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ÇOSA|NOVEMBRO DE2017 PANORAMA
Primeira coletânea publicada pelo coletivo Panorama1, sob
organização de Katrícia Costa Silva Soares de Souza Aguiar e Lucca
de Resende Nogueira Tartaglia, com apoio do Programa de Pós-
Graduação em Letras da Universidade Federal de Viçosa, o Caderno
de estudos literários reúne oito capítulos voltados para a aprecia-
ção crítica de obras e autores de língua portuguesa e dois dedicados
ao estudo de escritores que desenvolveram seu trabalho a partir de
outros idiomas.
No âmbito da literatura brasileira, o livro conta com as
colaborações de Camila Galvão de Souza, Estela da Silva Leonardo
e Katrícia Costa Silva Soares de Souza Aguiar, trazendo textos de
estudo e análise sobre três grandes nomes da literatura nacional,
Luiz Ruffato, Graciliano Ramos e João Ubaldo Ribeiro. Para a
literatura angolana, conta com a contribuição de Roberta
Guimarães Franco, Lucca de Resende Nogueira Tartaglia e Diana
Gonzaga Pereira, que se debruçaram sobre a produção de
escritores pertencentes a três gerações – Luandino Vieira, José
Eduardo Agualusa e o jovem – porém, já renomado – Ondjaki. No
que diz respeito à produção moçambicana, Regina Costa Nunes
Andrade discute acerca dos espaços lacunares, tendo em vista a
memória familiar em Um rio chamado tempo, uma casa chamada
terra, um dos muitos livros do mais emblemático e conhecido autor
de Moçambique, Mia Couto; e, finalmente, no que concerne ao
contexto português, Angelo Adriano Faria de Assis nos oferece
valorosas considerações sobre os judeus, cristãos-novos e a

1 Voltado para os estudos literários e interculturais, o coletivo Panorama, fundado


em julho de 2016, surgiu com o intuito de discutir a diversidade e as singularida-
des das literaturas expressas em língua portuguesa, refletindo também sobre au-
tores e obras que contribuíram para a formação de um certo cânone ocidental,
ou, em outras palavras, obras clássicas – na concepção de Ítalo Calvino – antigas
ou modernas, já com um lugar mais ou menos definido em uma continuidade
cultural.

CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS | 8


Inquisição na literatura de resistência do Portugal Moderno. Para
além das fronteiras idiomáticas, ponderando sobre a obra de dois
grandes escritores, ambos fundamentais para uma certa literatura
ocidental, estão os textos de Rosie Mehoudar e Augusto Rodrigues
da Silva Júnior, que se voltam, respectivamente, para o primeiro
conto de Stéphane Mallarmé, “A copa de ouro”, e para a crítica de
Mikhail Bakhtin sobre o “teatro polifônico de Shakespeare”.
Os membros do coletivo – assim como os organizadores da
presente edição – vêm, na feitura desse livro, um importante marco
inicial: o primeiro passo rumo a discussões que, coordenadas pelo
espírito colaborativo, tenham em vista, principalmente, a busca
pelo reconhecimento das literaturas escritas em língua portuguesa,
suas particularidades e pluralidade, sem deixar de lado a valoriza-
ção de autores e obras que influenciaram, em muitos sentidos, es-
sas produções.

Katrícia Costa S. S. de Souza Aguiar2


Lucca de Resende Nogueira Tartaglia3

2 Doutoranda em Estudos Literários Comparados da Universidade de Brasília.


3 Doutorando em Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

9 | CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS


A « Copa de Ouro » é o primeiro exercício conhecido de prosa
mallarmeana, que acompanharemos aqui no original e em
tradução. O autor tinha quase 12 anos e este pequeno texto, de 3 de
agosto de 1854, é uma reescritura sintética em prosa de uma balada
de 1797 do escritor romântico alemão Friedrich Schiller (1759-
1805), O Mergulhador1, traduzida para o francês por Gérard de
Nerval em 1830 e por Xavier Marmier em 1854, mesmo ano em que
Mallarmé a recria. Em relação à balada, a paráfrase mallarmeana
possui um final diferente e outras particularidades interessantes,
das quais examinaremos algumas. O conto não figurava nas Obras
Completas de 1945 da Pléiade, tendo sido incluído apenas nas de
1998, e, antes disso, numa edição de Carl Barbier de 1971,
Documents Mallarmé2. Até então, sua bem pequena fortuna crítica
se baseava em fragmentos publicados por Henri Mondor na revista
Le point, de 1944, e, nesse mesmo ano, em Mallarmé plus intime (cf.
Gill, 1979, p. 78)3. Reproduzimos aqui sua versão original contida
nas últimas Obras Completas, sem correções ortográficas nem de
pontuação.

1 Austin Gill, no primeiro volume de The early Mallarmé (1979, p. 90), assinala
essa gênese do conto e Bertrand Marchal cita o comentário de Gill em Oc1, p.
1345. Vale a pena ler a balada de Schiller, cujos links para três traduções em
francês (além da de Nerval e de Marmier, há a de Adolphe Regnier, 1868, esta
porém já posterior à recriação mallarmeana) estão disponíveis nas Referências
do presente ensaio. A balada de Schiller foi musicada por Franz Schubert (1797-
1828).
2 Cf. Gill, 1979, p. 78 e 86, com a citação completada por Marchal em Mallarmé,

1998, p. 1345: DSM III (Documents Stéphane Mallarmé III), par Carl Barbier,
1971, p. 19-20.
3 Isso explicaria as poucas referências críticas a ele mesmo no abrangente livro

de Jean Pierre Richard, L’univers immaginaire de Mallarmé. Adile Ayda, uma das
pesquisadoras que mais estudaram a obra juvenil de Mallarmé, ao escrever seu
Le drame interieur de Mallarmé ou l´Origine des symboles mallarméens, de 1955,
também teria tido apenas acesso ao resumo do conto, junto com a reprodução de
uma passagem, feitos por Mondor naquelas duas publicações de 1944 (cf. Gill,
1979, p. 78).

CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS | 12


Chamam a atenção não somente os termos – Copa (Coupe,
em francês, sugerindo também Coup); Obra; Abismo; Naufrágio; Pe-
drarias –, mas os temas mallarmeanos, os desafios, ligados a esse
léxico, que marcam uma vida: é curioso como eles estão presentes
desde a idade de 12 anos do escritor. Não sabemos se Mallarmé re-
elaborou o conto depois – desconhecemos infelizmente o estado do
manuscrito, que pertence a uma coleção particular.
Segue então o conto, em francês e em português.

LA COUPE D’OR4 A COPA DE OURO5

Chevaliers et Écuyers lequel Cavaleiros e Escudeiros qual


d´entre vous osera plonger dans dentre vós ousará mergulhar
cet abîme? J’y jette ma coupe d’or neste abismo? Lanço nele minha
et la donne à celui qui me la copa de ouro e dou-a àquele que
rapportera. Trois fois ces paroles ma trouxer de volta. Três vezes
avaient été prononcées par le roi essas palavras tinham sido
de Sicile sans que personne pronunciadas pelo rei da Sicília
n’osât comparer ses forces sem que ninguém ousasse
débiles, à celle de l’immense et comparar suas forças débeis, à
fougueux Océan. Pas un de ces do imenso e fogoso Oceano.
hardis Siciliens n´avait osé Nenhum desses intrépidos
développer son courage Sicilianos tinha ousado
chevaleresque pour cette noble desenvolver sua coragem
entreprise lorsqu´un jeune cavalheiresca para essa nobre
ouvrier aux longs cheveux noirs empreitada quando um jovem
et bouclés, digne soutien de celle operário de longos cabelos
qui lui avait donné le jour, fend la negros e encaracolados, digno

4 Oc1, p. 449-450.
5 Tradução nossa de La coupe d’or, Oc1, p. 449-50. Às voltas com “cálice” ou
“taça”, hesitamos muito em deixar “copa” no título. Evocando o campeonato de
futebol “copa do mundo”, a “copa” não é tão eufônica e ágil quanto “coupe” (que
remete a “coup” e também ao sentido de “corte”, “talhe”), nem sugere
visualmente a “coupe” no “u” central, sua abertura ao alto.

13 | CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS


foule, vole vers le lieu où il avait sustento daquela que lhe dera o
vu briller les armes de la superbe dia, transpõe a turba, voa ao
cour Sicilienne arrive vers le roi lugar onde vira brilhar as armas
et lui dit: Seigneur puisque pas da soberba corte Siciliana chega
un des chevaliers qui vous junto ao rei e lhe diz: Senhor já
entourent n’a le courage de que nenhum dos cavaleiros que
sonder les profondeurs de vos rodeiam tem a coragem de
l´abime je sacrifie peut-être mes sondar as profundezas do
jours pour avoir ce vase précieux abismo eu sacrifico talvez os
qui enrichiera ma mère, et lui meus dias para conseguir este
fera paraître ses vieux jours plus vaso precioso que enriquecerá
doux et plus heureux. Le roi, minha mãe, e lhe fará parecerem
s’étant avancé sur un rocher seus velhos dias mais doces e
incliné lance la coupe d’or qui mais felizes. O rei, tendo-se
roule bientôt au milieu du adiantado sobre um rochedo
Charybde. Le jeune héros plonge, inclinado lança a copa de ouro
les secondes paraissent des que logo rola em meio ao
siècles. Les jeunes Seigneurs Caríbdis6. O jovem herói
sont tout yeux, lorsque tout à mergulha, os segundos parecem
coup une masse blanchatre séculos. Os jovens Senhores são
remonte du fond des eaux. só olhos, quando de repente uma
L’ouvrier courageux reparaît massa branquejante sobe do
tenant la coupe d’une main et de fundo das águas. O operário
l’autre tâchant de regagner la corajoso reaparece segurando a
côte. Il arrive heureusement et copa numa das mãos e com a

6 Na lenda grega, essa ex-ninfa voraz, depois de devorar animais do rebanho de


Hércules, foi fulminada por Zeus com um raio e lançada às profundezas do mar,
onde se transformou num monstro marinho manifestando-se como um
turbilhão, ao qual resistiu Odisseu por agarrar-se a uma figueira. A ex-ninfa, que
três vezes ao dia devoraria as águas do mar e tudo que ele contivesse,
regurgitando-os depois, moraria no estreito de Messina, entre a ilha de Sicília e
a Itália peninsular, perigoso por suas rochas e redemoinhos. Em frente à gruta
do monstro haveria um rochedo encimado por uma figueira negra. O turbilhão
dessa região seria causado pelo choque de duas correntes, metaforizados talvez
por Caríbdis e Scylla, outro monstro marinho vivendo do lado oposto do estreito.
Cf. Grimal, 1986, p. 89 (Verbete: Charybde) (Nota nossa).

CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS | 14


rapporte le vase au roi, qui outra cuidando de reganhar a
commande à son échanson, de la costa. Ele chega felizmente e
remplir d’un vin délicieux et il la devolve o vaso ao rei, que ordena
présente au jeune homme qui a seu copeiro, preenchê-lo de um
après l’avoir bu lui parla en ces vinho delicioso e o apresenta ao
termes: Lorsque je me jettai dans jovem homem que depois de tê-
l´océan et que la mer se fut lo bebido lhe falou nesses
refermée sur moi, deux courants termos: Quando me joguei no
contraires m´oppressaient et oceano e o mar se fechou sobre
j´eusse été broyé par leur force si mim, duas correntes contrárias
dans ce moment de détresse je me oprimiam e eu teria sido
ne m´étais recommandé à la esmagado por sua força se nesse
bonne Marie. Je ne tardai pas à momento de aflição eu não me
apercevoir un rocher à pic tivesse recomendado à boa
auquel je me cramponnai Maria. Não tardei a perceber um
fortement et m´étant baissé je vis rochedo íngreme ao qual me
la coupe attachée à une branche agarrei fortemente e tendo-me
de corail, je m´en saisis tout en abaixado vi o cálice enganchado
frémissant car je voyais num ramo de coral, eu o apanhei
s´avancer vers moi des milliers inda que tremendo pois via
de monstres marins la gueule avançarem em minha direção
béante et prets à me dévorer; milhares de monstros marinhos
mais le ciel envoya une vague qui a bocarra aberta e prontos a me
me souleva et me ramena à bon devorar; mas o céu enviou uma
port ». vaga que me levantou e me
La coupe est à toi devolveu a bom porto.”
courageux jeune homme lui dit le A copa é tua corajoso
roi, je te donne encore cet jovem diz-lhe o rei, dou-te ainda
anneau d’or enrichi de pierries si este anel de ouro enriquecido de
tu vas encore une fois visiter le pedrarias se fores mais uma vez
domaine des monstres marins et visitar o domínio dos monstros
en disant ces mots il lâche la marinhos e dizendo essas
coupe qui roule pour la seconde palavras ele larga o cálice que
fois dans les immensités du rola pela segunda vez nas

15 | CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS


gouffre. Le bon fils ne se laissa imensidões da voragem. O bom
pas décourager et animé d’une filho não se deixou desencorajar
nouvelle ardeur il plonge, les e animado de novo ardor
flots se referment sur lui… Au mergulha, as vagas fecham-se
même instant du milieu de la sobre ele... No mesmo instante
multitude un cris se fait do meio da multidão um grito se
entendre, et une femme tombe à faz ouvir, e uma mulher cai por
terre ses membres étaient froids terra seus membros estavam
comme du marbre, elle ne ne frios como o mármore, ela não
prononça que ces paroles: Mon pronunciou senão essas
fils!!... C’était sa mère… Déjà un palavras: Meu filho!!... Era sua
long espace de temps s’était mãe... Já um longo espaço de
écoulé sans que le jeune homme tempo se tinha escoado sem que
reparût. Un long frémissement o jovem reaparecesse. Um longo
s’était emparé des spectateurs, il estremecimento se tinha
ne revint pas… Pauvre mère ton apoderado dos espectadores, ele
fils n’est plus il s’est envolé vers não voltou... Pobre mãe teu filho
la Jérusalem céleste où une place não está mais7 ele voou para a
l’attendait, il est allé augmenter Jerusalém celeste onde um lugar
le nombre de l’armée o esperava, foi aumentar o
bienheureuse, c’est pour toi un número da armada bem-
protecteur de plus là haut… aventurada, é para ti um
Une simple pierre protetor a mais lá no alto...
recouvrit ses dépouilles Uma simples pedra
mortelles qu’on vint à bout de recobriu seus despojos mortais
recueillir, on lisait cette que se veio a cabo de recolher,
inscription sur une humble croix lia-se esta inscrição sobre uma
de bois “Mort pour sa mère”. humilde cruz de madeira “Deu a
vida por sua mãe”8.

7 Em francês, “ton fils n’est plus”. A forma “n’être plus” aplica-se ao anúncio da
morte de personagens ilustres.
8 Em francês: “Mort pour sa mère”. Outras possibilidades de tradução seriam:

“Morreu por sua mãe” ou “Morto por amor à sua mãe”.

CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS | 16


Os comentários se aterão aqui aos elementos temáticos9,
ainda que houvesse observações a fazer sobre particularidades
muito interessantes da escrita.
A atitude do rei é um dos aspectos mais chocantes do conto.
Este rei que não se contenta com a proeza do jovem e lhe pede para
repetir a operação, não parece ele sádico? Esta é certamente uma
leitura possível, em que ressoam os vários índices do Deus cruel da
obra mallarmeana de juventude10 e de uma frase ao amigo Cazalis
numa carta de 1867 tornada célebre (Oc1, p.714), em que o poeta
evoca sua “lutte terrible avec ce vieux et méchant plumage, ter-
rassé, heureusement, Dieu”11. Mas essa leitura acerca do pai de La
coupe d’or poderá se articular a uma outra, como logo veremos.
O jovem homem siciliano que procura a taça não é um Cava-
leiro da corte, nem um nobre pajem, como no poema de Schiller,
mas, invenção mallarmeana, um pobre operário – evocando a Obra
na qual o poeta engaja sua vida, obra ao mesmo tempo alquímica
(designada nesse registro como Grande Obra12, expressão à qual

9 Várias das ideias da presente análise provêm de nossa tese de doutorado


(Mehoudar, 2004), muito embora a parte nela dedicada à Coupe d’Or tenha aqui
passado por flagrantes reformulações.
10 Cf., por exemplo, Ce que disaient les trois cigognes (O que diziam as três

cegonhas; Oc1, p. 452-465,), como neste trecho: “ Enfin, quand Dieu le fils lui
succédera, il ne jettera pas sur l´enfant la terre qui devait recouvrir l´aïeul!” (“-
Enfim, quando Deus o filho o suceder, ele não jogará sobre a criança a terra que
deveria recobrir o avô!”; Oc1, p. 455); ou o poema À Dieu (A Deus; Oc1, p. 208).
11 « luta terrível com essa velha e maldosa plumagem, lançada por terra,

felizmente, Deus ». O inconveniente dessa tradução provisória é o gênero da


palavra “plumagem” no português. “Plumeiro” ou “Penacho”, masculinos, não
servem totalmente ao “plumage” francês.
12 O engajamento na obra alquímica sugerido pela palavra “operário” no conto

parece quiçá prematuro num menino de 12 anos. O texto teria sido mexido nos
anos vindouros por Mallarmé? Teríamos que ir ao manuscrito. De todo modo, as
crianças deviam ler na escola os romances de cavalaria, permeados de
referências alquímicas. Na literatura, a taça mágica se faz presente no romance
de Persival, ou a lenda do Graal, escrito ao redor de 1180 por Chrétien de Troyes.
Mas quanto as referências alquímicas deste e de outras novelas de cavalaria

17 | CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS


Mallarmé se refere em sua correspondência sobre o ofício literá-
rio13 ) e justamente literária, e, no contexto imediato do conto, evo-
cando a busca do Graal à qual o herói se doa por sua mãe. E ele
conta14:

Quando me joguei no oceano e o mar se fechou


sobre mim, duas correntes contrárias me opri-
miam e eu teria sido esmagado por sua força se
nesse momento de aflição eu não me tivesse re-
comendado à boa Maria. Não tardei a perceber
um rochedo íngreme ao qual me agarrei forte-
mente e tendo-me abaixado vi o cálice engan-
chado num ramo de coral, eu o apanhei inda que

eram conhecidas no meio escolar ou entre os amigos de primeira adolescência?


Circulariam talvez pelas obras românticas lidas? Pesquisa a se fazer...
13 “Pour moi la Poésie me tient lieu de l’amour, parce qu’elle est éprise d’elle

même et que sa volupté d’elle retombe délicieusement en mon âme: mais j’avoue
que la Science que j’ai acquise, ou retrouvée au fond de l’homme que je fus, ne
me suffirait pas, et que ce ne serait pas sans un serrement de Coeur réel que
j’entrerais dans la Disparition suprême, si je n’avais pas fini mon oeuvre, qui est
l’Oeuvre, le Grand Oeuvre, comme disaient les alchimistes, nos ancêtres.” (Oc1, p.
715, carta de 1867 a Cazalis); “[…] j’ai toujours rêvé et tenté autre chose [le
Livre], avec une patience d’alchimiste, prêt à y sacrifier toute vanité et toute
satisfaction, comme un brûlait jadis son mobilier et les poutres de son toit, pour
alimenter le fourneau du Grand Oeuvre” (Oc1, p. 788, carta com autobiografia
para Verlaine, de 16/11/1885). Traduções provisórias : “Para mim a Poesia me
tem lugar do amor, porque se enlaça a ela mesma e porque sua voluptuosidade
dela recai deliciosamente em minha alma; mas confesso que a Ciência que
adquiri, ou reencontrada no fundo do homem que eu fui, não me seria suficiente,
e que não seria sem um aperto de Coração real que eu entraria na Desaparição
suprema, se não tivesse terminado minha obra, que é a Obra, a Grande Obra,
como diziam os alquimistas, nossos ancestrais”. E o segundo trecho : « […]
sempre sonhei e tentei outra coisa [o Livro, em todos os níveis, segundo o resto
do parágrafo], com uma paciência de alquimista, pronta a nela sacrificar toda
vaidade e toda satisfação, como um queimava antigamente seu mobiliário e as
vigas de seu teto, para alimentar o forno da Grande Obra».
14 Os textos de Mallarmé normalmente virão citados em francês, com a tradução

em português no rodapé, com exceção dos trechos do conto A Copa de Ouro, para
facilitar a leitura dos que desconhecem o francês, sendo que a versão original
nesta língua já surgiu no início do ensaio. No caso dos trechos traduzidos do
conto, não haverá referência bibliográfica.

CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS | 18


tremendo pois via avançarem em minha direção
milhares de monstros marinhos a bocarra aberta
e prontos a me devorar; mas o céu enviou uma
vaga que me levantou e me devolveu a bom
porto.

A invocação de Maria surge como um refúgio15, a elevar-se


acima das duas correntes. Após a prece, desponta um rochedo ao
qual se agarrar. É difícil não enxergar aí uma elaboração interior de
saída do narcisismo mortífero – já que as correntes contrárias inci-
diriam no corpo do protagonista, esmagando-o – por meio de um
significante mais querido e salvador, o nome de Maria, que por sua
vez permite a emergência do rochedo, masculino, real e alternativo
ao corpo do protagonista, que sai assim de si mesmo.
Se o Rei-Pai da Sicília é tirânico ao impor uma segunda vez
o perigoso mergulho, com a promessa de uma aliança de ouro, por
outro lado ele propõe algo que todo experimento científico – e ao
menos para o Mallarmé adulto, assim como para a linguagem
mesma da alquimia frequentada por artistas da época, a Obra co-
mungava com uma Ciência16 – requer: a sua repetição. Não basta

15 A profusão de aparições femininas benfazejas na obra de Mallarmé foi por


muitos críticos (do clássico em psicologia aplicada à literatura Charles Mauron a
Jean Pierre Richard, passando por Adile Ayda e tantos outros) relacionada à
importância da mãe, morta quando o autor tinha 5 anos, e da irmã, chamada
Maria, morta quando ele tinha 15 anos. Referências diretas a elas aparecem não
só em cartas, mas em poemas e contos do autor. Muito embora a especulação
sobre o vínculo entre os personagens e a vida real não possua um interesse
central, não deixa de ser uma curiosidade, uma outra fábula interessante, a
convergência, no nome, entre Maria mãe de Deus sugerida pela passagem acima
e a irmã muito próxima do poeta.
16 “Je crois que la Littérature, reprise à sa source qui est l'Art et la Science, nous

fournira un Théâtre, dont les représentations seront le vrai culte moderne; un


Livre, explication de l'homme, suffisante à nos plus beaux rêves. Je crois tout cela
écrit dans la nature de façon à ne laisser fermer les yeux qu'aux intéressés à ne
rien voir. Cette oeuvre existe, tout le monde l'a tentée sans le savoir; il n'est pas
un génie ou un pitre ayant prononcé une parole, qui n'en ait retrouvé un trait
sans le savoir. Montrer cela e soulever un coin du voile de ce que peut être pareil

19 | CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS


conseguirmos algo pelo acaso ou por uma confluência feliz de aca-
sos. Uma real intimidade com as leis e uma aliança verdadeira com
o pai pressupõe que possamos encontrá-lo quantas vezes (isto é,
infinitas) forem necessárias: a obra incita a uma maestria das leis
que transmutam monstros em ouro17, ou que permitiria que, frente
à ameaça dos monstros, outra força mais potente triunfasse, outra
identificação. A Taça de Ouro, sugerindo o Graal e simbolicamente
o sangue de Cristo, há de aludir a um modo de nutrição diverso do
representado pelos monstros marinhos que engolem a embarcação
e a regurgitam, na lenda de Caríbdis.
O que salva o operário numa primeira vez é uma onda envi-
ada pelos céus, que o alça à terra. A contradição estrutural ao drama
do conto – se considerarmos a função do pai na narrativa edípica
tematizada por Freud e por Lacan, função fonte da civilização e da
não submersão da criança na mãe ou nas águas-espelho de Narciso
–, clara por ocasião do segundo mergulho, é que o poder paterno,
potencialmente salvador de um afogamento, é comprometido pela
própria dificuldade de se amar um pai sádico, e também Deus, pai
do pai, é em outros textos mallarmeanos, como já vimos, acometido
dessa crueldade.

poème, est dans un isolement mon plaisir et ma torture.” (Oc2, p. 657) “Creio que
a Literatura, retomada em sua fonte que é a Arte e a Ciência, nos fornecerá um
Teatro, cujas representações serão o verdadeiro culto moderno; um Livro,
explicação do homem, suficiente a nossos mais belos sonhos. Creio tudo isso
escrito [e escreve] na natureza de modo a não deixar fechar os olhos senão aos
interessados em nada ver. Essa obra existe, todo mundo a tentou sem o saber;
não existe um gênio ou um tolo tendo pronunciado uma palavra, que não tenha
dela reencontrado um traço sem o saber. Mostrar isso e erguer um canto do véu
do que pode ser semelhante poema, é num isolamento meu prazer e minha
tortura.” (tradução provisória nossa)
17 Ou em animais sagrados! Ou em arte. Cf. nossa análise do Jaguadarte (poema

de Lewis Carol traduzido por Augusto de Campos), quando ela se refere à


submissão do imaginário às leis da estrutura simbólica (Mehoudar, 2010).

CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS | 20


Ora, no texto freudiano Totem e Tabu, o pai primordial da
horda era também cruel18. Foi morto pelos filhos e não os deixou
órfãos, muito pelo contrário, já que o pai é recuperado enquanto
totem, muito mais forte do que o primeiro porque mantendo-se
firme para além de toda morte física, o que equivale a dizer que o
pai sai da exterioridade e penetra nas operações sutis do
pensamento. Em um certo grau, o sacrifício do pai pode ser visto
como a morte do ídolo (de um primeiro nível da imagem)
necessária à simbolização, no sujeito19. Mesmo na saga de Édipo-
Rei, o assassinato do pai pelo filho, levando à infecundidade da
terra e à desordem mortífera da natureza, acaba se configurando
como um estágio para que o Édipo cego descubra uma outra visão,
uma vidência como a de Tirésias (cf. Édipo em Colono).
Por ocasião da conhecida crise enfrentada por Mallarmé a
partir de 1866 (quando ele tinha 24 anos), testemunhada por
fragmentos epistolares como o que vimos acima (a “lutte terrible
avec ce vieux et méchant plumage, terrassé, heureusement, Dieu”),
evidencia-se uma morte do pai imaginário, externo, como que
existindo inerentemente. Que símbolo zelará pela função paterna
no sujeito implicado pela escritura mallarmeana depois dessa
morte, do lançar Deus por terra, se é que haverá algum? Quais são
os Nomes-do-Pai20? Deixamos isso em suspenso.
Aqui, atendo-nos a esse conto escrito quando Mallarmé
tinha doze anos, o que se vê é uma crise do pai, um pai em crise, e
uma série de desafios e missões que se desdobrarão pela obra
afora.
A própria comparação entre a prece do mergulhador em
apuros no poema de Schiller e no conto de Mallarmé fala dessa crise

18 Retinha a posse de todas asmulheres, impedindo que os filhos tivessem acesso


a elas.
19 Essa lógica é esmiuçada em Mehoudar, 2006.
20 O conceito é lacaniano, mas seu sentido pode bem ser inferido aí.

21 | CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS


do pai. No primeiro, a prece é a Deus; no segundo, à Maria. Sabe-se
que Mallarmé, após a crise iniciada em 1866, desfez
sistematicamente as referências a Deus em sua obra poética,
substituindo-as em geral por referências à Mãe21. Não temos aqui
registro manuscrito que nos permita inferir se houve uma
substituição assim em A copa de ouro ou se desde o início o autor
transmutou a prece de Schiller.
Qual um dos problemas de o absoluto ser chamado de Deus?
Ele pode se confundir com o pai terrível, tirânico, que impede os
sujeitos de serem22. Esse parece também constituir o fundo da
crítica do gnosticismo23 ao Antigo Testamento, em que Deus é visto
pelos gnósticos como o mau demiurgo. A cabala, entretanto,
procurará desfazer a visão monolítica de Deus, enxergando-lhe o
abismo central (sentido da sefirá24 Daat). Com essa tradição
esotérica do judaísmo – surgindo formalmente no século XII no sul
da França e na Espanha, mas baseando-se em ensinamentos orais e
escritos muito mais antigos – correspondeu-se o esoterismo cristão
alquímico, num elo de que beberam escritores e artistas do século
XIX, revivescência do que já nutrira o renascentismo como o de
Rabelais.

21 Cf. por exemplo, Les fleurs (As flores; Oc1, p. 121, 10-11,). Em Les Fenêtres (As
Janelas; Oc1, p. 9, 75-76, 117), Deus será substituído pelo “Moi” (“Eu”).
22 Modelo encontrável em certos núcleos familiares, em pais que não têm um

contato bem estabelecido com um pai além deles, são de uma forma ou de outra
autoritários e competem com seus filhos, buscando rebaixá-los.
23 O termo (gnosticismo), usado de modo diverso em diferentes contextos,

restringe-se aqui ao movimento herético cristão iniciado por volta do século II,
emblematizado por nomes como Marcião e Valentim de Alexandria, e cujos ecos
são audíveis por toda a história adiante.
24 Sefirá: “em hebraico, numeração ou categoria. No Zohar, às vezes assume o

significado de ‘esfera’ ou de ‘luz’. As dez sefirot [plural hebraico de sefirá] são


forças ou atributos que emanam do Ein Sof [infinito] e constituem todos os
mundos, configurando a inteira Árvore da Vida (Ets-ha-Haim) ou Árvore
Sefirótica” (O Zohar, 2006, p. 326-7).

CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS | 22


O operário de A copa de ouro alude não só à obra alquímica,
mas à desconstrução do autoritarismo e à igualdade entre os
homens ao gosto de um certo romantismo, apontando uma direção
na qual a pesquisa mallarmeana de linguagem obrará vida afora25.
O pai-sujeito-dividido, bem diferente do pai da horda primitiva,
aparecerá no conto de 1869, Igitur, a Loucura de Elbehnon,
indiciado talvez nessa sílaba inicial El, que na simbologia cabalista
sinaliza um “além” e um “fora”, seguido de um Beh indicando o
“abismo”26. Na teoria de linguagem que se esboça em Igitur e em
textos posteriores, ele (o pai-sujeito-dividido ou Elbehnon) será
função presente em cada ato de linguagem, mesmo silenciosa.
E como não ver na transmutação do menino morto do
poema de Schiller no anjo do conto de Mallarmé a semente da
passagem do impasse romântico, em que o eu sem saber sair do
centro sucumbe, à solução do simbolismo mallarmeano, o eu
transformando-se em símbolo (o anjo), pela mediação de um
abismo que se fixará, de uma morte que, no decorrer da obra, se
aprofundará no desejo do Outro? Se ainda há um laivo romântico
na imagem do anjo, o final mallarmeano ao enredo de Schiller já
prefigura a estrutura da criação insucumbível. O desejo do Outro, o
sacrifício que ele implica, a consecução de um outro corpo (aqui
motivado pelo desejo altruísta de velar pela mãe) já estão neste
conto anunciados. Contida no termo Operário (Ouvrier), a ideia
mesma de Obra (Œuvre), que busca o segredo da propagação do
ouro intelectual associado ao desejo do coração, é o que salva o
sujeito de seu aprisionamento no eu romântico, ainda mais quando
esta obra alquímica é indissociável da consciência das operações da

25 Não há espaço aqui para argumentarmos em favor dessa tese, contrapondo-a


à assunção comum da torre de marfim do simbolismo e de Mallarmé.
26 Cf. Mehoudar, 2015, p. 122-124.

23 | CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS


linguagem e do pensamento, segundo a fórmula de Edgar Poe,
mestre de Baudelaire e de Mallarmé27.
Presente também neste conto de infância, a metáfora das
águas, do mar, da travessia é um dos temas centrais da obra
mallarmeana e organiza alguns de seus mais notáveis poemas:
Salut, Au seul souci de voyager..., Le Château de L´espérance, o
próprio Un coup de dés. Este se inicia onde termina Une Coupe d´or:
“Un Coup de dés/ JAMAIS/ quand bien même lancé dans des
circonstances éternelles/ du fond d´un naufrage.”28 O naufrágio faz
aqui parte de uma teoria da criação, de uma teoria do sujeito do
inconsciente que por um lance de dados faz a aposta do Outro – essa
a nossa hipótese de interpretação desde o Igitur latente no Lance
de Dados. Restaria a precisar como essa aposta endereçará o
problema do pai lançado no conto de infância. Falar bem disso e da
transmutação do abismo de A copa de ouro no abismo constitutivo
da revolução mallarmeana da escritura exigiria todo um outro
ensaio, mas seguem, quase como um anexo opcional, algumas
breves pontuações sobre o pai em textos posteriores de Mallarmé
e sobre a copa.

QUAIS SÃO OS NOMES-DO-PAI


NA OBRA MALLARMEANA DESDE IGITUR?

A essa pergunta “uma antiga palavra” (Oc1, p. 484) proferida

27 Citando Poe, Paul Valery refere-se à “consciência das operações do espírito”


(Valery, 1922, apud Lawler, 1989, p. 91). Segue trecho de Eureka (Poe, 1964, p.
38): “Un esprit, qui n'a pas une entière conscience de lui-même, qui n'est pas
habitué à faire une analyse intérieure de ses propres operations […]”. “Um
espírito, que não tem inteira consciência dele mesmo, que não está habituado a
fazer uma análise interior de suas próprias operações […]”.
28 “Um LANCE DE DADOS/ JAMAIS/ Mesmo quando lançado em circunstâncias

eternas/ do fundo de um naufrágio.” Trad. de Augusto de Campos em Mallarmé,


2006, p. 155.

CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS | 24


no subterrâneo de Igitur talvez comece a responder, por meio
também de Minuit, Elbehnon, e outras manifestações do absoluto
no conto. Essa mesma “palavra”, que nele nomeará, sugerirá,
convocará o absoluto, agora em sua cisão ou abismo constitutivos,
seguirá tematizada por vários outros escritos, como Crise de vers
(“mais tacite encore l’immortelle parole”29, Oc2, p. 208).
Como numa das leituras que se poderiam fazer do tetra-
grama hebraico – ao qual se refere a “antiga palavra” no mito ma-
çônico – , « Serei o que fui »30, o pai pós-Igitur, na obra mallar-
meana, surgirá no sujeito como o anterior (gerador) de si e o pos-
terior desejado de si. Origem e Destino, « germe final » (Oc1, p.
504), manifestado como ponto e como letra – à semelhança da letra
hebraica « jot , um ponto » (cf. Oc, p.1035), com a qual, segundo o
livro central da cabala (O Zohar), convoca-se o Outro31.

A COPA

O desafio do menino protagonista de La coupe d’or é


conseguir obter um significante32 edênico, fonte de todos os outros
– a taça de ouro, a evocar a que na lenda do Graal abriga o sangue
espiritual de Cristo, um néctar delicioso infindável, produto do
renovado sacrifício do filho-sensível ao pai ulterior e imemorial –,

29 “mas tácita ainda a imortal palavra”, Crise de verso.


30 Sobre os tempos verbais do tetragrama, ver Rehfeld (1988); sobre o mito
maçom, Berteaux (1993).
31 “Então vem um vaso tão concentrado quanto um ponto, como a letra Yod, esta

é a Fonte da Sabedoria, por meio da qual nós invocamos o Deus da Sabedoria.”


(O Zohar, 2006, p. 83).
32 Ou um símbolo edênico. O argumento lacaniano sobre a diferença entre o

significante e o símbolo (este remeteria a algo e aquele a uma ausência, cf.


Augusto, 2013, p. 228) é questionável pela lógica do símbolo em Mallarmé, que
não elidiria o vazio, e, em última instância, pela noção por ele proposta de
absoluto, remontando à tensão entre ser e vazio própria à cabala e à alquimia
que o poeta conheceu, e tensão diretamente descoberta, experimentada e
tematizada por seus escritos.

25 | CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS


para outro significante-espaço-acolhedor-potencialmente-edênico
na figura da mãe. O preço é a transmutação do filho concreto – que
predispõe a mãe ao Éden e à graça, mas não resolve33 – no anjo que
integrará a armada celeste. Como não lembrar aqui, nessa “armée
bienheurese” do conto34, do “armé” (armado) que compõe
Mallarmé? – e o destino-desafio implicado neste nome sendo a
obtenção das armas de uma linguagem anti-entrópica35, no sentido
de recriando-se ao infinito, tal qual o néctar que se aninha seja no
cálice cristão do Graal, seja no caldeirão céltico (pré-cristão), do
qual aquele, ao menos em parte, se origina, e no qual se cozinharia
renovadamente o alimento do espírito, ambos (cálice e caldeirão)
símbolos de abundância?36
O menino busca então o instrumento de sublimação, a taça
plena de espírito, com o qual possa armar a mãe concreta, dotando
seus dias de mais doçura e felicidade. Ou o anjo-filho, em sua
abertura ao Outro, terá ele mesmo uma função de cálice de ouro e
de néctar, o corpo ideal do sujeito, na obra mallarmeana adulta
dito(so) também o leitor, o sujeito por vir a cada vez.
Um artifício, um extra ideal é necessário para transmutar os
dias – o que é comparável à função da pedra filosofal alquímica.
Veremos essa busca perdurar pela obra madura de Mallarmé, agora
na cena da Inteligência e da linguagem, em sentido amplo, que lhe
é inerente:

33 O conto surge como um sonho e como um trabalho de formação da família


simbólica do sujeito, trabalho a que também se poderia associar a obra
alquímica. O anjo aqui sela o contato da mãe com um filho-protetor spiritual, que
evoca a figura de Jesus para Maria.
34 “Pauvre mère ton fils n’est plus il s’est envolé vers la Jérusalem céleste où une

place l’attendait, il est allé augmenter le nombre de l’armée bienheureuse, c’est


pour toi un protecteur de plus là haut… »
35 Cf. Hyppolite, 1973, p. 231-241.
36 Conjunção de masculino e feminino, a copa é emblema de realização da Obra.

CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS | 26


Signe ! au gouffre central d’une spirituelle impos-
sibilité que rien soit exclusivement à tout, le nu-
mérateur divin de notre apothéose, quelque su-
prême moule qui n’ayant pas lieu en tant que d’au-
cun objet qui existe: mais il emprunte, pour y avi-
ver un sceau tous gisements épars, ignorés et
flottant selon quelque richesse, et les forger.
(Oc2, p. 200, destaques nossos) 37

A l’égal de créer: la notion d’un objet, échappant,


qui fait défaut. (Oc2, p. 68)38

O conto de juventude acusava no herói uma coragem para


sondar o abismo – esta que continuará a se indiciar na obra de
Mallarmé39, mas então o abismo (em Un coup de dés e em tantos
outros textos, como no penúltimo acima, enquanto gouffre central)
será uma (não) figura do processo de pensamento e de linguagem.
Em nenhum momento, talvez se possa dizer, Mallarmé
deixará de procurar a taça de ouro de seu primeiro conto40... No

37 “Signo! na voragem central de uma espiritual impossibilidade de que nada seja


exclusivamente a tudo, o numerador divino de nossa apoteose, algum supremo
molde que não tendo lugar enquanto que de algum objeto que exista: mas ele toma
emprestadas, para aí avivar um selo todas as jazidas esparsas, ignoradas e
flutuando segundo alguma riqueza, e forjá-las.”
38 «“Igual a criar: a noção de um objeto, escapante, que faz falta ». (A Música e as

Letras, Oc2, p. 68)


39 Sobre o herói corajoso, cf. também Un coup de dés: “prince amer de l ´écueil/

s´en coiffe comme de l´héroique/irrésistible mais contenu/ par sa petite raison


virile/ en foudre.” Em tradução de Augusto de Campos (Mallarmé, 2006, p. 165):
“príncipe amargo do escolho/dela se coife como de algo heroico/irresistível mas
contido/ por sua pequena razão viril/relâmpago”.
40 Comparável ao ideal que animou sua vida até o fim, segundo sua resposta em

18 de agosto de 1898, três semanas antes de sua morte (9/9/1898), à pesquisa


feita pelo jornal Le Figaro sobre “o ideal aos 20 anos”: “Quel était mon idéal à
vingt ans, rien d´improbable que je l´aie même faiblement exprimé, puisque
l´acte, par moi choisi, a été d´écrire: maintenant, Si l’âge mûr l’a réalisé ? [...]
suffisamment, je me fus fidèle, pour que mon humble vie gardât un sens. Le
moyen, je le publie, consista quotidiennement à épousseter, de ma native
illumination, l’apport hasardeux extérieur, qu’on recueille, plutôt, sous le nom
d’expérience. Heureuse ou vaine, ma volonté des vingt ans survit intacte. » (Oc2,

27 | CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS


sepulcro de Mallarmé e sua família41, nota-se a escultura de uma
grande copa ou urna – abrigo simbólico de sangue ou cinzas (outro
símbolo alquímico, resíduo servindo à transformação e à obra),
ambos em curiosa correspondência. A ambiguidade e o paradoxo
criadores próprios aos termos mallarmeanos persistem na
linguagem imagética dessa situação crucial, morte brindando42 à
vida infinda.

p. 672) “Qual era meu ideal aos vinte anos? Nada improvável que eu o tenha
mesmo fracamente expresso, pois o ato, por mim escolhido, foi o de escrever:
agora, Se a idade madura o realizou? [...] suficientemente, fui-me fiel, para que
minha humilde vida guardasse um sentido. O meio, eu o publico, consistiu
cotidianamente em espanar, de minha nativa iluminação, o aporte casual
exterior, que recolhemos, antes, sob o nome de experiência. Feliz ou vã, minha
vontade dos vinte anos sobrevive intacta.” (Tradução provisória nossa)
41 Composta pelo filho Anatole (1871-1879), morto aos 9 anos, bem antes de

Stéphane Mallarmé (1842-1898), Maria (a esposa, 1835-1910), Geneviève (a


filha, 1864-1919). O túmulo encontra-se no Cemitério de Samoreau, perto de
Valvins (onde está o Museu Mallarmé, na casa em que ele viveu).
42 A copa também evoca o poema Salut (Oc1, p. 4), tradutível por Brinde ou Salve!

CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS | 28


REFERÊNCIAS

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(Portugal): U. Porto Editorial – Universidade do Porto, 2013.

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Campos. In: EPSTEIN, Isaac (Org.). Cibernética e Comunicação. São
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G. Jean-Aubry. Paris: Gallimard, Bibliothèque de la Pléiade, 1945.
Indicado neste ensaio como Oc.

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mard, Bibliothèque de la Pléiade, 1998 (V.1), 2003 (V.2). Indicados
neste ensaio como Oc1 e Oc2, respectivamente.

