Você está na página 1de 52

1,~··

0 GRANDE TEATRO DO MUN DO

Jâ sei que, se para ser


o homem escolher pudera,
ninguém o papel quisera
do sofrer .e padecer;
todos quiseram fazer
o de mandar e reger,
sem advertir e sem ver
que, em ato tao singular,
aquilo é representar
mesmo ao pensar que é viver.

Traduçào de Maria de Lourdes Martini


• 1
FranCISCO



AIves FrOnCISCO
qualidade hâ mais deum século 1 • AIves
'.",'
1'.
t .. ,._,, .. ..:.
0 GraQdc Cfcatro do 1\lluQdo

OGRANDE TEATRO DO MUNDO

Calderon de la Barca constitui, com


Lope de Vega e Tirso de Molina, a
triade de grandes dramaturges do "sé-
culo de ouro" espanhol, como se con-
vencionou chamar o perlodo que vai
da segunda metade do século XVI à
primeira metade do século XVII. Para
confirmar a justeza da expressao "sé- 1"
culo de ouro", basta lembrar, na pro-
duçao artlstica e liten\ria da época, o 1

Ouixote de Cervantes, a literatura m(s-


tica, a criaçao da novela picaresca, a
1

pintura de El Greco e Velâzquez e,


especificamente na literatura teatral, o 1

desenvolvimento da tragicomédia e da
comédia de capa e espada, a divisao da 1

peça em três atos e a criaçao de uma


nova· forma dramâtica, o auto sacra-
COLEÇAO OB RAS-PRIMAS ATRAVJ:S DOS SJ:CULOS

COORDENADORA
LIGIA VASSALLO

• A CançfJo de Rolando- Anônimo


• Poema do Cid- Anônimo
• A Ce/estina- Fernando de Rojas
• 0 Grande Teatro do Mundo - Calder6n de la Barca
• As Nupcias do Céu edo lnferno - William Blake

A SAIR:

• Yvain ou o Cavaleiro do LefJo - Chrétien de Troyes


• A/cassino e Nicoleta - Anônimo

Traduçiio
Maria de Lourdes Martini

...
Francisco
AIves
Direitos. de traduçiio de Maria de Lourdes Martini

T ftulo original: El Grand Teatro del Munda

Revisiio tipogrâfica: Marcos Aurélia Villegas Martins


Henrique T arnapolsky

Capa: Serviço de Produçiio Grâfica da Editera Francisco Alves (sobre Procis-


siio de Corpus Christi no século XIX, Catalunha, Espanha) APRESENTAÇii.O

A Editera Francisco Alves tem o prazer de apresentar aos


lmpresso no Brasil seus leitores a coleçao ÜBRAS-PR !MAS ATRAV~S DOS S~CULOS, que
Printed in Brazil pretende fazer jus ac tftulo.
Por isso, oferece textes marcantes da literatura universal que
Cl P-Brasil. Catalogaçiio-na-fonte antes ficavam restritos ac conhecimento de pouces, porque nilo
Sindicato Nacional dos Editores de Livras, RJ. haviam ainda sido traduzidos ou porque tiveram ediçoes muito
reduzidas. As traduçoes agora lançadas foram feitas par especia-
Calder6n de la Barca, Pedro, 1600-1681. listas e cada obra é acompanhada de um estudo especifico e de
C152g 0 grande teatro do munda 1 Calder6n de la Barca; tra· ilustraçoes. Todos estes esforços foram empreendidos par abaliza-
• duçiio Maria de Lourdes Martini.- Rio de Janeiro: Fran-
dos profissionais e professores universitârios, corn o intuito de ga-
cisco A ives, 1988.
rantir a qualidade dos trabalhos publicados nesta coleçao, onde ca-
(Obras-primas através dos séculos) bem todos os gêneras literârios e todas as nacionalidades.
A Editera Francisco Alves deseja, assim, brindar os aprecia-
Traduçiio de: El Grand Teatro del Munda.
dores da boa literatura, ao mesme tempo que se propoe a aoxiliar
ISBN 85-265-0122-4
os professores das faculdades de letras fornecendo-lhes precioso
1. Teatro espanhol medieval. 1. Martini, Maria de material, aos historiadores que buscam na 'literatura fontes vivas
Lourdes. Il. Tftulo. Ill. Série. para suas pesquisas, aos jovens jâ iniciados nos bons livres. Todos
vocês mergulharao corn deleite nas aventuras, peripécias e idéias
CDD- 862.4 que têm encantado os leitores através dos séculos.
88-0421 CDU- 860-2

Todos os direitos desta ediç§o reservados à:


LIVRA RIA FRANCISCO ALVES EDITORA S.A.
Rua Sete de Setembro, 177 • Centra
20050 • Rio de Janeiro • RJ
Tel.: 221-3198
Niio é permitida a venda em Portuga!-
Atendemos também pela reembolso postal.
SUMARIO

Apresentaçao -Maria de Lourdes Martini IX


0 Teatro Barroco: o Grande Teatro do Mundo Xl
0 Grande Teatro do Mundo 1
lconografia 67

~
1

APRESENTAÇÂO

Hâ quinze anos atras, por gosto, o qL•e quer dizer por


amor, empreendi a traduçao de El gran teatro del munda, de
Calderon de la Barca. Digo empreendi, de empresa, empreen·
dimento, cometimento ousado, co mo esta no Diciomirio de
Morais, obra, alias, que muito consultei quando traduzi aque·
le auto sacramental; e digo cometimento ousado, por tentar
recriar a ob ra conservando suas caracterfsticas manei rista-
barrocas.
A traduçao se destinava à leitura de alunas dos cursos
optatives de literatura espanhola na Universidade Federal do
Rio de Janeiro, alunas que nao estudavam o espanhol. Pen-
sando ne lese nas suas dificuldades de lei tura na lfngua estran-
geira, tentei construir o tom e o elima deum texto, tai como
seria em português um texto contemporâneo ao de Calderon.
Dai, o léxico e a estrutura sintatica fortemente marcados co-
~- mo de época. Dar, a optar por traduzir o verso em verso. Es-
sas sao as caracterfsticas historicas de minha traduçao. E co-
mo toda traduçao é historica, nao existindo nunca, em tese,
a melhor traduçao, mas sim a melhor traduçao para tai fim
ou para tai destinatario e em tai situaçao hist6rica, e estou re-
petindo aqui o que melhor do que ninguém e magistral mente
disse Coseriu,l minha traduçao foi feita nessas condiçêies e
nessas condiçêies deve ser julgada.
0 texto-base foi, àquela época, o estabelecido par Val-
buena Prat2 sobre uma ediçao do século XVIii, a de Panda,

1 COSERIU, Eugenio. Lo err6neo y lo acertado en lateor(ade latraducci6n.ln:


- - · El hombre y su /enguaje; estudios de teor(a y metodolog(a lingüfstica.
Tracl. de Marcos Mart(nez Hernéndez. Madrid, Gredos, 1977, p. 214-39.
1 2 CALDER6N DE LA BARCA. Autos sacramentales. Pr61ogo, edici6n Y notas de
\,. Angel Valbuena Prat. Madrid, Espasa-Calpe, 1957, v. 1.

IX
edi\:ao, alias, existente no acervo de nessa Biblioteca Nacio-
nal. Alguns anos ap6s, e porque todo professer de Letras per-
segue (ou é perseguido por?), e por um bom tempo, um autor
que o tenha sensibilizado, alguns anos ap6s, pesquisando mais
e conhecendo melhor Calder6n e sua obra, pude estabelecer
minha ediçao em espanhol de El gran teatro del munda. 0
estabelecimento dessa nova ediçao, texte-base, agora, de mi-
nha traduçiio, levou-me a alteraçoes na versao em português. 0 TEATRO BARROCO:
Cabe-me, pois, dupla responsabilidade neste trabalho que 0 GRANDE TEATRO DO MUNDO
agora estou apresentando.
Falar de Calder6n de la Barca, o poeta/dramaturgo espa'
nhol do século XVII, pode nao ser necessario, jaque uma boa A pro posta deste trabalho é a da caracterizaçao de uma
enciclopédia trara bastante informaçao a respeito sem que se forma dramatica, o auto sacramental; e El gran teatro del
seja obrigado a consultar uma hist6ria da literatura espanhola. munda, trtulo de um auto sacramental de Calder6n de la
Talvez fosse bom relembrar camo, em Calder6n, escrever um Barca, remete-nos, ao mesme tempo, a dois dadas relevan-
auto sacramental era um exercrcio de fé e piedade. Por isse, tes na historia dessa forma dramatica: a tematica da vida co-
o cuidado e o receio da palavra que discrepasse da fé que ele mo representaçao ou sonho e a expressao aleg6rica. E pois
abraçou tao apaixonadamente. que, no panorama da evoluçao das formas dramaticas, o auto
Para conclu ir esta breve apresentaçao, devo dizer que an- sacramental se inscreve camo representante do perfodo bar-
tecede à traduçao um ensaio publicado, ha pouces anos, no roce, legitimar essa representatividade é, também, um esforço
ne:> 72 da revista Tempo Brasileiro; e que a ela se segue uma do nosso trabalho.
parte iconogrilfica que devera ajudar a compreender melhor
0 grande teatro do munda e sua forma dramatica, o auto sa- ** *
cramental.
Uma definiçao dos autos sacramentais caracterizara essas
MARIA DE LOURDES MARTINI obras "camo composiciones dramliticas en una jornada, ale-
g6ricas v referentes al misterio de la Eucaristfa". 1 Outra de-
Rio de Janeiro, agosto de 1987 finiçao dira que o auto sacramental é uma

"especializaci6n genuinamente espaïiola del drama


religioso, a cuva esencia pertenece la relaci6n con
la Eucaristfa v que era representado em ocasi6n de
su fiesta, el d/a de Corpus Christi". 2

1 Calder6n, Autos sacramentales, v. 2, p. XVII; definiç§o de Valbuena, no estu-


do introdut6rio à ediçâ'o do auto por ele preparada.
2 Vossler, Formas poéticas de los pueblos romBnicos, p. 283.

x Xl
los reyes y a los grandes personajes con motiva
Criaçâ'o espanhola, auto religioso que se manifesta cam de dna recepci6n o ·de la celebraci6n de otras
exuberância no periodo que se chamou Século de Ouro, vem grandes efemérides ·~ 5
a se definir camo a mais acabada expressao do barroco dra-
matico espanhol. Coma forma espanhola, ultrapassa os limi- A dualidade de traças religiosos e profanas vai caracteri-
tes da Pen insu la e acompanha a trajetoria daquela expansao zar, entao, a comemoraçao de Corpus Christi e, talvez, seja
cultural: do proprio El gran teatro del munda temos, no Mé- causa co-atuante do esplendor dessa festa no periodo barro-
xico, uma versao em 1ingua nauatle em manuscrite de 1640 co, cam cuja dualidade ela se identificaria. Mas essa m~sc~a
ou 1641, data proxima à da redaçao do auto; 3 e, em Lima, profano-religiosa vai recehl;r criticas ao lon!!? _d: sua hlsto-
documenta-se a representaçao da ob ra no ano de 1670.4 Mas, ria6 e vai determinar, no seculo XVIII, a pr01b1çao da repre-
para a historia do auto sacramental, temos que tomar em con- sentaçao dos autos sacramentais pela Decreta Real de 11 de
sideraçao dois momentbs capitais: a instituiçao, coma festa junho de 1765. _ N • • -

universal, do Corpus Christi, no século Xlii; e a realizaçao do Sabendo-se que a proc1ssao em que se ex1b1a o Santissl-
Concilia de Trento, no periode que vai de 1545 a 1563. mo Sacramento contin ha, também, cenas biblicas e alegorias,
podemos compreender a criaçao do auto sacramental camo a
* * * atualizaçao de elementos dramaticos existentes- naquela pro-
cissac de Corpus Christi, elementos dramaticos que, par sua
Documenta-se em Liège, ja em 1246, a comemoraçao do
Santissimo· Sacramento; mas é em 1264 que o Papa Urbano
vez haviam saido da tradiçao teatral da ldade Média. A cir-
, ... .
cularidade evidente desse processo (representaçao- proc1ssao
-
IV a institui camo festa ecumênica da lgreja Catolica. Vê-se, - representaçao) tropeça cam dois ~a~os relev?nt~s: que, da
assim, que esta comemoraçao nao tem a longa tradiçao de espetacularidade grandiosa das proe~ssoes med1eva1s do Este
outras festividades ·da 1greja, dada importante para sua ca- da Peninsula nao resultaram "textos exter>sos, trabados e
racterizaçao. No século XIV, a festa ganha mais solenidade ao
se tornar, ao mesmo tempo, mais publica, através da procis-
informados Po'
una idea dramatica s6/ida y al mismo tiempo
peculiar, sino simplemente canciones y breves dialogos, a
sao cam que se vai comemora-la. Outra vez, a falta de uma juzgar por los escasos testas y noticias que poseemos er; este
tradiçao vai determinar as caracteristicas da reoém-instituida sentido"·7 e que foi na regiao castelhana ou castelhamzada,
procissao, que tomou, camo paradigma, festividades profa- onde se' documenta com escassez, um teatro medieval e
nas, definindo-se, assim, camo onde. as procissoes de Corpus Christi, além de tardias, nao
"un transita a lo sagrado de parecfdas manifestacio- 5 Jolll Romeu Figueiras, Notas al aspecta dramético de la pro~si6n del Corpus
en Catalufl'a, p. 32. ::ssa extensfo do modela da faste clv•l à comemoraç§o
nes de exaltaci6n secular mas antiguas, dedicadas a religiosa vai ter, ~epais, n sua rec(proca quanclo se testemunhard, tanta na
Pen(nsula camo nes ColOnies, a oomemoraçlo d• felta civil oom represen-
3 < taçOies de autos sacramental s.
Segundo VaÎbuena, na ediçâ'o da nota 1, p. L-LI, v. 1, "por razones internas
del auto - estilo, formas peculiares, sentido de su construcci6n :..._ .. ,a obra 6 Bataillon, no Ensayo de explicaci6n del "auto sacramental", p. 190, transcre-
deve ser de data pr6xirf1a a 1633. Para a referência à versao néuatle, v. ve o testemunho de Martfn de Azpilcueta, em documenta datad~ de 1545:
William A. Hunter, Toward a more authentic text of Calder6n's El gran "Por venture méa se offiende Dias oy que se sirve en las lnvenc1ones ~ro­
teatro del munda, p. 241. fanas v .gastos que se sacan el d(a del Corpus v otros en que hacen seme Jan·
4 tes procesiones".
Guillermo Lohmann Villena y RaUl Moglia, Repertoria de las representacio-
nes teatrales en Lima hasta el siglo XVIII, p, 324. ? Cf. o artigo cJtado na nota 5, p. 35.

