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Título:

Oceano Oblíquo.
Autor: Urbano Tavares Rodrigues.
Dados da Edição: Publicações Europa-américa, Mem Martins, 1984.
Género: Conto e Novela.
Digitalização: Serviço de Leitura Especial da Biblioteca Municipal de Viana do
Castelo.
Correcção: Ana medeiros.
Estado da Obra: Corrigida.
Numeração de página: Rodapé.

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Urbano Tavares Rodrigues
Oceano Oblíquo
Publicações Europa-América

Contracapa
«[...] corre uma paz imensa sobre o teu rosto molhado de luz. Os nossos lábios
não se despegam. Gozámos ao mesmo tempo, exaustos, na afluência da dor, e
mantemos as pernas enredadas, sinto os teus peitos erguerem-se, respirando, o
teu púbis espesso contra o meu, os nossos líquidos escorrendo misturados. Tem
vontade de gritar, de chorar, de lhe beijar os olhos, as axilas, as plantas dos pés,
de a adorar ritualmente. Mas deixa-se ficar quieto, uma réstia de lua que entra
pela porta a esfriar-lhes os corpos docemente. Só a aperta mais e ela sorri: pode
ser um sopro de triunfo, uma promessa, uma jura ou apenas água de alegria.»

Do mesmo autor, na colecção «Livros de Bolso
A Noite Roxa
Exílio Perturbado
Colecção Século XX, 238

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OCEANO OBLÍQUO
Novelas e contos

PRINCIPAIS OBRAS DO AUTOR


FICÇÃO:
A Porta dos Limites – 1ª ed., 1952; 2ª ed., 1960;
3ª ed., 1970 (tradução parcial alemã) ed., 1979;
5ª ed., 1990.
Vida Perigosa - 1ª ed., 1955; 2ª ed.,
1971; 3ª ed., 1974.
A Noite Roxa - 1ª ed., 1956; 2ª ed.,
1957 (tradução parcial em russo 3ª ed., 1972 ("Livros de Bolso Europa-
América"); 4ª ed., 1976.
Uma Pedrada no Charco - 1ª ed., 1958; 2ª ed., 1960;
3a ed., 1973 (tradução parcial em alemão e russo);
Prémio Ricardo Malheiros, da Academia de Ciências.
Bastardos do Sol - 1ª ed., 1959; 2ª ed., 1966 (tradução francesa, 1969); 3ª ed.,
1972; 4ª ed., 1974 (Círculo
dos Leitores); 5ª ed., 1983 (tradução russa, 1977;
tradução alemã, 1978; tradução búlgara, 1983; tradução grega, 1987; Tradução
em Cuba, 1987); 6ª ed., 1987;
7ª ed., 1994.
As Aves da Madrugada - 1ª ed., 1959;
2ª ed., 1966 (tradução checa, 1967); 3ª ed., 1970 (tradução brasileira, 1972); 4ª
ed., 1974 (tradução parcial
em sueco, 1976; Tradução em ucraniano, 1984); 5ª ed., 1990 (tradução francesa,
1991).
Nus e Suplicantes - 1ª ed., 1960; 2ª ed., 1962; 3ª ed., 1970; 4ª ed., 1972; Prémio
dos Leitores (tradução alemã , 1972); 5ª ed., 1978.
Os Insubmissos - 1ª ed., 1961; 2ª ed., 1965; 3ª ed., 1969; 4ª ed., 1971; 5ª ed.
(Unibolso), 1973; 6ª ed., 1976 (tradução romena, 1988).
Exílio Perturbado - 1ª ed., 1962 (Tradução espanhola, 1967); 2ª ed., 1969; 3ª ed.,
1982 (Tradução romena 1988).
As Máscaras Finais - 1ª ed., 1963; 2ª ed., 1972 (tradução parcial em checo).
Terra Ocupada - 1ª ed., 1964; 2ª ed., 1972 (Tradução parcial em checo, 1967).
Dias Lamacentos - 1ª ed., 1965, 2ª ed., 1972; 3ª ed., 1989.
Imitação da Felicidade - 1966 (Prémio da Imprensa
Cultural) (apreendido pela censura); (tradução parcial em sueco, 1971); 2ª ed.,
1974 (Tradução em russo
e em búlgaro, 1977; tradução polaca, 1880); 3ª ed., 1988.
Despedidas de Verão - 1ª ed. 1967; 2ª ed., 1974.
Casa de Correcção - 1ª ed., 1968; 2ª ed., 1972
(tradução em russo, 1977; tradução alemã, 1982);
3ª ed., 1987.
Horas Perdidas - 1ª ed., 1969; 2ª ed., 1973.
Contos da Solidão - 1ª ed., 1970; 2ª ed., 1972;
3ª ed., 1975; 4ª ed., 1992.
As Torres Milenárias - 1ª ed., 1971, 2ª ed., 1975.
Estrada de Morrer - 1ª ed., 1972 (Tradução parcial em russo); 2ª ed., 1976
(Unibolso).
Dissolução - 1ª ed., 1977 (tradução em russo, 1978); 2ª ed., 1983.
Viamorolência - 1ª ed., 1976; 2ª ed., 1987.
As Pombas São Vermelhas - 1ª ed., 1977; 2ª ed., 1985.
Desta água Beberei - 1ª ed., 1979; 2ª ed., 1986.
Fuga Imóvel - 1982 (Prémio Aquilino Ribeiro, da Academia das Ciências de
Lisboa); 2ª ed., 1992.
Oceano Oblíquo - 1985.
A Vaga de Calor - 1986; 2ª ed., 1986; 3ª ed., 1987 (Prémio da Crítica do Centro
Português da Associação Internacional dos críticos Literários) (tradução
francesa, 1989).
Filipa nesse Dia, 1989 (tradução romena, 1991).
Violeta e A Noite, 1991 (Prémio Fernando Namora).
Deriva - 1ª ed., 1993 (Prémio Literatura e Ecologia, do Lyons clube de Aveiro).
A Hora da Incerteza, 1995.

ENSAIO E CRÍTICA:
Manuel Teixeira Gomes (introdução ao estudo da
sua obra) - 1950.
Présentation de Castro Alves - 1954 (edição francesa).
O Tema da Morte - 1ª ed., 1958; 2ª ed., 1966; 3ª ed., 1978.
O Alentejo (prémio e selecção) - 1ª ed., 1958; 2ª ed., 1959.
Teixeira Gomes e A Reacção Antinaturalista - 1960.
O Mito de Dom Ruan - 1ª ed., 1960; 2ª ed., 1981.
O Algarve na Obra de Teixeira Gomes (prefácio e selecção) - 1962.
Noites de Teatro - 2 vols. - 1961 e 1962.
O Romance Francês Contemporâneo - 1964.
Realismo, Arte de Vanguarda e Nova Cultura - 1ª ed., 1966
(tradução espanhola, 1967); 2ª ed., 1978.
A Estremadura - 1968.
A Saudade na Poesia Portuguesa (prefácio e selecção - 1968.
Escritos Temporais - 1ª ed., 1969.
Ensaios de Escreviver - 1ª ed., 1971; 2ª ed., 1978.
Ensaios de Após Abril - 1977.
O Gosto de Ler - 1980.
Um Novo Olhar Sobre o Neo-Realismo - 1981.
M. Teixeira Gomes: O Discurso do Desejo - 1984.
"Prefácio" a Despedidas, de António Nobre, 1985.
Publicação em curso das Obras Completas de M. Teixeira Gomes.
A Horas e Desoras - 1ª ed., 1993 (Prémio de Ensaio Jacinto do Prado Coelho, do
Centro Português da Associação Internacional dos Críticos Literários).
Tradução e Ruptura, 1994.
O Homem Sem Imagem, 1994.
VIAGENS E CRÓNICA:
Jornadas no Oriente - 1956.
Jornadas na Europa - 1958.
De Floren a a Nova Iorque - 1963.
Roteiro de Emergência - 1966.
Tempos de Cinzas - 1968.
A Palma da Mão - 1ª ed., 1970; 2ª ed., 1974.
Deserto com Vozes - 1ª ed., 1971; 2ª ed., 1972.
Esta Estranha Lisboa - 1972.
Redescoberta da França - 1973 (apreendido pela censura fascista).
Viagem à União Soviética e Outras Páginas - 1ª ed., 1973 (Tradução parcial em
russo, 1973); 3ª ed., 1975.
As Grades e O Rio - 1974.
Perdas e Danos - 1974.
Palavras de Combate - 1975.
Diário da Ausência - 1975.

URBANO TAVARES RODRIGUES


OCEANO OBLÍQUO
Novelas e contos
PUBLICAÇÕES EUROPA-AMÉRICA

Capa: estúdios P. E. A.
1984 Urbano Tavares Rodrigues
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transgressores são passíveis de procedimento judicial
Editor: Francisco Lyon de Castro
PUBLICAÇÕES EUROPA-AMÉRICA, LDA.
Apartado 8
2726 MEM MARTINS CODEX
PORTUGAL
Edição nº 3288/3842
Execução técnica:
Gráfica Europa, Lda.,
Mira-Sintra - Mem Martins

Índice
Invenção da esperança 13
Os cravos malferidos 73
Transferências 93
Os dias de Vilacal 99
Os mascarados 111
Proserpina 119
A hora do parque 125
A rapariga no pinhal 131
O outro 141
A senhora da praia 147
Ofício de sombras 153
O amargo da festa 173
Oceano oblíquo 179