29 | CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS


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Regnier. Paris: Hachette, 1868. p. 219-223. V. 1. Disponível em:
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O ZOHAR, o Livro do Esplendor. Passagens selecionadas pelo Ra-


bino Ariel Bension (1880-1932). Prólogo de Miguel de Unamuno.
Tradução das passagens do Zohar e Introdução: Rosie Mehoudar.
Tradução dos outros textos: Rita Galvão. São Paulo: Polar, 2006.

31 | CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS


Entre os anos de 1933 e 1974, Portugal viveu o período cha-
mado de "Estado Novo", comandado até 1968 por António Oliveira
Salazar e daí em diante por Marcelo Caetano. A Polícia Internacio-
nal e de Defesa do Estado (PIDE), de 1945 até 1969, e a Direcção
Geral de Segurança (DGS), de 1969 até 1974, foram responsáveis
pela dura censura que o País vivenciou, censura que se estendia aos
chamados territórios ultramarinos em África. Nesse contexto, a
partir de 1961, Angola passar a vivenciar uma guerra – chamada
pelos portugueses de Guerra Colonial, e pelos angolanos de Guerra
de Independência – que se estenderia até 1975, quando finalmente
a independência é alcançada (ou, para alguns, até 1974, data da Re-
volução dos Cravos, em Portugal).
Durante esse período, são inúmeras as prisões de jornalis-
tas, professores, artistas, escritores, envolvidos em assuntos consi-
derados subversivos pelo Estado, como os movimentos indepen-
dentistas dos territórios africanos, por exemplo. A documentação
produzida pela PIDE/DGS (cartas, despachos, interrogatórios, pro-
cessos e sentenças...) encontram-se hoje no Arquivo Nacional da
Torre do Tombo, em Lisboa, mas só foram abertas a pesquisas em
meados da década de 90, vinte anos após o desfecho do Estado
Novo e do processo de descolonização.
As temáticas que envolvem o Estado Novo ainda são terreno
sensível em Portugal, identificado por filósofos e cientistas sociais
(Eduardo Lourenço e Boaventura de Sousa Santos, por exemplo)
como um momento traumático em que o país enfrenta o fim da ima-
gem grandiosa de Império. Desse modo, o recente trabalho de in-
vestigação referente a esse tipo de documentação ainda encontra
alguns questionamentos, principalmente dada a pequena distância
temporal dos fatos e a sobrevivência das personagens envolvidas.
(É bom lembrar que a Torre do Tombo guarda os processos da In-
quisição portuguesa [1536-1821], de natureza similar, guardadas
as devidas distâncias).

CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS | 34


Obviamente, esses textos nos dão um panorama significa-
tivo sobre o contexto e os mecanismos de repressão do Estado
Novo. Por isso, é bom lembrar as palavras de Carlo Ginzburg em seu
texto, “O inquisidor como antropólogo” (A micro-história e outros
ensaios), (1989): “Os «arquivos da repressão» dão-nos certamente
informação preciosa sobre esse tipo de pessoas” (p. 205), ou seja,
possuem relevância para que possamos compreender os aconteci-
mentos recentes (ainda a serem processados pela História) e as
personagens que, a primeira vista, não estariam no palco central
das ações. Porém, investigar esses arquivos significa, antes de tudo,
compreender a natureza desses documentos, a forma como foram
produzidos, e as falas que os compõem (vozes ativas ou silencia-
das?). E voltamos a Ginzburg: “O que os juízes da Inquisição tenta-
vam extorquir às suas vítimas não é, afinal, tão diferente daquilo
que nós procuramos – diferentes eram sim os meios que usavam e
os fins que tinham em vista” (p. 206).
Essas reflexões são importantes para compreender o lugar
de personagens que os presos políticos ocupam dos processos pro-
duzidos pela PIDE, já que a perspectiva apresentada ali é a do Es-
tado português, a da Polícia Política e de seus agentes. Por isso, é
preciso problematizar esse tipo de documentação para não enten-
der as informações contidas ali como meros componentes biográfi-
cos das pessoas envolvidas. Luandino Vieira é um exemplo para
pensarmos essas questões, já que aparece em diversas pastas da
PIDE, obviamente classificado como subversivo, o que justifica a
sua prolongada prisão.
Em documento produzido pela PIDE em 30/11/69, encon-
tramos um resumo de duas páginas sobre o processo de José Vieira
Matheus da Graça (Luandino Vieira). Nele, constam a primeira pri-
são, em 1959, por envolvimento no Movimento de Libertação Naci-
onal de Angola (MLNA), que atuava com o único objetivo de “sepa-

35 | CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS


rar a Província de Angola da Mãe-Pátria”, há referências ao pri-
meiro depoimento dado por Luandino, em que negou pertenci-
mento ao movimento, mas confessou a sua participação em uma
“distribuição de panfletos”, dos quais desconhecia o gênero, mas
em outro depoimento teria confessado ter sido alertado acerca da
“clandestinidade e do perigo que poderia resultar da citada distri-
buição”. Sendo libertado no mesmo ano, ainda de acordo com do-
cumento, continuou o envolvimento clandestino em atividades do
agora chamado MPLA.
Em novembro de 1961 volta a ser preso, suspeito de “ativi-
dades de natureza político-subversiva”, e confessa “ter desenvol-
vido atividades subversivas em prol da possível independência
desta Província, atividades que tomou maior incremento a partir
de Março desse ano”. Em julho de 63, foi condenado, em Luanda, a
“pena de 14 anos de prisão maior, suspensão de direitos políticos
por 8 anos e medidas de segurança de 6 meses a 3 anos”.
Mas afinal, qual é a relação entre toda essa questão docu-
mental e o livro Papéis da prisão, publicado em finais de 2015?
Luandino Vieira, como vimos, condenado a quatorze anos de
prisão durante o período da guerra de independência angolana, es-
creveu a quase totalidade de sua obra nos anos de cárcere, obras
que tematizavam a cidade de Luanda e a sua população, especial-
mente aquela que habitava os musseques. No entanto, como figura
pública, sempre foi um homem bastante recluso, participando
muito raramente de alguns eventos acadêmicos da área das Litera-
turas Africanas de Língua Portuguesa, e só recentemente, quando
voltou a publicar, em 2006, depois de um silêncio de 30 anos.
Embora todos conheçam a sua biografia, esta nunca foi o
foco central quando se fala de Luandino, algo bastante raro nas li-
teraturas africanas, já que a área possui inúmeras pesquisas volta-
das às relações entre literatura e história. No entanto, em algumas

CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS | 36


aparições mais recentes, o escritor já havia demonstrado o inte-
resse em tornar público os seus escritos durante a prisão, entre An-
gola e Cabo Verde. Em um evento ocorrido em 2012, na Universi-
dade de Coimbra - "Memórias de tanta guerra - guerras coloniais,
guerras de libertação, guerras civis em Angola e Moçambique" –,
Luandino chegou mesmo a mostrar alguns dos frágeis papéis, guar-
dados há tantos anos.
Em uma breve apresentação da obra, o próprio Luandino
destaca o caráter memorialístico e testemunhal dos textos, agora
públicos, que compõem o livro de quase 1000 páginas (com a apre-
sentação dos editores e a entrevista final concedida por Luandino,
o livro atinge 1075 páginas):

Ao chegar preso a Luanda, em 25 de Novembro,


percebi imediatamente que tinha a vida hipote-
cada por vários anos. Seria necessário que a me-
mória, daí em diante, a substituísse – por isso
aqui se inclui o que já recuperei: um exemplo dos
calendários fabricados que sempre mantive, um
excerto da primeira carta escrita da prisão; e a
capa dos “papéis” a escrever logo que criadas as
necessárias condições para a sua movimentação
clandestina. E procuro ainda cerca de meia cen-
tena de cartas anteriores aos “papéis”. (2015, p.
9-10)

Desse modo, agora como livro, os textos, publicados 56 anos


após a primeira prisão de Luandino, parecem apresentar uma con-
tra-memória (no sentido de contra-discurso), uma outra versão
para aquela oficial, encontrada nos documentos produzidos por
seus algozes. A epígrafe escolhida pelos editores para o prólogo
também é sugestiva – “Em kimbundu «não esquece» diz-se: ku-
jimbé! (22.6.63)” –, evidenciando o objetivo da obra, registrar as
memórias de Luandino que “substituíram” a “vida hipotecada” no
cárcere.

37 | CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS


Jeane Marie Gagnebin, ao recuperar o trabalho de Aleida As-
smann, ressalta a escrita como uma das metáforas da memória,
como

“este rastro privilegiado que os homens deixam


de si mesmos, desde as estelas funerárias até os
e-mails efêmeros que apagamos depois do uso
[...] e apesar da tão comentada preponderância
contemporânea das imagens sobre o texto, con-
tinuamos falando de escrita, escritura, inscrição
quando tentamos pensar em memória e lem-
brança”. (2009, p. 111)

Papéis da prisão é composto por 18 cadernos, escritos entre


1962 e 1971, no Pavilhão Prisional da PIDE, em Luanda, na Cadeia
do Comando da PSP e na Cadeia Comarcã, ambas em Luanda, e, por
fim, no Campo de Trabalho de Chão Bom, no Tarrafal, em Cabo
Verde (onde é produzida a maior parte dos cadernos, de 64 a 71).
Embora haja uma estrutura, montada pelos editores, mas, de algum
modo, pré-organizada pelo próprio Luandino Vieira – o que apa-
rece no livro através dos fac-símiles das 18 capas produzidas pelo
autor –, a obra é sobretudo composta por fragmentos, identificados
pelas datas, características do gênero diário.

02-11-62
- Este é o 4º. caso de loucura que dou conta desde
que cá estou (1º. Kinjo; 2º. Godfrey; 3º. D. Pedro
VIII). Entrou na sexta-feira – 26 – e ouvi o Caxias
perguntar-lhe o nome, etc. Trabalhava na Tex-
tang onde era operário. Dizem aqui que já vinha
maluco lá de fora mas só me lembro de começar
a falar alto, cantar e refilar com os guardas no sá-
bado de manhã, quando o foram buscar para o
banho e ele se negou, chamando a todos os guar-
das de “terroristas”, nome que durante todo o
tempo até à saída não deixou de lhes chamar,
muitas vezes com asneiras.

CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS | 38


[...]
Saiu na segunda – 29 – e na verdade estava ma-
luco. Tinha a boca torcida num riso idiota que
soltava de vez em quando, descalço cantava. Os
guardas diziam para ele se calçar e ir para casa e
ele não aceitava. Acabou depois por serenar e pu-
seram-no na rua... Durante os dias em que aqui
esteve não comeu nada. Falava sempre, cantava
e referia constantemente o nome de Rui Romano,
como bom cantor porque era bom tocoísta (N.E.
membro do grupo religioso messiânico fundado
por Simão Toco)
*
- Entrou uma grande leva de presos, vindos de
Beça Monteiro. Alguns a K. viu-os eram aqueles
velhotes todos. São só velhos, mulheres e crian-
ças! (Os novos não os apanham e se apanham,
matam.)
Em cada grupo para identificação só um geral-
mente sabe (!) português e é intérprete. Os ou-
tros não sabem (!). Ler e escrever, ninguém! O
Waldemar pergunta pela profissão e dão a res-
posta: «trabalhar com a catana». Talvez escreva
«trabalhador agrícola», talvez escreva «terro-
rista». Mas o que escreve, que eu vi, é «motivo da
prisão: actividades subversivas contra a segu-
rança exterior do Estado»!
*
Mulheres, velhos, crianças nuas e raquíticas e ve-
lhos como os que viste!
(2015, p. 49-51)

No trecho citado, é possível observar o olhar atento de Lu-


andino, voltado para o que lhe é externo: a situação dos outros pre-
sos, o discurso modificado pelo notário, bem como os motivos nada
claros da prisão de trabalhadores. Com o prolongamento da prisão
– apesar dos inúmeros pedidos de liberdade provisória encontra-
dos anexados nos processos da PIDE – é possível ver outro Luan-

39 | CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS


dino: “4-3-63 Ando triste é verdade. Não é menos coragem ou qual-
quer desfalecimento de vontade. É só porque amo intensamente a
vida” (2015, p. 160).
O momento em que o texto trata da chegada no Tarrafal,
onde sua prisão seria prolongada, há uma intensidade na narração,
que começa a falar do espaço, do tratamento recebido no cárcere,
para se aprofundar nas consequências prisionais sobre a vida:

13-14-15-16/Agosto [1964]
O CAMPO:
Perplexidade! Parece um sonho vir cá parar. A
todo o momento creio que vai desaparecer o que
tenho na frente e encontrar-me outra vez em Lu-
anda. Mas não! O campo é o normal de c[ampo]
de conc[entração], fiadas duplas de arama far-
pado com outras transversais, guaritas c/ senti-
nelas armados, nas esquinas, cães, luzes e barra-
cas (ver adiante o esquema). (2015, p. 548)

O texto fica cada vez mais introspectivo, como é caracterís-


tico do gênero.
Para Philippe Jejeune, em seu O pacto autobiográfico, a au-
tobiografia é definida a partir da presença obrigatória dos seguin-
tes elementos: Forma da linguagem (narrativa em prosa); Assunto
(vida individual, história da personalidade); Situação do autor
(identidade comum entre autor e narrador); Posição do narrador
(narrador como personagem principal; narrativa retrospectiva).
Nesse contexto, o gênero Diário fugiria apenas desse último ele-
mento, a narrativa retrospectiva, afinal é marcado pelo momento
presente na/da escrita.
No entanto, é interessante observar que o título pensado por
Luandino, e presente em 16 das imagens reproduzidas no livro, era
“Ontem, hoje, amanhã...” (grafadas de formas diferente: “...ontem,
hoje, amanhã...”; “ontem e hoje, amanhã...”; “ontem, hoje e amanhã”;

CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS | 40


às vezes na horizontal, outras na vertical), título bastante simbólico
se pensado do posto de vista incerto da vida no cárcere, ainda mais
com uma pena de 14 anos de prisão. A proposta da publicação, por
outro lado, talvez refletindo o peso comercial da obra, optou pelo
título Papéis da prisão. Aqui, pensamos a escolha a partir de um
pressuposto de Antoine Compagnon – “A porta de entrada de um
livro é seu título, encimado com o nome do autor, como se fosse um
troféu. Esse dispositivo parece natural, não se imagina um livro de
outra forma. Trata-se, entretanto, de invenção recente” (2007, p.
106) – para refletirmos sobre as especificidades do gênero diário, a
partir de Philippe Lejeune. E aqui já colocamos uma questão: a pre-
sença dos editores e a mudança do título.

Uma entrada de diário é o que foi escrito num


certo momento, na mais absoluta ignorância
quanto ao futuro, e cujo conteúdo não foi com
certeza modificado. Um diário mais tarde modi-
ficado ou podado talvez ganhe algum valor lite-
rário, mas terá perdido o essencial: a autentici-
dade do momento. (2014, p. 300)

No volume que se apresenta como livro há um prólogo e


uma nota editorial. No primeiro já existe uma certa indicação de
leitura, direcionando o leitor a partir da ideia de fragmentos que
compõem a obra. Já na nota editorial, há a explicação do projeto que
antecede o livro, intitulado José Luandino Vieira: Diários do Tarra-
fal, destacando uma “metodologia que fosse, ao mesmo tempo, ri-
gorosa mas suficientemente flexível para integrar a revisão e a re-
organização da obra do ponto de vista da atual vontade autoral”
(2015, p. 34. Grifos meus)
Portanto, o momento de análise crítica da obra precisa levar
em conta alguns conceitos, caros à literatura e à história, por pers-

41 | CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS


pectivas distintas. Fragmento, lacuna, memória consciente/incons-
ciente, rastro, manutenção do sigilo, hierarquização dos fatos (no
sentido de foco). Todas essas questões voltam-se, a um só tempo,
ao gênero textual, à questão editorial, ao lugar documental (pen-
sando com Le Goff também o monumental), do livro como produto
final.
Segundo Pedro Eiras, “O próprio texto que se auto-define
como fragmentação inventa o modelo de totalidade a que se opõe:
nesse jogo de diferenças não há um paradigma inicial que fosse con-
testado (ou confirmado) pela fragmentação” (EIRAS, 2005, p. 31).
Aqui, voltamos a Ginzburg, e a sua ideia de rastro, quando adverte
que o “nosso conhecimento do passado é inevitavelmente incerto,
descontínuo, lacunar: baseado numa massa de fragmentos e de ru-
ínas” (idem, p. 40). Logo, a sua reconstrução é algo impossível. As-
sim sendo, o conceito de história relacionado ao de verdade cai por
terra, pois se o que temos do passado são rastros, o que existe é
uma tentativa de costurar, sempre através da narratividade
(WHITE, 2005), esse conhecimento descontínuo. Por este motivo,
Ginzburg, ao relembrar Aristóteles, ressalta que o “verdadeiro é um
ponto de chegada, não um ponto de partida”, e que aquilo que os
historiadores têm como ofício, mas que pertence a todos, é “des-
trinchar o entrelaçamento de verdadeiro, falso e fictício que é a
trama do nosso estar no mundo” (2007, p. 14).
Nesse sentido, a entrevista que complementa o livro funci-
ona como uma forma de preencher as lacunas do diário, atuali-
zando a sua escrita, dando destaque, principalmente, aos modos de
escrita no cárcere. Luandino afirma:

Dentro da prisão havia vários perigos. Mas eu já


tinha o hábito de escrever clandestinamente e na
prisão desenvolvi essa prática. Os apontamentos,
o diário, surgem também porque percebi que
muito embora tivesse sempre confiado na minha

CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS | 42


memória (tenho muito boa memória), havia coi-
sas que eu tinha que escrever, até porque a me-
mória não podia guardar isso tudo, e, portanto,
como já escrevia para a clandestinidade fora da
cadeia foi-me fácil entrar na cadeia e dizer
«deixa-me continuar a escrever para a clandesti-
nidade». (2015, p. 1045)

Ao publicar seus papéis, Luandino não só demarca seu lugar


testemunhal, como também torna seus leitores testemunhas, no
sentido aplicado por Jeane Marie Gagnebin:

Testemunha também seria aquele que não vai


embora, que consegue ouvir a narração insupor-
tável do outro e que aceita que suas palavras le-
vem adiante, como num revezamento, a história
do outro: não por culpabilidade ou por compai-
xão, mas porque somente a transmissão simbó-
lica, assumida apesar e por causa do sofrimento
indizível, somente essa retomada reflexiva do
passado pode nos ajudar a não repeti-lo infinita-
mente, mas ousar esboçar uma outra história, a
inventar o presente. (GAGNEBIN, 2009, p. 57.
Grifos meus)

Em Papéis da prisão é possível ver o homem para além do


prisioneiro presente na documentação oficial, ou seja, a partir do
seu lugar testemunhal podemos refletir sobre esse passado e "es-
boçar outra história" para além daquela produzida pela PIDE. Em
Papéis da prisão é possível ver o escritor se desenvolver e ganhar
corpo, diante das inúmeras referências às leituras feitas na prisão,
e também das passagens que tratam da necessidade da escrita. A
experiência do limite pela escrita que, ao contrário de se transfor-
mar em espaço/mecanismo de fuga da realidade prisional, está in-
serida no cotidiano de Luandino, como forma de lidar com o pro-
cesso de alienação que se dá no cárcere:

43 | CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS


19-1-63
E se eu impusesse a mim mesmo escrever um
conto por mês? ... (Às vezes dão-me estes ataques
de auto-disciplina – e um conto por mês para
quê? Pergunto agora?)
*
Copio para aqui um apontamento antigo. Uma
ideia para um livro em que re-contasse histórias
tradicionais, recriando-as esteticamente e
dando-lhe um contexto actual ou actualizantee.
Título: «Novas histórias do antigamente».
*
Estou sentindo renascer a vontade de trabalhar
na «Maiombola» (projeto de romance A Maiom-
bola da Mentira”. Ontem estive algum tempo a
desfolhar os papelinhos de apontamentos. Sepa-
rei os dois contos que quero escrever e já os meti
no bloco. Talvez hoje à noite e amanhã de manhã
o escreva. Muito depende da visita de hoje à
tarde! Mas está mesmo muito maduro e se deixo
passar agora a ocasião depois vai ser difícil es-
crevê-lo. Tenho a intuição que vai sair influenci-
ado pelas leitura do «Don Paisible» (do Mikail
Cholokhov) ... mas era assim que eu gostava de
vir a escrever. Que se sentisse a vida em cada pa-
lavra, em cada linha, em cada frase [...]. (2015, p.
101)

É possível perceber como, em uma mesma entrada (data) do


diário, a escrita surge em momentos e de formas diferentes, ora
como autoimposição, como desejo de manter um ritmo de escrito,
mesmo diante das restrições do cárcere, ora como registro de
ideias novas ou de vontades antigas que serão retomadas. De qual-
quer forma, a escrita está ligada à vida, como afirma o autor: “que
se sentisse a vida em cada palavra”.

CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS | 44


A experiência do limite na escrita que se vai construindo nos
diários também aponta para a experiência do limite pela escrita, es-
crita literária, necessária, pulsante. E assim podemos ver as inquie-
tações do Luandino escritor, preocupado em manter a periodici-
dade da escrita, mas também duvidando da própria qualidade.

25-1-63
Fiz um apontamento para escrever um conto. Tí-
tulo “a história da galinha e do ovo”, a ser con-
tada com introdução e “moral final” como as his-
tórias tradicionais. (ex. “A história de Job Hamu-
kuaja”). Vou ver se o escrevo (se escrever, é o
conto de Fev.) Mas como também me posso arre-
pender e destruir o apontamento o melhor é co-
piar o que já está feito:
“Vou pôr a história da galinha e do ovo. Esta his-
tória passou no musseque Terra Nova, nesta
nossa terra de Luanda. Se é bonita se é feia, vocês
é que me vão dizer. Eu só sei é preciso contar-
lhe...” Mais nada. (2015, p. 111)

O leitor do diário vai aos poucos encontrando referências


das obras literárias já conhecidas de Luandino, como a "história da
galinha e do ovo" citada acima, mas também a referência a Vavó Xixi
que aparecerá tempos depois: “8-3-63 Ao acabar de rever a 4ª.
Parte do conto “Vavó Xixi” penso que não devo mais continuar a
escrever naquele estilo tão ostensivamente anti-português (lingua-
gem) mas procurar agora o estilo próprio que esta experiência se-
dimentou” (2015, p. 163). E aqui já encontramos um Luandino pre-
ocupado com a sua forma de escrita e com a busca de um estilo pró-
prio.
Assim, a experiência limitante do cárcere não faz de Luan-
dino um sujeito circunscrito às visões/impressões daquele espaço.
As preocupações políticas permanecem - "8-2-63 --(18 horas) Con-
curso literário da Anangola. Não sei se concorra, se não. Vou falar

45 | CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS


com a L. Se mando para lá certos trabalhos, aqueles tipo são capa-
zes de os irem entregar à pide..." -, mas Papéis da prisão não se limi-
tam a elas, oferecendo ao leitor mais do que a experiência do sujeito
político, mas também mostrando a capacidade atenta de Luandino
ao observar o que acontece a sua volta, e mais ainda, os caminhos
do escritor, suas leituras e as perspectivas de escrita que vão sur-
gindo diante da "vida hipotecada no cárcere".

REFERÊNCIAS:

COMPAGNON, Antoine. O trabalho da citação. Belo Horizonte:


UFMG, 2007.

EIRAS, Pedro. Esquecer Fausto. A fragmentação do sujeito em Raul


Brandão, Fernando Pessoa, Herberto Helder e Maria Gabriela Llan-
sol. Porto: Campo das Letras, 2005.

GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar, escrever, esquecer. São Paulo:


Ed. 34, 2009.

LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico. Belo Horizonte: UFMG,


2014.

VIEIRA, Luandino. Papéis da prisão. Lisboa: Caminho, 2015.

CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS | 46


47 | CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS
De acordo com a perspectiva de Antonio Candido (2000), o
texto ficcional pode problematizar aspectos sociais, sem, no en-
tanto, deixar de cumprir seu papel como expressão artística. O es-
tudo da relação entre literatura e sociedade possibilita, portanto, a
apreensão de camadas mais profundas de um texto literário ao as-
similar, como fator de arte, a dimensão social, em um processo em
que os aspectos externos se tornam internos para que o social es-
teja presente na forma artística. O texto literário não deve ser ob-
servado como documento e representação social, pois, para se ler o
literário, é fundamental apreender, tanto quanto o seu conteúdo, a
sua forma, já que ambos formam uma unidade inseparável.
O conjunto da obra do escritor brasileiro contemporâneo
Luiz Ruffato, nascido em 1961 na cidade mineira de Cataguases1,
recebeu, em 2016, o cobiçado Prêmio alemão Hermann Hesse de
Literatura. A pentalogia Inferno Provisório apresenta aspectos rele-
vantes da sociedade brasileira em cinco volumes: Mamma, son
tanto felice (2005), O mundo inimigo (2005), Vista parcial da noite
(2006), O livro das impossibilidades (2008) e Domingos sem Deus
(2011).
Cada volume da pentalogia é formado por diversas narrati-
vas-capítulos que compõem um romance-mosaico, já que podem
ser lidas isoladamente, mas se interpenetram em alguns momen-
tos, seja para afirmar ou contradizer dados, acompanhar a trajetó-
ria de personagens ou para focalizar aspectos sociais, a partir de
um mesmo cenário principal (a cidade de Cataguases) e sob uma

11
A pequena cidade de Cataguases, situada na zona da mata mineira, em que
nasceu Luiz Ruffato, passou, na transição do século XIX para o XX, pelos
processos de urbanização, modernização e industrialização, que alteraram sua
fisionomia. Além do estabelecimento de um pólo industrial, a implantação de
obras de pintura, escultura, arquitetura e paisagismo nas praças, prédios,
monumentos públicos e residências particulares de diversos artistas como Oscar
Niemeyer, Francisco Bologna, Burle Marx, Anísio Medeiros, Ceschiatti, Marcier
etc. proporcionaram uma repercussão nacional e internacional para o município.

CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS | 50


mesma perspectiva (a do trabalhador urbano). Subverte, dessa
forma, a história contada somente por aqueles que detêm o “poder”
e abarca o cotidiano das camadas pobres da sociedade, com seus
sonhos, anseios e dificuldades. Em novembro de 2016, uma nova
edição do Inferno Provisório foi lançada pela Companhia das Letras.
Os cinco romances foram reunidos em um único volume revisado,
reescrito e reestruturado pelo autor e isso reitera a provisoriedade
da saga ruffatiana.
O presente artigo analisa a trajetória de diferentes persona-
gens trabalhadores do segundo volume da pentalogia, O mundo ini-
migo, publicado em 2005 pela editora Record, a partir de questões
que envolvem o trabalho no mundo moderno e aspectos relevantes
sobre a personagem na narrativa brasileira contemporânea.

O TRABALHO NO MUNDO MODERNO

O polissêmico vocábulo “trabalho”, quando se refere à ativi-


dade profissional, na perspectiva econômica como fonte de subsis-
tência e acúmulo de material, denota uma experiência contingente
e ressignificada no tempo. De caráter pejorativo, indigno e inferior,
por representar a dimensão das necessidades do ser humano, na
Antiguidade, para citar um exemplo, passou, gradativamente, na
sociedade capitalista moderna, com a ascensão da burguesia, a ser
socialmente remunerado, capaz de garantir uma posição de desta-
que e respeito e, especialmente, o fator mais importante de sociali-
zação, de integração social.
André Gorz (2007, p. 21) ressalta que o sentido contempo-
râneo do termo trabalho foi uma invenção da modernidade, que,
com o industrialismo, tornou-se fundamental para a existência (in-
dividual e social) humana, formando, assim, uma sociedade de tra-
balhadores. Trata-se, em linhas gerais, de uma “atividade que se re-
aliza na esfera pública, solicitada, definida e reconhecida útil por

51 | CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS


outros além de nós e, a este título, remunerada”. E, é através dela
que, fundamentalmente, “adquirimos uma existência e uma identi-
dade sociais (isto é, uma ‘profissão’), inserimo-nos em uma rede de
relações e de intercâmbios, onde a outros somos equiparados e so-
bre os quais vemos conferidos certos direitos, em troca de certos
deveres”. A categoria do trabalho, portanto, tem um valor funda-
mental na vida do homem moderno, porém, ao mesmo tempo, esse
valor é esvaziado de sentido.
O surgimento de uma nova classe de operário-proletários
(totalmente despossuídos e reduzidos à força de trabalho) não ga-
rantiu a devida consideração à individualidade e às motivações de
cada um deles, pois era necessário regulamentar a conduta, tor-
nando, todas as esferas da sociedade e da vida dos indivíduos, raci-
onais, previsíveis e calculáveis, para garantir o funcionamento efe-
tivo das organizações. Houve, dessa forma, na sociedade capitalista,
alienação e monetarização do trabalho, como também do consumo
e das necessidades do indivíduo, processo denominado por Gorz de
“esfera da heteronomia”.
Foram criados os chamados instrumentos reguladores para
motivar os trabalhadores a almejar objetivos que não são reconhe-
cidos por eles e a executar um trabalho de não é possível gostar,
manipulando-os de forma invasiva, mas confortável, através de um
contraditório regime de coerção seguido de incitação ao consumo,
conforme salienta Gorz. De um lado, os reguladores incitativos ga-
rantem estímulos e recompensas materiais e individuais externas
ao trabalho, tais como dinheiro, segurança e prestígio. Eles se ca-
racterizam como contendo “um elemento de luxo, de supérfluo, de
sonho que, ao designar o comprador como um ‘feliz privilegiado’,
protege-o contra as pressões do universo racionalizado e a obriga-
ção de se conduzir de maneira funcional” (GORZ, 2007, p. 52). E o
salário torna-se, nesse contexto, fundamental para suprir satisfa-

CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS | 52


ções que somente o dinheiro pode comprar, sendo também a fina-
lidade essencial do trabalho alienado. Inclusive, até mesmo aqueles
que não pertencem às camadas assalariadas desejarão pertencer
para suprir as necessidades geradas pelo consumismo.
Em contrapartida, os reguladores prescritivos levam os in-
divíduos, sob penalizações, a adotarem as condutas regulamenta-
das e formalizadas por procedimentos da organização ou do Es-
tado. Ou seja, há uma intensificação da coerção com esses regula-
dores para garantir o processo de educação e socialização do tra-
balhador, que deve reproduzir atitudes instrumentais, como, por
exemplo, pensar que o mais importante é o salário ao fim do mês e,
na postura de consumidor, cobiçar as “mercadorias e os serviços
mercantis como se estes fossem a própria finalidade de seus esfor-
ços e significassem os símbolos de seu sucesso” (GORZ, 2007, p. 50).
Conforto e prazer tornam-se, assim, sinônimo de êxito profissional.
As virtudes da vida privada de bom pai ou bom marido, cobiçados
pela vizinhança, também são baseadas no status e na eficácia pro-
fissional. Em síntese, a ordem econômica moderna é que determina
o estilo de vida dos indivíduos e que, principalmente, desagrega “as
redes de solidariedade e ajuda mútua, a coesão social e familiar, o
sentimento de pertencimento” (p. 53).

A PERSONAGEM NA NARRATIVA
BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA

Giorgio Agamben (2009, p.62) ressalta, com base na afirma-


ção de Barthes, que ser contemporâneo é ser capaz de manter “fixo
o olhar no seu tempo, para nele perceber não as luzes, mas o es-
curo” e ainda nesse escuro perceber uma luz. Karl Erik Schollham-
mer (2009, p. 9), nessa perspectiva, conceitua o contemporâneo
como “aquele que, graças a uma diferença, uma defasagem ou um

53 | CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS


anacronismo, é capaz de captar o seu tempo e enxergá-lo”. O que
não representa um conceito fechado, pois a literatura contemporâ-
nea pode não ser exatamente aquela que representa a atualidade,
já que pode tratar de um passado perdido ou até mesmo de um fu-
turo utópico, mas com o olhar desconfiado do presente.
Ao realizar um mapeamento da produção ficcional brasileira
das últimas décadas, com suas respectivas rupturas e continuida-
des, Schollhammer destaca a pluralidade de autores e estilos, que
perpassam pelas narrativas tradicionais, pelas formas ultracurtas
de minicontos, por estruturas complexas e fragmentadas, experiên-
cias de linguagem e de estilos, como também por composições hí-
bridas que mesclam o literário e o não literário.
No entanto, Regina Dalcastagnè reitera que, apesar dessa di-
versidade e ampliação, o campo ainda é extremamente homogêneo,
com a predominância de escritores homens, brancos, de classe mé-
dia, com escolaridade superior e moradores de grandes cidades.
Esse perfil também é predominante na composição de suas perso-
nagens, como observa Dalcastagnè em pesquisa intitulada “Perso-
nagens do romance brasileiro contemporâneo”, publicada no livro
Literatura brasileira contemporânea: um território contestado, de
2012. Quando há a representação das vítimas de violência urbana,
elas geralmente são negras e moradoras de periferia. Ou seja, são
perspectivas escassas que não representam a pluralidade da socie-
dade brasileira. Dessa forma, considerando os elementos do que
Antonio Candido (2006) denominou “sistema literário”, Dalcas-
tagnè discute o perfil extremamente limitado de produtores literá-
rios, de grupos representados, e, consequentemente, de consumi-
dores de literatura. Essa questão reitera a desigualdade social do
país e a necessidade de uma democratização na sociedade, como
também na literatura.
Ao observar como os escritores são parecidos entre si, por
pertencerem a mesma classe social, terem as mesmas profissões,

CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS | 54


viverem nas mesmas cidades, terem a mesma cor ou o mesmo sexo,
a pesquisadora apresenta estatisticamente a limitação de perspec-
tivas representadas na literatura contemporânea, principalmente
pela ausência de pobres e negros (escritores e personagens), que,
dessa forma, não expressam as diferentes maneiras de ver e de per-
ceber o mundo.
Quando surgem novas vozes, pertencentes a grupos silenci-
ados ou não autorizados, com outras perspectivas e abordagens,
causam um desconforto e precisam ter seu lugar de fala, sua legiti-
midade e sua autoridade reforçados constantemente pela acade-
mia, antes de qualquer debate estético, por serem considerados
como literatura “menor” ou de cunho sociológico, conforme reitera
Dalcastagnè. Dessa forma, entram em debate, fundamentalmente,
questões de acesso à voz e de representação dos diversos grupos
sociais a partir do lugar de fala. Assim, as temáticas que buscam re-
presentar o outro literariamente estão em voga na contemporanei-
dade, mas as vozes que falam em nome desses grupos silenciados
não pertencem efetivamente a eles, na maioria dos casos.
Dalcastagnè (2012, p.149), nesse sentido, ressalta a homo-
geneidade de grupos representados literariamente, em consonân-
cia com a monopolização daqueles que obtêm o lugar de fala. Entre
os dados coletados, sendo que fez parte de seu corpus um total de
258 romances publicados entre os anos de 1990 e 2004 pelas edi-
toras centrais no campo literário brasileiro no período (Record,
Companhia das Letras e Rocco), foram destacados 165 autores e
1245 personagens consideradas “mais importantes”. A partir desse
corpus foi observada a “invisibilização de grupos sociais inteiros e
o silenciamento de inúmeras perspectivas sociais”.
As narrativas contemporâneas, em que predominam o es-
paço urbano e o período histórico atual, possuem, em linhas gerais,
o perfil de personagens masculinas, brancas, heterossexuais e de

55 | CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS


classe média, assim como seus autores, conforme comentado. É no-
tável a ausência das classes populares. O que não é de exclusividade
da literatura, lamentavelmente. Mulheres, negros e trabalhadores,
principalmente, são socialmente excluídos e “estão sub-represen-
tados no parlamento (e na política como um todo), na mídia, no am-
biente acadêmico” (DALCASTAGNÈ, 2012, p. 18).
Sobre o trabalhador brasileiro, que antes da ditadura militar
era desconhecido, sendo que obtinham destaque bandidos, malan-
dros e vigaristas, ainda é difícil encontrar sua representação “como
alguém com uma história, um passado, projetos e sonhos, parecidos
ou não com os nossos” (p. 31). Ou seja, o trabalhador é tratado
como um conjunto uniforme, uma categoria, assim como já fazia
Aluísio Azevedo em O Cortiço (1890), embora, como observa o crí-
tico Paulo Franchetti (2012, p.57), no caso de Azevedo, “o que se
perde em profundidade e em particularização é compensado pela
visão de conjunto”. Vale citar também, nesse contexto, a obra de
Jorge Amado que obtém destaque por retratar aspectos do traba-
lhador explorado brasileiro na sequência, por exemplo, dos roman-
ces Cacau (1933), Suor (1934) e Jubiabá (1935). No entanto, trata-
se de uma perspectiva diferente de Ruffato, pois Jorge Amado res-
salta a consciência e luta de classe e a militância política.
Regina Dalcastagnè (2012, p.31) explica que os autores bra-
sileiros geralmente se mostram muito mais sensíveis à vivência dos
estratos sociais a que pertencem, portanto, mesmo quando objeti-
vam realizar um painel da vida contemporânea, a predominância é
a classe média “como se a diferença que separa um médico de um
advogado fosse mais significativa do que aquela que afasta um bal-
conista de lanchonete de um motorista de ônibus”. As relações pro-
fissionais predominantes na narrativa contemporânea apresentam
as personagens masculinas como incorporadas ao mercado de tra-
balho, enquanto as femininas permanecem confinadas ao espaço

CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS | 56


privado. Há também a predominância do universo masculino nas
relações de amizade ou de inimizade.
Quando são referenciadas, as profissões ou ocupações mas-
culinas que se sobrepõem nas narrativas do período analisado são
as de escritor, bandido, artista e estudante, respectivamente nessa
ordem. Enquanto dona de casa, artista, sem ocupação e empregada
doméstica são destinadas às personagens femininas. Nesse pano-
rama, “é como se o trabalho – com todo o seu universo, formado
pelos colegas e os chefes, as pressões, o cansaço, as intrigas, os jo-
gos de poder, as fofocas no botequim ao final do dia – não fosse um
tema digno para a literatura” (DALCASTAGNÈ, 2012, p. 169), ex-
plica Dalcastagnè.
A obra de Luiz Ruffato obtém destaque como contraponto
do que tem sido feito por muitos escritores, pois, em Inferno Provi-
sório, apresenta “um quadro sensível e diversificado do mundo do
trabalho no Brasil das últimas décadas” (DALCASTAGNÈ, 2012, p.
31), com sua respectiva pluralidade e subjetividade. A partir dos
dados coletados, Regina Dalcastagnè aponta observações extrema-
mente interessantes e vale ressaltar sua colocação ao se referir à
literatura como um espaço de liberdade e sem compromisso com o
real, mas ainda sim extremamente excludente por silenciar deter-
minados grupos sociais e, dessa forma, permanecer inacessível
para muitos.

OS TRABALHADORES DE O MUNDO INIMIGO

O mundo inimigo é constituído por doze narrativas-capítu-


los, cujos títulos são respectivamente, “Amigos”, “A demolição”, “O
barco”, “A solução”, “A mancha”, “Jorge Pelado”, “Ciranda”, “Paisa-
gem sem história”, “A danação”, “A decisão”, “Um outro mundo” e
“Vertigem”. A denominação narrativas-capítulos se refere ao fato

57 | CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS


de poderem ser lidas isoladamente sem perderem vínculos em re-
lação, principalmente, ao espaço e à trajetória das personagens,
constituindo, dessa forma, um romance-mosaico.
As narrativas-capítulos de O mundo inimigo se associam,
portanto, fundamentalmente por dois pontos: o estrato social das
personagens, que pertencem à classe trabalhadora, e o espaço cen-
tral, que é o Beco do Zé Pinto, situado no bairro Vila Teresa na ci-
dade de Cataguases. Essas duas questões estão relacionadas pois, a
partir do empreendimento de Zé Pinto, que oferece, além de mora-
dia, condições materiais em diferentes níveis para subsistência de
seus inquilinos trabalhadores, é que ocorre a interação entre as
personagens que são apresentadas por diferentes perspectivas no
decorrer do romance.
Em O mundo inimigo a presença de um narrador em terceira
pessoa é recorrente. No entanto, não é possível afirmar que seja
apenas um no conjunto das narrativas do romance pois, além de
não explicitar a relação entre os doze capítulos, o narrador (ou os
narradores) se comporta(m) de diferentes maneiras para acompa-
nhar as trajetórias das personagens, apresentando suas perspecti-
vas, e, inclusive, alterando as estruturas frasais e da narrativa. Ou
seja, a narração não ocorre fixa em apenas uma personagem e, por-
tanto, não há nenhuma protagonista, pois cada narrativa-capítulo
focaliza um núcleo de personagens. Entre as diferentes figurações
de sujeitos trabalhadores representados, destacam-se operários,
lavadeiras, domésticas, alcoólatras, prostitutas, desempregados...
que compartilham de uma miséria (que vai além da financeira) e de
uma violência (que vai muito além da física) em um espaço urbani-
zado e excludente. Trata-se de uma opção ética e estética de Luiz
Ruffato, que coloca em destaque identidades não narradas com fre-
quência pelos escritores brasileiros contemporâneos, como aponta
pesquisa coordenada por Dalcastagnè.

CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS | 58


Também não há uma organização temporal linear no ro-
mance, nem uma delimitação de início e fim, embora a decadência
do Beco ocorra na última narrativa. Em diversos momentos, há es-
paços em branco, reticências, alterações de tipo de fontes e marca-
ções em itálico e negrito que demarcam, principalmente, fluxos de
consciência, reminiscências, reflexões, sonhos, diálogos e vozes das
personagens, ou ainda um domínio precário da linguagem por
parte de determinada personagem. Muitas vezes, não é possível
identificar claramente, apenas supor a voz que narra.
No romance, não há nenhuma referência explícita ao tempo
em que as narrativas se passam. Mas, mesmo com diversos deslo-
camentos temporais, é possível supor que elas perpassam por al-
guns fatos históricos do Brasil como, por exemplo, a euforia do de-
senvolvimento do período de JK e o milagre econômico da ditadura,
principalmente pelo estímulo ao consumo e o recrutamento de tra-
balhadores na capital paulista, que podem ser observados nas mu-
danças de Gildo, Gilmar e Amaro para São Paulo, como também nos
cobiçados bens adquiridos por Zé Pinto. Diversas referências tam-
bém reforçam alguns símbolos do período: rádio, telenovela e re-
vistas. Além disso, o próprio autor reitera em suas entrevistas a se-
quência temporal de seu projeto literário: “O mundo inimigo discute
a fixação do primeiro proletariado numa pequena cidade industrial
(década de 60 e começo da de 70)” 2.
Mesmo não sendo protagonista de O mundo inimigo, a per-
sonagem Zé Pinto tem relevância no conjunto das narrativas pelo
fato de ser o proprietário do Beco. Além disso, a trajetória de Zé
Pinto torna-se exemplar para as demais personagens por concen-
trar os temas da precariedade, da solidão e da desintegração, re-
presentados também pelo próprio Beco e pela forma romanesca. Zé

2RUFFATO, Luiz. “Entrevista exclusiva com Luiz Ruffato”. Blog da Beleza, 27 abr
2008. Entrevista concedida a Rinaldo de Fernandes. Disponível em
<https://goo.gl/Mnm0OA>. Acesso em 25 mar 2015.

