais, 88,97. 106-11, teoria aristotélica da, 27 a questão da presença
116, 121, 135, 148 Cegueira para aspectos, de, 71
Animismo, 170 110-11 bondade de, 225
Ansiedade da própria Cérebro guardado num como pessoa, 78
existência. 34 tond. 74-75 cristão, 225
Antigo Testamento, Ceticismo, 71, 154, 169 descrença em, 17
narrativa do, 153 Cidade Santa, 159, 223 distandar-se de, 17
Apercepção, unidade Ciência, 19-26, 36-37. dos filósofos, 34-35
transcendental da. 57 82-84, 98-99, 216 experiênda de. 206
Arquitetura, 161-99 como conhedmento imanente, 76
Assentamento, 164 pardal, 19 presença no mundo, 71,
Ateísmo, 18, 204, 232 Ciumento, 139 79, 201

índice analítico 235


presença real de, 226 Gótico, 192 Matemática, 39, 50-51
questão da presença Graça, 221 Mecânica quãntica, 25
de, 79 ideia de, 221 Meio ambiente, 164, 168,
rosto de, 42, 105, 215, Heresia, 37 175
231 conceito de, 37 Melodia, 100-01
transcendência de, 39 Hermenêutica, 99n conceito de, 101
transcendente, 79 Hipótese de Gaia, 165-66 Memória, 158
Dever. 46,48 História de 0, A, 145 Metafísica, 20, 201
Dialética hegellana, 203 Holocausto, 149 medieval, 31
Direitos, 207 Humanidades, 102 Milagres, 85
Dom, 221-32 Humano universal, 204 Modernidade e
Econômico, 168-69, 175 Iconodastia, 164, 186 secularização, 193
Educação estética, 179 Idealismo transcendental, Modernismo, 190
Emergência, 11.44,46,155 Kant, 9, 23-24, 65 na arquitetura, 172
Encarnação, 225-26, Identidade, 81-82,87-88, Moralidade, 90, 207
229-30 91, 128 Morcegos-vampiro, 49
Enfear,184 pessoal, 87,91,92 Morte, 210-12
Enrubescimentos, 123-24 Idolatria, 185-91 Movimento romântico,
Entóusserung (alienação), Ouminismo, 38, 179, 207 179, 181
94, 202 europeu, 207 Multiverso, 26
Epistemologia, 38 Imitação, 212 Mundo
Eros, 119-20, 133-34, Incesto, 210 como dádiva, 221
138-40, 142-44, 146, Indicadores, 69, 54, 81-82 das contingências, 220
151-52, 231 Individualidade, 92, 128, dos valores, 220
Erotismo, 135 130, 135 Narciso, 111
desfiguração do, 152 Intenção, 56, 60, 76, 92, National Trust, 182
Escolha estética, 177-78 108-09, 161 Naturalismo, 39,45
Estoicismo, 205 Intendonalidade, 50, 102, Neurociência, 66-70
Estupro, 131-33 120 moderna, 74
“Eu". 53-55, 63-66, 78- das emoções, 210 Neurofilosofia, 72
94,98 individualizante, 130 Ntilismo, 167
Eu, versqfeito interpessoal, 137 saída do, 167
Eucaristia, 41, 80, 224-25 Interdividualidade, 67, 70, Novo urbanismo. 190
cristã, 41 129, 206 Numinoso, 215
cristã, sentido da, 41 Interesse estético, 172-99 experiência do, 217
Exilio babilônico, 78 Intolerância, 37 Objetificação, 214
Existencialismo, 34 Islã, 30-33, 36, 80, 81, Ordem subentendida, 193
Experiência religiosa, 185-86, 206, 221 Ornamentos, 162-63,
215-16 Jardins, 182-83 193-94
Falácia Justiça, 208 Paradoxo, 27,99, 184
mereológica, 68 Kalam, 28 Peregrinação, 155
patética, 169 Lágrimas, 122 PersoHa, conceito de. 43
Fast-food, 176-77 Liberalismo, 207 Pessoa
Fator causai agente, 87 Liberdade, 76 conceito de John Locke,
Fé, 36, 39 conceito de, 101 59
Filosofia confiiciana, 208 de desafiar as leis, 227 conceito liberal abstrato
Fisica newtoniana, 24 de errar, 204 da. 207
Formas da arquitetura, e causalidade. 69 emergência da. 95
161-63, 191, 192 positiva, 94 etimologia de, 126
Fragilidade da vontade, 61 Linguagem, origem da, 52 pós-modema, 232
Freudismo, 37 Linguqjar, 49 rdadonalidade da, 67
Função, 84 Livre-arbitrio, 64, 66 santidade da. 160
Gene egoísta, 26 negação do, 68 Pessoalidade, 206-07
Gêneros Los Angeles, 170-71 Pessoas, 43. 46, 66-67,
funcionais, 100 Lucréda e Tarquinio, 120 73-75, 85-97, 101-02,
naturais, 73, 87, 97, Marxismo, 37 105-
150, 206-07
99, 102 Máscara, 125-27 Pichação, 176
Genoddio, 149 arte coletiva da, 127 Piedade, 208-09
no século XX, 149 função da, 127 Pintura de paisagem,
Gosto, 177 veneziana, 127 180-81