Xli Xlii
alcançaram tamanha magnificência, que se desenvolveu o volvimento e da freqüência de espetaculos teatrais, nao ape-
auto sacramental. Tai paradoxe se desfaz se aceitamos que nas na Espanha, com o perfodo que, grosso modo, chamamos
o enriquecimento dos espetâculos religiosos castelhanos, no °
de barroco. 1 Consideradas a arte e a literatura barroca em
século XVI, se deve à possfvel adoçao de praticas nilo locais: suas caracterfsticas de exuberância, liberaçao, transbordamen-
a influência dos habites do reino de Aragao e do teatro reli- to dos limites, come explicar a conciliaçao com um mome~to
gioso estrangeiro. Estrutura nâ'o proveniente da evoluçl!o na- historiee caracterizado por duas grandes forças de contensao:
tu rai de dados aut6ctones, o auto sacramental vai, no entan- a Contra-Reforma e o absolutisme polftico? A essa pergunta
to, se organizar como forma dramatica capaz de ter influência Affonso Avila respondeni que o "barroco soube encontrar,
sobre o desenvolvimento do teatro profane. 8 em meio aos fantasmas da lnquisiçao e do poder absoluto
Constitu fdo o auto sacramental, ja na primeira metade dos reis, a va/vu/a de escape do jogo criativo, do jogo ritual,
do século XVI, vai ele receber o grande impulso do Concflio de/es fazenda uma grande resposta subjetiva ou coletiva". 11 E
de Trento que, na reuniilo de 1551, confirma o dogma da essa proposta de jogo come evasio, aproxima-nos à teoria do
transubstanciaçao, negado pela Reforma protestante. Se nos teatro de Ortega y Gasset, quem ne le viu a forma suprema de
lembrarmos da importância pol ft ica da Espanha de entilo e jogo, isto é, dessa "arte e técnica que el hombre posee para
de que o Concflio de Trento é de inspiraçao espanhola, po- suspender virtualmente su esclavitud dentro de la real1dad,
demos aceitar a identificaçao da Espanha com o espfrito da para evadirse, escapar, traerse a sl mismo de este mundo en
Contra-Reforma, aquela Espanha que criara a Companhia de que vive a otro irreal'~ 12 ,
Jesus e que descobrirâ, no auto sacramental, o vefculo ideal Assentado, assim, o teatro come expressao·da dialética
para o trabalho catequético de exaltaçl!o do dogma da Euca- do real/nio real, parece-nos encontrar a harmonizaçiio dessa
ristia. Na epiniac de Pfandl, o auto sacramental, come auto forma de cultura com a antinomia de ser/parecer barroco. E
religioso, trara a noliidade de converter um dogma em centre se o desenvolvimento de uma literatura dramatica ede uma
e objet ive de uma representaçao teatral. 9 arte cênica, no nosso case, o auto sacramental, foi estimula·
A representaçilo dessa do, de fora, pela causa da Contra-Reforma, expressou, a par-
tir de dent re de sua pr6pria natu reza, as caracterfsticas essen-
"especializaçio genuinamente espanhola do drama dais da cul tu ra bar roca.
religioso"
** *
(cf. nota 2) se mantém, regularmente, por cerca de cem anos,
ocupando, na cena, o espaça da exp ressac ,barroca. A longa Uma das definiçéies de auto sacramental que apresenta-
tradiçao da representaçao de autos sacramentais foi, entao, mos nos fala de representaçao no dia de Corpus Christi, in-
amparada pele serviço destes à-causa da Contra-Reforma, pois
a difusao da tematica se apoiava naquele dado inerente à re- 10 No caso espanhol, testemunhos de estrangeiros documentam o espanto pela
presentaçao teatral, de ser comunicaçao para muitos, num s6 grande nOmero de representaçOes teatrais no per(odo. Cf. Hesse, Vida tea·
tempo. Surpreende-nos, no entanto, a coincidência do desen- tral en al Slglo de Oro, p. 118-9.
11 Barroco mineiro; glossério de arquitetura e ornamentaçâ'o, p. 6. Affonso Avila
8 desenvolve amplamef\te a relaçâo barroco e jogo em 0 !Udico e projeçOes
Fernando Lézaro Carreter, no estudo preliminar de THtro m«<illral, p. 53-7,
do munda barroco.
desenwlve essa afirmaçâ'o. 12 /dea del teatro, p. 55.
9 Historia dslalitsratura nsclonsl•pallo/ssn ls Edlld dfl Oro, p. 471.

XIV
xv
formaçao que devemos corrigir, pois o auto era representado, espanhol se excedeu, importando toda a técnica italiana de
n!io apenas no dia da festa, mas em toda sua oitava 13 e, até maquinaria e de' efeitos. Aqui, o dualismo barroco misturou
mesmo, durante o ano, nos "corrales", como se designavam ilusao e realidade, corn agua para representar mar, passaros
as casas de teatro. lsso nao invalida o fato de que a redaçao vivos em cena etc. 16 Ë que o teatro espanhol, comumente
de um auto sacramental, e deveria haver autos novos todos os tao s6brio e até mesmo pobre, contou, para o auto sacramen-
anos, pressupunha sua representaçao na testa de Corpus tal, corn o apoio do poder civil e do poder religioso: isso ex-
Christi. 0 espetaculo era ao ar livre e acontecia naqueles pon- pl ica, nao s6 a grandiosidade atingida, mas também a tempo-
tas em que se detinha a procissao que levava a h6stia consa- rada de alguns autos no espaça dos "corrales", na tentativa
grada: três ou quatro autos intercalavam-se corn a procissao. de compensar .:JS gastos real izados.
0 ser um espetaculo ao ar livre e que coincidia corn a ameni- A historia do espetaculo dos autos sacramentais nao po-
dade da primavera, atra(a todas as camadas da populaçao, de dei x ar de observar o jogo de tenstio/distensao representa-
aqueles que desfilavam e os que assistiam ao desfile, do pr6- do pela intercalaç1io de danças populares à representaçao dos
prio rei ao lavrador curioso que chegara de um povoado vi- autos. Um documenta de um viajante francês pela Espanha
zinho. Dessa heterogeneidade do publico decorrem caracte- barroca nos diz que:
rfsticas essenciais da forma literâria e da forma cênica que
aquela preconizava. Uma delas é o uso de alegorias, na con- "Par la tarde, a las cinco, representaron Autos:
cretizaçao de conceitos abstratos através de personagens ou éstos vienen a ser unas comedies espirituales in-
nas metâforas continuadas do texto. A utilizaçao da alegoria, terpoladas con diversos entremeses, harto estra-
que aproxima o teatro barroco ao medieval,l4 permitiu que falarios, para sazonar y alegrar la seriedad del dra-
ma".l7
mensagens carregadas de abstraç6es teol6gicas pudessem ser
apreendidas por aquele publico heterogêneo,IS Dirfamos,
também, que a representaç!io aleg6rica, através de sua espeta- E uma relaçao anônima nos dâ conta das
cularidade e das formas estereotipadas adquiridas, supriria- a
"danzas que amenizaron los autos en las fiestas del
diffcil percepç1io do texto litera rio num espetaculo pûblico.
Corpus de 1956".
Nao apenas na utilizaçao da alegoria o auto sacramental
se revela continuador de tradiçoes medievais: os cenarios mûl-
tiplos também comprovam esse enlace, aqueles cenarios que Tai relaçao lista dez variedades, descrevendo as danças de
"tu reas", de "(nd ios", de ''vejetes", de "locos", da "cruz",
eram montados sobre estrados adaptados às carroças que
da "colmena", de "caballos", de "cuenta", de llgallegos" e
transportavam material e atores, em set.i deslocamento pelas
cidades e aldeias. Foi na parte cênica que o teatro barroco de QÎtanos". 18
11

Os dois documentas traduzem a consciência dos infor-


13 mantes quanta à polaridade do espetâculo do auto sacramen-
Entre os vt1ri0s documentas desse dada in elu l-ee o testemunho literério do Qui-
xote, Il, cap. Xl, quando Cervantes narra o enoontro de D. Quixote e San-
tal (alegrar a seriedade, amenizar). para le la à tradiçao do espe-
cha oom os comediantes que iam representer Lss cortes de la Muerte. tâculo profana, caracterizado pela intercalaçao de entremeses
14
Benjamin, emIl drammabarroco tedesco, analisao significa:to da alegoria nes-
ses dois rnomentos da cuttura européia. 16 Rennert, The Spanish Stage in the Time of Lope de VEga, p. 304 e 309.
15
Na bibliografia que observa esse sentido da alegoria, destacamos a obra deWar- 17 Hesse,op. clt., p.120.
dropper, lntroducci6n al teatro religioso del Slg/o de Oro. 18 Idem, ibidem, p. 98-100.

XVI XVII
e danças aos autos da comédia espanhola, nomenclatura que Calderon, em El gran teatro del munda, organiza dadas
definiu, essencialmente, a forma hfbrida da tragicomédia do dispersas nas varias leituras do teatro do munda: Deus co mo
Século de Ouro. espectador privilegiado, Deus camo organizador do espeta-
A coexistência de duas vertentes antagônicas na festa de culo, homens e mulheres camo atores. E, de maneira mais de-
Corpus Christi se observava, também, na procissao, onde a finitiva, é Calderon quem toma todos esses dadas explici-
Tarasca, espécie de serpente monstruosa que, conduzida por tas ja, também, em varias textos dramâticos, e sobre eles
homens escondidos em seu bojo, ia engolindo os chapéus dos monta um nova texto que é o pr6prio desenvolvimento ale-
que assistiam ao desfile, preparando o terreno para a passa· g6rico daquela antiga metâfora. Sua originalidade consiste,
gem da H6stia, era, depois desta, a figura mais apreciada pela assim, tanta no casa do munda co mo teatro ou da vida camo
publico. 19 E pois que a carnavalizaçlio das festas religiosas, sonho, em haver transformado essas metâforas em peças tea-
em seu aspecta de desrepressllo e ambigüidade, pode alcan· trais e, nao apenas, em partes da estrutura de uma peça
çar limites considerados profanadores, explica-se a repressllo teatral.
que atuou em va rios momentos e sobre diversos aspectas do
Corpus Christi..
***
***
Para desenvolver a metafora do munda = teatro, Cal-
Dizfamos, no inicio deste trabalho, que El gran teatro deron se serve do seguinte argumenta:
del munda nos remetia, a partir do pr6prio titulo, a dadas - Deus, criador, que é também o empresârio (AUTO R, na ter-
caracterizadores do teatro barroco espanhol, pois a alegoria, minologia dramatica da época) da companhia de comedian-
que vai atualizar-se na criaçlio de personagens e respective tes que representam no munda seus papéis, no exerclcio
comportamento e no pr6prio texto literario, esta evidente na de sua natureza de criador/empresario, cria os homens e os
relaçlio munda co mo teatro. Parker nos d iz mesmo que o te- envia ao munda para a representaçlio: observe-se aqui o
ma do auto "is not ta demonstrate that the world is a stage, acerto da afirmaçlio de Parker ao considerar o munda =
but ta demonstrate that since the world is a stage, certain teatro camo alegoria basica do auto, ja que as conclusëes
important conclusions fa/law". 20 que se tiram das açëes dos atores se aplicam, em todos os
Na afirmaçlio de Parker, que estabelece, come> ponta de pontas do seu desenvolvimento, aos homens. 21
partida do desenvolvimento do auto, a ~ceitaçlio do munda - Cabe ao MUN DO fornecer as caracterizaçëes dos atores/ho-
= teatro, revela-se a grande voga que teve tai metâfora no mens; caberâ, também, a ele despoja-los do que lhes havia
munda barroco. Pois se esta tese, que tem suas raizes na An- sida entregue, terminados os papéis = vida.
tigüidade, s~ tornou um t6pico nos séculos XVI e XVII, isso - Apos a morte, os participantes da comédia da vida sao jul-
se deu par nela estarem implfcitos varias dadas caracteristi- gados pelo AUTOR, dele recebendo prêmio ou castigo, se-
camente barrocos: o mais importante, provavelmente, ode se gunda a qualidade da representaçllo vivida.
referir à ficçfio em seu jogo dialético cam a realidade. Através, portanto, de uma série de personagens aleg6ri-
cos ou arquetfpicos (AUTOR, MUNDO, REl, DISCRIÇÂO, LEI
DE GRAÇA, FORMOSURA, RICO, LAVRADOR, POBRE, CRIAN-
19
1
Wardropper, op. cit., p. 35-8.
20 The Allegorical Drama of Ca/der6n, p, 113. 21
Op. cit., p. 113.