Invenção da esperança

No longe da memória, confunde decerto as primeiras imagens reais que dela
fixou com aquele retrato sépia -não sabe se o terá perdido-em que lhe aparecia
muito pintada, e bonita, de vestido curto e todo tango argentino, com franjas,
sapatos de salto altíssimo a condizerem.
O pai, tal como hoje o vê, era um sujeito fraco e frustrado, que precisava de
beber para se sentir outro. Porém, nesse tempo, Teotónio deixava-se ainda
ofuscar pelas expressões com que ele, em certos momentos, enchia a boca, como
«funcionário superior dum banco», «homem de confiança dos patrões», «pessoa
distinta».
Dar-se-ia conta, uns anos depois, de que o pai mandara fazer um smoking para o
vestir de dois em dois anos, de que tinha uma raquette sobreexcelente para quase
nunca jogar ténis e de que devia ser apenas tolerado vez por outra nalgum bar
nessa roda de condes, administradores, gente riquíssima e vadios de luxo. E nem
a mãe nem ele eram apresentáveis às senhoras e crianças desses senhores.
Havia um único amigo, modesto e apagado, que ia lá a casa e que, junto do
rádio, ouvindo notícias de uma guerra estrangeira, dizia baixinho, com rancor:
«Fascistas!, fascistas!» O pai concordava, mas tibiamente. Devia estar
acostumado a acatar, sem comentários, opiniões bem diversas.
Fazia-lhe umas festas distraídas, nos raros momentos em que parava em casa, e
por ocasião dos ágapes familiares, dias de anos, jantares de sogros e primos,
dava-lhe alguma atenção, dir-se-ia que para inglês ver, mas Teotónio agradecia,
no seu íntimo, essas esmolas, semelhantes às que o pai recebia do círculo dos
seus deuses.
Tiveram primeiro um cão pêlo de arame, com quem a mãe passou a dividir um
pouco do carinho que lhe dava, e que afinal empontaram para uns parentes
distantes, porque mordia sistematicamente 15
a porteira; depois foi um gato, de uma ninhada vagabunda, ao qual mandaram
capar, o que lhe causou grande revolta.
A mãe, que pouco saía, sobretudo nos últimos anos, a não ser para ir ao cinema,
em busca da ilusão que os filmes amorudos lhe ofereciam, era soberana em casa,
onde reinava (com muitas ordens, descomposturas e confidências) sobre duas
criadas escravas, da província. A mais nova, com quem Teotónio brincava, era
ainda quase uma garota, indiscreta e sorridente, sua primeira mestra (só de aulas
teóricas) em coisas do sexo e também em contos tradicionais.
O quarto dele, com janela para o saguão, ficava junto ao dos pais e a intimidade
forçada que daí advinha -era-lhe impossível não escutar os ruídos-começava a
incomodá-lo. Tomou-se-lhe essa promiscuidade intolerável a partir da noite em
que, pela primeira vez, ouviu a mãe bater no seu pai, que recolhia de madrugada,
aos bordos, quase inconsciente. Dos dois, o único que lhe dispensava alguma
ternura e que tinha tempo para ele era a mãe, mas o pai não deixava de ser o pai,
o homem, à imagem da divindade. Tapava os ouvidos, mas passara então a vê-lo
desfeiteado, tropeçando, rindo ou roncando, até cair, prostrado, na cama. Sentia
vergonha por um e pelo outro. Ia nos oito anos, mas sabia já, do fundo da sua
raiva, que nunca uma mulher se atreveria assim com ele: «Ah!, fosse comigo!»
De dia; é claro, fingia não ter dado fé de nada, embora, antes do jantar, que era
só quando punha os olhos no pai, os observasse atentamente, a ela com azedume,
a ele com desprezo, agravado pelo facto de ambos parecerem quase naturais.
Aos dez anos Teotónio entrou para o liceu e, de início, anónimo como não o era
no colégio ao fundo da sua rua, tudo aquilo lhe pareceu caótico e terrificante: os
castigos, os roubos, as denúncias, as janelas com os vidros quebrados, os alunos,
muitos deles provenientes de um bairro de barracas, entrando e saindo das aulas
como potros 16
desembestados, atropelando-se no pátio em volta das fontes, caprichando em
troçar dos professores e dos vigilantes.
De pouco serviu a Teotónio mostrar-se, tanto em Português como em
Matemática, um dos melhores; sentia-se ainda mais discriminado, alvo de
motejos e de encontrões. O seu companheiro de carteira, ruivo e maciço, o
Cabeça de Porco, apoquentou-o com cotoveladas durante uma aula inteira.
À saída, Teotónio, com um nervoso frio, provocou-o e, já que tinha de ser,
disparou logo o primeiro murro, sem o deixar refazer-se, continuou a atacar,
tanto a soco como a pontapé; e ver escorrer o sangue do outro, todo tumefacto,
de beiços cortados, até cair redondo no chão, foi para ele uma experiência
gratificante, uma dádiva solar. Só no final reparou que ficara também com uma
ou outra nódoa negra (quem vai à guerra dá e leva), o que não escapou, em casa,
à inspecção da mãe, que ia sempre ver se ele trazia lama nas roupas ou outras
sujidades. «És valente, sais ao meu lado», foi o que ela, depois de o repreender e
de se inteirar da história toda, acabou por concluir.
Teotónio voltou ainda a jogar à pancada, mas a partir daí foi aceite mesmo pelos
mais refilões e mais cruéis, pelos que fora do liceu -e não eram poucos-andavam
já no gamanço, perseguiam os cães à pedrada e diziam obscenidades às meninas.
Há qualquer coisa de inefável na brancura da pele, na delicadeza dos gestos da
professora de Desenho. Tem os seios pequenos (não precisa de usar soutien), a
cintura muito marcada e as pernas altas (a saia, claro, sobe sempre um pouco
quando ela risca esboços no quadro). Mas Teotónio não viu ainda os mil e um
filmes em que isto acontece e está atento ao menor movimento que ela faça, à
deslocação das suas ancas, ao brilho dos seus anéis de fada (são três em cada
mão e de um deles corre o azul como de uma fonte).
«Hoje vi-lhe as mamas», diz um dos putos à saída da aula; «Eu 17
cá vi-lhe as cuecas e os pentelhos», exagera um dos mais torpes.
Teotónio faz orelhas moucas.
De vez em quando ela falta. Dizem que é muito doente, tão branca, apesar de o
aspecto geral ser bom.
Numa das primeiras aulas que houve depois de a Primavera, no parque, abrir os
braços cheios de sol e de folhas, com os seus garraios dourados a meterem os
cornos pelo meio dos estores das janelas, enchendo a sala de riscos de luz, ora
rosa ora vermelhos, Teotónio, então no cimo da sua adolescência (tinha feito
doze anos), após o desenho geométrico, que despachou em três tempos, enche de
arabescos uma folha de papel cavalinho e bem no centro começa a desenhá-la,
com lápis de cor, dois traços apenas para os olhos enormes, onde fica pairando
uma longínqua solidão, a boca mimosa, o pescoço esguio. O rosto, assim
apontado, ficou parecido; agora principia a surgir, nu, o corpo esplêndido, não
tão diáfano como se adivinha, mas cor de mel, acariciado já pelo sol da
Primavera.
Teotónio hesita e acaba finalmente por cobrir com roupas interiores os lugares
interditos. Depois, calça-lhe ainda umas luvas encarnadas, ou melhor, cor de
ferrugem.
«Que delírio de imaginação», diz ela, quando o surpreende a concluir o desenho.
Mas não se zanga, limita-se a apreender-lhe a folha, que, em vez de rasgar,
guarda cuidadosamente na sua pasta.
Parece até, daí em diante, distingui-lo.
Teotónio, a partir desse dia, sonha frequentemente com ela.
A caminho de casa, roçando na rua - e sem os ver - ricos e pobres, carrascos e
vítimas, janotas e mendigos, imagina que a defende, com a força decuplicada
dos seus punhos, de galãs abusadores, de marginais que tentam violentá-la.
Resolvidas as equações, estudadas as conquistas de Alexandre Magno, vai
deitar-se e com ela fica, assim passam juntos para o espaço das sortes e dos
prodígios; mas, antes de adormecer, vê-a a despir-se, no outro extremo da
cidade, onde Lucília habita (com o marido), e, como ela lhe sorri, beija-lhe a
boca, os bicos dos seios, lambe-lhe o sexo, infringindo já o código dos colegas
que lhe ensinaram que deixar-se chupar pelas mulheres está certo, mas o
contrário não é digno de um homem. Para a penetrar (Teotónio só dos 18
livros científicos conhece uma vagina) anda à procura, mas ela furta-se, correm
por um pomar, de cujos talhões rompem jactos de leite, e vão-se-lhe fechando os
olhos. Está quase a agarrá-la, porém de trás de um canavial soam risadas e não
tarda que lhes apareçam à frente narizes e bocas sem corpos. A professora não se
detém e, à sua passagem, as folhas erguem-se do chão e voltam aos ramos das
nespereiras, surge-lhe agora outro obstáculo, um homem pequeno vestido de
sapo, mas ela, que traz umas calças de veludo largas e tem por isso os
movimentos livres, ultrapassa-o como se estivesse saltando ao eixo. De vez em
quando volta-se para se certificar de que Teotónio ainda lhe vem no encalço e
sorri. Dentro dele rebentam então, de alegria, gritos quentes, em vermelho e
laranja, como os reposteiros do quarto.
Está quase a agarrá-la e ela, a perder forças, ri-se muito, mas é então que entre
eles se atravessa um rebanho de ovelhas com colares de flores. Teotónio,
exasperado, atira um pontapé a um dos animais; não é, porém, um balido que lhe
responde, é a voz da mãe, indignada e aflita.
Perdeu a pista da sua linda mestra, de modo que corre à toa pelo meio das
figueiras, dos roseirais, dos tanques, dos canteiros, que evita pisar e onde
crescem a salsa e a hortelã-pimenta. Por fim, torna a avistá-la, junto de uma
fonte-altar, com reflexos de ónix e de madrepérola. Lucília tem umas chaves na
mão e, pela primeira vez, olha-o muito a sério, sem sorrir (de repente é noite,
uma noite superpovoada de constelações), e chama-o: «Eu provavelmente vou
morrer, Teotónio, mas preciso de ter uma grande conversa contigo.»
E ele, que, atrapalhado, não sabia já o que fazer ou dizer, senta-se-lhe aos pés,
agarrado timidamente às suas pernas maravilhosas.
Pouco depois deu-se, em casa, um acontecimento violento e espectacular. Estava
Teotónio a colar num caderno de papel almaço pinturas (que havia recortado de
várias revistas) de Modigliani, 19
Van Dongen c Utrillo, quando estalou - era a hora do conhaque do chefe de
família - uma discussão indiscreta entre os pais. «Porco indecente» era a menor
das invectivas da mãe, que ameaçava quebrar louça, enquanto o ofendido se
calava ou resmoneava entre dentes: «Idiota.» Pelas meias frases que ia escutando
-«cala-te, olha o pequeno», dizia o pai com frequência-percebeu Teotónio que o
seu progenitor emprenhara a Felisbela, a ancila sardenta a quem ele nunca
tocaria com um dedo («a casa é sagrada», havia-lhe a mãe pregado cem vezes), e
pagara-lhe um aborto ruinoso, porque «estamos a dez dias do fim do mês e falta
já o dinheiro para as coisas essenciais».
A rapariguita, de quem Teotónio teve pena, tinha-se trancado, a chorar, no quarto
das criadas e havia de seguir logo na manhã seguinte para a terra, onde não
demorariam a chegar imprudentes cartas da mãe, que lhe iam arruinar a
reputação.
Teotónio desaprovava o pai, cuja conduta o enojava, até porque o sexo era para
os jovens, não para homens casados e daquela idade e naquelas circunstâncias,
mas revoltava-o sobretudo a sua apatia, a sua cumplicidade, por indiferença, na
dura forma de castigar a pobre da moça, de quem se servira à sua vontade. Tão-
pouco apoiava a mãe, cujas confidências indignadas teve de suportar, de olhos
baixos.
Por esse tempo - a professora de Desenho estava agora no Caramulo,
gravemente enferma - deu-se conta de que faltava quase tudo o que faz uma vida
humana aos seus colegas do bairro da lata, aos poucos que ainda não haviam
desistido e que vinham lá do fim do mundo, malcheirosos, com serapilheiras às
costas, os pés ainda encharcados da água morta das poças, quando a chuva batia
furiosamente nas árvores e nas paredes viúvas de cor. Traziam para a aula,
pegados aos remendos, papéis sujos e rasgados. E as doenças da porcaria, com
que contagiavam os outros.
Teotónio concebeu pela primeira vez a necessidade de uma sociedade igualitária.
Os sentimentos cristãos que a mãe, embora quase nunca fosse à missa, lhe havia
incutido, reforçaram-se com o exemplo de uma sua prima direita, estudante de
Medicina, que fizera greve e fora atirada pela polícia de uma janela abaixo,
depois de lhe baterem nos seios com os chanfalhos. Outros estudantes, 20
soubera-o com admiração, haviam tido que lavar com as próprias camisas os
muros da Faculdade onde estava escrito «Morte a Salazar».
Essa prima tinha, de resto, uma voz doce e umas lindas nádegas, não menos
persuasivas do que as suas ideias, «bem de esquerda» segundo ouvia dizer aos
pais.
Estudava agora menos: absorviam-no também os matraquilhos e os chutos na
bola, em que não era aliás nada de especial. Mas aprendia bem e continuava a
ser o primeiro em Álgebra. Curiosamente e conquanto, em princípio, se
destinasse a Matemáticas Gerais (queria ser professor universitário, ou talvez
arquitecto, não estava ainda muito certo), gostava de ler e lia, sobretudo de noite
-lâmpada de cabeceira acesa até desoras-, o que de melhor lhe vinha à mão:
Stendhal, Tolstoi, Hugo e Zola, Aldous Huxley, D. H. Lawrence, Steinbeck,
Hemingway, obras que encontrava na pequena biblioteca do pai ou que pedia
emprestadas aos raros colegas com os mesmos interesses. Além disso, comprava
livros, às vezes em segunda mão, esticando os parcos escudos que esmifrava à
mãe.
Fazia, à sorrelfa, a caricatura de alguns dos professores ou dos condiscípulos - e
com as destes arranjava coroas para ir ao nimas.
Por esses tempos principiou a escrever um diário.
Sentia asco pelo palavreado da Mocidade Portuguesa, onde no entanto se podia
fazer esgrima e andar a cavalo, desportos que em verdade o tentavam; -enojava-
o particularmente a proximidade de um graduado escrofuloso, o Sargento Bera,
que tinha fama de homossexual (em casa os maricas eram alvo da chacota
paterna e materna, um dos raros pontos de acordo do casal). Quando alguns dos
colegas se decidiram a fazer-se expulsar, alinhou com eles cantando a
Internacional, embora praticamente quase nem soubesse que hino estava a
entoar. Desdenhou molhar a sopa no Sargento Bera, que, todo verde e
desengonçado, em má hora se pôs ao alto com eles, mas apanhou à mesma
quinze dias de suspensão, que o fizeram sair do quadro de honra.
21
A família, ante esse feito, hesitou entre a reprimenda e a compreensão, deixando
cair o caso no esquecimento. Vagamente livre-pensador, o pai, que fora, pelo
menos em casa, anglófilo, habituara-se a assentir ou a silenciar, sobretudo a não
emitir opiniões radicais, que pudessem ferir a sensibilidade dos seus amigos da
alta roda e da finança. E ofuscava-o verificar que o filho começava a ser, por
embirração, contra tudo: contra o governo, contra os ricos, contra os professores
autoritários, contra os polícias, contra os mais velhos...
Aos dezasseis anos Teotónio estava a terminar o curso dos liceus e foi a própria
mãe que achou que ele devia ir às «meninas». A meio da noite, quando o
julgavam adormecido, ouviu-a instar com o pai, que o rapaz andava magríssimo,
e olheirento, e punha nódoas amarelas nos lençóis, «vê lá, senão digo-lhe eu
mesma». No dia seguinte, o pai, pouco à vontade, deu-lhe o dinheiro, inquirindo
se ele tinha quem o orientasse, toda a gente conhecia essas casas. «Não se
preocupe, cá me governo.»
A primeira tentativa foi desastrosa. Logo na escada, já Teotónio sofria o cheiro a
tremoços e a mijo, a esperma, a sangue coalhado, a perfumes quentes e baratos.
Ouvia-se, lúgubre, o sino de uma igreja. A sala estava cheia de fumo e de
marujos americanos, nos quais todas as raparigas se penduravam. Tocou-lhe
assim uma gorda, já de meia-idade. Talvez a sua experiência compensasse. Mas,
ao vê-la melhor, no quarto, tinha as mãos e os pés roídos por uma micose.
Despiu-se, já com vontade de ir-se embora, trémulo, a cama parecia-lhe um
túmulo, o bidé, com o esmalte gasto, onde a mulher o mandou lavar-se, devia
estar sujo. Os quadros «sugestivos» da parede feriam ainda mais o seu sentido
estético do que as pregas da barriga caída da criatura, que se esforçava.
Esforçava-se pouco, ria-se, mãe castigadora. A única preocupação de Teotónio
era que ela não contasse nada daquilo aos companheiros.
22
Seguiram-se dois meses de neurastenia. Falava escassamente, guardando o seu
pesado segredo, perguntava-se se seria mesmo assim, incapaz de consumar o
acto. Valeu-lhe uma costureirinha magra e tisnada, que ia uma vez por semana lá
a casa fazer uns arranjos nos vestidos da mãe e nas camisas dele e que reparou,
com meiguice, naqueles olhos implorativos que por todo o lado a perseguiam.
Aconteceu ao lusco-fusco, quando ela saía, num canto da escada do prédio, entre
o quarto e o quinto andar. Aí conseguiram abraçar-se meio vestidos, esperando
ansiosamente que ninguém passasse àquela hora; e foi ainda ela, ao mesmo
tempo que lhe dava a boca de seiva, a encaminhá-lo para o lugar certo, já que as
suas acometidas inábeis só a magoavam e o levavam ao desespero. Após a
delícia e a glória dessa primeira cópula, Teotónio encheu-lhe a face, o pescoço,
as mãos de intermináveis beijos de gratidão.
Infelizmente a proeza não teve continuidade, porque o medo de ser surpreendida
a traumatizava; «além disso, tenho um amigo, não posso receber-te no meu
quarto, ficava mal vista», e Teotónio, desencorajado, sem expediente nem
ousadia para a levar a alguma casa de passe, desistiu.
Caiu por isso no hábito de ir sábado à noite -e depois com mais frequência - ao
Bairro Alto, nem que fosse só para fazer sala, visto que as notas não abundavam.
Nunca, porém, se lhe tornaram familiares aquelas ruas sem lua a subirem de
braço dado com a angústia e com a crápula, as tabernas, as casinhas de boneca
onde aparecia durante o dia «gente honrada», mas também desbocada, e muita
roupa a secar nas janelas.
Arrastavam-no quase sempre dois colegas, mais velhos, fracos alunos, mas tesos
para a porrada e já com certa veia boémia, que a mesada não ajudava. De uma
casa de tias passavam para outra, nisso iam mascarando o tempo, as pálpebras da
noite a baterem nas vielas contra a poeira luminosa dos candeeiros. Quando a
chuva balbuciava por aqueles empedrados, tudo se tomava mais agressivo e
repugnante: a caca de cão, o vomitado, os detritos escondidos no escuro, as
espinhas de peixe, o odor a caixote do lixo. Na montra quase nua de um alfaiate,
por onde a água escorria, expunham-se o tronco negro de um manequim e um
par de sapatos muito bicudos.
23
Num Sábado Magro tiveram a pouca sorte de se cruzar com um bando de
foliões, que, fingindo-se mais bebidos do que realmente estavam, implicaram
com eles, um porque não gostava da gabardina que aquele gajo trazia, outro
porque lhe saíssem da frente e era quanto bastava, acabaram por se pegar, três
contra cinco, e foram murros, cabeçadas, rasteiras, corpos rolando contra as
sarjetas (tinham de ser e eram, claro, meninos de Cascais, com guarda-costas),
durou aquela opaca brutalidade até alguém se pôr a gritar e soar o apito da
polícia, o que enfim os dispersou, uns a coxearem outros sangrando, mas lá
foram à vida, os castiços para um lado e eles os três amparando-se. O Calmeirão
era o que estava pior, dobrado em dois, devido a uma autêntica marrada no
estômago, e a dor não se acalmava, mas Teotónio, ferido num sobrolho, carecia
urgentemente de água oxigenada e de adesivo, pelo que buscaram a farmácia de
serviço naquela área.
Perto, numas águas-furtadas, existia mais um bordel, que eles não conheciam, e
foi aí que Teotónio, com um penso na testa, ainda vermelho de sangue e de
mercurocromo, veio a encontrar a sua primeira namorada. Talvez fosse a
superexcitação em que chegou que o fez amá-la três vezes e com tanta e tão
inesperada ternura que a mocinha, atordoada, e instada por ele, acabou por lhe
contar a vida (tão parecida com a da Felisbela) e ficou como em êxtase, com um
fio de lágrimas ao pescoço. «Não, não faz mal, as outras também se demoram,
quando querem, e nem penses em pagar, eu cá me arranjo com a patroa.» Tinha a
quarta classe, adorava ir ao cinema (e muitas vezes Teotónio havia de lhe fazer
esse gosto), iam saindo palavras que estavam amordaçadas, o pai, em casa, já
com o olho nela, então é que a mãe a pusera a servir e, depois já ele sabia;
quando se achou sozinhita, a loucura a rondá-la, em espiral, umas tenazes a
apertarem-lhe a cabeça, por um triz não se amandava ao Tejo, e aí tens...
Beijaram-se outra vez, pareciam grudados um ao outro, e a noite, espreitada da
varanda estreita, era uma paisagem apaixonada, onde ainda se descobriam
jardins ocultos; ao longe, no rio, dormiam os mastros das fragatas, cintilavam
correntes de luzes, como pedrarias, 24
e havia navios cheios de tudo o que se possa imaginar, desde as carnes
congeladas e a cortiça às frutas exóticas, ao sonho a peso.
Bernardina contentava-se com pouco, com os passeios ao Parque Eduardo VII e
aí com o espectáculo do domingo de ar livre, com a agitação das crianças (que
ela amimava, quando se lhe chegavam) correndo atrás dos cães. Sobretudo
tornava-a feliz o braço que Teotónio lhe dava, à vista de todo o mundo. Preferia,
ainda, no entanto, as matinées baratas e sentimentalóides do Condes e do Odéon,
que convinham, é certo, à bolsa de Teotónio, embora o amargurassem pela
estupidez: o pai estava a ganhar pior, a mãe a queixar-se, tivera de resignar-se a
uma só criada. Às vezes tinha de ser Bernardina a pagar, ele protestava,
sinceramente, «cala-te, querido, já muito fazes tu em andar comigo» (Teotónio
prendia-lhe sempre a mão, no escuro, mas não se beijavam em público,
Bernardina portava-se «à altura», quando saía). Se vinha a propósito, Teotónio,
no intervalo, falava-lhe às vezes da guerra fria, das mentiras dos filmes, dos
horrores e das formas de exploração que eles sonegavam, mas Bernardina não
conseguia interessar-se, não percebia dessas coisas, «tem paciência, querido»,
personalizava todos os seus afectos, acusações e despeitos, as ideias abstractas
não eram com ela.
A festa dava-se no quartinho que alugavam por uma hora e onde Teotónio,
agitado, logo a despia, soltando-lhe os seios de farinha alva, que apertava muito
com as mãos, fazendo-a gritar de dor. Beijava-lhe o ventre liso e duro, onde
destoava apenas o umbigo saído, marca indelével dos partos de acaso e de
miséria.
Brincavam como miúdos. Não havia sítio do corpo que ele não lhe acariciasse
longamente, enquanto ela sorria e o esplendor da tarde punha nas paredes
rodelas de cobre, luminosas. Mas era Teotónio que a enchia de sol. Assinalavam
os orgasmos dele indo abrir uma gaveta e mais uma e outra do lado direito da
cómoda; e os dela, que começavam também a repetir-se, do lado esquerdo.
Pendiam-lhe da boca palavras de imenso carinho, vindas do campo, da infância,
mas as mais delas sorvia-as, ainda persistia e persistiria entre eles uma distância.
Teotónio lavrava-lhe o corpo até ao crepúsculo, quase desmaiava em cima dela,
mirando-se naqueles olhos garços todos entregues.
25
Sobrevieram nessa altura vários acontecimentos. Primeiro, Teotónio adoeceu
com sarampo, com febres muito altas. Calhou ir vê-lo um tio padre, do lado da
mãe: era a outra religião, não a do amor e do empenho social, à qual Teotónio
estava sensibilizado, mas a dos rigores, dos medos, das asceses, do orgulho
desmedido numa pureza bem diversa da que ele concebia. No entanto,
debilitado, a testa a arder, lavado em suores frios, Teotónio achou-se vulnerável,
pouco que fosse, à superstição, aos pavores que o outro tentou infundir-lhe. E
ficou assim a debater-se com o remorso, com a náusea de ter cedido a uma
chantagem e, sobretudo, a receios que considerava indignos: no seu programa de
vida reluzia o ideal difícil de um sereno estoicismo frente à doença e à morte.
Convalescente, apareceram-lhe -ou notou-os só então-condilomas no sexo. Não
era grave, mas sentiu-se sujo. Foi ter com Bernardina e avisou-a, não a
censurava, se ela própria não sabia!, mas tinham ambos de tratar-se. Ela
concordou, ficou triste, sobretudo porque ele se recusou a fazer amor («depois,
quando estivermos curados», «mas que mal tem agora, se estamos os dois na
mesma?!»), pressentiu o fim.
Entretanto chegou ao liceu a notícia da morte, no Caramulo, da professora de
Desenho e Teotónio andou durante horas sozinho, à chuva (parecia desabar um
dilúvio sobre a sua inconformação, merda de destino), os passeios tinham
espinhos em vez de pedras, doía-lhe o peito, respirava mal, lembrando aquela
testa alta sob as madeixas livres, a solidão do seu olhar rasgado, todas, todas as
palavras, bem poucas, que lhe havia dito.
Encerrou-se na vida de Teotónio o ciclo do Bairro Alto.
26
Anémona separou-se do grupo, que se preparava para uma brava jantarada, e foi,
sozinha, ao mirante da Senhora do Monte no dia em que terminou o curso de
Medicina. No adro da capelinha ainda esboçou uns passos de dança perante
pessoas que a julgaram meio chanfrada e a quem sorriu toda a sua simpatia.
Frente ao rosto limpo da tarde, sentou-se no parapeito do muro - todos outra vez
a observarem-na, mas era um dia excepcional, podia permitir-se essas pequenas
fantasias-e, a divagar os olhos pela cidade em hemiciclo, onde lhe saltavam à
vista o edifício da Morgue e a elegância pombalina do Hospital de S. José,
ocultas as monstruosidades e horrores que ela bem conhecia, pôs-se, sorrindo
para dentro, a imaginar no seu oráculo. O sol ia caindo, em lisos movimentos
oblíquos, sobre as ruínas do Carmo, sobre a estátua do Maximiliano, no Rossio;
outras inscrições de luz, mais ardentes, surgiam ainda nas vidraças, nas grandes
superfícies brancas, nos automóveis estacionados, até que a tarde começou a
tiritar e Anémona, sem ter chegado a definir bem a fronteira entre o que tinha
sido até aí a sua vida e o que seria, ou devia ser, doravante, decidiu ir visitar o
primo, estudante de Belas-Artes, mais novo, de quem se sentia um pouco
conselheira e irmã.
Depois do internato, que ia agora começar, interessava-lhe a especialização. Se
tivesse dinheiro, não hesitava: psiquiatria, melhor, antipsiquiatria, renovar,
avançar, mas queria ir primeiro a Inglaterra, a França, aos Estados Unidos, era
até melhor afastar tal ideia. E
daí... Às vezes a sorte... E porque não, mais modestamente, oftalmologia?
Sempre achara bonito. E tinha saída. Arranjar logo um consultório, não seria
fácil, só passando pela Faculdade, trabalhando primeiro com um prof., até tinha
condições para isso, pelo menos as notas do curso. «Veremos, há tanta coisa
mais na vida...
Ser útil, de qualquer modo. E sentir-me bem com o que fizer.»
Além disso, precisava de alugar e mobilar uma casa, criar a sua independência,
nem que fosse pôr uma cama no chão, comprar uns candeeiros bonitos, um
armário, empilhar uns tijolos em dois montes, para sustentarem as três ou quatro
prateleiras de uma estante improvisada, o primo arranjava-lhe uns bibelôs, uma
rede 27
de pesca, uns quadros para as paredes, pintava-os ele mesmo se fosse necessário.
Teotónio não a esperava, ficou tanto mais feliz por esse facto e quando soube
que ela se formara e com uma das notas mais altas.
Mas não deixou de a picar: «Ainda continuas a pensar em ir enterrar-te na
província, logo a seguir ao internato, num desses sítios sem água nem luz onde
as pessoas ficam desdentadas e velhas aos trinta e cinco anos?»
«Não é bem assim: eu tencionava morar numa vila e ir então a essas aldeias.
Mudei de ideias, ultimamente, julgava que já te tinha dito. Outros médicos
melhores, ou piores, do que eu serão capazes, não tenho espírito de sacrifício o
bastante, ou isso tudo terá de ser organizado pelo Estado, com um certo rigor,
por outra gente, outra política, já se vê. Depois, sabes?, há muitas maneiras de
servir... Eu faço o que posso. E sou muito limitada, reconheço.
Este país precisava de uma volta tão grande.»
«Só Deus Nosso Senhor...»
«Não brinques, Teotónio.»
«Deus somos nós, Anémona», diz ele, mudando de expressão «é a continuidade
da vida, é a soma do que fazemos, a vontade de nos fazermos ...»
«Tu foste criado ao peito pela tua mãe, não te esqueças dos que não foram e que
trazem com eles a avidez, a insatisfação do inferno. Mas tu...»
«Não faças análise comigo, Anémona, por favor. Eu não tenho inveja de
ninguém, as minhas noções do bem e do mal são nítidas, embora não coincidam
com as de toda a gente. Não encontras em mim nem furores persecutórios nem
pulsões destrutivas e a minha capacidade de amor até é grande, sobretudo
quando estou ao pé de ti, das tuas pernas...»
«Não sejas parvo, Teotónio.»
«Uma mulher liberta não se choca com tão pouco.»
«Quem te disse que eu me choco?!»
Teotónio olha-a com carinho e gratidão (pela amizade e pelo tempo que ela lhe
dá) e pensa, não sem sorrir, que as grandes afirmações de independência, o
direito à igualdade sexual que a prima 28
tantas vezes afirma, não passam provavelmente de farófias e que ela é muito
capaz de ser, com tudo isso, uma jovem intranquilamente casta.
Mudando de assunto - na rua soam os klaxons da hora de ponta, uma sereia de
ambulância, contrastando com os ruídos ,de fogão e também de cristal que vêm
do fundo da casa, onde a mãe dele e a criada preparam com antecedência o
jantar-, Anémona pergunta-lhe subitamente (e Teotónio abre uns escuros olhos
de espanto) se não gostaria de fazer qualquer coisa para derrubar o fascismo.
Mas o quê? Simplesmente, acrescenta ela, aderir à luta da Resistência. Se ele
aceitava encontrar-se com um funcionário do Partido?
Teotónio reflecte um instante, «não sabia que tu...», mas se se trata apenas de um
encontro, de colaborar, sem qualquer vínculo definitivo, pois sim. É que, por um
lado, aos comunistas admira-os muito, pela dignidade da sua conduta, pela
coragem, pelo sacrifício, mas tem sérias reservas em relação à União Soviética, à
política interna e à brutalidade de Estaline, embora aqui se saiba pouca coisa,
muito pouco, como a censura filtra tudo e deturpa, ou silencia completamente as
notícias. «O que me vale é que leio jornais estrangeiros, quando os arranjo.»
«Sim, mas o que importa, não achas?, é fundamentalmente o que acontece no
nosso país. Aqui é que temos de construir outra sociedade. E, antes de mais,
deitar abaixo este nojo. O resto, depois se verá. Não é? Ainda bem que estás de
acordo.»
A admiração de Teotónio pela prima aumenta ainda com este episódio.
Teotónio começou a receber imprensa clandestina. Encontrava-a na caixa do
correio ou por debaixo da porta, sempre em sobrescrito fechado. Os pais não
deram por nada. Uma noite veio um telefonema de uma mulher que Teotónio
não conhecia, se podia ir a casa dela 29
e quando, era por causa de uma conversa que ele tinha tido com a prima, lembra-
se?
Teotónio concordou com o dia e a hora que ela lhe propôs e foi estritamente
pontual. Por amabilidade e para encher o tempo, faz-lhe algumas perguntas, o
nome, o emprego, se era mesmo de Lisboa, mas sentiu-a contrafeita e não forçou
mais; era uma mulher baixa, muito trigueira, de aparência modesta, tal como o
apartamento, a que apenas dois vasos com plantas davam o verde de uma
respiração. Quando o «amigo» chegou, logo ela os deixou sós.
Teotónio escutava-lhe todavia a presença, lá dentro, no ruído de torneiras e de
água a pingar.
Mais tarde Teotónio havia de considerar que aquela fora a sua primeira
confissão. Estava, de facto (o que era contrário à sua natureza), em estado de
total humildade perante aquele homem da treva e do perigo, que pelo falar
pausado e suave, pela beleza das rugas, pela penúria austera do fato e dos
sapatos, tinha, aos seus olhos, muito de comum com um frade combatente.
Ficou com um tratado de marxismo-leninismo, que o «amigo»
lhe emprestou, admitiu, com certa relutância, usar um pseudónimo, para «maior
segurança» (não queria, apesar de tudo, enveredar por essas formas clássicas de
alistamento), e comprometeu-se a actuar conforme pudesse na Escola de Belas-
Artes, onde havia de ser contactado.
Tornariam a encontrar-se, se fosse o caso disso, numa paragem de autocarro, ao
anoitecer, mas que fosse pontual ou ele ia-se embora; de toda a maneira, seria
avisado.
Pouco depois houve uma comédia eleitoral, que a Oposição Democrática, aliás
dividida, aproveitou para tentar fazer-se ouvir.
Na sequência de uma sessão, clamorosa, que se efectuou na Voz do Operário, a
polícia carregou contra a multidão, que, aos borbotões, 30
saía do edifício, e fez prisões, a pretexto de resistência à autoridade ou mesmo
sem pretexto algum.
Anémona, que estava nessa noite de serviço no banco de S. José, atendeu vários
feridos. A certa altura soube-se que a pide andava nos corredores e queria as
identificações. Os médicos resolveram não as fornecer. Um deles, o Teimo, filho
de um conde arruinado, suspeito de ser legionário e certamente carreirista,
bajulador dos mestres e dos chefes de equipa, ainda tergiversou, mas era
demasiado esperto para se opor em vão às decisões da maioria.
Dos que parlamentaram com os agentes, e parece que até com um chefe de
brigada, arrogante, salientou-se, pela aliança do tacto e da firmeza, Martinho
Lira, que conseguiu afastá-los, embora a ameaça da repressão e da discriminação
profissional pesasse agora sobre eles, médicos; e para a concretização dessas
perspectivas escuras haviam de concorrer as denúncias de Teimo, como tempos
mais tarde se pôde comprovar.
Anémona, que imprudentemente esbravejou com um dos pides, foi, na ocasião,
admoestada, à parte, está claro, por Martinho Lira, «o que importa é não ceder,
levantar a voz a esta gente só complica as coisas, dá-lhes trunfos para a mão».
«Tem razão, mas não pude resistir.»
Do asco e do furor compartilhado nasceu uma simpatia. Martinho Lira começou
a reparar na intuição daquela jovem interna e no seu desvelo pelos doentes e
também a fixar-lhe a boca muito recortada e muito vermelha, que contrastava
com a magreza láctea do rosto. Não se falava em namoro, a que aquele solteirão,
com pensativas entradas e conversa macia, era pouco atreito (dizia-se que
mantinha, há anos, uma ligação de tipo quase marital), mas houve, entre os
colegas, quem prenunciasse o casamento. E foram-se sucedendo as idas ao
cinema, os almoços na Marginal, sobre o mar, as grandes discussões em que se
confirmavam afinidades de toda a ordem. Anémona tendia a ver, ou a imaginar,
angústias nos seus doentes e não era raro que neles detectasse a posição
esquizoparanóide, como consequência de um excesso de pulsões sádico-orais.
Martinho mostrava tomá-la a sério em todos os seus entusiasmos psicanalíticos,
e, não sendo um especialista, ouvia-lhe, com interesse 31
ou, pelo menos, com paciência, as dissertações sobre o body self, a sua
apaixonada recusa de uma clivagem entre o psiquismo e o psiquessoma, e
admirava-se por vezes da capacidade de leitura e até de avanço que ela
manifestava, no conhecimento das teorias da última hora, em relação a muitos
dos consagrados. «A representação vivida do mundo entra no campo do conflito
interno», afirmava Anémona. «O êxito ou o fracasso do analista depende muito
de como conseguir levar o analisado a ultrapassar ele próprio activamente,
espontaneamente, certas posições afectivas da primeira infância.»
Anémona emprestava-lhe livros, que ele fingia ler de ponta a ponta, e ficava-lhe
por esse facto reconhecida, embora estranhasse que Martinho, tão carinhoso e
todo ouvidos quando a sós com ela, se modificasse em grupo, perorando com
frequência sobre generalidades, como se desejasse sempre, um tanto
ingenuamente, impor-se e brilhar.
Anémona ia-lhe dando, de semana para semana, um pouco mais de si, das suas
convicções mais fundas, dos seus projectos e sonhos, do seu desejo de
transformar as «atrozes casas de doidos»
em clínicas psiquiátricas que nada haviam de ficar a dever, em relação humana e
em criatividade, às melhores do estrangeiro. Falava, ele sorria, apoiava-a, mas
faltava qualquer coisa.
A liberdade de deslocação que o carro assegurava a Martinho Lira induziu-a a
comprar, a prestações, um automóvel em segunda mão, e, mesmo assim, dos
mais baratos, pois o que o pai, funcionário dos correios, e a mãe, professora, lhe
podiam conseguir pára ajuda pouco era, a somar às suas exíguas economias, de
algumas explicações que dera ao longo do curso.
E não foi com Martinho, talvez por pudor de lhe apresentar aquela traquitana,
mas com Teotónio que deu os primeiros passeios, experimentais.
32
O velho Aronde, às vezes, soluçava ou deitava fumo, o que os obrigava a
refrescarem-no. Tinham de parar para erguer o capot e deitar água no depósito,
com o motor a trabalhar. Iam até Vila Franca, olhando o mar da Palha,
metalizado pela luz intensa, sob o céu quase branco, espumejante de limbos
fininhos. Das refinarias da Sacor saíam rolos espessos de veneno, que não raro
se tornavam em corolas vermelhas de um bombardeamento fantástico.
Anémona amava e detestava ao mesmo tempo a paisagem industrial, fonte de
progresso que o salazarismo tivera de consentir a contragosto, mas também
ameaça à natureza-mãe. «De toda a maneira, é a paisagem do nosso tempo e olha
que os poetas e os pintores esquecem-se dela.» «Lembra-te que o Renoir já
pintava estações de caminho-de-ferro. E o Chirico também,» «Mas são
excepções. E entre nós?» E Anémona estava lançada numa diatribe contra a
fatuidade e a frivolidade da cultura burguesa. Ninguém se lembraria, senão ela,
de ir passear para o Barreiro, para o Seixal, Alhos Vedros, Pinhal Novo.
Algumas vezes Teotónio dava o seu mergulho no rio, ou no mar, do lado da
Trafaria, enquanto ela ficava a olhá-lo e depois o ajudava a enxugar a cabeça.
Pôs-se uma tarde Anémona a pensar porque gostava tanto da companhia daquele
primo com menos quatro anos do que ela e concluiu que devia ser por causa
daquele ar sempre adolescente, quase criança, que ele mantinha, sendo tão alto
como era, com o estar sempre a sorrir, e aquela madeixa na testa.
Luzes e sons fundiam-se nas miragens da hora e a última linha do horizonte
vermelhava muito ao longe, para lá da foz do Tejo, que eles fitavam, calados,
braço de um pelo ombro, braço do outro pela cinta.
Abateu-se sobre o hospital um tempo de miasmas e epidemias.
Martinho Lira, nesse clima de doença e de morte, falou a Anémona em
casamento, sem sequer a sondar fisicamente, ela disse que talvez, que sim, mas
que não estava à espera, as palavras do costume, até se envergonhava de lhe sair
tanto lugar-comum, mas tinha mesmo de habituar-se à ideia. Olhos nos olhos,
classicamente apertando-lhe a mão até quase fazer doer, Martinho pediu que não
protelasse por muitos dias.
33
Anémona queria pensar, mas ia adiando, acabava decerto por aceitar, não se
podia viver sem companhia, Martinho compreendia-a, era inteligente e bom
médico, onde estivesse seria sempre o primeiro, organizador, prático mas
sensível, falava bem, até de mais...
Tinha prometido ao primo irem no fim-de-semana a uma floresta. Afinal, com o
carro a portar-se menos bem, ficaram por Monsanto. Sempre havia cisnes,
pavões, o exterior de um restaurante caro onde eles não punham os pés e o
bálsamo dos maciços tufados, o doido crescer das ervas que o vento estremecia,
uma clareira para se sentarem, com bichinhos mágicos, joaninhas, caracóis e
também provavelmente com osgas, escorpiões... Levantaram-se e meteram pelos
atalhos dos beijos perdidos, onde naturalmente Teotónio lhe tomou conta da
boca, pela primeira vez, e não a soltava, a entranharem-se um no outro.
Então Anémona, sem perceber bem o que fazia e porque o fazia, disse ao primo
que ia casar-se, mas que, se ele quisesse, esperava por ele -Teotónio, agora muito
quieto, só a olhava, quase com tristeza, ou com inquietação-e, se ele não
quisesse casar, podiam viver juntos. Depois ficou calada e já contaminada de
tristeza, à espera. Ainda acrescentou, com todo o seu brio feminino: «O que não
aceito são partilhas; se me queres, vives só comigo e só para mim.»
«É justamente isso que me preocupa. Eu praticamente ainda não vivi e tenho