236 o rosto de Deus


Pleistoceno e a explicação metafísica, 231
emergência do humano, evolucionista da, 40 metafísica do sqjeito,
44 mensagem da, 221 204
Pornografia, 144-45, 150 monoteísta, 20 Solipsismo, 179
“Por quê?", 27-28, 32-33, sacrifidal, 224 Sopa primordial, teoria
57-58, 70-71, 99 Renascimento gótico, 192 da. 26
da causa, 71 Responsabilidade, 50, 59, Subjetividade
da ciência, 99 61,96,204-05 transcendental, 221
da razão, 71,99 Ressentimento, 227 Sorrir, 117-18, 122-23
do entendimento, 99 Revolução científica Sufismo, 41,63, 203
Pós-modembmo, 190, 232 do século XVO, 24 Sqjdto, 54-57, 65-67, 74-
na arquitetura, 196 e teologia, 24 75, 82-83, Cap. 4
Prédios projetados como Riso, 122 autoconsdente, 55
engenhoca, 196-97 Rito de passagem, 83, Tawhid, 30, 81, 83
Presença de Deus, 79-85, 121-24, 209-10 Teatro nõ, 125, 153, 160
Cap. 5, Cap. 6 perda do, 231 Templo, 156-57
Presença real, 79 Ritual, 212, 224 Teologia
Prever e decidir, 60-61 de iniciação, 224 da criação, 230
Primeira Guerra Mundial, de purificação, 213 medieval, 29
191 funerário, 154 tarefa da, 29
Primeira pessoa, 53-57, Rival, 69, 139 transcendental, 41
7a 88-89, 124, 167 Rivalidade, 212 verdade da, 199
Primeiro Motor Rosto Teoria
aristotélico, 29 conceito de, 109 da adaptação, 40,44-
Prindpio antrópico fraco, fenomenologia do, 124 49,66
23 na pornografia, 144 da evolução, 52
Probabilidade, 23 Ruínas, 154-55 das cordas, 25
Propriedade, 182 Sacramental, 209 do Big Bang, 19-21, 27
Prosopagnosia. 1)0 Sacramentos, 41, 142-43, dos jogos, 47
Protestantismo, 188 160, 209, 224 dos Jogos, linguagem
Pseudodência, 37 Sacrifício. 48,98, 212-13, da, 47
Psicologia 222, 226-27, 231 Termópilas, 48
evolucionista, 40, 44- conceito de, 98 Tipos arquitetônicos
49, 97-98, 210 honroso, 48 romanos, 192
folclórica, 69-70 momento do, 231 Tragédia, 125, 215
Pureza, 63 ritual, 212 “Transcendentais”, 220
Queda do homem, 168, Sagrado, 46, 50, 153-58, Trindade, 43n
203 209- 15 Unheimlich, 211
Quioto, 175 conceito do, 46, 210 Unidade transcendental da
Raciocínio instrumental, e autoconsciência, 214 apercepção, 57, 82-83
168 emergênda do, 212 Utilitarismo, 9a 175
Razões e causas, 22-27 essência do, 214 Valor estético, 174-76
Reciprocidade, 35 experiênda do, 169, 211 instrumental, 176
de altruísmo, 46 Santidade da pessoa, 160 intrínseco, 168, 174
Redudonismo biológico, Santuário, 158 Valor utilitário, 175
103 Segunda pessoa. 58-59 Vergonha, 90-91
Reificação, 168 Sdbstàcstfmmuitp, 202 Vingança, 212
Relações Eu-Você, 59, 72, Sentido, 107-08 ciclos de, 212
93, 108, 120, 178 Ser, 218-9, 220-21 Violência religiosa, 40
Relatividade contingente, 20-21, Visão de mundo
ontológica, 218 29-34 cientifica. 43
teoria geral da, 25 impossívd, 29 religiosa, 40
Religião, 38-40 mistério do, 220 teísta, 35
características da, 204 necessário, 30 Vítima, aura sagrada da,
como experiênda da questão do, 218 215
comunidade. 204 Sexo, 102, 119-20, 130- Voyeurismo, 137
declínio da, 232 32, 135-37, 145, 148, Xintoísmo, 153
disposição para a, 46 210- 11
e ciência, 206 Shekhinah, 79
e comunidade, 36 Solidão. 201

