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T rês e n s a io s d e
LITERATURA MEDIEVAL
GALEGO-PORTUGUESA
Sociedade Brasileira
de Língua e Literatura
A Z E V E D O F IL H O , L eodegário A. de
T rês en sa io s de lite ra tu ra m edieval g a le g o -p o rtu g u e s a /
L eo d e g á rio A. de A z e v e d o F ilho
72 p á g in a s - R io de Ja n e iro , ju n h o de 2000
T R Ê S E N S A IO S D E L IT E R A T U R A
M E D IE V A L G A L E G O -P O R T U G U E S A
P ara
P rólogo....................................................................................... 7
B ibliografia básica...............................................................57
7
L eodegário A. de A zevedo F ilho T rês ensaios de literatura medieval galego - portuguesa
CV = Cancioneiro da Vaticana. Trata-se do códice 4803 ou de donzela, próprios da lírica medieval galego-portuguesa, foram
da Biblioteca Vaticana, copiado na Itália em fins do século XV ou importadas da lírica occitânica as cantigas de amor, havendo
princípios do século XVI. Entre as suas 1205 cantigas, há compo inclusive interpenetração entre os dois gêneros, conforme ensina o
sições de todos os gêneros. tratado métrico fragm entário que precede o Cancioneiro da
CBN = Cancioneiro da Biblioteca Nacional, de Lisboa, antigo Biblioteca Nacional, de Lisboa. Além desses dois gêneros,
Colocci-Brancuti, copiado na Itália em fins do século XV ou distinguindo-se um do outro pela voz feminina ou masculina que
princípios do século XVI. Descoberto em 1878 na biblioteca do primeiro fala, há as cantigas de escárnio, que dizem mal de alguém
Conde Paulo Brancuti do Cagli, em Ancona, foi adquirido pela veladamente, e as cantigas de maldizer, que dizem mal de alguém
Biblioteca Nacional, de Lisboa, onde se encontra desde 1924. En abertam ente. Tais cantigas podem ser ainda de refrão (com
tre as suas 1664 cantigas, há composições de todos os gêneros. estribilho) ou de meestria (sem estribilho).
M = Apógrafo seiscentista de uma tenção entre Afonso Sanches Sobre as origens dessa poesia lírica, não tem havido acordo
e Vasco Martins de Resende (= CV 27 - CBN 416), que vem à entre os especialistas, nem vamos entrar aqui na longa discussão
folha 25-rda miscelânea Cc 99 da Biblioteca Nacional, de Madri. do problema, muito bem estudado por A. J. da Costa Pimpão, no
P = Outro apógrafo seiscentista da tenção supra, encontrado livro História da literatura portuguesa - Idade Média. Coimbra,
na miscelânea MS 4 19 (= n° 72 da Coleção Azevedo) da Bibliote Atlântida, 1959, p. 146; e por M. Rodrigues Lapa, no livro Das
ca Municipal, do Porto. origens da poesia lírica em Portugal na Ulade Média. Lisboa,
PV = Pergaminho Vindel, copiado na Galiza em fins do século Seara Nova, 1929 e, tam bém , no livro Lições de literatura
XIII ou princípios do século XIV. Trata-se das sete cantigas de portuguesa: época medieval, 4a ed. Coimbra Editora, 1956. Em
Martin Codax (= CV 884 - 890 - CBN 1278 -1 2 8 4 ), seis delas resumo, o que se pode dizer é que as diferentes teses existentes (a
acompanhadas de notação musical. Foi descoberto em 1914 pelo arábica, a clássica, a folclórica e a latino-litúrgica) não explicam
livreiro-antiquário espanhol Pedro Vindel. pacificamente a intrincada questão, pelo menos de m odo único.
V.a = Cópias de princípios do século XVI de cinco lais que Em conclusão, a poesia dos trovadores galego-portugueses
também se encontram no CBN. Fazem parte do Cod. Lat. e 7182 se estende, como no início assinalamos, do século XII, quando foi
da Biblioteca Vaticana. fundada a nacionalidade portuguesa, até a primeira metade do século
E = Códice j. b. 2 da Biblioteca do Escoriai. Trata-se do mais XIV. Após a morte de D. Dinis, em 1325, a lírica trovadoresca
completo dos manuscritos das Cantigas de Santa Maria. Além do entrou em declínio. Na realidade, depois do desaparecimento do
texto poético, traz notação musical das cantigas e miniaturas. rei-trovador, em matéria de poesia, o que nos resta é o Cancioneiro
F = Códice II, 1,213 da Biblioteca de Florença, sem qualquer Geral, de Garcia de Resende, com as suas composições coligidas
notação musical. de 1511 a 1516, embora muitas sejam de data anterior. Há, por
T = Códice da Biblioteca do Escoriai. Apresenta notação tanto, do lirismo trovadoresco ao Cancioneiro Geral, mais ou
musical e miniaturas. menos um século de poesia portuguesa que jamais foi recolhida
Tol. = Códice chamado toledano, por ter sido encontrado na por nenhum copista ou que então se encontra perdida. E o chamado
Biblioteca Capitular de Toledo. Atualmente pertence ü Biblioteca século sem poesia, pois os livros de Trovas de D. Afonso ou de El-
Nacional de Madri, onde está classificado sob o número 10069. Rei, que existiam na biblioteca de D. Duarte, bem assim o livro de
Não apresenta miniaturas. Trovas de D. Dinis, desapareceram. Indiretamente, para o estudo
Sobre as diferentes edições de textos medievais portugueses, desse período, recorre-se ao Cancioneiro de Baena, entre outras
além da bibliografia de Silvio Pellegrini (Repertório bibliográfico fontes castelhanas.
delta prima lirica portoghese, M odena, 1939), consultar: Neste pequeno volume, reunimos apenas três ensaios ligados
Bibliografia de textos medievais portugueses, de Maria Adelaide ao tema, procurando valorizar tais estudos universitários, além de
Valle Cintra. Lisboa, 1960. publicar integralmente os textos de dois grandes jograis galego-
Quaiito aos gêneros cultivados, além dos cantares de amigo portugueses, que são Pero Meogo e Martin Codax. No fim do
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volume, a bibliografia apresentada é apenas básica, pois se trata
de matéria altamente especializada e que envolve centenas de livros
e artigos publicados em revistas nacionais e estrangeiras, como se
pode ver no grande Dicionário dei literatura medieval galega e
portuguesa , organização e coordenação de Giulia Lanciani e
Giuseppe Tavani. Lisboa, Caminho, 1993.