uma imensa vontade de viver. A ti, nunca te mentiria, de resto não quero mentir a
ninguém. Tenho receio de te afastar do que talvez seja o teu caminho. E quero-te
tanto bem.»
«Mas afinal gostas de mim, ou não?»
«Gosto. Se gosto! E desejo-te. E inspiras-me ternura. Mas receio que não seja
dessa maneira exclusiva que me parece que tu exiges.»
«Estás a complicar. Mas realmente exijo. Se não és capaz...»
«Vês?»
«Estaremos por orgulho, e por criancice, a estragar tudo?», pensou Anémona.
Seguiram, silenciosos, até ao carro. Tinha escurecido. Viram 34
riscar a abóbada já nocturna um longínquo meteorito. Estavam ambos cheios de
frio, tremiam, sem lágrimas.
Anémona casou-se, dois meses depois, com Martinho Lira.
Cência, aos treze anos, erguida sobre dois palitos tisnados, o peito débil, crescera
já até à altura de uma mulher alta, se bem que nada tivesse a agradecer ao bom
passadio.
Entrara para uma escola comercial, por teimosia do pai, que se metera a trabalhar
como bate-chapas, e começava a gostar daquilo, sobretudo das aulas de
Português, quando a mandavam ler.
«Obrigada sôtor», dizia logo, ainda antes de principiar a declamar, sobretudo se
o texto se prestava. Imitava os locutores da rádio, na ênfase e no mau gosto, mas
punha em tudo, e especialmente nos diálogos, uma claridade, às vezes um tom
apaixonado, que impressionavam.
Miúda da rua, vinha de umas águas-furtadas da Baixa, acanhadas, para onde a
família, ao chegar a Lisboa, fora morar com um padrinho bondoso, de antiga
cepa operária, e ali espigara, entre gatos, ventos e vasos de flores, afeita a fazer
mandados, a meter os pés no lodo do rio, quando calhava, e a correr à toa com a
gandulagem, do Cais das Colunas ao Largo do Chafariz de Alfama. Sabia toda a
casta de palavrões e conhecia da vida as misérias e as alegrias que a canalha
respira no ar, mas dissimulava na escola essa ciência infusa. De resto, tinha gosto
para se arranjar, com dois trapitos (a mãe, que lavava escadas, de pouco tempo
dispunha para lhe fazer, de quando em quando, uma saia), e já desejava, é claro,
o que não podia ter. Mas acreditava na sua sorte e isso a ajudava a contentar-se
35
por ora com os frisados do Tejo, cheios de esperança, com algum gelado que
comia, se se atrevia a pedir dinheiro para o comprar, e até com os amarelos e
roxos dos jacarandás e das varandas, em Maio e em Junho, a brisa das palmeiras
da Avenida então ondulando, no fim das aulas, época dos santos e das marchas,
quando o alfange do sol cortava e queimava a brancura da cidade.
Um professor entusiasta, muito jovem e que afirmava nas aulas que o amor é
inerente à natureza das coisas, meteu-se a ensaiar com eles O Principezinho, de
Saint-Exupéry, e Cência foi escolhida para o papel da Raposa. Nunca imaginara
poder ser tão feliz como veio a ser nos ensaios. «Nasceste para fazer teatro»,
disselhe o mestre.
A estreia foi pelo Natal e houve que ceder, pelo menos nos cenários, à pressão do
director da escola, «um beatão de marca, a malta já o topou», mas Cência, que
nem se apercebia muito disso, teve a sua noite de glória e de lágrimas, porque
tudo aquilo tinha acabado.
«Ó pai, leve-me ao teatro, eu gosto tanto.» O pobre, com os rins partidos da luta
que travava com a saúde em horas extraordinárias, lá apurou todos os tostões,
que deram à recta para uma primeira sessão do Variedades, para ele revista é que
era, «e para a semana temos que fazer magro». «Mais magro ainda?», comentou
a mãe, que passava a vida de boca amarrada.
Cência não arregalou os olhos: parecia que já conhecia aquele universo de
lantejoulas antes mesmo de o ter visto, apreciou as plumas e as curvetas daquelas
mulheres opulentas, de salto muito alto, que beijocavam o compère, à boca de
cena, e encantou-se nos bailados, mas o que a arrebatou mesmo foram as rábulas
e os números patrióticos, esses onde se gritava com emoção.
Disseram-lhe, porém, na escola que o teatro, o verdadeiro teatro, era outra coisa,
e ela, insegura, concordou. Adivinhava que, de facto, devia-haver outro teatro, à
sua espera.
Já lhe tinha acontecido pedir dinheiro para um bilhete, à porta dos cinemas,
aprendera com algumas colegas, embora as mais orgulhosas as escarnecessem
por isso. Mas estava a ficar alta de mais, ouviu respostas tortas e derivou para
outras paragens: entrava agora 36
nas livrarias, sempre com um velho casacão cheio de bolsos, e, remirando todas
as mesas, aproximava-se da secção dos livros de teatro, de onde ia levando,
mesmo em francês e em espanhol, aqueles títulos, de Shakespeare, de Schiler, de
Alfredo Cortês, que decorara numa História da Literatura Dramática emprestada
pelo professor que a ensaiara na escola. Até que um senhor empregado, com
pupilas de cinza e mãos que pareciam tentáculos de polvo a agarrá-la, a apalpá-
la, lhe tirou toda a vontade de recomeçar. Foi preciso rojar-se-lhe quase aos pés
para ele a deixar ir-se embora, em vez de a entregar à polícia.
Só lhe restava a biblioteca da escola, mas o que lá se podia encontrar estava
longe de a fascinar. Mesmo assim, quase decorou o Frei Luís de Sousa e A
Sobrinha do Marquês.
Depois, em pouco tempo, muita coisa aconteceu. O patrão do pai dela, que era
um bom mecânico, teve um acidente: caiu-lhe um carro em cima do peito e das
pernas, ali mesmo onde levara metade da existência a trabalhar; ficou entrevado,
e o filho, um doutor, vendeu a oficina. «Tenha paciência, Sr. Inocêncio, mas eu
disto não entendo nada, entrego-vos a todos os três o que vos compete por lei,
mais não posso fazer.»
O dinheiro, foi um ar que lhe deu. «Uma caganifância, não cabe na cova dum
dente», amolava-se o pai, desesperado, sem conseguir outro emprego, «estamos
bem tramados». Com a idade que tinha, as costas dobradas (e não podiam eles
ver-lhe aquela maldita dor nos rins), ninguém o queria: não faltavam aprendizes
a oferecer-se para bate-chapas, pedindo menos e com outras forças.
Volvido um ano - e, vá lá, ainda a mãe conseguira, a mais do que já fazia, um
escritório de uma empresa, que se esfalfava de noite a limpar-era a miséria bem
negra lá em casa. Até que uma manhã deram com o Inocêncio, que havia dois
dias quase não falava, todo roxo, pendurado de uma trave do tecto, e estava em
cima da mesa um papel a dizer apenas adeus e que sempre seria menos uma
boca. Deixava um pouco de dinheiro, vindo não se sabia de onde, para o enterro,
a completar o que a Caixa havia de dar.
Cência (arrependeu-se depois) pouco ajudou a mãe. Sentia coisas destruídas a
chocalharem-lhe na cabeça e nem reconhecia o pai 37
naquele morto desfigurado, cujos pés quase rebentavam os sapatos.
De raiva, atirou uma pedra a uma montra das mais bonitas da Baixa e quebrou-a.
Fugiu para o meio da noite sem lâmpadas e, por bambúrrio, não foi apanhada.
Levou semanas (mas sem deixar de ir à escola) a raspar feridas interiores.
«Pobre pai!» Agora que a situação parecia pior do que nunca, obstinava-se:
«Hei-de acabar o curso, seja lá como for, e depois vou fazer teatro, a menos que
comece já, mas quem é que me quer?!...»
Quem a quisesse não faltava, mas noutro sentido. Cência ganhara formas e
ostentava uma cintura mais do que fina, conquanto tivesse ainda ossos à mostra,
nas omoplatas e nos ilíacos. A má alimentação dava-lhe pálpebras de veludo
escuro. Quando saía das aulas, passava por um mercado, onde via tudo o que lhe
apetecia e não podia comer, nem a mãe, que lhe inspirava agora uma excruciada
piedade.
Começou por essa altura a dar atenção ao que já antes lhe diziam algumas das
alunas mais velhas e mais sabidas: que se podia fazer quase tudo sem perder os
três e que havia muitas maneiras de arranjar umas notas.
Da primeira vez que masturbou um cavalheiro digno e decente, no banco de uma
praceta, ficou toda arrepiada e electrizada, de medo, de vergonha, de ansiedade.
Com a continuação, chegou até a abstrair-se da situação e a ouvir as vozes do
jardim nocturno, enquanto lhe mexiam por baixo das roupas. Apertavam-lhe os
mamilos, afastavam-lhe as pernas para a tocar intimamente e ela fazia por sentir
a frescura da estátua e do repuxo; às vezes doía-lhe e queixava-se, mas recusava
a autocompaixão, era como um sonho irónico que estava vivendo, e até lhe
acontecia surpreender a passagem rápida das ideias pelo seu espírito.
Desdobrava-se. Se assim não fosse, afundar-se-ia. Eles a desatarem atilhos, a
rebentarem-lhe o soutien, «para ver ao menos o material», a sujeitarem-na, a
espremerem-na, a encaminharem-lhe as mãos, e ela fixando azulejos das
fachadas, a matéria negra e espessa da noite.
Progredindo naqueles exercícios, não tardou que entrasse nos automóveis e
acedesse a chupar os mais persistentes (andava munida com vários lenços para
cuspir, logo que o homem terminasse, o 38
esperma dele e o seu nojo). Teve um grande susto quando um desses tipos de
acaso, que ela esperava nunca mais tornar a ver, ficou de repente mudo e
apopléctico, quase a asfixiar, e ao mesmo tempo prendendo-lhe as mãos, talvez
numa súplica, ela sem saber o que fazer, prestes a sucumbir ao pavor. Na frente
do carro, alongando ruas e paredes, a pista branca, indiscreta, do luar, os pólipos
da desgraça, a toda a volta, a crescerem, cercando-os. Mas dessa ainda Cência
escapou.
Para a mãe não estranhar, porque, além da comida, apareciam em casa vestidos,
discos, livros, remédios, e era ela quem pagava agora as propinas, inventou uns
trabalhos de tradução e fotografia publicitária, que na verdade ninguém lhe
daria, nem ela conhecia essa gente.
Uma noite surgiu-lhe um tipo dos seus quarenta anos, bem trajado, bem
parecido, bem em tudo, que teimou em levá-la para um quarto. «Mas onde?»
«Um quarto meu, descanse que ninguém lhe faz mal.»
Hesitou, estava quase a recusar, e, por fim, o receio idiota de parecer criança,
«eu sei defender-me».
«Vamos lá, mas já lhe disse as condições.»
«Como é que te chamas?»
«Cência.»
«Isso não é nome de gente.»
«Sou Maria Inocência, mas não gosto.»
O carro nunca mais parava e Cência, que ainda reconhecera a Almirante Reis e o
alto da Alameda D. Afonso Henriques, estava agora perdida, numa zona de
aterros, de lixeiras, de prédios novos com janelas cegas e muitas varandas
enfáticas, tudo aquilo baralhado pela noite e pela velocidade.
Tanto ele teimou que Cência teve de despir-se inteiramente, era a primeira vez
que diante de um homem o fazia, a contragosto.
No quarto, sobrecarregado de ornatos, havia santos nas paredes e arcas antigas,
os candeeiros de pé alto ou suspensos eram vários e bonitos, a cama tinha uma
colcha de damasco bordada a ouro.
«Gostas que te bata?», perguntou o senhor, sem esperar a resposta para a
esbofetear por várias vezes. «Gostas, claro. Vê-se.»
39
«Não, não», debatia-se ela. E continuou a chuva de pancadas. Depois beijou-a: a
boca dele sabia a poço. Voltou-a de costas e continuou a açoitá-la com uma das
mãos, enquanto com a outra lhe agarrava o pescoço e a mantinha segura, a
estalar de raiva.
Acabou por a sodomizar, ameaçando que, de outro modo, se ela resistisse, seria
pior.
Cência ficou adoentada por dois dias, devido ao abalo nervoso.
Mas uma tarde, quando cobiçava um gira-discos, numa montra do Chiado,
pensando, com azedume, que, para escutar religiosamente os poucos discos que
tinha, lhe era forçoso ir a casa de uma aluna da escola, que ficara para trás, por
falta de aplicação, ou de capacidade, viu a seu lado, fixando-a, uma mulher nova,
muito mais alta do que ela, de olhos imensos e ar imperativo. Lera havia pouco
Les Fleurs du Mal, que tinha comprado na Barateira, pelo título e por ouvir
vagamente falar, e aquela criatura poderosa e aberrante, que lhe sorria, mas ao de
leve, lembrou-lhe logo, mais ainda do que a Beauté, a Jeune Géante, de
Baudelaire.
Prometeu ajudá-la a comprar o gira-discos e teve para com ela gestos que
Cência, na vida real, ignorava, como levar-lhe flores ou uma concha apanhada
numa praia, para lhe servir de cinzeiro. Gina tinha uma «profissão» que Cência,
por instinto, odiava (mas a ela perdoava-lhe): vivia de rendimentos.
Foram algumas vezes fazer compras aos grandes armazéns e até a lojas de moda.
Quando pela primeira vez se despiram frente a frente Cência observou, com
espanto, até que ponto a outra era, de facto, uma escultura.
Acariciava-a longo tempo, com as mãos ligeiras e quentes, e só depois a lambia.
Cência teve prazer, pela primeira vez, chegava até à dor, mas dizia a si própria:
«Eu não gosto de mulheres, não gosto de mulheres, isto é por acaso.»
Algumas vezes Gina interrogava-a sobre os seus hábitos de vida e Cência, que
aprendera a ser secreta, um dia, emocionada, contou-lhe algumas das suas pobres
e humilhantes experiências no jardim nocturno.
«E não sentias nojo de ti, dó de ti?»
Revoltou-se: «Não estou aqui para lhe contar o que sinto.»
40
«Ah! Não?», disse a outra, ferida.
E nessa tarde, em que houve entre elas despeito, rancor, uma grande comoção,
Gina desflorou-a com os dedos.
Cência viu o sangue, bem vermelho, e só então compreendeu.
Agarrou num pregador, em que a outra tinha muita estimação, e tentou
arremessá-lo pela janela, mas Gina desviou-lhe o braço e a jóia foi embater
numa parede.
«Estás maluca?»
Cência cerrou os dentes. A tarde, que fora escaldante, findava e os cortinados da
janela entreaberta já não filtravam a poeira do sol, cobriam-se de rubis, de algas
avermelhadas, de manchas cor de vinho. Cência continuava muda de desespero.
«Então?»
Olhos perdidos nos arabescos da carpette, Cência sente o desejo mau de destruir,
de rasgar, de queimar tudo o que faz do andar de Gina um pequeno templo do
dinheiro, estatuetas, quadros, o Gobelin que decora a parede da sala, as pratas, as
porcelanas caras, a console D. João V, o toucador...
Recusa a mão que vem afagar-lhe o ombro.
«Deixa lá, eu vou realizar-te um sonho.»
«Cuida que compra tudo?»
Assim Cência, bem recomendada, entrou para uma agência de publicidade,
como modelo fotográfico. O que fora mentira, piedosa astúcia para não alarmar a
mãe, tornou-se de repente verdade deslumbrante.
Deixou crescer o cabelo, porque lho pediam. Aprendeu a pintar-se.
Tudo o que podia agora fazer!...
Um colega mais velho levou-a para a Guilherme Cossoul: ia representar.
Cortou radicalmente com Gina e até a simples lembrança quis apagar do jardim
nocturno.
A venal e maculada Cência desses encontros, desse rastejar tinhoso, ficaria bem
sepultada, bem calcada, em fundões de bruma.
41
Quando o cãozinho, dando um súbito esticão à trela, que se lhe soltou da mão,
desatou a correr por entre os carros a meio da Avenida, Olga assustou-se - e não
surgia providencialmente um sinal vermelho, ninguém fazia caso do pobre
bicho, «muito odiosos são estes condutores». Até que, aos ziguezagues,
arriscando-se duas ou três vezes a ser atropelado, apareceu um jovem comprido
e curvado, que, após várias decepções, do género de levar um outro a desistir,
pois o pequinês furtava-se-lhe no preciso momento em que já cuidava que o ia
agarrar, acabou por o trazer à dona, ao colo, com mil cuidados.
«Não sei como agradecer-lhe» - o rapaz ficara parado diante dela, com um riso
mole e macilento-, «olhe, gosta de teatro?, então vá logo, ou amanhã, se preferir,
aos Funâmbulos, sabe onde fica?, eu represento lá, deixo-lhe dois bilhetes na
bilheteira, pode levar quem quiser...»
«Basta um. Até escusava de ter essa maçada, eu sou jornalista, podia pedir na
secretaria... Mas está bem, assim é mais rápido.
E tenho muito gosto.»
«Quer para hoje mesmo?»
«Pode ser.»
«É verdade, que nome é que ponho no bilhete?»
«Firmino. Firmino Costa.»
Era uma comédia brilhante e amarga de Anouilh. Olga representava o orgulho da
pobreza revoltada.
«Vocês enojam-me todos com a vossa felicidade. Dir-se-ia que não há senão a
felicidade neste mundo. Pois bem, sim, vou fugir à felicidade. Sim, não quero
que ela me agarre viva. Quero continuar a sofrer e a gritar. É extraordinário, não
é? E você não pode compreender, claro?»
42
«É um papel feito por medida para mim.» Mas queria representar Brecht.
Tinham-lhe falado no teatro épico e pusera-se logo a ler Brecht, de empreitada.
Depois da miséria, vivia agora o ódio à censura. «Posso suportar tudo, menos
esta violência da estupidez, que abafa a inteligência. E tenho mesmo que a
suportar».
Firmino mexe-se no banco corrido, incómodo, de onde viu em sobressalto o
espectáculo, que está quase a terminar. Atacado de entusiasmo, à sua maneira
desengonçada e espremida. Repórter do «realizou-se ontem», ainda com uns
restos de cera do seminário nas mãos muito finas, nos braços débeis, todos os
meses se lhe abrem novas perspectivas. Apetece-lhe rojar-se aos pés de Olga,
como um outro cãozinho de estimação, e segui-la de muito perto, a tocá-la, a
escaldar-se, pelos meandros intelectuais e dissipados da vida que lhe visiona.
Confunde-a com Thérèse, com o antidestino.
«Compreendes, Florent, por mais que eu faça batota e feche os olhos com toda a
força, há-de haver sempre algures um bicho abandonado, uma desgraça, para nos
impedir de ser feliz...»
Está mesmo a acabar. Firmino fica com as suas mãos de jovem padre todas
vermelhas de tanto as gastar a aplaudir.
À mesma hora Teotónio já bateu os bares elegantes da zona do Chiado, o Ibéria,
o York, o Rex, à procura do pai (foi a mãe que lhe suplicou fosse buscá-lo; é
domingo e o chefe da família não põe os pés em casa há mais de trinta e seis
horas). Encontrou-o por fim, em mais um desses santuários do marialvismo
subido, frente ao S. Carlos. Ébrio, clownesco, vergonhoso, entre grandes
senhores do dinheiro e borboletas de polpa rija, que o acarinhavam e se riam.
«Deixa-me. A tua mãe quer é dar cabo de mim, amarrar-me a uma vida burrical.
Família? Qual família! A minha família é esta, são as pessoas que me estimam,
que me apreciam.» A ele, Teotónio, era evidente que não o apreciavam. Uma
coisa são os validos, quando se situam entre o aio e o peão de brega, outra coisa
são os filhos dos validos, esses não riscam nada.
43
Prometeram-lhe, em todo o caso, uma vez que o pai se negava a acompanhá-lo,
«ora o fedelho, querem lá ver!», entregarem-no eles em casa antes das duas, já
não faltava assim tanto. Telefonou a tranquilizar a mãe e, embora cansado,
resolveu fazer horas, não queria, por nada deste mundo, assistir à cena, ouvir a
altercação, as pragas, os prantos.
Entrou, sem convicção, numa cervejaria ainda aberta na Avenida e não tardou
que desse com os olhos nuns charcos de veludo e azul que, em mesa próxima, se
concentravam nele.
Percebeu que falavam de teatro, de Bernard Shaw, de O'Neill e da representação
daquela noite, via-se que eram actores, pelo menos alguns do grupo. «Tu
esqueces-te sempre daquela réplica, livra.» «Pudera, fico a olhar para ti, em
êxtase.» «Pois, pois. Um psiquiatra é que te explicava esse lapso.»
«O frenesim da pureza é destrutivo.» «Que pureza?» «ó homem, a
intransigência, a não resignação.» Que há na agitação dos seus dedos?, no azul
do olhar de Olga? Os raios eléctricos da curiosidade?, o esplendor do desejo?,
uma súbita vontade de mudança, de escândalo, de amor? Porquê Teotónio? Só
porque o acaso os sentou frente a frente? Ou porque ele tem uma grande
desolação no rosto, aquela madeixa juvenil, a chama da ternura irónica?
Quando se levanta para ir ao toilette, Olga, que foi Cência, que foi Inocência,
entorna, com a aba do casaco, a cerveja de Teotónio (o teatro ensinou-lhe aquela
eficácia dos gestos) e, como lhe salpicou o fato e a camisa, ganha o direito às
prolongadas desculpas.
Acaba por se lhe sentar ao lado. Também Teotónio gosta de teatro e pensa
mesmo na conciliação das linhas de Brecht e de Artaud.
«Estudante de Letras?» «Não, sou quase arquitecto.» Então até podia, quem
sabe, fazer um cenário para a próxima peça, já que imagina em novos espaços
cénicos.
Firmino observa-os pouco menos de indiscretamente, com uma tão patente
tristeza que Olga, dando por isso, sente um mal-estar, mas não há nada a fazer: a
proximidade de Teotónio, que lhe fala de coisas sérias muito perto da face e do
pescoço, quase a tocá-la 44
com os lábios (as mesas, redondas, são pequenas e o movimento ainda intenso),
causa-lhe um langor, um arrepio na espinha: alguma coisa vai acontecer, tem de
acontecer entre eles.
Firmino detesta não propriamente o jornalismo, mas aquele jornalismo
amordaçado, subserviente, lambareiro, que o rodeia e que tentam ensinar-lhe,
que ele terá de fazer e já faz, afinal, como os outros. Humilha-o ter de perguntar
o nome a pessoas que o tratam de cima para baixo ou, o que é pior, gente que faz
por lhe adoçar a boca, para se ver adjectivada no jornal. Já assistiu, de pé, a
tantos almoços e jantares - e discursos-de homenagem que lhes perdeu o conto,
até aos da Legião Portuguesa, e, por muito que afirme que não tem -e não tem
mesmo, julga ele-ideias políticas, a Legião, que diabo, dá-lhe volta ao estômago,
como sucede ao comum do país obscuro.
O seminário devia ter-lhe amaciado a espinha: não foi o bastante, até porque, ao
invés dos carreiristas mais diligentes, descurou o favor dos padres e já na sua
fase mística, que o tornou ridículo ante os outros, nele pungia o fervor herético
que viria a consumi-lo.
A redacção observa-o, troça-o discretamente; o chefe abomina-o e vexa-o,
porque Firmino é desajeitado, tímido, sabe montes de coisas que ele ignora e
escreve com o sabor alatinado e vernáculo da tradição patrística. Emenda-lhe
todos os linguados, por sistema.
Onde ele escreve «Cerca das quinze horas» põe o outro, depois de riscar, com
gosto, «Por volta das quinze horas»; substitui «pronunciou» por «proferiu»,
«efectuou-se» por «teve lugar», Firmino vai para dizer que é galicismo, mas
reconsidera, cala-se; porém, quando o chefe lhe muda «obcecado» por
«obsecado», não resiste e explica-lhe que está a confundir com «obsessivo» e
que obcecado é aquele que está como cego, do latim caecum, está a ver?
«Você acha que eu sou uma besta, não é?»
«O senhor é que o diz.»
45
«Vá-se sentar -berra o homem, todo encarniçado.- Tenho que falar a seu respeito
com o director.»
Sabe que nessa noite já não lhe darão a correspondência da província. Instala-se
na sua secretária, disposto a atender pacientemente o telefone, que todos
empurram para ele, e pensa em Olga, no modo como estará a desenvolver-se a
sua relação com aquele rapaz da Ribadouro. Da única vez que foi a casa dela,
esforçando-se por não ser demasiado cerimonioso, cruzou-se com um «senhor
distinto» que ia a sair, muito fixador e colónia no que lhe resta de cabelo,
cachecol de seda branca, sobretudo de caxemira. Seria possível? Não, Olga não
era dessas. Ainda que... arranjar casa na Barata Salgueiro e mantê-la, era obra!
Estão deitados de bruços sobre revistas e figurinos de teatro, sobre livros abertos
com textos de Gordon Craig, de Dullin. Da varanda, violada por um
inesperadamente forte, absurdo, sol de inverno, despeja-se pela cama, pelo
quarto, aquela claridade toda branca dos sonhos, de sonhos de que ele já nada
recorda senão essa névoa luminosa. Toca-a, aperta-lhe a mão: é a sua amante, o
nome é lindo, rebaixado por gente estúpida, obsoleta, mas em si mesmo é lindo -
meigo e desafiador.
«Pode haver, ao mesmo tempo, afeição e paixão, não achas?
Há quem pense que não se devem pôr nomes aos sentimentos...»
«Porque não? É preciso correr todos os riscos, mesmo o das palavras.»
«Sabes, Teotónio, li, por acaso, um livro, que não esqueço, sobre Abelardo e
Heloísa. As cartas dela, que vinham transcritas, são um espanto, como é que
podem ser daquele tempo?! Eu sinto da mesma maneira: quero ser, adoro ser a
tua meretriz, sempre à tua disposição, só para ti; casar contigo, por exemplo, era
porco.»
«Não, não vejo como, mas de momento não tinha essa hipótese.»
«Cala-te, parece que te pedi alguma coisa.»
46
Teotónio penetra-a demoradamente, quase se martiriza para conter o orgasmo.
«Ainda não, ainda não, por favor.» Depois, fá-lo parar: «Agora vamos tomar
banho juntos, com muita espuma, então sim.» Teotónio dá-se conta do que há de
inocente e de perverso naquela festa, lavam-se um ao outro, moldam-se,
constroem-se na água, o cetim das coxas desliza, os dedos enredam-se-lhe nos
pêlos puberinos, fica a tremer, e é então que sente os dentes dela e ouve aquele
silvo e quase desfalece.
Do Diário de Teotónio
(...de Fevereiro, 1957)
Não sei se será irremediável espírito de destruição ou o desejo profundo de viver
dramaticamente o que faz que Olga de vez em quando ponha tudo em causa: a
profissão, o amor, a própria existência. É cíclico. Ontem, declarou-me, mal eu
havia entrado, que tinha decidido definir situações que se arrastavam com certa
cobardia.
Duvidava de que eu gostasse realmente dela e receava que não lho dissesse por
piedade. «Tem juízo, Olga, onde é que foste agora buscar isso?» Mas insistia,
muito séria, como se quisesse dar cabo de tudo: que havia agora entre nós uma
matéria opaca, feita de cuidados meus, de silêncios, de pequenas mentiras, ou
omisssões, a nossa ligação está a degradar-se, mais vale falar claramente: «tudo
é já entre nós menos exaltante, tens de reconhecer, tudo é mais medido e
vigiado.» «Santo Deus», disselhe eu, «mas tu queres viver sempre em alta
tensão, é impossível.»
De resto, a questão é mais complexa: ela precisa mesmo de tempestade, de uma
certa forma violenta de entrega absoluta, que traz a invenção dos gestos, a
transparência dos sentidos, bruscas ousadias. Agora descobriu que, de há uns
tempos para cá, na intimidade comigo fica inibida. E fica certamente. Que hei-de
fazer?!
Já não posso adiar mais a tropa. Talvez isso nos valha; uma 47
separação. Ou resolverá as coisas de outro modo. Tenho pena, porque gosto dela.
Muito. É claro que não se gosta da mesma maneira as vinte e quatro horas do
dia.
Estou a vê-la, pela vida fora, a destruir amores, como quem desmonta
brinquedos. Poderá chamar-se a isto exigência de absoluto, ou angústia, vertigem
de uma verdade que eu pressinto que queima e que, afinal, uma vez esventrada,
esgotada, ao primeiro repique de desejo, ao primeiro correr da ternura, se revela
não verdadeira?
Hoje foi tudo diverso, como se tivesse esquecido. Eu é que estava nervoso,
inseguro, sondando-lhe, no rosto e no corpo, as reacções, durante o acto do amor.
Ficou encaixada nos meus braços e derivou para um território por onde amiúde
vagueia: se haverá vida nas outras galáxias?, e como pode o universo não ter
fim?, e que será de nós depois de mortos? Sente muito ansiosamente os
problemas do nada e do infinito, como eu os sentia aos doze, treze anos.
Desse período da minha adolescência, em que fiz por fechar a porta a tais
perguntas, restame todavia uma película de solidão a separar-me dos outros.
Contrária à concepção do mundo que pouco a pouco se me impôs (devo isso a
Anémona, essa esperança, essa luz), mas resistente, tenaz. E essa solidão, é
impossível que muitos outros não a conheçam, não convivam com ela, como eu.
Platão considerava o homem um ser autónomo a partir do momento em que
realiza em si a unidade e deixa de se contradizer.
Ora eu tenho, claro, uma visão do mundo, que não renego; não ando na vida ao
sabor do acaso; mas estou constantemente a contradizer-me, não sou de uma só
peça, não sou um robot. «Pode perder-se tudo», dizia o Goethe, «se se
permanece aquilo que se é.»
Mas o que sou eu, ao certo? Sei muito bem aquilo que quero ser, isso sim. O
resto é escuridão, matéria movediça.
Desenvolvo algum trabalho político na Escola de Belas-Artes.
Pouco. A prudência que me aconselham também não me deixa ir mais longe. E
fica-me uma espécie de remorso, ou de frustração, 48
por ser tão fraco o meu contributo. Se for preso por isto, não chega a fazer
sentido - meia dúzia de reuniões; debate ideológico; recrutamento, zero; e tudo
continua na mesma, neste país. Talvez me sentisse outro se contactasse com
operários... Mas estou tão distante deles.
Só me confesso à Anémona. É verdade, vou deixar de lhe falar da Olga. Creio
que a incomoda. De política, sim; e até dos meus pais, e de tudo o que me
amargura, este meu receio de não ter jeito para a vida, de não prestar, às vezes
esta dor generalizada, difusa (será isto a angústia?), este meu sentir-me
incompleto, estar incompleto.
Manda-me calar, diz que eu sou um pingo de saúde (como se engana!).
Creio que o marido não é militante. Da oposição, isso sim.
Mas não deve ser activo. Acho que trabalha muito. Além do hospital, opera
agora também numa clínica e certamente ganha muito dinheiro. A Anémona até
já me disse que tinha de ser eu a fazer a planta para uma casa que tencionam
construir no pinhal entre Galamares e a Praia das Maçãs. Será que o dinheiro não
transforma as pessoas, não as corrompe? Ela não, não vejo como, anda sempre
com as mesmas camisolas, com as mesmas saias, não é fita, e até lhe vão bem.
Fico melhor quando converso com ela. Revigora-me o sentimento da minha
historicidade, do pouco e do muito que sou neste canto do mundo onde cumpro a
tarefa de viver. Por onde passo. Onde gostaria de deixar alguns sinais, que outros
pudessem ler - e lhes aproveitasse.
Doente há três dias, Olga tem faltado aos ensaios, mas não se esquece de
telefonar. Não suporta estar parada. A peça que levam a seguir é má: não tem
ideias nem verdadeiro humor, só baboseiras, situações de um cómico com
barbas, em suma, estúpida, regra geral 49
são assim. Mas dá para ela puxar pelo papel, que remédio!, à sua volta fala-se
muito em profissionalismo...
Ainda houve quem propusesse a Maria Emília, do Redol, que Olga gostava tanto
de fazer, mas «não é isso o que o público quer», pronto, quem manda é Dom
Dinheiro, a empresa decide e toda a gente se cala. O Anouilh, em todo o caso,
não deu prejuízo...
Quem lhe vale é o Firmino. Chega logo de manhã, carregado de remédios e de
alimentos, que dão para encher o frigorífico (a que horas é que este homem
dorme, quando sai do jornal já com o dia a nascer?). E não pede nada em troca,
percebe que ela não está em veia de dar.
Já lá vão dois meses e meio que Teotónio foi para a Escola Prática de Cavalaria,
em Torres Novas, onde descem escadarias à carga e fazem trinta por uma linha.
«Procuro na memória o calor da tua pele, o estremecimento da ternura. O que me
faz sentir intensamente viva concentra-se em ti e no teatro: agora falta-me tudo.
Sobretudo a maravilha de estar contigo, de te ouvir, de te amar desta minha
maneira desesperada.»
«Olha, Firmino, há para aí umas latas de atum, se procurares bem. Não, não
quero fumigações nenhumas.»
«Mas faz-te bem. Passa-te logo a rouquidão. Não sejas teimosa, Olga, não queres
ir aos ensaios?»
«Está bem, pronto, vamos lá então aos vapores...» «Talvez não me acredites,
Teotónio, esta doença é a tua falta e torna-se delírio, grito, náusea, este
desgraçado é que me vale, obriga-me a um certo decoro. Mas é verdade: sem ti,
debato-me numa prisão, sangrando, pressinto que entre nós tudo é precário, que
a duração é impossível, não sei porquê. Já estava vivendo o pânico de me
desencontrar de ti: agora, que tenho de aceitar a evidência da separação, dói-me
o corpo todo, a começar por estes mamilos, que sentem a falta das tuas mãos, da
tua língua.»
Firmino lê-lhe os recortes, que andou a coleccionar, das críticas à sua actuação
na peça agora terminada - se não há público, se não querem nem deixam criá-lo,
como podem as peças durar?, isto é de facto um ofício para heróis e santos...
«Mas repara que todos reconhecem o teu talento e fazem-te vaticínios, estás na
berra.»
50
É também a opinião do Fagundes Salsa, que acaba de entrar, de calça de veludo
afunilada, gordo, olho de carvão, pé dançarino.
Firmino cala-se, como sucede sempre que está junto de alguém a quem detesta
ou que o constrange, pela diferença de discurso e de meio social.
«Como é que te deixaste ir abaixo, minha rica? Bem sei que com este taró... Vê
se te pões boa depressa, que lá no teatro já começam a ratar, sabes como é, tu és
nova, bonita, pegas num papel e fazes tudo bem. Não hão-de as más-línguas...
Depois, o nosso meio é mau. Não to dizem, mas há muitas coisas que não te
perdoam : deram-te uma chance e tu vai daí metes o público na algibeira.
Era para fazeres uma substituição, vamos lá a ver até onde a mocinha vai, e tiras
logo o ás de trunfo. O êxito, está claro, é sempre bom, foi bom para todos, mas
tem cuidado, menina.»
Pôs os bombons na mesa-de-cabeceira, arranjou ele mesmo as rosas -apenas três,
mas lindas-numa jarra que foi buscar à cozinha desarrumada, beijocou-a mais
uma vez e desandou para o ensaio, «digo que vais já amanhã?, óptimo!»
«É mesmo querido este Salsinha, não achas?»
«Parece teu amigo e isso já vale alguma coisa, mas não suporto os homossexuais
deste estilo, assim exibicionistas...»
«Pois olha, eu até gosto muito dos paneleiros. Para já, não me atacam, é
repousante; e têm graça, têm gosto, são prestáveis; este pelo menos é. Depois,
Firmino, repara que não tens o direito de condenar um tipo só porque é diferente.
Mesmo a afectação, esse tom ostensivo que te irrita, são consequências da
discriminação.
Se pensares um pouco, dás-me razão, estes gajos devem sofrer imenso...»
«Mas eu dou-te razão, Olga.» E Firmino, a desculpar-se, explicou que aquela
aversão lhe vinha do seminário, onde, aos doze anos, um padre o perseguira e,
como ele se recusasse, o que tudo isso lhe custou!, tinha arranjado formas subtis
de o castigar, de lhe tramar a vida.
«Mas acontece então muito nos seminários?»
«De que maneira!»
E Olga volta a fugir. A ausência de Teotónio dói-lhe com uma 51
violência que a assusta, a ponto de lhe parecer patológica a necessidade que dele
sente. E não vem vê-la. Talvez não possa, talvez não queira. Apetece pedir-lhe
que a ajude a viver, mas logo a seguir acha que tudo é inútil, só o teatro talvez
valha a pena, tenho mesmo de pôr-me boa, depressa, e calar esta pulsação
desesperada.
A dor de sabê-lo perto e tão longe... As imagens do ontem ainda flutuam na
humidade do quarto, um rasto de avidez. Estou tão magoada cá por dentro: a
minha infância, a adolescência, este fruto podre que resistiu. Que sou eu para ti:
um útero à tua espera?
Com quem te dás agora, o que fazes? Só aqueles dois telefonemas, tão breves,
quase de obrigação... E um postal, amoroso sim, mas também curto, e eu já não
espero nenhum envolvimento mágico, nem acredito em esferas de intensidade.
Puta de vida.
Quando o telefone toca, Firmino imagina precisamente que é Teotónio, mas o
tom de Olga, enleado e quase cerimonioso, arreda essa possibilidade. «Hoje não.
Quer dizer... Sim, se vier mais tarde, lá para as seis ou mesmo mais tarde. Claro,
mas com certeza que pode vir. Sabe, estive adoentada; mas já me sinto quase
bem. Pois sim, está combinado.»
Firmino fica certo, quase certo, de que se trata do homem do sobretudo de
caxemira. Despede-se logo; depois pensa que é falta de tacto, mas já não
consegue voltar atrás.
Quatro horas depois, Olga, exausta, conduz até à porta o distinto senhor de
idade, que fala muito baixo, afável, grisalho, já enrugado, mas que teve, e ainda
tem, pestanas de corista. Começa agora o achamento dos presentes, que ele
escondeu debaixo dos móveis ou atrás do aquecedor eléctrico ou numa estante,
entre os bibelôs, um frasco de perfume, um anel com uma turquesa, das
verdadeiras, um saco de plástico com uma blusa dentro. Só o sobrescrito, que
contém umas notas, fica mais à vista. O resto -é um jogo-leva tempo a encontrar.
Esconder as coisas, porquê? Olga não encontra nenhuma explicação. Porra, o
trabalho que teve a pôr aquele tipo em pé, e nem sabe se foram as palavras se os
gestos 52
o que surtiu efeito. São três vezes por mês, quando muito, e é mais por gratidão,
foi ele que a levou para o Vasco Morgado, de onde veio para o teatro a sério.
Mas custa! Nunca mais se livra, afinal, do sarro da adolescência, daquelas
punhetas feitas a velhos no escuro da tristeza sem vergonha.
É um tipo doce e até com piada, doce mas só com ela, porque já telefonou dali
uma vez para o banco e era frio de gelo, e duro com o motorista, não
exactamente duro: seco, como se nem o visse, daquela vez única em que a levou
de passeio a Azeitão, a comer bolos, naquela quinta com um lago baixinho, com
nenúfares, se bem se lembra, um espelho de água.
Eram ainda dourados os plátanos há poucos dias, muitos deles persistentemente
verdes, mas a pouco e pouco, cada dia mais cedo, falece a luz, amontoam-se no
solo as folhas tristes, instaura-se no tempo a sombra.
Começou a migração das aves, apareceram os primeiros ramos nus, do céu
escorre água cinzenta.
É agora a dissolução, a infixidez, o espaço da lama. A emoção das árvores é
sacudida pelo vento nómada. Chove sempre ao meio-dia. Os passeios cheios de
detritos. Nas regueiras a espuma do enxurro. Há umbelas que se viram, varetas
partidas. Depois amaina.
A chuva cai, quase em silêncio, na tarde mole. Cheira a fim. Vem o anoitecer
leitoso, desviçado. Pássaros que ficaram pousam-se no cobre e no coral de certos
galhos, que um resto de sol acende.
O crepúsculo, o seu sumo vermelho, coagula nas folhas mortas, nas que já nem
esvoaçam, começam a apodrecer, caídas na terra pastosa.
Sim, é por aí que a podridão avança.
Olga sabe que Teotónio tuberculizou (um infiltrado num pulmão) devido aos
esforços que tem feito na tropa. É agora aspirante, mas está internado no
Hospital Militar Principal e prometeu vir.
«Tenho visto coisas tão horríveis, nem quero falar-te nelas.»
53
Conseguiu trazer-lhe flores. E, como Olga o beija e lhe procura a língua com a
dela, numa grande pressa tira do bolso outro presente: um frasco de Rimifon.
«Tens de tomar isto como eu, para não seres contagiada.» «Está bem, eu tomo.»
Apesar de falar devagar, com suavidade, pertence, como ela, à comunidade dos
inquietos, dos tensos, dos exasperados.
No teatro hesita-se entre uma comédia do Bernard Shaw ou uma tournée muito
rápida, repondo dois êxitos da temporada finda.
Teotónio tosse, repetidamente, e defende-se: «Na última análise não tinha
bacilos.» Através da janela o entardecer de pedras e nuvens, um frio
esbranquiçado.
«Como passas o tempo?»
«Jogando poker, de noite fechamo-nos na casa de banho, há lá uma mesa
comprida, serve. E passo horas sozinho a pensar, deitado na cama. Sinto-me
muito pequeno perante o tempo e a história.» Não sabe porque lhe fala naquilo,
talvez por não ter no hospital ninguém com quem conversar, para lá do Street
flush, do passo, dobro, vejo, parte. À excepção de um aspirante muito calado,
que lê Sartre e Merleau Ponty e que já lhe emprestou alguns livros - mas
intimida-o, parece saber tudo, ser em tudo infalível -, os outros, a avaliar pelas
palavras, só pensam em boites e em putas ou em façanhas futebolísticas. A lenda
dos tuberculosos intelectuais e sensíveis... que balela.
Sente-se tentado a contar-lhe como assistiu à agonia de um mocito que em
poucos dias envelheceu prodigiosamente, até ficar só pele e osso e já com a cor e
o cheiro da morte, a desfazer-se em sangue. Quando o levaram, para que não o
vissem morrer, encontrava-se Teotónio à beira dele, como hipnotizado.
«Em que é que estás a pensar?»
«Em nada, Olga, em nada.» Curiosamente, fora o único a reagir à apalpadela
política de Teotónio; os outros riam-se do «botas», tinham azar à Pide, os que
tinham, e ficavam-se por aí.
«Vem cá.» É assim. Atraem-se como pólos magnéticos. Na carne dela, sempre
nova, Teotónio encontra um sabor poroso, um gosto a terra fresca, e memórias
de brisa, flores de acaso. Enquanto nela se afunda cada vez mais e mais
aceradamente, observa aquele 54
azul dos olhos a perder-se, a errar, a entrar em delíquio, e pergunta-se se não é
nesses instantes que a alma precisamente se manifesta, no êxtase. «Não, não
saias.» E assim fica unido a ela, relanceando vagamente a desordem do quarto,
por onde já a noite se estira, as coisas sem rumo, combinações amarrotadas, uma