índice analítico 237


■'00 tf

Al-Ghazali, 63 Constable, John, 181 GaUup, Gordon G., HOn


Alberti, Leon-Battista, Corot. Jean Baptlste. 181 Genet, Jean, 139
161. 170 Cosmides, Leda, 44n Gesdnska, Alicja. 16
Anscombe, G.EM, 62. Courbet, Gustave, 181 Giffbrd, Lord. 10, 15,
81n CreU, Jan, 37 17, 73
Aquino, Sâo Tomás de, 30, Crome, John, 181 Girard, René, 212
35, 140-43,218-19 Da Ponte, Lorenzo, 138 GoldonL Cario, 127
Aristóteles, 27-29, 48, Dante Alighieri, 63, 112, Goodman, Lenn E., 29n
61,218 117 Gould, Stephen J., 51
Asad, Mohamed, 221 Darwall, Stephen, 59 Goya, Francisco, 133-35
Averróis, 35 Darwin, Charles, 46, GozzL Cario, conde, 127
Avicena, 29-35, 189 107
106- Grice, Herbert Paul,
Axelrod, Robert, 44n, 47 Davidson, Donald, 61 n 08
107-
Bakhtin, MikhaU, 128n Dawkins, Richard, 18, Hacker, Peter, 68n
Barker, Sir Emest, 126 26, 32 Hacking, lan, lOOn
Barth, Kari, 188-89 Dennett, Daniel C., 66 Hafiz, 144
Beethoven, Ludwig van, Descartes, René, 55-56, 74 Haldane, John, 15
102 Desdos, Anne, 148n Hawking, Stephen, 23n
Bennett, Max, 68n Dllthey, Wilhelm, 98-99 Hegel, G. W. F„ 93-94,
BerdiaefT, Nicolai, 202 Donne, John, 121 202-30, 223
Beriin, Sir Isaiah, 94n Dostoiévski. Fiódor, 63 Heidegger, Martin, 56,
Bemini, Gian Lorenzo, Duncan, Ronald, 120 165, 218
144-45 Durkheim, Émile, 36, 126- Henrique U, rei da
Besançon, Alain, 186 27, 209 Inglaterra, 155
Bloch, Ernst, 94n Ecdes, Sir John, 74 HUI, Octavia, 182
Botticelli. Sandro, 63, 108 Elnstein, Albert, 25 Hõlderiin, Friedrich, 178,
Bouguereau, WUliam, Eliot, T. S., 79, 202-03 199, 203
147-149 Ellis, Fiona, 16 Homero, 227
Britten, Beqjamin, 120 Ellis, Havelock, 131 Hughes, Donna M., 150n
Buber, Martin, 59 Emerson, Ralph Waldo, 180 Hume, David, 91, 177-78
Buckley, F. H., 122n Empson, Sir WUliam, 167 James, Henry, 122, 146
Butler, Joseph, bispo, 92 Euripides, 215 James, WUliam, 217
Canaletto, 155 Feuerbach, Ludwig, 226- Jankélévitch, Vladimir,
Canova, Antonio, 119-20 27, 230 59n
Carter, Brandon, 23n Fichte, Johann Gottlieb, JefFerics, Richard, 155
Casanova, Giacomo, 138 89, 94 Johnson, James, 127
Chomsky, Noam, 52 Frege, Gottlob, 218 Johnston, Mark, 92n
Churchland, Patrida, Freud, Sigmund, 131-32 Kane, Robert, 66n
66,72 Fricdrich, Caspar David, Kant. Immanuel, 21, 24,
Claude Lomine, 155 179-80 33, 38, 45-46, 48,