XVIII XIX
ÇA e VOZ [DA MORTE]), o poeta desenvolve a alegoria pro- "mesa transformada 1 en pan y vino". 23
posta pele trtulo. Resta-nos perguntar pela relaçao que tai
argumente devera estabelecer corn o dogma da Eucaristia. A alegoria, na definiçao de ser por outra, ou nao ser o
A primeira observaçao a fazer é a de que correspondenl que parece ser, mas sim, o outra, aquilo que nao se expres-
ao POBRE, personagem que nada recebeu do MUNDO = con- sou,24 foi essencial e eficiente em relaçao ao auto sacramen-
tra-regra, cat~lisar as açéies dos de mais personagens, dos quais tal; mas se estendeu a outras formas dramâticas do perfodo,
ele, POBRE, e dependente; mas a esmola de pao que ete solî- àquelas que nao estavam comprometidas em encontrar uma
cita a todos so vai ser concedida pela DISCRIÇAO, que repre- linguagem que concretizasse as abstraçôes propostas peles
senta a religiao catolica: dogmas, fenômeno observavel tante na cuttura hispânica co-
mo em outras culturas barrocas européias. Para isse, poderâ
Limosna de pan, seiïora, ter contribufdo a longa voga do auto sacramental e o papel
era fuerza hall arta en vos, criativo do teatro espanhol barroco, tante o religioso come o
porque el pan que nos sustenta profane, capaz de configurar personagens e estruturas drama-
ha de dar la Religion. ticas que extrapolam os limites da Penfnsula.
v,g19-22 22
***
Esse pao que sustenta os homens é, assim, a imagem do
sacramento da Eucaristia. E, em seguida à esmola de pao = El gran teatro del munda estabelece dois pianos dramâ-
Eucaristia, DISCRIÇAO, prestes a cair, é sustentada galante- ticos determinados pele teatro dentro do teatro: personagens
mente pele REl, numa alusao à tarefa contra-reformista da come o AUTOR ou o MUNDO ou a LEI DE GRAÇA passam
Es~anha, através da participaçao efetiva de sua hierarquia po-
da situaç1io de atores à de espectadores: e, enquanto especta-
lft1ca na defesa do dogma da transubstanciaçao. Ao longo do dores, sac vistos pele espectador do auto. Mas El gran teatro
nosso auto, portante, Calderon vai encaminhando o especta- del munda nao é apenas uma peça dentro de outra, pois
dor/leitor ao final apoteotico da exaltaçao do dogma quan- se us pianos se interpenetram numa "mise en abyme", quando
do, apos o julgamento dos atores/homens, o AUTOR donvida os elementos deum refletem os elementos do outre. Isse pro-
todos à adoraçao do pao diante do quai céu, munda e inferno porciona, também, a grande novidade deste auto, que se tra-
se prostram. duz na reflexao dos personagens sobre seus proprios papéis,
0 encaminhamento dos autos sacramentais à exaltaçao essa consciência de dramaticidade a que Lionel Abel chamou
do dogma da Eucaristia pode, em alguns exemples, chegar a de metateatro. 25 A consciência da dramaticidade conduz a
soluçôes que nao pareceriam fâceis de serem detectadas no discussao entre AUTOR e criatura, quando aquele distribui
desenvolvinwnto do argumente. Do proprio Calderon, La os papéis:
cena del rey Baltasar nos conduz, no seu final, à aproximaçao
do ~elho Testamento ao Nove, através do castigo pela profa- lPor qué tengo de hacer yo
el pobre en esta comedia?
naçao dos vases sagrados dos hebreus, nos quais a profecia
de Daniel jâ via a
23 Idem, ibidem, v.1657~. p. 64.
:M Para a discusslo sobre convenç6o e expresslo, v. Benjamin, op. cit., p. 179-85.
22
Calder6n, op. cit., v. 1, p. 101. 15 Teoria desenvolvlda em MetatHtro; uma vis!o nova na forma dramética.

xx XXI
lPara m( ha de ser tragedia,
1
y para los otros no?
v. 389-92
1

'
Na visao de modernidade que este auto nos revela, in·
clui-se, também, o abandono do tom sublime, através da pro-
tagonizaçao pelo personagem mais desprestigiado: se aplicar- BIBLIOGRAFIA
mos a teoria dramatica de Steen Jansen, 26 que valoriza o
personagem pelà sua "massa de répliques", comprovaremos 1 ABEL, Lionel. Metateatro; uma visâ"o nova da forma dram,tica. Trad.
que, depois do MUNDO, é o POBRE o de maior freqüência. de B'rbara Heliodoro. Rio de Janeiro, Zahar, 1968. 190 p.
Lembremo-nos, também, que ao n (vel da intriga, é ele o arti- 2 ÂVILA, Affonso. 0 /Udico e as projeç/Jes do munda barroco; Sa"o

culador das açêies dos demais personagens, aquele diante de Paulo, Perspectiva, 1971.314 p.
3 ÂVILA, Affonso. GONTIJO, Jo5o Marcos Machado e MACHADO,
quem estes se definem.
Reinaldo Guedes. Barroco mineiro; arquitetura e ornamentaçâ"o.
Sâ"o Paulo, Fundaçâ"o Jo5o Pinheiro 1 Fundaçâ"o Roberto Marin ho
*** 1 Nacional, 1980. 223 p.
4 BATAILLON, Marcel. Ensayo de explicaci6n del "auto sacramen·
Em conclusao, o auto sacramental, forma dramatica que tai". ln:-. Varia /eccion de i:/asicos ·espa'loles. Versi6n castella-
alcança seu apogeu através, essencialmente, da obra de Cal- na de José Pérez Riesco. Madrid, Gredos, 1964, cap. 11,-p. 183-
derôn de la Barca, parece·nos ser o melhor representante do 205.
barroco histôrico espanhol: pela espetacularidade, pelo reli- 5 BENJAMIN, Walter. Il dramma barrocco tedesco. Trad. di Enrico

gioso, pela visao multiface que nos oferece da realidade ou Fillippini. Torino, Giulio Einaudi, 1971. 279 p.
6 CALDERON DE LA BARCA.Autossacramentales. Pr61ogo, edici6n
pelo conflito desta coma ilusao.
y notas de Angel Valbuena Prat. Madrid, Espasa-Calpe, 1957, v. 1,
1952, v. 2.
7 ENTWISTLE, William J. La controversia en los autos de Calderôn.
ln: Nueva Revista de Filo/ogta Hispanica, México, 2 (3): 223-38,
jul.-sept. 1948.
8 HESSE, José. Vida teatral en el Sig/a de Oro. Madrid, Taurus, 1965.

134 p.
9 HOBSON. Marian. Du Theatrum Mundi au Theatrum Mentis. ln:
Revue des Sciences Humaines, Lille Ill, 44 (167): 379-94, juil.-
sept: 1977.
10 HUNTER, William A. Toward a More Authentic Text of Calderôn's
El gran teatro del munda. ln: Hispanie Review, 29:240-4. 1961.
11 JACQUOT, Jean. "Le théâtre du monde" de Shakespeare à Ca Ide·

r6n. ln: Revue de Litt11rature Comparée, Paris, 31 :341-72, juil.·


sept. 1957.
12 JANSEN, Steen. Esqui~se d'une théorie de la forme dramatique. ln:
1 26
Esquisse d'une théorie de la forme dramatique, p. 78. Langages, Paris, (12) .: 71-93, déc. 1968.

XXII XXIII
13
JOHNSON, Harvay Leroy. Nuevos datas para el teatro mexicano en
la primera mltad del sigle XVII: referencias e dramaturges, come-
diantes y representaciones dramaticas. ln: Rev;sta de Fi/ologfa
Hispfmica, Buenos Aires, 4 (2) : 127-51, abr.-jun. 1942.
14 LAZARO CARRETER, Fernando. Teatro medieval. 3. ed. Madrid,

Castalia, 1970. 287 p.


15
LOHMANN VILLENA, Guilhermo y MOG LIA, Raûl. Repertoria de
las representaciones teatrales en Lima hasta el sigle XVIII. ln: Re-
vista .de Fi/o/ogfa Hispanica, Buenos Aires, 5 (4) : 313-43, oct.- 0 GRANDE TEATRO DO MUNDO
dic. 1943.
16
OROZCO DfAZ, Emilio. El teatro y la teatralidad del barroco; en- Surge o A UTOR corn manto de estrelas e resplendor na cabeça.
sayo de introducci6n al tema. Barcelona,..Pianeta, 1969.425 p.
17
ORTEGA Y GASSET, José.ldea del teatro. Madrid, Revista de Dcci- AUTOR
dente, 1958. 102 p.
18
PARKER, Alexandre A. The Al/egorical Drama of Calder6n; an In- Formosa compostura
troduction to the Autos Sacramentales. Oxford 1 London, The dessa varia inferior arquitetura,
Delphin Book Co., 1943. 232 p.
19 que, entre sombras distantes,
PFANDL, Ludwig. Hist6ria de la literatura nacional espaflo/a en la
Edad de Oro. Trad. del aleman por Jorge Rubi6 Balaguer. 2. ed. a .esta celeste roubas seus brilhantes,
Barcelona, Gustavo Gili, 1952.707 p. [)
20
RENNERT, Hugo Albert. The Spanish Stage in the Time of Lope de 5 quando corn flores be las
Vega. New York, Dover, 1963. 403 p. o numero compete corn as estrelas,
21 ROMEU FIGUE RAS, José. Notas al aspecta dramatico de la proce- sendo, corn resplendores,
si6n del Corpus en Cataluiia. ln: Estudos Escénicos, Barcelona, hu mano céu, pois de caducas flores.
1:27-41,1957. Campan ha de elementos,
22
SANTOS, Maria de Lourdes Martini Teixeira dos. 0 auto sacramen- 10 cam montes, raïas, pélagos eventas:
tal, expressa'o do barroco espanhol. ln: 0 BARROCO; nas artes corn ventas, onde graves
plasticas, na literatura, no teatro. Rio de Janeiro, UF RJ 1 CLA 1 e âgeis te sulcam os baixéis das aves;
FL, 1977,p.29-49.
23
STRUBEL, Armand. "AIIegoria in factis" et "AIIegoria in verbis". [l
ln: Poétique, Paris, 6 (23) :342-57, juil.-sept. 1975. corn pélagos e mares, onde fretas
24
VOSSLER, Karl. Formaspoéticasde Jos.pueb/osromanicos. Ordena- de peixes vlio par âguas tao ignotas;
das par Andreas Ba uer. Trad. de José Maria Coco Ferraris. Buenos 15 corn raïas, onde rouco
Aires, Losada, 1960. 361 p. te ilumina corn 6dio o fogo louce;
2
s WARDROPPER, Bruce W. Jntroducci6n al teatro re/igioso del Sig/a corn montes, onde donos absolutos
de Oro; evoluci6n del auto sacramental: 1500-1648. Madrid. Re- te passeiam os homens camo os brutes,
vista de Occidente, 1953. 330 p. sendo, em contfnua guerra,
20 monstre de fogo e ar, ede agua e terra.
[]
Tu; que, sem pre diverse,

XXIV 1
a fabrica feliz deste universo 1
és, prodfgio primeiro sem segundo, e co mo sempre ha sido
epar chamar-te de uma vez, tu, Munda, o que de mais alegre e divertido
45 de representaçao bem aplaudida,
[l e é representaçao a huma na vida,
25 que nasces camo o Fênix em sua fama
1
de tuas pr6prias cinzas. uma comédia 2 seja
a que hoje o céu em teu teatro veja.
Aparece o MUNDO por outra porta. Se sou Autor3 e se é mi nha a festa,
50 a companhia min ha encargo desta.
MUN DO E jaque eu escolhi entre os primeiros
Quem me chama, os homens, e eles sao meus companheiros,
que, ja no dura centra eles, ja no teatro
do enorme globo que me esconde dentro, do mundo, que contém de partes quatro,
1

asas visto velozes? 55 com estilo adequado


1
30 Ouem me tira de mim, que me da vozes? hao de representar. E sera dado,
pois, o papel que a cada um convenha;
AUTOR e porque em festa igual sua parte tenha
0 teu soberano Autor. o formoso aparato
Um suspiro de mi nha voz, do amor 60 de cenarios, de trajes o ornato,
um gesto é quem te informa prevenido hoje quero
e a tua escura maté ria lhe da forma. que, alegre e liberal, tai como espera,
fabriques aparências
MUN DO que de duvidas passem a evidências.
35 0 que me mandas, .pois? Tens-me a teus pés: 65 Seremos, eu, o Autor, pois, neste instante,
tu, o teatro, e o homem, recitante.
AUTOR
Pois sou oAutor e tu min ha ob ra és, MUN DO
hoje, deum meu conceito Autor generoso meu,
a execuçao em tuas maos eu deito. a cujo poder, a cujo
Que festa fazer quero \
40 a meu pr6prio poder, se considera 2 No teatro espanhol da épaca, a palavra comédia tanta podia significar o gênera
que s6 por ostentar mi nha grandeza dramâtico que se opde à tragédie, camo o gênera h(brido da tragicomédia
'festas fara mi nha obra, a natureza; ou, ainda, qualquer ob ra teatral. Neste auto sacramental, Calder6n usa a pa-
lavraora num sentido, ara em um dos out ros.
3 0 AUTOR que havia entracte em cena caracterizado como Deus = criador,
1
"A fabrica feliz" do Universo é a Terra, definida pela poeta oomo construçâo oom m~nto de estrelas e resplendor na cOOeça, é agora o emprestirio da
bem realizada. Jci foi observado por ,um crftico o paradoxe barroco pro- oompanhia teatral, de acordo oom o significado daquela palavra ~a ter~i­
pasto por Calder6n co mo atributos da Terra, em que solidez de construçâ'o nologia dramtitica da época (o autor do texto era chamado de mgemo).
combina cam f/uidez, caracterfstica de sua constante transformaçâ'o ("sem- Calder6n joga oom as duas acepçëes, criador e empresârio, ao longo da
pre diverse", v. 21 ). peça.
1