59 | CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS


Pinto surge já na primeira página de O mundo inimigo, quando Lu-
zimar, ao sair da fábrica na véspera do Natal, em “Amigos”, pensa
em possibilidades para conseguir comprar um presente de Natal
para sua esposa, mesmo comprometendo o décimo terceiro salário
a ser recebido ao adquirir uma quantia emprestada, indicando as
leis trabalhistas já vigentes:

(...) levar alguma coisa pra Soninha tenho de ar-


rumar dinheiro, sobe a Rua do Comércio (luzi-
nhas emaranham as vitrinas, um esbaforido pa-
pai-noel se desdobra rôu-rôu-rôu vermelho), seu
zé pinto quem sabe o décimo-terceiro ela merece,
ansioso cruza a Ponte Nova (o Rio Pomba gordo
embaixo), ah merece coitada depois depois eu dou
um jeito, duvidoso transpõe a Pracinha (mole-
ques zonzeiam uma bola dente-de-leite), será
que ele empresta?, entra, na Vila Teresa, assino
promissória, com efeito! (RUFFATO, 2005, p. 15,
grifos do autor)3.

Perpassando pela cidade, Luzimar, de bicicleta, encontra


com Dona Marta, mãe de Gildo e Gilmar, seus amigos de infância, e
relembra: “A gente morava ali, no Beco do Zé Pinto” (p. 15), já que
ela há muitos anos morava ao lado do Beco, vizinha de muro. Já no
início de “Amigos’, ao encontrar Gildo, Luzimar “esfrega a graxa
seca dos dedos no forro do bolso, espana os minúsculos fiapos de
algodão agarrados nos cabelos, na camisa, na calça” (p. 16) e, ao
contar como seguiu sua vida em Cataguases como operário da Ma-
nufatora, no setor de embalagens, revela os vestígios de sua rotina
na fábrica em seu corpo através de pequenas atitudes: “Não tenho
mais força nas mãos... o reumatismo...” (p. 17). Luzimar, nessa nar-
rativa, anos após a mudança do Beco, entre dez e onze anos, revela,

3Todas as citações de O mundo inimigo foram extraídas da edição de 2005


publicada pela editora Record.

CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS | 60


portanto, que se tornou um operário frustrado em Cataguases, que
sua mãe permanecia como lavadeira e que sua irmã Hélia se casou
e teve três filhos, contrariando seus sonhos adolescentes, bem
como as expectativas de seu pai Marlindo.
Na narrativa-capítulo “O barco”, o pai de Luzimar4, Mar-
lindo, pajem da única família de classe média do romance e mora-
dor do Beco, aos quarenta e três anos, sendo que “o povo daria bas-
tantes mais” (p. 43), é caracterizado como envelhecido pelo excesso
de trabalho, cujas marcas estão expressas em seu próprio corpo,
conforme ilustra a passagem a seguir:

Franzinho, magro, transparente. Uma larga es-


trada devastara seus cabelos, no antigamente, e
uma berruga enorme encapelava seu cocoruto.
Rosto escavado pela bexiga, olhos mel escondi-
dos em covas enegrecidas. Desconhecia pai e
mãe, indigentes enterrados em rasas sepulturas
no cemitério de Guiricema. Dera duro para en-
grenar como gente. O pão que o diabo amassou,
comera com gosto. (p. 43)

A trajetória de Marlindo é marcada por uma personalidade


instável, já que perpassou por inúmeras situações trabalhistas en-
tre Cataguases e cidades adjacentes (atividades relacionadas à eco-
nomia rural, operário na fábrica e atividades autônomas). Essa ins-
tabilidade também é ilustrada pela fluidez do signo mar presente
na partícula inicial de seu nome: MAR/LINDO, o que soa irônico
tendo em vista a trajetória do personagem. Ele apenas se fixou
como pajem pela insistência de sua esposa Zulmira, pois não era
capaz de determinar seu futuro sozinho.

4 No tempo dessa narrativa, Luzimar tinha aproximadamente 10 anos de idade.

61 | CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS


E, a partir de então, tornou-se um outro homem: se conver-
teu para a Igreja Quadrangular, e, consequentemente, largou ci-
garro, bebida e pensamentos ruins, também não agrediu mais os
filhos. A ética protestante pode ser observada no fato de que
mesmo não se adaptando ao sistema de incitação e coerção da in-
dústria capitalista, Marlindo, após converter-se, passou a ter cons-
ciência de que era importante almejar uma colocação para ascen-
der socialmente e garantir um “futuro”, mas ainda com um pensa-
mento machista, ao reproduzir um discurso que reitera a naturali-
zação da violência contra a mulher, enraizada na sociedade, pois,
para a filha, desejava apenas um bom marido que não a violentasse:

Hélia, menina-moça, habitava o mundo da lua. À


espera de um príncipe encantado. Que nunca
apareceria. Porque não existem. Mas, vá meter
isso na cabeça-dura dela! Tentara arrastá-la,
Deus era testemunha. Conseguia era o deboche.
A esculhambação. Namoradeira, fazia vista
grossa aos deslizes. Orava por ela. Para que arru-
masse logo um marido. Um homem bom. Que não
batesse nela. (p. 45)

E, para o filho Luzimar, sonhava com uma colocação na ca-


pital paulista:

Já o menino, o preocupava. Sonhava, com o aval


de Deus, um mundo melhor para ele. Um curso
de toneiro-mecânico no Senai. Ou de ajustador
mesmo, já estava bom. Morando em São Paulo.
Endinheirado. Sem precisar de passar necessi-
dade. Dando de presente para a mãe um gela-
deira. Ou uma enceradeira. Orgulho da família.
Bem-falado. (p. 45)

Nessa passagem, é possível refletir sobre a transformação


de perspectiva de Marlindo pois, com a chegada do progresso,

CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS | 62


mesmo que precário na cidade de Cataguases, o narrador focaliza
pequenas mudanças na trajetória (também precária) de um ho-
mem pobre que vivenciou inúmeras incertezas, frustrações e pri-
vações até passar a desejar para o filho um futuro diferenciado.
Além de um curso técnico no Serviço Nacional de Aprendizagem In-
dustrial (SENAI), Marlindo almejava a mudança de Luzimar para a
capital paulista. O que revela uma consciência de que, mesmo com
o crescimento da pequena Cataguases, as oportunidades ainda
eram limitadas. Enquanto São Paulo recrutava, principalmente de
zonas rurais, a partir do período do Estado Novo, a mão de obra
então necessária para a indústria.
O salário como objetivo primordial do trabalho também é
destacado pela perspectiva de Marlindo que desejava um filho as-
salariado e com boas condições financeiras, mesmo que distante da
família, capaz de presenteá-los com bens materiais de consumo e
garantir status na vizinhança. Porém, sabia do empenho e investi-
mento necessários para tais conquistas e reflete: “Mas, para isso,
precisava de firmeza. Determinação. Meu Deus, quantos sacos de
serragem?, quantos carrinhos-de-mão cheios de toquinhos teria de
empurrar ainda para a mulher ferver roupa para fora? Quantos? (p.
45).
Hélia, filha de Marlindo e irmã de Luzimar, ainda adoles-
cente e moradora do Beco, apresenta seu cotidiano estressante na
fábrica logo no início de “A solução”, quarta narrativa-capítulo do
romance. Insatisfeita com sua condição social, a rotina de Hélia,
que, além de estressante, é repetitiva, entre a casa (Beco) e o traba-
lho (Fábrica), salvo alguns momentos de lazer com as amigas e pre-
tendentes a namorado, é revelada insistentemente pelo narrador e
sem perspectivas de mudanças. Na Fábrica, as ordens de seus su-
periores eram muitas: “olho-vivo nos teares, cuidado com a lança-
deira, cuidado com espula, cuidado para não arrebentar a auréola,

63 | CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS


cuidado, cuidado, cuidado!” (p. 68), e Hélia ainda sofria com assé-
dios de seu contra-mestre, pelo fato de que “(...) precisa do em-
prego, fim do mês o pai contava com envelope pardo” (p. 67).
Nessa narrativa, as características do Beco, gradativamente,
começam a ter mais destaque na narrativa, pois a personagem tam-
bém observa os sons do espaço em um sábado à tarde. No entanto,
a tranquilidade nem sempre predominava no Beco, pois, ainda em
“A solução”, em um momento de reflexão, Hélia é interrompida por
uma cena de violência entre marido e mulher, em que Zé Pinto con-
segue restabelecer a ordem. Nesse momento, Zé Pinto começa a
participar mais ativamente da narrativa, visto que não é apenas re-
ferenciado como o dono do Beco, mas sim como peça fundamental
para o desenrolar de determinado acontecimento na trama, como
no episódio em que restabelece a ordem no local após uma discus-
são entre marido e mulher. E, a partir dessa narrativa-capítulo, é
que o leitor vai percebendo a importância dele para a trajetória da-
queles que vivem no Beco e montando as peças do romance-mo-
saico. Apesar de não ser herói do romance, Zé Pinto tem um papel
importante nessa constelação de narrativas, principalmente por
ser o dono do Beco e o mantenedor da ordem no local, como tam-
bém por exercer o papel de várias instituições com o objetivo de
garantir o mínimo de subsistência de seus inquilinos.
As narrativas “A mancha”, “Jorge Pelado” e “Ciranda” apre-
sentam o núcleo da personagem Bibica e seus três filhos. Zé Pinto
torna-se fundamental para a trajetória de Bibica, pois, após sair da
Ilha (denominação do prostíbulo da cidade cujo atalho de entrada
pertencia ao Beco), conquistou a confiança dele para alugar um cô-
modo. A trajetória de Bibica é marcada pela saída da Ilha, onde era
prostituta, para o Beco, onde tornou-se lavadeira e criou seus três
filhos. Enganada por Sr. Antônio Português (cujos assédios eram
acompanhados por presentes), dono de uma venda, grávida e aban-
donada, arrumou mais lavagens de roupa: “Pra ajudar a distrair, a

CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS | 64


não pensar em besteira”. De manhã à noite na lida: lavava, esfre-
gava, batia, enxaguava, quarava, estendia, secava, recolhia, passava,
entregava. À noite, um sono de pedra” (p. 82).
Seu filho Zunga, o mais velho, que não tinha emprego formal,
pois era homem de confiança de Dr. Normando (influente na ci-
dade) e ainda roubava Bibica de vez em quando, prometia ser uma
pessoa “normal” para conquistar Cidinha, prostituta da Ilha:

Queria ser uma pessoa normal... trabalhar na fá-


brica como todo mundo... ter uma família... do-
mingo ir pro campo ver jogo, ir na missa, en-
tende? Vamos casar, Cidinha? Eu mudo de vida.
Amanhã mesmo acordo cedinho, vou na Manufa-
tora fazer ficha, depois na Industrial, na Saco-
Têxtil, na Irmãos Prata, você vai ver... De um lu-
gar acaba saindo uma colocação... Aí eu tiro você
daqui... A gente casa, de papel passado e tudo,
que comigo não tem esse troço de amigar não, é
tudo preto no branco... A gente compra um terre-
ninho, levanta as paredes... (p. 121)

Zito Pereira, em “A danação”, concretiza o desejo de retornar


a Cataguases e, no Beco, constitui família. Caracterizando São Paulo
como uma “vala comum”, por ser constantemente o destino de
quem busca melhores condições de vida, ele enumera os fracassos
na capital paulista, que contrariavam as expectativas de outrora.
Frustrado, Zito decide retornar a Cataguases, apesar dos aconselha-
mentos de um colega que já havia passado pela experiência falhada
do retorno, sob a justificativa de que em sua cidade natal seria dife-
rente devido às oportunidades de emprego:

Um baiano, que trabalhava com ele, falou, Mi-


neiro, eu estava bem aqui, me deu um troço, com-
prei passagem pra Serrinha, larguei tudo. Dei
com os burros n’água. Tive que voltar com o rabo
entre as pernas. O Brasil tem jeito não. Só aqui a

65 | CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS


gente véve decente, sabendo que pode contar
com ordenado certo no fim do mês. É, mas lá na
minha cidade tem muita indústria, se o sujeito ti-
ver cabeça dá pra viver no de-acordo. (p. 140)

Zito identifica Cataguases como a “minha cidade” e retorna.


Mesmo com a presença de muitas indústrias foi extremamente di-
fícil conseguir uma colocação e, portanto, a frustração permanece.
Após inúmeras tentativas, consegue uma colocação como ajusta-
dor-mecânico na oficina da Manufatora. Depois de quinze anos de
Fábrica, é despedido, mesmo com tantos filhos para sustentar e cer-
tificações técnicas, com a justificativa de uma crise no mercado de
algodão. “Morava num porão úmido, cômodos separados por com-
pensados. Esse, o resultado de anos e anos de labuta” (p. 141), la-
mentava o desempregado, pensando no exemplo que daria aos fi-
lhos. Ou seja, Zito Pereira não encontrou o que foi buscar em Cata-
guases.
Em “A decisão”, a trajetória de Vanin é apresentada a partir
do empréstimo de Zé Pinto para a realização de seu sonho, cuja ga-
rantia do pagamento foram seus móveis empenhados. Vanin, único
personagem que anseia a arte em O mundo inimigo, é descrito da
seguinte maneira, no início da narrativa-capítulo: “Fundas olheiras
conquistadas em noites farristas, debaixo de janelas seresteiras, em
riba de camas camaradas. Em seu favor, conste, não fumava, nem
bebia, Prejudica a raiz da voz. Trabalhar sim, mas não de dar duro:
biscateava; seu negócio era o bem-bom” (p. 147). Quando conheceu
Zazá, apaixonaram-se. Ela era seu oposto. Portanto, Vanin fez pro-
messas para concretizar o casamento: “Falou para o pai dela, seu Zé
do Carmo, que arrumava emprego decente, e logo-logo negaceava
das lançadeiras na Manufatora. Já já viro encarregado, o senhor vai
ver” (p. 148). E assim fez. Casaram-se. Mas, o novo perfil de Vanin,
cujo trabalho formal era a exigência para o casamento, durou por

CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS | 66


pouco tempo, já que não aguentava as exigências do mundo do tra-
balho. Para investir em seu sonho de seguir carreira de músico, Va-
nin articulou uma apresentação na rádio. Devido aos atrasos, per-
deu o emprego na Fábrica, não havia possibilidade de conjugar as
duas atividades: “O encarregado avisou, reavisou, treavisou. Vanim
foi levando no bico: ganhou sobrevida. Mas já sabe: só tem mais um
fôlego. Perdeu hora de novo, tchau e bença! Lá fora está assim de
gente querendo serviço! Uma fila!” (p. 163, grifos do autor). Pen-
sando na fama e no dinheiro, enganou Zazá, empenhou os móveis
para Zé Pinto e, em busca de seu sonho, partiu para o Rio de Janeiro:
“Caminhou devagar, sol forte de um domingo de novembro, da
Ponte Nova avistou as piscinas inatingíveis do Clube do Remo, mo-
ças e rapazes se divertindo, invejou-os” (p. 165). O mundo do tra-
balho (dominante), para o operário Vanin, exclui totalmente do co-
tidiano as possibilidades artísticas.
Apenas na penúltima narrativa-capítulo, “Um outro mundo”,
a trajetória de Zé Pinto, desde a idealização do beco até sua velhice,
é contada efetivamente a partir de sua própria perspectiva, e, dessa
forma, as relações entre todas as narrativas do romance são perce-
bidas com mais clareza, pois seu núcleo específico é focalizado. Em
“Vertigem” há uma continuidade da história de Zé Pinto, como tam-
bém de seu Beco.
Além do Beco, construído a partir da percepção de Zé Pinto
em relação às necessidades de uma classe trabalhadora em forma-
ção na cidade, outros empreendimentos auxiliavam seus inquilinos
nas mais diferentes esferas do cotidiano, como, por exemplo, um
caminhãozinho para fazer mudanças que também fez excursões
para Aparecida do Norte e o botequim que se tornou fliperama cu-
jos empregados eram os próprios meninos do Beco. Dessa forma,
assumindo um espírito capitalista e visionário, o personagem con-
seguiu se destacar na vizinhança, adquirindo bens materiais que
causavam inveja e eram reaproveitados para gerar lucro:

67 | CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS


O primeiro na rua a ter geladeira, quando nin-
guém nem sonhava com isso. A ter televisão, uma
coisa tão importante que a janela ficava suja de
gente espiando. A ter telefone, que até serviu
para ganhar um dinheirinho extra, cobrando pe-
los recados que recebia e enviava. A ter fogão-a-
gás, enceradeira, vespa, um luxo! Mas, para con-
quistar esses confortos todos, haja tino! E tutano.
(p. 181)

Ainda em “Um outro mundo”, a decadência de seu Beco é re-


latada a partir de suas próprias reflexões, em que avalia progressos
e retrocessos de seu empreendimento: “As casas estão caindo aos
pedaços, sim. Telhas rachadas. Reboco lascado. Piso desdentado. E
a imundice? O mau cheiro percebe-se da rua. Mas, o que fazer? Está
velho, não tem forças. O aluguel não rende mais nada. Mal dá para
complementar a aposentadoria” (p. 178-179). Além disso, “O nível
dos inquilinos caiu muito, Agora, no beco, só gente desgarrada. Sem
eira nem beira. Desqualificada. Tem uns que vivem de passar tó-
xico, onde já se viu? Houve até um crime de morte (p. 178), fato que
registra a chegada da violência no Beco na pequena cidade, resul-
tante do progresso. E, inclusive, seu nome não impõe mais o res-
peito de outrora e, portanto, não consegue mais garantir a ordem
no local: “Agora a coisa se resolve com a polícia. Trata os soldados
a pão-de-ló, precisa deles. Tem confusão? Chama a radiopatrulha.
Despejo é muito complicado” (p. 178).
Já em “Vertigem” a trajetória de Zé Pinto (e do Beco) é com-
plementada. Nessa narrativa, o personagem Amaro retorna de São
Paulo para Cataguases, como visitante, “melancolicamente velho,
irremediavelmente doente” (p. 189), em busca de recuperar, no
passado perdido, um amor de adolescência. A estrutura de “Verti-
gem” contém diversas interrupções que simulam a doença que dá
título à narrativa. Em busca de Margarida, ele observa atentamente

CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS | 68


a cidade que tanto mudara. Ao chegar no Beco, onde morava antes
da mudança para São Paulo, Zé Pinto ressurge no romance. Agora,
a partir dele, nenhuma ação. É observado (e não reconhecido) como
descreve a passagem a seguir, como se fosse um objeto:

No quarto escuro, abafado, fedendo a mijo re-


cente e azedo de restos de comida, imbecilizada-
mente sentado numa cadeira-de-rodas, abando-
nado a um canto, móvel sem utilidade, um cober-
tor imundo a lhe cobrir os gravetos de pernas, Zé
Pinto, baba no canto da boca, o corpo penso,
inerte. (p. 192)

Como resposta, Josemar, sobrinho de Zé Pinto, justifica que


o tio aguardava a morte, sob seus cuidados, bem como a nova con-
figuração do Beco e sua decadência, registradas em negrito:

O médico falou que ele só não morreu ainda


porque é uma fortaleza... o problema é que
tive que largar meu emprego, ficar por
conta... o senhor sabe, ele não deixou filhos...
as coisas estão tudo embaralhadas... Recebi o
encargo... família... o senhor entende... Tam-
bém, não fosse, ele acabava perdendo tudo...
O beco mesmo, nós só estamos esperando ele
morrer pra derrubar as casas... não sei na
época do senhor, outros tempos, mas agora é
só marginal... barra-pesada... até na polícia
metem medo... (p. 193, grifos do autor)

E essas são as últimas informações sobre Zé Pinto no ro-


mance, que já previa o interesse dos sobrinhos e por isso “Não fez
testamento. Há muito deixou de pagar imposto” (p. 186). Zé Pinto
“sem amigos, compadres, parceiros, nem ninguém para lhe fechar
os olhos na hora em que a indesejada encostar no batente da porta

69 | CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS


para anunciar o fim” (p. 186), assim como o próprio já havia indi-
cado, e com a tentativa frustrada de Amaro em resgatar o passado,
já que reencontra Margarida internada em um hospício de Juiz de
Fora pelo diagnóstico com crise de nervos. Ela não o reconhece e
grita por socorro. O diálogo confuso entre ambos é registrado em
negrito. O romance termina com Amaro saindo do prédio ouvindo
“Socorro! ocorro! orro!” (p. 202, grifos do autor).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A personagem Zé Pinto, portanto, aparece já na primeira


narrativa-capítulo, vai se tornando mais ativo no decorrer do ro-
mance, apresenta sua trajetória em “Um outro mundo” e surge “coi-
sificado” ao final do romance, em um recorte de tempo e espaço que
vai das necessidades políticas e econômicas de uma “sociedade de
trabalhadores” em formação até a predominância da violência no
espaço urbano. No entanto, Zé Pinto não é mais ou menos impor-
tante em determinado momento do romance, já que nenhuma pers-
pectiva se revela como autêntica. Mesmo sem ocupar o papel de he-
rói da narrativa (já que é um sujeito precário como os demais), ele
possui uma importância para as outras personagens (seus inquili-
nos), pelo fato de preencher lacunas de instituições fundamentais
para a formação social. Zé Pinto pode ser considerado como exem-
plar para as demais personagens de O mundo inimigo, pois sua tra-
jetória concentra as três questões recorrentes no romance: preca-
riedade, solidão e desintegração.
Essas questões reaparecem na representação dos sujeitos,
visto que, no conjunto das narrativas, algumas personagens dese-
jam sair da cidade em busca de melhores condições materiais, e,
mesmo quando conseguem, não se encontram plenamente realiza-
das, principalmente pela quebra de laços afetivos, retornando,

CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS | 70


numa tentativa frustrada, em alguns casos; enquanto outras per-
manecem insatisfeitas em sua terra natal, independente do sexo,
faixa etária, condição social... E aparecem também na forma roma-
nesca, pois, Luiz Ruffato, ao constatar a impossibilidade de um re-
lato autêntico da experiência, opta pelo fragmentário e abdica do
realismo tradicional em um romance-mosaico que permite que as
personagens, inseridas em um contexto urbano fora do eixo Rio-
São Paulo, sejam vistas por diferentes perspectivas problematizan-
tes, mas todas precárias.
Dessa forma, a partir da análise da trajetória das persona-
gens de O mundo inimigo, é possível refletir sobre principalmente
duas questões. Primeiro, as estratégias narrativas utilizadas por
Luiz Ruffato para apresentar a perspectiva de personagens perten-
centes à classe trabalhadora. Há na narrativa um narrador (ou nar-
radores) onisciente(s) em terceira pessoa que se comporta(m) de
diferentes maneiras nas doze narrativas-capítulos para se aproxi-
mar de diferentes subjetividades, alterando, inclusive, a estrutura
da narrativa, o que oferece mais sensibilidade ao romance. Ao optar
por uma narrativa não linear, sem um narrador organizador dos fa-
tos e dos pensamentos dos personagens, Ruffato dá voz ao perso-
nagem trabalhador e permite, portanto, que o leitor aproxime-se
um pouco mais das diferentes figurações de sujeitos trabalhadores.
Por isso, é que Ruffato é uma exceção na literatura brasileira con-
temporânea, já que, a partir de seu lugar de fala, representa a classe
trabalhadora com seus anseios, sonhos e dificuldades.
Segundo, a representação do mundo do trabalho, que tem
estado ausente de boa parte da narrativa brasileira contemporâ-
nea. Pode-se dizer até que o trabalho tem sido um assunto silenci-
ado e o trabalhador ignorado na atual ficção brasileira. Em O mundo
inimigo, essa categoria, sob a perspectiva da racionalidade econô-
mica e a partir do desenvolvimento da cidade de Cataguases, é tra-

71 | CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS


tada como fundamental para o cotidiano de suas personagens. Po-
rém, as mudanças trazidas pelo progresso, como pode ser obser-
vado tanto na trajetória de Zé Pinto como nos demais núcleos nar-
rativos, não ofereceram uma mudança significativa na qualidade de
vida de todos. O trabalho, portanto, tem um valor na vida do homem
moderno, mas ao mesmo tempo esse valor é esvaziado de sentido.

REFERÊNCIAS

AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? e outros ensaios.


Trad. Vinícius Nicastro Honesko. Chapecó, SC: Argos, 2009.

CANDIDO, Antonio (1965). Literatura e sociedade. 8 ed. São Paulo:


T. A. Queiroz, 2000; Publifolha, 2000.

______. “Literatura como sistema”. In.: ______. Formação da literatura


brasileira: momentos decisivos, 1750-1880. 10 ed. revista pelo au-
tor. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2006.

DALCASTAGNÈ, Regina. Literatura brasileira contemporânea: um


território contestado. Vinhedo: Editora Horizonte, 2012.

FRANCHETTI, Paulo. “Apresentação”. In.: AZEVEDO, Aluísio (1890).


O Cortiço. São Paulo: Ateliê Editorial, 2012.

GORZ, André (1988). Metamorfoses do trabalho: crítica da razão


econômica. Trad. Ana Montoia. 2 ed. São Paulo: Annablume, 2007.

RUFFATO, Luiz. O mundo inimigo. Rio de Janeiro: Record, 2005. (In-


ferno Provisório, v. 2).

CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS | 72


SCHOLLHAMMER, Karl Erik. Ficção brasileira contemporânea. Rio
de Janeiro: Civilização brasileira, 2009.

73 | CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS


É, principalmente, quando estamos nos tornando naquilo
que somos, que buscamos acesso às memórias individuais, coleti-
vas e históricas – para relembrar a concepção de Halbwachs – e esta
busca é caminho que leva, sem dúvida, ao encontro de outra mais
trabalhosa e, certamente, mais inquietante e interminável: a da
identidade.
No conto com que fecha o livro Os da minha rua (2012), “Pa-
lavras para o velho abacateiro”, Ondjaki apresenta ao leitor tam-
bém uma história de fechamento. O fim de um ciclo, uma mudança
de fase e de espaço, um recomeço. Trata-se, no conto, de um recém
chegado à juventude, enfrentando as mudanças no corpo, nos hábi-
tos e com uma opção a fazer: deixar o lar, onde esteve confortavel-
mente até ali, ou mudar-se, sozinho, para outro país.
Esta dúvida pela qual o narrador passa, coloca-nos, em rela-
ção ao texto, em igual situação contraditória em que, ora podemos
sentir o peso do silêncio e das mudanças, ora podemos experimen-
tar o alento de quem, cansado, se senta à sobra de um abacateiro
para se refazer.
Apesar deste pequeno conflito, é um outro elemento que ga-
nha destaque e merece atenção: o espaço da casa. Neste sentido,
não podemos deixar de analisar os estudos de Bachelard, em A poé-
tica do espaço, em que define:

A casa é uma das maiores forças de integração


para os pensamentos, as lembranças e os sonhos
do homem. Nessa integração, o princípio de liga-
ção é o devaneio. (...) Sem ela, o homem seria um
ser disperso. Ela mantém o homem através das
tempestades do céu e das tempestades da vida. É
corpo e é alma. É o primeiro mundo do ser hu-

CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS | 76


mano. Antes de ser "jogado no mundo" (...), o ho-
mem é colocado no berço da casa.1

Tomando por base esta definição, evidencia-se a forma


como a casa da personagem se configura exatamente como a define
Bachelard. Permeia, durante todo o conto, as descrições acerca
deste espaço, bem como das relações que se constroem ali, relações
intra e extra pessoais. Relação do ser com o espaço em que vive e,
sobretudo, como a casa, aquele pequeno espaço, fora primordial
para que o menino se tornasse o jovem que ele está se tornando.
Em algumas passagens do texto, percebemos a integração
entre casa- personagem-ambiente e, assim, é possível concluir que
é através desta tríade que se manifesta a base – ou uma das bases –
da formação da identidade. Bachelard complementa sua definição
analisando que: “a casa é uma das maiores forças de integração
para os pensamentos, as lembranças e os sonhos dos homens”2. A
partir desta definição, vemos que além do espaço físico que acolhe,
que mantém o homem seguro, a casa é espaço de sonhar, de imagi-
nar, e são essas memórias que o menino levará consigo para qual-
quer lugar que vá quando sair de casa.
Decidimos, portanto, colocar-nos, confortavelmente, à som-
bra da árvore, com a desculpa de que, há algum tempo, já passamos
da idade de compreender as palavras do abacateiro. Por isso, não
vamos nos ater a questões como a transição da infância para a ju-
ventude desta personagem não nomeada simboliza o processo de
transição da independência de Angola, ou como a forma de escrita

1
BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. Trad. Antonio da Costa Leal e Lídia
do Vale Santos Leal. Disponível em: bibliotecadafilo.files.wordpress.com. Aces-
sado em 23 de ago. de 2017, p. 18.
2 BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. Trad. Antonio da Costa Leal e Lídia

do Vale Santos Leal. Disponível em: bibliotecadafilo.files.wordpress.com. Aces-


sado em 23 de ago. de 2017, p. 18.

77 | CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS


que Ondjaki utiliza nesse conto – substituindo os pontos por vírgu-
las, iniciando sempre com letra minúscula, sem parágrafos – pode
ser entendida como um reflexo de uma possível irreverência ado-
lescente da personagem, embora recorrentes em “Palavras para o
velho abacateiro”.
Vamos, finalmente, ao texto. A narrativa, em tom memoria-
lista e nostálgico, se organiza em dois planos. O primeiro, o real –
que se passa no tempo e cenário da velha Luanda durante a guerra
civil:

Era até raro em Luanda naquele tempo fazer


uma ventania daquelas, os baldes no quintal co-
meçaram a voar à toa, os gatos nas chapas de
zinco não sabiam bem onde era o buraco de se
esconderem , os guardas da casa ao lado vieram
a correr buscar as akás que estavam encostadas
no muro.3

O segundo, no plano da memória, em que o menino narrará


suas lembranças ao se ver diante das mudanças que o pegaram de
surpresa:

Fechando os olhos, escutando o ruído que ela [a


chuva] fazia cá fora no mundo e dentro de mim
também, queria ver quantos pensamentos eu po-
dia inventar – e pensar – ao mesmo tempo em
que ouvia aquele ruído tipo música de uma or-
questra bêbada [...]4

O tempo passado é revisitado a fim de que se torne memória


para suprimir o medo que o presente anuncia para o futuro deste

3 ONDJAKI. “Palavras para o velho abacateiro” In: Os da minha rua. Caminho. Al-
fragide: Editorial Caminho, 2012. p. 131.
4 Ibidem, p.132.

CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS | 78


recém-chegado à complexa fase da juventude. Uma tempestade atí-
pica é a anunciadora da mudança. Logo no início da narrativa, o céu,
carregado de nuvens, o vento que arrasta objetos pelo quintal e, por
fim, a chuva que impede a visão da rua, leva o menino a uma cons-
tatação que começa a lhe doer:

O abacateiro estremeceu como se fosse a última


vez que eu ia olhar para ele e pensar que ele se
mexia para me dizer certos segredos, não sei o
que o abacateiro me disse, não soube mais enten-
der e pode ter sido nesse momento que no corpo
de criança um adulto começou a querer apare-
cer.5

Voltando novamente a Bachelard, já que a chuva-mudança


nos obriga a entrar em casa, entendemos que os pequenos espaços
distribuídos nela, se configuram como elementos formadores da
identidade, cada um com sua função neste processo. Um exemplo
da observação da casa como a cabana do filósofo francês, vista com
tanta simplicidade quanto aconchego pela personagem.

E que nos últimos anos eu havia estado perdido,


triste e confuso, num espaço tão grande que afi-
nal eram apenas duas cadeiras de tecido encar-
nado, uma secretária, um armário embutido, um
sofá-cama encarnado que eu mesmo tinha esco-
lhido (...), esse espaço, com esse sofá-cama, com
esse colchão fininho, com essas molas fracas,
onde eu dormi tanto tempo com a Avó Agnette,
onde ela me ensinou madrugadas e deu todas as
estórias e o desdobrar de todos os tempos que
quis dar (...)6

5 Ibidem, p. 131.
6 Ibidem, p. 138-139.

79 | CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS


Talvez não seja possível explicar como se pode ouvir e falar
com um abacateiro. Como o próprio narrador diz: “há coisas que é
preciso ir perguntar aos galhos de um abacateiro velho”. Sem ne-
nhum embasamento teórico, arriscamos dizer que essa prática – e
aqui se inclui, igualmente, falar com lesmas, com a chuva, com as
ruas, com a noite, consigo mesmo, com todas as coisas e todos os
seres, de modo personificado – é sair, por um momento, da vida
real, é voltar-se pra si, é despir-se das armas e deixar a ingenuidade
inteligente e arguta da infância aflorar para, a partir desta lucidez,
encontrar respostas.
A notícia que a chuva – daquele jeito, rara – traz consigo, é
dada pela mãe, sentada na cozinha escura e molhada, agora, com as
gotas de suor e de água que o menino levou para dentro: “nós pen-
samos que se é realmente o que tu queres, podes ir estudar para
outro país”7.
O assunto de ir estudar e morar em outro país já vinha sendo
discutido na família. Mas a angústia, o silêncio pesado que se podia
tocar quando ouviu, desperta, nesse adolescente uma tristeza, um
medo, uma saudade que ele desconhecia. A ruptura com a Luanda,
a casa e a família, que é, também, a ruptura com a infância que, tei-
mosamente e inesperadamente, acontece, leva-o a uma tentativa de
assumir essas novas condições. Não, porém, sem, por uma última
vez, personificar o quarto que o acolhera durante toda a vida e
construir, a fim de levar consigo, um retrato desse seu espaço – que
se torna, aliás, um exemplo de “lugar de memória”, como o define
Nora:

Pensei que lá nesse país teria outro quarto, mas


não este, o antigo, o dos cheiros e das roupas e
das músicas e dos livros e das escritas tristes e

7 ONDJAKI. “Palavras para o velho abacateiro” In: Os da minha rua. Caminho. Al-
fragide: Editorial Caminho, 2012. p. 136.

CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS | 80


secretas, da mala com os livros do Astérix, ou A
Náusea, ou os Cem Anos de Solidão, ou os “graci-
lianos” como eu lhes chamava, ou a camisa ama-
rela escura com manchas pretas e acastanhadas
que o meu pai trouxe de Portugal e, desde que a
vi, soube que amava esse tecido de acalmar os
olhos que às vezes choravam em frente ao espe-
lho da incompreensão, porque o corpo mudava,
a voz mudava, as mãos no corpo mudavam, era
visível que eu preferia acordar mais tarde do que
acordar mais cedo [...]8

É nesse momento de integração com o seu espaço que o me-


nino dá vez a uma série de memórias que, nota, foram responsáveis
por fazê-lo que ele é. Para Nora, é essa interação com o seu espaço,
que torna a casa e tudo que ela abarca, em um lugar de memória
que, para o historiador:

São lugares, com efeito, nos três sentidos da pa-


lavra, material, simbólico e funcional, simultane-
amente, somente em graus diversos. Mesmo um
lugar de aparência puramente material, como
um depósito de arquivos, só é um lugar de me-
mória se a imaginação o investe de uma aura
simbólica. Mesmo um lugar puramente funcio-
nal, como um manual de aula, um testamento,
uma associação de antigos combatentes, só entra
na categoria se for objeto de um ritual. Mesmo
um minuto de silêncio, que parece o exemplo ex-
tremo de uma significação simbólica, é ao mesmo
tempo o recorte material de uma unidade tem-
poral e serve, periodicamente, para uma cha-
mada concentrada da lembrança.9

8Ibidem, p. 136.
9NORA, Pierre. Entre história e memória: a problemática dos lugares. Trad. Yara
Aun Khoury. São Paulo: PUC, 1993. p. 21-22.

81 | CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS


Essa mudança de identidade – do corpo, da voz, dos hábitos
– mais ou menos incômoda para cada um, faz com que a persona-
gem busque alento nas suas lembranças, mas não o resguarda do
medo de enfrentar a batalha que não se pode vencer. Queria definir
à mãe e a si próprio o que sentia e os medos que tinha:

Essa viagem, essa partida de ir embora, de re-


pente, me chegava fora do tempo, num terreno
que ia muito além da dor e das lágrimas, num lu-
gar que nenhum escrito meu podia ter conse-
guido explicar, nem nenhuma lágrima consegui-
ria apagar.10

O terreno, além das lágrimas, é a memória, que, sem pedir


licença, aflora como um único acesso à infância que, há pouco, se
foi. Não se pode explicar, certamente, o que ficou e o que mudará,
em seguida. O que é possível constatar, é que a memória enraizada
do abacateiro, fará florescer essa identidade que desabrocha.
Torna-se evidente, também, que a casa se torna um ser vivo, onde
ocorrem as relações mais intensas e íntimas, conforme o próprio
narrador personagem confirma:

Senti que despedir-me da minha casa era despe-


dir-me dos meus pais, das minhas irmãs, da avó
e era despedir-me de todos os outros: os da mi-
nha rua, senti que rua não era um conjunto de ca-
sas, mas uma multidão de abraços, a minha rua,
que sempre se chamou Fernão Mendes Pinto,
nesse dia ficou espremida numa só palavra que
quase me doía na boca se eu falasse com palavras
de dizer: infância.

10ONDJAKI. “Palavras para o velho abacateiro” In: Os da minha rua. Caminho. Al-
fragide: Editorial Caminho, 2012. p. 139.

CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS | 82


Se analisarmos a casa de maneira vertical, teremos o porão,
onde habitam o medo, o escuro, o obscuro e irracional. O sótão, por
sua vez, abriga a luz, o esclarecimento, lucidez11. No conto, este é
representado pelo quarto. É ali que se manifesta de maneira igual-
mente dolorosa e esclarecedora a mudança e a tomada de decisão
daquele jovem. E, conforme observou Bachelard, para que se che-
gue ao sótão, é preciso subir as escadas, travessia também feita pelo
menino:

A minha cabeça viajava pelo corredor escuro


porque fazia esse domingo cinzento de chuva e
ninguém tinha acendido as luzes, a minha cabeça
deslocava-se devagarinho e subia as escadas es-
preitando primeiro a sala (...) lá em cima era um
mar pesado de silêncios (...), havia ali um silêncio
que pesava se uma pessoa se mexesse em qual-
quer direção.12

A chuva, agora, lá fora e nos olhos, começa a se arrepender


da brutalidade com que trouxe as mudanças. Mas, como já se pode
perceber, esta é uma batalha perdida. Não há outro meio, senão,
aceitá-la. A adolescência, que tanto dói na personagem ondjakiana,
que traz tantas perguntas sem resposta, que carrega, nas mesmas
costas, o medo e o sonho, ganha o território quase que por com-
pleto.
Quase, porque, há, ainda, um pequeno lugar para onde vão
todos aqueles que não sabem aonde ir. E, é claro, que é para lá que
o menino também vai:

11 Cf. BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. Trad. Antonio da Costa Leal e Lí-
dia do Vale Santos Leal. Disponível em: bibliotecadafilo.files.wordpress.com.
Acessado em 23 de ago. de 2017, p. 18.
12 ONDJAKI. “Palavras para o velho abacateiro” In: Os da minha rua. Caminho. Al-

fragide: Editorial Caminho, 2012. p. 134 - 135.

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Desci. Sentei-me perto, muito perto da Vó Agne-
tte. Ficámos a olhar o verde do jardim, as gotas a
evaporarem, as lesmas a prepararem os corpos
para novas caminhadas. O recomeçar das coisas.
_ Não sei onde é que as lesmas sempre vão, avó.
_ Vão para casa, filho.
_ Tantas vezes de um lado para o outro? [...]13

Mas, o que mais me inquieta é não ter a certeza se somos


nós, quando crianças ou velhos, que aprendemos esses segredos,
juntando nossas memórias numa caixinha chamada identidade, ou
se eles são, realmente revelados por aí, assim, à sombra de qual-
quer árvore.
A resposta da avó prova minha suspeita. Só quem consegue
parar para ouvir abacateiros é capaz de dar uma resposta a uma
pergunta que foi feita pela única razão de esconder outra, que era a
que, realmente, o menino queria fazer. Repito a pergunta para que
vejam se concordam comigo:

[...] _ Vão pra casa, filho.


_ Tantas vezes de um lado para o outro?
_ Uma casa está em muitos lugares – ela respirou
devagar, me abraçou. É uma coisa que se encon-
tra.14

Diante desses conflitos por entender-se, a personagem de


Ondjaki revela profunda integração do ser com seu ambiente e, so-
bretudo, com a casa, seu espaço de conforto, de alento e de segu-
rança, o seu “lugar de memória”. Entretanto, assim como a ruptura
da infância, que lhe traz o desconforto da dúvida, não lhe impede
de seguir ou de transformar-se, deixa a casa, a rua, as suas árvores

13Ibidem, p. 140.
14ONDJAKI. “Palavras para o velho abacateiro” In: Os da minha rua. Caminho. Al-
fragide: Editorial Caminho, 2012. p. 140.

CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS | 84


e vai em busca de outro lugar para chamar de lar, para reconstruir-
se.

REFERÊNCIAS

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. Trad. Laurent Léon


Schaffter. São Paulo: Revista dos tribunais LTDA. 1990.

NORA, Pierre. Entre história e memória: a problemática dos lugares.


Trad. Yara Aun Khoury. São Paulo: PUC, 1993.

ONDJAKI. “Palavras para o velho abacateiro”. In: Os da minha rua.


Editorial Caminho, 2012.