238 o rosto de Deus


55-57, 64-65, 82-83, Pausânias, 156-57 Espinosa, Bento de
85, 92-93, 105, 172-73, Peacocke, Christopher, 81 n (Baruch), 30, 80-81
177-78, 206-07, 218-19 Philipse, Hennan, 20n Stein, Gertrudc, 171
Kass, Leon, 115 PiranesL Giambattista, Stern, Nkholas, Sir, 168
Kenny, Sir Anthony, 29n 154-55 Stoner, James R-, 150n
Kierkegaard. Seren. 63, Platão, 138-40, 144, 146 Straus, Erwin, 115n
202 Plcssner, Helmuth, 122n Swinburne, Richard, 20n,
Kinscy, Alfred, 131 Popper, Sir Kart, 36-37 23n
Kojève, Alexandre, 94n Poussin, Nkolas, 155, Szathmâry, EOrs, 52n
Krier, Léon, 196 186-90 Tallis, Raymond, 72n, 115
Kunstler, James Howard, Price, G. IL, 47n Tarantino, Quentln, 214
171n Proust, Marcei, 157 Teresa d’Ávila, Santa,
Le Corbusier (Charies- Pugin, Augustas Welby, 144-45
Édouard Jeanneret), 172 192 Teresinha de Lisieux.
Leibniz, Gottfried Wilhelm Putnam, Hilaiy, 73-74 Santa, 63
von, 128 Quine, W.V. 0M 218 Thoreau, Henty David,
Levi, Primo, 149 Rahner, Kari, 218 180-81
Levinas, EnunanueL 10, Rawls, John, 207 Tooby, John, 44n
148-49, 201-02 Rembrandt van Rtyn, 102, Valberg, J. J„ 56,74n
Lewis, C. S„ 143, 222 112-13, 117-18, 131-32, Van Gennep, Arnold, 209
Lewontin. Richard C, 51 142 Van Gogh, Vincent, 181
Libcskind, Daniel, 165 Rlcoeur, Paul, 98-99 Vcspucd, Simonetta, 146
Libet, Bcnjamin, 66-68, Ridley, Matt, 47 Wagner, Richard, 41, 63,
71,84 Rilke, Rainer Maria, 153- 142, 211, 226-29
LlppL Lorenzo, 129 54, 166-67, 198-99 Watkin, David, 163n
Locke, John, 59, 87-88, Robert, Hubert, 155 Wiggins, David, 92n
92, 182-83 Rodin, Auguste, 119 Wilde, Oscar, 173
Lovelock, James, 165 Rumi, Jalal ud-Din, 144 Wilson, Gerald S., 49n
Mackie, John, 29n Ruskin, John, 165, 169, Wilson, John Sloan, 44n
MaimÔnides, Moisés, 35, 182 Wilson, Richard, 155
189 Sadunaite, N(Jole, 149 Wittgenstein, Ludwig, 38,
Masaccio (Tommaso di Ser SagofT, Mark, 168n 54, 57, 110
Giovanni di Simone), Santo Agostinho, 43n, Wolfson, Hany Austiyn,
135-36 159,203 28n
Maynard Smith, John, Sâo João da Cruz, 144 Wordsworth, William,
47. 52n São Paulo, 105, 138, 159 198-99
Mayne, Thom, 165 Sartre, Jean-Pad, 119 Worpole, Ken, 154
Medid, Lorenzo de, 146 Schama, Simon, 156-57
Merleau-Ponty, Maurice, Scheler, Max, 90, 226n
115, !30n Schiller, Friedrich von,
Mickiewicz, Adam, 157 I79n
Mies van der Rohe, Schoenberg, Arnold, 187,
Ludwig, 194 189
Miles, Jack, 77n Schopenhauer, Arthur, 63,
Milton, John, 103, 116-17, 90-91, 139n
122-23, 133-34 Schumann, Robert, 59
Mishima, Yukio, 175n Shakespeare, William.
Mortimer, Sarah, 38n 13-14, 161
Mozart, Wolfgang Sherrington, Sir Charles,
Amadeus, 138 73-74
Muir, John, 165, 180-81 Shoemaker, Sydney, 87-88
Nagel, Thomas, 53 Soane, Sir John, 162-63
Novalis, 160 Sober, EHiott, 23n, 44n
Nozick. Robert 74n Sófocles, 214
Nygren, Andeis, 138 Sócrates, 232
0‘Connor, Timothy, 87n SoUenitsin, Alexander,
Otto, Rudolf, 215-16 149
Ovidio, llln Spaemann, Robert, 73n,
Palmcr, Samuel, 198-99 89n
Parfit. Derek, 88, 91 Sperber, Dan, 44n

indice onomástico 239

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