2 3
Il
1!
1

'1

acento obedece tudo,


70 o grande teatro do mu ndo corn belfssimos debuxos,
. '
eu, a que em mim representem 105 engenhosas perspectivas,
os homens e, a cada turno, que cause espanto, presumo,
achem sempre a convençâ'o fazer a mile natu rez a
que o papel impôe a tudo, quadro tao hab il sem estudo.
75 como parte obedencial, As flores mal despontadas
porque eu somente executo 110 de se us rosados capulhos
o que ordenas, pois se é mi nha sai rao por primeira vez
a obra, o milagre é sumo, a ver a aurora corn susto.
primeiramente, porque é As ârvores estarao
80 sempre de gosto e mais justo cheias de gostosos frutos,
nâ'o se vero tablado antes 115 se nao houver a serpente
do ator ser do no do assunto envenenado jâ tudo.
de um negro véu o terei ' Mil cristais se quebrariio
todo coberto e oculto, em seixos, dando seu curso,
85 que seja um caos, onde estejam para que chore a aurora
os elementos confusos. 120 mil aljôfares miudos.
Descerrarei essa névoa, E para que mais campeie
e ao fugir o véu escuro, este hu mano céu, eu julgo
para iluminar o teatro, que esta râ engastado
90 (porque sem brilho profuso de va rios campos incultos.
nâ'o ha festa), brilharâ'o 125 Onde preciso existir.
dois luminares, diurno montes e vales profundos,
farol do dia seja um, havera val es e montes;
e, assim, da noite noturno e rios, sagaz e astuto,
95 farol o outro seja, em quem ardam fazendo val as a terra,
mil luminosos carbunculos4 130 levarei, por seus condutos,
que sobre a face da noite braços de mar dessangrados
dêem vivi dores influxos. que corram por va rios rumos.
No primeiro ato da peça, Depois da prim eira cena,
\100 simples começo de tudo o chao de casas desnudo,
na grande lei natural, 135 num s6 instante ven!s
la pelos primeiros lustros como republicas fundo,
aparecerâ um jardim como cidades fabrico,
como alcâçares descubro.
4
Carbllncu~o éo nome antigo de uma variedade da granada, da quai se dizia E, quando solicitados,
que bnlhava nas trevas co mo brasa. 140 os montes fatiguem juntos

4 5
'!1
1 :

a terra corn o grande peso, todo o cristal do mar ruivo;


1
1" os ares corn o denso vulto, 175 a mo ntoadas as agu as,
mudarei todo o teatro, vera o sol que lhe descubro
:li 1 145
porque tudo, mal seguro,
se vera coberto de agua
os mais ignorados seios
que jâ vira em tantos lustros.
i 1
corn a sanha deum diluvio. Corn duas colunas de fogo,
1 :
no meio de tanto golfo 180 me parece que ja alumbro
e nos fluxos e refluxos o deserta, antes de entrar
de ondas e nuvens, vira, no tao prometido fruto.
150 fazendo ignorados sulcos, Para sair corn a lei!
pelas âguas um baixel, Moisés, a um monte robusta,
que, flutuando seguro, 185 u ma nu vern leva ra
grâvido trani seu ventre em vôo breve e segu ro.
de homens, de aves ede brutos. 0 segundo ato, assim,
155 Ao sinal que, lâ do céu, fim terâ num furibundo
de paz farâ um arco ruivo eclipse, em que todo o sol
de três cores, amarelo 190 se hâ de ver quase defunto.
violaceo e purpureo.S Ao ultimo parasismo
todo esse grêmio das ondas, se vera o orbe ce ru leo
160 obediente ao estatuto, titubear, varrendo tantos
da râ lugar, observando para le los eco lu ros.
leis que antecedem a tuda, 195 Os mpntes se agitarao
ao dorso duro da terra, e delirarao os mu ros,
que, ao sacudir·se do jugo, deixando em palidas ru fnas
165 levantara seu semblante, tanto escândalo caduco.
bem que macilento e murcho. E o terceira ato vira,
Acabado o primeiro ato, 200 trazendo consigo anuncios
1
logo vira o segundo, de haver maiores portentos,
rli lei escrita em que pôr' por serem os milagres muitos
1
170 mais aparências procura, desta lei de graça em que
': pois, para passar a ela, ociosamente discurso.
passarao corn pés enxutos 205 Corn isso nos atos três,
os hebreus, vindos do Egito, três leis e um s6 estatuto,
6 0 decélogo dos hebreus, que Moisds recebeu de Deus no Monte Sinai, camo se
5
0 an:o-(ris t1 vista nas suastrês cores primérias:o amarelo, o azu/ e o verma/ho. conta em Exodo, 20, ~ersfculos 1-17. No v. 655, a LEI entra em cena, ale-
0 poeta retama aqui a representaçâ'o do arca-fris como si na/ da aliança en- gorizada na personagem que far.l, também, na peça dentro da peça, o pape/
tre Deus e os ho mens, conforme o Gênese, 9, vers(culos 9-17. de ponta, conforme fora anunciado pela AUTOR, no v. 478.

6 7

L
ilIl.•'·

,Il; 245 para vestir os papéis


os homens dividirao
; ~~~: as três idades. do mu ndo; darei, prevenido e justa,
11: até à cena final, ao que houver de fazer rei,
''.,,
.
210 o palco, que traz seguro purpura e laurel augusto;
1 1.
1

tao grande aparato em si, ao valente capitao,


1•
1

' 1:
uma chama, um raio puro 250 armas, valores e triunfos;
cobrin!, porque nao faite ao que fizer o ministro,
fogo na festa ... Oue muito livras, escolas e estudos.
215 que aqui, balbuciante o labio, Ao religioso, obediências;
fique absorto, fique mudo? ao criminoso, insultas;
S6 de pensar, estremeço, 255 ao nobre, lhe darei honras
de imaginar, me perturba, e liberdades ao vulgo.
de repeti-lo, me assombro; Ao lavrador, quem a terra
220 de lembnHo, me consuma. fara fértil apôs dura
Mas dilate-se esta cena, trabalho, cul pa de um néscio, 7
este passa horrfvel e duro, 2110 lhe dou instrumentas brutos.
de modo que nunca o vejam E, a quem houver de fazer
todos os tempos futuros! a dama, lhe darei sumo
225 Prod fgios verao os ho mens adorno nas perfeiçoes,
em três atos e em tudo doce veneno de muitos.
dessa representaçao 265 S6 nao vestirei o pobre
nada faite por descuido. porque é pape! de desnudo.
E, pois, que previsto tenho E assim nao ven ha ninguém
230 quanta ao teatro, presuma queixar-se depois ao munda
que esta tudo agora; quanta que para representar
ao vestuario, segura 270 recebe o adorno justa,
que ali em tua mente o tens, pois, quem bem nao 0 fizer,
.i sera defeito segura
'l',1
1!: 1
pois la em tua mente juntos,
235 antes de nascer, os homens seu, nao meu. E pois ja tenho
recebem aplausos justos. todo o aparato junto,
E para que de ti todos 275 vinde, vos, vinde, mortais,
'! a representar no mu ndo a enfeitar-vos corn tudo
saiam e voltem depois, para que representeis
240 jâ preveniu meu discurso neste teatro do munda!
duas portas: uma é o berça 7
Refere-se a Adâ'o, que, ao perder as graças do Para(so pela pecado original,
e a outra é a do se pu lcro.
obrigou o gênera hu mano a obter o alimenta pela trabalho (Gênese, 3, ver-
E para que nao lhes faltem s(culos 17-9). No v. 558, o LAVRAOOR volta à mesma referência.
as galas e adornos juntos,
8 9

1
llr
[1 A UTOR LAVRADOR
: ~~~ Mortais que ainda nâ'o existis Autor soberano meu,
280 e j a vos cha mo mo rtais, 310 a quem portai grato sou,
l' a teu mandamento estou
pois para mim sois iguais,
'1 antes de ser, assistis, como ob ra deum gesto teu;
Il inda que a mim nâ'o ouvis, e pois tu sabes, nâ'o eu,
vinde, assim, a estes vergéis, que a Deus ignorar nâ'o vem,
Il 285 que, cingido de lauréis, 315 que papel a mim convém,
1.
palma e cedros, vos es pero, se este papel eu errar,
i;,
1 porque eu entre todos quero de le nâ'o vou me queixar
1
repartir estes papéis. mas de mim, de mais ninguém.
'11
1 Entram em cena o RICO, o REJ, o LA VRADOR, o A UTOR
POBRE, a FORMOSURA, a 0/SCR/ÇAO, e uma CR lANÇA. Ja sei que se para ser
1
320 o homem escolher pudera,
REJ ninguém o papel quisera
1
Jâ estamos à obediência, do sofrer e padecer;
290 Autor nosso, que exigido todos quiseram fazer
nâ'o foi o haver nascido o de mandar e reger,
para estar em tua presença. 325 sem advertir ou sem ver
Alma, sentido, potência, que, em ato tâ'o singular,
vida nem razao nos temos; aquilo é representar
'1
295 todos informes nos vemos, mesmo ao pensar que é viver.
dos teus pés 0 po do ch'â'o. Como Autor soberano, eu
!. Sopra, Autor, o po, entao, 330 sei bem que papel fa ra
para que representemos. melhor cada um; e assim va
1 a mao dando a quem 0 seu.
1,, FORMOSURA Faze tu o Rei..
,,~ 1 Sb em teu conceito estamos,
1 300 nem alma nem vida temos, REJ
nao sentimos, nada vemos, Hon ras eu!
nem do bem ou mal gozamos;
se ao mu ndo porém nos vamos AUTOR
todos a representar, A dama, que é a formosura
305 nossos papéis podes dar, 335 huma na, tu.
pois em tai ocasiiio
i' nâ'o gozamos de eleiçâ'o FORMOSURA
para havê-los de tomar. Oue ventu ra!

10 11
'1Il.'1'
e assim serei nesta peça
o pior representante.
A UT OR
Como sois sâbio, me dais
Faze o rico, o poderoso.
360 como o ofrcio, o preciso,
RICO
e, assim, o meu pouco siso
sofreis e dissimulais.
Enfim nasço venturoso
Neve como lavés dais:
a ver do sol a luz pu ra!
justo sois, nao vou queixar-me;
365 e, pois, que jâ a perdoar-me
AUTOR
se mostra aqui vosso amor,
Tu farâs o Javrador.
farel meu pape!, Senhor,
LAVRADOR
devagar, por nao cansar-me.
3.40 Ë ofrcio ou benefrcio? 8 AUTOR
Tu, a discriçao farâs.
AUTOR
É um trabalhoso of(cio.
DISCRIÇÂO

LAVRADOR
370 Venturoso estado sigo!
Serei mau trabalhador.
AUTOR
Por vossa vida, Senhor,
Faze o m(sero, o mendigo.
ainda que fil ho de Adâ'o,
345 tai trabalho nâ'o deis nâ'o, POBRE
ainda que deis possess5es,
Pois este papel me dâs?
porque tenho presunç5es
que hei de ser mui folgazâ'o. A UT OR
De meu natural espero,
Tu, sem nascer, morrerâs.
350 com sertao moço, Senhor,
que serei mau cavador CR lANÇA
,!1·11
e nao ter na quinta esmero; Pouco estudo o papel tem.
li.\
se aqui valera um ':nao quero",
1 disse ra, mas sei, di ante A UT OR
355 de um autor tao elegante,
375 De mi nha ciência vem
que nada um "nâ'o quero" expressa,
que represente o que viva.
8 0 poeta se ap6ia na frase feita "no tener oficio ni beneficia", também existan- Justiça distributiva 9
te em portugut!s, que significa "nâ'o ter ocupaçâ'o nem renda". Nos v. 759- sou, sei o que vos convém.
60, aparecem dois sentidos de beneffcio: o técnico, de renda, que é aquilo
que reverte para o LAVRADOR pela trabalho realizado, e o corrente, de 9 A justiça distributiva se opO'e à justiça comutativa: enquanto esta manda dar a
bem que se faz a a/guém (no texte, à terra), usado ironicamente pela per- cada um o que é seu, a primeira dâ segundo o que cacia um mereceu ganhar,
sonagem. tema desenvolvido neste auto sacramental.