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exceção, pois é de São Paulo e não do Rio de Janeiro, é nome que Janeiro, Gernasa, 1974, primeira edição; Rio de Janeiro, Tempo Bra
não pode ser esquecido, quando se trata de edições de textos sileiro, INL, 1981, segunda edição; e a terceira edição em Santiago
medievais galego-portugueses. Titular da USP, já em 1964 fundava de Compostela, Laiovento, 1995); o volume I da História da literatu
a Revista Camoniana, hoje em sua segunda série. A sua tese de ra portuguesa dedicado exatamente à Poesia dos trovadores ga
doutoramento versou sobre os Fenômenos formais da poesia lego-portugueses (Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro/EDUFAL,
primitiva (1950) e a sua tese de Docência Livre tratou da Tópica 1983); Iniciação em crítica textual (Rio de Janeiro, Presença/EDUSP,
no lirismo galego-português (1956), sendo publicada com o se 1987), onde também tratamos da edição crítica de textos medievais;
guinte título: Do formalismo estético trovadoresco (São Paulo, Anchieta, A Idade Média e o Barroco (Rio de Janeiro, Gernasa,
USP, 1966). Eis a relação de outras obras de sua autoria: Introdu 1966); “Structure et rythme du vers décassy llabe chez D. Joan Garcia
ção à poética clássica (São Paulo, FTD, 1967); Manual de de Guilhade, troubadour do XIII siècle” (Paris, Romania, 89 (3):
versificação românica medieval (Rio de Janeiro, Gernasa, 1971); 289 - 312, 1968) ; A técnica do verso em português (Rio de Janeiro,
A lírica trovadoresco, 2a ed. (Rio de Janeiro, Grifo, 1972); Intro Acadêmica, 1971); e “O poema musical de Codax como narrativa”,
dução à edótica, 2a ed., revista e atualizada (São Paulo, Ars Poé- in: Uma visão brasileira da literatura portuguesa (Coimbra,
tica/EDUSP, 1994); Obras-primas do teatro vicentino, 3a ed. (São Almedina, 1973). A propósito da coleção Oskar Nobiling, além da
Paulo, Difel, 1980); Da Idade Média e outras Ulades (São Paulo, nossa edição de As cantigas Pero Meogo, já aqui referida, e da
Conselho Estadual de Cultura, 1964); Iniciação na cultura literária edição de Av cantigas de Pero Mafaldo, de Segismundo Spina,
medieval (Rio de Janeiro, Grifo, 1973); Na madrugada dasformas também já citada aqui, convém fazer referência ao volume de As
poéticas (São Paulo, Atica, 1982); e A Tuba de Calíope (São cantigas de Pero de Veer, obra infelizmente inconclusa com o
Paulo, Brasiliense/EDUSP, 1988), entre outros estudos esparsos, lamentável falecimento do grande lingüista e filólogo brasileiro
como se pode ver na miscelânea Para Segismundo Spina, relação professor Sílvio Elia, editor de Av poesias de Anchieta em português
de “Trabalhos publicados”, pp. 288 - 291. E deixamos para o fim (Rio de Janeiro, Antares/INL, 1983), em colaboração conosco.
a referência à sua edição crítica publicada na Coleção Oskar Outro nome de extraordinário mérito filológico é o do Prof.
Nobiling com o título As Cantigas de Pero Mafaldo (Rio de Janei Serafim da Silva Neto, o grande autor da História da língua
ro, Tempo Brasileiro, 1983), a convite nosso. portuguesa, com segunda edição aum entada em 1970, onde
Emmanuel Pereira Filho, precursor da nova metodologia longamente estuda a língua em seu período medieval. A ele devemos
crítica para os estudos relacionados com a lírica de Camões, o excelente volume de Textos medievais portugueses e seus
infelizmente, não se dedicou a edições críticas de autores medievais. problemas (Rio de Janeiro, Casa de Rui Barbosa, 1956); A santa
Mas, como teórico de crítica textual, o seu nome tem que ser vida e religiosa conversão de Frei Pedro, de André de Resende
lembrado aqui, necessariamente. Dele é o Tratado da província (Rio de Janeiro, Dois Mundos, 1947); a Bíblia Medieval Portuguesa
do Brasil, em primorosa edição da obra de Pero de Magalhães de (Rio de Janeiro, MEC/INL, 1958); “A mais antiga versão conhecida
Gândavo (Rio de Janeiro, MEC/INL, 1965); e o livro de publicação da Regra de São Bento” ( Revista Brasileira de Filologia, volume
póstuma, em que procuramos reunir a sua obra esparsa, com o 5, tomos I - II, Rio de Janeiro, Acadêmica, 1959/60, pp. 21 - 46; e
título de Estudos de crítica textual (Rio de Janeiro, Gernasa, 1972). Diálogos de São Gregário (Coimbra, Atlântida, 1950). O restan
Ainda de publicação póstuma: A y Rimas de Camões (Rio de Ja te de sua monumental obra pode ser visto no volume de Estudos
neiro, Aguilar/MEC/INL, 1974); e Uma forma provençalesca na Filológicos, miscelânea de ensaios publicada em sua homenagem,
lírica de Camões, sua Tese de Docência Livre, que a morte pre sob a nossa organização (Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1967).
matura o impediu de defender. (Rio de Janeiro. Gernasa. 1974). A professora Cleonice Berardinelli. que editou o livro Cantigas
Em seguida, pedimos licença para dizer do nosso próprio de trovadores medievais em português moderno (Rio de Janeiro,
interesse pelas edições críticas de trovadores medievais galego- Organização Simões, 1953), e também o Auto de Antônio Ribeiro
portugueses, já que nos coube criar a Coleção Oskar Nobiling, Chiado, edição crítica com introdução e notas, volume I, em
com a publicação do livro Av Cantigas de Pero Meogo (Rio de colaboração com Ronaldo Menegaz (Rio de Janeiro, INL. 1968),
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além do ensaio “As cantigas de amigo de Bernal Bonaval”, texto com vários volumes já publicados pela Imprensa Nacional - Casa
inserido no livro Estudos de literatura portuguesa (Lisboa, IN-CM, da Moeda, de Lisboa, e ainda não chegamos ao fim.