caixa de papelão aberta, com retratos, um pente caído no chão. E os farrapos do
vento na janela. Sabe que pode continuar e sabe o mal que isso lhe fará. Apoiado
nas palmas, soergue-se e beija-lhe os mamilos, depois lambe-lhe os ouvidos, o
que a faz ainda tremer, como se recebesse um choque. Navegador nocturno,
reentra no seu mar.
É ele ou o seu duplo monstruoso quem desencadeia aquela tormenta no corpo
branco de Olga, à beira do paroxismo?
«Sabes, Teotónio, adorava que fosses tu a fazer os figurinos para a nossa
próxima peça.»
«Nesta altura... de certeza que não posso.»
«É verdade: como é que fizeste para sair do hospital?»
«Cá me arranjo. Tenho uns truques.»
«E se te apanham?»
«Era castigado. Mas não apanham, descansa.»
Olga espreguiça-se, sorri em muito azul e levanta-se para fechar as madeiras da
janela. Teotónio olha-a, interroga-se sobre o que sente por ela (desejo?, amor?,
às vezes ternura, às vezes raiva, uma certa cumplicidade?). Vê-a decompor-se:
os braços separados do corpo, os olhos saindo da testa. O que nela mais receia
não é a jovem bacante, são os ataques de «patológica lucidez».
Mas Olga não parece, de momento, inclinada para a lucidez, antes para a paixão.
Estende-lhe os braços, senta-se-lhe ao colo e diz: «Gostava de rodear-te sempre
deste carinho que te procura, que te deseja. Vivo com o terror de que te afastes,
com a sensação dolorosa de que nada vale a pena sem ti. E, ao mesmo tempo,
tenho medo de mim, já sabes que eu tenho sempre tendência para tentar destruir
tudo.»
55
Do Diário de Teotónio
(... de Dezembro, 1957)
Fala-se já muito em Humberto Delgado, um general da aviação, agora presidente
da T. A. P., para candidato na próxima farsa eleitoral. Vamos ver o que dá. Numa
fuga a casa da Olga, encontrei o Firmino, que eu julgava politicamente uma
larva, entusiasmado com o «defensor da liberdade». Fiquei maravilhado. A
esquerda, já mo disseram, vai apoiar o Dr. Arlindo Vicente. Sei pouco a seu
respeito. Mas parece que é um homem de grande rectidão.
Aqui, no hospital, consta que me vão dar alta e reformar-me de vez. O meu
organismo está reagindo bem, ao que parece, mas terei de continuar a tratar-me
lá fora.
Levo o tempo a ler. A minha curiosidade pela doença na literatura, desde o
Nobre ao Augusto dos Anjos («Expulsar, aos bocados, a existência/Numa bacia
autómata de barro,/Alucinado, vendo em cada escarro/O retrato da própria
consciência!»), está quase a passar.
Tenho tentado fazer um álbum destes vergonhosos dias que vivemos. Com os
lápis de cor e com o papel, do melhor, que a mãe me ofereceu, esbocei o quadro
de uma «manifestação espontânea»
no Terreiro do Paço: é tristemente fácil transformar um povo em carneirada. Mas
quero dar também o anverso: a luta nas fábricas, nos campos, pintar a minoria
que resiste, no coração do povo.
A ninguém mostro estes esquissos.
Espalmo o nariz contra a vidraça sobre a desolação da cerca.
Faça sol ou faça chuva, só vejo este jardim dolente de rendas verdes, com um
melro algures escondido, talvez na sebe, as árvores desnudas, ramos caídos e
quebrados, e um horizonte de febre, amarelo e chumbo, ao longe: a cidade. Hoje
está um tempo de poema amargo e o dia nunca mais acaba.
Tenho saudades de ti, Anémona, umas saudades muito antigas.
Gostaria de passear contigo, não nesta pobre cerca, mas no Jardim da Estrela,
pelo meio do frio e da luz alvacenta. Ver-te, falar-te, sentir-te.
56
Convoco os fantasmas da infância e da adolescência. Busco-os no porão da
memória. Quem és tu, Anémona, na minha vida, tu que pareces adivinhar o que
só mais tarde descubro em mim?
Anémona, ainda surpreendida, compõe a blusa azul-turquesa (nunca tem frio:
veste-se assim nas quatro estações do ano, saia e blusa, blusa e calça, raramente
usa camisola).
«Então saíste definitivamente do hospital?»
«Parece que sim.»
«Mas tens ainda que te tratar?»
«Pois. Mas isso não me impede de trabalhar. Com moderação, é claro. Vou
terminar o curso, mas gostava de me empregar, como maquetista, numa editora
ou num jornal.»
«E porque não no atelier de um arquitecto?»
«Melhor ainda. Mas não conheço...»
«Eu trato disso. Vais ver.»
Quando volta com o tabuleiro do chá e com a garrafa do uísque («Já podes
tomar?»), Anémona escorrega e Teotónio ampara-a.
Estabelece-se um quase mal-estar, que ele rompe, com falta de tacto:
«Há dias tive que defender o teu marido. Os mexericos desta cidade chegam
mesmo àquela toca onde eu estive a tratar-me.
Discuti com dois tipos que afiançavam que na clínica do Martinho há
irregularidades de massas e uma exploração desenfreada.»
«Não é verdade. Irregularidades não há. Não creio. O que acontece é que é uma
clínica de luxo. Falar de exploração depende do ponto de vista. Eu não trabalho
lá, Teotónio, trabalho num hospital.»
Ele cala-se, corado, arrependido de ter tocado no assunto.
«Mas até foi bom falares nisso. Era um tabu entre nós. E, no fundo, é uma
questão que me preocupa.»
57
«Ajudas-me tanto», pensa Anémona. «Mesmo quando estás longe, quando nem
sonhas os meus problemas. Falo contigo, liberto-me do celofane transparente
que me afasta dos outros, que me reduz a pedra.» «És o túnel, a saída deste lugar
cerrado, és o espaço onde me distendo e me exercito no desafio de ir mais
longe.»
«Sentes-te feliz?», pergunta ele.
«Não. Não sinto. Mesmo nada.»
Teotónio puxa-a para si, dobra-a um pouco, para lhe observar bem os olhos,
curva-se sobre ela, vê-lhe o sol na pele, o decote a abrir-se, os três sinais
vermelhos do seio esquerdo; demora-se a beijá-la.
Depois, olhando-a fixamente, diz:
«A Olga está grávida.»
«Porque é que me dizes isso?»
«Por uma questão de lealdade.»
«Achas que eu preciso de saber? Mas porquê? Gostas dela?
Gostas muito?»
«Julgo que gosto dela, sim. Mas de quem gosto muito, sem dúvida, é de ti.»
«Achas isso honesto?»
«Nem desonesto. Acho que é simplesmente assim. De momento. E prefiro que
estejas ao corrente.»
«Não sei o que faça, Teotónio.»
«Nada. Deixar correr.»
Perante a expressão desiludida, quase rancorosa, de Anémona, Teotónio diz, de
chofre:
«Porque não fazemos amor?»
«Não.»
«Não te apetece?»
«Não me sentia bem. Não é propriamente por causa dele.
É difícil explicar. Para mim, a honra de uma mulher não está ligada ao seu
comportamento sexual, nem esse comportamento vai afectar a dignidade do
marido. Tudo isso é de uma estupidez revoltante.»
«Mas não te sentias bem...»
«Aqui, pelo menos, não.»
58
«Vês?»
«Há neste cenário que construímos qualquer coisa de teatro de boulevard, que
me repugna.»
«A verdade é que te submetes àquilo que recusas.»
«Pode ser... Ou então tenho simplesmente medo. E estarei rejeitando a vida, isto
é, a pulsão de morte, o amor...»
«Não, Anémona, por favor, não comeces a psicanalisar-te.»
Mas, como nota que ela está quase a chegar às lágrimas, cala-se bruscamente.
Carta de Anémona a Teotónio
Como se deslocam dentro de mim as fronteiras do sentimento?
Não sei. Sei que me corres na pele, ou no sangue, em claridades do meu corpo,
espaços de aurora. E o pior é que os outros cansam-me. Até o Martinho, que é,
no entanto, amável e inteligente, um marido fora do comum. Farto-me de mim
própria. Descubro-me frágil, eu que me sonhei «amazona» na luta contra todas
as injustiças, fujo aos contactos, às relações banais convencionais. Queria poder
tocar-te. Beijo-te com infinita ternura.
Anémona
Quando Teotónio entrou, estava Firmino, segundo disse, prestes a sair. Falava
com Olga em voz baixa, um pouco afogueado.
«O que é que esse gajo tem? Creio que não me grama.»
«Não é isso. Saiu por discrição. Para nos deixar sós.»
«Mas parecia esquisito.»
59
«Porquê? Ah! Sim. Foi por causa de uma cena que ele teve no jornal. Querem
que deforme o sentido das notícias do estrangeiro.
Das que não são cortadas. Que ele limita-se praticamente a colar os telegramas
das agências. Mas, ao pôr-lhes o título, procura dar de um modo expressivo o
sentido dos acontecimentos. E é aí que o chefe de redacção implica com ele. E
altera-lhe os títulos: apaga todo o efeito.»
«Pois, eu já tenho ouvido falar desses processos, mas não estou a ver o
Firmino...»
«Não podem com ele. Porque sabe latim, porque é pouco conversador, porque
tenta ser honesto. Os jornais são um meio desgraçado.»
«Isto tem que mudar. Não pode continuar assim.»
«Claro que tem que mudar. Concordo contigo. Mas assim de repente... Como?»
«Com a entrada de gente nova. Noutros jornais já estão a aparecer uns tipos
diferentes.»
«Talvez.»
Teotónio esboça o gesto de a puxar para o sofá e ela senta-se-lhe ao colo, morna,
húmida, instante. «Não será perigoso? Fizeste o aborto há tão pouco tempo.»
«Quero lá saber!» «Mas quero eu, porque gosto de ti.» «Vê-se.»
Ele fica a observá-la, até Olga desviar os olhos. É a primeira acusação que ela
lhe faz. «Não impus coisa nenhuma: aconselhei-te o aborto, é verdade. Não
havia outra saída. Quer dizer...»
Há um arrependido intervalo sem palavras, até que Olga diz: «Já tive duas vezes
um sonho muito estranho. Vou por uma rua ensurdecedora e aparece-me um
miúdo a olhar muito para mim com uns olhos de choro. E eu então,
imediatamente, sei que ele é meu filho e que o desprezei.»
«Perfeitamente delirante.»
«Mas estou apenas a contar-te. Nem te culpo a ti nem me culpo a mim. Isto é,
conscientemente não.»
Teotónio não acha palavras para encerrar o assunto. Após um silêncio com puas,
pergunta-lhe se tem saído, se já voltou a ir ao 60
cinema, quando recomeçam os ensaios. Ela responde a tudo por monossílabos.
Até que diz:
«Estiveram cá em casa uns cantores brasileiros, quatro. Vão a Paris. Foi o
Fagundes Salsa que os trouxe. São giros, especialmente o engenheiro de som.
Fiquei com vontade de o conhecer melhor.
É difícil saber porque é que uma pessoa desconhecida de repente se torna
importante. Não tenhas ciúmes, o homem já está em Paris.»
«Eu não tenho ciúmes. Nunca tive ciúmes. De ninguém.»
«Estás acima disso, eu sei. De toda a maneira, talvez nem houvesse razão para
ciúmes. Acontece apenas que ando com vontade de encontrar pessoas, estou
muito só, embora, de certo modo, atravesse uma fase de solidão procurada.
Compreendes?»
«Faço por isso. Claro que compreendo.»
«Sabes, Teotónio, eu invento as pessoas, não sei até que ponto não serei mesmo
incapaz de me relacionar com os outros, tenho a sensação de que ou lhes peço de
mais ou não lhes dou a devida atenção. Achas-me muito complicada?»
«Somos todos complicados. O que se passa contigo é que dizes em voz alta o
que outros pensam.»
«Às vezes também me calo. Quando estiveste dez dias sem me aparecer nem dar
notícias, entrei num período de silêncio, espesso, inexorável. Quase não falava
com ninguém, a não ser para pedir as coisas indispensáveis ou para me esquivar,
para me descartar, não, não tenho nada, obrigada, vou muito bem sozinha, não é
assim tão tarde, tens razão, são todos uns sacanas. Lá no teatro estranharam, mas
já começam a conhecer-me, perdoam-me as excentricidades, mesmo o facto de
eu me recusar aos jogos da intriga e da inveja.»
61
Do Diário de Teotónio
(... de Março, 58)
Continuo sem saber o que verdadeiramente quero. Que vou ser na vida? Nestes
últimos dias voltei a pintar, a inventar o espaço e a luz. Nada disto talvez preste,
mas, enquanto faço nascer formas da cor e dela arranco o próprio sol, sinto-me
feliz. Não deixo ver estas pobres coisas a ninguém, talvez venha a mostrá-las à
Anémona, só a ela. Anda ocupadíssima com a aproximação da «farsa eleitoral»,
estas migalhas que nos atiram, só fala no Dr. Adindo Vicente e no Humberto
Delgado. A censura afrouxou um pouco, pelo menos os jornais dão essa
impressão. Deve ser uma táctica. Depois das eleições é que vão ser elas, o
costume.
Estou a ser inautêntico com a Olga. Cansei-me?, desinteressei-me?, porquê?
Chego a ter piedade dela e de mim - o que é talvez imperdoável egoísmo. Não
serei capaz de fixar-me? Ou só realmente com a Anémona o conseguirei?
Gostava de construir casas bonitas, espaços humanizados, para as pessoas
viverem melhor, queria colocar nas praças estátuas que as crianças pudessem
tocar quando lhes apetecesse. Mas ao que é que estou a assistir? Os grandes
construtores mandam imitar com papel a cortiça que devia forrar as paredes,
suprimem varandas, pátios, aberturas para a natureza. Querem fazer depressa,
reduzem os custos, humilham os arquitectos, que assinam os projectos,
desprezam os futuros moradores, só pensam no dinheiro, uma boa merda. E é
isto que me espera.
Preciso de ganhar decentemente. Não aguento continuar em casa por muito
tempo. O pai distancia-se cada vez mais de mim.
Tem medo de tudo, já não se atreve a falar de política ou, quando o faz, é em tom
cada vez mais consentâneo, para não dizer conservador. Está diminuído pelo
álcool. Às vezes tenho vontade de o procurar, de o abraçar, mas ele até da
intimidade comigo tem medo. É o que faz o fascismo. A mãe, descobriu-se que
tem um mioma no útero. Vai ser operada e o cirurgião quer tirar-lhe também os
ovários. Não se queixa, mas está traumatizada, deprimida, a força que sempre
lhe conheci esboroa-se mais e mais. Por isso me inspira 62
ternura. Esforço-me por falar com ela, embora não tenhamos - nunca tivemos -
interesses comuns. Se conseguir sair de casa, nem que vá para um quarto
alugado, vou passar a dar-me melhor com eles, não duvido.
Chegou o dia 26 de Maio. Desde que o general pronunciou a célebre frase
«Obviamente demito-o» vive-se em Portugal uma exaltação colectiva. É, pelo
menos, o que Teotónio julga. Mas a palavra sopra apenas nos cafés e nas ruas, e
em voz baixa; a imprensa praticamente calou-se, os censores deram-se conta do
perigo, já os canaviais da esperança ressoavam de norte a sul.
Delgado esteve no Porto e grandes gritos de luz o seguem desde então por toda a
parte, abrem-se risos e confianças à sua volta como se abre o pão do povo.
Porquê? Teotónio viu-o em Chaves, onde foi com Anémona, em grupo. Achou-
lhe no rosto a determinação de quem está disposto a tudo investir na batalha, a
tudo sacrificar se for preciso. Teotónio não acredita que seja para já, mas sente
que doravante não se pode parar mais, estas multidões prefiguram as do futuro.
Devorados de sol, jovens estudantes, moços operários, raparigas verdes da
Primavera rodeiam o general.
Em Santa Apolónia é tanta a gente que Teotónio e Anémona quase nada chegam
a ver. Homens com um passado de luta e de coragem foram receber o candidato
e com ele decidir. O trajecto mudou, por imposição oficial: Delgado já não está
autorizado a subir a Avenida da Liberdade, ficou adiado o percurso em chama,
adiada a explosão dos sonhos. Terá feito bem em acatar a ordem?, não deveria
desafiar?
Fora da estação há vivas e correrias, os cavalos da Guarda empinam-se,
perseguem os mais foitos; brilham luvas de cólera, os sabres derrancam costas;
vêem-se lágrimas de raiva nalguns rostos, cabeças rachadas, a cor ágil do
sangue. Teotónio defende Anémona, que não se contém e protesta contra a fúria
daqueles carrascos 63
casuais, ampara-a, foge com ela; passam por um ferido que vomita, lívido,
arrastado pelos amigos, as dores depressa secam na cavalgada obscura do medo.
Já no carro de Anémona, retrocedem, em direcção ao Terreiro do Paço, sobem a
Rua do Alecrim, e perto da casa dela (do Dr. Martinho Lira, como diz Teotónio)
aparece-lhes de novo o Tejo, azul e nácar, entre as mansardas setecentistas, os
varandins, as frontarias nobres que da Escola Politécnica, em íngreme declive,
descem para São Bento. «Pára aí um instante.» «Não queres antes vir lá para
casa um bocado?» «Já é tarde.» As primeiras pistas de luz desfalecendo
anunciam a frescura da noite. Pela calçada, tão longe de Santa Apolónia, os
velhos passos do hábito, da calma resignação. No céu, que esfria, atravessam-se
asas brancas, reflexos de rosa e de violeta. «É só o que temos, esta beleza.»
«Mas não enche a barriga aos que têm fome», diz Anémona.
«E em tua casa?»
Ela encolhe os ombros: «Tudo bem. Estamos cada vez mais distantes um do
outro.»
«Por que é que o teu marido se interessa?»
«Por ganhar dinheiro, antes de mais e acima de tudo. É este meio, sabes, é
contagioso.»
«Como é que ele reage ao que se está a passar?»
«Não reage. Se lhe falo na campanha, ouve-me, diz que sim, ou mostra-se como
que condoído, se eu me indigno; mas sempre reservado, poucas palavras,
excepto em questões profissionais. E é consciencioso com os doentes e
competentíssimo, isso temos de reconhecer.»
«Mas leva-lhes couro e cabelo.»
«Pois.»
«Posso beijar-te?»
«O que é que achas?»
Abriu os olhos devagar quando Teotónio, que já lhe explorava todo o corpo com
as mãos, retirou dos dela os lábios húmidos, ainda muito próximos. Então disse:
«Espera mais algum tempo.
Ando tão perturbada, tão confusa. Nem me sinto eu.»
64
Ele baixou a cabeça, anuindo. Momentos depois, num esforço, disse:
«Estive hoje muito perto de ti, toda a tarde. Há tanta coisa que nos liga,
Anémona.» E, já meio envergonhado da emoção: «Perdemos há bocado a
campanha. As eleições vão ser, seriam sempre, de toda a maneira, uma
falsificação. Mas a agitação, se fosse mais longe, podia levar a um levantamento
popular, a um golpe militar.»
«Talvez. Ainda há tempo.»
«Acreditas?»
«Tenho de acreditar. Se não for desta, será da próxima, ou depois. Isto não pode
durar eternamente. Esta vergonha.»
«Nisto nascemos e, se calhar, vamos morrer. Com uns pós de mudança, a fingir.
Ou não? Até por isso eu preciso de ti, que tens esperança.»
«Tenho a certeza.»
«Como, Anémona?»
Carta de Anémona a Teotónio, datada de Caxias, de Julho, COM O CARIMBO
DA PIDE.
Tenho pena de que não possas vir ver-me. Só os parentes mais chegados têm
esse direito. O meu marido, como talvez já saibas, não me fez ainda uma única
visita. E por falta de coragem não é, que eu conheço-o bem. Deve tratar-se de
uma opção premeditada.
Isto é duro, meu querido primo - e mais não posso dizer-te. Concentro todas as
minhas forças em torno das ideias, das pessoas e das coisas que amo.
Suponho que estarás ao corrente de como fui presa nos Serviços da Candidatura,
pouco antes de encerrarem. Nesta solidão, privada de livros, nem imaginas com
o que me entretenho. Recito poemas 65
para dentro (infelizmente não sei muitos de cor, Senhora partem tão tristes, Alma
Minha Gentil, o Sino da Minha Aldeia e a Ceifeira, do Pessoa, e mais uns tantos
sonetos do Camilo Pessanha) e, pasma!, ponho problemas em equação e tento
resolvê-los, tudo isto mentalmente. Mas falo-te só de uma parte do meu tempo.
A restante - é a pior.
Um dia falaremos, com calma, de tudo isto. Quero que saibas, querido primo,
que me lembro de ti. - Anémona.
Quando Anémona saiu da prisão, vinha receosa de ter problemas no hospital,
mas todos a receberam bem, os médicos fizeram barreira em torno dela. Não
fora sequer processada, talvez surgissem mais tarde os dissabores, talvez, de
momento parecia que o pesadelo terminara.
Martinho explicou-lhe que não queria ter quaisquer contactos com a Pide, daí a
sua atitude, mas via-se bem que nem ele próprio acreditava no efeito dessas
palavras e, ante a frieza de Anémona, manteve-se também distante,
amavelmente. Nessa mesma noite pôs-lhe ela a questão da separação, dizendo
que todo o comportamento dele indicava o desapego, o desinteresse, e que,
assim sendo, o melhor... Que não, era ela que interpretava mal, mas rapidamente
acabou por aceitar, como se os argumentos que de começo opôs, em sua
justificação, fossem apenas marcas de cortesia.
Na tarde seguinte Anémona encontrou-se com Teotónio no terreiro da Senhora
do Monte. O ar estava já fresco mas não havia vento e cheirava a terra molhada,
a flores, ao nascimento do pão -
a vida. Diante deles o brilho azul-cinza do rio, a montante a igreja da Graça e o
Castelo, a jusante o zimbório da Estrela, o alto edifício do Ritz, os garfos do
Parque; em baixo, o casario tosco da Mouraria, rolando até ao Martim Moniz,
terraços, plantas nas varandas, quintais, muros pobres, tabernas escancaradas,
árvores indóceis entre arames, roupas e parreiras; erguendo os olhos, viam-se 66
os anúncios do Rossio, as ogivas do Carmo, o mirante de São Pedro de
Alcântara, os palácios barrocos cor-de-rosa.
E, de repente, Anémona perdeu toda a sua força daqueles três meses de aguardar
e suportar a tortura e de conviver a morte, encostou a face ao ombro de Teotónio
(cinematograficamente pensou ele, mas comovido) e deixou-lhe a roupa
molhada de lágrimas.
Teotónio passeou-a pelo mirante, a toda a volta, beijou-a; pararam diante da
capelinha, tropeçaram num cão e fizeram rir uns miúdos que brincavam com a
água do chafariz; riram com eles.
«Pensei na loucura e na morte», disse Anémona. «E no futuro;.
Na justiça. Lembrei-me do Nerval, do Rimbaud, dos grandes visionários. Pensei
muito nas relações entre as pessoas. Em como somos incapazes de compreender
os outros sem os excluirmos de nós ou sem os incluirmos em nós. Percebes o
que eu quero dizer? Tomamos sempre os outros como objectos, não
conseguimos encará-los verdadeiramente como sujeitos, que são.»
«Mesmo quando lhes queremos dar a felicidade possível neste mundo», disse
Teotónio, entrando no jogo. Depois, em voz baixa: «Bateram-te?»
«O pior foi não me deixarem dormir. Mas cheguei a dormir em pé; tive
pesadelos, acordada; dava-me conta de que estava raciocinando em pleno
absurdo.»
«Livra! Mas, quando te bateram, não ficaste cheia de raiva, com vontade de
devolver as pancadas, de as moer com murros?
Eram mulheres, calculo.»
«Mulheres e homens. Sabes, essas reacções são fundamentalmente masculinas.
Nós, mulheres, estamos condicionadas por séculos de sujeição, que geraram
diferenças. Diferenças que se vão atenuando, muitas delas. Se queres saber, eles
conseguiram humilhar-me. Vergar-me, não, que eu concentrei todas as minhas
resistências no silêncio e na manha. E não 'falei', não traí ninguém. Mas
vexaram-me, não sei como é com os outros, tanto insulto, tanto grito, tanta
ameaça, e aquela escura solidão no meio das feras, cai-nos um peso em cima, é
irracional, como se o destino nos punisse por quaisquer erros passados,
esquecidos. Não imaginas o que é ser empurrada, desprezada, 'essa mulher vai à
polícia', 'traz lá a mulher', 67
'mexa-se, criatura', 'raios a partam', 'esse monstro não deita sumo, nada a fazer,
ou rebenta-se com ela'. Os nossos camaradas da clandestinidade têm outro
ânimo, outra preparação, e julgo que sentem, mesmo nos piores momentos, o
orgulho de quem está na razão e não cede. Mas nós vivemos lado a lado com a
burguesia e tão mascarados às vezes que a máscara destinge, e muita coisa se nos
pega. Claro que também eu estou contente por não ter rachado. Mas sofri muito.
Houve alturas em que me senti um farrapo.
E aquela carta que te escrevi, que absurdo!, podia meter-te dentro, não sei como
foi, não sei como fiz aquilo.»
Quedaram-se, calados, abraçados pela cinta, frente à parte nova da cidade, onde
os altos prédios em caixote, nimbados de luz amarela, as áleas de betão, o
formiguejar dos carros pela Avenida de Roma adiante, rastos de som
misturando-se, pequenas vontades dispersas, eram o avanço do tempo,
inexorável, ainda que não fosse na direcção desejada.
Teotónio receava levá-la a um desses quartos povoados de cheiros fortes,
esperma, lixívia, perfumes, espaços de acaso e desencontro; mas não tinha
dinheiro para mais e tinha chegado a «hora da verdade».
«Importas-te?»
Mas Anémona não sabia o que ia encontrar. E o choque foi tão grande que
ficaram muito tempo quietos, enlaçados, com o frio dos nervos a tolhê-los,
apesar da temperatura ainda amena, até que Teotónio começou a acariciá-la,
primeiro como se lhe pedisse perdão, depois como se adorasse uma divindade,
beijando-a milímetro a milímetro, até lhe sentir os mamilos erectos, o ventre
ondeando, soerguendo-se, o sexo, húmido, a procurar-lhe o corpo. Só então
entrou nela e buscava-lhe os olhos, menos sôfrego do que curioso do fundo dela,
das suas sensações, da alma da sua carne. Conseguiram juntos o clímax, no
frenesim de se unirem, até quase à destruição dos tecidos, à laceração.
«Eu sabia», disse Anémona.
«O quê?»
«Nunca reparaste em como somos parecidos? Vê bem as tuas mãos e as minhas.
E o feitio dos olhos, embora os meus sejam mais 68
melancólicos e os teus mais brilhantes. E as nossas bocas são quase iguais, a tua
é tão recortada e tão vermelha como a minha, já estou sem pintura. Não
acreditas?, vem cá, aqui tens um espelho.»
«Está bem, somos primos, é natural.»
«Pareço mais tua irmã do que tua prima, mais do que irmã, quase gémea.»
«Não exageres, Anémona.»
«Não estou a exagerar, tinha adivinhado isto mesmo.»
«E agora como é, Anémona?»
«Tu é que sabes.»
«Acho que podemos viver juntos. Arranjamos uma casa pequena, com o que tu
ganhas e com o que eu vou ganhar, nem te disse ainda, comecei já a trabalhar
num atelier de arquitectos...»
«Óptimo, se te sentes bem.»
«Evitamos ter filhos, pelo menos de começo.»
«Queres ver o que dá.»
«Não é bem isso. Mas nada é eterno, Anémona. Os cinco, sete, anos de
coabitação são decisivos. Depois talvez outros tantos. E
quem sabe, até mais.»
«Sem compromisso definitivo.»
«Não estás de acordo?»
«Claro que estou. Estou cem por cento de acordo.»
«Então o que é que te desagrada?»
«Nada. Sim: é achar-te tão razoável.»
«Talvez tenhas razão.»
«Sim, meu irmãozinho.»
«Em compensação, tu...»
«Invento, sim, quero inventar a vida.»
A luz diminui a olhos vistos. De dia para dia anoitece mais triste. Tempo virá em
que nesta esquina se há-de erguer um banco, um templo do dinheiro, de altas e
aprazíveis paredes, com tantas 69
luzes e tantas plantas lá dentro que as salas de baixo hão-de parecer um jardim
de inverno.
Teotónio encontra Olga a estudar um papel, decorando-o à sua maneira, que
consiste em procurar mnemónicas.
«Não era isto que eu queria fazer.» «Então? Ainda estás voltada para o
Ionesco?» «Não. Li as peças de Sartre, de enfiada. São estupendas, mas com
estas bestas da censura não há hipótese. Se a companhia nos deixasse ao menos
ter voz na matéria, já não penso no Brecht nem no Artaud, sei que não pode ser,
mas ao menos o Tchekov, ou o Máximo Gorki, qualquer coisa com miolos e que
seja teatro, chiça. Eles às vezes até têm bom gosto, mas não acertam e as salas
ficam vazias. Antes isto que o teatro comercial, mas...
Um dia...»
Teotónio não sabe bem o que o traz a casa dela. Talvez perceber como é que é
possível, a Olga e o Firmino. Começa a sondar.
«Não estou muito segura de mim. Tu fugiste-me e agora nem eu te queria mais.
Magoaste-me e eu tenho já tantas feridas. Mas não é de ti que me desforro no
Firmino: é da própria vida. Fui tão humilhada que chegou a minha Vez de pisar
também, de ser adorada e de pisar. E não posso prever quanto tempo isto vai
durar. Como sabes, a monotonia e a rotina apavoram-me. Tenho de inventar o
quotidiano a cada instante. Como vai ser agora? Veremos. Tenho a vertigem dos
abismos, não achas? (Teotónio sorri, só com os lábios), adoro os jogos de
sedução, penetrar em intimidades alheias, à procura de mim, do amor dos outros
por mim, viver sempre em exaltação. Contigo foi tudo diferente e mesmo assim
tu davas-te conta de que vivo entre a queda e o equilíbrio. Cá me aguento.»
Pousou a cabeça no ombro dele, esfregou a cara na seda escura da camisa.
«Eu sou de famílias operárias, praticamente da cidade, mas o Firmino vem das
berças, é filho de camponeses. E vê-se, e sente-se, é acanhado, tu tens
observado. É verdade que sabe latim e muitas outras coisas. Mas de teatro, de
literatura moderna, zero. Às vezes calco-o. E, acreditas?, sinto-me bem. Serei
mesmo má? Depois tenho ataques de ternura, farto-me de o beijar. Ele nunca
protesta.»
Teotónio pensa que, ao pé daquele casal de origem popular, 70
cheio de marcas e de ressentimentos, é ele, intelectual, burguês, quem está ligado
ao Partido, aliás com pouca actividade. Um dia será diferente.
«Casas com o Firmino?»
«Talvez. Mas só pelo civil. Não me quero amarrar definitivamente.»
«O que é que é definitivo?»
«Sabes?, às vezes tenho de mim uma imagem fria e nítida: acho-me egoísta,
capaz de me servir dos outros...»
«És injusta contigo, exageras.»
«Tu não te podes queixar. Contigo dei muito mais do que recebi. Mas há pessoas
que eu utilizo. E pergunto a mim mesma se não é o que está a acontecer com o
Firmino. A maior parte das compras é ele que as faz. Tem vivido só, está
habituado a ir ao supermercado, a grelhar um bife ou a fritar um ovo quando é
preciso. Mando-o passear o cão, é ele que põe e tira a mesa, às vezes ajuda-me a
lavar a louça.»
«Não descubro nisso nada de anormal.»
«Não? Curioso. Tu nunca te ofereceste nem sequer para me ajudar a fazer a
cama. Estás habituado a ser servido. Eu sei que teoricamente concordas com a
divisão do trabalho doméstico entre homem e mulher, mas na prática, nicles.
Quando me vias à rasca davas o cava. Uma vez, é certo, foste buscar-me
remédios a uma farmácia. Não, não fazias por mal, mas... E o pior é que eu até
gostava de cozinhar para ti, de trazer-te o café da manhã, nem consentia que te
incomodasses com ninharias, estás a ver? Gostava.»
Olga levanta-se, de repente, e vai pôr um disco no pick-up: a missa de requiem
do Verdi.
«Achas apropriado?»
«Porque não? Não é propriamente triste, gosto muito do coro, onde há
arrebatamento e dor, entusiasma-me. Durante tanto tempo adiaste a grande
conversa, a grande explicação que nos fazia falta!
Levaste-me a acabar como tu querias, sem 'grandes cenas', como uma menina
bem civilizada. Tu tens ideias generosas e espero que ao menos nisso não mudes,
mas recusas-te a meter as mãos no sangue e na merda, quer dizer, na vida.»
71
«Estás ressentida comigo? Não devias estar. A mudança de estatuto das nossas
relações é que veio afinal tornar possível a tua estabilidade emocional, o teu
casamento com o Firmino.»
Olga teve um riso entre infeliz e zangado. Abriu a janela. Teotónio, que se
ergueu, para lhe fazer uma festa -precisava daquele contacto físico, a fim de se
tranquilizar-, viu os restos do sol a alaranjar as mansardas, os balaústres dos
sinuosos varandins, certas figuras escultóricas, como se as visse pela primeira
vez, até o edifício das Belas-Artes, o verão ainda a encher as árvores. Os ardinas
vendiam os últimos jornais da tarde.
«Serás completamente cego? Então não te dás conta de que o meu
comportamento com o Firmino é perfeitamente sádico? Se eu te contasse o que
são as nossas noites, quantas vezes me nego e nem sei porque o faço, pareço
uma doente.»
Teotónio tenta pegar-lhe na mão. Olga furta-lha, mas o tom da sua voz suaviza-
se, ou enfraquece:
«Fiquei muito marcada: prostituí-me para poder estudar, para comprar livros,
para ter trapos que vestir, para chegar ao teatro, tu sabes alguma coisa disto, mas
pouco, só quem viveu o que eu vivi. Fui muito humilhada, muito espezinhada,
apesar das minhas manhas, das minhas defesas, de tudo o que acautelava.
Imagina que hoje é que essas coisas todas me doem mais. Voltam quando tenho
insónias. Não sei se presto para homem nenhum. Contigo dava tudo certo, talvez
porque era falso, ou inseguro, ou sem projecto. É verdade: dava tudo certo, na
cama. E até fora: eras a minha alvorada, o meu calor do meio-dia, o meu
primeiro de Maio.
O Firmino é o quotidiano e é o futuro revelado. Não partilho com ele sonhos,
dividimos o dia-a-dia sujo e vulgar. Aí tens. Tenho pena dele e de mim.
72
Os cravos malferidos
CÉUS, o que vai por esta Rua do Ouro acima. Mas então acordaram mesmo, e
furiosos, e dessa raiva lhes vem a força, dessa dor...
É a hora de os escritórios se despejarem. Há gente boquiaberta e pessoas
assustadas, que fogem disfarçadamente.
O grande centro comercial de Lisboa envergonha-se dos seus preços, os clientes
metem-se para dentro das lojas.
Os capacetes de protecção, que os operários não largaram, marcham, desta vez,
rápidos, soturnos, tão rápidos que se não distinguem os rictos da pobreza e da
desgraça. Paira um grito, de asas abertas, bem negras, sobre a Baixa. Há muito
tempo que não acontecia uma coisa assim, com esta violência.
Pelo que berram, pelos papéis que distribuem percebe-se que os trabalhadores da
Lisnave têm três meses de salário em atraso e que os seus postos de trabalho
estão, de facto, em perigo.
A tarde rugosa estremece. Do alto das mansardas vem uma ou outra frase de
apoio. Não são belos os operários. Mostram braços duros e escuros, com grossas
veias, estômagos saídos, rostos suados que a vida difícil causticou. A sociedade
tem para com eles uma grande dívida, mais do que os três meses de ordenados. E
essa dívida, reclamam-na eles com tão intenso vigor que a tarde se torna num
ritual onde a verdade quase fica visível.
Avenca (1)
Gostava de que visses isto, Pedro, em vez de estares fechado num gabinete
perante realidades abstractas e a ouvires queixas, lisonjas, insinuações...
75
Esta tarde, sabes, lembra-me o tempo antigo e, contudo, não deixa de ser o dia
mais triste e mais amargo deste ano. Mas aqui no Rossio há força, ameaça,
confronto, resistência, ouves, Pedro?, resistência. Tenho medo do que se
avizinha. Despedimentos, fome, indignação, revolta - é o que vejo na frente.
Entre o 25 de Abril e o 1º de Maio todas as tardes se formavam aglomerações e
desfiles. Vi-te chegar do exílio, lembras-te que te contei? Mas agora pergunto-
me se a determinação e a alegria que te achei no rosto (a mim não me cabia o
coração no peito), se esse teu transporte era pela vitória de todos nós ou pela tua
vitória pessoal.
Eu, Pedro, sinto-me contente por ter sido apenas uma mulher anónima na
multidão, atravessada por esse frémito colectivo, gritando também, chorando
também. Mas vocês lá adiante, nas primeiras filas, já teriam então cada qual um
cargo à vista? Isso explicava muita coisa...
Só não fui comunista porque tu não o eras, e a tua independência tinha uns olhos
azuis tão francos e tão orgulhosos...
Até a Primavera foi expulsa da grande praça pela onda de bandeiras negras. Não
se vêem nem se ouvem os repuxos das fontes.
Há vento e não sinto os salpicos na face.
Estão vivos e bem vivos estes milhares de operários da Lisnave, da Setenave, da
Parry & Son, da Siderurgia. Mas entre eles há fantasmas: o pavor da miséria, os
gestos calcinados da humilhação, o alçapão dos salários em atraso. E há a raiva,
a grande cólera de uma multidão apavorada e segura da sua razão e da sua
verdade.
Vê, Pedro, como eles abrandam com uma promessa, como se exaltam com as
ameaças. Falas tanto em povo: está aqui o povo, o nosso povo, Pedro, não é um
mito, é gente em carne viva.
Mas tu não podes... nem eu sei já... Isto tinha de levar uma 76
grande volta, Pedro, e a tua volta, Pedro (eu bem percebo), é noutro sentido. Que
remédio! Mas não, não pode ser. Serei uma professoreca como já uma vez me
disseste, quando nos zangámos, mas alcanço à distância. E o que vejo não é nada
bonito. Nada bonito, meu Pedro.
Pedro (1)
E logo agora me pedem uma entrevista, agora que a minha filha está entre a vida
e a morte e que eu concluo muito banalmente que não a conheço, que a eduquei
mal, ou não a eduquei, que deixei abrir-se entre nós uma vala imensa. Bem sei
que é comum duas gerações não se entenderem, pais e filhos viverem cada qual
para seu lado, mas connosco não devia acontecer, estas coisas nunca devem
acontecer connosco, são paisagem, passam-se com os outros, ao nosso lado, e
vem um dia...
Uma entrevista para a televisão belga. O questionário, que eu exigi ver, é
tramado: socialismo e crise económica, socialismo e reformismo, dívida externa
e socialismo, nível de vida e classe operária ... Só me apetece não responder. E a
última das ironias: de onde vem a minha força?, que importância tiveram as
prisões que sofri? Mas se tudo isso me aparece hoje como tendo acontecido a
outro!
Houve, de facto, um tempo em que fui rei de mim mesmo.
Ainda que urinasse sangue e andasse, bêbado de sono, de encontrão em
encontrão, a bater com a cabeça pelas paredes. Vai longe, muito longe, esse
tempo. Agora só durmo com comprimidos, tenho ministro e tenho dono e sou
devorado -e julgado-por duas mulheres, e nem sei exactamente qual o retrato, já
não muito brilhante, decerto, mas por motivos diferentes, que cada uma tem de
mim.
A grande merda está em que não consigo ser nem o que a Socorro desejaria -o
triunfador seguro, o político sempre ágil e lúcido, sem infantilismo romântico-
nem o que a Avenca sonha, ou 77
sonhava, para mim - o eterno revolucionário, que seria quase cómico neste
período de refluxo da revolução.
«Sub» também não o sou completamente, não decorei nem quero decorar o a-bê-
cê da vassalagem. Na pequena esfera da minha alçada, alguma coisa faço, desde
que tenha verbas. E mais gostaria de fazer, se... Mas não pode cada membro do
Governo ter a sua política. É assim. Sou mesmo «Sub», não há que fugir-lhe,
caraças.
Ninguém me pisa, isso não, ninguém me calca, frente a frente ninguém me
deprecia, ninguém se arrisca a beliscar o mau génio deste meu metro e oitenta e
três, sabem que sou capaz de uma galegada, seja onde for.
Dizem pelas minhas costas, eu sei, que sou pobre, que fiz disto um ofício e não o
largo, não me atrevo a romper com a liderança do meu partido, mesmo que
esteja interiormente em desacordo com certos abanões para a direita...
Não é verdade: o que sucede é que eu peso os prós e os contras, meço bem as
realidades, a fronteira dos possíveis. Ninguém me pode acusar pelo que
pessoalmente digo ou escrevo. Às vezes, é claro, a disciplina partidária obriga...
nalguma votação, nalguma decisão importante... Que eu até já duvido, em certos
momentos, do que é verdadeiramente importante nesta tão curta jornada que é a
nossa vida.
Tenho fraquezas, pois tenho: preciso de que gostem de mim.
É mau. Sem dúvida. Mas também sei quando as coisas são graves, quando é
preciso ficar sozinho, estar contra todos. Já o provei.
Sim, mas há muito tempo. E agora pioraste, Pedro, não te iludas: serves-te dos
outros. Até da Avenca. Desfrutas-lhe o corpo, que é lindo. E dá-te jeito: critica-te
os discursos, quando podes mostrar-lhos, aqueles de que sabes que ela vai gostar,
é capaz de tos retocar, de te ir descobrir citações para os florir, tem bom gosto e
não lhe falta informação... É cómodo, não é, uma ligação deste género?
78
O grupo
- Eu gostava de saber era quem foi o filho da mãezinha que a pôs naquele estado.
- Porra, não sei o que é que a gaja tem mais do que nós que só se fala agora nela,
todos se preocupam com a menina, e até já está um tipo preso que nem tem nada
a ver com isto. Se calhar foi ela mesma que se injectou.
- Alguém lhe deu o material.
- E então?!
- O pai, diz que, se descobre quem foi, que lhe parte os cornos.
E ele não é bom de assoar.
- Deixa falar! Pelo que a Tina conta dele. Vocês já o viram na televisão?
- Não, eu, políticos não ligo, chateiam-me esses discursos.
A Tina é que era toda de cravos.
- Isso já foi há muito tempo, agora também não liga.
- Eu gostava de levar-lhe era uma gravação do Rod Stewart.
Ela havia de gramar. Mas não tem visitas. Nem nos deixam saber onde está. Lá
que ela é doente, é mesmo: anda sempre com as amígdalas infectadas, sofre do
coração, foi com certeza por isso, que eu não acredito muito nessa história da
overdose, apesar de ...
enfim...
- Olha lá, ela também esteve... na farmácia, com o Quim?
- Não, não, de certeza.
- Como é que os bófias o apanharam?
- Já era a segunda vez.
- Escutem lá: «O homem imita a terra, a terra imita o céu, o céu imita o tao, que
não tem outro modelo a não ser ele próprio.»
- Não entendo.
- Eu acho que sim, que entendo. A felicidade, tal como a concebo, só pode
resultar de uma fusão subjectiva com a realidade objectiva das coisas. De onde é
isso que tu leste?
79
- Ainda te entendo menos a ti do que ao livro que ele está a ler.
- E se mandássemos esse livro à Tina?
- Ela não costuma ler, não se interessa.
Confidência da Menina Lisete