12 13
POBRE iguais pobre e rei, e hei
Se eu pois pudera escusar-me 415 de assim julgar o que dei.
380 deste papel, me escusara, Faze bem o teu e pensa:
quando mi nha alma repara na ho ra da recompensa,
no que tu quiseste dar-me; eu te igualarei com o rei.
e, assim, jaque declarar-me Nao porque pena te sobre,
nao posso, se bem quisera, 420 sendo pobre, é na lei
385 o tomo, mas considera, melhor papel o do rei.
se vou fazer o mendigo, Se bem faz o seu o pobre,
nao, Senhor, o que te digo, um e outro de mim cobre
o que dizer-te quisera. todo o salârio de pois
Porque devo fazer eu
390 o pobre nesta comédia? 425 que houver merecido, pois
Vai ser para mim tragédia se gan ha em qualquer medida,

1~
se outrem tudo recebeu? que todos, na huma na vida,
Ouando tai papel me deu representantes vos sois.
tua mao, niïo deu também Depois da peça acabada,
395 alma igual como a de quem 430 vira cear a meu lado
J farâ o rei? lgual sentido? o que houver representado,
lgual ser? Pois, porque ha sido sem haver errado em nada,
1, dado a mim como a ninguém? sua parte mais acertada:
Se de ·outro barro fizeras, ali vos igualarei.
400 se de outra alma me adornaras,
menos vida me fiaras, FORMOSURA
men os sentidos me de ras; 435 Dizei, Senhor, que eu nao sei
ja parece que tiveras co mo na 1fngua da fa ma
outro motivo, Senhor. esta co média se chama?
405 parece, porém, rigor,
perdoa d izer, cruel, A UT OR
receber me lhor papel Deus é Deus, o bem fazei.
nao sendo de ser melhor.
REl
i
'1
AUTOR Importa que nao erremos
Nessa representaçao 440 comédia tao misteriosa!
1
410 igualmente satisfaz
'1 o que bem ao pobre faz, RICO
1
com afeto, alma e açao, Para isso, é_açao forçosa
'1 co mo o que ao rei faz, e sao
'

i
1' 14 15.
'

l
que primeiro a ensaiemos. quanta é nascer e marrer.
:1 Estai sem pre prevenidos
DISCRIÇÂO 470 para o papel acabar,
Camo ensaia·la podemos que ao fim de I.e vou chamar.
se nos estamos a ver
445 sem luz, sem alma e sem ser POBRE
E par se acaso os sentidos
li antes de representar?
talvez se vejam perdidos?
POBRE
Pois, camo, sem ensaiar, A UT OR
vai-se a comédia fazer? Para issa, comum grei,
475 terei, desde o pobre ao rei,
1

LAVRADOR para emendar quem errar


Do pobre aprovo a razao, e, a quem nao sabe, ensinar,
450 assim o sinto, Senhor, junto ao ponta, min ha lei;
(que sao pobre e lavrador ela a todos vos dira
coma un ha e carne da mâ'o). 480 o que vos cabe fazer
Se as peças velhas estao par queixoso ninguém ser.
de mu ito representar, Livre arb(trio tendes ja,
1
455 se nao se volta a ensaiar, e pois prevenido esta
se erra, entao, quando se prova, o teatro, a todos vem
:. se nao se ensaia esta nova 485 medir que tamanho tem
i: camo se vai acertar? esta vida.
i

AUTOR DISCRIÇÂO
1
Chegando agora a saber Que esperamos?
1
460 que, sendo juiz o céu, Vamos ao teatro!
n inguém erra ou sabe ao léu
''.i~ quando é nascer e marrer. TODOS
Vamos!
FORMOSURA Deus é Deus, fazei o bem!
~'
':
Camo nés vamos saber
,, ' quando ha que entrar e sair
465 e a que ho ra hâ de cair? Quando vila sa ir de cena, aparece a MUNDO que
! i
'' osdetém.
'1 A UTOR
1
Também tem-se que ignorar
1
e de uma vez acertar

16 17
MU N'DO
MUN DO
Ja esta tudo prevenido Como chegas tao leviana
490 para que se represente 510 a representar no mundo?
esta comédia aparente
FORMOSURA
que faz o hu mano sentido.
Pois neste papel me fundo.
REl
Louro e purpura vestido! 1 0 MUN DO
Quai é?
MUN DO
FORMOSURA
Porque purpura e laurel?
Formosura humana
REl
495 Porque faço este papel. MUN DO
Cristal, carmim, neve e grana
Mostra-lhe o pape/, toma a purpura limem sombras desiguais
e a coroa e se vai. 515 que brilham mais que os metais.
Da-/he um rama de flores
MUN DO
Ja aqui prevenido esta. FORMOSURA
Il Pr6diga estou eu de cores.
Servi-me de alfombra, flores.
FORMOSURA
1
A mim, matizes me da sede de espelho, cristais.
de flores, fonte do mel. Retira-se!
1
1

Fol ha a fol ha e raio a raio


500 se desatem à porfia RICO
1
todas as luzes do dia, Da-me riquezas de ti,

:~ todas as flores do maio; 520 gozos e felicidades,


padeça mortal desmaio pois para prosperidades
1
de inveja, ao olhar-me o sol, ven ho ho je aviver aqui.
505 e pois que tanto arrebol
o girassol ver deseja, MUN DO
1

a fior de min ha luz seja, Minhas entranhas por ti


1 sendo o sol meu girassol. a pedaços romperei;
1
525 de meu seio arrancarei
1
10 con st ruçao
- . ât'•ca con hec1'd a camo acusatwo
smt • grego, usada pelas escritores toda prata e todo ouro
•1
1

barrocos, que procuravam voltar às estruturas e formas das duas l(nguas que num avaro tesouro
cl8ssicas, grego e latim. "Vestido de loura e pUrpura" é a leitura correta do
verso.

18 19
dira que nâ'o lhe atendeu; a fome, a dura nudez,
l' e èle, assim tâ'o mal como eu, o choro, viver sem vez,
representou seu pape!. a imundfcie, a baixeza,
Retira-se o desconsolo e pobreza,
'1
595 a sede, a penalidade,
POBRE mais a vil necessidade,
'~ Jaque em todos tantos ditas, que tudo isto é a pobreza.
570 gostos e alegrias vi,
1 '
peço pesa res a ti. MUN DO
i 1 A ti nada hei de dar:
Da-me penas e desditas;
e nao das ventu ras ditas · quem vive em aperto fundo
laurel e purpura quero, 600 nada recebe do munda;
575 be las cores nao espera, antes te pensa tirar
prata e ouro nao mereço. estas roupas, que has ae andar
Somente remendos peço. desnudo, para que acuda
ao meu cargo toda ajuda.
MUN DO Desnuda-o
Teu pape! dize sincero.
POBRE
POBRE 605 Enfim;este munda peste,
Ë meu papel a afliçao, ao que esta vestido, veste
580 angustia e miséria é, e ao que desnudo, desnuda
580b o nunca merecer fé, 1 1 Retira-se
a desdita ou a paixao,
a dor ou a compaixao, MUN DO
o suspirar, o gemer, Jâ que de varias estados
o sentir, o padecer, esta todo o teatro cheio,
585 importunar e rogar, , 610 pois se vejo um reio no meio
o nunca ter o que dar; de impérios tao dilatados,
1: o sempre a pedir viver. beldade, a cujas cuidados
1
., 0 desprezo, a esquivez, se adormecem os sentidos,
'1 todo oprébrio e sentimento, poderosos aplaudidos,
1

r'1.l
590 a vergonha, o sofrimento, 615 mendigos tao andrajosos,
lavradores, religiosos,
Il que foram introduzidos
Criamos esse verso, que falta nas ediç5es antigas do auto, a fim de ficar com- por fazer os personagens
pleta a dt!cima, estrofe usada pelo poeta para expre_ssar as queixas do PO-
BRE. desta comédia e a quem

22 23
l''
' .1'
1

i:l 620 o teatro dou e, também, 645 e quanto esta debaixo desse véu,
as vestimentas e trajes que, em trono celestial,
1' ârbitro é sempre do bem edo mal. 12
de esmolas como de ultrajes,
1

vern, divino Autor, a ver


Retira-se
1
as testas- que vao fazer
625 os ho mens! Abra-se _o centro
AUTOR
Nada me soa mel hor
lj da terra, pois que lâ dentro
o cenârio ha de ser!
que, em voz de homem, este fiel
650 hino que cantou Daniel
n Com musica se abrem ao mesmo tempo para amainar o furor
dois globos: num, havera um trona de de Nabucodonosor.
1:
gloria e, nele, a AUTOR sentado; no
"' outra havera duas portas: um berça MUN DO
i Il
' ' pintado numa e, na outra, um ataude. Ouem hoje a loa 13 dira?
' 1

Porém no cenario ja
AUTOR 655 a Lei convida, corn voz
Pois para min ha valia que corre clara e veloz,
foi que arrumei o tablado, e em e levaçao esta
630 neste meu trono sentado, por sobre a face da terra.
onde é eterno meu dia,
verei min ha companhia. A LEI DE GRAÇA aparece numa elevaçao,
Homens que este chao pis.ais, que estara sobre onde estiver o MUNDO,
do berço vindos iguais e cam um pape/ na mao.
635 e à morte indo sem calor,
LEI
pois do céu vos vê o Autor,
vede o que· representais. Eu, que Lei de Graça sou,
660 a testa introduzir vou.
Aparece a DISCRIÇAO cam um instrumenta Para emendar a quem erra,
musicale cantando, neste meu papel se encerra
a co média, de que sois
DISCRIÇÂO auto res de tao s6 dois
Bendigam ao Senhor de terra e céu 12
Calder6n se inspira no hino cantado pelostrësjovens hebreus aquem Nabuco~
o sol, lua e estrelas; donosor mandera atirar na fornalha de togo ardente, confGrme se lê em
;,·, 640 louvem-no sem pre as be las Daniel, Ill, vers(cu los 62-72.
'1
flores, do chao rico e sutil dossel, 13
A /oa, no teatro espanhol da época, era um mon61ogo ou diéilogo que precedla
louvem-no o fogo, o gelo e a luz do céu, a representaçâo do auto, funcionando conY.I pr61ogo. A tala da LEI, que
começa no v. 659, ex:erce a funçâ'o que caberia é /oa, anunciando a peça a
o orval ho sobre o chao,
ser representada. Lembremo-nos de que este auto é uma representaçâO
0 inverno e 0 verao
teatral que contém outra, a que começa neste rnomento.

24 25
l1 665 versos que dizem aqui:
Canta nunca o olfato, o brando cler
Ama o outre come a ti! de seus fragrantes aromas?
i
Deus é Deus, faze o bem pois! Para que aves engendrou,
695 que em clâusulas lisonjeiras
1
MUN DO liras de pluma sac, pois
A Lei, recitando a Ica, nao ha de ouvi-las nosso ouvido?
também corn o ponte ficou.
~: 670 Aplaudir quisera eu,
Para que galas, se foi
por nao rasgâ-las 0 tate
[l 700 corn ambiçao e fervor?
~
'

' vulgo desta festa sou. Para que tao deces frutos,
.•
Mas calarei, porque ja se nao 1hes cabe camper
l a comédia começou. manjares, que gaze o gosto
Surgem a FORMOSURA e a D/SCRIÇAO pela de um sabor e outre sabor?
porta do berça. 705 Para que fez Deus, enfim,
montes, val es, céu e sol,
FORMOSURA se os olhos de ver nao hao?
675 Vern comigo a passear Parece e com razac, pois,
por estes campos em fior, ingratidao nao gozar
suave pâtria do maie, 710 maravilhas do Senhor.

j
doce 1isonja do so 1,
que sô conhecem aos dois, DISCRIÇÂO
680 dando, pois, somente aos dois, Gozâ-las para louvar,
resplendores, raie a raie, juste e 1fcito tai foi,
e matizes, fior a fior. e dar-I he graças por elas.
Gozar as belezas por
DISCRIÇAO 715 usar de las tao ma), nao,
Jâ sabes tu, porém, que eu que o dia talvez chegou
sair de casa nao vou, de ver toda criatu ra
685 por nao quebrar a clausura sem lembrar do Criador.
a quem tao dôcil me dou. De casa nao sairei.
Para sepultar-me foi
FORMOSURA 720 que entrei nesta religiao:
Tude é sempre para ti Discriçao por issa sou.
austeridade e rigor? Afastam-se
Nao te dâs prazer um dia? FORMOSURA
690 Oize, Deus, porque crieu Eu, por Formosura ser,
flores, se nao vai gozar avere ser vista vou.

26 27
Il 1

J'· MUNDO 745 mostre min ha mesa quanto


'1 725 Pouco tempo Formosura ou corre ou voa no céu.
corn Discriçao concordou. Seja meu leito a estera
de Vênus; e, assim, digo eu,
i FORMOSURA a preguiça e as delfcias,
Po nha redes meu cabelo 750 a gu la, inveja e poder
e laços ponha o amor tomem posse do meu ser.
18 ao mais tfbio afeto, ao
730 coraçao que viva s6.
Aparece o LA VRADOR

LAVRAD'OR
MUNDO Trabalho maiorque o meu
1 Uma acerta e a outra erra, quem ja viu? Rasgo eu o seio
quando assim representou. a quem o seu ja me deu:
755 assim foi que me entregou
DISCRIÇÂO todo o alimento meu.
~il Que farei para empregar Do arado que a corta ao meio
bem meu ser? ministro sou sempre eu,
'
pagando-lhe o beneffcio
1
FORMOSURA 760 corn o que mi nha mâ'o lhe deu.
Que fazer vou Foice e enxada, minhas armas
1!;•' 735 por gozo de formosu ra? , corn que luto cada vez:
corn a enxada, no chao duro,
'LEI corn a foice, ao colher.
Canta 765 Nos meses de abril e maio,
' Deus é Deus, faze o bem pois! hidr6pico amor me vern,

j A Formosura tai voz,


MUN DO

que é do ponto, nao chegou.