1985), no que se refere à critica textual e a obras de erudição, tem-se Em suma, se tais notas ou achegas aqui reunidas, de algum
dedicado mais ao estudo de autores pré-clássicos ou de transição modo, forem úteis aos estudiosos da matéria, já daremos por
entre a Idade Média e o Renascimento, como é o caso de Gil Vicente recompensado o nosso trabalho. E que outros especialistas também
e de sua escola, ver Auto de Vicente Aries Joeira (1963), além da sua se dediquem ao assunto, percorrendo todos os Estados do Brasil,
edição dos Sonetos de Camões (Lisboa/Paris, Centre Culturel para que se possa traçar, um dia, a história - até aqui tão pouco
Portugais, em convênio com a Fundação Casa de Rui Barbosa, 1980). conhecida! - da crítica textual brasileira, não apenas no que se
A sua considerável obra voltada para a literatura portuguesa, em refere a autores do português arcaico e do português médio, mas
especial a sua edição de textos de Fernando Pessoa, como membro também a escritores do século XVI ao século XX. E há aqui, como
integrante da “Equipa Pessoa”, pode ser apreciada no livro Cleonice, vêem, trabalho para meio mundo...
clara em sua geração, miscelânea de estudos que lhe foi dedicada
em 1995 pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Outros especialistas em crítica textual, militantes no Rio de
Janeiro, não se voltaram propriamente para a literatura medieval,
a despeito da importância da obra de cada um deles. Como exem
plo, citamos o nome de Antônio José Chediak, editor de Carlos de
Laet e grande estudioso do texto poético de Castro Alves ( Tragé
dia no mar, o navio negreiro. Rio de Janeiro, ABL, 2000); de
Maximiano de Carvalho e Silva, voltado para a edição crítica de
autores do século XIX; Darcy Damasceno, zeloso da obra de Ce
cília Meireles e editor de Martins Pena e de José de Alencar; Adriano
da Gama Kury, autor de uma excelente edição dos Últimos sone
tos, de Cruz e Sousa, além de outras obras igualmente importan
tes; e, sem esgotar a exemplificação, Gladstone Chaves de Melo,
outro experto em crítica textual, voltando o seu interesse para obras
do século XIX em particular, como as de José de Alencar e as de
Camilo Castelo Branco.
Tais achegas, bem o sabemos, não são completas, nem se
propuseram a isso. Há, no Rio de Janeiro, sobretudo no seio das
gerações posteriores à nossa, jovens professores que se dedicam
seriamente a estudos ecdóticos, como é o caso do professor José
Pereira da Silva, investigador dos códices em que se conservam os
textos atribuídos a Gregório de Matos. Há ainda os professores Ál
varo de Sá e Marina Machado Rodrigues, que se vêm especializan
do na apuração dos textos líricos de Camões. Aliás, na poesia lírica
de Camões e de Gregório de Matos, sabemos todos, estão os dois
maiores problemas ecdóticos da língua portuguesa de todos os tem
pos. E bem podemos compreender a tarefa que esses professores
têm à sua frente, pois há algumas décadas nos dedicamos, a bem
dizer diuturnamente, à edição crítica dos textos líricos de Camões,
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U m a leitura
de Pero Meogo
N ã o apenas agradeço o honroso convite que me trouxe mais
uma vez - e já são tantas - a São Paulo, para participar do I
Encontro Internacional de Estudos Medievais, mas sobretudo
cumprimento a USP, a UNICAMP e a UNESP pela feliz iniciativa;
e digo feliz porque o Encontro se volta para a Idade Média, e todos
sabemos que a herança medieval está viva nas origens da própria
C u ltu ra B rasileira. A lém d isso, en tre as esp e cializaç õ es
universitárias que exigem ampla bibliografia e grande lastro de
erudição, logo aparece a literatura dos trovadores galego-
portugueses, irradiada da Galiza para o mundo românico, como
procuramos indicar em pequeno volume específico sobre o assunto,
publicado em 1983, pela Editora Tempo Brasileiro, em convênio
com a Universidade Federal de Alagoas. Ainda nesse sentido, peço
licença para lembrar que a Sociedade Brasileira de Língua e
Literatura, entidade cultural a que tenho a honra de presidir, instituiu
a medalha Oskar Nobiling, como símbolo da própria Coleção Oskar
Nobiling, especificamente destinada à publicação de edições críti
cas de trovadores galego-portugueses, por essa Coleção já tendo
sido publicado, além do livro de minha autoria As Cantigas de
Pero Meogo ( I a edição, G ernasa, 1974; 2a edição, Tem po
Brasileiro, 1981 e 3a edição, 1995, pela Laiovento, na Galiza), a
edição crítica de As Cantigas de Pero Mafaldo (1983) pelo
competente medievalista brasileiro, que é o Prof. Dr. Segismundo
Spina, Titular da USP. Em preparo, e já com dois capítulos
publicados, um na miscelânea Harry Meyer e outro na miscelânea
Celso Cunha, será de justiça mencionar agora a edição crítica de
As Cantigas de Pero de Veer, também para a coleção Oskar
Nobiling, de autoria do eminente lingiiista e filólogo brasileiro,
que foi o professor Dr. Sílvio Elia. E como estamos num Encontro
voltado para estudos medievais, parece-me ainda de elementar jus
tiça uma m enção ao lexicógrafo brasileiro Antônio Geraldo da
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Cunha, pesquisador da Fundação Casa de Rui Barbosa, já com três puro - a época era de gestação de formas - não raro apresentando
volumes publicados do seu índice do Vocabulário do Português caráter narrativo, quando não dramático, associando-se ainda ao
Medieval, indo até a letra D, devendo o resto da obra a ocupar mais canto e à música. Tal é o caso das 9 (nove) cantigas de Pero Meogo,
de 4 (quatro) volumes. Por fim, entre outras, caberia ainda uma porque nelas se integram e se relacionam os quatro elementos
referência à publicação de textos medievais pela UNESP, campus próprios do gênero narrativo, que são: personagens, tempo, ação e
de Araraquara, sob a presidência de Carlos Alberto lannone, se espaço. Aqui, é claro, resisto firmemente à tentação de falar sobre
guindo a metodologia da Coleção professor Oskar Nobiling. isso, pois ocuparia muito tempo. E passo, assim, a considerar o
Quanto à escolha do nome de Oskar Nobiling para a nossa tem a próprio desta palestra, a partir m esm o da conhecida
Coleção de edições críticas de textos medievais, bem se sabe que, observação de que a linguagem poética medieval, de algum modo,
no Brasil, sem considerar algumas experiências anteriores, em geral apresentava o predomínio do símbolo sobre o signo, ao contrário
levadas a termo por historiadores, como foi o caso de Adolfo do português moderno, quando então o signo passou a predominar
Vamhagen, quem deu início à publicação realmente científica de sobre o símbolo, ao menos na visão de Julia Kristeva1. Vejamos,
textos da lírica medieval galego-portuguesa foi o professor Oskar pois, os símbolos que, reiteradamente, aparecem no conjunto de
Nobiling (Hamburgo, 1865 - Bonn, 1912). Naturalizado brasilei cantares m edievais do jogral aqui escolhido para estudo e
ro, no ano de 1894 exerceu o magistério aqui mesmo em São Pau exemplificação:
lo, no ginásio do Estado, depois denominado Colégio Roosevelt.