85 | CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS


I

Esse ensaio tratará – principalmente – da relação estabele-


cida entre a luz, a sombra e três (ou quatro) personagens do ro-
mance O vendedor de passados, de José Eduardo Agualusa: Pedro
Gouveia (José Buchmann), Ângela Lúcia e Félix Ventura. Os dois (ou
três) primeiros, sendo fotógrafos e, por conseguinte, umbrógrafos1,
estão justificados, pois escrevem com a luz e, consequentemente,
com a sombra; o outro, porque, manipulando a luz, fabula um fan-
tascópio2 e – com o manejo adequado de uma lanterna mágica – dá
movimento a fantasmas feitos por encomenda.
A função de Félix Ventura, como veremos, é a de fornecer um
ponto alternativo de luz, uma fogueira que, exercendo sobre o
corpo uma iluminação mais forte do que a natural, modificará a po-
sição da sombra que se projeta, dando-lhe outro formato, conce-
dendo-lhe uma personalidade insólita, um caráter inédito. Dessa
forma, quando o torso antigo bloquear o feixe novo de luz, a silhu-
eta que se formará será mais baixa ou mais alta, mais larga ou mais
estreita do que a primitiva. Quanto a Pedro Gouveia e Ângela Lúcia,

1
Nos primórdios da fatografia, o processo desenvolvido por William Henry Fox
Talbot, concorrente do Daquerriotipo, em 1841, era chamado – pelo seu inventor
– de umbrografia, ficando conhecido, alguns anos depois, como Calotipia ou
Talbotipia. No entanto, ainda que tenhamos feito esse empréstimo de Talbot,
quando utilizamos “umbrografia” não nos referimos especificamente à invenção
do cientista inglês, mas a uma “escrita das sombras” que acompanharia toda e
qualquer “escrita da luz”, ou seja, toda fotografia. Dessa forma, a palavra se liga
ao vocábulo latino UMBRA, AE (f), que poderia ser traduzido, segundo o Dicolatin
(Dictionnaire Latin-Français), como “fantôme” (fantasma), “spectre” (espectro),
ombre (sombra).
2 O fantastópio foi inventado pelo físico belga Étienne-Gaspard Robert (1763-

1837). Utilizando uma câmara escura (semelhante à descrita por Giovanni


Battista della Porta) e uma adaptação da lanterna mágica de Athanasius Kircher
montada sobre uma plataforma flexível, Robert conseguia dar movimento aos
desenhos e fundir as imagens, criando espetáculos fantasmagóricos e oferecendo
mais veracidade às apresentações.

CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS | 88


as discussões girarão em torno do fotografo enquanto aquele que,
grafando com a luz, registra também as sombras, anunciando uma
escrita dupla, carregada de luminosidade e assombramento, escla-
recimento e fantasmagoria.
No sentido que buscamos erigir, a umbrografia, indissociavel-
mente ligada à fotografia, é o registro de um trauma, de um cisão
dentro do fluxo natural dos acontecimentos. As “fotos fornecem um
testemunho” (SUNTAG, 2004: 16) de um rasgo temporal específico,
filtrado e selecionado, exclusivamente, pelo fotógrafo em sua indi-
vidualidade. Assim, para seguirmos em nossas reflexões, faz-se ne-
cessária uma definição de “catástrofe” e “trauma”:

A palavra “catástrofe” vem do grego e significa,


literalmente, “virada para baixo” (kata+strophé).
Outra tradução possível é “desabamento”, ou
“desastre”; ou mesmo o hebraico Shoah, especi-
almente apto no contexto. A catástrofe é, por de-
finição, um evento que provoca um trauma, ou-
tra palavra grega, que quer dizer “ferimento”.
“Trauma” deriva de uma raiz indo-européia com
dois sentidos: “friccionar, triturar, perfurar”;
mas também “suplantar”, “passar através”. Nesta
contradição – uma coisa que tritura, perfura, mas
que, ao mesmo tempo, é o que nos faz suplantá-
la, já se revela, mais uma vez, o paradoxo da ex-
periência catastrófica, que por isso mesmo não
se deixa apanhar por formas simples de narra-
tiva. (NETROVSKI & SELIGMANN-SILVA, 2000:
08)

Sendo a foto o registro de uma ruptura, ela permite que nós


executemos o movimento descrito por Kierkegaard, em A repetição,
possibilitando o re-enfrentamento. Segundo o filósofo dinamar-
quês, a “repetição” expressa, de maneira decisiva, o que a “recorda-
ção” representava para os gregos. Da mesma forma que na antiga

89 | CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS


Grécia postulava-se que “todo conhecer é um recordar” (KIERKE-
GAARD, 2009: 32), a nova filosofia ensinará que toda a vida é uma
repetição3. Para Kierkegaard, a “repetição” e a “recordação” consti-
tuem um mesmo movimento, mas em sentido contrário, porque só
o que já foi (o que está no passado) pode ser recordado e, enquanto
recordação, se repete em sentido retroativo. A autêntica repetição
faria o homem feliz, enquanto a recordação, simples voltar-se para
trás, observando o registro do trauma, o faria miserável, porque o
colocaria de frente com a fratura sem trazê-lo de volta ao presente.
Dessa forma, a foto funcionaria como um checkpoint do evento
traumático que desencadeara uma catástrofe – de maiores ou me-
nores proporções – no continuum temporal. Dentro da linha de su-
cessão dos fatos, esse ponto de referência será escrito a partir de
ecos luminosos que entram pela lente da câmera, grafando uma
imagem enquadrada pelo fotógrafo (o operador, segundo Barthes4)
a partir de seus próprios critérios de seleção dos símbolos – a esco-
lha do instante e do objeto, em última instância, caberá sempre ao
indivíduo que fotografa.
Se considerarmos que toda ocorrência de luz é também uma
ocorrência de sombra, que a fotografia pode funcionar como o re-
gistro de um trauma temporal provocado por uma catástrofe no/do
tempo, podemos separar a atividade de Ângela e Pedro a partir do
spectrum5 perseguido por cada um deles. Ângela Lúcia busca captar
as luzes dos lugares por onde passa, enquanto Pedro Gouveia, ou
José Buchmann, ocupou-se, durante sua carreira como fotógrafo
profissional, de registrar guerras. Para Félix Ventura, as fotos ser-
viriam, no seu ofício de criar passados, como referência – marco

3 Cf. KIERKEGAARD, Søren. A repetição. Lisboa: Relófio D’Água Editores, 2009, p.


31-32.
4 Cf. BARTHES, R. A câmara clara: nota sobre a fotografia. Rio de Janeiro: Nova

Fronteira, 1984, p. 20-22;


5 Idem.

CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS | 90


orientacional e parâmetro – de fatos que, servindo como combustí-
vel junto com outros elementos, dão verossimilhança e vigor ao
fogo de uma fogueira inventada (uma vida nova), inaugurando ras-
gos que constituem uma identidade recém adquirida.
Dessa forma, percorreremos o romance de Agualusa eviden-
ciando, sempre que possível, alguns dos momentos onde a relação
estabelecida entre a fotografia (umbrografia) e esses três (ou qua-
tro) personagens torna-se mais notória, refletindo acerca das pas-
sagens e sobre as possibilidades de interpretação desses contatos
e interações com a luz e a sombra.

II

No cartão de visitas, o slogan: “Assegure aos seus filhos um


passado melhor” (AGUALUSA, 2011: 16). O que Félix Ventura ofe-
recia aos seus clientes era uma fogueira nova (alimentada por lenha
antiga) que, posta na contramão de seus corpos, adotando uma vi-
são convencional do passado como lugar anterior, antepositivo, e
aproximando-se alegoricamente do mito narrado por Platão, pro-
jeta sombra nova na parede da caverna, confabulando uma nova
identidade, uma nova realidade dicernitiva. Sobre a sua clientela, o
narrador explica:

Procurava-o [...] toda uma classe, a nova burgue-


sia. Eram empresários, ministros, fazendeiros,
camanguistas, generais, gente, enfim, com o fu-
turo assegurado. Falta a essas pessoas um bom
passado, ancestrais ilustres, pergaminhos. Resu-
mindo: um nome que ressoe a nobreza e a cul-
tura. Ele vende-lhes um passado novo em folha.
Traça-lhes a arvore genealógica. Dá-lhes as foto-
grafias dos avôs e bisavôs, cavalheiros de fina es-
tampa, senhoras do tempo antigo. Os empresá-
rios, os ministros, gostariam de ter como tias

91 | CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS


aquelas senhoras, prosseguiu, apontando os re-
tratos nas paredes – velhas donas de panos, legí-
timas bessanganas –, gostariam de ter um avô
com o porte ilustre de um Machado de Assis, de
um Cruz e Sousa, de um Alexandre Dumas, e ele
vende-lhes esse sonho singelo. (AGUALUSA,
2011: 16-17)

Era isso, “ancestrais ilustres”, brilhantismo, gente fulgu-


rante que, precipitando-se luminosamente sobre os corpos, garan-
tisse, àqueles que já tinham o futuro garantido, uma sombra nova
no presente. Com a “fotografia dos avôs e bisavós”, poderia o indi-
víduo recorrer à lembrança para firmar a identidade e, caso efetu-
asse a repetição, trazendo para o “agora” um fato que pertencia ao
“antes”, acreditaria, tanto mais, na veracidade da sombra estam-
pada na parede, assombro diferente do original, construído pelo ar-
ranjo luminoso de Felix Ventura.

III

Pedro Gouveia procurou Félix Ventura. Tivera muitos no-


mes, mas queria esquecê-los. Preferia que fosse Félix a batizá-lo6, a
despejar sobre ele uma água lusa e nova que apagaria o pecado ori-
ginal de um nome antigo, que desenharia um indício vigoroso, ilus-
trando vestígios de um contorno incipiente. Gouveia queria abrir
mão de uma luz que esclarecia os fatos de uma vida inteira, dei-
xando para trás, tanto quanto possível, toda uma linha de traumas
que fundamentavam a sua identidade, passando a reconhecer, em
referências oferecidas por Félix, os “furos” e “fricções” próprios de
uma outra personalidade. Ao conhecer Félix, Pedro fará uma curta

6Cf. AGUALUSA, José Eduardo. O vendedor de passados. 2ª ed. Rio de Janeiro:


Gryphus, 2011, p. 17.

CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS | 92


apresentação: “Sou repórter fotográfico. Recolho imagens de guer-
ras, da fome e dos seus fantasmas, de desastres naturais, de gran-
des desgraças. Pense em mim como uma testemunha (AGUALUSA,
2011: 17).
Assim como Roger Fanton e Mathew Brady, Robert Capa e
James Nachtwey, Pedro Gouveia era um observador de traumas,
um acumulador de desmembramentos, um copista responsável por
registrar os espectros traumáticos de catástrofes humanas em um
traço duplo, assinalando, através da luz, as marcas da obumbração.
Atravessara as últimas décadas, “à deriva pelo mundo, fotogra-
fando guerras”, esteve no “Afeganistão em mil novecentos e oitenta
e dois, do lado das tropas soviéticas... em Salvador, do lado da guer-
rilha... no Peru, dos dois lados... nas Malvinas, também dos dois la-
dos... no Irão, durante a guerra contra o Iraque... no México, do lado
dos Zapatistas...” Fotografou muito “em Israel e na Palestina”, onde,
segundo o próprio, “não falta trabalho’ (AGUALUSA, 2011: 49). Se-
guia de “guerra em guerra”, tentando esquecer-se de si (AGUA-
LUSA, 2011: 101), compondo, por meio da luz, o seu catálogo de
sombras. Em todas as fotografias de guerra, há qualquer coisa de
crepuscular. “Havia em todas as fotografias” de Pedro Gouveia “algo
de crepuscular” (AGUALUSA, 2011: 36). Como se fosse o fim, ou
quase o fim, ainda que não se perceba de quê.
Cumprindo com a encomenda, Félix concedeu a Pedro, esse
colecionador de avantesmas, “um bilhete de identidade, um passa-
porte, uma carta de condução, documentos esses em nome de José
Buchmann, natural da Chibia, 52 anos, fotógrafo profissional”
(AQUALUSA, 2011: 29). Junto com o material, havia “também várias
fotografias. Numa, em tons de sépia, bastante gasta, via-se um ho-
mem enorme, com um ar absorto, montado num boi-cavalo”. Como
quem contasse a um desmemoriado a sua própria história, o ven-
dedor de passados apresenta: “– Este [...] é Cornélio Buchmann, o
seu avô” (AGUALUSA, 2011: 29). Numa outra fotografia, “um casal

93 | CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS


abraçava-se, junto a um rio, contra um horizonte largo e sem ares-
tas. O homem tinha os olhos baixos. A mulher, num vestido estam-
pado, florido, sorria para a objectiva” (AGUALUSA, 2011: 29). José
Buchmann (Pedro Gouveia), examinando a foto sob a luz do cande-
eiro, disse com a voz um pouco trêmula: “– São os meus pais?”
(AQUALUSA, 2011: 29). Se para Susan Suntag, em Sobre fotografia,
“fotografar é apoderar-se da coisa fotografada”, no caso de José Bu-
chmann (Pedro Gouveia), assim como dos outros clientes de Félix
Ventura, as fotografias é que se apoderam do sujeito, tornando-se
marcos de um tempo passado que deve ser repassado, portas de
entrada para um movimento que, sendo inaugural, pretende-se se-
cundário. Voltando a Kierkegaard, “só o que já foi pode ser recor-
dado”. Não sendo lembrança, o episódio trazido à luz da memória
fica impossibilitado de se repetir em sentido retroativo, porque
acaba de se fundar.
Mesmo com todos os avisos dados por Félix sobre não por
“os pés na Chibia” (AGUALUSA, 2011: 29), sua fictícia terra natal,
José Buchmann começa a investigar o próprio passado, ou, melhor
dizendo, o passado que lhe fora cedido. Atentando-se ao sumiço da
mãe, logo após a fotografia que lhe foi dada por Félix, Buchmann
empenha-se em reavivar o trauma do desaparecimento – lem-
bremo-nos, trauma que não pertence, originalmente, ao indivíduo
– tentando encontrar, no itinerário das sombras, nos vestígios mi-
niaturizados pelo tempo, uma pista que leve ao ponto de irradiação,
à gênese de um lampejo que, não estando no passado rememorável,
não podia se repetir.
Pedro Gouveia, aos poucos, transmutava-se em José Buch-
mann. “Algo, da mesma natureza poderosa das metamorfoses, vem
operando no seu íntimo” (AGUALUSA, 2011: 38). Uma crisálida
feita a partir da foto de uma mãe desaparecida, o primeiro fio de
uma longa e complexa urdidura. Assim, estava realizado o batismo,

CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS | 94


mas, seguindo a ordem dos sacramentos, dentro do que o catoli-
cismo tratariam por iniciação cristã – e aproveitando a analogia –
Buchmann procurava ainda uma confirmação (uma crisma) e a co-
munhão (união) com a identidade que começava a se firmar.
Depois de muita procura, encontrou uma mulher que – pro-
vavelmente – teria conhecido Eva Miller, sua mãe fantasmática. So-
bre o encontro, Buchmann contará:

Recebeu-me com interesse, e ao saber o motivo


da minha visita animou-se ainda mais. Um filho à
procura da mãe comove qualquer coração femi-
nino. “Eva Miller?”, não, o nome não lhe dizia
nada. Mostrei-lhe o recorte da Vogue e ela foi
buscar uma caixa com fotografias antigas, revis-
tas, cassetes, e ficamos os dois a vasculhar aquilo,
durante horas, como duas crianças no sótão dos
avós. Valeu a pena. Encontramos uma fotografia
dela com a minha mãe. Mais importante do que
isso – encontrámos uma carta que Eva lhe escre-
veu, a agradecer o envio da revista. (AGUALUSA,
2011: 62)

Novamente, na fotografia se encontra a possibilidade da


lembrança, de repetir o irrepetível, desvelando fantasmas, tra-
zendo para a luz certas formas obscuras que circundam em mur-
múrios a moldura firme de um momento selecionado no tempo.
Na sombra reformada de sua persona recém adquirida, Bu-
chmann vai reconhecendo os traços da luz emendada que, como um
implante, adaptava-se à realidade daquele corpo, naturalizando-se
– de lento a lento – ao tornar-se parte do organismo temporal e bi-
ográfico. Já no penúltimo capítulo do romance, o personagem dirá:
“Olho para trás, para o meu passado, e vejo duas vidas. Numa fui
Pedro Gouveia, noutra José Buchmann (AGUALUSA, 2011: 100).

IV

95 | CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS


Ângela Lúcia, que mais tarde se revelaria filha de José Buch-
mann (Pedro Gouveia), afirma ser “capaz de reconhecer certos lu-
gares do mundo apenas pela luz” (AGUALUSA, 2011: 35). A fotó-
grafa apresentará um extenso inventário de lugares e luzes:

Em Lisboa, a luz, no fim da primavera, debruça-


se alucinada sobre o casario, e é branca e úmida,
um pouco salgada. No Rio de Janeiro, naquela es-
tação intuitiva à qual os cariocas chamam ou-
tono, e que os europeus afirmam com desdém
ser puramente imaginária, a luz torna-se mais
branda, como que um fulgor de seda, acompa-
nhada por vezes de uma cinza úmida, que enco-
bre as ruas, e desce depois lentamente, triste-
mente, sobre as praças e os jardins. Nos campos
encharcados do Pantanal de Mato Grosso, de ma-
nhã bem cedo, as araras-azuis atravessam o céu,
sacudindo das asas uma luz lúcida e lenta, que
pouco a pouco pousa sobre as águas, cresce e se
propaga, e parece cantar. Na floresta de Taman
Negara, na Malásia, a luz é uma matéria fluida,
que se cola à pele e tem sabor e cheiro. Em Goa, é
ruidosa e áspera. Em Berlim o sol está sempre a
rir-se, pelo menos desde o instante em que con-
segue furar as nuvens, como naqueles autocolan-
tes ecologistas contra a energia nuclear. (AGUA-
LUSA, 2011: 35)

Esse repertório nos aponta, assim como a própria atividade


fotográfica, para o que há de sombra em tanta luz. Devemos reiterar
que toda fotografia é uma umbrografia, todo traço de luz também
produz sombra. Visto dessa maneira, em Lisboa, talvez, no fim da
primavera, a sombra deite-se de maneira sagaz sobre o beco entre
as casas, enxuta e sóbria, com uma doçura puxada a mel. No Rio de
Janeiro, por volta do que seria o outono, provavelmente, torne-se

CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS | 96


mimosa, como um cerrar incerto de olhos quando o sono se der-
rama sobre as pálpebras. “Nos campos encharcados do Pantanal de
Mato Grosso”, com a manhã recém chegada, talvez seja possível que
as aves, atravessando o céu inflado, tracem na superfície da água
uma seta multiforme e veloz, um duplo aquático e assombrado de
seus corpos aéreos. “Na floresta de Taman Negara, na Malásia”,
quem sabe, para acompanhar a luz fluida, a sombra seja corrente,
se deixando imperceptível, insipida e inodora, na pele das coisas.
“Em Goa”, seja silente e macia. Enquanto o sol trabalha na difícil ta-
refa de romper as nuvens, quiçá, em Berlim, esteja em vantagem,
espalhada sobre tudo, como um manto pesado e fugidio.
“Mesmo nos céus mais improváveis Ângela Lúcia descobrira
brilhos a merecerem ser salvos do esquecimento” (AGUALUSA,
2011: 35). Segundo a própria, era uma colecionadora de luzes. Tra-
zia sempre consigo um caixa de plástico na carteira, um “esplendó-
rio” (AGUALUSA, 2011: 36), contendo “alguns exemplares dessas
múltiplas formas de esplendor, recolhidas nas savanas de África,
nas velhas cidades da Europa, ou nas cordilheiras e florestas da
América Latina” (AGUALUSA, 2011: 36).
A fotografia de Ângela, ainda que – por natureza – mantenha seu
registro de sombra, se difere das imagens de Buchmann. Um é ajun-
tador de guerras, outro, de “luzes, clarões, exíguos lumes, presos
entre um caixilho de plástico, com as quais vai alimentando a alma
nos dias de sombra” (AGUALUSA, 2011: 36). A foto passa a exercer
o papel de sustentáculo da lembrança, instrumento que permite o
retorno seguro até um momento passado e a repetição desse mo-
mento no presente, o que resultará em um fulgor que reanima,
unindo temporalmente dois instantes e dando lugar a um terceiro,
carregado de possibilidades e expectações.
Para Suntag, “colecionar fotos é colecionar o mundo” (SUNTAG,
2004: 13), é conservar uma fração de segundo em um largo período

97 | CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS


de tempo, materializando o aglomerado de ecos em um único
frame. Para a autora, as

“fotos são, talvez, os mais misteriosos de todos os


objetos que compõem e adensam o ambiente que
identificamos como moderno. As fotos são, de
fato, experiência capturada, e a câmera é o braço
ideal da consciência, em sua disposição aquisi-
tiva” (SUNTAG, 2004: 14).

Para Ângela, que “viajou muito, sempre fotografando”, que


“gostaria de continuar a viajar e a fotografar” (AGUALUSA, 2011:
69), as fotos tornam-se pontes, receptáculos de experiências que
possibilitam, em situações de assombramento, uma reafirmação da
própria biografia, um esclarecimento de si.

Em um dado momento da narrativa, antes de José Buchmann se


revelar como sendo o pai de Ângela, Eulálio, um importante perso-
nagem que, deliberadamente, deixamos à margem, questiona-o
quanto à coincidência de “dois fotógrafos, um homem e uma mu-
lher, com uma longa experiência de exílio em comum” (AGUALUSA,
2011: 102), regressarem ao país quase ao mesmo tempo. Buch-
mann responderá: “– A mim não [surpreende], afinal de contas sou
um desses fotógrafos. Mas acho natural que a si o surpreenda. As
coincidências, meu amigo, produzem assombro da mesma forma, e
com a mesma distracção, com que as árvores produzem sombra –
xeque-mate” (AGUALUSA, 2011: 74).
Como todos sabemos, é a luz que, precipitando-se sobre um
objeto, produz sombra, não o objeto em si. Dessa forma, ao contrá-
rio do que disse José Buchmann, as árvores não produzem sombra,
mas sim a interrupção da luz pela tronco. Da mesma forma, no caso

CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS | 98


das coincidências, o assombro torna-se indício de algo que, pe-
sando sobre os fatos, atribui contorno. Isso se evidenciará quando,
aproximando-se do desfecho da obra, a co-incidência dos retornos
se mostrará fundada e sustentável na revelação de José Buchmann
como Pedro Gouveia, pai de Ângela. Após os eventos que esclarece-
ram o que parecia casualidade, o fotógrafo dirá para Eulálio: “Há
alguns meses você estranhou a coincidência de sermos ambos fotó-
grafos e de termos regressado ao país mais ou menos na mesma
altura. Você não acreditava que fosse uma coincidência. Bem, como
vê, não foi inteiramente uma coincidência” (AGUALUSA, 2011:
102). Desse modo, mais uma vez, ficava o assombro iluminado, per-
turbando, em contrapartida, aspectos que pareciam esclarecidos.
Qualquer luz gera sombra.

VI

Depois do desfecho, Ângela retoma as suas viagens e manda,


de quando em vez, uma foto para Félix Ventura. A última a aparecer
no romance – “uma polaroide” – guardava a imagem de “um arco-
íris iluminando um rio” (AGUALUSA, 2011: 96). Certa vez, Ângela
disse que “seu único talento em criança [...] era desenhar arco-íris”.
No entanto, “quando fez doze anos, o pai ofereceu-lhe uma máquina
fotográfica, um aparelho rudimentar, em plástico e ela deixou de
desenhar arco-íris. Passou a fotografar arco-íris (AGUALUSA, 2011:
70). Segundo a discrição, no “canto superior direito vê-se a silhueta
de um rapaz nu a mergulhar nas águas. Ângela Lúcia escreveu a
tinta azul, na margem da fotografia: Plácidas Águas, Pará, e a data”
(AGUALUSA, 2011: 70). Com alfinetes coloridos, Félix costumava
prender as fotografias na parede. Com essa, fez o mesmo. “Depois
afastou-se três passos para estudar o efeito. A parede da sala de es-
tar, oposta às janelas, está quase toda coberta por fotografias”

99 | CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS


(AGUALUSA, 2011: 70). A mesma parede onde, no início do ro-
mance, a “última luz da tarde morria docemente” (AGUALUSA,
2011: 35). “O conjunto forma uma espécie de vitral” que faz recor-
dar as “experiências de David Hockney com polaroides”7 (AGUA-
LUSA, 2011: 70). Esse aglomerado de imagens, refúgio de luzes pas-
sadas dispostas na parede, lembra uma das primeiras experiências
de Talbot, a janela da galeria sul da Abadia de Locock Abbey8, uma
imensidão de sombras formatada por retângulos de luz. “Félix Ven-
tura voltou para a parede o grande cadeirão de verga e sentou-se
nele. Ficou assim muito tempo, imóvel, mudo, vendo morrer a fina
luz da tarde de encontro à luz imortal das polaroides” (AGUALUSA,
2011: 96). Como na história de Platão, um homem preso na ca-
verna, na casa dos assombros, olhando a parede, impossibilidade
de se mexer. Entretanto, ao contrário do que conta o mito, nessa
parede abrem-se furos para lugares distante, lembranças de expe-
riências que Félix nunca teve. Assim como Buchmann, a partir da
natureza testemunhal da foto, princípio de revisitação, ele visita, na
sua impossível repetição, cada uma das luzes de Ângela pela pri-
meira vez.

VII

Nessa obra onde a luz e a sombra alternam-se entre a condi-


ção das pedras e o feitio das chuvas, onde a fotografia se apresenta
de tantas formas e as referências do passado ganham uma espan-
tosa mobilidade, não seria possível indicar todas as ocorrências da
escrita, seja fotográfica, seja umbrográfica. No decorrer do texto,
tentamos levantar – de forma miniaturizada, mas buscando uma
certa precisão – questões que poderiam suscitar debates futuros,

7 Cf. Anexo I - Experiências de David Hockney com polaroides.


8 Cf. Anexo II - Janela da galeria sul da Abadia de Locock Abbey.

CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS | 100


como os trabalhos com a luz de José Buchmann (Pedro Gouveia),
fotografo de guerra, Ângela Lúcia, mantenedora de luzes, e Félix
Ventura, criador de fogueiras, ou, como ele mesmo conclui, criador
de sonhos. Pretendeu-se também, com alguma vista para investiga-
ções vindouras, introduzir reflexões sobre o conceito da umbrogra-
fia enquanto “escrita das sombras” e do registro fotográfico en-
quanto um ponto de referência e um marco traumático na catás-
trofe do tempo. Para além de principiar meditações relativas a um
projeto do ensaísta, esperamos que esse trabalho possa contribuir
para outras discussões sobre o tema e a obra, colaborando para
uma visão mais atenta a respeito da fotografia e do seu papel res-
saído dentro da narrativa.

REFERÊNCIAS

Primárias:

AGUALUSA, José Eduardo. O vendedor de passados. Rio de Janeiro:


Gryphus, 2011.

BARTHES, Roland. A câmara clara: nota sobre a fotografia. Trad.


por Tradução de. Júlio Castañon Guimarães. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1984.

KIERKEGAARD, Søren. A Repetição. Trad. por José Miranda Justo.


Lisboa: Relógio D'Água Editores, 2009.

SELIGMANN-SILVA, Márcio; NESTROVSKI, Arthur. (Org). Catás-


trofe e representação: ensaios. São Paulo: Escuta, 2000.

SUNTAG, Susan. Sobre fotografia. Trad. por Rubens Figueiredo. São


Paulo: Companhia das Letras, 2004.

101 | CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS


Secundárias:

BERGSON, Henri. Matéria e memória: ensaio sobre a relação do


corpo com o espírito. Trad. por Paulo Neves. São Paulo: Martins
Fontes, 2010.

DAVID HOCKNEY. Composite polaroids. Disponível em:


<http://www.hockneypictures.com/photos/photos_pola-
roids.php>. Acesso em: 03 ago. 2016.

DUBOIS, Philippe. O ato fotográfico e outros ensaios. Trad. por Ma-


rina Appenzeller. Campinas, SP: Prós, 1999.

FLUSSER, Vilém. Filosofia da caixa preta: ensaios para uma futura


filosofia da fotografia. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002.

FRIZOT, Michael. A new history of photography. Köln: Könemann,


1998.

GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar escrever esquecer. São Paulo:


Editora 34, 2006.

LE GOFF, Jacques. História e memória. Trad. por Bernardo Leitão.


Campinas: UNICAMP, 1990.

MACHADO, Arlindo. A ilusão especular. São Paulo: Brasiliense,


1984.

PLATÃO. A República. Trad. por Maria Helena da Rocha Pereira. Lis-


boa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1987.

CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS | 102


METMUSEUM. William henry fox talbot (1800–1877) and the in-
vention of photography. Disponível em: <http://www.metmu-
seum.org/toah/hd/tlbt/hd_tlbt.htm>. Acesso em: 03 ago. 2016.

RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Traduzido


por Alain François et. al. São Paulo: UNICAMP, 2007.

103 | CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS


ANEXO I
Experiências de David Hockney com polaroides

Sun On The Pool Los Angeles (1982) | Composite polaroid, 34 3/4 x 36 1/4 in.

Still Life Blue Guitar (1982) | Composite polaroid, 24 1/2 x 30 in

CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS | 104


ANEXO II
Janela da galeria sul da Abadia de Locock Abbey

Reproduzido do National Museum of Photography,


Film and Television collection.

105 | CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS


I

Compreendendo a literatura enquanto uma forma de reflexo


do mundo exterior na consciência humana, este texto apresenta
uma leitura da obra São Bernardo, de Graciliano Ramos, pela pers-
pectiva da dialética marxista. Romance publicado em 1934, o seu
enredo, em linhas gerais, conta a trajetória de vida de Paulo Honó-
rio, narrador e protagonista da narrativa, que na altura dos seus
cinquenta anos, rememora e registra seus feitos e experiências em
um livro. Tendo em vista que “o sistema marxista não se desliga ja-
mais do processo unitário da história” (LUKÁCS, 2010, p.11), pro-
curamos nos ater a uma leitura do romance como representação da
própria atividade humana, refletindo o mundo real, transfigu-
rando-o no seu movimento, na sua evolução e desenvolvimento,
considerando, aliás, que com isso a narrativa não se pretende ver-
dade. No seu tecido textual, assim, estão representadas as relações
sociais – que são fundamentadas, inclusive, na base econômica da
ordem capitalista –, refletidas artisticamente a partir de um traba-
lho estético.
O que pretendemos, aqui, é adotar uma concepção abran-
gente, dinâmica e dialética, como é o marxismo, a partir da verda-
deira essência: as relações sociais entre os homens, bem como suas
ações em relação ao mundo que o circunda. Mesmo tendo consci-
ência que muitos dos conceitos abordados merecem um aprofun-
damento que não será possível realizar neste texto, tendo em vista
o objetivo e a extensão da análise, como também a impossibilidade
de tratar de temas tão complexos de maneira definitiva, esta leitura
investigativa da referida obra literária busca pensar alguns aspec-
tos da dialética marxista no romance a partir da leitura do seu nar-
rador e protagonista: Paulo Honório, observando as suas relações,
conflitos e trajetória de trabalhador alugado até proprietário da fa-
zenda São Bernardo.

CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS | 108


Entender a literatura como reflexo da realidade, neste texto,
é tomar como norte, como ponto de partida e de chegada, a crítica
marxista, “que faz com que as categorias do ser econômico (do ser
que constitui o fundamento da vida social) sejam derivadas das ma-
nifestações de suas formas reais” (LUKÁCS, 2010, p.12); isto é, das
relações entre homem e homens e, através destas, da relação entre
sociedade e natureza. Nessa perspectiva, a compreensão do texto
literário lido aqui, como destaca Györg Lukács – retomando os es-
tudos de Marx e Engels –, se dá a partir das conexões imanentes,
que “existem, sem dúvida, na realidade objetiva [...], no interior do
qual, através do intricado complexo de interações, o fato econômico
(ou seja, o desenvolvimento das forças sociais produtivas) assume
papel principal” (LUKÁCS, 2010, p.19).
Dessa maneira, a realidade que a literatura reflete é enten-
dida pelo viés da dialética, que “nega que possam existir, em qual-
quer parte do real, relações de causa e efeito puramente unívocas:
ela reconhece, até mesmo nos dados mais elementares da reali-
dade, complexas interações de causas e efeitos”. Afinal, como acen-
tuado pelo materialismo histórico: num

“processo tão multiforme e estratificado como é


a evolução da sociedade, o processo total do de-
senvolvimento histórico-social só concretiza em
qualquer dos seus momentos como uma intri-
cada trama de interações”. (LUKÁCS, 2010, p.13)

O real refletido na obra literária, então, está presente de modo com-


plexo e sensível, como um processo vivo, elevando a realidade na
sua essência.
Isso significa dizer que a realidade está presente na litera-
tura mesmo quando não se apresenta de maneira evidente e para
além da referência que ela faz ao mundo extratextual, pois “não é
somente superfície imediatamente percebida do mundo exterior,

109 | CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS


não é a soma dos fenômenos eventuais casuais e momentâneos”
(LUKÁCS, 2010, p.23-25). Visto que a arte não vem antes da reali-
dade, mas depois, transfigurando-a – não num reflexo mecânico,
superficial, abstrato e generalizador, ou como cópia distanciada,
fria e vazia –, ao mesmo tempo em que a estética marxista coloca o
realismo no centro da teoria da arte, “combate firmemente qual-
quer espécie de naturalismo, qualquer tendência à mera reprodu-
ção fotográfica da superfície imediatamente perceptível do mundo
exterior” (idem). Por isso, a arte “só consegue a sua expressão mais
elevada quando o desejo de transcender o existente se enlaça com
uma atenta exploração do real” (VEDDA, 2014, p.6).
Sendo assim, pode-se considerar que todo texto literário
fala, no mínimo, de duas realidades. A primeira seria a do escritor,
uma vez que enquanto ser histórico e social, conta, mesmo que de
maneira indireta ou inconsciente, a sua própria realidade, ou ao
menos uma história a partir dela. A esse respeito, Miguel Vedda
(2014) discute que a práxis estética manifesta-se, também, na ela-
boração de materiais extraídos – inevitavelmente – do mundo ob-
jetivo. Sujeito e sociedade são indissociáveis, o que faz com que não
exista produção neutra ou um reflexo desinteressado, a meta de
todo “grande escritor é a reprodução artística da realidade: [...] o
esforço apaixonado para reproduzi-lo na sua integridade e totali-
dade”, este é “o verdadeiro critério da grandeza literária” (LUKÁCS,
2010, p.24). Nesse processo, “a concepção do mundo própria do es-
critor não é, no fundo, outra coisa que não a síntese elevada a certo
grau de abstrações da soma das suas experiências concretas.”
(LUKÁCS, 2010b, p.85).
A segunda seria a realidade do contexto em que o enredo da
obra é ambientado, mesmo quando isso acontece no plano
sobrenatural ou nos romances de ficção científica, por exemplo;
pois todo texto literário está ligado a um tempo, a um lugar e as
suas circunstâncias de produção. O grande escritor se utiliza “dos

CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS | 110


casos e acasos da vida para exprimir as necessidades humanas dos
seus personagens”. Para tanto,

“cumpre-lhe captar a relação íntima entre a


necessidade social e os acontecimentos da
superfície, construindo um entrecho que seja a
síntese poética dessa relação, a sua expressão
concentrada” (LUKÁCS, 2010b, p.95).

O real ainda está presente na literatura em outra dimensão


importante: por meio dos sentimentos. Não só os do literato, im-
pressos e transmitidos ao longo da produção escrita, mas também
através dos sentimentos que esse texto desencadeia no leitor. É
possível afirmar que essas emoções não são reais? Como negá-las?
Se há no texto ficcional muita realidade que também pode ser de
ordem sentimental, o que está nos livros, não lemos apenas, mas
“vivemos como destinos humanos, sob forma de emoções e paixões
humanas” (LUKÁCS 1979, p.262), fazendo com que o leitor que fe-
cha o livro não seja o mesmo que o abriu.
Essa realidade do leitor transformada a partir do prazer es-
tético não se dá de modo mecânico, imediato, consciente e igual
para todos os leitores, pelo contrário. Esse processo de modificação
está relacionado às experiências de cada leitor, à sua própria reali-
dade, isso porque,

Nenhum homem se torna diretamente um outro


homem no prazer artístico e através dele. O enri-
quecimento obtido neste caso é um enriqueci-
mento de sua personalidade, exclusivamente
dela. Mas tal personalidade é determinada em
um sentido classista, nacional, histórico, etc.
(além de ser, no interior destas determinações,
formada por experiências pessoais), sendo tam-
bém uma vazia ilusão de estetas a convicção de

111 | CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS


que exista sequer um só homem que possa rece-
ber como tábula rasa espiritual uma obra de arte.
(LUKÁCS, 1978, p.271)

Dessa maneira, a essas três realidades do texto literário, pode ser


acrescida uma terceira, que é a realidade do leitor, que durante a leitura
que faz do texto literário, não deixa de depositar as suas experiências
de vida, o seu contexto histórico e os seus anseios. Decerto por isso, um
livro nunca é o mesmo para todos, ele é sempre diferente e único para
cada leitor, já que “não existe na literatura uma poesia das coisas inde-
pendente dos acontecimentos e experiências da vida humana”
(LUKÁCS, 1978, p.76).
Para que essas realidades presentes na literatura sejam refletidas
e elevadas de “modo apropriado”, precisam estar relacionadas à uma
forma, à uma “técnica apropriada”, que para Lukács é a narração. Con-
forme o estudioso marxista, em oposição ao método descritivo, esse se-
ria o modo ideal de composição. Defendendo esse ponto de vista, argu-
menta:

Qualquer coisa que tenha uma função efetiva na


ação de um homem (e desde que tal ação nos des-
perte um interesse poético) só se torna poetica-
mente significativa por força do seu nexo com a
ação narrada de modo apropriado. (LUKÁCS,
2010b, p.77)

Essa narração, porém, não deve ser compreendida como uma


fórmula, estrutura fixa ou “fenômeno puro”, mas em diálogo, confor-
midade e reflexo do desenvolvimento social e das relações humanas; ou
seja, como um método de representação da realidade. E se “as coisas só
têm vida poética enquanto relacionadas com acontecimentos de destino
humanos”, o verdadeiro narrador “não as descreve e sim conta a função
que elas assumem nas vidas humanas” (LUKÁCS, 2010b, p.77-78).

CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS | 112


Dessa forma, o método compositivo do autor não é determinado
por ele mesmo, mas tem relação com o seu momento histórico. Quando
esse escritor assume e desenvolve um modo de compor o seu texto lite-
rário, sua posição ideológica e social também está representada pela
forma, que não é, assim como o conteúdo, imparcial. Nessa perspectiva,

O contraste entre o participar e o observar não é


casual, pois deriva da posição de princípio assu-
mida pelo escritor em face da vida, em face dos
grandes problemas da sociedade, e não do mero
emprego de representar determinado conteúdo
ou parte do conteúdo. (LUKÁCS, 2010b, p. 54)

Essa forma adequada, assim, é determinada pelo conteúdo, ou


seja, pela matéria social, pelas condições históricas. A forma e o conte-
údo, portanto, são entendidos como indissociáveis, como determinantes
entre si, estabelecendo uma relação que surge organicamente para re-
fletir a realidade.

II

Realizar uma análise literária pelo viés da dialética marxista,


deste modo, é considerar as relações de arte e sociedade, de litera-
tura e realidade, de forma e conteúdo, e, também, do estético e tra-
balho, é tomar o fato econômico como questão central. Logo, é falar
do homem, que, nesse sentido, se fez homem diferenciando-se dos
outros animais através do seu próprio trabalho, constituindo-se
humanamente pelo trabalho, “cujas características, possibilidades,
grau de desenvolvimento etc., são, certamente, determinados pelas
circunstâncias objetivas, naturais ou sociais” (LUKÁCS, 2010, p.14),
pensadas de modo implicado ao sistema capitalista.

113 | CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS


Nesse processo capitalista em que o homem constitui-se
pelo trabalho, acontece um movimento no qual o homem e seu tra-
balho são vistos e tratados como mercadoria, resultando na soma
que mais riqueza totaliza mais pobreza, e mais dinheiro em menos
humanidade. Para Marx, “com a valorização do mundo das coisas,
cresce a desvalorização do mundo dos homens em proporção di-
reta” (MARX, 2015, p.304). Nessa matemática, quanto mais posses,
mais dinheiro, mais propriedade privada, mais lucro, mais capital,
mais terra, o resultado será menos humanidade; o homem se torna
menos humano, passando a perceber e a tratar o próximo como
coisa, como estranho.
As relações sociais na ótica capitalista se dão a partir da ga-
nância, numa guerra entre os gananciosos: a concorrência, que não
permite ver no outro um igual ou parceiro, mas um inimigo, numa
lógica em que o sucesso de um seria o fracasso do outro, em que só
é possível ganhar quando o outro perde, ou lucrar e vencer com a
perda do outro. Em última instância, só é possível viver e prosperar
com a morte do outro, como acreditava e agiu Paulo Honório com o
seu vizinho Mendonça, tirando a vida desse último, para que a fa-
zenda Bom Sucesso não impedisse que São Bernardo prosperasse.
Padecente e (re)aplicador desse modo capitalista de ver e
viver no mundo, Paulo Honório viveu toda a sua vida como num
contexto de guerra, fugindo dos lugares, andando com escolta –
para a sua segurança e para intimidar os seus concorrentes –, tra-
mando armadilhas de morte e, muitas vezes, sendo vítima de arma-
dilhas tramadas para matá-lo, ameaçando matar e sofrendo amea-
ças. Até na propriedade que construiu como refúgio e império, não
se sentia seguro. São Bernardo era constantemente vigiada por seu
capanga Casimiro Lopes. Após um jantar com seus amigos João No-
gueira, Azevedo Gondim e Padilha, mesmo estando no salão de sua
residência, o narrador protagonista não está à vontade, tem medo:

CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS | 114


Acabamos o jantar em silêncio. Maria das Dores
trouxe o café e retirou os pratos. Abri a caixa de
charutos, acendi o cachimbo e fomos para o
salão. Seu Ribeiro desdobrou a Gazeta.
Instintivamente escondi-me num canto, afastado
das portas abertas. Não consegui evitar uma
janela. Quis fechá-la, mas sosseguei: Casimiro
Lopes, que vigiava a casa, sentou-se numa das
paredes começadas da igreja, acomodou o rifle
entre as pernas e ficou imóvel, farejando.
(RAMOS, 1996, p. 49)1

Paulo Honório, alienado da sua essência humana, teme,


julga, desvaloriza e desumaniza o outro, e também ele mesmo. Não
se reconhece como homem, não se identifica como marido, pai ou
amigo, mas apenas como proprietário de São Bernardo, o sujeito
físico tornou-se o objeto: a propriedade privada; ele só era alguém
porque possuía a fazenda.
Nessa dupla desumanização, consigo e com o outro, o prota-
gonista demonstra sua alienação, pois como esclarece Marx:

“A alienação do homem, em geral toda a relação


em que o homem está para consigo mesmo, pri-
meiro se realiza, se exprime, na relação em que o
homem está para com o outro homem”. (2015,
p.334)

Da mesma forma acontece com Paulo Honório como ex-tra-


balhador alugado e atual proprietário de São Bernardo, a maneira
como ele trata o outro é um reflexo do modo como ele se constituiu
enquanto homem, ou seja, enquanto trabalhador. A esse respeito,

1
Pensando na organização do texto, a partir daqui, as citações retiradas do
romance analisado serão referenciadas apenas pelas páginas. Todas elas foram
extraídas da seguinte versão da obra: RAMOS, Graciliano. São Bernardo. Rio de
Janeiro: Record, 1996.