Aparece o RICO
770
e se me tiram a agua,
bem pior me sinto eu.
Aumentando algum tributo
deste mundo, por render,
dirigem a pontaria
1
contra o pobre camponês.
·1
1
RICO Mas, pois trabalho e pois suo,
Pois prodigamente o Céu os frutos que entao colher
til 740 fazenda e poder me deu,
!i 775 me ha de pagar quem os compre
prodigamente se gaste ao preço que queira eu.
;~'
no que ser delfcias sei. Nao quero atender à taxa
Nada me pareça bem ou à opiniâ'o me ater
que ja nâ'o o deseje eu:

i 28 29
1
:'
de quem, porque ha de comprar, quem viu miséria pior
780 culpa quem nao a atendeu. do que a mi nha? Este chao dura
E sei mais: que se nâo chove é o mais suave e me lhor
este abri!, que rogo a Deus leito meu, que ainda que seja
1

j que riâo chova, meu ce lei ro BOO seu dosse! o céu maior,
mais ducados vai valer. descoberto sem pre esta
1l' 785 Com issa um Nabai-Carmelo 14 ao fria orval ho e ao calor;
desta regiâo serei, a famee a sede me afligem.
1

Ill todos de mim precisando, Paciência dai-me, Senhor!


porém, muito vaidoso eu,
o qua me cabe fazer? RICO
805 Que farei por ostentar
LEI tanta riqueza?
Canta
790 Faze o bem, que Deus é Deus! POBRE
Qtre vou
DISCRIÇÂO fazer para tai sofrer?
Coma nâo ouves o ponta?
LEI
LAVRADOR Canta
Sou surdose me convém Faze o bem, Deus é o Senhor!

MUNDO POBRE
Ele nos se us treze estâ. Oh, camo esta voz consola!

LAVRADOR RICO
Nos meus quatorze estarei. 15 810 Oh, camo cansa esta voz!
Apa(ece o POBRE
DESCRIÇÂO
POBRE Entra, anunciando a chegada do REl
1
795 De quantos no munda vivem, 0 Rei vem a estes jardins.

1~ 14
0 poeta une duas refe~dncias: Nsba/ e Cannelo, o homem rico e o local onde
RICO
Quanta à mi nha ambiçao d6i
tin ha propriedades, segundo o Livro 1 de Samuel, 25.
15
"Estar nos seus treze", em portuguts, ou "estarse en sus trace" ou "mante· prostrar-se a alguém!
narse en sus trace", em espanhol, signifiee teimsr, psi'$/Stir ou lns'lstir em
dsttlrminiKfa posiçio. Na sua resposta, o LAVRADOR leva sua decislo a
um grau maior de ihsirtencla.

30 31
il
i!
!' 1

FORMOSURA MUNDO
Surgindo A todos, na sua vez,
Diante dele, o ponto diz o melhor.
mui graciosa hei de me pôr, l'
815 para ver se a formosura POBRE
sabe rendê-lo ao a mor. 835 Daqui da min ha miséria
olhando infeliz estou
LAVRADOR alheias felicidades.
Eu detras ... Que nao lhe ocorra, 0 rei, supremo senhor,
vendo que sou lavrador, goza de sua majestade,
da~-m:_ corn um novo arb(trio, 840 po rém nu nca se lem brou
820 pms nao espero outro favor. de quem de le necessita.
Aparece oREl A dama, em tai esplendor,
nao sabe se ha neste mundo
REl necessidades ou dor;
A meu dilatado império 845 a religiosa què vive
estreito limite foi sem pre a rezar corn fervor,
quanta prov(ncia contém se bem a Deus serve, serve
esta maquina inferior. 16 comodamente ao Senhor.
825 De quanto circunda omar 0 lavrador, se cansado
edo que ilumina o sol, 850 volta do campo, ja achou
sou sumo e unico do no, ho nesta mesa sua forne,
sou o supremo senhor. se opu !enta nao ac hou;
Os vassalos do meu reino o rico de tudo goza;
830 se prostram por onde vou. eu, no mu ndo, é quem sô
Que mais preciso no mundo? 855 a todos ven ho a ped ir
e, assim, ho je a todos vou,
LEI pois, se eles vivem sem mim,
Ganta eu de les cativo sou.
Faze o bem, Deus é o Senhor! À Formosura me atrevo
860 a pedir. Por Deus, a v6s 17
peço pao. 1

16
0 Universo, par analogia corn um mecanisme onde as partes se organizam e se
17 Calder6n, neste auto, marcou as relaçOes-sociais pelas formas de tratamento.
movem cam determinada disposiçâ'o e ordem, foi, freqüentemente, nesse
perfodo literério, referido co mo mBquina. "Méquina inferior" é a Terra Enquanto, na peça dentro da peça, onde eclodem os conflitos sociais, as
onde o adjetivo n§o é depreciative, mas tem sentido espacial, opondo ~ demais personagens dâO e recebem o mesme tratamento, o POBRE se
Terra âs outras partes do Universo, percebidas pela homem oomo superio- acha em relaçâ'o assirnétrica, dirigindo-se a todos por v6s e sendo tratado
res, por estarem.acima, no céu. por tu. Observe-se que a DISCRIMINAÇAO, que representa a religilo ca-
t61ica, desfaz essa relaçâ'o assimétrica respondend~ ao POBRE corn v6s

32 33

l
FORMOSURA
Dizei-me, fontes,
pois que meus espelhos sois, RICO
que galas me vao tao bem?
Nao dou.
Que adornos me estao melhor?
MUN DO
POBRE
865 Nao me ouvis? 0 avarento e o pobre, assim,
da parabo la sois vos.
MUN DO
Néscio, nao vês POBRE
Il
quao tolo é teu pressupor? .1 Se a tanta necessidade
Porque ha de cuidar de ti ·1
ji lei ou razao lhe faltou,
quem de si se descuidou? 885 ao proprio rei vou pedir.
Dai-me uma esmola, Senhor.
POBRE
Dirigindo-se ao R !CO REl
Jaque vos sobra fazenda, Para isso tenho eu
870 dai-me, entao, esmola v6s. nomeado o esmoler-mor.

RICO MUN DO
Nao ha portas em que chamar? Corn seus ministres, o rei
Entras, assim, onde estou? 890 a consciência acalmou.
Que nos umbrais do saguao
deveras chamar e·, pois, POBRE
875 nao chegarias a mim. Lavrador, pois recebeis
toda bênçao do Senhor,
POBRE que cada grao semeado
Nâ"o me trateis corn rigor. se multiplica por dois,
895 Mi nha pobreza vos pede pao.
RICO
Pobre importune, vai entao.
LAVRADOR
POBRE Se a mim deu o Senhor
Quem tanto desperdiçou bênçao muita, muito arar
em seu gozo, nao daria e mais suar me custou!
'
880 algo de esmola? Que um homem tao forte peça '

900 nao te da nenhum pudor? ·l'


Em vez de tao folgazao
(v. 918). Depois d:J morte das personagens e durante o julgamento, o poe-
ta retama qtratal"'1ento rec(proco de tu.
viver, trabalha; que horror!

34 35
Se te falta o que corner,
DISCRIÇÂO
toma da enxada, pois
Ai de mim!
905 corn ela o piio chegarâ.

POBRE REl
Na comédia me tocou 0 que hâ?
fazer do pobre o papel;
POBRE
nao faço ode lavrador.
Éo
LAVRADOR graye peso de uma dar
Pois, amigo, em tai pape!
925 que padece a Religiao.
910 nao te mandou o Autor
A DISCRIÇÀO parece cair, maso REJ
pedir sem pre o descansar,
!he da a mao.
jâ que o trabalho e o su or
sao do pobre o galardao.
REl
Socorro nador lhe dou. 18
POBRE
Seja par divino amor'
DISCRIÇÂO
915 Rigoroso, irmao, estais.
Assim é: que ninguém pode
sustenta-la camo v6s.
LAVRADOR
E tu muito pedidor. A UT OR
Bem que eu pudera emendar
POBRE 930 os erras que venda estou.
Dai-me v6s algum consola Porém para issa lhes dei
Dirige-se à DISCRIÇÀO livre arbftrio superior
a toda paixiio huma na.
DISCRIÇÂO E assim é, porque nâ'o vou
Perdoai-me e tomai v6s. 935 impedir que corn suas ob ras
Da-/he um pao mereçam; e os deixo, pois,
livres fazer seus papéis.
POBRE
Esmola de pao, senhora,
920 acha-la em v6s força foi,
18 Camo texte para teatro que é, o auto sacramental nao trabalha apenas corn a
porque o pao que nos sustenta
lîngu<gem oral. Ness< cena, o geste galante do REl, amparando a DISCRI-
da-nos a mao do Senhor. ÇÀO que estava a ponta de cair, era compreendido pela pUbliee coma o
amparo que a monarquia espanhola estava dando à lgreja Cat61ica contr,a
os Reformistas.

36 37 ,1

i,
'
1

,, 1

,_
REl
Vendo estou meus impérios dilatados,
No meio de tanto horror a gloria, a majestade e esta grandeza,
de tanta açao desigual, em cuja variedade natu rez a
940 olho por todos e vou aperfeiçoou de espaço meus cu id ados.
dizendo na voz da lei: 965 Alcaçares possuo levantados,
sudita min ha sempre foi beleza.
LEI De uns a humildade ede outras a riqueza
Ganta triunfo me sao ao bel-prazer dos fados.
Faze o bem, Deus é o Senhor! Para reger tao desigual, tao forte
Recita. A cada um de per si 970 monstro de mil cabeças, ja concedam
e a todos ju ntos, de voz a mim os Céus mais atençoes felizes.
945 clara adverti; e com isso Ciência me dêem por nao reger sem norte,
culpa tera quem errou. que a um s6 senhor nao pode ser que cedam,
Ganta. Ama o outra camo a ti, assim, num jugo s6, tantas cervizes!
faze o bem, Deus é o Senhor!
MUN DO
REl 975 Ciência para governar
Se é para representar coma Salomao rogou.
950 que a vida dada nos foi
e se, par um s6 cam in ho, Uma voz triste canta dentro, na direÇao
leva a vida a todos n6s, da porta do ataude.
façamos suave o caminho
nessa comunhao da voz. voz
Rei deste caduco império,
FORMOSURA chega ao fim teu esplendor,
955 Mundo nao houve ou havera, que no teatro do mundo
se nao se comunicou. , 980 ja teu papel se acabou.

RICO REl
Oiga um conta cada um. Que ja acabou meu papel
me diz uma triste voz
OISCRIÇÂO que, sem razao nem discurso,
Iii cam ouvi-la me deixou.
Sera prolixo; melhor
sera que aqui cada um diga 985 Pois se o papel acabou,
960 o que de sempre pensou. ir-me quero, e on~e vou?
Porque na primeira porta
em que meu berço se pôs,
38 39

)i
1
1
ai de mim! bater nao posso
990 nao posso bater, que dor! FORMOSURA
1

Nao poder, voltando ao berço, Confusao sera maior.


um passo dar, todos s6 Que vamos fazer?
1!
ao sepulcre vao. Que o rio,
If que, braço de mar, se foi
995 volte aser mar; e que a fonte,
RICO
Voltar
:1 que sai do rio, que horror!, ao ponto que se deixou.
volte aser rio; o riacho, Dirigindo-se à FORMOSURA.
que da fonte se afastou, Dize tu o que imaginas.
volte aser fonte; e o homem,
1000 que de seu centre se foi, FORMOSURA
volte a seu centro, a nao ser 1020 Pois nisso a pensar estou.
o que foi! ... Meu Deus, Senhor!
Se jâ acabou meu papel, MUN DO
supremo e divine Autor, Quao cedo se consolaram
,, os vi vos de q uem finou!
'i
1005 dai a meus erros desculpa
,i pois arrependido estou.
~~ LAVRADOR
Vai-se embora pela por,ta do ataude E mais quando tai defunte
1[ e todos também sairao por ela. muitas pesses lhes deixou ...
~ !
MUNDO FORMOSURA
Pedindo perdao o Rei, 1025 Vendo estou eu min ha beleza pu ra.
bem seu papel acabou. Nao invejo o rei, nem os seus triunfos quero,
pois mais ilustre império considere:
FORMOSURA aquele que a beleza me assegura.
Do meio de seus.vassalos, Porque seo rei avassalar procura
1010 entre pompas e esplendor, 1030 as vidas, eu, as aimas; disso espero

1 foi-se o Rei.

LAVRADOR
julguem maior meu reino, pois é vero
que nas aimas impera a formosura.
"Pequeno mundo", se a filosofia
,,, Nao faite em maio do homem diz, emeu reino nele fundo,
1

âgua nunca ao campo em fior, 1035 a quem o céu mantém e o chao se dâ,
!1 que, corn born ano e sem rei, assim bem pode crer-me a galhardia
·~1 passaremos bem mel hor . que o que ao homem chamou "pequeno mundo",
. !:
de mim "pequeno céu" entao di râ.
DISCRIÇÂO
1015 1nda assim, é grande dor.
40 41
MUN DO 1065 em que ser termo contfnuo
19
Nao se lembra de Ezequiel de nffo ser por sempre foi?
1040 quando disse que trocou Nao! ... que sou fior formosa '1
o orgulho à formosura e du ro eterno arrebo 1,
em feiura seu fulgor. que se o sol me viu nascer, li',,
1070 nao vera meu fim o so 1! IIi
voz Se eterna sou, como posso
Ganta morrer? Que dizes tu, voz? !