Doutorou-se pela Universidade de Bonn, no ano de 1907, com a a) A fonte como símbolo
conhecida tese As Cantigas de D. Joan Garcia de Guilhade,
publicada em Erlangen, na mesma data. A tese foi escrita no Bra A fonte é o cenário condutor da narrativa, o lugar do encontro
sil, com imensas dificuldades bibliográficas, como ele próprio o amoroso. Aliás, a entrevista na fonte, onde os namorados se
declara na apresentação do volume. Apesar disso, o trabalho atin encontram, constitui um tópico literário que vem da Idade Média
giu alto nível universitário, tendo mesmo servido de modelo a tudo aos nossos dias, pelo menos na canção popular. Alfred Jeanroy
de bom que, no mesmo gênero, aqui se publicou depois dele, a (ORIGINES) tratou do tema em relação à canção francesa (que
exemplo das admiráveis edições - sobretudo As cantigas de Martin ele julgou motivadora da cantiga galego-portuguesa). No caso, a
Codax, 1956 - do grande medievalista brasileiro, que foi o profes jovem, pela manhã, levanta e vai à fonte lavar roupas ou buscar
sor Dr. Celso Cunha. Faleceu Oskar Nobiling em plena maturida água. Nas cantigas de Pero Meogo, como sabemos, a namorada
de, com apenas 47 anos e com cerca de 17 estudos filológicos vai à fonte para lavar os seus cabelos (garcetas) e uni-los com fios
publicados, como indiquei na minha edição de Pero Meogo. Entre de ouro, numa espécie de ritual amoroso. Naquela, o fim é utilitário,
esses estudos, um magnífico ensaio sobre as vogais nasais em enquanto nesta o fim é poético. Aliás, outros trovadores galego-
português, escrito em alemão, mas já traduzido para a nossa língua portugueses, poeticamente, recorreram ao tema, além do conhecido
e publicado na revista ZA/era, 4( 12): 8 0 - 109. 1974, sob a direção exemplo deD .D inis:
de Evanildo Bechara.
Após a breve e necessária - ainda que incompleta - introdução Fuy eu, madre, lavar meus cabelos
que acabo de ler. volto o meu interesse para o tema específico a la fonte e paguey-me eu d’elos
desta exposição, que é a proposição de uma leitura simbólica para e de mi, louçana.
as cantigas de am igo - ou de donzela, se preferirem - do
extraordinário jogral galego-português. que foi Pero Meogo, para (Joan Soares Coelho, CV -291; CBN - 689)
alguns especialistas Pero Móogo. A propósito, sugiro a leitura de
excelente verbete publicado no Dicionário de Giulia Lanciani e A coincidência temática entre o cantar de amigo galego-por
G. Tavani, onde se adota a forma Meogo e não Móogo. tuguês e a canção francesa ainda inclui o dado de que a jovem se
Sabe-se que a cantiga de amigo não pertence ao gênero lírico demorou na fonte, sendo então admoestada pela mãe. As razões da
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demora também são idênticas, havendo apenas a substituição do Método que permitiría demonstrai- que la pintura de Gioto
cervo pelo rouxinol. Tudo isso levou Jeanroy (ORIGINES) a indi precedió a la de sus antecessores bizantinos o que las
car, como modelo da cantiga galego-poituguesa, perdidas poesias prosificaciones de novelas caballerescas son anteriores a los
franceses, cuja tradição se estendeu até o século XVI. quando en poemas, (op. cit. p. 55).
tão começaram a ser recolhidas por músicos e folcloristas.
Eis a canção citada por Jeanroy (op. cit. p. 201): Na verdade, a canção francesa, que Jeanroy (ORIGINES)
aponta como modelo de cantigas galego-poituguesas, como no caso
Par un matin la belle s 'est levée das de Pero Meogo, colocadas lado a lado, apenas revela que
A prins son scan, du lin du lé, du long de 1’eau estamos diante de cantigas de fonte, como qualquer outra (em âmbito
A prins son seau, à 1’eaii s'en est allée românico) que apresente o encontro de namorados na fonte. Nada
Lei son amy si luy a recontrée mais que isso, pois se perde na noite dos tempos a origem do tema,
Deux ou troisfois sur Vherbe l'a jetée. que Lewis (PMLA) faz remontar aos evangelhos apócrifos, onde
Pucelle estoit, grosse Pa relevée: se lê que a Virgem M aria foi à fonte e lá recebeu a visita do anjo da
- "Hélas, mon Dieu, que dira ma nière?” Anunciação. Frágil e arbitrária, conseqüentemente, é a tese do
- “Vous lui direz: La fontaine est troublée, romanista francês.
Le rossignol a sa queue mouilée,
Mas voltemos ao confronto das cantigas, a francesa com as
- “Maudit soit-il qui ni’a tant abusée.
N ’eust esté lui, jefusse mariée! ” de Pero Meogo. Desde logo, a linguagem da canção francesa, em
relação à linguagem do jogral galego-português, revela o seu
racionalismo pouco poético ou pouco criador. Com efeito, enquanto
(Chanson nouvelles ou airs de Jean Planson; à la
a linguagem de Pero Meogo é uma linguagem rica de sugestões, de
suite de Recueil des chansons cimoureuses de divers
símbolos e de ambiguidades, a linguagem da canção francesa ape
poetes françoises non encore imprimées. Paris, N. Et
nas mostra um a cena realista e vulgar de sedução, com pormeno
p. Bonfons, in - 12, 1597 - Réimp. Par Rolland, II, 129).
res de extrema redundância. Queremos dizer: a canção francesa,
exatamente a que Jeanroy (ORIGINES) considerou mais clara e
De início, como já assinalou Eugênio Asensio (PRC), no que
mais completa, reveste-se de comovente pobreza do ponto de vista
foi apoiado por Méndez Ferrín (OCPM), é arriscado e arbitrário
da linguagem poética. Nela, a tradição dos símbolos literários
recorrer a uma canção impressa em 1597, ainda que ela venha de
privilegiou o espírito racionalista ou lógico, em flagrante prejuízo
longa tradição oral, para explicar uma cantiga do século XIII. Como
da qualidade poética do texto. Em Pero Meogo, exatamente ao
é evidente, o contrário é que poderia ser admissível. Mas Jeanroy
contrário, o privilégio do poético resulta da própria ambiguidade
(ORIGINES) vai além, recorrendo à identidade de temas das
do texto e dos símbolos nele introduzidos. Nesse sentido, até parece
composições, sem deixar de indicar a substituição do rouxinol pelo
cervo. Claro está que ninguém pode afirmar, com absoluta que a canção francesa é mera e simples tradução racional dos
cantares galego-portugueses, desfazendo-se assim a suposta e
segurança, que tivesse sido ou não do conhecimento de Pero Meogo
estranha influência... No caso, o inverso é que seria admissível.
a canção francesa, em suas origens remotas. Mas o que se pode
Sobre as origens remotas do tema da fonte, lembra Méndez
dizer, do ponto de vista literário, é que a linguagem poética do
Ferrín (OCPM) que, na época pagã, era costume render-se culto
jogral galego-português é superior à linguagem da canção france
às fontes, através de oferendas de pão e vinho, em relação mais ou
sa. Com efeito, a última apresenta apenas uma cena de sedução
menos vaga com os ritos de fecundidade. Eugênio Asensio (PRC),
com traços de minucioso realismo. Não obstante, Jeanroy (ORI
bem antes, já indicava que a fonte é um símbolo complexo de
GINES) pensa que a canção francesa, mais clara e racional, seja
sugestões, entre as quais a idéia de renovação e fecundidade. Ainda
anterior à cantiga galego-portuguesa, que é mais ambígua e suges
hoje, aliás, são comuns as referências ao tema: a fonte mágica, a
tiva em sua linguagem. A propósito, observa Eugênio Asensio:
fonte do amor, a fonte da juventude, a fonte da vida... Por isso.