115 | CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS


Marx explica: “Portanto, na relação do trabalho alienado, cada ho-
mem considera o outro segundo a medida e a relação ele próprio se
encontra como trabalhador” (2015, p.334).
Mesmo que o narrador considerasse “um exagero” o que pa-
gava pelos serviços prestados por seus trabalhadores – chegando a
dizer que, na verdade, era ele que trabalhava para os seus empre-
gados –, seus operários não tinham descanso, viviam em condições
precárias, sob o julgo de um patrão carrasco, como o protagonista
havia vivido no passado, mas muito diferente da prosperidade que
possuía no presente: “mais de uma légua de terra, casas, mata,
açude, gado, tudo de um homem” (p.58). O problema, portanto, con-
forme destaca Marx, não é o trabalho em si, mas a divisão desigual
do trabalho. Isso porque “o trabalho produz obras maravilhosas
para os ricos, mas produz privação para o trabalhador” (MARX,
2015, p.307). E assim, os trabalhadores da fazenda “não valiam
nada”, eram “homens que funcionam como as máquinas” (p.117) e
que também eram tratados como máquinas, vistos como bichos
pelo proprietário da fazenda.
Era maquinalmente, também, que Paulo Honório realizava
as suas transações financeiras e as suas relações sociais, era tudo
um negócio. Suas ações, porém, eram justificadas pela busca pelo
capital, seu fito na vida foi apossar-se das terras de São Bernardo,
seus “planos eram volumosos”. Para tanto, adotou “processos irre-
gulares” (p.42), “obrigando a fortuna lhe ser favorável” (p.39). A
conquista da fazenda se concretizou, mesmo que para isso, como
conta, tenha: “feito coisas ruins que deram lucro” (p.39). Essas “coi-
sas ruins”, todavia, eram vistas como legítimas pelo protagonista,
pois foram elas que fizeram com que ele obtesse São Bernardo.
Paulo Honório se torna o que Marx chama de “homem an-
gustiado por uma necessidade”, que é a de ter a fazenda para si, in-
dependente das pessoas e das circunstâncias, indiferente aos mé-
todos empregados para cumprir seu objetivo. Esse homem “não

CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS | 116


tem senso algum, mesmo para o espetáculo mais belo”. Capitalista,
o narrador protagonista do romance é como

“o mercador de pedras preciosos, só vê o valor


comercial delas, não vê a beleza e a natureza pe-
culiar de cada pedra, ele não possui qualquer
senso estético para o mineral em si”. (MARX apud
LUKÁCS, 2010, p.15)

Esse homem desumanizado vive a “objetivação da essência


humana”, não se dá conta da necessidade de “tornar humanos os
sentidos do homem como para criar um sentido humano adequado
à inteira riqueza da essência humana e natural” (idem).
Reconstruída por Paulo Honório, São Bernardo passa a cha-
mar atenção também pela sua beleza, seu proprietário, porém, não
tem sensibilidade para perceber como a terra e tudo que construiu
é bonito. Sobre a propriedade, avalia: “Bonita? Ainda não reparei.
Talvez seja bonita. O que sei é que é uma propriedade regular”
(p.80). Nessa terra, nada se cultiva para “enfeite, mas para vender
[...] Tudo. Flores, hortaliças, fruta...” (p.127). As melhorias e os in-
vestimentos que realizou na fazenda não foram executados pen-
sando na beleza que poderia agregar à propriedade ou no benefício
que proporcionaria aos seus moradores, pelo contrário, como tudo
que fazia: “A escola seria um capital. Os alicerces da igreja eram
também capital” (p.43).
O narrador, assim, não vê beleza na sua principal conquista,
nem humanidade nas pessoas que o cerca. Para conquistar São Ber-
nardo e fazê-la prosperar, se desumanizou. Depois de ter cumprido
seu objetivo de vida, já não era homem, já não era ninguém, era São
Bernardo, eram ambos uma coisa só, análogo ao que acontece com
o trabalho e o objeto que o trabalhador produz, como adverte Marx:
“O trabalhador põe a sua vida no objeto; porém, então, ele já não

117 | CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS


lhe pertence, mas ao objeto. Quanto maior, portanto, é esse pro-
duto, tanto menos ele próprio é” (MARX, 2015, p.306). O livro que
Paulo Honório escreve sobre a sua vida não leva o seu nome, mas o
nome da fazenda; ele não se diferencia dela, é ela.
Sendo ambos um só, à medida que a fazenda cresce e pros-
pera, Paulo Honório também se destaca, passa a ter influência, a ser
citado nos jornais, a receber visita do governador e a participar de
uma elite social. Começa a alcançar um tratamento que nunca havia
tido antes, mesmo tendo consciência, como a forma narrativa re-
vela, que se tratava de encenações sociais, devido ao dinheiro que
possuía. Tudo era comprado pela maior moeda de troca dessas re-
lações sociais: o dinheiro, que é “o poder alienado da humanidade”,
pois aquilo que o homem não consegue fazer com suas forças es-
senciais individuais, consegue-o pelo dinheiro. “O dinheiro trans-
forma, pois, essas forças essenciais em algo que elas não são, que
dizer, no contrário delas” (MARX apud LUKÁCS, 2010, p.20).
Por cem mil-réis, a imagem de bom moço de Paulo Honório
estava sendo divulgada por Azevedo Gondim em notas na Gazeta,
entre elogios, o fazendeiro era chamado patriota, apesar dos crimes
e irregularidades que cometia. Com dinheiro e propriedade, Paulo
Honório não seria mais anulado socialmente, poderia alcançar uma
aparência de existência humana, que nem ele nem os outros lhe
conferia, quando trabalhava por “cinco tostões por doze horas de
serviço” (p.11). Nessa época, o capital se desviava dele, mas, obsti-
nado, perseguia o dinheiro

“sem descanso, viajando pelo sertão, negociando


com redes, gado, imagens, rosários, miudezas,
ganhando aqui, perdendo ali, marchando no fi-
ado, assinando letras, realizando operações em-
brulhadíssimas”. (p.12)

CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS | 118


No passado, foi guia de cego, vendedor de doce e trabalhador
alugado, sofreu sede e fome, dormiu “na areia dos rios secos”; rea-
lidade que fazia questão de não esconder, pois tinha orgulho de
destacar: “Coloquei-me acima da minha classe, creio que me elevei
bastante” (p.186).
Todavia, mesmo tendo conquistado tanto, fosse enquanto
trabalhador alugado ou proprietário, Paulo Honório foi mercado-
ria, objeto e alienação. A “inumanidade capitalista” atinge-o, inde-
pendente da sua classe; afinal, “a classe dos proprietários e o pro-
letariado representam a mesma auto-alienação humana”. A dife-
rença substancial, porém, é que quando começou a pertencer à
classe dos proprietários, ele sentiu-se “à vontade nesta alienação,
por saber que a mesma é uma força que se exerce a seu favor e lhe
proporciona a aparência de uma existência humana” (MARX apud
LUKÁCS, 2010b, p.86-87).
Sendo assim, nos relacionamentos interpessoais que consti-
tuía, Paulo Honório buscava seu benefício próprio acima de qual-
quer coisa, tendo como preocupação exclusiva como ele poderia lu-
crar e prosperar – ainda mais – com tal relacionamento. Foi assim
com os seus amigos, com o padre, o governador e com os trabalha-
dores da fazenda. Quando deu por si que precisava se casar, só o
faria por causa de um herdeiro, não um filho, mas um herdeiro de
São Bernardo:

Amanheci um dia pensando em casar. Foi uma


ideia que me veio sem que nenhum rabo de saia
a provocasse. Não me ocupo com amores, devem
ter notado, e sempre me pareceu que mulher é
um bicho esquisito, difícil de governar. A que eu
conhecia era a Rosa do Marciano, muito ordiná-
ria. Havia conhecido também a Germana e outras
dessa laia. Por elas eu julgava todas. Não me sen-
tia, pois, inclinado para nenhuma: o que sentia

119 | CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS


era desejo de preparar um herdeiro para as ter-
ras de São Bernardo. (p.57)

Projetando a mulher que lhe daria um herdeiro, faz como se


fosse realizar a aquisição de um objeto, seria mais um capital:

Tentei fantasiar uma criatura alta, sadia, com


trinta anos, cabelos pretos – mas parei aí. Sou in-
capaz de imaginação, e as coisas boas que menci-
onei vinham destacadas, nunca se juntando para
formar um ser completo. Lembrei-me de senho-
ras minhas conhecidas: Dona Emília Mendonça,
uma Gama, a irmã de Azevedo Gondim, Dona
Marcela, filha do Dr. Magalhães, juiz de direito.
(p.57-58)

A escolhida, porém, não estava nos seus planos, não se enca-


chava no perfil que traçou, nem estava na lista elaborada por ele
com tanta frieza. Paulo Honório chegou a essa conclusão assim que
conheceu Madalena e deu por si que realmente estava interessado
por ela, o que fez com que o seu projeto de casamento com Dona
Marcela – mulher grande e forte, “um bichão, uma peitaria, um pé
de rabo, um toitiço” (p.67) – fosse modificado. E então percebe: “De
repente conheci que estava querendo bem à pequena. Precisa-
mente o contrário da mulher que eu andava imaginando – mas
agradava-me, com os diabos. Miudinha, fraquinha” (p.67).
Se nas características físicas Madalena era o contrário do
que Paulo Honório procurava, e se ela era instruída e amável, em
oposição à ignorância e brutalidade dele, as principais diferenças
entre os dois viriam logo após o matrimônio: “Um bate-boca oito
dias depois do casamento” (p.100). Dividindo o mesmo espaço,
convivendo na mesma casa, o contraste passou a ficar insustentá-
vel. Em lógicas opostas, viviam em sentidos antagônicos, tinham
“uma vida horrível” (p.163), como avaliou Madalena.

CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS | 120


A bondade humanitária da esposa se chocou com o egoísmo
brutal do marido, a disposição de ajudar e pensar no próximo da
mulher solidária contrastou com a mesquinharia do homem
capitalista e explorador feroz, que sempre via no outro um inimigo.
Para Madalena, as pessoas eram familiares, amigos, filhos e
colaboradores – as pessoas eram humanas –; para Paulo Honório,
que não conseguia estabelecer reais vínculos humanos, Madalena
era um bem, o filho, os amigos e os trabalhadores eram também um
bem, como São Bernardo, era tudo propriedade privada
conquistada por ele e ao seu serviço. O sentimento de propriedade
em relação à terra se aplicava do mesmo modo às pessoas. A esse
respeito, Antonio Candido destaca:

Em Paulo Honório, o sentimento de propriedade,


mais que simples instinto de posse, é uma dispo-
sição total do espírito, uma atitude complexa di-
ante das coisas. Por isso engloba todo o seu modo
de ser, colorindo as próprias relações afetivas.
Colorindo e deformando. (CANDIDO, 1956, p. 31)

III

Analisando esse perfil capitalista e desumano do proprietário


de São Bernardo e suas ações do mesmo modo inumanas, base-
ando-se, principalmente, no que ele, enquanto narrador protago-
nista do romance, nos conta no decorrer da narrativa, poderíamos
supor que estamos diante de um ser medíocre por completo. Toda-
via, a maneira como Graciliano Ramos constrói esse personagem,
através do modo compositivo adequado, o leitor se coloca em face
de um homem vivo, que no curso do romance, vai sendo deformado
pelo capitalismo. Na análise de Paulo Honório, ele se tornou esse
homem bruto, desconfiado e seco por culpa do trabalho: “Creio que

121 | CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS


nem sempre fui egoísta e brutal. A profissão é que me deu qualida-
des tão ruins. E a desconfiança terrível que me aponta inimigos em
toda a parte!”. Para ele, “A desconfiança é também consequência da
profissão” (p.190).
O narrador também acredita que a profissão foi a responsável
pelo distanciamento entre ele e Madalena: “esta desgraçada profis-
são nos distanciou” (p.190). Sobre o casamento fracassado que le-
vou sua esposa a se matar, ele pondera: “Madalena entrou aqui
cheia de bons sentimentos e bons propósitos. Os sentimentos e os
propósitos esbarraram com a minha brutalidade e o meu egoísmo”
(p.190). Para Paulo Honório, a culpa da vida triste que possuía não
era diretamente dele: “A culpa foi minha, ou antes, a culpa foi desta
vida agreste, que me deu uma alma agreste” (p.100).
No final da vida, ele se dá conta da sua inexistência humana,
percebe-se um homem monstruoso, inutilizado e aleijado pela pro-
fissão:

Foi este modo de vida que me inutilizou. Sou um


aleijado. Devo ter um coração miúdo, lacunas no
cérebro, nervos diferentes dos nervos dos outros
homens. E um nariz enorme, uma boca enorme,
dedos enormes. Se Madalena me via assim, com
certeza me achava extraordinariamente feio. Fe-
cho os olhos, agito a cabeça para repelir a visão
que me exibe essas deformidades monstruosas.
(p. 190)

Para Marx, a ação anti-humana do dinheiro, logo, da divisão


desigual do trabalho, isto é, do capitalismo, altera e deforma a es-
sência do homem. E se a desumanização de Paulo Honório pode
chocar o leitor em muitos momentos na leitura do livro, Lukács
alerta que a mutilação do homem realizada pelo capitalismo “é
mais cruel e estúpida do que podem fazer supor as imagens pro-
porcionadas pelos melhores romancistas” (2010b, p.89). O método

CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS | 122


compositivo realista do romance corpus de análise deste texto, po-
rém – em oposição ao naturalismo, por exemplo –, não suaviza a
realidade capitalista, pelo contrário, acentua a sua crueldade.
Quando compreendemos que estudar um romance na pers-
pectiva marxista é compreendê-lo como uma unidade não consoli-
dada do contrário, passamos a perceber Paulo Honório não como
um homem bruto, medíocre e capitalista, simplesmente, mas um
personagem que se constrói na contrariedade móvel. Durante o
processo de rememoração e registro de suas experiências num li-
vro, o sujeito que escreve e descreve sua trajetória de vida é trans-
formado, num aprofundamento do drama humano dos contrários.
A forma como Graciliano constrói esse texto literário mostra
a ambivalência da vida humana, numa defesa da humanidade, na
qual os homens não são sempre e totalmente maus ou bons por
completo. Quando esse narrador em primeira afirma algo, mas as
suas ações mostram o contrário, é possível intuir como esse homem
é humano na sua ambivalência, um ser em unidade formado por
contrários. O modo como o autor capta e reflete a realidade no seu
romance – a partir da transfiguração que faz do conteúdo social,
considerando a realidade como possível de transformações, como
se deu com Paulo Honório – nos permite perceber a sua concepção
de história, que não é categórica e imutável, proporcionando ao lei-
tor uma inteligibilidade da realidade histórica.
As contradições de Paulo Honório, dessa maneira, tornam-se
as contradições do capitalismo. A profissão que o inutilizou não é
uma experiência individual de um homem apenas, mas está direta-
mente relacionada à ordem das coisas no mundo e às relações ca-
pitalistas. Numa leitura marxista de São Bernardo, Carlos Nelson
Coutinho analisa o conflito de Paulo Honório e Madalena dialetica-
mente inter-relacionado com os conflitos “entre as forças da reação
e do progresso tal como se apresentavam em nossa realidade”. Para
ele,

123 | CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS


“O desenvolvimento desigual e duplamente con-
traditório do nosso capitalismo, determinando
uma especificidade nas contradições humanas e
sociais, leva Graciliano à criação de uma estru-
tura romanesca bastante original”.

Diante disso, o estudioso defende:

São Bernardo é o mais perfeito, o mais “clássico”


dos romances de Graciliano: foi nele que, com
mais perfeição, o romancista alagoano soube en-
contrar – para expressar a contraditória reali-
dade brasileira – uma estrutura orgânica e pro-
fundamente realista. (COUTINHO, 1967, p. 161)

No final do romance, ao analisar tudo que fez e viveu, Paulo


Honório começa a discernir como se tornou quem é, a ter uma “vaga
compreensão de muitas coisas que sinto” (p.184), e chega à se-
guinte conclusão: “Se fosse possível recomeçarmos ... Para que en-
ganar-me? Se fosse possível recomeçarmos, aconteceria exata-
mente o que aconteceu” (p.188), mas se suas palavras dizem que
repetiria seus atos, o fato de acreditar que não consegue se modifi-
car o aflige.
Depois das experiências vividas, após tudo que sofreu e fez
sofrer os outros, ele pode dizer e se reconhecer como um ser sem
modificação, acreditando que nada pode ser remediado; todavia,
tem outra certeza: “Estraguei a minha vida, estraguei-a estupida-
mente” (p.188). Paulo Honório, então, se dá conta da vida medíocre
que levou, tem consciência que a profissão e o trabalho o tornaram
o que é, mas também reconhece que a vida que teve foi resultado
de suas ações em relação a si mesmo, aos outros e ao mundo, do
modo como foi tratado e da maneira que tratou os outros; isto é,
das relações sociais que estabeleceu.

CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS | 124


Sendo propriedade privada e sujeito uma coisa só, como vi-
mos, a decadência de São Bernardo no final da narrativa significa
para Paulo Honório a sua ruína; sem ela, ele se vê sem perspectiva
e identidade, não é só um homem em falência, solitário e triste, mas
um homem sem vida. A única coisa que ele acreditava possuir, o que
ele acreditava que o tornava humano e lhe trazia prestígio social
estava em decadência. São Bernardo, porém, não foi a única propri-
edade privada que ele perdeu. Madalena se matou, os amigos e os
trabalhadores sumiam, as visitas se tornaram cada vez menos fre-
quentes. Nesse período, ele lamenta: “Nem sequer tenho amizade a
meu filho” (p.191).
Nesse cenário de solidão, numa “casa quase deserta”, Paulo
Honório começa a fazer o improvável diante da sua trajetória e per-
fil, aquilo que Candido chama de “elemento inesperado”: a escrever
suas memórias, a construir um livro; isto é, arte. O livro, que come-
çou para ser um negócio, como tinha sido tudo em sua vida, tornou-
se sua companhia, uma maneira de criar algum vínculo humano,
ainda que fosse com leitores imaginários de um livro que publicaria
com um pseudônimo. O próprio protagonista se dá conta de como
é contraditório um capitalista construindo um trabalho estético –
mesmo sem ter consciência disso, ou ter sido esse o seu objetivo –,
ele questiona: “Então para que escreve? – Sei lá!” (p.10). Em outro
momento da narrativa, reflete: “E, falando assim, compreendo que
perco o tempo. [...] para que serve esta narrativa? Para nada, mas
sou forçado” (p.100).
Uma resposta possível para esses questionamentos seria o
fato da arte operar sobre o homem “como um efeito
descoisificador”, constituindo-se um meio de provocar o
enriquecimento do sujeito, como discute Lukács. Se a literatura,
como uma forma de arte, é memória viva da humanidade, na qual o
homem pode se reconhecer como humano, Paulo Honório escreve
para se humanizar, demonstrando, diferente do que ele mesmo

125 | CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS


afirma e acredita, que ainda tem a capacidade de se transformar.
Analisando esse processo de escrita e transformação de Paulo
Honório pelo livro que ele compõe, Candido afirma:

Paulo Honório sente uma necessidade nova, –


escrever – e dela surge uma nova construção: o
livro em que conta a sua derrota. Por ele, obtém
uma visão ordenada das coisas e de si; no
momento em que se conhece pela narrativa,
destrói-se enquanto homem de propriedade, mas
constrói com testemunho de sua dor a obra que
redime. (CANDIDO, 1956, p. 34, grifo meu)

Desse modo, “a transformação dos personagens se realiza


sempre de maneira a fazê-los alcançar um enriquecimento
humano, de modo a fazer com que seus contornos encerrem uma
vida mais intensa” (LUKÁCS, 2010b, p.69). E assim, o proprietário
de São Bernardo se humaniza, torna-se um personagem vivo que
veio da realidade, da vida, num reflexo elevado e típico das
potencialidades e contradições humanas. Pelo modo compositivo,
Paulo Honório não é representado como um homem medíocre,
como poderia se supor pela vida medíocre que levou, mas como
personagem tipo,

O tipo vem caracterizado pelo fato de que nele


convergem, em sua unidade contraditória, todos
os traços salientes daquela unidade dinâmica na
qual a autêntica literatura reflete a vida; nele, to-
das as contradições – as mais importantes con-
tradições sociais, morais e psicológicas de uma
época – se articulam em uma unidade viva.
(LUKÁCS, 2010b, p. 27)

Paulo Honório, então, não nasce típico, mas alcança a dimen-


são da tipicidade no interior das ações ficcionais, no decorrer da

CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS | 126


narrativa, nas relações e conflitos que estabelece consigo e com os
outros.
A respeito da construção, desenvolvimento e importância da
tipicidade para os textos literários, retomando o referido pensa-
mento de Lukács, Ana Laura dos Reis Corrêa ressalta: “O persona-
gem não pode alcançar a tipicidade por uma configuração isolada
da situação ficcional. Se assim fosse, o típico seria rebaixado a uma
aparência divorciada de sua essência histórica” (CORRÊA, 2015,
p.36). Nessa perspectiva, a estudiosa afirma:

A tipicidade é categoria central do realismo artís-


tico, pois a representação efetiva e correta da re-
alidade em sua unidade contraditória exige que
o artista, ao compor a sua obra, considere a rea-
lidade efetiva para descobrir nela aquilo que é
mais típico, isto é, aquilo que reúne o fenômeno
imediato à sua essência histórica. (CORRÊA,
2015, p. 36)

Uma vez que a forma narrativa de São Bernardo como um


método de representação da realidade faz com que o romance seja
uma “grande obra”, sua implicação no leitor não poderia ser outra
senão a ideal, na concepção Lukácsiana:

“A preocupação central da leitura de um


romance é aquela que nos leva a uma espera
impaciente da evolução dos personagens com
que nos familiarizamos, a uma espera do êxito ou
do fracasso deles”. (LUKÁCS, 2010b, p. 69)

Em São Bernardo, o leitor se envolve com o que lê, acompanha


as modificações de Paulo Honório, que pode não ter se
transformado no homem solidário, amável, justo e humano, como
Madalena gostaria, ou como alguns leitores esperavam, mas no seu
íntimo drama humano, ele toma consciência da sua humanidade. O

127 | CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS


protagonista não se torna outro, mas compreende as implicações
sociais que o tornaram quem é, se dá conta dos elementos objetivos
que constituem o sujeito, entende que o proprietário de São
Bernardo é resultado do trabalhador alugado que um dia foi:

Sou um homem arrasado. Doença? Não. Gozo


perfeita saúde. [...] O que estou é velho.
Cinquenta anos pelo São Pedro. Cinquenta anos
perdidos, cinquenta anos gastos sem objetivo, a
maltratar-me e a maltratar os outros. O resultado
é que endureci, calejei, e não é um arranhão que
penetra esta casca espessa e vem ferir cá dentro
a sensibilidade embotada. Cinquenta anos!
Quantas horas inúteis! Consumir-se uma pessoa
a vida inteira sem saber para quê! Comer e
dormir como um porco! Como um porco!
Levantar-se cedo todas as manhãs e sair
correndo, procurando comida! E depois guardar
comida para os filhos, para os netos, para muitas
gerações. Que estupidez! Que porcaria! (p. 184)

Essa reflexão do protagonista já é uma reação, que demonstra


um desejo de humanidade, de ser gente, de ser humano. Mesmo se
percebendo solitário, compreendendo como teve uma vida infeliz e
medíocre, Paulo Honório vive uma tomada de consciência, que não
se constitui como uma desilusão ou pessimismo, mas como uma
possibilidade. É um reflexo de sua própria realidade, construída
por suas ações, que mesmo capitalistas, egoístas e brutais, são hu-
manas na sua contrariedade. O seu fracasso enquanto humano não
significa a derrota da sua humanidade.
Nesse movimento, o drama de Paulo Honório não é só dele.
Se o protagonista se transforma no decorrer do romance, o mesmo
acontece com o leitor. A catarse e a desalienação que Paulo Honório
começa a experienciar no processo de construção do seu trabalho
estético transcendem o livro, vai para além das palavras escritas no

CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS | 128


tecido literário, atingem o leitor, que se vê tocado e também trans-
formado pelo que leu. Esse “efeito descoisificador”, porém, não se
dá de modo mecânico, imediato, só no campo das ideias ou ainda
numa perspectiva existencialista ou romântica, mas de modo con-
creto, uma vez que o ser humano toma consciência de si e da sua
humanidade lendo literatura, compreendendo-a como uma forma
de autoconsciência humana. Essa experiência, por ser real, per-
passa pelas experiências humanas e pela matéria social. Afinal, a
estética nunca está fora da realidade, mas dentro dela, consti-
tuindo-se numa maneira de se tornar inteligível a grandiosidade da
vida.
Como “verdadeira arte”, São Bernardo não é uma descrição
e nem mesmo uma narração dos acontecimentos da vida de um ho-
mem específico simplesmente de modo desvinculado com a reali-
dade, mas um profundo drama humano, capaz de nos proporcionar
um conhecimento sensível e poético dos conflitos e relações huma-
nas representadas em Paulo Honório, pelo desenvolvimento das
suas contradições.
No romance, “a peculiaridade do estético, não se relaciona
com a transmissão de determinados conteúdos, mas com a capaci-
dade para apresentar a realidade configurada em termos huma-
nos”. (VEDDA, 2014, s/p). E assim, ao narrar a essência da reali-
dade, que é o homem e as suas relações sociais, representando-a no
seu movimento, na sua evolução, desenvolvimento e contrariedade,
São Bernardo apresenta-se como radical, na concepção marxista,
tomando o homem como raiz.

129 | CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS


REFERÊNCIAS

CANDIDO, Antonio. Ficção e confissão: ensaio sobre a obra de Gra-


ciliano Ramos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1956.

CORRÊA, Ana Laura dos Reis. A duas faces das medalhas: dialética
aparência e essência em “Teoria do medalhão” e “O emplasto”. O
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COUTINHO, Carlos Nelson. Literatura e humanismo: ensaios de crí-


tica marxista. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967.

LUKÁCS, Györg. “A arte como autoconsciência do desenvolvimento


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CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS | 130


_____. “O romance como epopeia burguesa”. In: _____. Arte e socie-
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dução de Carlos Nelson Coutinho e José Paulo Netto. Rio de Janeiro:
UFRJ, 2011, p. 193-243.

MARX, Karl. Cadernos de Paris & Manuscritos econômico-filosóficos


de 1844. Trad. José Paulo Netto e Maria Antónia Pacheco; Revisão
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RAMOS, Graciliano. São Bernardo. Rio de Janeiro: Record, 1996.

VEDDA, Miguel. “Posição teleológica e posição estética: sobre as in-


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ter e VEDDA, Miguel (organizadores). Lukács: estética e ontologia.
São Paulo: Alameda, 2014.

131 | CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS


As ex-colônias portuguesas no continente africano conquista-
ram independência na década de 70 do século passado, após quatro
séculos de colonização, por meio de lutas armadas. Guiné-Bissau,
em 1974, foi o primeiro a ser reconhecido como independente por
Portugal, enquanto Cabo Verde, Moçambique, São Tomé e Príncipe
e Angola obtiveram em 1975. Em decorrência disso, a temática dos
movimentos pela independência e as guerras civis se fazem presen-
tes nas obras literárias produzidas nestes países.
Em Moçambique, quando os portugueses iniciaram a
colonização, não existia um sistema de escrita entres os povos
nativos. Sua cultura era baseada na tradição oral, sendo a memória
ancestral o elo transmissor da sabedoria, da história e da cultura.
Além disso, Portugal começou de fato a colonizar culturalmente
seus territórios tardiamente, utilizando como ferramenta a escrita
em língua portuguesa e sua adoção como sistema de língua oficial.
A elite negra e mestiça moçambicana deu início ao
jornalismo, com partes voltadas para a literatura, nos primeiros
meados do século XX, tendo como foco a defesa dos direitos dos
moçambicanos.

“Os irmãos José e João Albasani fundaram, em


1909, O africano, jornal editado em português e
ronga, um dos principais idiomas bantos de
Moçambique, a fim de promulgar e divulgar a
dignidade da população indígena”. (HUSSEL,
2006, p. XI)

Essa literatura revolucionária foi perseguida por Salazar, que


vetou a liberdade de imprensa. Mas com a independência, muitas
dessas obras proibidas foram publicadas, tanto nos países
africanos como em Portugal e, assim, sob fortes influências
literárias, surge a Literatura Moçambicana propriamente dita.
Como afirma Silva (2010, p. 33):

CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS | 134


Escrever uma história literária, portanto, é uma
tarefa ampla, ainda mais quando se trata de sis-
temas literários emergentes, porque o ponto de
partida de seus pesquisadores é a constituição
dos sistemas literários de outras nações. (...) No
caso da literatura moçambicana, podemos pen-
sar que as recentes contribuições para sua histo-
riografia têm por base os processos de formação
das literaturas brasileira e portuguesa, bem
como aquelas outras nações de língua portu-
guesa, nomeadamente de Angola, cujo repertório
literário destaca-se como um dos mais amplos no
âmbito dessas literaturas.

Uma atmosfera de incertezas e conflitos que encontramos


nas obras do escritor moçambicano Mia Couto. Sobre seu fazer lite-
rário dentro do universo moçambicano Ana Claudia da Silva (2010,
p. 72) diz que:

Mia Couto tem também o mérito de levar a lite-


ratura moçambicana para além dos limites de
sua nação, dando a conhecer ao mundo todo, pe-
las inúmeras traduções de suas obras, os modos
moçambicanos de ser e de viver, de pensar a re-
alidade e de dizê-la. (...) Entendemos ser Mia
Couto, em Moçambique, o inaugurador de uma li-
berdade de criação literária que prima pela des-
treza do trato pelas palavras; pela postura sin-
gela que abarca as perplexidades de seu tempo;
pela multiculturalidade que sobrepuja o exo-
tismo com que o continente africano ainda é,
muitas vezes, concebido; e pelo inusitado das si-
tuações, descritas sempre, parodiando Machado,
com a pena da dedicação e a tinta da ironia.

Corroborando com esta afirmação, acreditamos que a litera-


tura produzida por Mia Couto tem contribuído para divulgação da

135 | CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS


sociedade moçambicana, estando imbricada de percepções sociais,
culturais, psicológicas, enfim, humanas.
Em Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra estas
temáticas também são perceptíveis. Afinal, nas palavras de Izabel
A. Marson (2004),

“pode-se considerar que, tendo a possibilidade


de ser, ao mesmo tempo, entretenimento, ali-
mento para o imaginário e veículo de aprendiza-
gem, a ficção é recurso que, num mesmo ato, pre-
serva e transfigura a memória das comunida-
des”.

É neste viés que buscamos ancorar este estudo, no qual ana-


lisaremos a problemática da representação e contrução da memó-
ria na obra em questão, visto que, enquanto literatura desveladora
e auxiliar da interpretação histórica, revela comportamentos cultu-
rais, políticos e sociais de uma comunidade em um certo momento.
No romance supracitado, há algo de universal, comum a to-
dos nós: a temática construção da identidade, os embates ocorridos
no seio familiar e o sentimento de pertencimento, como afirma Mia
Couto em entrevista concedida a Gel Felipe para o Jornal Notícias:

Eu acho que desde o meu primeiro livro [Terra


Sonâmbula] há um tema que nunca me abando-
nou que é o tema da procura de identidades. Es-
tas identidades que nós pensamos como sendo
puras, isoladas e estáticas, não são nada disso e
pelo contrário são dinâmicas. Este livro [O Outro
Pé da Sereia] fala um bocadinho sobre isso, sobre
uma mestiçagem que não é apenas racial mas
uma mestiçagem de culturas. Evidentemente
que a história é uma outra coisa, mas de uma
forma indirecta falo também sobre isso.

CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS | 136


Aqui Mia Couto fala sobre o livro O Outro Pé da Sereia, mas
revela-nos que a construção de identidades – no plural, por não ser
acabada e fechada –, essa busca pela autodescoberta, sempre está
presente em suas obras.
Seguindo nesta linha, a abordagem dada ao tema identidade
propõe uma articulação das diferenças culturais, que busca a des-
coberta do eu ao descobrir o outro. Assim, ganham novas dimen-
sões os discursos proferidos a partir da margem do mundo globali-
zado e das culturas hegemônicas, pois como afirma Munszkat
(1986), “é através dos encontros com o Outro, em todas as possibi-
lidades existenciais, que o Ego se diferencia plenamente, passando
a desempenhar-se no nível da identidade”. Além disso, salientamos
que “não se pode chegar à verdadeira natureza pelo lado de fora.
Por mais que se investigue, nesse nível, só se podem alcançar no-
mes e sinais. É preciso ingressar no interior de si mesmo em busca
da natureza arcaica da vida psíquica” (MUNSZKAT, 1986, p. 50).
Para nossa análise, utilizaremos os estudos de Jacques Le
Goff em Passado/Presente, de Antonio Cândido em A literatura na
evolução de uma comunidade, de Maurice Halbwachs em A memória
coletiva, de Sandra J. Pesavento em História, literaturas e cidades:
diferentes narrativas para o campo do patrimônio, de Maria de Fá-
tima Marinho em A construção da memória, de Andreas Huyssen em
Passados presentes: mídia, política, amnésia, de Maria Nazareth S.
Fonseca em Percursos da memória em textos das literaturas africa-
nas de língua portuguesa, de Ana Cláudia da Silva em O rio e a casa:
imagens do tempo na ficção de Mia Couto, e também as entrevistas
Obras de ficção revelam características de momento histórico, de Iza-
bel Andrade Marson, e A arte de fingir que se mente, de Ana Miranda,
dentre outras que constam em nosso referencial.
Para uma leitura mais didática, dividiremos este artigo em
três momentos. No primeiro, faremos uma breve abordagem da
história moçambicana no que se refere à formação da república, o

137 | CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS


surgimento de sua literatura e algumas considerações sobre o es-
critor Mia Couto. Abordaremos, no segundo momento, como a pro-
blemática da memória é apresentada em Um rio chamado tempo,
uma casa chamada terra sob a luz dos conceitos dos teóricos já ci-
tados, tendo como foco Marianinho, protagonista do romance. No
terceiro momento, faremos nossas últimas observações sobre o ro-
mance e nossas ponderações finais.

CONSTRUÇÃO DA MEMÓRIA FAMILIAR EM


UM RIO CHAMADO TEMPO, UMA CASA CHAMADA TERRA

Retirou os óculos e atirou-os para o capim. Dul-


cineusa foi no seu encalço para lhe entregar o
que ele havia deixado cair. Mas o religioso fez
questão de negar. Preferia deixar de ver.
(COUTO, 2003, p. 100)

Em Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra o pro-


cesso de autodescoberta de Marianinho, por meio das reminiscên-
cias do passado familiar, se dá com o seu retorno à ilha de Luar-do-
Chão. Incumbido de comandar as cerimônias fúnebres do avô Dito
Mariano (de quem recebeu o nome), o jovem se vê como um estra-
nho entre os seus familiares e entre as pessoas de sua terra, pois
tem vivido e estudado na cidade nos últimos anos. Aos poucos, Ma-
rianinho percebe que voltou à ilha para um renascimento.
Uma série de intrigas e segredos familiares envolvem Fu-
lano Malta (pai de Marianinho), sua avó Dulcineusa, os tios Absti-
nêncio e Ultímio e sua tia-avó Admirança, dentre outras persona-
gens presentes no romance. As nebulosas circunstâncias em torno
da morte de sua mãe, Mariavilhosa, resurgem. O rapaz descobre,
por meio de cartas de origem obscura, que o falecimento do avô
permanece estranhamente incompleto. Trata-se de um momento

CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS | 138


de passagem, crucial para Marianinho e para Luar-do-Chão, uma
vez que a terra está num estado de abandono, decadência e miséria.

Nenhum país é tão pequeno quanto o nosso. Nele


só existem dois lugares: a cidade e a Ilha. A se-
pará-los apenas um rio. Aquelas águas, porém,
afastam mais que a própria distância. Entre um e
outro lado reside um infinito. São suas nações,
mais longínquas que planetas. Somos um povo,
sim, mas de duas gentes, duas almas. (COUTO,
2003, p. 18)

Notamos no romance um impasse cultural, religioso e polí-


tico, que possui semelhanças com a situação social de Moçambique,
já que nessa enigmática ilha, onde o rio armazena a memória dos
espíritos e a terra sofre com obscuros feitiços, a tarefa de Mariani-
nho é encontrar uma forma de levar adiante uma história que ul-
trapassa o ambiente familiar, ganhando o espaço público e social.
Isto nos remete a Le Goff (1990, p. 124) quando diz que:

As sociedades ditas tradicionais, especialmente


as camponesas, não são tão estáticas como se
julga. Se a ligação ao passado pode admitir novi-
dades e transformações, na maior parte dos ca-
sos o sentido da evolução é apercebido como de-
cadência ou declínio. A inovação aparece em uma
sociedade sob a forma de um regresso ao pas-
sado: é a ideia-força das "renascenças".

Muitos são os segredos que o jovem deverá descobrir, tendo,


para isso, o auxílio das cartas fúnebres de seu “clinicamente de-
funto” avó Dito Mariano, mesmo sendo tratado pelos familiares
como criança e incapaz de compreender os acontecimentos que os
cercam.

139 | CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS


Marianinho empreende uma jornada para dentro de si,
busca lembrar-se para compreender o meio que o cerca, mas tam-
bém procura as memórias familiares nos diálogos com seus paren-
tes e outras pessoas da ilha, tais como o padre Nunes e o médico
indiano Mascarenhas, por exemplo. Tal nebulosidade decorre da
“ausência de um passado conhecido e reconhecido”, que gera con-
flitos em Luar-do-Chão, pois “a míngua de um passado, pode tam-
bém ser fonte de grandes problemas de mentalidade ou identidade
coletiva: é o caso das jovens nações, principalmente das africanas”
(LE GOFF, 1990, p. 205).
A busca pela memória suprimida é o eixo desencadeador da
trama, como vemos nas cartas com orientações de Dito Mariano,
nas quais instrui Marianinho a procurar as pessoas da ilha.

Estas cartas, Mariano, não são escritos. São falas.


Sente-se, se deixe em bastante sossego e escute.
Você não veio a esta Ilha para comparecer pe-
rante um funeral. Muito ao contrário, Mariano.
Você cruzou essas águas por motivo de nasci-
mento. Para colocar nosso mundo no devido lu-
gar. Não veio salvar o morto. Veio salvar a vida, a
nossa vida. Todos aqui estão morrendo não por
doença, mas por desmérito do viver.
(...) A Ilha de Luar-do-Chão é uma prisão. A pior
prisão, sem muros, sem grades. Só o medo do que
há lá fora nos prende ao chão. E você saltou essa
fronteira. Se afastou não em distância, mas se
alonjou da nossa existência. (COUTO, 2003, pp.
64-65)

O avô também rememora o passado de Fulano Malta para


explicar sua atual situação para que, assim, o jovem comece a busca
pelo desvelo dos segredos que estão sufocando Luar-do-Chão. Este

CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS | 140


caminho de contar o passado, fazendo com as lembranças fragmen-
tadas adormecidas ganhem novamente cores, alia-se à reflexão de
Halbwachs, pois:

Então, é da própria lembrança em si mesma, é em


torno dela, que vemos brilhar de alguma forma
sua significação histórica. (...) Se lembramos dele
[o fato], é porque sentíamos em torno de nós os
outros [adultos] se preocupavam. Mais tarde,
compreendemos melhor porquê. A lembrança,
no início, existia no interior da corrente, mas es-
tava retida por algum obstáculo, permanecia
muito a margem, presa nas ervas da margem.
(HALBWACHS, 1990, p. 63)

São essas lembranças que estava à margem da memória do


protagonista que ressurgem e passam a inquietá-lo. Trazê-las à su-
perfície é algo que afetará a ilha, uma vez que todos estão envolvi-
dos neste passado silenciado, imbricando diretamente nos proble-
mas atuais. Desta forma, vemos que somente pelo desvencilha-
mento dessa mudez imposta ao passado é que se pode ir em frente.
Salientamos que, conforme Le Goff (1990, p. 68), “os costumes mo-
dernos repousam sobre antigas camadas que afloram em mais de
um lugar. Algumas vezes, é preciso ir muito longe, para descobrir
ilhas de passado conservadas”.
Ao descobrir o que há de errado com a ilha, Marianinho as-
sume por completo a tarefa deixada por seu avô e os anseios de avó
Ducineusa, fato este perceptível em mais uma das cartas de Dito
Maraianho, em que reitera a tarefa do neto em “salvar Luar-do-
Chão. Sim, faltava-nos um que viesse de fora mas fosse de dentro”
(COUTO, 2003, p. 173). Luar-do-Chão, enquanto espaço existente
apenas dentro o romance, recebe tons referentes ao que se passa

141 | CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS


em Moçambique, isto é justificado na fala de Maria Nazareth S. Fon-
seca quando salienta que muitas produções literárias africanas de
língua portuguesa:

Acordam em nós dados significativos da memó-


ria e do passado. Deve-se reafirmar, todavia, que
a literatura que se volta para a preservação de
tradições, como os “lugares de memória”, só
pode lidar com ruínas e com restos que são como
“as conchas que aparecem na praia quando o mar
da memória viva já recuou” (NORA, 1984, p. 8).
Constrói-se como ilusão de permanência, mas
também reafirma possibilidades de retomada do
passado e de tradições que se vão desman-
chando, motivadas pelas alterações que, cada vez
mais, transformam (e transtornam) as paisagens
do mundo. (FONSECA, 2006, p. 61)

A narrativa também se apropria de dados históricos para


encandear seus acontecimentos, sobretudo emanam referências ao
movimento de independência de Moçambique. Tal fato é perceptí-
vel quando Marianinho retoma a lembrança de Mariavilhosa du-
rante o parto de um bebê natimorto, na noite da Independência,
pois “naquela noite, enquanto se celebrava o deflagrar de todo o fu-
turo, minha mãe morria de um passado: o corpo frio daquele que
seria seu último filho” (COUTO, 2003, p. 191). O que torna esta re-
ferência mais salutar no romance é que não há menção de datas ao
longo da narrativa, fazendo com que o tempo cronológico seja mar-
cado pelos fatos históricos.