A senhora nem põe na sua ideia o que eu tenho passado com este filho, não
exagero se lhe disser que tirei o pão da boca para lho dar, se não fosse isso ficava
para aí um enfezado. Chorei baba e ranho por ele não querer estudar, matava-me
a trabalhar, dactilografava o que me dessem para casa nas minhas poucas horas
de descanso. Leve mais este artigo e esse também, Menina Lisete, nunca tive
direito a Dona, e já agora, se fizer favor, dava-mos ainda esta semana. Por uma
miséria!... Dei cabo de mim e afinal para lhe pagar os chumbos... e os cinemas,
já se vê, e os ténis e os jeans e as camisas Lacoste, que ele nunca se privou,
nunca percebeu que a mãe andava a gastar os olhos e a estoirar a saúde, nem
tempo me sobejava para dormir... Nunca se deu conta... Queria ter tudo o que os
outros rapazes tinham. E, como eu não conseguia dizer-lhe que não, tornei-me
uma burra de trabalho. É bem verdade: só trabalho, trabalho e sofrimento. Para
quê? Para ele encalhar no nono ano e mentir-me como mentiu, que nem ia já às
aulas, andava sempre na boa vai ela, com que companhias, meu Deus, e se eu lhe
fazia alguma pergunta, que uma mãe sempre gosta de saber, respondia-me torto,
que o largasse da mão, chata, deixe-me em paz, até eu não poder já engolir as
lágrimas.
A senhora é a única pessoa deste prédio com quem eu tenho tido alguns
desabafos, e mesmo assim contam-se pelos dedos, não é certo?, as vezes que
falámos. E foi porque a senhora é boa, interessa-se pelos outros, não despreza os
pequenos. O mundo é mau. Gente como eu devia morrer à nascença. Não estava
preparada, nunca estive. E renunciei a tudo. Até deixei de ser mulher, 80
por causa deste filho. Convidavam-me a sair, e eu recusava sempre.
A pensar nele. Na mãe decente que ele devia ter. Depois, sabe, o hábito. Eu sou
uma criatura de hábitos. Se deixo de fazer o que quer que seja por algum tempo,
perco-lhe o gosto. Ficou-me só o costume de sofrer.
Agora esta complicação toda. Eu nem conheço os pormenores, minha senhora.
Ele nem assim se abre comigo. Mas anda preocupado, isso anda. Mete-se no
quarto com o gravador e com as cassettes e põe aquilo a tocar tão alto que quase
me rebenta os ouvidos. Lá que tem medo, tem, está cheiinho de medo. Desta vez
não é questão de erva, como eles dizem, daqueles pacotinhos que eu às vezes lhe
via e que parecem tablettes de chocolate. É coisa pior, pressinto eu. Já foi três
vezes à polícia. E um dos companheiros dele está preso. Também há uma menina
que ficou muito mal, mesmo à morte. E é filha de gente importante, oh se é!,
esses já mexeram meio mundo. Parece que houve um jornal que deu a notícia.
Mas sem nomes. Sabe, como são menores...
Avenca (2)
Nunca te vi uma expressão tão aflita. Pergunto-me -tens-me desorientado tanto
ultimamente-se receias, de facto, pela vida da Tina ou se temes apenas (com a
mancha deste pequeno escândalo a alargar) algum salpico que caia sobre a tua
reputação e te comprometa a carreira.
Ficavas muito admirado se eu te dissesse, de repente, que de dia para dia te
conheço melhor, de dia para dia te admiro menos.
Dantes nem precisavas de invocar o teu passado de resistência para me fazer
calar: havia em mim, que só com o 25 de Abril descobri a realidade política, um
respeito imenso por esses homens que, como tu, enfrentaram a polícia, a prisão,
a tortura, e não se deixaram vergar.
Conhecia-te já, de tradição, muito antes de havermos sido «apresentados» uma
noite no átrio frio do Teatro da Trindade, 81
estavas então no Governo. E eu com governos nada quero. Mas eras tu. Ainda
irreverente, com essa espécie de majestade que tu tens, assim grande, barbudo, e
essa centelha de infância, ou de poesia, nos olhos azuis mais azuis deste
mundo... Foi um tempo lindo. É certo que nem sempre acompanhámos as
mesmas manifs.
Mas quando estávamos juntos conseguias sempre extasiar-me.
Agora há entre nós um silêncio espesso. Busco a ternura e não a encontro, nem a
tua nem a minha, que já não sei, ou não posso, dar-ta. Ainda fazemos amor
relativamente bem, mas ontem ausentei-me, havia pelo meio de nós visões
líquidas, acastanhadas, água poluída. Talvez por tua causa, porque fechavas os
olhos, porque te imaginei a pensar na tua filha, ou na iminência da tua demissão,
se as coisas correrem mal.
Eu sei, é muita chatice junta: a overdose, que por pouco não a matava, o falatório
dos médicos e das enfermeiras, a história do assalto à farmácia, que tu não
conseguiste abafar. Agora dizes que tem de ser assim mesmo, é aguentar, que a
informação não pode ser pressionada, mas eu sei que tentaste, ouvi-te telefonar.
Aflige-me que faças profissão da política, que te tenhas tornado tão dependente.
Eu sei (tenho esse privilégio) que discordas de muita coisa, mas em público
calas-te, ou afirmas até o contrário. É isso que não aguento.
Não sei até que ponto serei importante para ti nem se te custará muito perder-me,
porque, de segura certeza, vou deixar-te um dia destes. Eu não me iludo: tão
cedo não volta o tempo dos grandes plenários, da fraternidade contagiosa, da
esperança à flor da boca, pois não, mas, de qualquer modo, não aceito o
apodrecimento, o oportunismo, não aceito sobretudo que alguém como tu se
torne num valido, num habilidoso, num homem de discurso saltitante.
Lembrar-te-ás ainda de quando me falavas do Saint-Just e do conceito de
felicidade colectiva? E dos nossos amigos permanentes: o Thomas More, o
Campanella, os grandes utopistas? E da Rosa Luxemburgo? Onde tudo isso vai!
Não estás afinal com quem inventa o futuro, mas ao lado dos que despedem
operários e determinam a repressão.
82
Decididamente, vou deixar-te. Ainda não escolhi o dia. Mas sei já que não me
apetece viver contigo. O problema nunca foi largares ou não a tua mulher, mas
sentirmo-nos totalmente bem um com o outro. Houve alturas em que eu era
capaz de mover Céu e Terra para te ver acordar ao meu lado. Agora não: se
adormeces, fico à espera de que te atraiçoes, a olhar-te, sim, mas não já como a
um herói, um semideus. Às vezes até com piedade.
Dia de greve com chuva
É uma tarde feia, tarde de greve do metropolitano em que todos, mais ou menos,
andam de cara cinérea, mesmo os que acham a greve justa mas lhe sofrem os
efeitos. Tarde frustrada, quase pétrea. À espera de chuva, após o sol implacável.
O lavar de loiça das nuvens em grisalha. Sem bulício.
Apenas cinza, a cinza do descontentamento. Arrogantes são-no, sob a fuligem,
os três homens que na grande praça do obelisco se detiveram a conversar junto
de um carro italiano, arrumado em infracção.
Os ossos do fim da tarde, doendo.
Passam os rezingões e eles escutam-nos e expelem entre si o seu riso patrício. O
mau humor descompõe as bichas dos autocarros, que os três observam, entre o
asco e a expectativa, ali mesmo ao pé, roçando-se pelo carro mal estacionado.
Poeiras petrificadas, buzinas, as fontes do ruído por todo o lado, pardais a
agonizarem em castelos de pedras, sobre os lagos, sobre os grandes ulmeiros
sem pálpebras verdes, sem amanhã.
- Porra de greve. Mete nojo. Metem nojo os gajos que consentem nisto.
- Não sabem mandar. Nunca mais voto nestes tipos - diz o de nariz altaneiro.
- Mas - o outro senhor enruga a testa-, olha que, se nós não votamos, a coisa põe-
se feia, quem não deixa de votar, bem sabes, são os outros. E depois...
83
- Depois? Melhor. Vêm cá os Americanos e então é que metem isto tudo nos
eixos. De vez. Acabam-se logo esses festivais da paz.
Uma vergonha, é o que isto é. A paz?! A deles... Pois eu prefiro a guerra, quero
lá saber! Antes a guerra do que «eles» a mandarem em toda a parte. Se tem que
ser, pois que venha. Alguém há-de escapar, deixem lá... Até o mundo fica mais
descongestionado.
Acaba-se-lhes com a raça!...
Reflexo no olhar de um contínuo
- Tu é que a levas direita, ó Jordão, andas praí de barriga ao alto como o teu Sub.
- E se fosses chatear outro?! Ora o merdas...
- Mas então não é verdade?!, o gajo é mesmo, mesmo pavão.
- Até é, sim senhor. Mas ele faz peito e encolhe o bofe.
Disfarça a boja, eu não. É outro estilo. E tem cá uma voz!
- Vocês não o gramam, pois não?
- Quer dizer, eu até gramo o tipo, fala bem à gente, será pavão, de acordo, mas é
um gajo humano e olha que bem disposto.
-- Eh pá, vocês sempre são cá uma mafia. Estou-te a ouvir e estou-te a fazer o
retrato, isto de contínuos... chiça! Diz-me cá: tu inscreveste-te no Partido foi para
caçar este lugar, escusas de negar, pá, está na cara.
- Enganas-te, pá, e já me conheces há um par de anos. Eu sempre fui contra o
fascismo. E também fui contra o gonçalvismo, não é verdade?
- Tem piada, dantes só falavas era da bola. Do fascismo, não me alembro.
- Bem, a malta não sabia o que se passava...
- Pois, pois. Ainda por cima ultimamente andavas desempregado. Tens desculpa,
vá lá.
- Que é que tu queres, pá!
- Mas então o tipo é brando?
84
- Não é isso: o gajo é amável, sim senhor, mas não é fraco.
Gosta de tratar bem as pessoas. Mas que ninguém lhe pise os calos, que até não é
nada bom de assoar. Esta semana é que o acho triste.
Caído. Não sei o que o gajo terá.
Socorro às sete da tarde
- Há muitas formas de armar. O armanço desta é calar-se, sorrir, estar de acordo
com tudo, ou não estar, porque, repara, ela nunca liga nenhuma ao que nós
dizemos, tu sabes o que ela pensa?, só se fores bruxa; não diz mal de ninguém,
quando muito ri-se, mas também não a ouves gabar outra mulher. Nem se pode
dizer que fuja às conversas, arranja maneira de não dar opinião, de não se
comprometer com coisa nenhuma. E, vê lá, este mundo está mal feito, casada
com aquele homem, que é todo fogo.
Socorro afasta-se da mesa dos manjares, que vai ficando desguarnecida,
atravessa o grande salão da embaixada e passa para o jardim relvado, que tem
uma piscina ainda grande, cujo azul a brisa da tarde arredonda. À volta, criados
rápidos com bandejas, onde caem as folhas de duas árvores agitadas (um vodka
com laranja aceite distraidamente), mais longe o rio, a ponte, uma draga, um
petroleiro, velas arroxeadas, ou será a paisagem de delícias diplomáticas que
lhes muda a cor?
- Ouvi dizer, Socorro, que o seu marido vai ao Irão. Eu não deixava ir o meu. Da
maneira como aqueles selvagens brincam aos fuzilamentos, sabe-se lá o que
pode acontecer.
- Você, de facto, é animadora.
Noutro grupo discute-se o último livro de Philipps Sollers, Femmes, repugnante,
não é? O que é que você acha, Socorro? Não é mesmo repugnante, machista,
coscuvilheiro?
- Também é tudo isso.
- E que mais?
- Medíocre.
85
- Para você dizer mal, tem de ser péssimo.
- Contam-se as palavras que ela diz, repara bem. Não se denuncia. E todos lhe
dão o benefício da inteligência. Como tem um ar muito reflectido e não se
entusiasma com nada, é o génio que não se mistura. Não há dúvida: o silêncio é
de oiro.
- Parece que estão metidos numa grande enrascada. A filha, que é meio maluca,
andava ligada a uns traficantes de droga. Consta que está muito mal. Não se sabe
exactamente o que lhe sucedeu.
E mais: tem uma affaire com um cadastrado que está outra vez dentro, por coisa
grossa, cocaína ou morfina. Isto aos dezassete anos, veja lá. A mãe pouco caso
deve fazer dela. E não é por falta de tempo, que eu bem sei que ela entra e sai no
ministério às horas que quer. É a senhora do senhor. Tudo uma panelinha. Afinal
fazem o mesmo que os outros faziam e esses, ao menos, eram educados, tinham
outro estilo, não acha?
- Não, nisso não posso concordar consigo. Lembre-se que o meu marido chegou
a ser incomodado. Até fizeram uma busca em nossa casa depois da campanha do
Delgado.
- Pois, mas tirando isso...
- Não!...
- Está bem, está bem, não vamos discutir. Olhe, veja-me a cara da Socorro. Lá
chegou o seu mais que tudo. E até dá a impressão que vai ter com ele. E vai
mesmo. Agora, diga-me lá, o que é que exprime a cara de pau daquela mulher?!
No gabinete do Sr. Sub
A árvore que da janela se avista é um choupo. Vêm-lhe tarde as folhas, mas
depressa atinge o esplendor e é como um mobile, que oferece ao vento o verde e
o branco da sua ramaria. São braços múltiplos, frágeis, flexíveis, procurando o
que nunca acharão. O
próprio tronco, cuja base não mexe, aparentemente, está inclinado para o
nascente. As folhas enlaçam-se e desenlaçam-se, com música 86
pelo meio, roçam-se pelas altas janelas do ministério, projectam nas vidraças a
sua sombra inquiridora.
Lá dentro a secretária de Pedro Portugal arruma a mesa onde ele costuma
trabalhar e que está coberta de dossiers, de livros, de resmas de papel timbrado.
Num vaso de cobre amontoam-se clips, agrafadores, borrachas e até caixas de
fósforos. Num copo alto, de cerâmica, ao lado, esferográficas e dois estiletes de
aço, de cabo trabalhado. Na estante, por detrás, convizinham códigos, livros de
actas e obras literárias, a que correspondem, na parede fronteira, um quadro de
Noronha da Costa e uma gravura de Bartolomeu Cid.
Começa a anoitecer e há no ar e na árvore uma dor feita de distância e
impossível. Agitadas incessantemente pelo vento, as folhas, quando atentamente
olhadas - e a secretária deteve-se frente à janela, está imóvel, mirando a rua -,
passam para o lado de lá do real.
Vem por detrás da rapariga um colega:
- Patrão fora, dia santo na loja.
- Bastante tenho trabalhado, por acaso.
- E o nosso Sub?
- Anda cheio de problemas, coitado.
- Coitado o tanas! Coitado de mim que sou um móvel desta casa. Eles vão e vêm
e não fazem grande coisa. Nós, alombamos.
A moça sorri e cala-se.
- Ainda por cima um emproado, cheio de merda.
- Não tenho razão de queixa. Comigo é até muito delicado.
- Consigo, tá bem.
- Até com a mulher da limpeza ele é amável.
- Saias!
- A mulher da limpeza tem quase setenta anos. Acontece é que ele gosta de
mulheres, ao contrário de si, que tem um falo, ou um galo, na cabeça, mas não
gosta mesmo nada das mulheres.
87
Avenca (3)
Perguntaste-me «o que é que tu queres afinal da vida?» e só fui capaz de te
responder «sei cá», mas vim para casa a pensar nisso, nunca te digo metade do
que sinto e do que penso, às vezes fico como paralisada. Já cheguei a levar na
mala uma folha com apontamentos -o que não quero deixar de te dizer-e a folha
volta para trás, intacta, não chego a consultá-la. Falamos de outras coisas, és tu
que dás o mote e eu ainda gosto de te ouvir. Ou nem falamos, tocas-me e começo
a tremer.
O que quero eu da vida? O contrário da calma. Ou uma outra espécie de
serenidade, que passa pela vibração, pela entrega, pela vertigem. Não quero de
certeza nem o dinheiro, a não ser o indispensável, nem a fama. Não estou a
meter-me contigo, Pedro. Sabes como as pessoas dizem que ambicionas a glória.
Mas não foi por isso que conspiraste, que andaste fugido, que aguentaste os
interrogatórios e os espancamentos da maneira como me contaste. Hoje, às
vezes, falas do povo duma forma paternalista e isso arrepia-me, porque não foi
assim que tu viveste e era outra coisa o que tu querias.
Afinal não era capaz de te dizer nada disto, cara a cara. Nem que tu, a título
excepcional, fizesses por me escutar. Sim, é verdade, Pedro, só te ouves a ti
próprio. Creio que és egoísta, Pedro. Não me refiro ao teu projecto de sociedade,
que ainda proclamas bem alto, mesmo do alto da merda deste governo. Falo no
teu comportamento trivial, não no grande Pedro das arengas e dos artigos: no
pequeno Pedro quotidiano tão preocupado consigo e não tanto com os outros.
Ah! Pedro, meu Pedro ainda, até te deixar, a convivência estraga o amor, não é?,
será sempre mau conhecer-se alguém bem de mais?
88
No Bar Hipocracia
- O seu amigo Portugal da Fonseca, sabe o que é?, é um especialista em
palavreado, mais nada.
- Mais nont meu amigo. O Sr. Portugal da Fonseca é um daqueles homens que
fazem falta em qualquer governo. É o politiciano multiapto, que tanto pode ficar
com esta como com aquela tarefa. É o homem que faz belos discursos, que não o
vinculam, porque não é ele que tem o poder, não seja demasiado severo, cher
ami.
- Ma$ eu não sou severo, caro amigo, não sou contra o Portugal da Fonseca, ele
até acaba por nos servir.
- É a politique, meu amigo.
- Agora, diga-me lá que não é verdade que ele tem amor não às ideias mas às
palavras.
- O senhor, que é um bom jornalista, devia compreender isso mesmo. Os
senhores são homens de palavras. O senhor é conservador, mas...
- E ele, será de esquerda?
- É a palavra de que ele gosta. É uma habitude já antiga.
Uma fidelidade verbal.
- Tenho pena de que o tipo aqui não esteja. Ele até costuma vir às vezes a este
bar.
- Eu não lhe falava neste tom. O meu amigo Portugal da Fonseca não tem muito
sentido do humor. Vive sempre um pouco em ópera ou em tragédia. O senhor,
não, o senhor vive em circo ou em missa cantada.
- Muito folgo em saber. Mas porquê em circo?
- Porque se ri das coisas e de si mesmo.
- Lá isso!
- Por exemplo, mon ami Portugal não me admite que lhe afirme que o governo
oprime e reprime o povo que ele diz amar, enquanto você...
- Alguém oprime sempre alguém.
-Enfim...
89
Pedro (2)
Já não tenho de preocupar-me com o estado da Tina: está definitivamente livre
de perigo. Também não creio que daqui me possam vir outros dissabores, o
escândalo parece morrer por si.
Contudo, não me sinto aliviado nem menos triste.
Triste é precisamente uma das palavras que eu tinha decidido banir, mesmo do
meu léxico involuntário. Triste, nauseado, descontente, desistente. A vontade
pode penetrar até no silêncio movediço onde se formam essas palavras que não
escolhemos nem desejamos.
Hoje conversei com a minha filha, não muito a fundo, ela está fraca e a distância
que foi alastrando entre nós só se poderá preencher devagar. De toda a maneira,
percebi que se já não acredita em cravos é porque acha que os meus são
inautênticos, são cravos de retórica. Terá isto resposta?
Aparentemente, tenho sorte, tudo se salda sem mortos e feridos, sem bodes
expiatórios, como quando a Avenca fez o aborto. Também então sofri, sofremos
um bocado. Não sei se a Socorro se deu conta de alguma coisa. Via-me em
baixo, fraco, impaciente, a atender telefonemas inabituais. Mas ela é mesmo
assim: quer saiba quer não saiba, o seu comportamento não se altera. Talvez isso
tenha a ver com esta ternura frustrada em que a envolvo, com o meu prazer em
lhe dar livros, flores, palavras, que ignoro onde, ou como, a atingem.
Não, não ponho em causa a minha natural aptidão para andar com duas ou mais
mulheres ao mesmo tempo. Não tenho remorsos.
Somos psicológica e hormonalmente diferentes uns dos outros. Mas com a
Socorro não há cumplicidade possível, há quando muito acordos tácitos. Com a
Avenca ainda menos. Aí então temos o sonho da grande inteireza, em todos os
domínios. Não sei o que ela mais exige de mim, se atenção se ilusão.
Ultimamente esfriou.
E isso inquieta-me. Por ela, sim, e por tudo aquilo a que me prende.
Desde que entrei para este governo tenho tão pouco tempo. E fujo tanto de mim.
Será isto o que eu quero?
90
Estou com quarenta anos e com uma vida muito vivida; ainda marginal por
dentro, às vezes; composto por fora. Cresci. Tinha de ser. Há algum mal em
gostar de viver bem, desde que não se desprezem os outros?! Fala-se muito nos
barões da nova sociedade.
Há quem diga: da revolução recuperada, expressão que eu recuso.
Recuso mesmo? Sei lá. Já usei essas mesmíssimas palavras, a propósito de
outros países. E quando se trata do estrangeiro continuo a ser revolucionário. Até
dá vontade de rir. Ou de chorar.
Merda, merda! É cómico: sou capaz de partir a cara a qualquer tipo que me diga
em público aquilo que eu me digo a sós, em segredo. Isto cá dentro é um ninho
de víboras, ou de lacraus. Outra vez a pretensão. Não: isto é apenas merda, a
merda da natureza humana.
Os tipos da ala que nos combate não são afinal melhores do que nós, ou serão
mais irrealistas. E muitos deles têm as costas quentes: famílias ricas, bons
empregos garantidos. É fácil. Não, nalguns casos não o será. Não, nem para
todos é fácil.
Os comunistas, esses não os entendo. Ou não os quero entender.
Acho que estão errados. Sim, errados. É o que eu acho. Sinceramente. Mas devia
moralmente respeitá-los. E não quero respeitá-los. Sei lá! O aro, desde que não
estejam no poder... Alguns pelo menos são como os cristãos das catacumbas.
Entre os quais havia loucos certamente. Pois respeito-os, como é que não havia
de respeitá-los?!...
E é evidente que os prefiro à direita. Mas, vendo bem, até me dou mais com
gente conservadora. São educados, mostram-me estima, na diferença, já se vê.
De resto, pelas minhas origens...
O que sei, ao fim e ao cabo, é que, apesar do meu ar pletórico, começo a sentir, e
não poucas vezes, um infinito cansaço.
Tanto desejei a Revolução, hoje chamo-lhe apenas a democracia ... Acredito,
sim, isso acredito, na necessidade do pluralismo, da vigilância crítica
permanente, do rotativismo... Mas onde pode esse rotativismo levar-nos?
O que me apetece, nestas alturas, é fugir de tudo, sobretudo de mim, do peso que
trago às costas. Não me julgues mal, Avenca, 91
não me julgues demasiado mal: eu tenho, de facto, incertezas, mas tenho mesmo
amor pelo povo, se tenho!, e adoro a palavra Abril, o que ainda ela significa;
nem tudo em mim é dependência e capitulação, interesse... Que retrato tão feio,
o meu secreto retrato.
Não me deixes, Avenca, não me deixes. És efectivamente o que me liga ao
melhor de mim. Se te perco, Avenca, se te perco!...
92
Transferências
FECHARAM-SE as portas com estridor, ao longe. Já tinham deixado de ressoar
os passos dos retardatários, adormecidos por longas, distantes salas.
Entro numa ponte, que liga duas altas escarpas sobre um rio lodacento. A meio,
apoiada ao gradeamento, uma mulher loira, vestida de claro e toda coberta de
luar, olha-me intensamente. Por fim, faz um sinal. Parece estar a chamar-me e,
facto curioso, logo avanço ao seu encontro (o sentimento do drama, como o
pavor, são em mim, penso, fenómenos retrospectivos); o que me força a deter-
me é o aparecimento, entre nós dois, de um grande cão uivante, de pêlo amarelo
muito sujo.
Ela chama-o, o animal não obedece e é nesse momento que reconheço a voz da
minha tia Paula. Afasto o cão, que apenas rosna ameaçadoramente, e aproximo-
me. Quase tudo nela é diferente: o branco-azulado da pele, a orelha delicada que
os cabelos não escondem, os lábios revirados que, sem alegria, parecem sorrir.
Diferente, mas é a Paula.
Diz-me: «Deixaste-te dormir, com certeza, para aqui ficares encerrado.»
«Pois foi. Mas que guardas são então estes?! Como é que não deram por mim?
Parece impossível.»
«Chegam ao fim do dia cansados. E com fome. Raspam-se logo.»
«Ah!»
«Sabes, eu tenho-te topado à distância. Só não digo nada por causa da tua mãe,
coitada... Já pensaste que podias quase ser meu filho. É uma vergonha.»
Empregando toda a minha força, apago a imagem dela; do escuro surge uma
máscara, cujos olhos são incrustações de nácar.
Tem a face lavrada à navalha, ou a fogo, em sulcos policromados, 95
uma meia calota na cabeça, e, ao ver-me, põe um dedo nos lábios recomendando
silêncio.
«Andam à tua procura», avisa.
Sento-me, acabrunhado, na posição oriental da meditação.
Penso: «É inútil fugir. Tanto me ofenderam, me escorraçaram, me espancaram,
que vou sentir-me perseguido todo o resto da minha vida. Trago nas entranhas,
recalcados, a humilhação e o susto.
Podiam até condecorar-me, incensar-me, em vez de me esquecerem para aqui no
meu canto, nada expulsaria de mim este horror, este pânico irracionais.»
A tia Paula está nua entre outras mulheres de rosto indistinto, sob uma abóbada
de ramos invernais, que parecem nervuras de catedral ultramoderna. Fizeram, no
chão, um fogo ritual e mantêm-se silenciosas, mas com um olhar cúmplice. Já
devem saber.
O céu, tempestuoso, em nada convida ao nudismo. Tia Paula, logo que eu me
mostro, começa a admoestar-me, mas dir-se-ia que com uma secreta satisfação:
«Em vez de trabalhares, para teres um futuro, aí andas tu, feito vagabundo, a
espreitar as pessoas crescidas.
Já não sei como lidar contigo. Não tens conserto.»
Vem para mim, pega-me na mão e, sem dar qualquer satisfação às outras,
arrasta-me para um maciço de árvores vermelhas, que se erguem no desespero de
uma paisagem como eu nunca tinha visto. Faz-me sentar, como se fosse obrigar-
me à confissão.
Embora grandes de mais, tanto os seios como as nádegas da tia Paula me
excitam violentamente e nem me atrevo a olhar para o grande tufo de pêlos
acastanhados e descompostos, nada de acordo com os seus sermões, que se lhe
assanham na barriga e infestam o cor-de-rosa macio das suas pernas sempre tão
dignas.
«Conta-me cá», exige. E quer saber quando, onde e porque me masturbo. Digo-
lhe tudo, mas não chego a fazer os gestos que tanto desejo; aguardo da parte dela
a solicitação, o consentimento explícito, que não vem. Odeio-me por não ser
capaz de tomar a iniciativa que talvez, afinal, ela espere.
À nossa volta, pedras, arbustos, ferros torcidos, tudo se resigna ao absurdo, ao
frio e à noite.
96
Dançam ao ar livre, de cara encostada, numa atmosfera de feira, pares
esgalgados, uns muito temos e absortos, em passos ágeis e acrobáticos, outros
bem atentos à impressão que causam. Num canto mais retirado, sob um verde
caramanchel, três mulheres altas e ousadas, com muitas rendas e meias pretas e
com rosas no cabelo, mostram o que sabem, fazer, para os mirones e rufiões que
as contemplam. Uma delas é a tia Paula, que parece toda entregue ao seu puro
presente, às figuras em que se desenha, à altura e flexibilidade dos saltos que
consegue dar. Aplaudem-na, assobiam-lhe, mas, toda concentrada no próprio
corpo, a avaliar pelo olhar sem destino, a tia Paula é só sensação, até à dor, até à
ferida.
Dou palmas e ela, quando me descobre na assistência, zanga-se deveras. Isto é,
creio que exagera um pouco a indignação que a minha desobediência lhe causa.
Arrasta-me para um corredor mal iluminado; subimos uns dez ou doze degraus e
paramos, por fim, em frente de um ascensor. Grandes cabeças hieráticas talhadas
em argila vermelha, do tamanho de um ser humano, olham-nos de ambos os
lados. O elevador, que ela chamou, tarda a descer. Então tia Paula retira o cinto
encarnado do seu vestido vaporoso e ali mesmo me fustiga com apaixonado
vigor. Tudo se torna fogo em derredor.
Lâminas de cobre cintilam nas mãos delas.
Corro e consigo sair do túnel, sem bater com a cabeça nas saliências do tecto
baixo. E continuo a correr em direcção ao mar.
Dispo-me da luz e é como uma faixa que se me desenrola à volta do corpo; a
certa altura é já a própria carne que começa a sair.
Há ainda muitos toldos na praia e algumas pessoas vestidas e sentadas em
cadeiras baixas, à sombra. Uma delas é a minha mãe: olha os barcos ao longe,
com os seus olhos de luar, muito calada, mas resolveu castigar-me, à sua
maneira, pois estou preso a uma das pernas da cadeira por uma linha que me
aperta um pouco o pulso. É o costume. Deve ter sido a tia Paula quem me
acusou, embora se limite a concentrar em mim aquela sua mirada fita das
grandes maldades carinhosas.
Tem um fato de banho inteiro daquele azulão que está na moda e fuma cigarro
após cigarro. Encostada a uma almofada pneumática, apoia o queixo numa das
mãos e com a outra ora segura o 97
cigarro ora risca hieróglifos na areia. Brinca, como eu. Não é afinal muito mais
velha, apesar de ser minha tia, e ainda que a mãe nunca a amarre com aquela
guita fininha que eu respeito como coisa sagrada, sabendo que posso
perfeitamente rompê-la com o mais leve safanão, está sujeita, ela também, a
outra espécie de castigos. Há até por vezes entre nós uma certa solidariedade, se
bem que ela me faça amiúde sentir a dignidade e a importância de ter mais uns
anos, de conhecer pequenos e grandes mistérios em que ainda não fui iniciado.
Está em curso a destruição: desabam (do alto da falésia?, do muro branco?)
estátuas de zinco e celulóide, multifacetadas; raparigas ágeis, com um alvo no
lugar do coração, atravessam, em passo de marcha, a praia varrida pelo vento. A
areia está coberta de anémonas e de pequenos caranguejos que se movem na
minha direcção. Entretanto ouço vozes muito altas, que vêm de um outro lado,
mas não consigo situá-las, o que me exaspera. A mãe deixou-me ali,
completamente só e indefeso (nem o rasto se lhe adivinha), enquanto a tia Paula
se afasta (vai já muito longe e não olha para trás), tocando violino e coberta de
pássaros, com um roupão multicolor, em cuja fímbria me espanto de ler «Petrus
pinxit».
Mãe, onde estás? Se o mal existe, se nos rodeia, és tu a única defesa. Volta, mãe!
É já próximo, agora, o estrondo das portas que se abrem. A imagem que os meus
olhos hão-de conservar (um grupo de gente zangada e curiosa vem para mim
«Como é que o tipo se terá escondido?, vejam lá se roubou algum quadro ou
alguma estátua, revistem-no bem»; sinto que duas fardas me agarram
violentamente), a última imagem é a de um rosto moreno de mulher, muito oval,
com o pescoço desmesuradamente alto, os ombros descaídos.
As pupilas, de tão dilatadas, como um segredo, quase tapam por completo o
branco do olho.
Deixo-me arrastar, sem resistência. Nem sequer me explico.
98
Os dias de Vilacal
I
EMANUEL
Foi talvez o prior de Vilacal a pessoa que primeiro e mais profundamente o
detestou. É possível que nele sentisse, de certo modo, uma competição. Emanuel
dava tudo o que tinha, desde o sorriso aos porta-chaves, ao isqueiro, a quaisquer
rebuçados para não fumar que lhe restassem nalgum bolso.
Uma tarde começou a mover-se a galilé da igreja, sacudida pela aspereza do
vento. O fogo, que inesperadamente se ateou, consumiu no mercado cotins e
sementes, trapos, cestos de verga; fugiam marchantes e ciganos; só Magda, que
era adivinha, permaneceu entre as chamas, sobre uma peanha, e, enquanto se lhe
abrasavam as canelas apolainadas, não tirava os olhos ternos de cima daquele
estranho, como se lhe visse o destino estampado no peito. Porém, Magda nem
quinze anos tinha e só duas vezes falou com Emanuel: a primeira foi quando ele,
no campo, fez para os trabalhadores umas migas à sua moda, só com pão,
toucinho, azeite e alho, tudo o que havia, e ela descobriu que sabiam a chouriço
e a ovo e a bacalhau; da segunda vez foi quando os cães...
Adiante.
Não havia três meses que tinha aparecido na vila aquele pintor em férias
permanentes que de começo se deu com os ricos -pelo menos pintava-lhes o
retrato-, mas acabou por andar quase só com o pessoal da Reforma Agrária.
Sempre de jeans e camisola rota, parecia um profeta que tivesse sobrevivido ao
martírio, com aqueles caracóis cinzentos que deviam ter sido. dourados e o rosto
ainda jovem, apesar dos vincos, admirado da maldade do mundo.
101
Metia-se pelos campos com a grande família da ucepê, mesmo com o caramelejo
a tremer e a arder nas tardes de muita calma; não havia trabalho, por mais duro,
que lhe encarvoasse a fronte, nem se anojava de carregar sacas (todo salpicado
de palha triga) ou de agarrar à unha um chacim. Em emergências, chegou a
acudir a partos e maleitas, de mulheres e de reses, no escuro dos grabatos ou
entre os roçados troncos das oliveiras. Tinha mãos de seda selvagem.
Pintou os exércitos de máquinas da ceifa, no ouro da grande seara, até ao bico do
cerro das Adiafas, o calor a cantar na densa zumbaia dos insectos e os olhos
doendo tanto, acocharradas as próprias folhas dos sobreiros. Sentado no chão, à
boa maneira picara, mago e truão, com as veias da testa a estalarem, fotografou a
tristeza da entrega de uma reserva, que era agora o pão nosso de cada dia.
Empurraram-no, «Fora daqui, vadio», mas, sem dar troco, fazendo-se louco,
salvou as películas, e não chegaram a bater-lhe, como a outros, apesar das
ameaças.
Curou catarros de Verão com vitamina C. Ao pé das arribanas e das serras de
palha ou nas camilhas de musgo junto aos regatos, onde calhava descansarem os
grupos, punha as crianças a rir, porque mexia ambas as orelhas. Fazia pequenos
milagres desse jeito.
Nos plenários, quando os havia ainda, abria muito os olhos e guardava para o
futuro, no seu caixotinho de cores, aquelas imagens de liberdade. É certo que a
cooperativa definhava, até já havia trabalhadores, ainda poucos, que, abalada a
esperança, se entregavam ao vinho. Mas que se podia dizer-lhes, com tantas
perseguições a esmorecerem-nos e ajudas bem poucas?! No entanto, aquando da
apanha do tomate, até as mulheres mais velhas largaram os muros que andavam
a caiar e foi uma coisa em disparate, todos na lida, mais de oitocentas caixas por
dia, quatro mil e novecentas numa semana, à tardinha atiravam-se para o chão e
assim ficavam, de bruços, a arfar, ou encostados às azinheiras, fumando, excepto
os mais novos, que ainda iam a banhar à ribeira.
Com a entrada do Outono começaram as lavradas e as sementeiras. Certa manhã,
já o pessoal andava limpando uma courela que lhes tinha sido retirada, comida
por uma reserva e desde então 102
inútil, inculta que metia dó -«hádes ver que bonita se põe outra vez, tem que
voltar prá gente»-, Emanuel foi buscar um tractor ao casão e no escuro se
montou nele e deu a volta à chave da ignição. Quando abocou ao portão é que
sentiu que não vinha sozinho ali dentro; voltou-se na cabine e viu o bicho com
olhos de quartzo, todo preto, a fitá-lo. Passou de rodilhão pela alpendrada, aos
corcovos, assustando a gentana marreca dos patos; o gato lá atrás mexeu-se,
derrubou uma taleiga espendurada num prego e, de súbito, num pulo, que mais
parecia voo, atravessou a janela, rente ao pescoço dele, e sumiu-se por um
cancelo.
«Se eu fosse supersticioso!»
A tarde tornou-se caminho frugal para o sangue, para a carne daquela terra de
Outubro, com o Sol já oblíquo, ainda quente e parado. Na asa dessa luz Emanuel
lavrou, como os outros, e pintou, com as suas canetas de ponta de feltro, a
transparência da vida.
Mas às embocadas da herdade ia chegando a companha da morte, cinquenta
espingardas e uma dúzia de cães.
Trabalhar de graça é proibido em terra alheia. Declina o Sol e o nó de uma
asfixia nova ameaça os cooperantes, apanhados em excesso de zelo.
«Têm três minutos - diz o oficial - para pegar nos vossos pertences e desaparecer
daqui. E vá lá eu deixá-los levar as máquinas ...»
A brisa que começou a soprar do fundo da desgraça antiga pôs tremores nas
vozes e nas pernas, houve discussões, correrias; pouca coisa, mas soaram tiros.
Emanuel foi derrubado por dois cães. Todo o seu corpo começa a arder, e não
sabe onde lhe dói, as fauces das feras avançam para o devorar, ouve os gritos à
sua volta, onde está aquilo a acontecer, no circo de Roma ou no Alentejo?, sente-
se coberto de sangue, cada queimadura é uma chaga a mais, está todo roto; os
rosnidos, os dentes, as línguas, a baba, tudo vai enegrecendo. Alguém o arrasta
pelos pés. Roubaram à tarde todo o fogo. Esvaem-se ao longe, abatidas, as
sombras dos amigos.
103
O ESCÂNDALO
De uma coisa todos estão certos em Vilacal: do escândalo.
Após a fogueira dos risos cobriu-se tudo de lama. Mas ninguém se podia gabar
de saber quem era lá no fundo aquela mulher, quem era aquele homem tão
diferente dela. Sabê-lo-iam eles próprios?, saberiam um do outro?
O Doutor Juiz, homem de tino evidente, surpreendera a boa sociedade de Vilacal
lavrando aquela sentença, que deu brado, pela qual deveria tomar à ucepê tal
reserva indevidamente entregue a um qualquer afilhado do antigo dono das
terras, que já reconstituíra boa parte da fortuna. Semelhante sentença, aliás,
ainda não foi cumprida. Até hoje.
D. Maria Vulcano tinha os mais fantásticos olhos verde-azeitona que jamais
deslumbraram as adolescências da vila, olhos doces, aluados, por vezes gritantes,
o nariz um pouco aquilino sobre a boca de medalhão espanhol, com os cantos
revirados, e o cabelo pesado, majestoso, cor de madeira lacada. Com isto
insolentemente alta e esculpida em erotismo. Mulher de quem era, tinha de dar-
se ao respeito. Ou seria a rapaziada que não se atrevia. Às vezes intrometiam-se
com ela na rua, a meia voz, mas quando D. Maria Vulcano relanceava o olhar
incendiário, entre a interrogação e a dúvida, só ouvia «Desculpe, desculpe» ou
via cabeças confusas a baixarem-se, sem coragem.
Nestas coisas, afinal, quem não arrisca não petisca. E foi assim que, à sombra de
uma arcaria muito branca, onde o vento se desmembra, veio devagar o Pedro
Carente, estudante trabalhador 104
entre Vilacal e Lisboa, e, com o enervamento cintilante de alguns tímidos, ousou
pedir-lhe -e a voz saía nítida, como de outra garganta-um minuto, apenas um
minutinho de atenção, que não tinha quem o ajudasse, quem lhe ensinasse um
pouco de inglês, que o do liceu já se sabe, e cultura geral, tatatá, e até boas
maneiras, que a sua criação... E depois: que a beleza dela o comovia, uma
ternura que ele não sabia explicar, tudo com muito respeito, claro; para ele uma
mulher (misturados os olhos de um no outro) era um investimento total, corpo e
espírito. Tanto que desejava conhecê-la, mas as palavras atraiçoavam...
E, como ela sorria, estava já o jogo quase ganho.
Aquela abordagem, à vista de todos, teve um eco pútrido em Vilacal.
É certo que o moço, logo depois, se meteu em copas. Nem admitia que lhe
tocassem nela em conversas salgadas. Era uma senhora muito séria. A malta ria-
se.
No entanto, continuava a falar muito com D. Maria Vulcano, derretidos um e
outro, onde quer que se encontrassem, no jardim, no supermercado ou nalguma
outra loja, diante de toda a gente.
E começou a constar que se viam a sós. Mas onde?, se a vila tinha tantas dezenas
de milhares de olhos, curiosos, invejosos, sôfregos, mexeriqueiros, e bem fixos
neles. Soava que se escondiam nas terras, agora cheias de mato, daquela reserva,
mais uma, que o ministério e a guarda tinham passado para as mãos de um
sobrinho do Lima de Castro, uma história que não estava bem esclarecida.
Velhas marfadas despejavam sobre o par destemperas e errores.
Alguns senhores pançudos, que já nem conseguiam ver o pirilau, andavam, nos
seus ócios, à coca do casal irregular. Mas as escandecências do sangue, se era o
caso, foram mais fortes que os receios, e o idílio só teve ponto (teve-o mesmo?)
no dia dos acontecimentos de Vale do Assobio.
Num refego macio do montado, tendo ela metido o carro por um atalho cheio de
buracos, numa baixa aonde mal chegavam as flores do sol, deitaram no chão um
cobertor e não tardou que se enlaçassem para o grande duelo de amor a que só as
cigarras e os 105
rabilongos iriam assistir. Quando um ciclista parou por ali perto, o que jamais
acontecia, e tardou a afastar-se, D. Maria Vulcano maldisse o azar, sorrindo
embora, muito senhora de si, a animar o companheiro, a quem a presença
descaroável do mirone roubara toda a força.
Mas com tão queimosos beijos ela o reconfortou que o estudante, os olhos a
luzirem como escaravelhos, cresce ao contacto das pernas dela e naquele ventre
húmido e momo por fim acende a desordem, sob as quietas azinheiras.
Revolvem-se e quase choram, unidos pela angústia, pela tensão que eles próprios
prolongam indefinidamente.
É então que um arramalhar suspeito começa a ouvir-se, o restolho a estralar,
como se pés esquisitos o calcassem. «Não é nada, não faças caso», e eis que se
assomam as cabeças, dez, doze, quinze (deviam estar de cócoras, a mirá-los), por
cima de um talude baixo, que separava da seara ardida um granzoal verde-azul.
Erguem-se todos à uma, em grande assuada, com risos, chocalhos, apupos,
cobiça e raiva. Mas nenhum avança aquém do talude. E não são apenas os
homens do agrário: são bobos e anjos de penteado muito brilhante, demónios
largos da corna, chimarra encarnada, a gargalharem, mulheres batendo em latas,
dançando, tropeçando nos torrões, nas almocegueiras, tudo na jolda, os
mostrengos, os anjos terríveis, que os iam difamar e perder.
Fugiram para o lado do montado, de roupas na mão, arrastando o cobertor,