Toda a formosura humana


é uma fresca e fnigil fior. voz li
1045 Murcha esta, pois eis que a noite Ganta
de sua aurora ja chegou. Que na alma tu és eterna i'l! '
e no corpo mortal fior.
FORMOSURA i
Que faleça a formosura FORMOSURA
canta uma tao triste voz! 1075 Ja nao tenho 0 que dizer i
Nao faleça, nao faleça, contra o que dito me foi.
1050 volte a seu primeiro alvor! Daquele berço sa (
1:1
Mas, ai de mim!, nao ha rosa e àquele sepulcre vou.
de branca ou vermelha cor, Muito me pesa o nao haver 1'1
que às vas lisonjas do dia, 1080 feito meu papel melhor... !1
'
que ao doce afago do sol Retira-se
1055 ven ha a desfolhar as folhas, li
que nao caduque; depois,
1~ 1
MUNDO
nenhuma volta a cobrir·se Bem acabou o papel,
dentro do tenro verdor... se arrependida acabou.
Mas, que me importa que as flores, jr;
1060 da aurora br eve candor, RICO
1,1
feneçam ao sol dourado De suas galas e adornos
nas carfcias do arrebol? e louçanias se foi
1!1
Acaso pode comigo 1085 Formosura.
\ comparar-se assim tai fior j::

LAVRADOR Il
19 As referências ao Velho Testamento s1o freqüentes no auto sacramental, que Nao nos faite
fazia, assim, a relaçâ'o entre os dois Testamentos, aquele e o No~: Em pao, vin ho, leitao e boi 1\11
A ceia do rei Baltasar, por exemplo, CalderOn j~ YI, na profanaçao dos
por Pascoa, que Formosura
vasos sagrados dos hebreus, a dos vasos sagrados da Eucaristia, constituindo
sem saudades minhas foi. 1
tel dada o motive bdsico desse auto. 1 1

43 Il:
42 '1

Il
'i 1

L.
DISCRIÇÂO LAVRADOR
1nda assim, é grande der! Eu, vez, se de tai sentença
apelar possrvel for,
POBRE recorro, pois eis que apelo
1090 E causa de maior dé. a tribunal superior.
Que vamos fazer? 1115 Nao mo rra eu par agora,
aguarda estaçao melhor,
RICO ac menes que minhas terras
Voltar. dei xe-as eu em ponte born;
ao ponte que se dei x ou. e porque, come ja disse,
1120 sou maldito lavrador,
LAVRADOR come dizem minhas vinhas,
Quando 0 ansioso cu id ade cardo a cardo, fior a fior,
corn que acudo a meu laver pois tao alto esta o capim
1095 olho, sem medo ao caler que duvida quem cl hou,
e ao frio destemperado, 1125 se um pouce afastado esta,
e advirto o descuidado se trige ou vinhas cl hou.
da alma tao tépida, eu jâ Quando o trige do vizinho
culpa lhe dou, pois esta é um gigante no estupor,
o
110 dando graças, camo um brute, quase anao 0 meu parece,
ac campo, porque dâ frut.o, 1130 pois mal do chao aflorou.
e a Deus nao, que tude da. Dira, sei, quem isso ouvir,
que até que o memento é born,
MUN DO esta ndo o campo sem fruto
Perte esta de agradecido marrer eu, e a isse vou
quem reconhece o favor. 1135 responder:- Se muitos frutos
deixa um, mas nao respeitou
POBRE testamento de seus pais,
1105 lnda que me repreendeu, que faz sem frutos, Senhor?
concorde corn o lavrador. Mas ja nao é tempo de graças,
1140 pois ali disse uma voz
voz que o fim chega, e ja o sepulcre
Ganta abriu sua boca de horror.
Lavrador, o teu trabalho Se meu papel nao cumpri
a ponta final chegou. conforme o que dito foi,
Jâ 0 seras de outra terra. 1145 pesa-me que naome pese
1110 E onde é? Sabe o Senhor!. · · sentir uma grande dor.
Retira-se
44 45

1
MUN DO cuja vida a tarde susta?
No começo o lavrador 1165 Nessa brevidade injusta,
bruto eu cri, e ele mostrou, de nossa vida gozemos
com seu fim, que eu me enganava. o breve instante em que a temos,
1150 Ele assim bem acabou! Nosso ventre em deus façamos,
comamos hoje e bebamos
RICO 1 170 que amanha nos morreremos!
Enxadas, arados, pô, MUNDO
cansaço e muito suor, Coisa de gentios é
deixou tudo o lavrador. o que o rico nos propôs,
assim o disse lsafas. 20
POBRE
Muito aflitos nos deixou. DJSCRIÇÂO
Quem fala agora?
DISCRIÇÂO
1155 Que pen a! POBRE
Eu sou.
POBRE 1175 Pereça, Senhor, o dia
Que desconsolo! em que a este munda nasci.
Pereça essa noite fria
DISCRIÇÂO em que a vida concebi
Que choro! para penar de agonia.
1180 Nunca acenda a luz pura
POBRE do so 1entre escu ras névoas.
Que grande horror! Tudo seja sombra escura,
nunca vencendo a tao dura
DISCRIÇAO
opressao das negras trevas.
Que vamos fazer? 1185 Eterna essa noite seja,
ocupando pavorosa l1
RICO seu espaça, e, que nao veja 1

,1
Voltar o céu, em caliginosa 1.
ao'ponto que se deixou. ,i;
1

escuridao sempre esteja.


E, por fazer como todos, 1190 De tantas centelhas be las
1160 dizer o que sinto vou. seja luz seu arrebol,
A quem de nos nao assusta
ser esta vida uma fior 20
Na referéncia a /salas, XXII, vers(cu/o 13, Calder6n identifica o epicurisme,
nascida no suave alvar que caracterizou muitos textos nter<Srios dos séculos XVI e XVII.

46 47
dia sem aurora ou sol, RICO
noite sem lua ou estrelas. Fugir nao vais, pois?
Nao porque tenho queixado
1195 é, Senhor, que desespera POBRE
par me ver em tai estado; 1210 Nâ'ovou.
mas sim porque considera Que é natu rai condiçao
que tu i nascido em pecado. o tremer de mede em n6s:
temera Deus, cam ser Deus,
MUNDO quem camo homem a escutou.
Bem engana o desespera 1215 Mas, se em vao sera fugir,
1200 de quem tâ'o alto gritou. porque, se dela nâ'o foi
que assim, maldizendo o dia, dada fugir ao poder
maldisse o pecado Jb. 21 e à formosura, assim, pois,
o que, entâ'o, fa râ a pob rez a?
voz 1220 Antes mil graças lhe dou,
Ca nta pois cam issa acabarâ,
Numero tem sempre a dita, cam a vida, mi nha dar.
numero também a dar;
1205 dessa dar e dessa dita RICO
vin de a dar contas os dois. Camo nao sentes deixar
o teatro?
RICO
Aide mim! POBRE
Camo pois
POBRE 1225 ne le nâ'o deixo alegrias
Que alegre nova! voluntariamente vou!

RICO RICb
A esta voz que nos chamou Eu arrastado, que deixo,
nao tremes de mede? nas riquezas, meu amor.

POBRE POBRE
Sim. Que alegria!

RICO
21 As glosas ao lamento de J6 (Livra de J6, Ill, vers1'culos 3-6) constituem um Que tristeza!
expressive repert6rio da Jiteratura espanhola da época.

48 49
POBRE eu ja me antecipo à voz
Que console! 1245 do sepulcre, pois que em vida
me sepulto, com que dou,
RICO por hoje, fim à comédia
1230 Que amarger! que amanhâ" fara o Autor.
Emendai-vos no amanhâ",
POBRE 1250 vende os erres de ho je vôs.
Que dita! Fech"a-se o globo da terra

RICO A UT OR
Que sentimental Castigo e prêmio acenei
a quem me lhor ou pior
POBRE representasse, e verac
Que ventu ra! que castigo e prêmio dou.
0 globo celeste se fecha cam o A UTOR dentro
RICO
MUNDO
Que rigor!
1255 Curta foi a comédia! 22 Porém quando
Retiram-se os dois
nâ"o foi curta a comédia desta vida.
para aquele que esta considerando
MUN DO
que ela é tao-s6 uma entrada, uma sa fda?
Que desencontro, ao marrer,
Jâ todos o teatro vâ"o deixando,
do rico edo pobre foi!
1260 a sua matéria-prima reduzida
a forma que tiveram e gozaram.
DISCRIÇÂO
Pô saindo de mim, pois pô entraram.
1235 Na verdade, no teatro
Cobrar quero de todos, come é dada,
do munda sozinha estou.
as jôias que lhes dei com que adornassem
1265 a representaçâ"o sobre o tablado:
MUNDO.
pois tude foi quando representassem.
Sem pre o que permaneceu
Nesta porta me ponho e, com cuidado,
em mima religiâ"o foi.
farei que meus umbrais eles nâ"o passem
sem que aqui deixem as galas que tomaram.
DISCRIÇÂO
1270 Pô saindo de mim, pois pô entraram.
Bem que ela acabar nâ"o pode,
Aparece o REl
1240 mas eu sim, porque nâ"o sou
religiâ"o: somente um membre 22
Calder6n reviw, neste auto e em pleno século XVII, adançada morte medie-
quem esse estado adotou. val. Neste momento, o MUNDO faz o papel da morte, ao desjX)jar os ho-
E, antes que a voz me chame, mens/personagens de tuda o que rsceberam para a vida/representaçlo.

50 51

ri
,.,
, __
Tu, que papel fizeste, tu que agora MUNDO
és o primeiro a minhas maos chegado? Pois emprestados foram, mas nao dados,
durante o tempo que o papel fizeste.
REl Para outro deixa todos os estados,
Pois o Mundo o que fui tao cedo ignora? 1300 a majestade e pompa que tiveste.

MUNDO REl
Ao Mundo do que foi lembrar nao é dado. Como de rico fama sempre asp_iras,
se para dar nao tens, se nao o tiras?
REl Que tenho de lucrar em meu proveito
1275 Alguém fui que mandava quanto doura de haver, no mundo, o rei representado?
o sol, de luz e resplendor ornado,
desde ao nascer da suave aurora em braços, MUN DO
até que em negra sombra perca os passos. 1305 lsto, o Autor, como bem ou mal hâs feito,
Mandei, julguei, regi muitos estados; prêmio ou castigo te terâ guardado;
1280 achei, herdei, construf grandes mem6rias; nao cabe a mim, entao, como suspeito,
vi, tive, concebi sâbios cuidados; conhecer teu descuido ou teu cuidado:
possuf, gozei,logrei varias vit6rias. cobrar me cabe o traje que levaste,
Fiz, aumentei, vali va rios privados; 1310 porque me hâs de deixar como me achaste.
campus, formei, deixei varias hist6rias; Aparece a FORMOSURA
1285 vesti, imprimi, cingi, em ricos dosséis,
as purpuras, os cetros e lauréis. MUNDO
Tu, que fizeste?
MUN DO
Descinge, deixa, tira jâ a coroa; FORMOSURA
a majestade despe, perde, olvida; Gala e formosura.
Tira-/he os adornos
volte a si, torne, saia tua pessoa MUNDO
1290 nua outra vez da farsa desta vida. Que te entreguei?
A purpura, que a voz tua apregoa,
breve e jâ de outro se verâ vestida, FORMOSURA
pois de tirar nao hâs de minhas cruéis Perfeita uma beleza.
maos, purpuras, nem cetros ou lauréis.
MUN DO
REl Pois onde esta?
1295 Tu nao me deste adornos tao am ados?
Como me tiras o que ja me deste? FORMOSURA
Deixei na sepultura.
52 53
um lavrador, que teu estilo vao
MUN DO
a quem a terra lavra o nome da.
De assombro pasma aqui a natureza
Sou a quem tnita sem pre o cortesao
1315 venda quao pouco a formosura dura,
1340 cam vil desprezo e a quem ma fama da;
que do começo ao fim, foi-se a b~leza:
e sou, bem que de sê-lo o eu nao reclama,
pois ao querer cob râ-la eu, que d1go?
aquele que ete, tu ou vos se chama.
nao a leves tu, nem fi ca ela comigo.
0 Rei, a majestade me ha deixado;
MUN DO
1320 aqui ha deixado o lustree a grandeza!
Deixa-me o que te dei.
A beleza nao passa haver cob rada,
que morre cam seu dona o que é beleza.
LAVRADOR
Olha-te neste espelho.
Tu, que me has dada?
FORMOSURA
MUN DO
Hei-me olhado. Uma enxada te dei.
MUNDO
LAVRADOR
Oize, onde esta a beleza, a gentileza
J6ia sem jaça!
1325 que te emprestei? Tornâ-la a mim procura.
MUNDO
FORMOSURA
1345 Cam ela, boa ou ma, terâs pagado.
Pois toda a consumiu a sepultura.
Ali deixei matizes camo cores;
LAVRADOR
ali perdi jasmins camo co rais;
A quem o coraçao nao despedaça,
ali desvaneci rosas e flores;
venda que deste munda desditado,
1330 ali destruf marfins camo cristais.
par onde em mil trabalhos sem pre passa,
Ali turvei afetos e primo res;
um enxadao, do corpo vil castigo,
ali desfiz desfgnios e si nais;
1350 nao lhe deixam inda assim levar consigo?
ali eclipsei brilhos e rèflexos; , Surgem o RICO e o POBRE
ali nem acharas de sombras nexos ...
Surge o LA VRADOR
MUNDO
Ouem vem la?
MUN DO
1335 Tu, vi lao, que fizeste?
RICO

LAVRADOR Ouem de ti nunca quisera sa ir.