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lembra ainda Méndez Ferrín (OCPM) não ser estranho que a E antes, 2,7:
influência religiosa da Idade Média tratasse de imprimir caráter
cristão ao mito pré-cristão. A Bíblia, como se sabe, em particular Conjuno-vos. ó filhas cie Jerusalém pelas gazelas e cer
nos Salmos e Provérbios, está repleta de símbolos ligados à fonte. ras do campo, que não acordeis nem desperteis o amor, até
A ssim , é p erfeitam en te provável que tenha havido um a que este o queira.
interpenetração semântica entre o conteúdo pagão e o conteúdo
cristão da visão da fonte como origem da vida ou símbolo de Por isso Méndez Ferrín (OCPM) afirma que:
fecundidade. Ou seja: a influência cristã ou bíblica teria,
espiritualmente, redimensionado o mito pagão da fonte, envolvendo ...a comparación do ceiro ao amante é común coa literatura
todos os seus ritos relacionados com o tema da fecundidade. bíblica e que a imaxe da ferida pra simbolizar os males do
amor ten un grande desenrolo eu toda a literatura europea
Mas aqui não se esgota o assunto, pois não é meu propósito
(op. cit. p. 59).
descrever a história do mito. O que foi dito, entretanto, é mais do
que suficiente para a sua compreensão nas cantigas de Pero Meogo.
Na verdade, nas cantigas de Pero Meogo, a imagem do cervo,
Daí a feliz lembrança de Méndez Ferrín (OCPM), retomada por
com todas as suas conotações e policonotações de sexualidade, é um
nós, quando cita São João da Cruz e as origens da sua fonte, que
símbolo que ora substitui o namorado, ora sugere sua presença.
são também as origens da fonte do jogral galego-português: Su
Mas nos parece pouco feliz a tentativa de Filgueira Valverde
origen no lo sé, pites no lo tiene.
(PCV), a partir da insistência da junção de dois elementos (cervo e
Afinal o que importa é a consideração de que, na linguagem
fonte) em querer ligar o tema à influência do Salmo II, 42.1 (A alma
poética de Pero Meogo, a exegese ou hermenêutica é simbólica.
anela por Deus). A nosso ver, o referido Salmo não pode ser a fonte
Uma leitura presa ao nível literal do texto, em posição filológica
literária do tema, por ter caráter apenas místico: “Como deseja o
rígida, seria de todo desastrosa. Ao nível do símbolo é que as cantigas
cervo a água da fonte, assim deseja a minha alma a ti. Deus” . Ora,
devem ser lidas, em toda a sua riqueza de sugestões poéticas, para
nas cantigas de Pero Meogo, o símbolo não esconde as suas conexões
que se nos revele a verdadeira dimensão artística do jogral.
pagãs, opondo-se assim ao sentimento religioso e puro de anseio da
alma por Deus. Se há influência bíblica na constituição do símbolo,
b) O símbolo do cervo
esta se encontra, como acima indicamos, no Cântico dos Cânticos
cio Rei Salomão. Aubrey Bell (MLR) apesar de sua explicação
A imagem do cervo, como símbolo de sexualidade viril, tanto
unilateral ou apenas religiosa, de há muito havia defendido essa tese.
se encontra na mais remota tradição pagã, como na própria Bíblia.
Ainda assim, tal influência naturalmente se mesclou com a própria
Menéndez Pelayo (HHE), a propósito, lembra o perdido opúsculo
tradição pré-cristã ou pagã na Península Ibérica. Por isso, afirma
de São Paciano, Bispo de Barcelona, intitulado Kerhos ou Cerros,
Eugênio Asensio: “El ciervo, símbolo fálico, pertenence a la más
onde era combatido ou costume pagão de se disfarçarem os jovens
típica herencia dei paganismo hispânico", (op. cit. p. 56). Na verda
com máscaras de cervos nas Kalendas de janeiro, para cometerem
de, portanto, a mais remota origem do símbolo se perde na noite dos
excessos de ordem sexual. Essa tradição pré-cristã, possivelmente,
tempos... E o que interessa, para explicar o mito na linguagem poética
mesclou-se com a própria tradição bíblica, redimensionando-se,
do jogral galego-português, é a compreensão de que o cervo simbo
em sentido espiritual, o símbolo do cervo.
liza a sexualidade masculina, ao contrário do sentido que hoje tem,
Com efeito, nos Contares de Salomão, 2, 8-9, lê-se:
mesclando-se a tradição pagã com a tradição cristã. Assim, ora su
gere a presença do namorado, ora se identifica com ele.
O meu amado é semelhante ao gamo, ou ao filho da
gazela; eis que está detrás da nossa parede, olhando pelas
janelas, espreitando pelas grades. c) O símbolo do brial rasgado
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dade, nada mais é que um antigo tópico literário, popular e uni e) Garcetas
versal, como indica Méndez Ferrín (OCPM). Não se trata, por
tanto, de nenhuma criação de Pero Meogo. A ruptura do vestido As garcetas (madeixas de cabelo) são um símbolo de virginda
ou túnica medieval sugere, na própria ação de romper, a perda de. Nas cantigas de Pero Meogo, há duas ações que se incluem no
da virgindade. E a imagem do cervo, evidentemente, simboliza o mesmo campo semântico: volver a água pelo cervo e lavar as garcetas.
agente da ação. Assim, a mesma água que o cervo bebe antes lavou os cabelos da
O brial (vestido ou túnica medieval) era de uso pouco aperta namorada, numa clara sugestão de intimidade amorosa.
do, pois, do contrário, seria indecente para o código moral da épo A ação se passa num ambiente primitivo e rural em que a
ca. Por isso, o seu rompimento é simbólico. O cervo que volve a fonte é o centro polarizador da narrativa. Em tomo dela, o ambiente
água sugere uma ação de sexualidade viril, em relação à namorada é todo natural, com cervos e cervas sobre prados, nada havendo aí
que lava os cabelos (as garcetas são um símbolo de virgindade), de artificial, pois é pleno o contacto com a natureza. As próprias
volvendo a mesma água. A sexualidade feminina é fecundada pela imagens poéticas sugerem a presença de monteiros, guardas-da-
sexualidade masculina. Motivado por esse símile, o dado realista mata ou caçadores. A fonte está no centro de tudo isso, como cenário
(rompimento do brial) indetermina, simbolicamente, o agente da condutor da narrativa. Eis um esquema:
ação. Queremos dizer: o namorado aparece representado pela
metáfora do cervo, porque não pode estar ao nível da comunica Namorado ou A namorada lava
cervo que volve > fonte
ção literal da filha com a mãe. Daí o predomínio da ambigiiidade os cabelos
as águas
na constituição do caráter simbólico da transgressão do código.