deixando ali perto, exposto, o carro, que mais tarde acharam com umas
amolgadelas quando, muito a furto, já quase noite, tornaram ao sítio da sua
tremenda vergonha.
Só havia uma atitude a tomar, ponderou D. Maria Vulcano: não acontecera nada,
absolutamente nada. Mas mesmo nada.
O Senhor Doutor Juiz foi visto, mais que de costume, a passear majestosamente
pelas ruas a calva sem apelo. Isto durante uma semana. Depois recolheu-se. Não
era homem a quem olhares compassivos ou cartas anónimas abatessem o bom
viver marital. Passado um mês, solicitada ou não a transferência, perdeu a vila o
mais sereno e talvez o melhor juiz, o mais justo, que ainda tivera.
106
III
OS AVISOS
Era o tempo das cigarras. O grande calmeiro do pino do dia imobilizava todos os
seres e todas as coisas, gados, searas, sobreiras-mas havia nos rostos um
desconforto, uma dor sopeada, sabia-se que eles viriam, um dia ou outro, muito
em breve, dentro de horas talvez.
A tremulina do calor fixa-se nas telhas mouriscas da abegoaria, do casão onde a
frota de tractores está imobilizada. Parece que tudo parou. Vale acaso a pena
começar o quer que seja? E, mesmo assim, há gente a trabalhar (para quem?) nos
pardos azinhais, sob o sol branco de ferro em fusão.
É o forno ou a própria terra que cheira a pão? As ovelhas murriadas dormem no
aprisco. No fogo do céu o pássaro azul descreve os gestos de uma esperança que
nunca morre. Alguém, atrasado, faz o comer na lareira, onde estalam peténs de
chaparro novo. Os putos retouçam na rua do «monte», mastigando matrecos
cobertos de pó, e um velhote, o primeiro a partir (para quê enfrentá-los?),
agarrado ao seu burro, aperta-lhe a cisgola do cabresto.
Nos braços múltiplos de uma nespereira os frutos tristes da colheita que não será.
E assim eles chegaram. Encascados de ódio e de riso, vieram pelos caminhos
mal andamosos, contornam a almiara, tropeiam no empedrado, cercam o
«monte», dúzias de carabinas escurecem o dia, não são apenas os guardas, são os
que trazem na boca e nos punhos (e em papéis difíceis de entender) a lei falsa,
falsificada, e são ainda alguns, de falas labiosas, com a monquita da traição a
107
correr-lhes até ao peito, e os renegados sem disfarce, de má facha, a corte inteira
da vingança, da ambição, da vénia bronca ao mais forte.
Mas quem é aqui o mais forte, cócheres!, ainda está para se ver.
No adjunto que se forma mesmo em frente da casa das matanças quem fala
grosso é o capitão da guarda, embora os homens e as mulheres da ucepê clamem
em volta: «E onde é que a gente vai agora ganhar o pão?!» Sabem que não serve
de nada, mas desabafam, acusam, responsabilizam: «Quem é que nos sustenta os
filhos?»
Alguém da comitiva sonhou ouvir um palavrão, ou, de facto, qualquer um o
disse, acaso o moural de amargas pelharancas, e, esse, logo o invectivam, que
ofendeu a autoridade, e esmoem-no com o mesmo cajado de azinho em que ele
apoiava o respeito dos seus anos. É o sinal. Os meninos finos mostram como o
são: entornam os tarros com comida, invadem as casas e urinam nos tapetes de
esparto e de serapilheira, jogam nas brasas o pão e o gimão, é um deladoiro que
faz dó. Duas mulheres sentam-se no chão do seu amor, entre as corrumaças.
«Fora daqui, rua, onde é que isto é vosso?, gatunos!»
Valeu bem a pena terem mantido fechada a casa dos agrários, limitando-se a
limpá-la, a conservá-la, como se estivessem para fazer um museu. Deviam era
tê-la ocupado, conho, já é tarde quando se dá pelos erros. Tonho Charrua,
empurrado pelos guardas -os cavalos tropeiam na rua do «monte», abatem-se os
sabres sobre os recalcitrantes ou sobre os que estão mais perto-, repara que se
movem, apesar da grande calma, os ramos mais altos das oliveiras, espelhados,
cá em baixo, na charca apodrecida, e as franças dos eucaliptos cor de prata, em
cujos troncos se roçam as reses encaloradas, alheias ao lavarinto (dois
cooperantes, já feridos, empinam-se à guarda e os bastões não os poupam).
Docemente, magicamente, sobre a vergonha e o horror da exibição de
autoridade, movem-se as folhas dos eucaliptos, das oliveiras, das duas acácias de
estimação, de onde disparam pássaros de sangue. E, como já viu de perto o mar,
Tonho Charrua, que trabalhou em Sines como trolha, lembra-se dos tentáculos,
das finas extremidades daquela 108
bicharia das águas verdes luminosas, dos pequenos crustáceos, das medusas. As
árvores, afinal, são grandes animais e assim se queixam, serenas, quando se
mexem, desta maneira. Está quase branco o céu, da cor do ódio cego, e é preciso
caminhar, mas a passo, com as espingardas nas costas. Fugir não. O laranjal
também acena, corpo verde tão secreto, o seu adeus sem resignação. Os cães de
volta, espezinhados, corridos à coronhada, já não ladram, sequer choram. E não
se abre o firmamento, não se lhe vêem os bordos da ferida. A Julinha Marroca
esfregou a cara com terra. E o Tonho Charrua verifica que a terra está viva
naquela cara, e sua e chora, que nem se sabe de onde vêm as lágrimas, se da
Júlia, se da terra.
Mas já não é só o Tonho Charrua quem recebe os sinais das oliveiras adoloradas,
do pequeno rebanho de pinheiros, compacto junto da nora. Muitos dos
trabalhadores expulsos da Cooperativa param quando ouvem as esquilas do gado
que ainda sentem seu, é um dó de alma largar assim os seis anos de tantas
esperanças e de tantos trabalhos ali enterrados, e isso mesmo lhes devolve o eco
das vozes que eles não gritam; e as grandes pedras, ao pé do valado onde se
acoitam as pegas e os melros, falam: «Podem dobrar-vos agora, prostrar-vos e
separar-vos e até deixar-vos à fome e despir-vos da própria confiança e da
vontade de viver, mas vocês hão-de voltar.»
A Júlia Marroca, toda arranhada, não se cansa de bradar, surda e cega pela dor:
«Ai que esta comparativa vai morrer, pobres de todos nós!»
Mas os zambujeiros retorcidos e ásperos dizem também (e todos eles agora os
ouvem): «Vocês hão-de voltar. É vossa esta terra semeada com amor. Mesmo
que estas courelas morram, outras searas aqui hão-de nascer. Vocês hão-de
voltar.»
Cabisbaixos, os cooperantes escorraçados transpõem o limite da herdade que foi
colectiva. Mas lá de dentro, das moitas de carrascos, das silvas, dos cardos, das
estevas altas, dos torrões do alqueive, da daroeira enroscada na tabuleta da
estrema, do fio de água onde coaxam as rãs, ainda lhes chega a mesma voz, que
é um chamamento: «Vocês têm de voltar. Têm de voltar.»
109
Os mascarados
À volta da grande medalha de giz que começa a iluminar a noite pombalina das
fachadas, das mansardas, dos quintais, amontoa-se um escuro de dunas que a
chuva refreada configura.
«Belo tempo, não haja dúvida, nem de propósito.»
«É da maneira como há menos gente nas ruas», diz Camilo, com tranquilizadora
fleuma. «Quanto mais chover, melhor».
Valéria faz uma careta ao espelho do guarda-fatos. Senta-se de novo na cama e o
seu corpo bronzeado, quase castanho, sai como um barco do robe cor-de-rosa,
que desliza por ela abaixo, em jeito de pétalas a desfazerem-se. Camilo puxa-a,
aperta-a entre os joelhos, sorve-lhe o calor da boca, perpetuamente cheia de sol;
mas evita-lhe a acuidade dos olhos. Há entre eles um estorvo, ou uma dúvida, ou
uma suspeita, um projecto que deixou de ser partilhado.
Recomeçam a mover-se como folhagens macias que o vento sacode. Gemendo,
acelerando, giram depois em volta de um eixo, tão loucamente por fim que o
rosto dela se torna no dele e vice-versa.
O hábito da paixão e do perigo já os igualizou nos gestos, nas rugas prematuras e
na angústia do riso. Sabem que estão esconjurando a morte.
O telefone toca, em cima do banquinho que serve de mesa-de-cabeceira, mas não
o atendem. Gritam quase ao mesmo tempo, quando a inunda o jacto momo que
ele sente que lhe vem do fundo das entranhas.
«Este agora calou-se», diz Camilo, empurrando o telefone, ao decidir-se a
acender um cigarro.
«Mas está tudo combinado, não?»
«Pudera!»
«O Quim desta vez também vai?»
«Olha quem!»
113
«Pois eu até acho bem. Ou se está ou não se está convencido.
E quem não estiver, falha.»
«Só falhamos se houver algum imprevisto. De outro modo não.
O estado de espírito não conta.»
«Dizes isso para te tranquilizar?»
«Achas?»
Precisam de se calar, ou acabam por deixar falar a raiva, os nervos, o medo.
O vento, que há pouco eram aves negras a bater na janela, pouco a pouco
adormeceu. A tempestade foi diferida.
Só no olhar cego é que ultimamente se encontram, se entendem, no fogo da
festa. Quando o desejo tornar a mexer os dedos inquietos.
Quando vieres, nua e silenciosa, procurar a bestialidade, a inocência de outro
abraço total.
«Podem matar-te, Camilo. Em certas alturas tudo isto deixou para mim de ter
sentido. Não to escondo. Nem quero mentir a mim própria.»
«Isso passa.»
«Se te prendem? Se te matam?»
Tilinta o telefone.
Camilo atende. «É a fita do costume: ninguém. Parece que adivinham.» Empurra
o monstrozinho preto, depois tira a ficha da cavilha, hesita. «Daqui a bocado já o
ligo. A ver se se cansam.
Escuta, Valéria: quando a esquerda está no poder há sempre terrorismo de
direita. Com todo o aparato. Com eficácia. Porque não há-de haver, com a direita
a mandar, violência revolucionária de extrema-esquerda?!»
«Justamente porque somos diferentes.»
«Eu não tenho vocação para oferecer a outra face.»
«Mas os comunistas não se metem nestes assados e não deixam de lutar, fazem
greves, organizam as massas...»
«Esses para mim... Não gosto mais deles do que da direita.
Já não é a primeira vez que me vens com essas. Até parece que andas de namoro
com o pecê.»
Valéria encolhe os ombros, irritada. Fixa, por momentos, o olhar na bela máscara
vermelha, da Guiné Bissau, nas pesadas 114
pálpebras, nos três golpes profundos que, de cada lado, obliquamente cortam a
face serena. Serena como o rosto morto, tão jovem, do Che, do qual só restam,
naquela mesma parede, as marcas da fita-cola que o segurava. Deve estar agora
no fundo da mala onde se acumulam memórias, papéis que já nenhum deles sabe
o que são.
Tem de lhes dar uma volta, rasgar, arrumar, vasculhar, reviver, morrer um pouco.
«Poderia estar a ensinar e afinal, neste quarto, demito-me do esforço de viver. A
Revolução não está por dois dias.
Não pode ser: este vazio dilacera-me. Cada hora que passa me culpabilizo mais
pela minha heróica inutilidade. Queria vomitar este absurdo cansaço, libertar-me
do visco que se me cola aos gestos.»
«Já pensaste, Camilo, que podíamos, quem sabe, talvez pudéssemos tentar
simplesmente ser felizes, como dois banalíssimos seres humanos.»
«Largando tudo? Francamente, não pareces tu.»
«Que é que queres?, não acho sentido nenhum a esta loucura.
Acordei, Camilo, e estou lúcida. Jogamos um jogo sem saída.»
«É melhor que te cales.» «Já não sei, pensa Camilo, o que é entre nós amor e o
que é ódio, o que está irremediavelmente envenenado e o que se pode ainda
salvar.» O espelho oval da cómoda, para onde o seu olhar foge, devolve-lhe, no
fundo verde dos cortinados (trivialmente, sedativamente verdes), uma hipérbole
do desespero: o rosto todo contraído de Valéria. «Vem cá...»
E diz para dentro de si: «Amanhã à noite ainda aqui estarei?»
Valéria já tentou reler os poemas de Robert Desnos, principiou uma carta para
uma amiga, mas escreveu apenas duas palavras, «Estou só», e não conseguiu ir
mais longe. Esfrega a testa, entranha os dedos pela espessa cabeleira que deveria
ter lavado na véspera, arruma as blusas e a roupa interior nas gavetas da cómoda,
mastiga angústia, a estrela dia, a estrela sol, a estrela cristal, a estrela morte de
cinco pontas.
115
Quando a campainha toca, hesita um instante, ele ou a polícia?, é a sua irmã
Maria João, o que lhe causa um certo espanto, «Há tanto tempo que não te via».
A outra explica, rapidamente: «Vieram trazer-me isto para te dar - e entrega-lhe
uma carta-, que era perigoso telefonarem-te. Não conheço o tipo de parte
nenhuma.»
«Fizeste bem - tranquiliza-a Valéria e só tenho que te agradecer.»
«Queres que eu fique?»
«Não te quero meter em sarilhos, dá cá um beijo, menina bonita.»
A carta nem sequer tem o nome dela, mas é bem a letra de Camilo. Começa
assim:
«Tanto que queria ver-te, tanto preciso de ti, e não pode ser.
»Já deves saber pelos jornais como as coisas se passaram.
Parece que adivinhavas. O Quim afinal veio connosco, contra o que eu previa, e
logo foi ele quem apanhou o tiro, à saída do banco.
Não sei em que estado ficou o polícia que nós atingimos, cuido que apenas
ferido. Correu tudo para o torto. Safei-me à justa, com o Manel Zé sempre a
disparar, enquanto os gajos agarravam à unha o Jonas da Canhota.
»Foi assim. A parede cheia de sangue ao meu lado e o Quim a escorregar
devagarinho, morto, por ela abaixo. Quando me lembro do discurso que ele nos
fez: que tinha medo, tinha sempre medo e por isso mesmo é que queria vir
connosco desta vez.
»Quem tem medo agora sou eu. Quando estou inactivo, à espera, é assim, sinto
um verme no estômago, um corpo estranho, vivo, a mexer.
»Não me viram a cara, mas a esta hora talvez o Jonas tenha já falado, os gajos
são beras, e sabem muito.
»A única janela onde às vezes me assomo dá para um quintal desolado: plantas
mortas, caixotes, lama, papéis velhos, tristeza.
116
Penso nos tipos que roubam legalmente milhares de contos e que me chamam
bandido, a mim que nunca fiquei nem com um tostão, destes assaltos, e o pouco
que tenho até o dou.
»Eu sei que achas loucura tudo isto, já mo disseste, e até será, esquecemo-nos
talvez de que já não é bem o fascismo, há outras condições de luta, pois há, mas
são os mesmos tipos que mandam, a mesma espécie humana, cometem os
mesmos crimes impunes.
Enfim, escrevi-te apenas para te dizer que estou aqui e estou aí contigo, que te
vejo dormir e olho com ternura cada uma das tuas primeiras rugas, os teus
sorrisos sem destino. Eu não sorrio assim a dormir, com certeza, fui uma criança
oprimida, maltratada, filho de burgueses remediados, parcos nas despesas e nas
palavras e mais ainda nas festas, bem poucas, que me faziam. Há tanta coisa de
que nunca falámos. E agora... Olha, a letra do carro vence-se no fim do mês. Se
puderes, ao menos por ti, que eu não sei quando; Beijos quentes. Camilo.»
Barracas e charcos. Algumas antenas de televisão, os ídolos do pântano.
Criaturas sem sexo nem idade secam-se, dormitando, nos poiais das portas
inundadas. Ali, nos enxergões, que a chuva empapou, nos capachos ensopados,
nos restos de cobertores, entre as latas ferrugentas, reina a água, com cheiro a
miséria.
Mas é só o primeiro ponto de referência. Valéria contorna o bairro marginal até à
confluência das duas estradas. Aí a espera o homem da gabardine verde,
encostado ao muro que o meio-sol de borrasca irriga de fel e onde os ramos das
raquíticas oliveiras desenham sombras chinesas. A Diane passa então a seguir a
motorizada. Esta pára, por fim, na subida de um outeiro baixo, de onde se avista
a esperança do rio, à beira de uma construção que tem todo o ar de um armazém.
Perto, numa corda, há roupa estendida e de algures, não muito longe, chegam
rumores de feira cigana.
Uma gaivota, que parece perdida, voa sobre um ermo, que deve ser uma lixeira.
117
«Espere um instante», diz o homem da gabardine verde, que penetra no casarão
por uma porta desconjuntada, com aspecto de não funcionar. É o marulho da
cidade ou do Tejo? Dois lírios melodiosos, roxos e amarelos, chamam a atenção
de Valéria, que não chega a colhê-los porque já Camilo surge, a chamá-la, no
umbral da mesma porta por onde o outro entrou.
Ficam abraçados, esforçando-se tenazmente por não chorarem, encostados à
parede rugosa, que os arranha. O fim da tarde brilha em poças de água que se
infiltrou naquele espaço frio, provavelmente o de uma adega desafectada. Valéria
bebe-lhe as duas lágrimas de vergonha. A dor escorrega pelas aduelas de uma
pipa que ali ficou. Ouvem-se passos de outra gente no andar de cima.
«Cá estou», diz Camilo.
«E eu contigo.»
«Podemos ir para o meu quarto. Tens duas horas? Ele tira-te daqui o carro e
depois vai buscá-lo.»
«Eu venho para ficar», diz Valéria.
«Mas...»
«Já pensei. Pensei em tudo.»
«É que isto agora é mesmo a clandestinidade, a guerrilha, se assim se pode
chamar, e ainda por cima eu sei que achas tudo isto absurdo, no contexto actual,
e até (baixa a voz) desestabilizador...»
«Pois é. Mas.»
118
Prosérpina
ERA eu então jovem médico à periferia e, esforçando-me por cumprir mais
humanamente do que alguns outros, já cansados do ofício (ou desde sempre
egoístas), não deixava de gozar regalias que muitos dos meus colegas de curso,
sorteados lá para o interior do País, em túmulos sem aquecimento nem água
corrente, não me perdoariam. É que, de facto, a moradia sobre a praia (partilhada
com mais dois médicos e uma quase médica por osmose), o branco reluzente do
casario, que expulsava o calor, no Verão, e de Inverno nos aquecia o olhar, o
temo lavrado das chaminés naquele azul eterno, a festa das amendoeiras no
tempo de florirem, o ocre da taipa, quando se armava em novas edificações, nos
campos cheirando a esteva, e sobretudo o ouro que salpicava, entre o aldeamento
e o mar, os escuros laranjais, que assim deviam ser os do Jardim das Hespérides,
tudo isso me dava quase o sentimento de um pecado. Tanto que, despachados os
doentes da Caixa, a quem não regateava atenção, ainda recebia (e de graça, o que
os deixava espantados) os doentes sem Caixa, que vinham também à consulta -
e desse modo perdia quase sempre o meu mergulho, muito real, na mornidão do
crepúsculo que se espelhava nas ondas.
Fazia diariamente uns quarenta quilómetros, ida e volta (mas com gasolina
paga), entre o meu paraíso e o meu purgatório.
E assim um dia, do outro lado da secretária e da bata branca que me revestia e
me ungia, apareceu Prosérpina. Prosérpina Gonçalves da Costa. Mas Prosérpina.
Não fora o nome, tê-la-ia decerto escrutado com menos queimosa atenção.
Mas nem me daria conta desse abuso se ela não tivesse logo baixado os olhos
com uma brusquidão que lhe denunciava a aflita insegurança.
121
Naquela terra histórica, de castelo ameado lá em cima e encostada a uma
serpente de água cristalina, com casas de mau gosto a destoarem na longa e
esparsa reverberação de cal secreta e com televisões a cores (nem que se
empenhassem, haviam de tê-las) contrastando com o negro da viuvez
generalizada - viúvas eram também as casadas, de vestido preto ou de xaile preto
praticamente todas, no nível social das minhas clientes-, Prosérpina afinava pelo
padrão comum.
Toda de negro, embora sem meias e com qualquer coisa de semelhante a um
ligeiro decote. Escondeu depressa na mala uma revista (seria a Crónica
Feminina?, o Corin Tellado?). Só depois de muito se olhar para ela (o que eu
fazia agora às furtadelas, à medida que lhe ia anotando as doenças da meninice e
da puberdade) é que se descobria que Prosérpina, sem sombra de retoque e até
por isso, já com algumas rugas mais visíveis ao canto dos olhos e dos lábios que
não sorriam, era docemente bonita. E assustada.
Ou muito triste. Ou muito inquieta. Não chegava a perceber.
Respondia-me com grande precisão, mas como que desinteressadamente.
Encerrada a sua história clínica, viemos aos padecimentos que, agora, a
apoquentavam. Mas eram, ao invés dos antigos, particularmente vagos esses
padecimentos.
- E onde é que lhe dói?
- Aqui. Talvez aqui. Sim, aqui. Não sei muito bem...
- Vertigens?
- Às vezes... Não, pensando melhor, nem por isso.
- Náuseas?
- Sim. Sim, mas... É raro. Não me parece que...
- Vamos lá então examiná-la.
Creio bem que se despiu com alguma relutância, sincera, sem afectação de
pudor. Não era esse, fora de dúvida, o móbil da visita.
O corpo, ainda rijo e elástico, mas excessivamente pálido, contraía-se à pressão
dos meus dedos, num pânico de que indubitavelmente ela se envergonhava.
Coração, pulmões, vesícula, intestinos, aparentemente tudo bem. Faltavam as
análises, mas ia jurar que a lamentosa Prosérpina 122
era um pingo de saúde. Enfim... Passei a receita para um exame completo, no
hospital.
Prosérpina pegou-lhe, sem grande entusiasmo, parecia que lhe faltava ainda
dizer qualquer coisa. Mas lá se foi encaminhando para a porta, devagar.
- Escute!
Voltou-se.
- Faça favor - e apontei-lhe a cadeira onde estivera sentada.
Hesitou, mas veio, parecia recear-me.
Joguei tudo por tudo: estendi-lhe as duas mãos, com o olhar direito a ela a dizer:
«Não quero nada de si, nada.»
Ela não me deu as mãos, mas sossegou, embora não conseguisse olhar-me ainda
de frente.
Tornei a mexer na ficha.
- Bem, vejamos outra vez: dona de casa, casada, sem filhos.
Porque é que nunca teve filhos?
- Não sei... (estava quase a chorar). Nunca me atrevi a perguntar, na altura...
Abrandei.
- Há quantos anos é casada?
- Dezassete.
- Agora diga-me uma coisa. Porque é que veio cá? Preciso de saber. Não finja. E
não fique calada. Vá, diga.
- Senhor Doutor, eu vim só porque não falo com ninguém.
E tinha uma grande necessidade de falar.
123
A hora do parque
UMA câmara de televisão filma o lago e os cisnes negros. Começa a arrefecer,
embora o sol ainda aloire aquele recanto de inverno onde há crianças, estudantes,
namorados, cães que ladram e se perseguem, à volta dos bancos, e estátuas de
um feminino opulento, maiores e mais nuas do que gente. É este o casal que
suavemente se anavalha. Soube-se que um travesti violou uma rapariga no
parque, àquela mesma hora, ali perto, e ninguém deu por nada. «Mas que
estranho», comentam os outros casais, «agora vê-se de tudo», as pessoas não
batem certas nem com os nomes nem com os ofícios.
O homem desistiu de propor à mulher irem jantar a um chinês.
Ela só tem vivamente esse desejo, conclui, quando ele se esquece de lhe falar em
tal. «E se fôssemos logo à noite ao cinema?, andam aí dois ou três filmes bons,
escolhes um que não meta violência.»
«Sabes perfeitamente que assim de repente não consigo decidir-me. Preciso de
tempo para me habituar à ideia. Estou desacostumada: lembras-te tão poucas
vezes de mim.»
Continua a ouvi-la, olhando com tristeza as chagas do entardecer, ainda que ela
se tenha obstinadamente calado: «Deste cabo da minha vida, agora já nada, nada
vale a pena, só espero ver-te morto, para voltar a gostar de ti quando falar com as
outras pessoas.»
Não consegue silenciar aquela voz dela nele, nem distingue com segurança se a
imagina ou se involuntariamente a capta, fluido magnético indiscreto e
mortificador.
Lá para o outro lado, onde a jovem foi violada, o parque é diferente, tem, ou
tinha, um furor luxuriante, também ali havia água, e arbustos altos, gansos de
olho vermelho, e vozes perdidas pelo meio das pedras.
No rosto emurchecido fixou-se um triste rancor e o homem, que a examina, em
silêncio, sabe que é sem remédio. «Seria bom 127
ficar sozinha, se me tivesses feito, ao menos, um seguro de vida em termos.»
«Estamos cansados e viajamos na margem da discórdia, sempre assim.»
Passaram duas raparigas muito esguias, provavelmente estrangeiras, desenhadas
do pé à coxa por perneiras às listas, azul e carmim. Foi-se a nuvem, tomou ainda
a cor, uns salpicos de limão-sol, e com eles apareceu a identidade esquecida de
certos arbustos, troncos de árvores, curvas de gradeamentos. Mas o
aborrecimento ramifica-se. O homem pensa na solidão em diálogo e que tem de
atravessar a sua noite sozinho. Tudo se extingue. Não há um projecto, um desejo,
uma raiva; não há chamas onde mergulhar, não há chuva nem vento que o
despertem, não há grito que lhe acuda.
Só recordações. E a recusa a entregar-se-lhes; não o apego à vida, mas a vontade
desse apego teimando contra a opaca, constante tristeza.
«Nada pode acontecer já dentro de nós se nada recebermos do exterior. E eu
estou-me a fechar.»
Diz alto: «Este Verão vamos a Viena de Áustria. Tenho um prospecto turístico
com o itinerário e com os preços.» Esteve para acrescentar: «Se receber a
gratificação», mas calou-se a tempo.
«Agora!, vale bem a pena... Aqui há uns anos, sim. Mas nessa altura só pensavas
em ti. Agora já não tenho saúde, nem vontade de viajar.»
Um pequeno lagarto sobe pela greta do muro atrás da cadeira onde se torna mais
próximo o murmúrio de dois jovens, ela sentada nos joelhos dele, cabelos
misturados. São de um verde cínzeo as escamas córneas do bicho, que cessa de
trepar e fecha o olho meditativo. O homem pensa nos gâmetas dos lagartos e em
como sabemos tão pouco desses animais. Parou, fascinado, com a mulher a
tentar puxá-lo, enquanto o casalinho se fecha na sua ternura, surdo à ressaca da
tarde desmantelada.
«Vamos embora, estou cansada», diz a mulher. Ele baixa a cabeça. Observa-a: os
olhos conservam-se bonitos, tão grandes e tão claros sobre as faces descaídas e o
pescoço enrugado.
«Há quantos anos foi aquela nossa noite primeira de inocência e fracasso, num
escuro hotel da Baixa, com o quarto cheio de 128
buzinas e de guinchos desgarrados, atmosfera hostil onde nos movíamos mal, o
medo de magoar, a dádiva insegura, o globo de luz pálida a amortalhar-nos, e
tanto amor, é verdade, o meu coração de criança perdida e os nossos dedos
entrelaçados depois até à madrugada?... Bem queria voltar atrás, mas...»
Está quase a mudar-se em noite o crepúsculo de aço amarelo.
«Vamos embora. Nem reparas em mim, é como se eu não
existisse, já te disse várias vezes como me sinto cansada, e paras diante de toda a
gente, de todas as coisas, não vale a pena falar contigo, só fazes o que te
apetece.»
«É tarde», pensou o homem. «E assim será até ao fim ...»
129
A rapariga no pinhal
ESTA grande nódoa negra em meio do pinhal, ninguém a inventou.
Está lá, terra calcinada, grelha de troncos mortos, chamando fogo ao fogo, cinza
às giestas e ao seu segredo.
É duvidoso que aquilo tenha ali mesmo acontecido. Provavelmente levaram-na
para lá horas depois.
A atmosfera, bem me lembro, era de cio e de raiva naqueles dias. E ela jogando
sempre, sempre.
Sob o azul ferido de Setembro, as férias passavam-se entre a praia e o pinhal e a
venda da D. Leopoldina, onde batíamos furiosamente a bola de pingue-pongue
por um sorriso da Mariazinha.
As ondas são sempre altas, mesmo em Julho e Agosto, não têm a despudorada
macieza do Sul, quebram-se em cascata sobre os rochedos, abafam gritos e
abrem olhos verdes suicidados na perpétua bruma das manhãs. Houve um dia em
que nos deitámos lado a lado na tábua polida da rocha dos patos, a que havíamos
posto o nome de altar. Só me saíam banalidades e frases entrecortadas. Soube
que o pai, que era africanista, tinha uma oficina de reparação de automóveis (e
eu que a imaginava quase princesa).
Disseme também que gostava de rock e dos Beatles. Mas era tudo puxado a
saca-rolhas. Atrevi-me a falar-lhe de poesia, mas ela não tinha lido nada e receei
que essa confissão a voltasse contra mim.
Pelo menos, deixou de me brindar com a atenção dos olhos de esmalte negro,
embora, debruçando-se um pouco para a entrada da praia, me oferecesse
soberanamente a erva escura da axila e o moreno, o momo desses seios com que
todo o meu grupo andava louco. Depois, como viesse chegando o campeão do
pingue-pongue, o velho que a encantava (hoje dou-me conta de que era um
jovem de quarenta anos, com muitos truques na manga), principiou a descer e a
escorregar, agilmente, pela parede rochosa, ao encontro dele, sem me deixar uma
palavra sequer de despedida.
133
Nessa altura odiei-a, qual de nós não a terá odiado nas tantas vezes em que (até
sem o fazer de propósito) se nos prometia e recusava?!
Veio uma noite ter comigo à casa dos meus tios. Bateu à janela e entrou pelo
terraço, discípula de estrela a pingar neblina.
Fita-me muito maliciosamente (expressão que nunca me dedicou) enquanto lhe
enxugo o cabelo pretíssimo e a dispo dos restos de névoa e de roupa.
É tão autoritária que depressa afasta os meus dedos para ser ela própria, estátua
de cera e de carvão, a dirigir a cerimónia. Enfia os pés nas minhas chancas, olha-
se ao espelho, empurra-me quando tento abraçá-la - e caio de costas na cama,
onde sinto uma onda de perfume lentamente estreitar-me, rolar comigo, ventre
contra ventre, ela e eu iluminados pelo mesmo sorriso. Fada e tigre fêmea,
suplicando, gemendo, operando milagres, acariciando as minhas incertezas mais
secretas, travando a pletora já insuportável do meu corpo, aguilhoando-o,
dilacerando-me com as unhas de felino por toda a parte, enroscando as pernas
nas minhas até nos fundirmos completamente, «aguenta, tens de aprender»,
exigindo depois, bruscamente: «agora, agora, vem-te comigo, agora.»
Se fosse verdade!
Não é que me desprezasse, mas evitava ficar a sós comigo, tinha sempre alguém,
enfatuado ou suspiroso, a enganar-se de vida ao pé dela. Enfeitava-se com os
mais vistosos e todos os olhos do grupo a espreitavam. Alguns faziam proezas,
desciam, aos saltos, as arribas, voavam, na ponta de uma corda, de pinheiro para
pinheiro, coração em lume, ou apostavam na insolência, na escatologia
(Mariazinha fazia-se desentendida), havia os que lhe davam para as mãos a
motorizada, não sabendo ela guiar, os que lhe escolhiam os melhores pêssegos,
as uvas arrancadas da vinha, ainda com orvalho lunar.
Metiam-lhe as mãos pelas coxas, faziam-lhe cócegas e ela ria, às vezes
encostava-se muito a uma esperança que enturgescia, mas sempre se furtava a
compromissos.
Os operários que andavam a repintar a escola e vinham sentar-se à beira da
estrada, na hora do comer, diziam-lhe das fortes 134
e ela ficava na mesma. Fana de propósito para excitar as mucosas dos senhores
de meia-idade, barrigudamente burgueses, dos ciganos de grandes olhos torvos,
todos vestidos de preto?
O Lucien, um dos franceses que estiveram acampados no pinhal, onde quase
todos arranjaram uma bela constipação, e que era o único a fazer frente ao
mestre de pingue-pongue, pôs-lhe o nome de Fata Morgana. O Sr. Vítor (assim é
que tratávamos o homem mais velho, o desejado, de quem nenhum de nós
gostava) tinha na outra vida, a do Inverno, uma profissão que então me impunha
um amargo respeito: angariador de publicidade.
Eu sonhava muitas vezes com a Mariazinha. Numa ocasião encontrei-a em uma
floresta toda branca: pelo meio do sol a neve dos ramos caía em gotas luminosas
e ela estava parada debaixo de uma árvore muito alta, com o colete de pele que
lhe descobria os seios, e protegia a cabeça com uma sombrinha lilás.
Fiquei a olhá-la, atónito e maravilhado, quando no pinhal a achei pendurada na
mesma sombrinha. Por assim a contemplar, quase em êxtase, ou porque quisesse
fazer-me coisa sua naquele momento, convidou-me a descermos a mata, nas
nossas bicicletas, pelo carreiro estreito. A minha máquina deslizava na caruma
para lhe deixar a ela o melhor piso, pequenos demónios rangiam os dentes por
detrás dos grandes troncos resinosos, as longas sombras serpenteavam, cortadas
pelo voo azul dos gaios. Feria-me os olhos a palpitação dos élitros. A Mariazinha
deu-me a mão, para melhor desafiarmos o equilíbrio, e descemos a par, de pé nos
estribos, o bosque perigoso.
Tive então, pobre tonto, um súbito desejo de morrer: tão feliz me sentia que já
nunca poderia voltar a sê-lo como naquele instante.
Noutras alturas, porém, recebia sapatadas ou caía de alto perante a sua graciosa
ignorância. Com os jovens franceses e com as francesas do acampamento
falávamos de tudo: dos Beatles, do twist, do nosso século de massacres, dos
desfolhantes no Vietname, do napalm em Angola, o imperialismo era para
muitos de nós o grande inimigo da Humanidade, havia até no grupo alguns filhos
de ricos que decoravam o livro vermelho dos preceitos de Mao. Mariazinha 135
não sabia bem o que fosse o imperialismo, a sua cultura ia até ao jazz» aos
sonetos da Florbela e ao Kama-Sutra lido às escondidas, segundo ela dizia. «Eu
não percebo nada de política, nem quero perceber, por se meter em políticas já
um tio meu sofreu muito.»
«Por isso mesmo é que temos de tomar posição: em cada família portuguesa há
uma vítima», mentalizava-a o João Grande. Mas ela e até as outras preferiam a
essas discussões os passeios de automóvel com o angariador de publicidade
pingue-ponguista, que tinha uma dúzia de mãos para os borrachos e aquelas
rugas brejeiras ao canto dos olhos.
Naquela Escócia lusitana as marés eram quase sempre vivas.
Porém, um dia de nevoeiro parado, muito cedo caiu sobre as ondas a grande
calma de Agosto e toda a natureza se aquietou. O
horizonte caminhava para nós. Deitei-me, entre as salicórnias e os chorões, à
beira da praia, cuja areia estava ainda mais molhada do que as plantas. Perto,
uma esplêndida piteira arrojava ao céu o vermelho da sua flor fálica.
Sobre as rochas porosas, a névoa baixa esfarrapa-se, esfarela-se, desnudando a
ampla manhã azul. Avanço para o mar, reconhecendo uma a uma as pequenas
poças onde a água amadurece e cujas paredes estão recamadas de lapas, de
conchinhas. No fundo debatem-se as algas aprisionadas, que ali vêm ter nas
noites de barco nenhum em que o vento ergue ondas sem praia, quando só as
rochas andam à deriva entre montanhas de espuma.
Por detrás de um dos penedos mais resguardados, onde a Mariazinha costuma
mudar de biquíni, às vezes com a malta a espreitá-la, avisto-a, de repente,
ajoelhada, de costas e, não há dúvida, só com o calção de banho. Um rapaz, ou
um homem, que não identifico (mas que não é decerto do nosso grupo, e daí...),
luta, teimosamente, com ela, que se debate, arranha, morde, creio que muito a
sério, a avaliar pelos sons, mas parece, ao mesmo tempo (já a vou conhecendo),
não desgostar daquela espécie de cena-combate.
Nessa mesma tarde, quando cheguei à venda, era ela mais uma vez, à volta do
pingue-pongue, a rainha das atenções. Um dos franceses chamava-lhe allumeuse,
num tom de troça meio feroz.
136
O homem das publicidades jogava e ganhava. Lá de fora, do lado dos astros
sobre a falésia, os ciganos mais novos observavam ou o pingue-pongue ou a
Mariazinha. Dois dos catraios do grupo tinham-lhe escondido um livro que ela
queria por força reaver.
Assim que o apanhou veio para mim e, entre magnânima e provocante, como
quem insinua «faz-te falta ler isto», entregou-mo: «Toma. Empresto-te.» Era o
Trópico de Câncer, do Miller, de quem eu já tinha ouvido falar. Peguei-lhe nos
dedos quentes, sem um único anel, mas que pareciam carregados de promessas.
Sorriu-me com malícia, até que bruscamente cortou: «Não te faças parvo.»
Três, não, quatro dias depois (nem eu sonhava o que estava para acontecer em
breve), convidou-me a Mariazinha para ir às rãs na Quinta das Fontainhas. A
noite de fábula, com muitas estrelas e incandescências esparsas à flor dos milhos
altos, condizia com as modulações do desejo em nossos corpos roçando-se na
passagem do valado, com as sílabas de alegria louca que se me formavam na
boca, incapazes de sair. Contornámos a adega, os pássaros dormiam nas
pernadas das grandes nespereiras rociadas de amor jovem, toutinegras,
pintassilgos, tentilhões tão meus conhecidos, só os imensos olhos sábios de um
mocho falavam aos cães de louça do velho portão meio aluído. Os outros cães,
os que ladravam e abocanhavam os intrusos, havia que evitá-los, como ao arame
farpado.
Os cheiros misturados da terra, que a noite humedecia, e das flores por todo o
lado abertas, agora sem cor, atordoavam-me. Até ia tropeçando no espantalho
nosso amigo.
Ajoelhámo-nos por fim à beira do pequeno lago cheio de folhas mortas, de
palhas, de ervas trazidas pelo vento e onde fomos agarrando, com alguma
astúcia, não poucas rãs das mais bonitas, de dorso bem verde e barriga de um
branco prateado. Deitávamo-las para uma tupperware que havíamos trazido,
meia de água.
Porém, a dado momento, Mariazinha, deixando de se importar com elas, pôs-se a
olhar para as moitas em volta, onde, de facto, parecia retoiçar algum animal, ou
ser humano. Mas quem poderia vir ali espreitar-nos?
137
Depois, sempre inquieta, voltou para mim os olhos, que sempre me confundiam,
e disse:
«Queres-me tocar?»
«Eu? Quero.»
Estendia-me os seios redondos e duros, cujos bicos agudos, orlados de castanho-
escuro, já entrevira mais de uma vez.
«Mas é só tocar.»
«Está bem.»
«Verdade? Juras?»
«Juro.»
«Diz juro.»
«Juro.»
Avancei a mão quase a arder, premi o mamilo, acariciei-lhe, através da blusa
leve, todo o seio, até ao vale onde os pomos se repartiam e inflavam, duros,
mimosos.
Só então ela se retirou.
Apetecia-me saltar até às estrelas, em toda a minha carne se formavam palavras,
mas num idioma ainda intraduzível.
Algum tempo depois - o silêncio era agora um suave correr de água - Mariazinha
chegou-se de novo para mim, mas como se tivesse ficado triste:
«Vou dizer-te uma coisa: eu, gostar, gostar, não gosto de ninguém, sabes?, talvez
não seja capaz.»
Quis responder-lhe «Hás-de ser», mas fiquei vergonhosamente calado, sempre a
fitá-la.
Uma semana após essa noite é que aquilo aconteceu, na mesma clareira do
pinhal hoje enegrecido que, mais tarde, por casualidade?, o desespero de um
incêndio veio a consumir e que só respira espanto e desolação.
Quem não se lembra ainda da ambulância, das lanternas na mata, dos maus
modos da polícia! Nem sei como logrei chegar perto do médico, que estava
enervado, nem porque é que ele me tratou tão humanamente; talvez, ante a
evidência do meu sofrimento, me tenha julgado da família.
«Não, disseme, peremptório, é melhor não a ver. Fique com a imagem que ainda
conserva dela. Olhe, ela está muito, muito 138
mal, e mais vale que morra, no estado em que a deixaram, mais vale que morra.»
Mas eu não arredava pé e os meus olhos perguntavam intensamente: «Como?»
Então ele explicou:
«Está desfeita. Tem os seios, retalhados, em cruz, e cravaram-lhe no sexo um
pau, cheio de farpas. Quem poderá ter feito uma monstruosidade destas?! Mas
será que as monstruosidades se explicam? Ou seremos todos nós vítimas e
carrascos?» Já falava mais para si mesmo do que para mim.
A notícia mortuária, de cinco linhas, que apareceu nos jornais intitulava-se
«Crime grave». Nesse tempo não havia em Portugal nem suicídios nem
violações. Estava tudo proibido.
Não sei o que sucedeu: o grupo desfez-se, foram quase todos para outras praias,
alguns para o estrangeiro.
139
O outro
NAQUELA tarde sem fim cruzámo-nos (nenhuma viatura nos seguia) com
grandes camiões carregados de gado. Os bois mugiam tristemente, adivinhando
o matadouro. A cortiça, inútil riqueza, jazia nos campos, sob a chuva.
Mantinha-me silencioso: era melhor assim. Tinham sido, até me encontrarem,
dias de muito espaço, ricos de sol, pelo meio dos aguaceiros; até pousei as
minhas mãos nas da terra, quando aquecia. Só era pena que ele surgisse, quase
sempre, a abrir um vazio desesperado, nos momentos que me prometiam
qualquer espécie de união, de continuidade. Outras vezes pressentia-lhe o olhar
de chicotada, paralisante, em cima dos meus ombros. E alturas houve, é verdade,
em que cheguei a enfurecer-me, debalde, está claro.
Quando chegámos (havia carros parados, com a capota e o pára-brisas ainda
cobertos de gelo), foi ela própria que veio à porta.
Olhou-me concentradamente. A espessa cabeleira loira, com mechas de
castanho-esverdeado, parecia uma ave pousada naquela cabeça fina, sem
expressão.
Tentaram isolar-me, um deles sussurrou qualquer coisa de que ainda ouvi: «Aí o
tem, minha senhora. Não sei o que será melhor.»
Tinham-me avisado, vais para casa, tens sorte: não estranhei portanto ela
estender-me os braços, que a luz tornava cor-de-rosa e num dos quais tilintavam
quatro escravas. Deixei-me levar. Houve agradecimentos de parte a parte,
fizeram-se as contas da gasolina e, assim que nos deixaram sós e desamparados,
ela começou a tentar sorrir.
Ia-me mostrando, uma a uma, para eu as reconhecer («Vês, Paulo?, estás a ver?),
as coisas da casa: uma cruz de ouro pendurada na parede, os sofás forrados de
veludo banal-carmesim, a saleta nua com duas redes e um trapézio, onde não há