Assim, literatura e história são narrativas que


têm o real como referente, para confirmá-lo ou
negá-lo – construindo sobre ele uma outra ver-
são –, ou ainda para ultrapassá-lo. Como narrati-
vas, são representações que se referem à vida e
que a explicam. (...) A literatura é, no caso, um

CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS | 142


discurso privilegiado de acesso ao imaginário
das diferentes épocas. (...) Os personagens literá-
rios existiram como possibilidades, perfis que re-
traçam sensibilidades. Foram reais na “verdade
do simbólico” que expressam, não no acontecer
da vida. São dotados de realidade porque encar-
nam defeitos e virtudes dos humanos, porque
nos falam do absurdo da existência, das misérias
e das conquistas gratificantes da vida. Porque fa-
lam das coisas para além da moral e das normas,
para além do confessável, por exemplo. (PESA-
VENTO, 2012, p. 401)

Esta afirmação de Pesavento é reveladora sobre Um rio cha-


mado tempo, uma casa chamada, em que temos a representação de
Moçambique por meio de Luar-do-Chão e da cidade (que não é no-
minada), estando situada neste universo conturbado pós-colonial e
globalizado, onde modernidade e tradição disputam espaço.
Marianinho obtém êxito em sua jornada, mesmo enfren-
tando a oposição dos moradores da ilha em contar suas histórias,
especialmente nas que trazem segredos perigosos, como, por
exemplo, o assassinato de Juca Sabão que, juntamente com Dito Ma-
riano, espalhou droga pela terra pensando ser fertilizante. Contudo,
sabemos que ao rememorar o passado acabamos por omitir ou ex-
pandir determinados fatos, uma vez que “a memória é sempre tran-
sitória, notoriamente não confiável e passível de esquecimento; em
suma, ela é humana e social” (HUYSSEN, 2000, p. 37).
A memória, enquanto espaço lacunar e preenchível a partir
do presente, é notória no episódio do álbum da família, em que a
avó Ducineusa traz em seu colo um álbum vazio e passa a “descre-
ver” as ilusórias fotos que documentariam os momentos familiares,
especialmente os episódios comemorativos.

Mas quando o álbum se abre em seu colo eu re-


paro, espantado, que não há fotografia nenhuma.

143 | CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS


As páginas de desbotadas cartolinas estão vazias.
Ainda se notam as marcas onde, antes, estiveram
coladas fotos.
– Vá. Sente aqui que eu lhe mostro.
Finjo que acompanho, cúmplice da mentira.
(...)
Dulcineusa queixa-se que ela nunca aparece em
nenhuma foto. Sem remorso empurro mais longe
a ilusão. Afinal, a fotografia é sempre uma
mentira. Tudo na vida está acontecendo por re-
petida vez.
– Engano seu. Veja esta foto, aqui está a Avó.
– Onde? Aqui no meio desta gente toda?
(...)
– Obrigada, meu neto!
– Obrigada porquê?
– Você mente com tanta bondade que até Deus lhe
ajuda a pecar.
(COUTO, 2003, pp. 49-51. Grifos nossos)

Marianinho entra nesse jogo e passa a recriar o passado que


deve, por meio das fotos, permanecer como memórias documentais
da família Mariano. Essa recriação imaginativa fotográfica toma
forma (de maneira fantástica, que não é explicada na obra) e passa
a ocupar lugar no álbum, representando um passado familiar re-
constituído como verídico. Dessa forma, a construção da memória
empreendida por Mariano passa a ser a “verdade” que será perpe-
tuada.

ALGUMAS OUTRAS CONSIDERAÇÕES

Nosso protagonista, que passa a ser chamado de Mariano ao


final do romance, obtém êxito na incumbência recebida de Dito Ma-
riano, que descobre ser seu pai biológico. Assim, a jornada empre-
endida pelo jovem também foi interior, um processo de amadure-
cimento, em que visitou “casa, terra, homem, rio: o mesmo ser, só

CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS | 144


diferindo em nome. Há um rio que nasce dentro de nós, corre por
dentro da casa e desagua não no mar, mas na terra. Esse rio uns
chamam de vida” (COUTO, 2003, p. 258).
Portanto, tendo chegado à maturidade, o jovem está apto a
assumir o posto de chefe familiar. Agora Mariano compreende a
ilha, seus moradores e sua família, pois “a medida em que a criança
cresce, e sobre tudo quando se torna adulta, participa de maneira
mais distinta e mais refletida da vida e do pensamento desses gru-
pos dos quais fazia parte, inicialmente, sem disso perceber-se”
(HALBWACHS, 1990, p. 71).
Isto nos remete à fala de Antonio Candido, visto que Um rio
chamado tempo, uma casa chama terra exemplifica esse fazer lite-
rário diante do fato de que:

Não há literatura enquanto não houver essa con-


gregação espiritual e formal, manifestando-se
por meio de homens pertencentes a um grupo
embora ideal, segundo um estilo (embora nem
sempre tenham consciência dele); enquanto não
houver um sistema de valores que enferme a sua
produção e dê sentido à sua atividade; enquanto
não houver outros homens (um público) aptos a
criar ressonância a uma e outra; enquanto, final-
mente, não se estabelecer a continuidade (uma
transmissão e uma herança), que signifique a in-
tegridade do espírito criador na dimensão do
tempo. (CANDIDO, 2006, p. 147)

Sob este viés, vemos que a literatura moçambicana está ob-


tendo êxito em sua formação e continuidade, o que percebemos por
meio das obras de Mia Couto. Marianinho se desenvolve e reintegra
a família, bem como os moradores e a ilha também, já que a memó-
ria da terra “se apoia na materialidade, nas vivências, nas sensibili-

145 | CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS


dades do vivido. A memória de uma cidade é uma tentativa de res-
gate” (PESAVENTO, 2012, p. 402), uma construção contínua, um
constante rememorar.

A certeza de que o tempo pode consumir rapida-


mente as tradições de culturas rurais, que pos-
suem “fortes reservas mas fraco capital histó-
rico” (NORA, 1997, p. 23), e também desacelerar
a transmissão e a conservação de valores trans-
mitidos pela força da palavra viva pode-se trans-
formar em impulso gerador de escrita literária
que assume, assim, as funções complexas do “lu-
gares de memória”. Ao expor em seu processo de
criação possibilidades de recriar “ilusoriamente”
os ambientes de memória, a literatura que se faz
atenta aos vestígios e manifestações de culturas
orais assume o gesto que legitima os “lugares de
memória”, mas pode povoá-los com os afetos que
a leitura agencia. (FONSECA, 2006, p. 59)

Desta forma, segundo Marson (2004), a literatura traz em


sua narrativa ficcional sinais indicativos do comportamento social,
político, filosófico e cultural de um dado momento histórico. A ilha
de Luar-do-chão sofre diante das rápidas mudanças políticas e or-
ganizacionais tal como Moçambique. Sendo representativa dessa,
traz as mazelas sofridas por seus habitantes de maneira que expõe,
pela via literária, os impactos sofridos, as problemáticas enfrenta-
das no ambiente familiar e diante do desamparo governamental.
Compreendemos que um caminho terceiro é uma opção, o caminho
que aliança o universo tradicional ao da modernidade, fazendo com
que estes dois caminhem juntos, assim como Marianinho o fez.

CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS | 146


REFERÊNCIAS

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CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS | 148


149 | CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS
INTRODUÇÃO

Escritas e publicadas em momentos historicos distintos, as


obras Vidas Secas e Morte e Vida Severina apresentam similaridade
quanto a abordagem tematica, construçao dos personagens, traje-
toria dos retirantes, representaçao da seca, entre outros aspectos.
Desse modo, realizar um estudo comparativo entre essas duas
obras possibilita a reflexao sobre a visao de dois autores em relaçao
a um mesmo tema.
Os proprios autores, como e possível perceber nos comenta-
rios abaixo, demarcam essa preocupaçao pela tematica. Segundo
Ramos (1987):

O que me interessa e o homem, e homem daquela


regiao asperrima. Julgo que e a primeira vez que
esse sertanejo aparece em literatura. (…) Procu-
rei auscultar a alma do ser rude e quase primitivo
que mora na zona mais recuada do sertao, obser-
var a reaçao desse espírito bronco ante o mundo
exterior, isto e, a hostilidade do meio físico e da
injustiça humana. Por pouco que o selvagem
pense – e os meus personagens sao quase selva-
gens – o que ele pensa merece anotaçao. (…) A
minha gente, quase muda, vive numa casa velha
de fazenda. As pessoas adultas, preocupadas com
o estomago, nao tem tempo de abraçar-se. Ate a
cachorra e uma criatura decente, porque na vizi-
nhança nao existem galas caninos. (RAMOS,
1987 p. 129)

Ja Melo Neto apud Almeida et al. (2009) diz que

O Homem pra mim e, precisamente, o homem so-


fredor do Nordeste. O homem que me interessa e
o cidadao miseravel, do nordeste cujo futuro, me-
nos miseravel, esta ligado ao desenvolvimento do

CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS | 152


Brasil. (MELO NETO apud ALMEIDA, et al. 2009,
s/p)

Assim, este artigo propoe um estudo comparado entre obras


literarias de diferentes epocas, por meio de um trabalho interpre-
tativo e comparativo. Buscamos caracterizar o personagem Fabiano
de Vidas Secas, como um severino, em alusao ao personagem Seve-
rino da obra Morte e Vida Severina: Auto de Natal Pernambucano de
Joao Cabral de Melo Neto.
Entretanto, realizar um estudo comparado nao pode se re-
duzir a perceber similaridades ou distanciamentos entre obras,
nem mesmo a buscar a compreensao de elementos sobre discursos
de valor literario. Assim, e necessario apresentar brevemente o que
entendemos como Literatura Comparada.

BREVE HISTÓRICO DA LITERATURA COMPARADA:


UM COMEÇO DE CONVERSA

Segundo Carvalhal (2006), o objeto da Literatura Compa-


rada parece múltiplo como o mundo. A mesma autora questiona
“De que trata a Literatura Comparada? Das relações literárias entre
dois ou três autores, quatro domínios culturais, entre todas as lite-
raturas do globo?”(CARVALHAL, 2006, p. 139)
Se a significação é tão ampla e seus métodos tão esparsos
um pesquisador pode realizar uma análise comparativa de uma
obra literária por diferentes meios. No caso de Vidas Secas, poderia
tomar-se o sertão como microcosmo do mundo e comparar a repre-
sentação desse espaço com a realidade do sertanejo. Uma outra
abordagem comparativa seria propor uma reflexão acerca da rela-
ção entre a representação do cenário sertanejo no texto literário e
os dados históricos sobre esse mesmo sertão nordestino no ano de

153 | CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS


publicação do romance, de forma a perceber similaridades e distan-
ciamentos entre a história oficial e o representado na obra.
Uma terceira abordagem poderia partir da investigação de
como a temática da seca foi representada em diferentes obras lite-
rárias de épocas distintas, ou ainda como um mesmo perfil, a saber,
o sertanejo, foi representado nessas diferentes obras. Enfim, as
possibilidades são inúmeras, o que torna o campo dos estudos com-
parados rico para realização de discussões profícuas.
Apesar das conceituações distintas em torno da Literatura
Comparada, e considerando-se as distinções entre o método e a fi-
nalidade da mesma, muitas terminologias permeiam a noção de Li-
teratura Comparada: dependência, relação, influência, entre outras.
Há um vasto campo de atuação quando falamos em Litera-
tura Comparada. Um complicador para entender esse campo de es-
tudo está no fato de existirem muitos manuais com informações di-
vergentes, principalmente por não haver um só método, como já foi
apresentado. Assim, o papel do comparatista apesar de amplo é
também difícil.
Quando tratamos do conceito de influência, é importante sa-
lientar que ele não deve ser negado ao falar sobre Literatura Com-
parada. A influência de uma obra sobre outra pode ocorrer para di-
ferentes finalidades: afirmação, negação, transformação ou mesmo
contraposição de ideias e temáticas. Segundo Nitrini (2010):

O conceito de influência tem duas acepções dife-


rentes. A primeira, a mais corrente, é a que indica
a soma de relações de contato de qualquer espé-
cie, que se pode estabelecer entre um emissor e
um receptor. (...) A segunda acepção é de ordem
qualitativa. Influência é o “resultado artístico au-
tônomo de uma relação de contato”, enten-
dendo- se por contato o conhecimento direto ou
indireto de uma fonte por um autor. (NITRINI,
2010, p. 127)

CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS | 154


Não podemos falar de influência sem falar de Harold Bloom.
Em seu livro A angústia da influência, procura desidealizar as expli-
cações aceitas de que um autor ajuda a formar o outro. Segundo
Bloom (2002), há seis ideias revisionárias: Clinamen, Tessera, Keno-
sis, Daemonização, Askesis e Apophrades. Por meio delas, ele dis-
corre sobre o processo pelo qual o poeta passa, construindo seu
texto como poeta criador.
Conforme Carvalhal (2004), são três as grandes tendências
ou grandes escolas dentro dos estudos comparatistas: a francesa, a
americana e a soviética. A mesma autora aponta que Literatura
Comparada “é uma forma específica de interrogar os textos literá-
rios na sua interação com outros textos, literários ou não, e outras
formas de expressão cultural e artística”. (CARVALHAL, 1992, p,
74)
Segundo Alós (2012, p. 9), o “comparatismo não se limita a
uma simples metodologia de abordagem do fenômeno literário ou
de corpora de obras específicas; trata-se de um campo disciplinar
com uma longa tradição institucional”. Ele completa que “a partir
da segunda metade do século XX, o comparatismo consolida-se não
apenas como estratégia de aproximação do fenômeno literário, mas
como um campo disciplinar institucionalizado”. (ALÓS, 2012, p. 9).
Após breve discussão sobre o que se entende sobre Litera-
tura Comparada, é necessário situar Vidas Secas e Morte e Vida Se-
verina: Auto de Natal Pernambucano.

A ARIDEZ DE TANTOS

O romance Vidas Secas de Graciliano Ramos, originalmente

155 | CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS


intitulado de O mundo coberto de penas1, foi a princípio, composto
na forma de folhetim. Este seria o quarto e ultimo romance desse
autor e publicado apos sua saída da prisao, em 1938.
Graciliano Ramos nasceu em 1892 em Quebrangulo, no Ala-
goas. Dentre suas principais obras estao: Caetes (1933), Sao Ber-
nardo (1934), Angustia (1936), Infancia (1945), Vidas Secas (1938)
e Memorias do Carcere (1953). Tomo as palavras do proprio autor,
em carta enviada a Raul Navarro, em 1937, a respeito de sua bio-
grafia

Os dados biograficos e que nao posso arranjar,


porque nao tenho biografia. Nunca fui literato,
ate pouco tempo vivia na roça e negociava. Por
infelicidade, virei prefeito no interior de Alagoas
e escrevi uns relatorios que me desgraçaram.
Veja o senhor como coisas aparentemente ino-
fensivas inutilizam um cidadao. Depois que re-
digi esses infames relatorios, os jornais e o go-
verno resolveram nao me deixar em paz. Houve
uma serie de desastres: mudanças, intrigas, car-
gos publicos, hospital, coisas piores e tres ro-
mances fabricados em situaçoes horríveis – Cae-
tes, publicado em 1933, S. Bernardo, em 1934, e
Angustia, em 1936. Evidentemente, isso nao da
uma biografia. Que hei de fazer? Eu devia enfei-
tar-me com algumas mentiras, mas talvez seja
melhor deixa-las para romances. (RAMOS, 1937,
apud MAIA, 2008, p. 123)

Alfredo Bosi (1994) delineia que “Vidas Secas abre ao leitor


o universo mental esgarçado e pobre de um homem, uma mulher,
seus filhos e uma cachorra tangidos pela seca e pela opressao dos
que podem mandar”.(BOSI, 1994, p.401) Deste modo, ja podemos

1
Esse título faz mençao ao penultimo capítulo do romance, denominado O mundo
coberto de penas.

CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS | 156


inferir que o romance Vidas Secas e expressivo nao apenas pela ex-
posiçao da tematica da seca, mas principalmente pela abordagem
adotada por Graciliano Ramos para tratar dessa problematica.
Ja a obra Morte e Vida Severina: Auto de Natal Pernambucano
de Joao Cabral de Melo Neto foi escrita entre 1954 e 1955, sendo
publicada inicialmente no livro Duas águas, volume que reune tanto
os livros anteriores do autor quanto os ainda ineditos ate entao.
A peça Morte e Vida Severina foi escrita para atender a um
pedido de Maria Clara Machado, filha do amigo de Joao Cabral, Aní-
bal Machado. Sobre a transformaçao da peça em poema, o proprio
Joao Cabral diz que, diante da recusa de Maria Clara Machado a
montar o espetaculo, decidiu ao publicar Duas Águas, poesia com-
pleta ate 1956, incluir esse poema. Segundo ele, tendo percebido
que o livro estava pequeno resolveu incluir o auto como um poema
fazendo as devidas adaptaçoes.
Em relaçao ao poema de Joao Cabral de Melo Neto, Bosi
(1994) caracteriza-o como

o seu poema longo mais equilibrado entre rigor


formal e tematica participante, conta o roteiro de
Severino, um homem do Agreste que vai em de-
manda do litoral e topa em cada parada com a
morte, presença anonima e coletiva, ate que no
ultimo pouso lhe chega a nova do nascimento de
um menino, signo de que algo resiste a constante
negaçao da existencia. (BOSI, 1994, p. 471)

Nascido em 09 de janeiro de 1920, Joao Cabral de Melo Neto


passou a infancia nos engenhos de Sao Lourenço e Moreno na Zona
da Mata do Recife. Melo Neto,

sendo filho de senhores de engenho, vivendo em


um ambiente de fartura, de famílias tradicionais

157 | CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS


de Pernambuco e Paraíba, ele abandona sua es-
tirpe, onde a bonança encobria o Nordeste real e
lança um olhar para um Nordeste da vida min-
guada, daqueles que, de joelhos, so aos ceus po-
dem clamar em seus trajes maltrapilhos e com a
barriga vazia, sempre espreitados pela desgraça,
pela morte pobre e pelos urubus. (CARVALHO,
2010, p, 32)

Dentre suas principais obras estao Pedra do Sono (1942), O


engenheiro (1945), O cao sem plumas (1950), O rio (1953), Duas
aguas (1956) e a A educaçao pela pedra (1966). Melo Neto, segundo
Carvalho (2010, p, 32) “pinta o sertao do Nordeste com toda a sua
realidade de miseria, de fome, de latifundio, da vida pouca, ‘con-
quistada a retalho’, adquirida a cada dia, de bocados”.
Cronologicamente, Melo Neto pertence a Geraçao de 45, ape-
sar de nao ser enquadrado nela por muitos estudiosos. Em relaçao
a linguagem cabralina, Carvalho (2010) afirma que ela e

fincada na terra, e seca, e de pedra. Uma lingua-


gem que brota da terra, sem ser uma fuga da re-
alidade, mas a sua traduçao. O Nordeste nao so
como objeto da linguagem, mas uma maneira de
falar, dizer, desdizer, de ver e organizar as ideias;
o espaço da nao-metafora, da imagem em preto e
branco, da secura, do nao fruto, da escassez, feita
de pedras, de chao batido. (CARVALHO, 2010,
p.34)

E importante delimitar o período historico no qual essas


obras se situam, para compreender minimamente a representaçao
e influencia da seca em ambas.
No início do seculo XX era possível delimitar duas realidades
bem distintas no Brasil. De um lado concentrava-se a urbanizaçao e
industrializaçao das regioes Sul e Sudeste. Por outro lado, as regioes
Norte e Nordeste sofriam com o atraso nestes setores. O contexto

CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS | 158


de 1930 – de publicaçao de Vidas Secas – foi marcado por uma serie
de revoluçoes: a queda da bolsa de Nova York em 1929, o
movimento tenentista, fim da Republica Velha, e posteriormente, o
início do chamado Estado Novo ou Era Vargas.
Em meio a esse turbilhao de transformaçoes e a crescente
miseria na regiao Nordeste no país, estava Graciliano Ramos, que
pode ser considerado como pertencente a segunda geraçao moder-
nista. Conforme aponta Afranio Coutinho a produçao literaria de 30
em grande parte era de “verdadeiros documentarios ou paineis des-
critivos da “situaçao” historico-social” (COUTINHO, 1970, p. 218-
219).
A peça Morte e Vida Severina ganhou notoriedade depois de
encenada no Brasil, musicada por Chico Buarque e apresentada no
festival de Teatro de Nancy, na França, onde tambem acaba sendo
premiada. No período de sua popularizaçao o Brasil passava por um
momento difícil em relaçao a política, ja que havia sido instaurada
a ditadura militar. Assim, apesar de nao ser uma peça política, acaba
adquirindo certo status de tal, por ser um texto carregado de de-
nuncia social.
Em Literatura e Sociedade, Candido (2000) enfatiza a impor-
tancia da inserçao dos elementos externos como fatores da cons-
truçao artística e completa “o externo (no caso, o social) importa,
nao como causa, nem como significado, mas como elemento que de-
sempenha um certo papel na constituiçao da estrutura, tornando-
se, portanto, interno” (CANDIDO, 2000, p.6). Assim, podemos infe-
rir que um dos motivos do grande sucesso das duas obras, se deve,
em grande parte, ao destaque dado ao contexto e a denuncia social
realizada.
Por meio da tematica do regionalismo, o reflexo social e a
preocupaçao com a representaçao do homem, Graciliano Ramos
buscava, em suas obras, a construçao de uma visao crítica das
relaçoes sociais que apresentava. Melo Neto faz o mesmo percurso

159 | CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS


em Morte e Vida Severina, tratando do cenario nordestino com
propriedade e apresentando de forma bem marcada a dureza e
aridez de seus personagens.

UM SEVERINO ENTRE TANTOS OUTROS:


EM BUSCA DE INTERSEÇÕES

Se de um lado temos a saga de Fabiano, Sinha Vitoria, o me-


nino mais novo, o menino mais velho e a cachorra Baleia em busca
de um futuro menos duro para se viver, do outro e o percurso de
Severino que segue o caminho do rio Capibaribe em direçao ao lito-
ral que traça o mote do poema cabralino.
Severino acaba sendo representativo, na obra cabralina, de
todos os homens do sertao nordestino, que sao “iguais em tudo na
vida” (MELO NETO, 1999). Assim, podemos considerar que o subs-
tantivo “Severino”, ao ser representativo de todos os sertanejos,
acaba tornando-se um adjetivo que caracteriza esse povo. Sao mui-
tos Severinos, como pode ser comprovado no trecho do proprio po-
ema apresentado abaixo:

Somos muitos Severinos


iguais em tudo na vida:
na mesma cabeça grande
que a custo e que se equilibra,
no mesmo ventre crescido
sobre as mesmas pernas finas
e iguais tambem porque o sangue,
que usamos tem pouca tinta.
E se somos Severinos
iguais em tudo na vida,
morremos de morte igual,
mesma morte Severina.
(MELO NETO, 1999)

CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS | 160


Dessa forma, Severino representa o sertanejo despersonali-
zado, ou seja, que nao consegue descrever-se por si so e, por isso,
acaba sendo muitos que estao em busca de uma condiçao existen-
cial que os caracterize realmente como seres humanos. Dessa
forma, o personagem Fabiano de Vidas Secas pode ser considerado
um severino, levando-se em consideraçao varios aspectos.
Por toda extensao de Vidas Secas, e possível encontrar traços
que representem um Fabiano oprimido em uma especie de sub-hu-
manidade: a falta de domínio da linguagem, a rusticidade e aspe-
reza do linguajar, isso quando o dialogo ocorre; sua pouca instruçao
que, por conseguinte, acarreta sua submissao diante das autorida-
des (o patrao, o fiscal da prefeitura e o soldado amarelo); entre ou-
tros aspectos.
O personagem Severino

vive toda a via crucis da vida de um sertanejo,


sempre as voltas com as constantes estiagens e o
exodo rural permanente. Ve a morte de perto,
carrega todas as dores da alma nordestina na
busca pela sobrevivencia: morte e vida, dor e ale-
gria, seca e abundancia, desilusao e esperança.
(CARVALHO, 2010, p, 25)

Graciliano Ramos faz algo semelhante com os personagens


de Vidas Secas. Atraves de seus personagens, segundo Melo (2005)
e possível “trazer a luz todo tipo de miseria vivida pelas famílias
pobres que perambulavam pelo sertao, de conflitos e de opressao
permanente, bem como o fatalismo de uma visao marcada por des-
graças de toda ordem”. (MELO, 2005, p. 380)
A esperança de Severino, que apesar dos pesares segue seu
caminho e crê num futuro melhor também é compartilhada por Fa-

161 | CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS


biano. A aridez brutaliza e condiciona os pensamentos desse perso-
nagem, mas a esperança permanece no fim da seca, como pode ser
visto pela passagem a seguir:

A catinga ressuscitaria, a semente do gado volta-


ria ao curral, ele, Fabiano, seria o vaqueiro da-
quela fazendo morta. Chocalhos de badalos de
ossos animariam a solidão. Os meninos, gordos,
vermelhos, brincariam no chiqueiro das cabras.
Sinhá Vitória vestiria saias de ramagens vistosas.
As vacas povoariam o curral. E a catinga ficaria
toda verde. (RAMOS, 1993, p. 6)

Assim, essa esperança que fica subentendida em Morte e


Vida Severina, observada no trecho final do poema apresentado
abaixo e elucidada em Vidas Secas:

E não há melhor resposta


que o espetáculo da vida:
vê-la desfiar seu fio,
que também se chama vida,
ver a fábrica que ela mesma,
teimosamente, se fabrica,
vê-la brotar como há pouco
em nova vida explodida;
mesmo quando é assim pequena
a explosão, como a ocorrida;
como a de há pouco, franzina;
mesmo quando é a explosão
de uma vida Severina.
(MELO NETO, 1999)

Essa esperança esta nos pensamentos de Fabiano, apresen-


tados ao conhecimento do leitor por intermedio do narrador. O pro-
prio narrador-personagem da obra cabralina aponta que so encon-
trou morte onde achava que iria encontrar vida:

CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS | 162


o pouco que não foi morte
foi de vida Severina
(aquela vida que é menos
vivida que defendida,
e é ainda mais Severina
para o homem que retira).
(MELO NETO, 1999)

Essa mesma vida severina e encontrada por Fabiano, que


percorre com sua família um longo caminho sob um ceu escaldante
em busca de um pouco de sombra, como observado no trecho ini-
cial de descriçao da obra de Graciliano Ramos

Na planície avermelhada, os juazeiros alargavam


duas manchas verdes. Os infelizes tinham cami-
nhado o dia inteiro, estavam cansados e famin-
tos. Ordinariamente, andavam pouco, mas como
haviam repousado bastante na areia do rio seco,
a viagem progredira bem três léguas. Fazia horas
que procuravam uma sombra. A folhagem dos ju-
azeiros apareceu longe, através dos galhos pela-
dos da catinga rala. (RAMOS, 1993, p. 9)

A família de retirantes acaba sendo obrigada a alimentar-se


ate mesmo do papagaio que acompanhava-os para nao morrer de
fome. “Pobre do louro. Na beira do rio matara-o por necessidade,
para sustento da família.”(RAMOS, 1993, p. 20)
Enquanto Severino pausa sua viagem em busca de trabalho
e percebe que por aquela regiao so se encontra trabalho em profis-
soes relacionadas a morte, Fabiano sujeita-se a trabalhar de va-
queiro em uma condiçao de quase escravidao, como dito pelo pro-
prio personagem na passagem de Vidas Secas:

Passar a vida inteira assim no toco, entregando o


que era dele de mão beijada! Estava direito
aquilo? Trabalhar como negro e nunca arranjar

163 | CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS


carta de alforria! O patrão zangou-se, repeliu a
insolência, acho bom que o vaqueiro fosse procu-
rar serviço noutra fazenda. Aí Fabiano baixou a
pancada e amunhecou. Bem, bem. Não era pre-
ciso barulho não. Se havia dito palavra à-toa, pe-
dia desculpa. (RAMOS, 1993, p. 93)

Fabiano e um severino quando trabalha, quando procura um


futuro menos duro para se viver, quando preocupa-se com o gado
que morria e com a vegetaçao avermelhada que tomava conta da
paisagem e com a vida na fazenda que estava difícil, como pode ser
visto no trecho abaixo do capítulo Fuga:

Sinha Vitoria benzia-se tremendo, manejava o ro-


sario, mexia os beiços rezando rezas desespera-
das. Encolhido no banco do copiar, Fabiano espi-
ava a catinga amarela, onde as folhas secas se
pulverizavam, trituradas pelos redemoinhos, e
os garranchos se torciam, negros, torrados. No
ceu azul as ultimas arribaçoes tinham desapare-
cido. Pouco a pouco os bichos se finavam, devo-
rados pelo carrapato. E Fabiano resistia, pedindo
a Deus um milagre. (RAMOS, 1993, p. 54)

A vida severina de Fabiano e sua família inicia-se com as in-


temperies sofridas pelos retirantes e prossegue na busca de um fu-
turo melhor, ao final do romance. O que Fabiano busca e uma vida
menos severina para ele e sua família. Uma vida que se possa viver
sem tanto sofrimento.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Apesar de serem publicas em diferentes epocas, Vidas Secas


e Morte e Vida Severina: Auto de Natal Pernambucano carregam si-
milaridades em muitos aspectos, nao somente em relaçao a tema-
tica, como tambem em relaçao a caracterizaçao dos personagens, a

CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS | 164


descriçao do cenario da seca e ao carater de denuncia social.
Por meio de um trabalho interpretativo e comparativo, bus-
camos trazer aspectos que caracterizaram o personagem Fabiano
de Vidas Secas, como um severino, tomando o personagem Severino
da obra cabralina como um adjetivo do personagem de Graciliano
Ramos.
Concluímos, portanto, que e possível compreender a adjeti-
vaçao desse personagem, atraves do entendimento de que ele e re-
presentativo de uma parcela consideravel de retirantes que vive-
ram e ainda vivem situaçao semelhante. O que Fabiano busca e che-
gar a “uma terra desconhecida e civilizada, [e eles] ficariam presos
nela”. Assim, “o sertao continuaria a mandar gente pra la. O sertao
mandaria para la homens fortes, brutos, como Fabiano, Sinha Vito-
ria e os dois meninos”.(RAMOS, 1993, p. 59)

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ciliano Ramos. Sao Paulo: Atica, 1987.

167 | CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS


Há muitas maneiras de participar de um espetáculo. Na auto-
ria, vivendo com seres de papel em diálogo e prosa. Ou então, como
dramaturgo, numa construção coletiva nos campos da direção, da
atuação, iluminação, figurino, plateia etc. É possível ainda ser parte
desse todo como espectador, contrarregra, bilheteiro e, ainda, ser
aquele que apaga a luz quando todos já partiram. O teatro é prova-
velmente a tradução coletiva mais antiga da humanidade.
Historicamente, para ficar com algumas abordagens, pode-
mos fazer um panorama do teatro ocidental a partir das tragédias
gregas. Compreendê-lo a partir dos dramas medievais e variantes
populares europeus (BORBA FILHO, 1968;1969), bem como um tea-
tro-performance no âmbito do catolicismo carnavalizado durante o
período colonial nas Américas.
Há, ainda, uma cena shakespeareana – moderna, fronteiriça,
libertadora – é desse universo que trataremos. Neste ensaio, mais
especificamente, a presença relevante de o bardo inglês e do gênero
teatral na obra de Mikhail Bakhtin.
No Brasil, esse tema é certamente o menos estudado pelos
bakhtinianos. Por outro lado, Bakhtin tem ocupado, nos últimos
anos, o posto de um dos pesquisadores que mais repercutiu em
nossa cultura. De certa forma, foi o pensador que mais repercutiu
na própria Europa francesa da década de 60 – na pena plagiadora e
multiplicadora de Kristeva. Suas contribuições, ligadas ao Círculo
ou não, consolidaram-se nos estudos da linguagem e suas variantes.
Isso significa dizer que, no horizonte da respondibilidade, há muito
para ser extraído e respondido “no país do carnaval”.
Para esse ensaio, utilizaremos os principais livros bakhtinia-
nos de teoria da literatura e cultura e suas considerações sobre o
drama. Este levantamento é orgânico. De modo geral, as ocorrên-
cias se deram da seguinte forma: 1) Problemas da poética de Dostoi-
évski (21 menções diretas e indiretas); 2) Questões de literatura e
estética (36 menções diretas e indiretas); 3) Cultura popular na

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Idade Média e no Renascimento (77 menções diretas e indiretas) –
com predomínio de Shakespeare, nos três casos. De saída, isso in-
dica uma intensa reflexão sobre o tema, figurando-o como gênero
dialógico, oralizado e espetacularizado.
Em Problemas da poética de Dostoiévski, um método crítico-
polifônico de análise literária é estabelecido. Nossa opinião é a de
que Bakhtin construiu seu exercício crítico-literário amalgamando
elementos da respondibilidade e desvelou as bases discursivas que
permitiram o dialogismo (no Século XIX) e a crítica polifônica (no
Século XX). Ao discutir essa prática, apresentamos as seguintes
questões: a) Dostoiévski, autor-dramático e assim entendido por
alguns críticos; b) o drama (ligado ao épico e ao lírico) como gênero
incapaz de realizar a polifonia plena; c) a tragédia clássica em opo-
sição ao mistério; d) a possibilidade/impossibilidade de Shakespe-
are ser polifônico.
No próprio círculo crítico-literário, ao qual Bakhtin respondia
diretamente, é notável a intuição do autor de Crime e Castigo como
criador da polifonia. Nesse sentido, a contribuição de Problemas da
poética, para uma compreensão do contexto crítico-literário da
Rússia, aponta para Leonid Grossman, Vyetschesláv Ivánov, V.V.
Vinogradóv, Lunatcharsky e o escritor Tchernishevsky, todos mo-
vimentando elementos polifônicos embrionários.
No prólogo de Pérola da criação, romance inacabado de
Tchernishevski (1828-1889), Bakhtin encontra uma nova posição
“objetiva” do autor a partir de Shakespeare: “[...] Podemos dizer que
Tchernischevski quase chegou ao âmago da polifonia.” (2002c, p.
65-67). Daí a presença destes críticos que, mesmo refutados, em
graus diferentes, tiveram uma percepção dialogal-dramática na
obra dostoievskiana. Respondendo a Leonid Grossman (a quem ele
mais elogia) e à fórmula “romance-tragédia” de Ivánov.
Nesse sentido, é necessário entender que, ao desqualificar os
gêneros clássicos e considerá-los impróprios para a polifonia,

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Bakhtin amplia as faculdades da prosaística, que oferece liberdade
ideológica (oralizada) para personagens, autor, autor-criador etc.
Mas essa postura evoca, de Luciano à ascensão do romance, mani-
festações capazes de articularem vozes em grau de igualdade e li-
berdade. O mundo e os gêneros antigos, para Bakhtin, são sempre
agregados em um todo acabado. Somente a partir desta cronotopo-
grafia Renascença/Rabelais, ocorrerá a decomposição dos univer-
sos acabados, e a ascensão de uma nova base material que facultará
plenitude de um realismo-polifônico. Daí a importância do drama
(e performance) que, amalgamados à situações monológicas – ca-
tolicismo –, conseguiram driblar isso numa proto-polifonia entre
estigmas, emblemas e alegorias.
Na sua concepção (em resposta às de Aristóteles, Boileau
etc.), estes gêneros clássicos (trágico, lírico, épico e a próprias poé-
ticas) ligariam-se a um mundo axiologicamente fechado. Isso se es-
tende aos métodos formais e até mesmo à praça pública na Grécia
Antiga, onde se davam os simpósios, e pilar da maiêutica socrática.
Com isto, ele enforma um novo cânone, chama a atenção para novas
formas antigas e medievais e coloca em xeque uma visão greco-la-
tina que predominou até o século XV-XX. Ao analisar a moderni-
dade, Bakhtin utiliza uma maneira liminar de mostrar o alarga-
mento das fronteiras. Sugere manifestações dramatúrgicas que
apresentam, em seu cerne, caracteres dialógico-polifônicos e duas
hipóteses já aparecem em Problemas da poética – os mistérios cris-
tãos e Shakespeare. Passemos ao primeiro:

O mistério é realmente multiplanar e até certo


ponto polifônico. Mas essa multiplanaridade e
polifonicidade do mistério é puramente formal e
a própria construção do mistério não permite
que a multiplicidade de consciência com seus
mundos se desenvolva em termos de conteúdo.
(2002c, p. 16)

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Aqui se apresenta uma amplitude quanto ao drama medieval
denominado mistério. Ele será um dos pilares da visão bakhtiniana
sobre o espetáculo e um dos gêneros populares mais estudados por
ele. Embora essa forma oralizada seja construída numa unidade
formal de um mundo cristianizado, é possível perceber a pretensa
combinação de perspectivas integrais pela sua articulação e estili-
zação de gêneros, pelo caráter urgente e de atualização dos temas
da praça pública e pela intervocalidade. Ao funcionar como espécie
de composição e intervalo durante as missas e procissões e conter
uma publicística das feiras e praças, no livro sobre Gargântua e
Pantaguel, essa forma artística recebeu atenção especial e extra-
pola a polifonicidade puramente formal). Num panorama da “cena
bíblica” na Inglaterra, no livro Medieval Drama (2007), de Greg
Walker, encontramos este percurso católico-dramatúrgico nos Bi-
blical plays, Moral plays, The Interludes que traziam, respectiva-
mente, “narrativas religiosas”, “religião e consciência” e, ainda, “po-
lítica e moralidade”. O aspecto da respondibilidade da língua e gê-
nero vivos, da recepção atuante, acentua-se ao constatarmos que o
dramaturgo inglês, nos três livros aqui analisados, aparece inúme-
ras na cadeia de fundadores do literário moderno. Respondendo a
Lunatcharsky, o teórico do dialogismo diz:

[...] é possível observar embriões de polifonia


nos dramas shakespeareanos. Ao lado de Rabe-
lais, Cervantes, Grimmelshausen e outros, Sha-
kespeare pertence àquela linha de desenvolvi-
mento da literatura européia na qual amadure-
ceram embriões da polifonia e que, neste sen-
tido, foi coroada por Dostoiévski. (2002c, p. 34)

Desses embriões é possível colher uma nova visão sobre a po-


lifonia. Esses nomes aproximados do autor de Rei Lear o colocam

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no cerne do problema: sua importância para o romance humorís-
tico a partir de Sterne, sua presença na recepção (prosa e crítica)
russa e alemã, o diálogo com o popular, estilizações romanceadas,
o mundo de fronteiras (não fechado, nem axiomático) e, principal-
mente, tipos não-oficiais e seres trágicos ideólogos. Embora Bakh-
tin seja contrário, colocando isso na versão final, Lunatcharsky res-
pondendo aos problemas da poética vai afirmar que “Shakespeare
é extremamente polifônico” (APUD Bakhtin, p. 34). Encontrando
um meio termo entre as marcas do diálogo luciânico e das vozes
shakespearianas é possível encontrar personagens que enformam
um universo multiplanar: Falstaff, uma das figuras mais polifônicas
e socráticas do universo elisabetano – não por acaso, volta em
obras diferentes (Henrique IV, partes 01 e 02; e nas Alegres coma-
dres de Windsor). Mercúcio (Romeu e Julieta), com sua leveza cor-
poral e discursiva; os Coveiros, em Hamlet, certamente pertencen-
tes à tradição menipéica; O Bobo, em Rei Lear – capaz de confrontar
a ordem e de se colocar autonomamente diante das ideias do seu
tempo. Entre os “nobres trágicos”, sem aprofundar a discussão, eu
ousaria sugerir o Hamlet (pai, defunto personagem) e Hamlet filho
(louco e humourístico) e Lady MacBeth, cuja ambição, suscitada pe-
las fadas e pela loucura, extrapola preceitos palacianos em direção
à atmosfera criminal.
Esses personagens, dentre outros, habitam um horizonte de
perspectivas integrais. Recursos estilísticos e grandes temas apon-
tam a representação polifônica em Shakespeare: indivíduos e cro-
notopos da pluralidade, da liminaridade, a “variação dos sonhos em
crise” (2002c, p. 149) e a constante “cosmovisão carnavalesca”
(2002c, p. 159-160). O mais interessante é perceber o movimento
crítico literário russo do final do Século XIX e começo do Século XX,
articulando recursos dialógico-dramáticos e os “diálogos socráti-
cos”. Retomo uma breve aproximação entre Bakhtin e Nietzsche

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(de A origem da tragédia). Por caminhos diferentes ambos perce-
beram que o sistema socrático seria uma nova manifestação literá-
ria (com Platão). Para o alemão, a derrocada da tragédia; para o
russo, o nascimento do romance:

Neste caso, esta relação que, segundo o filósofo


alemão, teria decretado o fim da tragédia, por ou-
tro lado, permitiu o nascimento dos Diálogos So-
cráticos, gênero dramático-biográfico que en-
forma a imagem do homem vivendo em um
mundo inacabado e aberto dominado pela reno-
vação. (Silva Junior, 2010, p. 55)

Em “Ser todos os seres: teatro e biografia na dramaturgia bra-


sileira contemporânea”, estabeleci, embrionariamente, essa teoria
crítica dialógica. Nesse estudo, demonstrei como, a partir das “Apo-
logias” de Platão, que apresentam a imagem do indivíduo buscando
“o verdadeiro conhecimento”, Bakhtin (2002b, p. 250) vai se inte-
ressar pela ideia de um tempo biográfico que se dissolve quase to-
talmente no tempo ideal/abstrato da metamorfose do personagem.
Sócrates, filósofo e personificado, nos Diálogos de Platão, já respon-
dia a uma visão de crise e de transformação do indivíduo. Na Anti-
guidade e Idade Média, nas situações liminares (feiras, festas etc.),
o espetáculo popular (mistérios, simpósios, solilóquios etc.) já apa-
recia o ser com uma espécie de consciência pública.
Por fim, a presença insistente do dramaturgo inglês entre os
fundadores e continuadores da prosa moderna – Sterne, Machado,
Dostoiévski – colocam-no na mesma condição polifônica. Mesmo
que Bakhtin sugira apenas embriões nos dramas elisabetanos (e
nos mistérios), é sintomático o fato de Tchernishevski ter chegado
ao âmago da polifonia a partir do bardo inglês. Na nossa opinião,
seus dramas, como um todo, oferecem réplicas de diálogo que sub-
vertem o mundo representado e o tornam multiplanar e ambiva-
lente. Seus personagens fazem parte de uma nova base material

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dramatúrgica, também afetada pela nova visão horizontal de
mundo (Bakhtin, 2002a, p. 311-359). Ideólogos no mesmo patamar
dos personagens de Rabelais, Cervantes, Dostoiévski e indivíduos
do grande coro popular na modernidade. No âmbito da tanatografia
isto amplia-se no corpo de seres que voltam (fantasmagorias) e fi-
guras de aparição (fadas; bruxas; entidades greco-romanas, nórdi-
cas etc.)
Esses motivos nos levam ao próximo livro de Mikhail Bakhtin:
Questões de estética e de literatura. De outra perspectiva, há vários
trabalhos reunidos nesse volume. Ao lidar com os problemas histó-
ricos do conteúdo e da forma – respondendo ao Círculo – e, ao erigir
as linhas que levaram à ascensão da prosa moderna, ele estabelece
diretrizes para o seu horizonte de observação sobre discursos e gê-
neros. Mais uma vez o drama (o lírico e o épico) balizam questões
estéticas e literárias. Em “O problema do material, do conteúdo e da
forma”, o teatro aparece uma única vez – mas sumamente impor-
tante para o seu ponto de vista: “O drama é um forma composicio-
nal (diálogo, desmembramento em atos, etc.), mas o trágico e o cô-
mico são formas arquitetônicas de realização” (2002b, p. 24). Aqui
estão lançadas as bases de um sistema formal e de uma arquitetô-
nica realizacional. As manifestações literárias, individuais e crono-
topográficas, são variantes arquitetônicas que permitem a enfor-
mação autoral e os elementos das formas composicionais distintas:

É possível também destacar os elementos pura-


mente dramáticos do romance, reduzindo-se o
elemento narrativo à simples indicação cênica
para os diálogos dos personagens. Entretanto, o
sistema de linguagens do drama original é orga-
nizado, em princípio de maneira diferente e, por
isso, tais linguagens ressoam completamente di-
ferentes (...). (2002b, p. 77)

CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS | 176


Em “O discurso no romance”, sem discutir diretamente a po-
lifonia, o diálogo dramático aparece como algo desmembrado em
réplicas, mas incapaz de uma autonomia multiplanar. Isso se liga
àquilo que Bakhtin desenvolve em Dostoiévski: o tema do autor
movente como fenômeno estético na prosaística. Nesse caso, a in-
dicação e o sistema de linguagens cênicas estariam fixados pelos
limites estruturais monológicos e, por mais que os personagens
possam agir livremente na prosa ou no drama – no segundo caso,
eles teriam suas ações limitadas por uma linguagem do “todo”. Se
cogitarmos uma dramaturgia carnavalizada, capaz de situar-se no
limiar, podemos destacar Shakespeare, Molière, Puchkin, Borba Fi-
lho dentre outros dramaturgos da modernidade, que ampliaram a
arquitetônica: “a percepção da concretude e da relatividade histó-
ricas e sociais da palavra viva [...]; e ela toma a palavra ainda quente
dessa luta e desta hostilidade, ainda não resolvida e dilacerada pe-
las entonações e acentos hostis e a submete à unidade dinâmica de
seu estilo” (Bakhtin, 2002b, p. 133).
Para entender melhor essa concepção histórica dos gêneros,
passemos aos “Ensaios de Poética Histórica”, no quais Bakhtin re-
flete sobre o nascimento dos gêneros literários elevados, menos
“romanescos” que a sátira helenística e a romana: “[...] Do seio deste
unilinguismo seguro e incontestável [que desdenhava o plurilin-
guismo do mundo bárbaro] nasceram os grandes gêneros helênicos
– a épica (traduzido como epos no Brasil), a lírica e a tragédia, que
expressavam as tendências centralizadoras da sua língua” (2002b,
p. 383). Nesse caso, nem a cena no Global Theatre, bem como Gar-
gântua e Pantagruel, nunca “desprezaram” a língua e a cultura dos
“bárbaros”. Pelo contrário, seu ativismo discursivo articulava a an-
tiguidade greco-romana, a medievalidade cristã e o mundo não ofi-
cial das lendas e folclore pagãos: “[...] é óbvio que Shakespeare não
era o herdeiro dos gregos; era o exemplo maior de um novo tipo de
tragédia” (Williams, 2002, p. 50). No texto “Epos e romance” (p.424-

177 | CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS


425), a ideia de máscara (cômica) apresenta caracteres abertos. Se
o herói trágico e épico estão sempre presos aos seus destinos e, por
isso, aos enredos que os condicionam, “[...] As máscaras populares
– Makkus, Polichinelo, Arlequim – ao contrário, podem seguir qual-
quer destino e figurar em quaisquer situações (às vezes mesmo no
interior de uma só peça [...] tais máscaras podem atuar e falar fora-
do-enredo” (2002b, p. 424-425).
Percebemos, nessa afirmação, o princípio da polifonia drama-
túrgica. Se os personagens carnavalizados e alegres do palco popu-
lar alcançam o mesmo grau de complexidade que os da prosa, por-
que não os de Shakespeare? Considerando “Epos e romance”, per-
cebemos uma réplica à reflexão sobre o teatral em “O discurso no
romance”: o espetáculo aparece como uma resposta ao diálogo dra-
mático constituído de réplicas monovocais. No caso das variantes
humorísticas orais, o personagem age e discursa livremente e sua
ação é ilimitada por não estar atrelada a um “todo acabado”. A más-
cara tem essa natureza inexaurível e complexa. Falar “fora-do-en-
redo” faculta o elemento inesperado do cotidiano, da improvisação,
da verve das paixões e destinos humanos sempre imprevisíveis. O
palco shakespeariano também estiliza a palavra viva, colhida na
luta social e na transformação histórica diante de uma plateia que
respira e que faz do próprio ato de ir à cena uma atitude de trans-
formação e de luta sócio-histórica: “O teatro como diversão foi uma
inovação da vida social elisabetana, quando houve um verdadeiro
florescimento de companhias” (Borba Filho, 1968, p. 106). Neste
sentido, podemos falar de um círculo shakespeareano. Como exem-
plos dessa popularidade corpórea, discursiva e liminar, colhemos
em Questões de Literatura e estética, três exemplos em duas situa-
ções: “(nas cenas para Falstaff, no ato dos coveiros engraçados em
Hamlet, [e] o porteiro bêbado e brincalhão em MacBeth)” (Bakhtin,
2002b, p. 310).

CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS | 178


No que diz respeito à estilização oral na linhagem da prosa
humorística, esse procedimento penetra as camadas mais profun-
das do evento ético-estético e transforma-se em paródia da estru-
tura lógica do discurso ideológico (científico, retórico-moral, filosó-
fico, retórico etc.). As verdades são contrapostas pela mentira, pelo
absurdo, pelo patético verbal, pela estilização. Essa “filosofia da pa-
lavra”, presente em Rabelais (e Dostoiévski), traz para nosso hori-
zonte um personagem que, na nossa opinião, encarna e articula os
caracteres polifônicos dos autores centrais para Bakhtin – trata-se
do Yorick de Sterne:

[...] citaremos o reconhecimento puramente ra-


belaisiano do Yorick de Sterne, que pode servir
de epígrafe à história da linha estilística mais im-
portante do romance europeu [...] Cervantes se
encontra ao lado de Rabelais e, num certo sen-
tido, supera-o pela sua influência determinante
sobre toda a prosa romanesca. O romance humo-
rístico inglês está profundamente penetrado
pelo espírito de Cervantes. Não é por acaso que o
mesmo Yorick cita as palavras de Sancho Pança
no leito de morte. (Bakhtin, 2002b, p. 115)

Esse personagem sterniano torna-se liminar, pois, além de


conter a força sanchesca (e não exatamente quixotesca), ele é uma
triste figura que passa de um livro ao outro. Com essa atitude, o plu-
rilinguismo, o jogo com o suposto autor, a introdução de linguagens
e perspectivas socioideológicas renovam-se. Porém, mesmo que ele
pertença à linhagem do romance humorístico, não podemos ignorar
que ele é uma criação de Shakespeare e que pertence à tradição dos
bufões tagarelas. Este retorno no outro não acontece por acaso. Na
prosa, ele se torna a encarnação de um (defunto) personagem que
volta no livro do outro. No drama elisabetano, ele era o persona-
gem-crânio que coparticipou do diálogo entre Hamlet e os Coveiros

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alegres, “à Falstaff”. No livro in progress de Sterne, ele é mais um
dos pilares que faz do humor um jogo com a razão, com as formas
populares e que evocam o inacabamento: “[as personagens] são in-
conclusíveis enquanto indivíduos imunes ao efeito redutor e mode-
lador das leis da existência imediata” (BEZERRA, 2010, p. VIII).
Sabemos que eles não são os mesmos, nos seus respectivos
livros, mas o Yorick de Sterne é uma reencarnação que condensa os
caracteres do universo rabelaisiano: ele é um religioso (Frei Jean);
é magricela e monta um pangaré (Quixote); é um duplo-personifi-
cado em imagem de personagem leitor criativo (ao citar Sancho).
Além disso, carrega o nome de um bufão defunto, cujo capítulo bi-
ográfico é contado no Quinto ato de Hamlet: no diálogo entre o prín-
cipe e os coveiros que preparam a cova pra Ophélia, temos: o ma-
cabro alegre, o cinismo filosófico, o riso que vence o medo da morte,
a parhesia livre e dialógica, as troças, cabriolas e caretas (Shakes-
peare, 2007, p. 2052). Em uma figura quase despercebida (no âm-
bito formal e dramatúrgico) reside todas as qualidades e ambiva-
lências rabelaisianas.
Colocando o riso e a comédia na ribalta discursiva de sua poé-
tica inacabada, Mikhail Bakhtin reescreve a história dos gêneros li-
terários:

(...) nos palcos das barracas de feira, soava um


discurso jogralesco, que arremedava todas as
“línguas” e dialetos, desenvolvia a literatura das
fábulas e das soties, das canções de rua, dos pro-
vérbios, das anedotas. Nesses palcos não havia
nenhum daqueles centros linguísticos onde o
jogo vivo se realizava nas “línguas” dos poetas,
dos sábios, dos monges, dos cavaleiros, etc. e ne-
nhum aspecto seu era verdadeiro e indiscutível.
(2002b, p. 83)

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No palco do mundo, ele percebe a democracia, a liberdade de
fala, o discurso cotidiano da praça. Com isso, Bakhtin faz como os
homens do Renascimento e horizontaliza o cânone literário ociden-
tal (verticalizado pelos clássicos, pelos dogmas, pelos Iluministas
etc.). Nesse palco sem centro linguístico/ideológico, o jogo vivo ri-
valiza com os sábios, os sermonistas, os cavaleiros, os ideólogos-
monológicos. Dessa arena, nasce o livro sobre Rabelais: seu mais
sólido tratado de literatura e cultura, no qual há uma verdadeira
poética do espetáculo – teatro, performance, diálogo etc. Embora o
subtítulo e a tese central nos levem à Rabelais, a obra é um grande
tratado sobre a história da literatura a partir da ascensão da prosa.
De modo muito sucinto, temos: a revisão de poéticas clássicas; o es-
petáculo popular contrapondo-se à tragédia; o drama (satírico) e o
riso; e a diferença basilar entre tragédia e diálogos socráticos. Tam-
bém é possível encontrar uma teoria do teatral e do espetáculo,
uma história da cena popular e uma teoria do drama e do romance
– como a quarta força dos gêneros.
Diante dessa gama de motivos, discorreremos sobre alguns
grandes núcleos: 1) o drama (popular e erudito; sério e cômico); 2)
por uma metodologia da análise dramatúrgica; 3) Bakhtin, leitor de
teatro; 4) a cultura popular no contexto de William Shakespeare –
Aristófanes, Cervantes, Sterne, Molière, Goethe, Puchkin – enfor-
mando o centro de reflexão do livro. Pode parecer óbvio, mas Bakh-
tin, mesmo mudando o horizonte de observação, precisou escolher
um dos gêneros clássicos para pensar o romance. Com isso, o ele-
mento dramático se impôs como forma e representação realista
ambivalente na antiguidade, no período medieval e como artefato
cultural e fonte comparativista.
No que diz respeito ao drama (erudito e popular; sério e cô-
mico), a máscara é um dos motivos mais “carregado de sentido da
cultura popular” (2002a, p. 35). A mascarada (e o travestimento)
liga-se à commedia dell’arte que conserva sua profunda relação com

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o carnaval e com a fantasia – plena de mudanças históricas e sociais
“numa nova verdade” (Idem, p. 30; 70). Nessa concepção de carna-
val popular, conserva-se o riso menipéico que ecoa na praça, na
feira, nos mimos reinventados durante a Idade Média com sua tí-
pica liberdade (oralizada). Liberdade corporal e discursiva herdada
dos “deuses de Homero” que riam (Idem, p. 61), do catolicismo car-
navalizado de São Francisco (Idem, Ibidem, p. 50; 67) com seus
princípios materiais e corporais e que alcançarão a mais alta garga-
lhada ritual em Rabelais e nesse espetáculo do povo:

Pode-se afirmar que a cultura cômica da Idade


Média, atraída pelas festas, aparecia de alguma
forma como a “quarta”, isto é, como drama satí-
rico correspondente e oposta à “trilogia trágica”
do culto e da doutrina cristã oficiais. Como o
drama satírico da Antiguidade, a cultura cômica
da Idade Média era em grande medida o drama
da vida corporal (coito, nascimento, crescimento,
alimentação, bebida, necessidades naturais), não
porém do corpo individual nem da vida material
particular, mas sim do grande corpo popular da
espécie [...]. O grande corpo desse drama satírico
é inseparável do mundo, impregnado de elemen-
tos cósmicos, e funde-se com a terra que absorve
e dá a luz. (2002a, p. 77)

Assim o auto de feira aproxima-se do romance: ação efêmera,


parolagem solta, canções báquicas de mesa, mimos, dramas de
circo e teatro de terreiro. Tudo isso, no terreno (culto/colo) da li-
berdade utópica e da liminaridade propiciadas pela interrupção
provisória do sistema e da ordem oficiais. Essa intervocalidade tem
parentesco com as fontes folclóricas e advém, em parte, das comé-
dias de Aristófanes, dos dramas satíricos de Eurípedes, das tragé-
dias de Sêneca adverbalizadas, das diabruras e solilóquios medie-
vais e das festas e atividades coletivas em praças, ruas e espaços

CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS | 182


públicos. Ao tratar do sério trágico, ele demonstra que (nas suas
melhores produções) teria realizado sua mais profunda expressão.
Até mesmo na tragédia grega antiga universalista e dotada de uma
morte justificada

[...] o sério trágico não excluía o aspecto cômico


do mundo; pelo contrário, esses dois elementos
coexistiam. Depois da trilogia trágica vinha o
drama satírico que a completava no domínio do
riso. O sério antigo não temia absolutamente o
riso e as paródias, ele exigia mesmo um corretivo
e um complemento cômicos. É por essa razão
que não podia existir no mundo antigo oposição
entre as culturas oficial e popular tão nítida
como na Idade Média. (2002a, p. 103-104)

Essa é uma das mais importantes contribuições de Bakhtin


para dialogar com a poética aristotélica – importante fonte estilís-
tica de Rabelais. Este quarto movimento, esta trilogia com quatro
peças, aponta para o teatro como um dos mais profundos sistemas
grotescos e abertos, sempre a renovar-se. Essa possibilidade do
riso (que ecoa do sério) é ambivalente e demonstra uma capaci-
dade polifônica de compreensão do mundo. Uma visada (cínica-es-
tóica) sempre enxergando que algo, mesmo quando nega, faz renas-
cer uma outra coisa – ininterruptamente. Uma faceta popular-fol-
clórica que desobra-se disso é a saturnal. Dessa prática e visão de
mundo, nascem os discursos injuriantes, as grosserias, a ressurrei-
ção parodiada, a quaresma prenhe, o ano (novo) gordo, o indivíduo
que é um corpo – e não exatamente que tem um corpo. Nesse uni-
verso pleno de Jano, há liberdade, familiaridade e, por isso mesmo,
nas grandes obras abundam os pares cômicos – com força dramá-
tica e dialogal: o bufão é o sábio, o Rei é o homem comum, o padre
é o mais libertino, e todos os tipos brindam a uma espécie de ence-

183 | CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS


nação no carnaval, cujo acaso nunca abole o jogo: “As fronteiras en-
tre o corpo e o mundo apagam-se, assiste-se a uma fusão do mundo
exterior e das coisas” (Idem, p. 270). Daí a importância do inferno
saturnal para a análise de Rabelais. Essa catábase do homem que
volta para contar/dialogar marca a mudança na visão de mundo
ocasionada pela Renascença – e, também, para a história da tanato-
grafia.
Vejamos, em momentos de especial tangenciamento, suas
análises teatrais. Dentre várias (de mais curto fôlego), duas delas
chamam a atenção em Cultura popular na Idade Média e no Renas-
cimento: 1) o antigo drama cômico francês – Le jeu de la feuillé, de
Adam de la Halle; e alguns mistérios analisados em um único bloco,
dentre os quais surge pela primeira vez, em obra literária um dia-
binho popular que recebia o nome de Pantagruel. O drama cômico,
por sua vez, serve de suporte para a análise das “funções particula-
res das formas da festa popular” (em Rabelais). A peça é de 1262 e
parte de um fato pontual, o primeiro de maio, dia da feira-festa po-
pular da cidade de Arras. Vale lembrar que Borba Filho afirma que
o drama francês mais antigo é o Jogo das Virgens loucas (séc. XI):
“Não é litúrgico, mas se conforma estritamente ao texto evangélico,
sendo representado por clérigos que figuravam as virgens (1969,
p. 38). Mais um capítulo da história do travestismo na cena teatral
europeia – que culmina com meninos encenando mulheres no tea-
tro shakespeariano.
Nessa atmosfera fazem figura elementos festivos, o discurso
cotidiano e o direito como motes para a quebra da rotina banal e
cotidiana, a construção do espaço, a exploração realista e hodierna
do tempo, as partes constitutivas (autônomas e respondíveis)
conjugam-se com a loucura e a tolice. Os elementos de fantasia, tais
como fadas, adivinhações, predições, funcionavam como imagens
que facultavam a liberdade cênica e vocal: “As fronteiras entre o
jogo e a vida são apagadas de propósito. É a própria vida que

CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS | 184


conduz o jogo” (Idem, p. 225). Esse movimento lúdico se encaminha
para o banquete na taberna e as adivinhações parodiadas (que
dizem qualquer coisa do presente e do futuro alegres) estabelecem
a visão multiplanar da palavra viva e desvinculam-se do sério
cotidiano (e sua carga de trabalho, de calendário, de regras da
natureza – espaço-tempos, onde/quando o oficial é predominante).
Dialogando com Goethe sobre o carnaval, Bakhtin mostra que
ele permite ver o mundo com os olhos da festa, da fantasia livre e
da tolice, que revelam um universo mais complexo, mais profundo,
cujas vozes podem ser conscientes e radicais. O final ressaltado por
Bakhtin demarca sua ligação com uma manifestação do catolicismo
carnavalizado: o bobo incurável distende, ao máximo, o clima dra-
mático que termina com os sinos teatrais tocando – quase se fun-
dindo – com os sinos da cidade/feira/igreja anunciando a hora da
Missa:

Quais são aí as funções da festa e da tolice? Elas


dão ao autor o direito de tratar de um tema não
oficial; melhor ainda, de exprimir um ponto de
vista não oficial. Por mais simples e modesta que
seja, essa peça oferece um aspecto particular do
mundo, totalmente estranho e, na sua própria
base, profundamente hostil às concepções medi-
evais e ao modo de vida oficial. Esse aspecto res-
pira principalmente a alegria e o alívio; o ban-
quete, a virilidade, o jogo, a imitação paródica do
monge das relíquias, os deuses pagãos destrona-
dos (fadas, arlequins) têm aí seu papel essencial.
Apesar do fantástico o mundo parece mais mate-
rialista, corporal, humano e alegre. É o aspecto de
festa do mundo legalizado: na noite do primeiro
de maio adquire-se o direito de considerar o
mundo sem medo e sem piedade. (Bakhtin, 2002a,
p. 228-229)

185 | CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS


Nessa compreensão da festa do mundo, em que o teatro e a
voz são ferramentas-formais para vencer o medo cósmico, o des-
tronamento, o banquete e o jogo surgem como alternativas. Dentre
as formas populares, o Mistério dos Apóstolos (do diabinho Panta-
gruel); o Mistério de São Quintino (despedaçamento grotesco do
corpo) e os movimentos das diabruras e imagens do inferno em Ori-
gem de Arlequim e O mistério da paixão são variantesda grande festa
da comunhão, na qual a concepção grotesca do corpo predomina.
Ressaltemos o fato de Pantagruel circular na boca do povo e
os “assados” bifrontes que os diabos faziam dos heréticos provoca-
vam medo e riso. Justamente nesse proscênio, o olhar dramatúrgico
de Bakhtin desvela o arranjo teatral fundido com a expressão das
ideias:

O próprio arranjo da cena, onde deviam igual-


mente representar-se os mistérios, tem igual-
mente uma importância primordial. Ela era o re-
flexo das ideias relativas à organização hierár-
quica do espaço mundial. O primeiro plano es-
tava ocupado por uma construção especial, espé-
cie de plataforma que constituía o rés-do-chão da
cena e que se chamava a terra. A parte de trás es-
tava ocupada por uma seção ligeiramente mais
elevada: o paraíso, o céu (esse nome se reserva
nos teatros atuais ao último andar dos balcões).
Sob a terra se encontrava a cavidade do inferno
que tinha o aspecto de uma larga cortina sobre a
qual estava pintada a cabeça gigantesca e aterro-
rizadora do diabo (“Arlequim”). (Bakhtin, 2002a,
p. 305)

Essas indicações cênicas reverberam no mundo pantagrué-


lico e na sua análise da cena. Na amplificação cronotópica do espaço
dramático, para uma percepção artística mundial que se prenunci-
ava, o público, habituado ao contexto alegórico das igrejas e dos
mistérios, deparava-se com a encarnação teatral, espécie de fuga

CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS | 186


vocal e corporal que já atingia as camadas populares e penetrava a
escrita artística. Esse conjunto carnavalizado permitiu que a voz ar-
lequinal estabelecesse uma atmosfera de arena diante do discurso
religioso e elevasse as diabruras (parte constitutiva do mistério) ao
campo da liberdade dialógica.
Se Rabelais, Cervantes e Dostoiévski são membros da trilogia
pela qual Bakhtin mais se dedicou, certamente a quarta força, em
suas leituras, é Shakespeare. Há uma arquitetônica cênica que junto
com (Aristófanes), Molière, Puchkin, enformam o centro dramatúr-
gico de Cultura popular no contexto de François Rabelais; e há uma
tradição tanatográfica: a) Rabelais, Shakespeare, Cervantes, Sterne;
b) Homero, Eurípedes, (Aristófanes), Dante, Boccacio, Erasmo,
Tirso de Molina. Na introdução do livro, Cervantes e Shakespeare
servem de base para os comentários sobre o impacto de Rabelais
na cultura, na literatura e nas utopias de seu tempo. Depois, junta-
mente com o maior grupo, que vai de Erasmo a Tirso de Molina, ele
o coloca como um dos autores carnavalescos (amparado por Go-
ethe) que mais teria cultivado o riso festivo e ambivalente nos pal-
cos. Quanto aos leitores (românticos), Jean-Paul também menciona
“(...) a ‘ridicularização’ do mundo (Weltverlachung) em Shakespe-
are, referindo-se aos seus bufões ‘melancólicos’ e a Hamlet” (Bakh-
tin, 2002a, p. 37). Aqui reside a ascensão da arte contra um mundo
acabado e perfeito. O riso hamletiano e os clowns melancólicos
nunca deixam a ordem e a pretensa estabilidade reinarem:

À época de Rabelais, Cervantes e Shakespeare


marca uma mudança capital na história do riso.
Em nenhum outro aspecto, a não ser na atitude
em relação ao riso, as fronteiras que separam o
século XVII e seguintes da época do Renasci-
mento, são tão bem marcadas, tão categóricas e
nítidas. (Bakhtin, 2002a, p. 57)

187 | CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS


Em seu palco pantagruelino (não só elisabetano/isabelino)
está confrontada uma compreensão da literatura que não atribuía
ao riso e aos seres comuns um peso histórico. Visão que valorizava
apenas os indivíduos do plano sério (reis, nobres, chefes de exér-
cito, heróis etc.) e que nunca puderam ser plenamente cômicos.
Tudo se combina com essa noção de quarta-força e a coloca no
campo da cultura. Uma vez que foram poucos os dramas satíricos
que sobreviveram, dado o seu caráter oral, podemos afirmar, recu-
perando positivamente Nietzsche, que a quarta-resposta às tragé-
dias foram os diálogos socrático-platônicos, estreitamente ligados
às [...] “formas carnavalescas da Antiguidade que fecundaram seu
diálogo e o liberaram do sério retórico unilateral” (2002a, p. 104).
Mikhail Bakhtin, na aparente morte de um gênero elevado, encon-
tra a origem de um gênero multiplanar. Com isso, Bahtin relativiza
sua postura (mais radical em Problemas da poética):

Mesmo no domínio da literatura, em todos os pe-


ríodos, houve na epopéia, na poesia lírica e no
drama formas variadas de sério profundo, mas
aberto, sempre pronto a desaparecer e a reno-
var-se. O verdadeiro sério aberto não teme nem a
paródia nem a ironia, nem as outras formas do
riso reduzido, pois ele sente que participa de um
mundo inacabado, formando um todo.
No interior de certas obras da literatura mundial,
os dois aspectos do mundo – sério e cômico – co-
existem e se refletem mutuamente (são os cha-
mados aspectos integrais e não imagens sérias e
cômicas isoladas, como no drama ordinário da
época moderna). A Alceste de Eurípedes, na qual
a tragédia ombreia com o drama satírico, é na li-
teratura antiga um precioso exemplo no seu gê-
nero. Mas evidentemente as obras mais notáveis
desse tipo são as tragédias de Shakespeare.
(2002a, p. 104)

CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS | 188


Com efeito, o sério aberto, do simpósio rabelaisiano, evoca
inacabamento e polifonia em gêneros unilaterais. Um mundo rela-
tivizado culmina na imensa galeria de personagens livres, autôno-
mos, brincantes, ambivalentes do teatro moderno. A luz que ilu-
mina a quarta força faz com os enigmas em profecia, os jogos dis-
cursivo-literários e as imagens do coro popular e do autor-corifeu
(termos da tragédia!) estejam aproximadas de afirmações filosófi-
cas. As paródias do cotidiano estabeleceram importantes revisões
carnavalescas das concepções do passado, da atualidade e dos an-
seios para o futuro. As predições oferecem uma espécie de parhesia
no drama medieval popular e ecoam em Rabelais e Shakespeare:

As adivinhações a que se entrega Panurge para


saber se será corneado [em todo o livro III] são o
rebaixamento grotesco das adivinhações eleva-
das, que os reis e usurpadores fazem para conhe-
cer o destino da coroa (equivalente dos chifres
no plano cômico); por exemplo, lembramos as de
MacBeth. (Bakhtin 2002a, p. 212)

Nesse drama elisabetano, estas adivinhações são a força mo-


triz. Da voz das fadas/bruxas desenrolam-se a ação, a ganância e o
desfecho trágico. E se quisermos sair do campo do sério, ainda
nessa tragédia, basta mover o olhar para a cena do porteiro bêbado
e suas paródias respondíveis das adivinhações. O diálogo com
Pinski, no capítulo “Rabelais e a história do riso, que deu conside-
rável importância a Panurge, colocando-o ao lado de Falstaff, per-
mite pensa-los como dois paradigmas “para quem quer compreen-
der a concepção do mundo do Renascimento” (2002a, p. 122).
Bakhtin aprofunda a análise do bobo rabelaisiano e silencia o per-
sonagem shakespeareno. Mas essa imagem trazida propositada-
mente por ele também fala alto, por exemplo, na análise de Le Jeu
de la feuillée, em que aparecem três fadas que desfilam ao lado de

189 | CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS


Arlequim e de um diabo cômico. Elas são cruciais para o andamento
libertário e libertino do mistério, representando o mundo não ofi-
cial e que aparecem no primeiro de maio, quando o monge (repre-
sentante oficial) não está por perto “[...] tiram as sortes, boas e más
(inclusive a de Adam); vê-se a ‘roda da fortuna’ que desempenha
um papel em todas as adivinhações e predições (Bakhtin, 2002a, p.
225).
Ainda nessas situações que liberam a palavra a “libertinagem
de mesa, [...] herança da Idade Média e escombros do simpósio gro-
tesco” (p. Idem, p. 259), também aproximam o que viemos discu-
tindo desse ensaio: “Na Idade Média e na época de Rabelais, essa
libertinagem de mesa tinha um caráter dramático. Numa impor-
tante medida, a sua variante inglesa, na época de Shakespeare, era
o libertinismo de mesa do círculo de Newsh e de Robert Green”
(Idem, ibidem, p. 259). Seguindo a linha latina do simpósio, os ban-
quetes também estão libertados do medo e agregam uma massa
verbal, possibilitando o jogo pleno, a existência alegre e o tempo
positivo – latente nos clowns de Shakespeare, poetizados por Ban-
deira.
O drama crítico de Bakhtin, construído ao longo de sua obra,
originou-se das condições exteriores e dele próprio. É digno de nota
a utilização das palavras democracia e liberdade nesse livro. Um ho-
mem que teve a vida material, física e política precária, voltar-se
tão efusivamente para a liminaridade (positivamente utópica): o
corpo, a alegria, a festa, a multidão, o coro do povo na cultura e na
literatura. Essa dinâmica espiritual aflora nos temas da cena sha-
kespeareana: Hamlet coloca o teatro dentro do teatro; Lady Ma-
cBeth torna-se obstinada por um trono de profecia, morre deli-
rando e deixa sua posição de nobreza para substituí-la pela ambi-
ção pessoal; Rei Lear só tem um único amigo, o Bobo, e é com ele
que perambula por uma época em que “loucos guiam cegos”; o
grande e gordo Falstaff deambula (volta) por duas partes de uma

CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS | 190


mesma tragédia histórica, flutuando pelo clima ameno das coma-
dres de Windsor; mais leve, dentre todos, Mercúcio, primo de Ro-
meu, que viveu e morreu (bode expiatório) de um mundo bipartido
entre guerras familiares e amores difíceis.
Se Rabelais legou personagens tais como Gargântua, Panta-
gruel, Panurge e Frei Jean, se Cervantes nos deixou a dupla Dom
Quixote-Sancho Pança, Shakespeare, por sua vez, deixou uma
imensa galeria de protagonistas e coadjuvantes. Ao misturar esti-
los, ao recriar palavras (colhidas na boca do povo, na boca de cena),
ao articular drama, poesia e prosa, certamente contribuiu para a
transformação do teatro (e) da humanidade. Se o mundo prosifi-
cou-se com a ascensão da modernidade, o drama reinventou-se
com a aparição de Shakespeare.
Não é por acaso também que nas últimas linhas de Cultura po-
pular na Idade Média e no Renascimento, Bakhtin vai utilizar-se de
imagens do teatro para concluir sua análise do mundo na pena-gar-
rafa de Rabelais. Ele traz para a cena o riso que também permitirá
compreender Molière e a imagem do coro popular a rir em Boris
Godunov, de Puchkin: “cada um dos seus protagonistas exprime,
com efeito, um ponto de vista restrito, e o sentido verdadeiro da
época e dos seus acontecimentos só se revela na tragédia, nas suas
cenas de massa. Em Puchkin, a última palavra pertence ao povo”
(Bakhtin, 2002a, p. 419).
Em Rabelais e Bakhtin também: a primeira e a última palavra
pertencem ao povo. Em Shakespeare, bem como para nós, essas pa-
lavras são encenadas no grande teatro da multidão. Multidão res-
pondível que se agitava, que ria, que purgava e se curava do cotidi-
ano com o espetáculo liminar, com a verdadeira festa da vida retra-
tada nos palcos – ali, há dois palmos do nariz, por seres de carne e
osso que amam e protestam, que desejam viver, mas que sabem que
morrem. E a “última palavra” de Bakhtin sobre Rabelais é uma pa-
lavra colhida na tragédia clássica. Como ele mesmo afirmou, com

191 | CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS


alegre relativismo, as grandes manifestações dos grandes gêneros
não permitem que o sério exclua o riso e que o riso não tema o sé-
rio:

Repetimos, cada um dos atos da história mundial


foi acompanhado pelo grande riso do coro. Mas
nem todas as épocas tiveram um corifeu da en-
vergadura de Rabelais. E, embora ele tenha sido
o corifeu do coro popular apenas do Renasci-
mento, revelou com tal clareza, com tal pleni-
tude, a língua original e difícil do povo, que a sua
obra ilumina a cultura popular das outras épo-
cas. (Bakhtin, 2002a, p. 419)

Rabelais iluminou o palco da humanidade, Cervantes fez a


dramaturgia e Shakespeare encenou os mais plenos dramas huma-
nos. O último, corifeu de Bakhtin, depois das cortinas fechadas, co-
locou-se como parte de um imenso coro inclassificável, responsivo
e popular.
 O resto é diálogo.

CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS | 192


REFERÊNCIAS

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mento: o contexto de François Rabelais. São Paulo: Annablume/Hu-
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de Janeiro: Forense Universitária, 2002c.

BANDEIRA, M. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Nova Agui-


lar, 1993.

BEZERRA, Paulo. “O universo de Bobók”. In: Bobók. São Paulo. Ed.


34, 2005.

BORBA FILHO, Hermilo; PAIVA, B. Cartilhas de Teatro: história do


espetáculo, vol. I. Natal: Serviço Nacional de Teatro (MEC), 1969.

_____. História do Espetáculo. vol. II. Rio de Janeiro: Edições O Cru-


zeiro, 1968.

WALKER, Greg. Medieval Drama – An anthology. Oxford: Blackwell


publishing, 2007

NIETZSCHE. A origem da tragédia. Tradução de Erwin Theodor: São


Paulo: Editora Cupolo, 1994.

RABELAIS, F. Gargântua e Pantagruel. Trad. David Jardim Júnior.


Belo Horizonte; Rio de Janeiro: Villa Rica, 1991. 2 vol.

193 | CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS


SHAKESPEARE, William. Complete Works. Edited by Jonathan Bate
and Eric Rasmussen. Hampshire; Basingstoke: Macmillan, 2007.

_____. Hamlet, Rei Lear, Macbeth. Trad. Bárbara Heliodora. São


Paulo: abril, 2010.

SILVA JUNIOR, 2010. Literatura e Cultura: o complexo problema do


dialogismo e a metodologia do sistema crítico polifônico de Mikhail
Bakhtin. Círculo: Rodas de Conversa Bakhtiniana. 1ed. São Carlos:
Pedro & João, 2010, v. 1, p. 51-54.

_____. A barca de ouro: desejo e morte na tragédia popular de Her-


milo Borba Filho. Sociopoética (Online), v. 1, p. 21-30, 2010.

WILLIAMS, Raymond. Tragédia moderna. São Paulo: Cosac & Naif,


2002.

CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS | 194


195 | CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS
Dentre as definições para o termo Romanceiro encontradas
no Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, temos: “coleção de ro-
mances, de obras narrativas escritas em prosa ou em verso, data-
dos dos primeiros tempos da literatura na península Ibérica”1.
Palavra embora pouco usual no português hoje falado no
Brasil, já foi lembrada, contudo, para compor o título daquela que é
considerada, para alguns estudiosos, a principal obra de uma de
nossas mais importantes poetisas, a carioca Cecília Meireles (1901-
1964). Seu Romanceiro da Inconfidência, publicado inicialmente em
1953, foi baseado em intensa pesquisa histórica da autora, dando
origem a um texto lírico, de reflexão, com contexto épico e narra-
tivo, a retratar a sociedade mineira do Setecentos e, como o título
bem deixa claro, com especial destaque a alguns dos personagens
envolvidos no mais conhecido dos movimentos de contestação à
dominação portuguesa na luso-América, a Inconfidência Mineira,
ocorrida em 1789, marco da luta pela independência brasileira e
que geraria um dos mais celebrados heróis pátrios, imortalizado
em um de seus ilustres representantes, o alferes Joaquim José da
Silva Xavier, de alcunha Tiradentes.
Dividida em cinco partes, a obra retrata o cotidiano e vida da
sociedade mineradora, com a descoberta do ouro, o uso do trabalho
servil, o espírito aventureiro, a opulência e a miséria reinantes,
num mundo recheado de carências, problemas e sociabilidades
muito específicas do ambiente das Minas... Mas também vai além da
narrativa do cotidiano, ao rememorar – e faz-se este o mote da obra
– os bastidores do movimento, como o clima de violência e insatis-
fação com a Coroa, as críticas aos abusos reinóis constantes, as tra-
mas discursivas na urdidura da gestação da revolta. Grandeza, mi-
séria, cobiça, intrigas, disputas de poder, desventuras do cotidiano,

1
HOUAISS, Antonio; VILAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da Língua
Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2004, p. 2471.

CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS | 198


sonhos de liberdade: tudo envolto pelas palavras da poetisa, a dar
voz a alguns dos principais atores daqueles acontecimentos.
O texto de Cecília Meireles apresenta-se, assim, como espé-
cie de poesia histórica, a retratar em seus versos, os dramas vividos
na região mineradora, dando voz a personagens que de fato existi-
ram, abrindo-nos uma fresta para que possamos enxergar o pas-
sado a partir de sua escrita que, se não o recupera como de certo
este aconteceu (seria isso mesmo possível, afinal? Claro que não,
bem sabemos. Nem mesmo a História desde há muito pensa assim,
que fique claro...), ao menos deixa-nos entrever uma combinação
entre o provável e o presumível de como os fatos foram ou pode-
riam ter sido. De acordo com Maria de Fátima Marinho,

É essa memória, geradora de uma busca inces-


sante da identidade, que vai ter um lugar funda-
mental nas relações entre a Literatura e a Histó-
ria, sempre que aquela se predispõe a falar desta,
isto é, desde que se percebeu a necessidade de
repetir a História, mesmo se de forma velada ou
inovadora.2

Em seus versos inaugurais, a obra já faz referência à memó-


ria do drama vivenciado nas Minas – num texto que, deslocado no
tempo, no sentido e no espaço, poderia, sem nenhum senão, fazer
igualmente menção a infinitos outros processos de intolerância vi-
venciados na História, como os fatídicos atos de perseguição religi-
osa que varreram, séculos antes, da Lusitânia, judeus e mouros, ou
aos quase trezentos anos de perseguição religiosa movida pelo Tri-
bunal do Santo Ofício da Inquisição portuguesa, que funcionaria en-
tre 1536 e 1821 à procura de eventuais suspeitos de ameaça à pu-
reza católica no reino e seus domínios:

2 MARINHO, Maria de Fátima. “A construção da memória”. In: Veredas 10.


Santiago de Compostela, 2008, p.137.

199 | CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS


Não posso mover meus passos,
por esse atroz labirinto
de esquecimento e cegueira
em que amores e ódios vão:
- pois sinto bater os sinos,
percebo o roçar das rezas,
vejo o arrepio da morte,
à voz da condenação;
- avisto a negra masmorra
e a sombra do carcereiro
que transita sobre angústias,
com chaves no coração;
- descubro as altas madeiras
do excessivo cadafalso
e, por muros e janelas,
o pasmo da multidão.

É possível ver, nas artimanhas do texto, referências ao cons-


tante clima de descontemanto com os desmantelos governamen-
tais, os acordos e tramoias, o interesse onipresente desfazendo
amizades e juntando inimigos, a desconfiaça generalizada e os cli-
mas de vigilância e medo que pairava sobre todos, a marcar o am-
biente das Minas às vésperas do movimento. Nada distinto, desgra-
çadamente, ainda, da realidade funesta que encobriu o Brasil atual
de desesperança e destruição de políticas sociais variadas, pelas ar-
timanhas políticas do golpe midiático do impeachment que levou a
cabo o governo democrática e legitimamente eleito da presidente
Dilma Vana Rousseff, em agosto de 20163.

Ai, que o traiçoeiro invejoso


junta às ambições a astúcia.
Vede a pena como enrola
arabescos de volúpia,
entre as palavras sinistras

3As opiniões políticas deste artigo são de responsabilidade única do seu autor, e
não representam, obrigatoriamente, as crenças dos organizadores e demais
colaboradores da obra.

CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS | 200


desta carta de denúncia!
(...)

Ou ainda:

E a vizinhança não dorme:


murmura, imagina, inventa.
Não fica bandeira escrita,
mas fica escrita a sentença.