Em síntese, o personagem-símbolo, assim constituído, mostra a
supremacia, do ponto de vista da ação, da seqüência alienante
(desidentificação com o código da comunidade) sobre a ação da
Sírrbolo de Síirbolo de Síirbolo de
seqüência reintegrante (identificação com o referido código). sexualidade fecundidade vi ruindade
masculina
d) O baile
Em plano literal, quando a namorada dialoga com a própria
O baile é o símbolo da mentira, para o encontro furtivo na mãe, naturalmente, simula estar de acordo com o código moral da
fonte. A mãe censura a filha por ter rompido o brial num baile. Tal comunidade. Mas, em plano simbólico, ela transgride o código,
foi a desculpa que a filha, certamente, apresentou. No caso, há um entregando-se ao amor do namorado. E quando a filha apresenta,
sentido literal e um sentido simbólico na desculpa da namorada. O como desculpa de sua demora na fonte, o fato de que os cervos do
sentido literal é simulado, pois ela não foi ao baile, mas à fonte, monte volviam a água, a descodificação da mensagem se faz den
como o refrão da cantiga nos sugere, numa espécie de contraponto tro da própria narrativa. E se faz pelo destinatário, que é a figura
irônico. Em sentido simbólico, baile sugere encontro de namorados, da mãe, representante do Código. Com efeito, a mãe une o plano
como nos indica Jeanroy: literal ao plano simbólico, identificando cervo com namorado, e
acaba por descobrir a mentira da filha: Mentir, mya filha, mentir
Mais c ’est surtout au baI que lesfilies et les garçons por amigo,/nunca vi cervo que volvess’o rio.
peuventse parlerlibrement: aussi le séductions et les dangers O ambiente físico revela um contato direto com a natureza,
du bal font le sujet d'une infmité de chansons. (op. cit. p. inclusive com o mar não muito distante. Realmente, numa das
203) cantigas há a sugestão de que o namorado deixou de ir ao encontro
na fonte, por ter viajado pelo mar. A natureza e a sexualidade se
Há, portanto, conotações e policonotações em torno desse interpenetram ao longo da narrativa. E o ambiente psicológico ou
sím bolo,com o em tomo dos demais. atmosfera espiritual, que envolve as ações, se constitui de valores
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IV VI
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u MA LEITURA DE
M a r t in C o d a x
N a s sete cantigas de amigo de Martin Codax (ou Codaz),
conforme os apógrafos italianos e conforme o texto do Pergaminho
Vindel, salta aos olhos um a sequência narrativa. Esse trovador-
jogral, ao que tudo indica, acompanhou D. Fernando em suas
expedições guerreiras. As cantigas nos mostram a namorada, que
certamente Codax deixou nos arredores de Vigo, cheia de alegria
pelo retomo do amigo, que não só volta viv’ e sano, mas também
amigo e privado del-Rei. Note-se que, à parte a hipótese de qualquer
presunção do jogral, o rei D. Fernando não apenas “pagabase de
ornes de corte que sabian trovar e cantar e de joglares que sopiesen
bien tocar estrumentos”- com o está na Cron. General (cf. C. A. II,
372, n.° I), mas ele próprio era cultor da poesia. A propósito, veja-
se o texto de gênero sacro, publicado em 1918 por Lopez Aidillo e
Ri vera Manescau, no seu folheto Fernando III, poeta galego-por-
tuguês. Aliás, para José Joaquim Nunes, como antes para Oviedo
y Arce (Elgenuíno ‘Martin Codax’, juglargallegodeisigloXIII,
p. 55, 56 e 57), as sete cantigas de Codax, alterada a ordem dada
pelos copistas, refletem a história dos seus próprios amores, can
tada pela donzela inspiradora. Eis o que escreveu J. J. Nunes in
Cantigas d ’Amigo, vol. I, p. 201:
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Ca ven meu amigo, d) Na quarta cantiga, apesar do convite feito à irmã para que a
e ven sarfe vivo. acompanhasse, a namorada vai sozinha ao porto de Vigo e cheia de
E irey, m adr’, a Vigo! amor e de alegria pelo retomo do namorado. Vai senheyra (=sozi-
nha) e sem garda (=guarda, acompanhante, vigilante). Veja-se:
Ca ven meu amado,
e ven viv’e sano. IV
E irey, m adr’, a Vigo!
Ay Deus, se sab’ora meu amigo
Ca ven san’e vivo com ’eu senheyra estou en Vigo!
e d ’el-Rey amigo. E vou namorada!
E irey, m adr’, a Vigo!
Ay Deus, se sab’ora meu amado
Ca ven viv’e sano com ’eu senheyra en Vigo manho!
e d ’el-Rey privado. E vou namorada!
E irey, m adr’, a Vigo!
Com ’eu senheyra estou en Vigo
e nulhas gardas non ey comigo!
c) Na terceira cantiga, dá-se continuidade ao que foi dito na
E vou namorada!
segunda, e nela a namorada convida a irmã para irem juntas a
Vigo, para a recepção ao namorado. Nesta cantiga, dirige-se
Com ’eu senheyra en Vigo manho
novamente à mãe, na parte final, como já havia feito na cantiga
e nulhas gardas migo non trago!
anterior, para lhe dar ciência de sua ida a Vigo. Daí a razão por
E vou namorada!
que madre, no caso, só pode ser vocativo. Veja-se:
E nulhas gardas non ey comigo,
III
ergas meus olhos que choran migo!
E vou namorada!
Mia irmana fremosa, treydes comigo
a la igreja de Vig’, u é o mar salido.
E nulhas gardas migo non trago,
E miraremos las ondas! ergas meus olhos que choran ambos!
E vou namorada!
Mia irmana fremosa, treydes de grado
a la Igreja de Vig’, u é o mar levado.
e)Na quinta cantiga, não sendo ela acompanhada pela irmã,
E miraremos las ondas! nem pela mãe, convida então todas as amigas “que sabem amar
amigo” a que a acompanhem na ida ao mar de Vigo, onde juntas se
A la igreja de Vig’, u é o mar salido, banharão nas ondas agitadas, enquanto aguardam a chegada do
e verrá i, madre, o meu amigo.
namorado. Veja-se:
E miraremos las ondas!