Se vilao,
força era que fizesse, espanto ha?,

54 55
POBRE MUNDO
Ouem de ti sem pre ha desejado sa ir. Pois deixa tuda em minhas ma os; dizer
niio possam que alguém leva galardiio.
MUNDO
Co mo, se eu saber pudera!, DISCRIÇÂO
deixar-me e nao deixar-me haveis chorado? Niïo quero; para ao munda niio perder
1370 tiio du ros sacriffcios e oraçiio;
RICO comigo os leva assim, par exceder
1355 Eu, porque rico e poderoso era. a tua prôpria paixiio tua paixiïo:
ou tenta ver se jade mim tu cobras.
POBRE
E porque eu era pobre e desditado.
MUN DO
Niio te passa tirar as boas ob ras.
MUNDO
1375 Elas tiio-sô do munda se hiio livrado.
Da-me estas jôias.
Toma as j6ias do R !CO
REl
Ouem mais reinos niio houvera possurdo!
POBRE
Olha que bem fundo FORMOSURA
nao ter eu que sentir deixar o munda. Ouem mais primor niio houvera desejado!
Surge a CR lANÇA
RICO
MUN DO Ouem mais riquezas nunca houvera tido!
Tu que ao teatro a recitar entraste
1360 camo, dize, à comédia niio vieste?' LAVRADOR
Ouem mais, ai Deus!, houvera trabalhado!
CR lANÇA
A vida num sepulcro me tiraste. POBRE
Ali te deixo agora o que me deste 1380 Quem mais ânsias houvera padecido!
Aparece a DISCRIÇAO
MUN DO
MUNDO
É tarde ja, que apôs a morte vern
Tu, quando às portas do vi ver chamaste niio poder méritas ganhar ninguém.
par teu adorno o que a pedir vieste? ' Jâ que hei cobrado augustas majestades,
ja que hei desfeito b~las perfeiçëes,
DISCRIÇÂO
1385 ja que hei frustrado assim tao vas vaidades,
1365 Pedi a religiiio e a obediência,
ja que igualado hei c.etros e enxadëes,
citrcios, disciplinas e abstinência.
56 57
ao teatro ide agora das verdades, do se pu lcro, que iguais somos.
que este aqui é o teatro das ficçoes. 0 que foste pouce importa.
REl RICO
Pois recebes de forma tao diversa Dirigindo-se ao POBRE
da despedida? Come te esqueces que a mim
ontem pediste uma esmola?
MUNDO
Os gestas acompanham as pa/avras POBRE
1390 Ja a razlio observa: 1415 Come te esqueces que tu
Se alguém recebe a graça prometida, nada me deste?
as macs, atento a tai fortuna, poe
desta maneira; e se, corn aborrecida
açao de algo se livra, assim as poe. FORMOSURA
1395 Assim recebe o berço o homem na vida. Ja ignoras
Mas se ao contrario o berço se dispoe, Dirigindo-se à DISCRIÇAO
tumba sera. Se pois vos recebi a estimaçlio que me deves
em berço, come tumba despedi. por mais rica e mais formosa?
Retira-se
DISCRIÇÂO
POBRE Mas no vestuario ja
Pois que tao tirana o mundo 1420 somos parecidas todas,
1400 de seu centre nos arroja, que numa pobre morta! ha
vamos nos àquela ceia nlio ha distinçao de pessoas.
que em prêmio de nossas ob ras
nos ofereceu o Autor. RICO
Dirigindo-se ao LA VRADOR
REl Tu avanças na min ha frente,
Tu, pobre, também afrontas villie?
1405 meu poder, que vais na frente?
Tao cede assim a memôria LAVRADOR
què foste vassale meu, Deixa tu tao Joucas
m (sere mendigo, ignoras? ·.1425 ambiçoes, pois que ja morte
do sol que foste és s6 sombra.
POBRE
Ja acabado teu pàpel, RICO
1410 eis, no vestuario agora Nlio sei o que me acovarda
de vero Autor agora.

58. 59
POBRE
Autor do Céu e da terra, mais penas Hio lastimosas,
1430 ja tua companhia toda pois penas por Deus passadas,
que da vida hu mana fez quando sao penas, sao glorias!
peça de pouca demora,
à grande ceia que tu DISCRIÇÂO
ofereces, chega; corram Eu, que tantas penitências
1435 as cortinas de teu solio 1460 fiz, mil vezes sou ditosa,
aquelas cândidas folhas. pois tao bem de las desfruto.
Aqui ditos9 é quem chora
Cam musica, descobre-se outra vez
confessando haver errado.
o globo celeste: dentra de le o
AUTOR sentado a uma mesa cam calice e h6stia.
REl
Aparece o MUNDO.
Eu, Senhor, entre essas pompas
1465 ja nilo te pedi perdao?
A UTOR
Pois, porque nilo me perdoas?
Esta mesa, onde tenho
o pao que o céu todo adora
AUTOR
e o proprio inferno venera,
A formosura e o poder
1440 vos espera; mas importa
por aquelas arrogâncias
saber os que hâ"o de chegar
que tiveram, pois chorararn,
a cear comigo agora, 1470 subirâ"o, mas nilo agora, ,
porque desta companhia
e corn o lavrador também,
vao-se embora os que nao logram
que se nao te deu esmola
1445 seus papéis, por lhes faltar
Dirigindo-se ao POBRE
entendimento e memoria
nao foi por nilo querer da-la,
do bem que sem pre lhes fiz
mas teve intençao piedosa,
corn tantas misericordias.
Comigo ven ham cear 1475 e aquela repreensao
1450 o pobre e a religiosa foi de um modo m isteriosa
que, se porte rem sa (do para que tu te ajudasses.
do munçlo este pao nilo comam,
LAVRADOR
sustento sera adora-lo
Essa mi nha intençao toda,
por ser objeto de gloria.
que nao quis ver vagabundos.
Sobem os dois
AUTOR
POBRE
1455 Ditoso eu! Oh, quem passara
1
1480 Por isso dou prêmio agora;
e, porque chorando culpas

60
61
pedistes misedc6rdia,
os très ja, no Purgat6rio,
numa dilaçao penosa
T
·r
-1505 nâ'o dou prêmio nem castigo.
Cego, nenhum dos dois gaza,
pois que nasces do pecado.
esta reis.
CR lANÇA
DISCRIÇÂO Agora, noite medrosa,
1485 Autor divine, camo num son ho, me tem
no me1o de tanta afronta, 1510 cego, sem pena nem gl6ria.
o Rei me estendeu sua mao
e a mi nha lhe dou agora. RICO
Da a mao ao REl que sobe. Seo poder e a forrnosura
par toda aquela vangl6ria
AUTOR que tiveram, e, cam ter
Perdôo-lhe a pena, enti!o charade, tanta se assombram;
1490 pois a religiao o abona. 1515 e o lavrador, que a gemidos
enternecera uma rocha,
FORMOSURA esta ~remendo de ver
Pois vivo corn esperanças, a presença poderosa
voem anos, tempo co rra. da visao do nosso Autor,
1520 camo ouse vê-la eu agora?
LAVRADOR Mas é precisa chegar,
Bu las de defuntos chovam pois nao hâ onde eu me esconda
sobre meu castigo agora, de seu rigoroso ju (zo.
1495 tantas que, par chegar antes, Autor!
tropecem umas corn outras;
pois sîio estas letras santas AUT OR
do Pontrfice de Roma Par que assim me chamas?
mandamentos de soltura 1525 Pois se Autor me crès, justa é
1500 desta prisîio tenebrosa. que digas tai cam vergonha:
eis que em min ha companhia
CR lANÇA nao hils de estar. Dela te arroja
Se 'nao errei meu pape!, meu poder. Desce jâ onde
porque nao me galardoas, 1530 te atormente tua ambiciosa
6, Senhor? condiçao eternamente
entre penas angustiosas.
AUT OR
Porque bem pouce RICO
acertaste; e, entîio, agora, Ai de mim! Oue envolto em togo
63
caio arrastando-me a sombra
1535 para onde a mim pr6prio mio
possa ver eu! Duras rochas
I•
(•t
pois que jé, pelas fadigas,
merecem subir na gloria.
Sobem os dois.
sepultem minhas entranhas ••
em tenebrosas alcovas! FORMOSURA
Que ventu ra!
DISCRIÇÂO
1nfinita gloria tenho! LAVRADOR
1555 Que consolo!
FORMOSURA
1540 Tê-la eu espero ditosa! •• RICO

LAVRADOR
• ~

Que desdita!

REl
Formosura, por desejos, Que vit6ria!
nao me levarés a j6ia! 23
1 RICO
RICO
Que sentimento!
Nao a espero eternamente...
DISCRIÇÂO
CR lANÇA
Que alfvio!
Nao tenho, para mim, gloria ...
POBRE
AUTOR Que doçura!
1545 As quatro postrimerias 24
siio as que presentes notam RICO
vossos olhos, e porque Que peçonha!
destas quatro fique a prova
que a primeira hé de acabar,\ CR lANÇA
1550 suba a Formosura agora G lôria e pen a ha, porém eu
mais o Lavrador, alegres, 1560 nao tenho pen a nem glôria ..
, a esta mesa misteriosa,
23
A ;ôia era o prâmio que recebia a companhla que representasse o melhor auto
do ana. Mais uma vez, Cakler6n Interpreta dois pianos, realidade e ficçâo
,., . Pois o anjo la no céu,
aqui no mundo as pessoas
AUTOR

ou ficçlo dentro da ficçilo, dando ès pei'IOnagens a vlslo dos atores que as


interpretavam. e la no inferno o demônio,
24
~ostrimerias ou Novfssimos do homt~m s1o mort•, julgamento, infsrno e todos a este Pao se prostram;
gl6rla.

64 65
••
• •
1565 no inferno, como no céù ••
"
e no mundo, todos ouçam
doces vozes que o louvem
concertadas e sonoras.
Soam charamelas, cantando·se o Tantum ergo
muitas vezes. 25

MUNDO
E pois representaçëes
1570 nâ'o mais é que a vida toda, .. •
mereça alcançar perdao
tanto de umas como de outras 26 ••••
FIM

... .

Dança da morte (Alpes Marftimos, França), desenho em aquarela. Coleçâ'o There-


za Cristina Maria, Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro.

A dança· da morte estrutura 0 grande teatro do munda, onde se


desenvolve o tema da morte igualittJria, que n§o respeita as hierar-
quias estabelecidas pe/os ho mens.

25 0 canto do Tantun:' ergo faz parte da liturgie do Corpus Christi, que foi elabo-
radapor Santo Tomés de Aquino. 0 finalizar-se este auto corn aquele hino
oomprova o caniter paralitùrgico da representaçâo dos autos sacramentais, r.7
,,
durante a quai, alilis, ainda que à luz do sol, mant in ham-se velas acesas.
26 0 auto t,ermina corn mais um dada do seu caniter de metateatro, pois o per- • 1

dâO à que o munda se refere era o final corriqueiro das peças de teatro da
dpoca, quando a personagem, jd como ator, sa dirigia ao p(lblico. Neste
auto, junta-se a esta caracter(stica da ret6rica teatral o perdâ'o solicltado •
pela personagem em funçio da trama que acabava de ser apresenta:la.
~

66 •

;,.;..!
....
•·~·••

l
1

Cardeais e doutores da lgreja discutlndo sobre o Santissimo Sacramento. Pintura


anônima de meados do século XV li. Sacristia da lgreja do Salvador, em Ûbeda,
0 triunfo da igreja pela Eucaristia, de Rubens. Museu do Pr8do, Mad ri, Espanha.
Jaén, Espanha.
0 quadro de Rubens, camo os outras quadros desta iconografia,
comprova a impi:Jrtância do dogma da transubstanciaç§o no perfodo
barroco, tema de vArias formas artfsticas. Em Rubens, a representaç§o
a/eg6rica da /greja e da Contra-Reforma aproxima, ainda mais, o traba-
/ho p/astico do auto sacramental.

...
ri'

.•'
.•
... ;

A Ultima cela, par Juan de Juanes. Museu do Prado, Madri, Espanha.

Ostens6rio espanhol do século XVII.


. -,· ..•·,
.

-
' . •.•
-, .,._,
. '
.

. ' " '- ' ' ~ ~.' .i

Anjos adorando a Eucaristia, de Zurbarân. Catedral de MUrcia,


Espanha.

0 motiva pintado par Zurbaran é o que Ca/der6n co/oca nas pa-


/av ras finais do Autor, v. 1561-4: .Procissao de Corpus Christi no século XIX, Catalunha, Espanha.
Pois o anjo f;J no céu,
aquino munda as pessoas 0 artista popular que registrou a prociss§o assinalou o cardter pro·
e 18 no inferno o demônio, fano·religioso dessa festividade da /greja, mescla que a caracterizou ao
todos a este P§o se prostram. longo de sua hist6ria.
Atendemos também pelo Reembolso Postal
UVRARIA FRANCISCO ALVES EDITORA S.A.
. Rua ~te de Setembro, 177 - Centro
20.050 - Rio de Janeiro - RJ
mental, auto religioso sobre o tema da
Eucaristia.
Calderon de la Barca é o mais im-
portante criador de autos sacramen-
tais, e 0 Grande Teatro do Munda é
considerado, pela maioria da crftica,
a obra-prima do gênera. Mas o poeta/
dramaturge é mais conhecido pela
peça A Vida é Sonho, cujo protagonis-
ta, Segismundo, ombreia cam o
Hamlet de Shakespeare Em A Vida é
Sonho e em 0 Grande Teatro do
Munda ou em outras obras de Calde-
ron e de dramaturgos do "século de
ouro", assim camo, também, em
lmpresso em off-sel por
ERRE.G~ EDITOAA, GRAF!CA E PUBL1CIOADE LTOA
Shakespeare, discute-se um tema caro
Rua Sargen1o S1lva Nunes. 154 · Ramos ·Til. 27L·394S
A10 de Jane"o · RJ
ao perfodo maneirista/barroco: a dico-
com himes lornec,dos pelo editer
tamia ser/parecer, presente, em Cal-
deron, na comparaç§o da vida ao sa-
nha ou à representaç§o teatral.

Você também pode gostar