criança alguma; a alta estante em que os bibelôs são (quase) mais numerosos do
que os 143
livros - a gárgula de gesso comprada talvez nas «recordações» do Louvre, o
aprumado Quixote, que mede o dobro do Sancho, um dente de marfim
trabalhado, dois barros policromos da Rosa Ramalho, o busto do Lenin e, entre
tanta miuçalha, o meu retrato. O
meu, realmente? Parece que o ouço rir, nas minhas costas.
Examinei a fotografia sem mais reacção aparente do que uma atenção minuciosa,
perante o que ela prosseguiu, guiando-me até à cozinha (equipada com relativa
parcimónia) e ao quarto de cama.
Nem a boneca, sentada a meio do leito baixo e muito largo, nem a disposição das
almofadas cetinosas me eram realmente estranhas.
Aqui, se aqui, de facto, habitei, ainda ele não me aparecia, não me cortava os
gestos, não me punha estas algemas, que não se vêem.
«O que é que te apetece, Paulo?», perguntou ela, suavemente.
«Nada, justamente, nada. Mas faço, fazemos o que tu quiseres.»
«Não mudaste, então, Paulo, não mudaste ...»
«Não sei. Nem quero achar-me. Não consigo. E também não me interessa. Só
quero escolher o essencial, lutar por consegui-lo.
E libertar-me. É isso: libertar-me. Se soubesses...»
Reconheço talvez esta atónita interrogação, mais do que os seios muito
separados, que nenhum soutien parece segurar.
«Queres comer? Sei que não almoçaste. Tenho pouca coisa, mas.»
«Pode ser.»
Ancorar? Tenho ideia de já ter feito a mim mesmo esta pergunta. Ouço o mar
que de manhã deixei, com os seus cavalos de espuma, a sua saliva que chegava
até ao paredão rochoso. Ter-me-ia atirado às ondas, apesar do frio, só para sentir
ainda o gosto da vida viva, se ele não se interpusesse. A minha cópula com a
água.
Frustrada. Procurar de novo. Tenho de apontar na agenda: as ondas molham o
tecto da curta estação que vivi e nele deixam marcas de ferrugem; as cinzas que
o meio-dia sopra, o pólen das flores do Sul. Vi ontem as raposas de focinho
risonho. Tão risonho.
Desapareceu finalmente (e não voltará?) aquele rosto zangado, que se assemelha
ao meu, como o de um parente, e não me larga, sempre atrás de mim. Os fósseis
na praia; o ovo de cristal do ilusionista. Continuar a procurar. Dominar o medo
de descobrir 144
outra dimensão. Avançar. O presente, o futuro e o orvalho dos sonhos.
Rodeia-me com os braços, sinto um conhecimento de mim nestas mãos, nestas
rugas finas e belas, longe ainda da velhice.
Há como que sangue meu neste corpo quente onde posso evadir-me.
Pela janela avisto um pátio, que serve de garagem. Creio que tenho algures um
carro e sei guiar. Posso levá-la comigo, agora ou depois, quando recomeçar a
ouvir o canto que me chama, quando a verdadeira violência lentamente,
insidiosamente, aqui se instaurar e tornar impossível permanecer nesta casa.
Lembro-me de alguns livros. De os ter lido e até da cor vermelha da lombada. E
da prateleira de vidro, cheia de frascos (espuma de barbear, álcool, after shave,
champô seco) que os meus dedos percorrem, sob o espelho do quarto de banho.
Ela traz da cozinha um prato com uma omelete e fiambre e uma garrafa de vinho
tinto. «Vou buscar o pão. Queres também queijo, Paulo? Não tenho mais nada.»
«Pode ser.»
Timidamente, toca-me na cara. O sol de inverno, que a janela agora deixa entrar,
ilumina as duas misteriosas máscaras rongas, testemunhas do nosso embaraço.
Catalogaram-me «não perigoso», ela deve sabê-lo.
Vou para beijá-la, mas devo, na precipitação, ter-lhe magoado um ombro, porque
geme e desse jeito se me furta, embora logo tome ao meu abraço, deixando
pender a cabeça, pássaro triste, sobre o meu peito.
Tento, de repente, não sei como, sorver-lhe todo o sumo de que tem a boca cheia.
Interrompe-me a sensação de que alguém me espia. Mas vou recomeçar.
Diz-me, sorrindo: «Depois.»
Não se deve adiar.
Sento-me, mantendo-a enlaçada com um braço (o seu corpo vibra, ou de desejo
ou de receio) e puxo para mim o prato. É quando ouço a campainha da porta (são
duas horas, a minha hora, no relógio de parede, ao lado do morto cravo negro).
Ergo-me, hesito, «Merda de campainha!», vejo o espanto no rosto dela, «Não
ouvi 145
nada», abro o postigo da porta, onde ressoou agora uma pancada teimosa.
Nenhuma face do lado de lá: apenas uma gabardine clara e suja, como a minha,
encostada à ombreira; o indivíduo deve ser alto e forte, tal como eu.
«Abre. Abre lá», diz uma voz baixa, num tom familiar, que me exaspera, tanto
mais que não a conheço. Ou conheço? «Abre lá, sou eu.»
«Eu quem?»
«Eu! Eu!»
«Parto-lhe os cornos. Eu mato este gajo.» Apetece-me rachar-lhe a cabeça,
destruí-lo. Continua a perseguir-me.
De súbito, recordo-me: na gaveta de baixo do móvel negro com fechaduras
douradas está aquela pistola espanhola que nos bons tempos comprei, em pleno
Rossio, a um impudente cigano.
«Mas que fazes tu?, o que é que tens?», diz ela, o pânico na face. Não consegue,
porém, travar-me. Vem ainda arrastada, agarrada ao meu braço, enfim acaba por
largar-me.
Abro então a porta. Lutamos corpo a corpo, ele e eu, até que, apesar do
emaranhado dos nossos membros, consigo disparar.
Ela precipita-se: caído sobre um braço, a têmpora rebentada, em sangue e
solidão Paulo agoniza. Mas diz ainda: «Liquidei-o.»
Não há mais ninguém, rigorosamente mais ninguém, no patamar nem na escada.
146
A senhora praia
USA fato de banho inteiro e faz tricô, com evidente aplicação.
Cumprimenta muito bem toda a gente, das barracas e dos toldos vizinhos, mas
não se liga; se conversa um pouco, cansa-se logo, ficam-lhe os olhos distraídos.
Às vezes carrega para a areia algum romance de grande formato. Desconfio,
porém, de que lê, à sorrelfa, a Crónica Feminina. Não tenho certeza alguma. As
escassas informações a seu respeito vêm-me da Magda, que ma apresenta como
a mais banal das criaturas deste mundo.
Invento o seu viver familiar: um marido já a ficar calvo e obeso aos trinta e cinco
anos, horas e praxes para tudo, o respeito à antiga portuguesa (a Revolução não
passou lá por casa). Os meninos são bonitos, ele e ela, costumam andar pela
beira de água com a criadita fardada correndo atrás ou a lançar-lhes ao ar, até
com certa perícia, a águia de papel que deslumbra os putos daquela zona da
praia.
Dorme imenso: para não viver reduz o dia a nove horas; mas não creio que sofra.
Talvez se enfastie. É muito digna, muito senhora em todos os seus gestos. Não se
expõe demasiado ao sol, ou por ser alérgica ou para preservar a finura da pele,
que para o meu gosto é excessivamente branca, desnatada. Se alguma vez chora,
imagino-a a chorar lágrimas frias, decorosas.
Em casa -estou a vê-la- «estafa-se» a orientar e mesmo a ensinar a empregada (a
admoestá-la também?). Prendas de outrora.
Os seus dias penduram-se da televisão, logo que o mágico écran se acende, pela
tardinha; e quando o senhor seu esposo entra na sala com todos os triunfos, ou
raivinhas, da sua jornada poderosa, ela dá-lhe a face e a testa, a boca, se ele
insiste (nunca, por sua iniciativa, o beija), e, amavelmente, fecha os ouvidos
atenciosos às cabalas e ao veneno de rotina que ele despeja. Que fará, no grande
mundo das emulações e dos altos ordenados, este homem bem 149
senhor do seu nariz, por sinal um tanto porcino? A Magda, agora me lembro,
falou-me em director-geral. De quê exactamente?
Engenheiro, sei que ele o é.
De manhã, a senhora bonita da praia, que se levanta às vezes tarde, excepto
quando vai à missa (aos domingos nunca falha), olha-se lentamente ao espelho,
como a uma árvore que teve de dar fruto. É com serena melancolia, quase triste,
que inspecciona sempre as rugas secretas do ventre, as marcas dos seus dois
partos gloriosos.
Quando almoça na praia com os pequenos, escolhe as ameixas e os pêssegos,
prepara ela própria as sanduíches e as empadinhas - é muito esmerada nessas
coisas-e embrulha-as uma a uma em papel de prata; os bolos e os refrescos,
compra-os in loco, os vendedores já a conhecem como boa freguesa e passam
sempre por lá, pode ser que goste.
Foi num desses dias que aconteceu. Perto das duas horas, na altura em que o
areal fica quase vazio, doido de luz, tão ardente que esburaca as solas dos pés. O
calor estava no seu lugar quando o rapaz se encostou ao pau de um toldo e
principiou a olhar para ela, sem provocação, apenas muito fixamente, como
quem não consegue retirar a vista de um objecto ou de alguém.
Soube de tudo isto pela Magda, porque o rapaz é amigo, ou conhecido, do
marido dela. E, estouvadamente, criminosamente, contou-lhe. A Magda não tem
opinião sobre o caso. Não percebe.
Diz que não dá uma coisa com a outra. E contudo...
Decorreram uns segundos, compridíssimos -os catraios e a sua aia tinham ido
pescar, com os camaroeiros, só o pequeno deixara o tridente, esquecido-; a
senhora, que de início furtara a cara àquela insistência, começou a corresponder
ao olhar, num misto de surpresa, de interrogação e de espera.
Então o rapaz, indiferente aos muito raros banhistas (não havia praticamente
ninguém nas imediações), avançou, pegou-lhe na mão, a senhora levantou-se
simplesmente -nem uma única palavra, de um ou do outro-, ele baixou a parte da
frente da barraca, e lá dentro permaneceram muito tempo fazendo amor,
esquecidos das pessoas, da má-língua, dos perigos que corriam.
150
Só posso imaginar o fogo e o vento naquele ventre, os olhos da senhora muito
abertos, com lágrimas secas, no limite do viver.
Mais não sei, porque o rapaz nem era afinal muito subtil, nem capaz de
verbalizar.
No dia seguinte, a senhora voltou serenamente à praia, com os meninos e a
criadita, com as suas empadas, os ovos cozidos, o bom queijo da Serra
desperdiçado em sanduíches que a grande calma daquela hora sempre endurecia.
E nada, afora aquilo, aconteceu. Que conste.
151
Ofício de sombras
I
O CALOR E O FRIO
CREIO que não poderei viver muito tempo com tantos analgésicos como os que
tomo todas as noites. Deixar de sofrer pode ser um alívio. Mas ainda hoje, ao
descer a Avenida, senti vivamente, apesar de algumas dores, esta maravilhosa
realidade: respirar, olhar, tocar nas pessoas e nas coisas, extasiar-me com a vida.
Que maravilhoso espaço é o mundo!
Tenho este ano acompanhado a Primavera nas árvores rebento a rebento, folha a
folha. E agora que ela está enfim azul e quieta e desabrochada e as noites
cheiram à água que o chão bebeu ou que no ar se condensa, penso na beleza e na
tristeza de me ir embora. Sei, de secreta certeza, que é para breve. Acabarei
sequer de encher este caderno de notas?, terminarei o relatório que esperam de
mim no Instituto e que me rouba uns preciosos farrapos de vida?
Mas teimar, lutar, nem que seja num relatório, contra um relatório, é afastar o
fim.
Dia de já meia Primavera, quase Verão, com um vento cheio de sol, tudo branco,
o ar, as casas, os longes. Cruzei-me com um rosto que me lembrou a prisão, a
tortura, os pesadelos, as visitas de minha mãe. E os dias que se seguiram à minha
saída. A capacidade que eu então tinha de sofrer e de ser também intensamente
feliz. Vou-me distanciando das coisas. Não consigo hoje 155
aspirar completamente a beleza deste dia, o que nele há a renascer.
Luto, mas sinto-me como um retrato. Estou cansado de fingir a vida.
Dia sim ainda vivo, dia não já meio morto.
Porque terei estrangulado aquelas aves ainda quase implumes?
Por sadismo angélico? Olho os meus retratos desse tempo: um arcanjo quieto,
cheio de caracóis, as feições muito suaves, particularmente a boca, o queixo
frágil, mas o olhar sombrio, inquietantemente sombrio.
Porquê? Por excesso de ternura?, por necessidade de um contacto físico
profundo? Duvido dos excessos do pansexualismo freudiano, mas não dessa
carência de amor (remotamente sexuada, é claro) das crianças e dos
adolescentes, capaz de dar a morte, por equívoco.
Há na minha infância dias de há muito tapados com o negro de um opróbrio.
Alongo garras aflitas (que queria eu então tocar?) até aos longes do NÃO com
que me protejo. Sei parte da cena. Ou contaram-ma?
Buscar, sem êxito, a porta do entendimento absoluto: a sina destes dias. O rosto
escondido no pescoço dela, furtando-lhe os olhos. Evitando, precisamente no
acto de amor, quando acontece, dar-lhe, de tão perto, o olhar, onde a
transparência já não é possível.
Simulo, mas penso que às vezes se percebe. Em plena noite caminho, coberto de
sol, entre altas tílias e igrejas negras, roídas pelas balas e pelo fogo. Sinto o
saibro debaixo dos pés. A água podre acompanha-me. Caras loiras, estranhas,
interrogam-me sem palavras. Todos os fracassos antigos me pesam nos ombros,
me doem no peito, movem-se na ausência do mim que sorri com rugas selectas
ao canto dos olhos. Neste abandono, nesta espera, neste vazio...
156
Entre a vontade de chorar e a de rir. Como se tivesse dezoito anos e a vida fosse
a mais fantástica das festas, na qual se acorda de repente para ver tudo lívido.
Com as mãos presas nas minhas te beijo até ao delírio. Solto-te depois e com
uma infinita ternura te penetro, os olhos no espelho dos teus, grudados que
estamos um ao outro por esta exaltação, por esta suavidade ondulante do
momento infinito.
E contudo, às vezes só me venho - coisa absurda e revoltante, mas é assim
contigo-quando penso noutra, na que tem a boca violenta, os pêlos que tu não
tens, a palavra obscena, a que se parece no verde-água dos olhos, e na pele como
encardida, com a mulher da esfrega daqueles anos tão longe.
Abril chuvoso e Maio ventoso fazem o ano formoso. Apetece chorar, mas
desaprendi esse exutório.
Há quanto tempo assim, sempre a partir e a chegar. A fugir.
Dos lugares e das pessoas. E agora à espera. Arrastando as tardes por
consultórios, por laboratórios, por policlínicas. Farto de esperar.
Triste, uma tristeza sem fim. Dói-me fisicamente o coração.
Cada manhã me traz o nascer do teu sorriso. Danças na relva e nas tábuas cor-
de-rosa dos sons de Mozart. Uma pequena ferida no vértice do meu coração vem
dizer-me que já não estás comigo.
Mas o sol entra pela janela, quando a abro, e na sua festa e nos cravos e nas rosas
ao canto da rua reencontro-te, minha dor, minha alegria. Beijo os teus olhos
meus olhos, beijo-te a boca e os dentes, está perto agora o infinito e estendo-te as
mãos através do espaço e do tempo. Sim, falo-te quando estou só no meio das
pessoas e às vezes creio que a eternidade existe ao longo da tua pele, no fundo
do teu ventre e na tristeza musical daquela chuva. Não consigo querer-te menos
e deste excesso aí tens o sangue, a minha voz.
A minha voz doente.
157
Aqui houve uma revolução. Nestas ruas de putas e de travestis, de gente que
tudo vende, desde o relógio até à alma, desfilaram operários gritando, com
bandeiras vermelhas. Onde hoje é o vazio, a presença angustiada da noite,
ressoaram milhares de vozes: das chagas do fascismo formou-se a louca espuma
da festa.
Serão duas da matina: jovens de tronco listrado rolam os contentores do lixo e
colocam-nos no camião, que lhes sorve todo o entulho. O velho maluco já chega
tarde para a sua devassa dos sobejos.
Não durmo. Encharco-me em remédios para vencer as dores.
Penso, com desalento, no fim talvez próximo desta civilização, que é a minha.
Está a acabar-se o petróleo, um dia será a vez da água, pensa-se em extrair álcool
da cana-de-açúcar, para substituir os carburantes. Destrói-se a terra, ganha-se
dinheiro. Mais dinheiro.
Muito dinheiro. Constroem-se monstros arquitectónicos, para fazer dinheiro, nos
últimos espaços verdes. O capitalismo selvagem é, na verdade, hediondo. Às
vezes pergunto-me se mesmo a planificação socialista, à escala do globo,
poderia, poderá ainda salvá-lo.
A população cresce a um ritmo apocalíptico. No ano 2000 haverá mais fome,
mais ignorância, e detritos nucleares por todo o lado, muitos deles soterrados
mas igualmente daninhos. Isto se os Reagans e outros quejandos não tiverem
feito deflagrar a guerra nuclear.
Os egoístas, que governam o mundo, querem fazer dólares, ou marcos, ou
francos, ou escudos, o mais depressa possível. O que vier a seguir pouco lhes
importa. «Depois de mim o dilúvio.» Pelo que me toca, aflige-me a grande
catástrofe universal, sabendo embora que muito provavelmente já cá não estarei.
Diz-me visceralmente respeito a continuidade deste mundo pelo qual lutei, e
sofri, e continuo a lutar, à escala irrisória do meu país, das suas prisões, da sua
oratória, do seu imaginário.
158
Cães selvagens devoravam grandes tassalhos de carne. Sobre o campo, sobre as
jaulas - ao que chegámos! -, esvoaçavam-se as aves-liras do Mandiargues,
buscando o quê?
Concerto de desejos alados, um alaúde oculto a fazer os acordes da tristeza, do
presságio, da certeza que me oprime.
159
II
O AMOR POSSÍVEL
E assim se vai cumprir o pequeno fatum. Desmoronou-se o castelo de
promessas, é o outro eu que avança, jovem e lesto, pela rua calcinada de sol, ao
teu encontro, enquanto em mim o tempo pesado amadurece, apodrece.
O drugstore é o contrário do meu fortim de silêncio. Lá chegas, os olhos fundos
de exaspero, teus pómulos salientes, o movimento vermelho dos lábios a
chamar-me.
Por um momento parece tudo novo, embora saibamos, quase de cor, o que é
preciso dizer para convencer e até consigamos ser sinceros ao repetirmo-nos.
Mas tu?, mãe moça, amor a crescer, inimiga da regra, toda doirada dos teus
banhos nus, sabes mesmo que está a passar entre nós o impreterível, o
inultrapassável, e que de certeza o perdemos se não lhe deitarmos agora a mão?!
Sei bem o que não me concerne. Nada já me pode ser duradoiro, embora te beba
o sorriso, o suor, a saliva, e te morda o ombro e te descubra o sabor do sexo. Será
que ainda crês que a vida inteira se concentra como o sol na concha da tua mão?!
Dizer-te este pântano de ternura, rasgar o ventre e mostrar-to?
Nas raízes do vazio que sentimento pode nascer, partilhar-se?
Que transferências fantasmáticas entre nós?, que investimento edipiano?
160
O certa é acontecer dissolvermo-nos um no outro, percorrer-te as veias, as
sombras, a ambiguidade do sorriso.
Nas bermas do sol há uma espera, instantes tumultuosos, Setembro a chegar com
as suas altas marés.
Corro. Choveu brutalmente. Vou saltando riachos de água torpe, leitosa, que se
formam perto das sarjetas entupidas. Sinto-me curvo, cambaleio. A rua abre-se
em fosso, em cujo fundo há montículos de pedras roladas e uma estranha luz
azul-cinza. Preparo o salto, lanço-me, mas o fosso entretanto alargou-se,
aprofundou-se, desapareceu a luz azulada, tenho agora debaixo de mim a noite
invertida, um glaciar negro onde vou decerto despedaçar-me.
Sabe-me a boca a morte. Engulo três comprimidos com um copo de água. É
provável que os vomite. Será amanhã que vou cumprir essas tarefas rituais:
rasgar retratos, queimar papéis, fazer um testamento?
Olho-me ao espelho de ti.
A dificuldade das palavras. A dificuldade do próprio silêncio.
O desejo de colocar os meus lábios na tua sombra, na tua pele.
Não calculas como arde esta queimadura, esta saudade. Movo-me num labirinto,
falo uma língua envenenada.
Os dias agora são gelados, apesar do calor lá de fora. E opacos.
Por detrás das frases que não ouso, vibra um leve rumor de asas.
Um passado ainda tão próximo: só luz e ruínas.
Atravesso o tempo e o (quase) desespero. Esbarro na aridez de um espaço em
que estou só.
A morte a bater-me à porta, com aviso de recepção (dá um prazo, mas sem data
certa), e logo toca o telefone. Vou ao teu encontro, sem esquecer,
completamente, nem Beirute, o grande horror consentido, nem esta pequena
morte suspensa.
161
Tens uma saia espanhola que te faz a cintura ainda mais fina.
Os mamilos quase negros. Ambos amamos tanto a palavra» tu ainda mais» que
já nem sei quando» onde, estás comigo» eu em ti» ou ambos deslizando nela»
verbalizando o puro desejo - de ser.
O mar azul-pálido, com pequenos bancos de areia, aos pés da montanha, onde
está incrustada uma fábrica de cimento. Nado, até gastar as forças, paralelamente
a uma barcaça vermelho-ferrugem. Subo de novo ao terraço: a ilha, o rio, o
oceano; começou a escurecer, a água tornou-se cor de topázio. A morte ficou
longe.
Só assim, completamente só, consigo escrever. Canso-me, de propósito. Mas a
nostalgia vence o furor da escrita, o pensamento coisifica-se no papel. Apenas
patas de centopeia, merda. Bebemos vinho de Borba, beijo-te os olhos, os seios,
as pernas tristes e longas.
Apalpo o esqueleto que envelhece, neste jogo, nesta distância de ti.
Se as palavras ao menos fossem minhas e não de toda a gente. Ou então,
realmente, de todos, porque também o não são. A palavra: esta herança, este
teatro, esta fraude.
Volto amanha ao alto, cenográfico pinhal que é como uma sala a introduzir-nos
na povoação. É preciso mascarar a morte.
Com uma muleta de veludo. Como o olhar intrigado e o sorriso da moça que me
atendeu no silêncio e no espanto daquele café-restaurante.
O calor envolve-nos agora por todos os lados. Dói devagar.
Forma-se a esta hora a breve coluna de luz. Ponho os óculos, para não cegar.
Ainda há buganvílias, campainhas, o verde da hera, cores que o sol não devorou.
Mas chega o vento -tão depressa -
com cornos de cinza e areia, tudo se tolda. Parece que vai chover sangue.
162
Um homem de cal coça-se, raspa sensações, memórias, medos, risos, tudo se
desfaz no chão, vai-se-lhe a pele, ele próprio se dissipa, mas já não fica em
chaga: habituou-se; entre a carne e 0
grito, este meu estado. À espera.
Trinta e oito graus à sombra. A palma das mãos quase fica colada ao volante do
carro. Sobre rodas, corro. Em Beirute as bombas, a infâmia, o novo nazismo à
solta, com a cumplicidade americana. A rádio informa: os guerrilheiros resistem,
metro a metro (quem pode negociar com o crime?, e o mundo, quase impassível,
assiste); já os sionistas tomaram o aeroporto internacional, a fronteira é agora o
esqueleto do Museu; desmoronam-se edifícios; nos escombros crescem mãos
perdidas, corpos esfacelados são levados em macas, ou em embrulhos; e nascem
crianças em meio dos cadáveres, cada qual se pergunta «quando»? Nas estradas,
aqui, as camionetas morosas, os ciclistas das férias. Ultrapassar para quê?
Aquela crista de rochas brancas no alto da montanha, revestida tão-só de
arbustos, é apenas uma série ininterrupta de grandes cães de caça, os guerreiros
que ficaram. Tenho de abrandar ainda mais e pegas-me na mão como para fazer
sair o carro da estrada, porque não?, que sentido tem afinal isto tudo?
Mas tem: os cativos imploram água, isto é, futuro. Há que teimar mesmo se os
teus braços me rodeiam o pescoço, à beira da curva mais delirante, e a vertigem
me sobe da planta dos pés até à nuca.
O tigre-sol rasga os panos do meio-dia. Vai subir ainda a temperatura. Bichos de
água escorrem-nos pelo ventre, pelas costas.
163
Da brisa da manhã já nada resta. Só este sopro grosso e quente.
Esperanças mortas, um hálito de idades impuras.
Cada dia espero o fim desta relação exaltante e insustentável.
As palavras servem também para ferir. E, mesmo assim, vale a pena. O sopro
leve da ternura sobre o teu corpo nu, os espaços da vertigem. Palavras que não
chegam a dizer-se, que se perdem no corredor do espanto.
E a tristeza vai coagulando, na zona escura do semidito, do não-dito.
Quando me sentes em ti até ao fundo e os teus seios enrijam, os pêlos das tuas
coxas se arrepiam, então, sim, sei que não jogamos, não nos mistificamos, não
há já entre nós máscara alguma, o amor não passa pela palavra, pelos seus
círculos, pelos seus brilhos: está no suor dos nossos corpos unidos, nos
estremecimentos e nas chamas do teu rosto selvagem.
A limpidez? Mas existe? E o que são exactamente os instantes que chamamos de
eternidade? Mesmo quando quero beijar-te por dentro, os teus olhos por dentro,
o teu peito por dentro, o que é que entre nós está ainda puro de literatura,
espontâneo? virgem?
Ou a literatura acha-se por detrás de tudo?, no nascer e no crescer dos nossos
menos contaminados gestos e sons?
As aves do país azul deixaram de cantar, os termómetros sobem, falta a água, as
pessoas não se lavam, exasperam-se; os troncos nus dos trabalhadores, nos
caboucos das construções, escorrem um suor forte de pobreza e sol; o mais velho
tem um lenço amarrado na cabeça. E eu a rasar o fundo da tristeza, ou do
desespero? Não devia, é certo, falar sequer em dor, quando em Beirute as
crianças morrem esmagadas. Mas os fantasmas não me largam. Só tenho uma
forma de lutar: o sono. As ondas de som, na cidade, são altas, altas, e eu
singrando, a meio casco, 164
entre rumores de alma suja. Algures, no fundo de mim, aquela ameaça sem nome
pesa, pende, a prumo, de umas garras azuis.
Despedime da ilha do meio do rio. Um helicóptero passa quase a rasar as águas.
Nem um sopro de vento. É este o paraíso que não há. As flores lentas
desabrocham na manhã de esponsais. Está ainda mais transparente a superfície
líquida onde a floresta mergulha; já quase não existe divisória entre as
montanhas e o rio.
Despeço-me também dos pombos, dos olhos tão castanhos dos cachorros. E das
pimenteiras, do salgueiro solitário, da paciência das raízes, da terra gretada. Da
luz, sobretudo. Creio que é a última vez. Nunca mais, por certo, voltarei.
As árvores dançam na rua húmida e quente. As folhas, em poucas horas,
cresceram desmesuradamente. Curvam-se sobre os carros estacionados; e
descubro-lhes então as unhas, as pequenas garras que sempre me haviam
dissimulado.
Encostada ao silêncio, aqui, costumavas escutar a respiração da chuva. Estou
contigo, de novo, neste vento morno. Doía-te, eu sei, a clandestinidade da nossa
ternura. E o tempo entre nós. Daí também a exaltação, o delírio.
Espero outro ritual no fundo mais secreto do Estio. Sim, todo o amor é
construção. Assim foi, assim será.
Aguardar a morte? Claro, mas não em casa, não na cama, não diante da
televisão, não em frente do relógio. Esperá-la em acção, sabendo que virá, e que
não tarda, mas sem lhe dar excessiva 165
importância. Vivendo ainda, trabalhando, lutando, apenas com um peso na
agenda da memória, alguma coisa desagradável me vai de certeza acontecer, ou
talvez depois, ainda depois, veremos.
Ouço nas minhas veias o latir do sangue. De um sangue que se mantém quente,
mesmo agora.
O rumor da carne alastra por todo aquele campo onde as serpentes rastejam,
bebem a água dos esgotos, anunciam o grito.
Mas não são serpentes, afinal: são talvez sáurios, e ferozes. Tentam devorar-se
uns aos outros e, às vezes, conseguem-no. Quando se erguem, verifico que têm
membros semelhantes aos dos humanos, embora as mãos e os pés sejam
alagartados. A pele escamosa, coisa que me espanta, não é verde: é
esbranquiçada, ou rósea.
Do amontoado daqueles estranhos seres destaca-se uma fêmea que acaricia o
filho, lambendo-o, com mil cuidados.
166
A CÂMARA ESCURA
Aqui vou morrer, só, com dignidade, neste quarto todo branco, onde apenas é
vermelha a luz de pedir socorro. Os braços da enfermeira mergulham na fria
água azul por entre os limos antigos do lavatório. Louça rachada, com manchas
cor de cano, que o biombo esconde. Vai e vem, eficiente, olhos azuis quase
cruéis, de indiferentes, umas ancas de granito que parecem nuas debaixo da bata.
De noite há sempre quem me guarde, não sei porquê, alguém de fora que nas
longas horas muda de rosto. A palavra, o sangue, a lua liquefeita escorrem pelo
chão. Tento limpar, mas não me deixam. Quero levantar-me, quero sair,
sobretudo quando o vento sopra e me bate na cara, quando a cama se transforma
em mesa anatómica e dos cantos do quarto surgem os bichos gelatinosos, que,
num mudo entendimento, avançam para aqui, com os seus chicotes de luz. A
poeira da agonia, à volta. Os meus ossos. As veias que engrossam.
Venham, venham depressa dar-me a injecção que me tira as dores e abrevia isto.
Toda a vida procurei uma autenticidade, com tanta teimosia que acabei por ficar
agarrado às máscaras das minhas tentativas. E ainda agora esgravato nesta face
seca, emagrecida. Querem saber o que sou?, o que fiz?, o que tenho andado
sempre a esconder de mim? Autenticidade?!, que autenticidade?...
Acredito, sim, nalgumas coisas, podes crer, nos princípios da Grande Revolução
- e nem esta dor tremenda lhes retira a grandeza. Acredito, acreditei também,
tenho de acreditar, na amizade, no amor, na matéria da palavra, na pureza do pão
repartido.
167
Confundi palavras e coisas, amassei-as na mesma carne, na mesma escrita.
Agora sou isto: o escurecer, a dor, a degradação (ainda não a serenidade). E, em
breve, serei pus, esterco, mau cheiro. Só que demora. É pena, realmente, não
acreditar em milagres.
Tens vindo às quintas-feiras, menina de asas leves, perguntar como estou (estou
infinitamente só e horroroso); até já entraste no meu quarto, «com as melhores
maneiras». Ah! Mário, Mário...
Lembro-me às vezes de ti: eu não durmo, mas tudo o mais acabou.
Só resta, provavelmente até ao fim, por capricho da natureza, um desejo
inextinguível, duro e doloroso, que já só pode ter por objecto miragens, figuras
de entressonho.
Não me permitem que leia, nem mesmo nos momentos mais claros. Aliás,
deixava cair os livros: poeiras de agonia toldam-me o olhar. Por dentro da minha
testa há gritos. Eu sabia, sempre soube que havia de ser assim: a cabeça quase a
estoirar, um bicho a roer, vermelho, dentro da órbita, e, ao longe, lagos de
estrelas, ardendo.
Quando os sinos repicam, começo a lembrar, glórias e humilhações. As rotativas,
as aulas, o mármore onde pagino, tabernas do Bairro Alto, a sala azul, as visitas,
os sorrisos esconsos, a chegada do Delgado, a multidão enfim musculosa e
rebelde, a língua nova que se fala. Mas a noite desce - e agora é o tempo das
prisões.
Vomito efectivamente ou imagino que vomito? Os meus pensamentos são um
bazar de cores corrosivas; vou-lhes largando as rédeas pouco a pouco: palavras,
imagens, lapsos, pedaços de gangrena galopam à solta, sobrenadam, voam;
sinais abstractos colam-se (parecem moscas de consumo) às paredes do meu
dentro, onde há -cada vez mais turvas-coisas múltiplas uivantes.
Talvez não saibam que corri, naquele Outono, os campos e as terras do Alentejo,
esperavam-nos à boca das vilas, falávamos com as pessoas, grandes olhos se
abriam, expropriar os latifúndios?!, igualdade de salários para o homem e para a
mulher?!, é excitante e ao mesmo tempo reconforta, às vezes faz doer, estamos a
ir longe, longe, certos rostos antigos ainda não entendem, faltam para Abril mais
de cinco anos; para mim é salutar estar aqui, reencontrar a origem, as raízes, o
canto subterrâneo; descubro, neste descobrir 168
de experiência, que os problemas da Checoslováquia lá é que se resolvem e os
de Portugal aqui.
Pouca coisa é um homem (e é tanto!); dependo agora de quem me sustém de pé
quando me ergo e não tarda, talvez, que necessite de arrastadeira, pouca coisa é
um homem, triste coisa, uma vergonha, mas lá fora sopra a vida, sopra a beleza
de ser e de lutar, tudo continua sem mim; espelhos de nada contemplam os pares
que se unem, os homens que se combatem; e há quem persiga, na treva mais
espessa, o filão da verdade, mesmo que ela não exista - e é preciso que assim
seja, é preciso.
A ternura do azul entre o silêncio e o aviso das esquilas, a imensa neutralidade
da natureza, a lava dos meus sonhos - e destas dores-a dissolver-se, a esfriar, no
vermelho do rio. As bolhas da água amiga, da noite vencida. Mais uma. Que eu
já não sei bem onde acaba o dia, onde acaba a noite. São rochas num pragal de
rochas sob o voo das abetardas. Onde fui tão feliz. Sim, a felicidade existe:
basta-me olhar aquela massa homogénea de azinheiras, de grandes pedras e tufos
de piorno, os abibes bebendo na margem do sonho, os arcos da ponte entre ocre
e tijolo, o veludo leve da luz.
Nada torna tal como era: os ângulos de cristal das árvores da infância são mais
lúcidos no hoje desolado, mentirosos ou não.
É na pálpebra (ou dentro) que a dor perfura, rói. Vem, amor, vem modelar-me o
rosto com a tua voz louca; ouço-te a respiração agressiva; toco-te os seios
pequenos, prendo-te com as mãos, lambo-te as feridas, tens a face e os dedos
frios, abrem-se-te os lábios e respondem à lividez do meu beijo: dás-me ardor,
comunico-te morte.
Dancei no baile dos demónios, não acreditas?, as fêmeas abraçavam-me com
pinças e tentáculos; depois penetrei no vazio de um corredor onde se sucedem,
de ambos os lados, inúmeras portas, todas fechadas, e em muitas delas vejo uma
máscara pendurada, sempre a mesma, de olhos protuberantes, cilíndricos, a boca
entreaberta, com a língua de fora. J'étais écrivain à Tépoque, je tressais des
colliers avec les mots, je voulais monter au sommet d'une haute montagne bleue,
vous me suivez?, c'était pénible, il m,arrivait de marcher à quatre pattes pour ne
pas glisser et tomber 169
dans le gouffre, lá ou végètent les êtres masques, soumis à leurs mythes
Já pensei muito nisto: não quero que me vejam morrer, a solidão deixou de me
assustar. Nem te reconheço, tu que aí estás e não falas, tu que me impedes de sair
da câmara escura onde me debato, tu que me seguras os braços debilitados e
aguentas, sem um queixume, sem um apelo lá para fora, todo o meu peso de
gigante. Neste instante dou-me conta de que vocês se revezam - sempre tinha
mais amigos do que supunha - à beira desta cama quase esquife.
Não tarda que chegue ao «grande talvez». Proibi cerimónias religiosas, quero ser
coerente com a minha vida e até com estas dores, que imagino, que desejo, já
prestes a cessarem. Pede lá que me venham dar mais uma injecção. Se me
julgarem, não será por isto.
Afasta-te de mim, sinistra erosão, que me levas bocados de carne e de vontade e
me acrescentas o escuro das aranhas, dos minúsculos insectos, das manchas que
tenho na vista e na polpa dos dedos. Às vezes ouço-os, julgam que deliro,
quando rememoro, não sabem no que fantasio, em que horrores, em que vitórias,
se até cavalgo o futuro. São imagens a mais, pensamentos ensarilhados, um
turbilhão, do céu do quarto caem sobre mim pequenas pedras, depois pedras
enormes. Não esmagam, mas acabam de me desfigurar. Levem daqui, por favor,
o espelho que ainda sobra, espelhos são aberrações, faces dementes. Carreguem-
no daqui para fora, antes que se multiplique.
Espero-te. Chamas-te fim, sono, dúvida, vazio. Nada mais serei, nada mais
saberei, sequer se há no universo outro planeta habitado e por quem. Estou
cansado, às vezes com raiva, ou com pena, quando não deliro, eu sei que deliro,
mas também fico sereno e todo iluminado 1 Era então escritor, entrançava
colares com as palavras, queria subir ao topo de uma alta montanha azul,
consegue acompanhar-me?, era penoso, às vezes tinha de andar de gatas para
não escorregar e cair no abismo, onde vegetam os seres mascarados, submissos
aos seus mitos.
170
por dentro, olhando os destroços que flutuam no infinito, na memória. Estou à
espera, tocam muito longe os sinos e os órgãos, as cores começam a desfazer-se,
a degradar-se, a plástica das coisas transforma-se, e não permanecem mudas,
embora eu não lhes entenda a língua. É como se falassem por mim. É como se eu
estivesse também nelas, antes e depois. Continuo à espera.
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amargor dia festa
(À memória de Jacinto do Prado Coelho)
«[...] tout le sei de la terre tressaille
dans les songes.»
Saint John Persa
ACONTECEU?
As imagens desordenam-se entre pedras de tempo amontoadas, igrejas coloniais,
arcos barrocos e o dorso luzidio do mar, as grandes avenidas e a multidão
mestiça, a carícia solar, tropical no Malecón, os gritos, a chama da esperança
acendendo a noite, a central açucareira, a serra, certas flores devorando pequenos
insectos, os grandes frutos amarelos e o cansaço feliz de tanto andar e aprender.
Aqueles dias colectivos.
Toda a memória se tornou já invenção, sopro incerto nos lábios da nostalgia e da
mágoa. O que voltou aqui para trás contamina (mas exalta também) o mármore e
o vermelho dessa laguna de sons, de palavras meio esquecidas onde me busco e
busco um olhar.
Não estou certo se nos conhecemos naquele casarão onde nos sentíamos tão
pequenos, onde cada legenda fala de dádiva e heroísmo, se foi na fábrica de
açúcar ou na praça da voz imensa, repleta de bandeiras e de retratos gigantescos.
Sei que era a hora do sal e da sombra quando acendemos as fogueiras na praia,
para a velada da amizade. Havia gente de todos os mundos, desde os artistas
plásticos e os músicos aos conspiradores de vida inteira, aos professores, aos
estudantes, vindos da Finlândia ou do Uruguai ou das suas terras de exílio,
carregando sacolas e sonhos. Entreviam-se celebridades, que passavam pelos
grupos, mas não se detinham, o realizador, o pintor argentino, o preso político
saído da prisão.
Andei de rancho em rancho, guiado pela ânsia de conhecer, e entrei no mar
ensaboado onde se despenhavam os coqueiros da encosta; creio que vi peixes
voadores enquanto nadava, para longe; e formas nuas dançavam de certeza em
cada onda.
175
Tiritava, mas acudiram-me logo com uma toalha e sentei-me ao pé de uma das
fogueiras entre uma negra muito bela e o casal que eles formavam. Tão novos e
já são ambos farmacêuticos, até tinham ali aspirina, se eu precisasse. Ela
(conseguirei ainda desenhá-la?) é inesperadamente a nórdica morena, muito alta,
de
zigomas salientes, ri intensamente com os olhos e com a boca grossa, cheia de
sede e de fervor.
Rapidamente descobrimos que temos em literatura os mesmos gostos,
Dostoievski, Malraux, Camus, e falamos de Lezama Lima, de Carpentier, de
Guillen e dos grandes murais e dos painéis colectivos que se erguem na cidade
de um dia para o outro, o galope da vida derrotando o tempo e a rotina, mãos
destras, famosas, e também mãos anónimas, pintam a revolução. Algures o sol
da noite está filtrando a luz desta nossa crescente intimidade, e escava, descama,
chamas, como certezas, no paul da minha insegurança.
Ela tem um súbito perfil de infância, as coxas cor da erva nocturna, a carne
morna, queimada por uma lâmpada interior. E
contudo ali não é Citera, é a praia da fraternidade, a pausa estonteante entre o
ainda hoje e o amanhã a construir-se nos cavalos de confiança que do mar se
alevantam.
Começaram os jogos de mãos, tocamo-nos e são choques eléctricos, debruço-me
sobre as duas conchas incrustadas no seu peito, estou quase a beijá-las, e vejo o
torso loiro, o rosto magoado do marido, ou companheiro, que se recusa a intervir
no exercício que ela faz da sua liberdade. Olha-nos sem nos olhar. Curioso?,
angustiado?, rancoroso? Desvio a vista, que se me fere naquela face
ensombrecida.
É então que ela me puxa pela mão. Jovem como a aurora e implacável.
Atravessamos a praia azul, entre as fogueiras e o quebrar da onda. Será que
podem acordar de repente todos os búzios e ressoar, entre lírios de espuma, entre
pedaços de madrepérola? Ouvimos o grito das gaivotas. Na transparência da
água crédula, lisa, avistam-se pequenos peixes arroxeados e a brisa do futuro
percorre o longo areal.
Mais para o fundo, onde começam as dunas, há um recôncavo com vegetação:
ali respiram frutos e entre jaqueiras de eternidade 176
branqueja uma fonte. Cheira a noite maternal, cheira a goiaba, dentro em breve
cheira a amor, quando nos unimos. Sinto-lhe a carne junto à minha, os rins
latejam à pressão dos meus dedos.
Ajoelhamo-nos, depois, frente a frente (por detrás dela a fulguração do mar, uma
ou outra vela de pescador, no longe). Rejuvenesce prodigiosamente, devem ser
assim os beijos diabólicos da infância. Rolamos, de novo, cobre-me com o
manto de calor que traz na pele; cai-lhe do cabelo a flor vermelha com que a
conheci, parecida à rosa do cacto. Está toda húmida, a polpa dos lábios a
desfazer-se em sumo. E é então que vejo, que adivinho, por entre os ramos de
uma jaqueira, os olhos tristíssimos, quietos, com que ele inalteravelmente nos
fita.
177