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Eno sagrad’, en Vigo, A hipótese de haver uma estrutura de enredo, nas sete cantigas
baylava corpo velido. de Martin Codax, justifica-se em face do caráter narrativo, além
Amor ey! do lírico e dramático do gênero. Na realidade, um a cantiga de
amigo não pertence ao gênero lírico puro, por ser um a composição
En Vigo, no sagrado, sincrética e primitiva, resultante da fusão dos caracteres acima
baylava corpo delgado. indicados, além da associação das cantigas ao canto, à música e à
A m orey! dança. Naturalmente, o namorado não retoma, pois em função da
sua ausência é que se engendra o lirismo das cantigas. Num esquema
Baylava corpo velido. simples, facilmente podemos analisar a sequência narrativa ao nível
que nunca ouver’amigo. das ações. Para isso, dividimos as sete cantigas em quatro tempos:
Am orey!
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L eo d e g á r io A. de A zevedo F ilh o T rês en sa io s d e l it er a tu r a m e d ie v a l g a l e g o - p o r t u g u e s a
Io t e m p o 2o te m p o 3 o te m p o 4" te m p o
, Com petência
V is ã o d a R e c e b e u m re c a V ai s e m a irm ã , C ansada de
n a m o ra d a , do: o n am o ra d o c h e ia d e a m o r e e s p e ra re m vão.
Encontro
N am o rad a
d ia n te d o m a r vai re g re ssa r, a le g ria p e lo c o m o n o in íc io , - I
(e la )
d e V ig o , e s tim a d o p e lo re g resso d o n o v a m e n te P.H Espaço vazio Resposta
in d a g a n d o p e lo R e i. s ã o e s a lv o . n a m o ra d o . d irig e -s e à s
C o n v id a o u tra s o n d a s r io m a r,
Partida (Indagação)
r e to r n o d o se u C o n v id a a irm ã
am ado, em p a ra ir c o m e la à n am o ra d a s para tris te m e n te in d a
e x p e d iç ã o re cep ç ão a o n a ir e m , ju n ta s , g a n d o - lh e s p e lo Dicionário histórico
m i li t a r . m o ra d o . D á re ceb e r os a m ig o q u e ta rd a
Sente mas
c iê n c ia à m ã e d e n a m o ra d o s. e não vem .
s u a i d a a V ig o . E n q u a n to e s p e Performance
D irig i-s e , e s f u s i- ra m , b a n h a m -s e
a n te d e a le g ria , à nas ondas d o m ar
Encontro (relembrado no texto)
{
irm ã e à m ã e . e b a ila m n o a d ro
sim u lta n e a m e n te . d a Ig r e ja . P.H.
Partida (subentendida no texto)
E s tá a u s e n te , E n v ia u m re c a d o E e sp e ra d o , m as P o r m o tiv o s
p o s s iv e lm e n te não chega. ig n o ra d o s , o
Personagem: amiga ----------- _> Receptor metafórico: ondas
N a m o rad o a v is a n d o -a d e seu
n u m a e x p e d iç ã o re g re sso . n am o ra d o n ão (Objeto da resposta:
( f ie )
m i li t a r . D e i x a a re to r n a . amigo)
n am o ra d a
s a u d o s a e tris te .
Recorrência
E s tã o a in d a A irm ã é A u s ê n c ia d a m ã e e E s tã o a u s e n te s , mãe
C o n fid e n te s a u s e n te s d a c o n v i d a d a p a r a ir d a irm ã . A p o r n ã o te re m
Confidentes
(irm ã e
m ãe)
ação. a V ig o . A m ã e
to m a c iê n c ia d a
n a m o r a d a fo i s ó a
V ig o . s e m
id o a V ig o .
•{ irmã
i d a a V igt>. q u a lq u e r Indcntificantes: amigas
s im u lta n e a m e n te . a c o m p a n h a n te .
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lírica das cantigas ou do poema musical. O narrador não poderia a Vigo. Aliás, em todo o poema musical, a mãe jamais foi convida
aparecer por ser fictício, como é próprio do gênero. da a ir, pois apenas a irmã o foi. Nada há de estranhável, portanto,
Insista-se ainda no fato de que os versos 8 e 11, na cantiga n.° no fato de se dirigir a namorada à irmã numa estrofe e á mãe na
III, apresentam variantes nos manuscritos. Nós ficamos com a lição outra, pois isso é mais um a prova de que as cantigas estão
do Cancioneiro da Biblioteca Nacional e do Cancioneiro da Vaticana encadeadas num todo. Ela foi sozinha ( senheyra) a Vigo, encon-
(lectio plurium codicum potior), por se ajustarem plenamente à in trando-se com outras namoradas, que naturalmente também esta
terpretação estrutural das cantigas. Note-se ainda que a ordem dos vam à espera de seus amigos. E as namoradas banham-se nas
dísticos 7-8 e 10-11 vem alterada no PV, sendo corrigida na edição ondas do mar e bailam no adro da Igreja, enquanto aguardam a
crítica de Celso Cunha, indicada no final deste ensaio, conforme as chegada da nau que deverá trazer os seus amados de volta. Insisti
lições do CBN e do CV, por se tratar de erro evidente. De fato, a mos, portanto, na observação de que será imprópria qualquer aná
estruturação das estrofes obedece a determinadas regras, ficando lise literária das sete cantigas de Codax sem o reconhecimento de
assim à mostra o erro do copista. No caso, aliás, não teria nenhum que elas compõem uma narrativa. Se as formos analisar isolada
sentido criador a transgressão das normas paralelísticas, única mente, é claro que parecerá estranho que a namorada se dirija, na
hipótese em que poderiamos aceitá-la. Diga-se ainda que vários mesma cantiga, à sua irmã e à sua mãe. Tal estranheza se desfaz,
especialistas, a propósito dos versos 8 e 11, da cantiga n.° III, quando vemos que a terceira cantiga é continuação da segunda.
observaram a sua falta de harmonização com os versos 1 e 4, por Afinal, a ambas se dirige ela, com enorme alegria, ao receber a
que a namorada se dirige à irmã, no princípio da cantiga, e à mãe no notícia do regresso do seu amigo.