Embora trate de assunto, época e temática diferentes daque-


les que nos aventuramos nos limites deste texto, a poesia de Meire-
les alude a drama comum – o impedimento legal de ser e expressar-
se conforme suas crenças e ideias – posto que a autora exprime o
drama da liberdade em sua luta contra os poderes tirânicos. Em seu
caso, os abusos da Admistração e da Coroa; no que aqui focamos, as
perseguições religiosas contra os suspeitos de mal comportamento
católico no mundo português durante a Modernidade. Ambos, cada
um a seu modo, espelham momentos de intolerância e perseguição
ao outro e aos diferentes modos de ser e pensar, seja na cultura, na
religião, na política, na sociedade. São frutos, malditos, do tanto de
incompreensão que o mundo ainda carrega.
A tragédia da perseguição com fins religiosos, tema que,
aqui, nos interessa mais de perto, foi assunto que se manteve inten-
samente presente em textos variados ao longo do período de vigên-
cia do monopólio católico implementado por decreto em Portugal
a partir de 1497 e do funcionamento da Inquisição portuguesa, que
perduraria até o início da terceira década dos Novecentos, e posta
abaixo pela Revolução Liberal do Porto e seus desdobramentos, a
partir de 1820. Neste sentido, os textos refletem não apenas o pro-
cesso de conversão forçada dos antigos judeus e mouros ao catoli-
cismo, como as perseguições sofridas por estes grupos por conta

201 | CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS


das ações inquisitoriais em prol da pureza religiosa católica. Mas
antes de visitar o ficto, vejamos o que é História.
Os judeus fizeram parte do recanto mais ocidental da Eu-
ropa há tempos, antes mesmo de lá haver Portugal. As fontes per-
mitem contar sua história desde os primórdios. Há documentos que
mapeiam a presença hebraica por toda a Península Ibérica já na An-
tiguidade. Ali fixaram-se, criaram raízes e formaram comunidades,
influiram nos costumes, na língua, na culinária, na arquitetura, nos
conhecimentos em geral e nos avanços científicos, na medicina, nas
navegações, fizeram comércio, empreenderam capitais e expandi-
ram seus negócios pelos quatro cantos do mundo conhecido, a
ponto de, no início da Modernidade, judeu ser sinônimo de portu-
guês, e vice-versa, em várias partes do globo. Ganharam prestígio
perante alguns monarcas, e conseguiram viver em relativo convívio
harmônico e integração social, se comparado com as perseguições
que sofreram os do Povo Eleito em várias localidades e épocas dis-
tintas por boa parte da Europa. Até hoje é possível identificar claros
indícios deste patrimônio material e cultural, resquícios de uma mi-
lenar presença, em âmbitos multiplicados, do mundo ibérico e seus
desdobramentos americanos.
A situação dos judeus na Ibéria, contudo, começou a trans-
formar-se por conta das seguidas perseguições de que foram víti-
mas a partir de fins do século XIV, iniciadas em 1391, na região de
Sevilha, e que de lá se espalharam um pouco por toda a Espanha.
Estas perseguições culminariam, um século depois, na expulsão,
durante o processo de unificação do reino levado a cabo pelos Reis
Católicos e completado com a tomada de Granada, em 1492. Força-
dos à diáspora, autorizados a levar, no máximo, o que davam conta
de carregar, largando o restante de seus bens, abandonando histó-
rias e locais em que viviam há gerações, muitos dos judeus espa-
nhóis dirigir-se-iam para o lado lusitano da península, aprovei-
tando-se dos antigos laços e contatos entre as duas comunidades

CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS | 202


judaicas, da proximidade territorial e da longa fronteira seca entre
os dois reinos. Estima-se que, com a chegada dos judeus espanhóis,
a comunidade judaica portuguesa tenha atingido números próxi-
mos de cem a cento e cinquenta mil judeus, em uma população que
totalizava cerca de um milhão de indivíduos, ou seja: de dez a
quinze por cento do total de habitantes em Portugal no final do sé-
culo XV eram de origem hebraica – números que por si já dão a di-
mensão do peso e importância tomada, à altura, pela comunidade
mosaica no luso mundo e da influência que representaram na soci-
edade, economia, cultura, costumes4...
Mas não pararia por aí. Os acordos entre os reis de Portugal
e Espanha naquele encerrar do Quatrocentos dariam início a outro
processo diaspórico, visto que a infanta espanhola, num dos pontos
acertados entre as duas coroas, só aceitava esposar o dono da coroa
lusa se pudesse reinar em espaço livre de judeus e mouros, num
reino cristão, sem lugar para outras crenças. Assim, em dezembro
de 1496 o monarca português ordenaria a implementação do mo-
nopólio católico e a expulsão dos judeus (e também dos mouros,
embora estes não sejam o foco desta análise) de Portugal, dando
um prazo de dez meses para que partissem. Ao longo deste tempo,
o Rei Venturoso tentou convencer – fosse de forma pacífica, ofere-
cendo vantagens, fosse através de violências as mais cruéis – os ju-
deus à conversão ao cristianismo, para ganharem, desta forma, o
direito de permanência nos domínios lusitanos. Findados os dez
meses, ao invés de permitir a saída do reino dos judeus que ainda
permaneciam em Portugal, espalhou padres no meio da multidão
amontoada em Lisboa à beira-Tejo na espera de embarcações para
seguirem em direção a outras paragens, a jogarem água benta so-
bre os judeus, transformando-os oficialmente em cristãos – mas

4 Sobre a presença judaica em Portugal, ver: KAYSERLING, Meyer. História dos


Judeus em Portugal. São Paulo: Pioneira, 1971.

203 | CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS


cristãos-novos (para que fossem diferenciados dos cristãos de ori-
gem, identificados como cristãos velhos ou lindos), de sangue con-
siderado impuro ou maculado. Não é de se estranhar que os pre-
conceitos outrora destinados aos judeus fossem, a partir de então,
direcionados aos neoconversos que, apesar de oficialmente cris-
tãos, eram apontados como suspeitos em potencial de continuidade
judaica e, por conseguinte, vistos de forma generalizada como
grande ameaça à pureza católica.
A Inquisição, instaurada quatro décadas depois, em 1536,
teria como principal justificativa para sua criação a busca pela pu-
reza religiosa e a perseguição aos maus católicos, papel que caberia
aos neoconversos. Os cristãos-novos, assim, seriam seu principal
alvo. Dos mais de quarenta mil processos movidos pela Inquisição
portuguesa, a imensa maioria teve os judeus batizados em pé e seus
descendentes como réus, acusados, majoritariamente, de burlar a
fé dominante e manterem, de forma oculta e dissimulada, práticas,
crenças e comportamentos do judaísmo que lhes fora proibido,
sendo por isto, denominados de judeus ocultos ou criptojudeus.
O temor da Inquisição fez com que uma grande leva dos cris-
tãos-novos portugueses, judaizantes ou não, ganhassem o mundo.
O aumento das pressões e perseguições em Portugal, conforme es-
truturava-se o Santo Ofício, levou os neoconversos a buscarem no-
vos espaços para recomeçar a vida e realizar seus negócios, sem a
sombra da ação do tribunal: espalharam-se, então, por outros rei-
nos da Europa, Índia, China, Orientes próximo e distante, Angola,
Moçambique, Açores, Madeira, a região do Levante, Caribe, Amé-
rica.
O Brasil, que vivia os primórdios da colonização e da indús-
tria açucareira, foi destino dos preferidos. Aqui, miscigenaram-se
com os cristãos-velhos, tornaram-se senhores de engenho, comer-
ciantes, traficantes de escravos, membros da administração e do
clero, professores, enfim ocuparam os mais diversos âmbitos da

CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS | 204


economia e da sociedade. Viveram, ainda, considerável liberdade
religiosa, pelo menos até a chegada das visitações ou dos represen-
tantes inquisitoriais, a partir dos fins do Quinhentos, a esfacelar a
harmonia social reinante. De acordo com a historiadora Anita No-
vinsky, das maiores autoridades no assunto, a Inquisição teve, en-
tre seus réus, 1076 prisioneiros nascidos, moradores ou de passa-
gem pelo Brasil, sendo 778 homens e 298 mulheres. Deste total, en-
tre os que tiveram sua origem identificada, sabemos que 604 (373
homens e 231 mulheres) eram cristãos-novos5. Alguns deles, inclu-
sive, condenados ao Braço Secular, ou seja, a morrerem nas foguei-
ras erguidas em autos-da-fé, em que eram queimados os conside-
rados de culpas mais gravosas... Números estes que podem mudar,
de acordo com o avanço das pesquisas na documentação do Santo
Ofício, que ainda não está totalmente identificada e catalogada.
Mas, se conhecemos pela História dos documentos e proces-
sos deixados pela Inquisição o drama destes judeus, transformados
em cristãos-novos, suspeitos (por vezes, com razão) de judaizar às
(nem sempre) escondidas, verdadeiros responsáveis pela continui-
dade judaica em tempos de perseguição, alçados a mártires do ju-
daísmo proibido, também a literatura tem papel fulcral para nos
auxiliar a compreender estas desventuras. Não foram poucas as
obras de cunho literário – revestido, não raro, de experiência pes-
soal –, em suas mais diversas estruturas e possibilidades, que dei-
xaram o testemunho do sofrimento enfrentado por estes judeus e
cristãos-novos de origem sefardita. Na urdidura do texto, trama-
ram seus sofrimentos, expostos nas entrelinhas, no disfarce alegó-
rico da narrativa, no combate direto e explícito das violências que
os vitimavam, tornando a escrita, também literatura de resistência,
bem como fontes importantíssimas para um olhar mais cuidadoso

5 NOVINSKY, Anita. Inquisição: Prisioneiros do Brasil (séculos XVI-XIX). Rio de


Janeiro: Editora Expressão e Cultura, 2002.

205 | CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS


sobre este passado. No espaço deste artigo, traremos alguns exem-
plos destes escritos, a mostrar que intolerância e o medo que en-
frentavam, se por um lado os violentavam, longe estavam de ser pa-
ralisantes.
Um dos livros inaugurais neste sentido é Menina e Moça, ro-
mance pastorial de Bernardim Ribeiro, publicado originalmente
em Ferrara, atual Itália, no ano de 1554. Já nas primeiras linhas, re-
latava, alegoricamente, os sofrimentos com a proibição religiosa e
o início das perseguições do Santo Ofício, que o próprio autor pre-
senciara, testemunha ocular que fora daqueles tempos sombrios
que pairavam sobre Portugal. O texto se inicia com referência aos
processos diaspóricos vivenciados pelos judeus ibéricos, expulsos
seguidamente de Espanha e Portugal, após séculos e séculos de pre-
sença na Ibéria, lamentando-se o narrador daquele triste fim, e re-
conhecendo o longo período em que a região foi conhecida como
Sepharad, ou Ibéria das três religiões, que conviviam sem maiores
conflitos. É interessante notar que as agruras vividas são descritas
pelo olhar feminino – a tal menina e moça que dá título à obra,
numa época em que as mulheres ocupavam espaços secundários
numa sociedade marcada pela referência ao masculino:

Menina e moça me levaram de casa de meu pai


para longes terras: qual fosse então a causa da-
quela minha levada - era pequena - não na soube.
Agora não lhe ponho outra, senão que já então
parece havia de ser o que depois foi.
Vivi ali tanto tempo, quanto foi necessário para
não poder viver em outra parte.
Muito contente fui naquela terra; mas - coitada
de mim! - que em breve espaço se mudou tudo
aquilo que longo tempo se buscou, e para longo
tempo se buscava.
Grande desaventura foi a que me fez ser triste, ou
a que, pela ventura, me fez ser leda. Mas, depois
que eu vi tantas cousas trocadas por outras e o

CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS | 206


prazer feito mágoa maior - a tanta paixão vim,
que mais me pesava do bem que tive, que do mal
que tinha.
Escolhi para meu contentamento (se em triste-
zas e saudades há algum) vir-me viver a este
monte, onde o lugar e míngua da conversação da
gente fosse como para meu cuidado cumpria –
porque grande erro fora, depois de tantos nojos,
quantos eu com estes meus olhos vi, aventurar-
me ainda esperar do mundo o descanso, que ele
não deu a ninguém – estando eu aqui só, tão
longe de toda a outra gente, e de mim ainda mais
longe; donde não vejo senão serras de um cabo,
que se não mudam nunca, e de outro águas do
mar, que nunca estão quedas; onde cuidava eu já
que esquecia à desaventura – porque ela, e de-
pois eu, a todo poder que ambas pudemos, não
leixamos em mim nada em que pudesse nova má-
goa ter lugar (antes havia muito tempo que é po-
voada de tristezas), e com razão.
Mas parece que, em desaventuras, há mudanças
para outras desaventuras; porque, do bem, não
na havia para outro bem. 6

Outro que deixou suas impressões sobre o mundo de intole-


rância em nome da fé que se instaurava sobre a Lusitânia foi Samuel
Usque. Embora quase tudo se desconheça sobre sua vida, sabe-se
que nascera provavelmente em Lisboa, entre 1495-1500. Usque,
como ele próprio informava, era descendente de judeus que deixa-
ram Castela em direção a Portugal fugindo das perseguições religi-
osas. Anos mais tarde, por conta das pressões do Santo Ofício, mu-
daria para Ferrara com o irmão, Abraão Usque, impressor de livros,
que publicaria suas Consolação às Tribulações de Israel, que acaba-
ria por circular por outras regiões da Europa, tendo nova edição em
Amsterdã, no ano de 1599. A partir de metáforas e alegorias que

6 RIBEIRO, Bernardim. Menina e Moça. Estarreja: Mel Editores, 2009, pp. 45-46.

207 | CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS


retratavam os seguidos dramas judaicos, a Consolação tinha como
tema as diversas perseguições sofridas pelo povo bíblico ao longo
dos tempos – “Ó conveniente lugar para chorar meus males e subir
ao derradeiro céu meus gemidos”7. Mas guardava certo tom positivo,
ao recordar aos judeus as promessas divinas de salvação e resgate,
rememorando aos judeus expulsos de Sefarad e diluídos pelo
mundo a esperança do desejado regresso a Israel. Ou, como salienta
Pina Martins, no prefácio da obra de Usque, a forma de encarar a
tragédia como provação:

A Consolação às Tribulações de Israel pode resu-


mir-se deste modo:
– Por mais terríveis que sejam os tormentos que
hoje sofrem os Judeus – afirma Samuel Usque –,
já outros maiores tiveram de suportar na sua pe-
regrinação terrena. Esses tormentos são justos,
porque o povo de Israel pecou contra o Senhor, o
qual não podia, por ser a própria expressão infi-
nita da Justiça (que é uma forma de perfeição),
deixar de pôr em causa tais infidelidades. Mas
são, ao mesmo tempo, uma prova de predilecção
divina em relação ao povo eleito. O Senhor não
quer deixar perdê-lo na dureza do seu abandono.
Isto não significa que os agentes da punição não
sejam merecedores de castigo, e tanto mais se-
vero quanto é certo eles serem abandonados à
inconvertibilidade, na gélida indiferença do seu
vazio espiritual. O Senhor serve-se deles para
chamar os que ama à direita via do seu divino
serviço. 8

Também a Inquisição mereceu críticas. E não foram poucas.


“Merda para a Inquisição e para quem a manda e para quem a traz”,

7 USQUE, Samuel. Consolação às Tribulações de Israel. Tomo II. Diálogo Primeiro.


Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1989.
8 PINA MARTINS, José Vitorino de. “A modos de Prefácio”. In: USQUE, Samuel.

Consolação às Tribulações de Israel. Op. cit., 1989, p. 136.

CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS | 208


teria bradado uma certa Margarida Avondosa, moradora em Ta-
vira, à época em que o Santo Ofício começava os seus trabalhos no
reino9. E as críticas se generalizavam... Um poema, escrito por um
prisioneiro da Inquisição após ter sido penitenciado, chegaria ao
conhecimento do Santo Ofício: recheado de discordâncias à atuação
do Tribunal, que perseguia muitos de seus réus pelo desprivilégio
de nascerem com o sangue maculado, por serem de origem judaica,
herdeiros de desconfianças sobre seu comportamento, mais que
pelos seus atos, pelo simples fato de descenderem da nação he-
braica:

[...] Passar um homem infortúnios


ruínas, perdas, naufrágios,
por acaso, ou por desastre
no mundo é ordinário.
Mas não há maior desgraça,
nem mais lastimoso caso,
do que um triste nascer,
por herança, desgraçado.
Que um morgado de misérias,
é um mui triste morgado,
ainda mal, ainda negro,
que por seu mal vêm tantos!
Como estou de posse dele,
de dor e de pena estalo,
E o coração se me faz
Dentro do peito pedaços [...].10

Pudera! Impossível mesmo de ser diferente... Não foram


poucos os denunciados, processados e condenados pela sanha per-
secutória inquisitorial ao longo de seus quase trezentos anos de

9 Apud BRAGA, Isabel M. R. Mendes Drumond. Viver e morrer nos cárceres do


Santo Ofício. Lisboa: A Esfera dos Livros, 2015, pp. 20-21.
10 BNP-Lisboa, Reservados, Códice 6031. Apud MATTOS, Yllan de. A Inquisição

Contestada. Críticos e críticas ao Santo Ofício português (1605-1681). Rio de


Janeiro: Mauad/FAPERJ, 2014, pp. 140-141.

209 | CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS


existência em Portugal. Um dos mais conhecidos destes escritos de
contestação ao poder e ação do Santo Ofício, atribuído inicialmente
ao Padre António Vieira, mais tarde, a Pedro de Lupina Freire, an-
tigo notário que trabalhara a serviço do Santo Ofício, ou seja, co-
nhecedor interno das entranhas da máquina inquisitorial e de seu
funcionamento, e que ainda tem a sua autoria enigmática, sem a
certeza do(s) autor(es)11. Trata-se das Notícias Recônditas do Modo
de Proceder a Inquisição com os seus presos, publicada primeira-
mente em Londres, no ano de 1722. Embasado por sua própria ex-
periência sobre o Tribunal, Freire desvela, entre outras tantas táti-
cas utilizadas pelos representantes do Santo Ofício, os métodos co-
ercitivos utilizados para conseguir os depoimentos mais revelado-
res de seus réus, como “esquecê-los” nos cárceres por longos perí-
odos de intervalo entre as sessões de depoimento:

So se presume que os que estao muito tempo


sem lhes falarem na sua causa, sao presos com
poucas testemunhas, e os deixam estar ate que,
sabendo-se que estao presos, vao sobre eles car-
regando novas provas.

E ainda:

E assim se vao enredando uns com outros, e se


faz uma confusao infinita, que nunca se acaba,
senao perdoando a uns os muitos testemunhos,
trateando outros por diminutos, e a outros con-
denando por diminutos. Tudo isto, e muito mais,
se ha-de achar nos processos; e maiormente os
fundamentos de uns serem perdoados e outros

11O tema da autoria deste texto, atualmente, é um dos focos de pesquisa em que
se debruça o historiador Yllan de Mattos, que tem apresentado trabalhos e
conferências, no Brasil e no exterior, sobre o assunto, e que em breve publicará
alguns resultados destas investigações.

CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS | 210


condenados por diminutos, e a outros irem pur-
gar a sua diminuiç ao por tormento. 12

E o Santo Ofício não ficaria impávido, sem reação, às críticas


que lhes eram dirigidas pelo pseudo-Vieira. Buscava, em seu dis-
curso, desconstruir os argumentos presentes nas Notícias, ata-
cando diretamente ao então suposto autor da obra:

procura o P. Vieira – lobo com pele de ovelha – e


pelo caminho espiritual descreditar o Santo Ofí-
cio; fazer cível o seu procedimento, e que seja
tido em ódio espiritual pelos bons e fiéis cristãos.
Zelando aparentemente a salvação das almas dos
presos, diz, e temerário afirma, que nele se lhes
falta os sacramentos da Igreja e consolações es-
pirituais. [...] Aos excomungados e presos por he-
reges, por tais se devem reputar. Enquanto se
não termina a sua causa, devem presumir-se tais
como foram denunciados. Se confessaram sacra-
mentalmente a heresia, não podem ser absolutos
sem proceder o sacrilégio e não podem ter ver-
dadeira absolvição. [...] As lágrimas e soluços que
o P. considera nos hereges presos, pela falta dos
sacramentos, sem temeridade se presumem que
procedem de ódio o rancor grande que tem às
coisas de fé, vendo-se privados de lhes fazerem
os desacatos e irreverências que costumam, e se
lhes publicam nas suas sentenças. [...] E se isto é
certo para outros pecadores menos do que os he-
reges e judaizantes, que privilégio achou o P. Vi-
eira para estes? Se fosse bem puro na fé, devia

12FREIRE, Pedro Lupina. Notícias Recô nditas do Modo de Proceder da Inquisiç ão
com os seus Presos. In: CIDADE, Hernani e SERGIO, Antonio (orgs.). Obras
Escolhidas: Padre Antonio Vieira. Coleç ao de Classicos Sa da Costa. vol. IV, obras
varias II. Lisboa: Livraria Sa da Costa, 1951-54, pp. 139-244 (as citações
correspondem às páginas 162 e 210, respectivamente). Apud SILVA, Maria
Carolina Scudeler. “O Tribunal do Santo Ofício e a busca pela uniformidade da fé”.
In: Anais do Simposio Internacional de Estudos Inquisitoriais. Salvador, agosto
de 2011, p. 11.

211 | CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS


cosiderar ser coisa horrível meter ao Santíssimo
Sacramento na boca daqueles que sacrilega-
mente o blasfemam, desacatam e irreverenciam,
e devia saber como tão erudito, que era a pena
ordinária dos reconciliados por direito comum. É
a perpétua privação da sagrada comunhão (...).13

Outro a testemunhar e, também, a vivenciar diretamente os


fatos – ele próprio, contudo, diferente de Lupina Freira, preso nas
malhas do Santo Ofício – foi António Serrão de Crasto, escritor seis-
centista que usou o tempo em que esteve prisioneiro nos cárceres
do Tribunal para escrever Os Ratos da Inquisição, dura crítica à si-
tuação vivenciada nos cárceres, publicada no findar do século XIX
por Camilo Castelo Branco:

Que ninguém pode dizer,


na vida, que está seguro;
porque um perigo futuro
ninguém o pode saber.
Assim pode acontecer
donde menos se imagina
vir a um rato grã ruína;
por isso, antes de chegar,
vigiar e acautelar
é mui boa medicina.

Que de rato acautelado


nenhum gato se vingou;
mas do que se descuidou
qualquer se verá vingado.
Eu bem vos tenho avisado
por isso – guardar a pele,
porque é muito néscio aquele

13Queimar Vieira em estátua. As apologias (1738, 1743) do Senhor Inquisidor


António Ribeiro de Abreu. Em Resposta às Notícias Recônditas, Atribuídas ao Pe.
António Vieira (1608-1697). Lisboa, Belmonte: Cátedra de Estudos Sefarditas
“Alberto Benveniste” da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, Rede de
Judiarias de Portugal, – Rotas de Sefarad, 2014, pp. 160-162.

CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS | 212


que o contrário disto faz;
que onde quer o Demo jaz
para haver de embicar nele.14

O próprio Castelo Branco, vale dizer, escreveria obra sobre


os tormentos vivenciados pelas vítimas da Inquisição, como o medo
das denúncias, interrogatórios e prisões, a vida nos cárceres, a hu-
milhação das penas, a lepra social em que se tornavam os que pas-
savam pelo Santo Ofício, o medo da morte, a condenação fatal.... Em
O Judeu, publicado prima volta em 1866, retrata os sofrimentos de
António José da Silva, escritor e dramaturgo cristão-novo, nascido
no Rio de Janeiro, em 1705, de alcunha O Judeu, autor de peças tea-
trais, algumas delas encenadas no Teatro de Bonecos do Bairro Alto
de Lisboa, processado e queimado em auto-da-fé no ano de 1739
por culpas de judaísmo: o romance de Camilo Castelo Branco é ho-
menagem não apenas ao dramaturgo condenado à fogueira, mas
também à memória dos milhares de cristãos-novos acusados de ju-
daísmo que foram vitimados pela Inquisição portuguesa durante
seus duzentos e oitenta e cinco anos de funcionamento.
Mas, se sabemos hoje já não poder atribuir à lavra de Antó-
nio Vieira a autoria das tais Notícias Recônditas, não podemos negar
que nosso célebre jesuíta empunhou, com brilhante manejo das pa-
lavras, sua pena sempre engajada para escrever duríssimas críticas
sobre os abusos cometidos em nome da Misericórdia & Justiça que
funcionavam como emblema do Santo Tribunal. Para ficarmos em
apenas um breve exemplo, citemos trecho da carta dirigida por Vi-
eira a Dom João IV, a favor da gente da nação, em 1646, em que so-
licita a mudança de algumas práticas do Santo Ofício em relação aos
seus réus. Incansável em sua luta contra os abusos cometidos con-
tra os cristãos-novos, dava mostras do “mundo de medo” gerado

14CASTRO, António Serrão de. Os ratos da Inquisição. Lisboa: Frenesi, 2004, pp.
114-115.

213 | CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS


pelo Santo Ofício15 e que causava desconfianças generalizadas so-
bre toda a comunidade neoconversa, temerosa de ser denunciada
por qualquer comportamento que, supostamente, fugisse à norma
cristã, independente de ser ou não prática judaizante, mas vista, de
forma abrangente, como prova cabal que remetesse à culpa he-
braica:

E é muito de considerar aqui que a inteireza com


que se procede na Santa Inquisição de Portugal,
com a maior parte de rigor de seus efeitos, vem a
cair principalmente sobre os bons, os quais pa-
decem maiores riscos e danos do que os maus;
porque os maus, como cometeram o delito, facil-
mente contestam com as testemunhas e se li-
vram; porém os bons, denunciados pelos maus,
não sabendo donde lhes procede o mal e o dano,
por se lhes não nomearem testemunhas, ficam
metidos em um labirinto de confusões e, não po-
dendo nomear os cúmplices que não tiveram,
para contestar, dão os mais deles em outros ab-
surdos maiores; porque, ou morrem negativos,
ou com o temor da morte nomeiam tantos até
que acertam com as falsas testemunhas que os
acusaram, ou, se faltam em algumas, morrem por
diminutos confitentes; e por acertarem com to-
das sucede de ordinário que nomeiam muitos
inocentes, e se vai multiplicando o mal sem re-
médio e crescendo a confusão, com que as almas
de uns e outros ficam enredadas, escura a justiça,
os mesmos ministros escrupulosos e as consci-
ências tão intrincadamente carregadas em resti-
tuições de fazendas e honras, em perigos a que
expuseram vidas e almas, e as causas, que, se têm

15Sobre o clima de perseguição e temor generalizado criado pelo Santo Ofício,


ver, por exemplo, o trabalho de Halyson Oliveira, relativo à primeira visitação do
Santo Ofício ao Brasil, em fins do século XVI. OLIVEIRA, Halyson Rodrygo Silva
de. “Mundo de Medo: Inquisição e cristãos-novos nos espaços coloniais.
Capitanias de Pernambuco, Itamaracá e Paraíba (1593-1595)”. Dissertação de
Mestrado apresentada à Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2012.

CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS | 214


fim no juízo exterior e se acabam nos cadafalsos,
não há letras nem prudência que lhos saiba dar
no foro da consciência, em que o sigilo da confis-
são encobre notáveis casos urdidos pela malícia
ou necessidade dos réus, que não é possível co-
nhecer nem obviar o zelo dos ministros. 16

Já para o século XIX, a se iniciar com a Inquisição a perder


seu fôlego persecutório e mais longe do que sempre da unanimi-
dade, cada vez mais envolta em críticas, num Portugal crescente-
mente influenciado pelos ventos liberais; e avançado no tempo,
quando esta já, extinta, se tornara assunto de pesada e triste me-
mória, em experiências produzidas nas duas franjas do Atlântico,
por onde a Inquisição deixou suas indeléveis marcas, temos três
exemplos, bem distintos...
Um primeiro, envolvendo Hipólito José da Costa, diplomata,
maçom, jornalista e editor, daquele que se considera o primeiro jor-
nal brasileiro, Correio Braziliense ou Armazém Literário. Hipólito da
Costa, também ele, acabaria preso pelo Santo Ofício por pertencer
à maçonaria. Depois de fugir para a Inglaterra, desnudaria os sofri-
mentos por que passara em sua Narrativa da Perseguição, datada
de 1811. A obra, de caráter descortinador, revela as desventuras
dos réus em suas passagens pelo Santo Tribunal. Costa anuncia a
que alude seu livro logo em nota dedicada ao leitor, com que abre a
Narrativa:

Desde que a minha idade me permitiu o pensar e


refletir, sempre considerei a existência da Inqui-
sição na Europa como uma conseqüência da ig-
norância e da superstição e, portanto, sempre a

16Padre António Vieira. “Proposta que se fez ao Sereníssimo rei Dom João IV a
favor da Gente da Nação, pelo Padre António Vieira, sobre a mudança dos estilos
do Santo Ofício e do fisco. 1646. In: FRANCO, José Eduardo & CALAFATE, Pedro
(dir). Padre António Vieira. Escritos sobre os judeus e a Inquisição. Lisboa: Temas
e Debates, 2015, pp. 56-57.

215 | CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS


olhei com horror; mas nunca me passou pela
imaginação que eu mesmo viria a ser uma das ví-
timas de sua perseguição. É apenas crível que no
século dezenove exista ainda um tribunal que te-
nha o poder, sem causa aparente e sem que haja
violação das leis do país, de prender indivíduos e
processá-los por culpas que se devem considerar
como imaginárias, visto que não existem no Có-
digo Criminal da Nação.17

Outro texto interessantíssimo para pensar as críticas rece-


bidas a respeito do Santo Ofício e do papel que este desempenhou
para o atraso português foi a conferência de Antero de Quental, já
no período pós-Inquisição (esta, lembremos, foi extinta em 1821,
no contexto da Revolução Liberal do Porto, ocorrida no ano ante-
rior) intitulada Causas da Decadência dos Povos Peninsulares nos úl-
timos três séculos, apresentada nas Conferências do Casino Lisbo-
nense, marco do Realismo português, em 24 de Maio de 1871.
Quental discorreria, em sua fala, o que julgava serem os principais
motivos para a decadência então vivida pela Ibéria. Os desdobra-
mentos dos três séculos de Inquisição sobre Portugal – e cerca de
três séculos e meio no caso da Espanha –, embora esta tivesse sido
encerrada cerca de cinquenta anos antes, e já se vivesse em tempos
de maior liberdade, continuam a exercer efeito deletério sobre a
vida, os costumes, o imaginário e a sociedade portugueses:

E a nós, Espanhóis e Portugueses, como foi que o


catolicismo nos anulou? O catolicismo pesou so-
bre nós por todos os lados, com todo o seu peso.
Com a Inquisição, um terror invisível paira sobre
a sociedade: a hipocrisia torna-se um vício naci-

17COSTA, Hipólito José da. Narrativa da Perseguição. 4a ed. Porto Alegre:


Associação Riograndense de Imprensa, Ed. Da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, 1981, p. 15.

CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS | 216


onal e necessário: a delação é uma virtude religi-
osa: a expulsão dos judeus e mouros empobrece
as duas nações, paralisa o comércio e a indústria,
e dá um golpe mortal na agricultura em todo o
Sul da Espanha: a perseguição dos cristãos-no-
vos faz desaparecer os capitais: a Inquisição
passa os mares, e, tornando-nos hostis os índios,
impedindo a fusão dos conquistadores e dos con-
quistados, torna impossível o estabelecimento
duma colonização sólida e duradoura: na Amé-
rica despovoa as Antilhas, apavora as populações
indígenas, e faz do nome de cristão um símbolo
de morte; o terror religioso, finalmente, cor-
rompe o carácter nacional, e faz de duas nações
generosas hordas de fanáticos endurecidos, o
horror da civilização.18

O recado é claro: a Inquisição deixou marcas indeléveis e


perpétuas em Portugal – o terror invisível, a hipocrisia como vício, a
delação como virtude e a corrupção do caráter: características, mo-
tivos e consequências da intolerância incentivada pela perseguição
inquisitorial por todo o mundo português de aquém e além mar.
Mesmo destruída, a chama inquisitorial ainda arde.
Por fim, aqui do outro lado do Atlântico, mestre Machado de
Assis, que escreveu A Cristã Nova, poema sobre a dor e o drama dos
judeus obrigados a abandonar a fé, mas que resistiram, dentro do
que foi possível, repassando aos descendentes a chama hebraica,
feridos pela intolerância, mas seguros na causa de sua luta, numa
esperança que nasce do inesperado lodo, tal qual flor teimosa, que
brota do insolente não:

(...) última e forte


Consolação é esta do vencido
Que viu tudo perder-se no passado,

18QUENTAL, Antero de. Causas da decadência dos povos peninsulares nos últimos
três séculos. Discurso proferido no Casino Lisbonense, em 27 de Maio de 1871.

217 | CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS


E único salva do naufrágio imenso
O seu Deus.19

Os discursos que aqui vimos mostram que, para além do


medo, existia a resistência, a contestação, a gana de mudança, a
vontade de resistir, o acreditar no que se é. Romanceiros de voz
uníssona, embora num caleidoscópio de formatos diversos: cartas,
romances, poemas, falas soltas. Todas, ajudando a gritar mais alto,
contra o monstro que dizia agir em nome de Deus. Oxalá, que os
tempos sejam outros e este pesadelo esteja enterrado no passado.

*****
Têm sido tempos difíceis... As violências dos acontecimentos
atuais – políticas, simbólicas, sociais – vez por outra nos
surpreendem com perdas, totalmente inesperadas – faz parte do
jogo, sabemos bem. Uma delas foi a de Ailton Pereira Rocha. Ailton
foi professor de inglês na Universidade Federal Fluminense. Mas o
conheci para além disso. Tive a alegria de demoradíssimas
conversas, em que se falava de tudo, regadas ao bom rock and roll,
que conhecia profundamente. Foi ele que me fez conhecer melhor
os Beatles – e isso, por si só, não é pouca coisa... Foi ele um dos que
despertou em mim certo interesse por pesquisa em História, e
acabou sendo um dos responsáveis por eu seguir os caminhos que
segui. Algumas vezes falou abertamente das minhas conquistas,
com orgulho. Gostava de comentar as minhas viagens pelo mundo.
Gostava de História, mas era também expert em textos literários.
Esse artigo tem um pouco de cada, a celebrar este nosso convívio, e
também tem muito da amizade que cultivamos por bem mais de
vinte anos. Nada mais justo que dedicar estas páginas a ele.

Machado de Assis. “A Cristã Nova”. In: NOVINSKY, Anita. O olhar judaico em


19

Machado de Assis. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1990.

CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS | 218


219 | CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS
ANGELO ADRIANO FARIA DE ASSIS

Possui graduação (Licenciatura e Bacharelado) em História pela


Universidade Federal Fluminense (1995), mestrado em História
pela Universidade Federal Fluminense (1998), doutorado em His-
tória pela Universidade Federal Fluminense (2004) e Pós-douto-
rado pela Universidade de Lisboa (2011) e pela Universidade de
Évora (2011). Atualmente é Professor Associado II da Universidade
Federal de Viçosa, onde atua na Graduação em História e como Pro-
fessor Permanente nos Programas de Pós-Graduação do Mestrado
Acadêmico em Letras e do Mestrado Profissional em Patrimônio
Cultural, Paisagens e Cidadania. É pesquisador da Cátedra de Estu-
dos Sefarditas "Alberto Benveniste" da Universidade de Lisboa. É
Avaliador do SINAES e da REDE Nacional de Ipfes (INEP-MEC).
Membro, a partir de 2017, da ABIL (Association of British and Irish
Lusitanists). Tem experiência na área de História, com ênfase em
História do Brasil Colônia, atuando principalmente nos seguintes
temas: Inquisição no Brasil; Inquisição no mundo ibérico e colonial;
religiões e religiosidades no mundo iberoamericano; criptojuda-
ísmo; cristãos-novos; ensino de história; literatura, história e me-
mória.

AUGUSTO RODRIGUES DA SILVA JÚNIOR

Professor Adjunto IV de Literatura Brasileira da Universidade de


Brasília. Estágio Pós-Doutoral (Bolsista CAPES/2014-2015) na Uni-
versidade do Minho - Departamento de Estudos Portugueses e Lu-
sófonos - Braga/Portugal. Doutor em Literatura Comparada pela
Universidade Federal Fluminense (2008). Mestrado e Graduação
pela Universidade Federal de Goiás (UFG/1996-2002). Desenvolve
trabalhos nas áreas de Literatura Comparada; Literatura e Outras
Artes; Tanatografia; Artes Ciências; Literatura de Campo; Estudos

CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS | 222


da performance; Tradução. Criador da Tanatografia atua com os
conceitos de Crítica Polifônica e Dialógica; Estética da criação cine-
matográfica; Tradução coletiva; Cinema literário; O Problema do
Hífen Colonial, Teatro de Terreiro, Cultura Popular Quilombola
(Regiões Centro-Oeste e Norte do Brasil). É tradutor de Paul Valéry,
Richard Schechner, Herman Melville, Stéphane Mallarmé (no
prelo). Consultor ad hoc / CAPES. Poeta e ensaísta, recebeu os se-
guintes Prêmios: Concurso de Poesia Fernando Mendes Vianna
(2009; A.N.E; Thesaurus); Concurso Nacional de Ensaio / Prêmio
Cassiano Nunes / Biblioteca Central - Universidade de Brasí-
lia/2011). Prêmio UnB de Dissertação e Tese 2015, Decanato de
Pesquisa e Pós-Graduação (DPP). Prêmio UnB de Dissertação e
Tese 2016, Decanato de Pesquisa e Pós-Graduação (DPP). Publicou
os seguintes livros de poesia: Niemar. Goiânia: Vieira, 2008; Onde
as ruas não têm nome. Brasília: Thesaurus, 2010 (Prêmio Fernando
Mendes Vianna); Do livro de Carne. Brasília: Thesaurus, 2011; Cen-
tésima Página: Lisboa, 2015. Em 2017 publicou o conto infanto-ju-
venil: Joãozinho e o pé-de-pequi (Tagore editora, Brasília).

DIANA GONZAGA PEREIRA

Mestre em Estudos Literários pela Universidade Federal de Viçosa


(UFV); Graduada em Letras pelas Faculdades Integradas de Cata-
guases - Grupo UNIS. Atuação na área de Letras como revisão edi-
torial e docência. Seus interesses abarcam a literatura, de maneira
geral, com ênfase em literatura angolana, espaço, identidade e me-
mória.

CAMILA GALVÃO DE SOUSA

Mestre em Letras - Estudos Literários pela Universidade Federal de

223 | CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS


Viçosa (UFV). Especialista em Gestão Educacional pela Universi-
dade Federal de Itajubá (UNIFEI). Licenciada em Letras (Língua
Portuguesa, Inglesa e suas respectivas literaturas) pelas Faculda-
des Integradas de Cataguases (Grupo UNIS). Tem experiência na
área de Letras, atuando, principalmente, em projetos editoriais, re-
visão textual e docência. Seus interesses perpassam a educação e a
literatura em geral, com ênfase nos seguintes temas de pesquisa:
ensino e tecnologias; ensino de língua portuguesa e literatura; lite-
ratura brasileira; literatura contemporânea; narrativa moderna; li-
teratura e sociedade.

ESTELA DA SILVA LEONARDO

Mestre em Letras - Estudos Literários pela Universidade Federal de


Viçosa. Licenciada em Letras pela mesma universidade. Tem expe-
riência na área de Letras, atuando, principalmente, em docência e
revisão de textos. Áreas de interesse em pesquisa: tecnologias da
informação e comunicação e educação, formação do leitor, litera-
tura e tecnologias da informação e comunicação, literatura e en-
sino, educação a distância; ensino de Língua Portuguesa

KATRÍCIA COSTA SILVA SOARES DE SOUZA AGUIAR

Doutoranda em Literatura pela Universidade de Brasília - UnB.


Mestre em Estudos Literários pela Universidade Federal de Viçosa
- UFV (2016). Especialista em Letras: Português e Literatura pela
Faculdade Internacional Signorelli, Rio de Janeiro (2014) e gradu-
ada em Letras: Língua Portuguesa e Literaturas pela Universidade
do Estado da Bahia-UNEB, Campus X - Teixeira de Freitas (2013).
Experiência na área de Língua Portuguesa e Literatura Brasileira,

CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS | 224


atuando, principalmente, nos seguintes temas: Literatura Brasi-
leira, Literatura Comparada, Literatura e História, Discurso Polifô-
nico, Representação literária da morte, Latim, Letramento e Produ-
ção de Textos.

LUCCA DE RESENDE NOGUEIRA TARTAGLIA

Doutorando em Letras Vernáculas pela Universidade Federal do


Rio de Janeiro (UFRJ), possui mestrado em Letras (Estudos Literá-
rios) pelo programa de pós-graduação da Universidade Federal de
Viçosa (2014) e graduação em Letras (Língua Portuguesa / Litera-
turas de Língua Portuguesa) pela mesma instituição (2013). É cola-
borador, como membro estudante, do Núcleo de Estudos Portugue-
ses (NEP) - atuando na linha de pesquisa Literatura, Cultura e Soci-
edade - e, como pesquisador, no grupo Formação de Professores de
Línguas e Literatura (FORPROLL), na linha de pesquisa Estudos de
cultura, linguagens e suas manifestações, ambos vinculados ao
CNPq. Em 2013, integrou a Comissão Organizadora do II Simpósio
Internacional de Literatura, Cultura e Sociedade (SILICS), realizado
em parceria com a Universidade de Coimbra (Portugal). Como co-
organizador, em 2014, promoveu o I Colóquio Internacional de Li-
teratura Ibero-americana (CILIBAM), colaborando, em 2015, para
a edição e publicação do livro Escrever, editar, publicar e ler / Es-
cribir, editar, publicar y leer, assim como para a organização do
evento 4uatro por 4uatro - onde doze minicursos foram oferecidos,
sendo seis na área de Literatura e seis na área de Linguística, con-
templando, assim, todas as especialidades do PPG Letras da UFV.
Além disso, é co-editor e colaborador da revista Contemporartes
(ISSN:2177-4404). Tem experiência na área de Letras, com ênfase
em Literatura Portuguesa e Brasileira, atuando principalmente nos

225 | CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS


seguintes temas: Literatura e Sagrado, Literatura Comparada, Lite-
ratura Moderna e Contemporânea, Teoria da literatura, Formação
de Leitores e Literatura Ibero-americana.

REGINA COSTA NUNES ANDRADE

Pós-graduada em Letras - Estudos Literários, pela Universidade Fe-


deral de Viçosa, ano 2015-2017. Pós-Graduada (especialização) em
Metodologias de Ensino de Língua Portuguesa e Literatura (2014),
pela UNIASSELVI. Graduada em Letras - Língua Portuguesa, pela
Universidade Federal do Pará (2012). É servidora efetiva no Insti-
tuto Federal do Pará/Câmpus Industrial de Marabá, cargo de Assis-
tente em Administração, onde desenvolve suas atividades junto à
Diretoria de Ensino, Pesquisa e Extensão. Atuou na Secretaria Aca-
dêmica, Chefia de Gabinete (substituta), Chefe da Secretaria Acadê-
mica (substituta) e como chefe titular do Departamento de Integra-
ção Instituto-Empresa (DIIE). Tem experiência como professora de
Língua Portuguesa, pelo PRONATEC, e como professora auxiliar
(estágio não obrigatório).

ROBERTA GUIMARÃES FRANCO

Possui graduação (2006) em Letras (Português/Literaturas) pela


Universidade Federal Fluminense (2006), mestrado em Estudos
Literários (subárea - &quot;Literatura Portuguesa e Literaturas
Africanas de Língua Portuguesa&quot;) pela Universidade Federal
Fluminense (2008) e doutorado em Literatura Comparada na
Universidade Federal Fluminense (2013). Atualmente é Professora
Adjunta da Universidade Federal de Lavras-MG, onde atua na
graduação do Curso de Letras (Departamento de Estudos da
Linguagem - DEL). Tem experiência na área de Literatura

CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS | 226


Comparada, com ênfase nas relações entre Literatura, História e
Memória nas Literaturas de Língua Portuguesa, especialmente nas
Literaturas Portuguesa, Angolana e Moçambicana.

ROSIE MEHOUDAR

Possui graduação em Letras/Português pela Universidade de São


Paulo (1987), especialização em Fundamentos filosóficos da psico-
logia e psicanálise (Filosofia) pela Universidade Estadual de Cam-
pinas (1991), mestrado em Letras (Teoria Literária e Literatura
Comparada) pela Universidade de São Paulo (1999), doutorado em
Letras (Literatura Francesa) pela Universidade de São Paulo
(2004), pós-doutorado em Letras (Crítica Genética) pela Universi-
dade de São Paulo (2010) e no Instituto de Estudos da Linguagem
(IEL), na UNICAMP (2016). Experiência docente em Língua Portu-
guesa (desde 1979) para o Ensino Fundamental, Médio, Universitá-
rio, e em Língua e Literatura Francesa (desde 2010).

227 | CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS


CADERNO DE ESTUDOS LITERÁRIOS | 228
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ama,2017.
© Todososa
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2017.

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