final. Como já vimos, nada há de estranhável nisso, pois ambas são Com a argumentação diversa, Oviedo y Arce também nada
morfemas apelativos dentro do poema musical. Entretanto. D. vê de estranhável no fato:
Carolina Michaêlis de Vasconcelos escreveu:
A mi entender, la frase mia madre está en vocativo: el
futuro verrá, en singular, lo reclama; pero lo reclama más
Madre pode ser vocativo, ou nominativo: madr'e. Tão urgentemente el sentido. La protagonista cantora dirígese
estranhável é que a namorada, acompanhada da irmã, se en las dos primeras estrofas a sua irmana, Mia yrmana
encontre na igreja de Vigo, com o amado, e juntamente fremosa (vocativo), para que la acompane a la iglesia de
com a mãe delas (nossa madre, portanto) afim de admira Vigo; y en las dos últimas habla a su madre, mia madre,
rem o espetáculo imponente do mar embravecido, como como pidiéndola autorización para cntrevistarse con el aman
seria o caso de ela se dirigir à irmã numa estrofe e à mãe te que va a emprender viaje. Así, qué extrano puede parecer,
na outra. (R.F.E., II, p. 269). como pareció a la Sra. Michaêlis de Vasconcelos, la
invocación de hermana y madre en la misma cantiga, por
Sem que em nada se altere a admiração pela obra que D. más que ello no sea usado? (B.A.G., XI. 91, nota 1)
Carolina Michaêlis de Vasconcelos nos deixou, não concordamos
com a sua exegese. A notável romanista desprezou, no momento Embora admitamos que a palavra madre, dos manuscritos,
em que escreveu o trecho acima, o fato de que as sete cantigas não represente vocativo, parte da razão mencionada pelo autor acima
devem ser apreciadas isoladamente. Na verdade, as sete cantigas citado não convence de forma alguma. Com efeito, o namorado
formam uma estrutura narrativa, já aparecendo a figura da mãe, não vai empreender viagem, exatamente porque volta de viagem.
como personagem confidente ou morfema apelativo, na segunda Será vocativo, mas não pelos motivos indicados por Oviedo y Arce.
cantiga, exatamente no instante em que ela lhe comunica que recebeu que chegou a tais conclusões, evidentemente falsas, pelo simples
um recado do namorado. Na terceira cantiga, dá-se continuidade à fato de ter alterado a ordem das cantigas.
segunda, pois nela a namorada convida a irmã para irem juntas a
Vigo, ao mesmo tempo em que volta a dirigir-se à mãe, em esfuziante
alegria, como já havia feito antes. Afinal, a irmã e a mãe não vão
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94. SILVEIRA, Sousa da. Lições de português. 7a ed. Revisão 111. VlTERBO, F. Joaquim de Santa Rosa de. Elucidário das
crítica, em consulta com o autor, por Maximiano de Carvalho e palavras, termos efrases que em Portugal antigamente se usavam
Silva. Rio de Janeiro, Livros de Portugal, 1964. e que hoje regularmente se ignoram. Ed. Crítica por Mário Fiúza.
95. SIMÕES, João Gaspar. História da poesia portuguesa das Porto, Liv. Civilização, 1965-1966.
origens aos nossos dias, acompanhada de uma antologia. Lisboa, 112. WILLIAMS, Edwin B. Do latim ao português. Trad.
Empresa Nacional de Publicidade, 1955. Antônio Houaiss. Rio de Janeiro, Instituto Nacional do Livro, 1961.
96. SPINA, Segismundo. A lírica trovadoresca. 2a ed. Rio de 113. ZUMTHOR, Paul. Essai de poétique médiévale. Paris,
Janeiro, Grifo, 1972. A primeira ed., da Liv. Acadêmica, é de 1956. Seuil, 1972.
9 7 . ____ . Do formalismo estético trovadoresco. São Paulo, 114. ____. La lettre et la voix de la “litté r a tu r e ”
Faculdade de Filosofia, 1966. médiévale. Paris, Éd. du Seuil, 1987.
9 8 . ___ . Manual de versificação românica medieval. Rio
de Janeiro, Gemasa, 1971.
9 9 . ____. Iniciação na cultura literária medieval. Rio de
Janeiro, Grifo, 1973.
100. TAVANI, Giuseppe. Repertório métrico delia lirica
galego-portoghese. Roma [Ateneo] 1967.
101.____ . Poesia deiduecento nella Penisola Ibérica. Roma,
Ateneo, 1969. Ver também, em colaboração com Giulia Lanciani:
Dicionário da literatura medieval galega e portuguesa. Lisboa,
Caminho, 1993.
102. VARELA JÁCOME, Benito. Poetas gallegos. Santiago
de Compostela, Porto y Cia., 1951.
62 63
RINCIPAIS OBRAS DE
L e o d e g á r i o A . d e A z e v e d o F il h o
7. Discurso de Formatura em Letras Neolatinas. Rio de
Janeiro, Gráfica Carioca, 1950.
2. Alguns Problemas do Idioma. Rio de Janeiro, Gráfica
Carioca, 1953.
3. Didática Especial de Português. Rio de Janeiro, Editora
Conquista, 1958.
4. A Poética de Anchieta. Rio de Janeiro, Gráfica Carioca,
1962. Tese de Concurso Público para o Cargo de Professor
Catedrático do Curso Normal - Português e Literatura.
5. O Verso Decassílabo em Português. Rio de Janeiro, Gráfica
Carioca, 1963. Tese de Concurso Público de Provas e Títulos para
o Cargo e Professor Catedrático da Universidade do Estado do Rio
de Janeiro.
6. A Motivação e a Orientação da Aprendizagem no Ensino
da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro, MEC, 1963. Obra premiada
pelo Ministério da Educação e Cultura, com direito a estágio no
Centro Internacional de Estudos Pedagógicos, em Sèvres, França.
7. Passo da Silveira e seu Universo Poético. Rio de Janeiro,
Gráfica Carioca, 1963. A obra recebeu o Prêmio Sílvio Romero. de
Crítica Literária, conferido pela Academia Brasileira de Letras.
Parecer de Barbosa Lima Sobrinho.
8. As Unidades Melódicas da Frase. Rio de Janeiro, Editora
do Professor, 1964.
9. Introdução ao Estudo da Nova Crítica no Brasil. Rio de
Janeiro, Acadêmica, 1965.
70. Anchieta, a Idade Média e o Barroco. Rio de Janeiro,
Gemasa, 1966. A obra recebeu o Prêmio José Veríssimo, de Ensaio
e Erudição, conferido pela Academia Brasileira de Letras. Parecer
de Alceu Amoroso Lima.
77. Murilo Araújo e o Modernismo. Rio de Janeiro. Gemasa,
1967.
72. Gramática Básica da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro,
67
L eodegárto A. de A zevedo F il h o T r ê s e n s a io s d e l it e r a t u r a m e d ie v a l g a l e g o - p o r t u g u e s a
68 69
L e o d e g á r io A. de A zevedo F il h o
70
5- Não sou especialista de literatura medie
val, mas creio poder afirmar que se trata de um
estudo exemplar, tanto do ponto de vista
ecdótico e lingüístico, como do ponto de vista
da análise das estruturas literárias. Vitor Manu
el de Aguiar e Silva (Portugal).