Oceano oblíquo
A PARECEU-LHE no rosto uma flor, naquele dia, um sorriso como um ponto de
interrogação. E desde então passaram a andar juntos por toda a parte.
A família descalça dos pescadores adoptou-os: estavam sempre dispostos a
empurrar um barco, se faltava a força de um braço, ou a dar, por graça, a sua
mão de piche numa quilha, e tinham comércio nocturno com as gaivotas, dizia-
se. Pelo menos ficavam na praia, amiúde, até de madrugada;
Ela mudava a olhos vistos. Não se podia dizer exactamente como, só estaria
mais morena, de tanto se dar ao sol e correr no vento, mas agora acompanhada;
ainda o mesmo ar de menina grande, crescida em soberba, ou em vergonha, a
sacudir de si os cabelos escuros e os nomes que os outros lhe punham; puxava-o
pelo pulso e ele vinha, às vezes sem expressão, às vezes vermelho em fogo, a
tremer, de felicidade?, de assombro?
Quando choveu muito, mais ou menos uma semana depois
do salvamento, e eles se deixaram ficar na praia, quase abraçados, fazendo riscos
na areia, até veio gente ao paredão só para os ver, todos molhados. Setembro no
fim, e era mesmo água de Inverno.
O Tio Dourada, lembro-me, comentou que até o tempo tinha endoidecido, estava
tudo trocado e não via jeito de o mundo se consertar (ela vestida de homem,
como sempre, o moço com a túnica azul bordada a tapar-lhe o calção de banho,
não punha outra coisa em cima).
Depois da manhã em que a salvou (ainda hoje não percebo como) ele rapou as
suíças loiras, de fotografia ritual, e parecia ainda mais novo, com a cabeça toda
aos novelos e o riso triste a rondar para mais aberto.
Vinham as ondas, de três andares, carrossel, montanha russa, azul-cinza e ovação
de branco; a Brunilde, muito serena, avança 181
por ali fora, com a sua prancha de surf, indiferente aos que estávamos na
muralha a gritar, a avisá-la, já vai pelo dentro das cristas como um fuso, até à
arrebentação. Só que depois, quando se levantou, fugiu-lhe o mar debaixo dos
pés e, no rolo da vaga, a tábua, em rodopio, apanhou-a pela cabeça.
Meteu-se ele então por aquele dilúvio a pique, ondas pesadas como forro, era
apostar tudo que nem a Senhora dos Aflitos o salvava, some-se, reaparece,
mergulha, aguenta uma barbaridade de pancada e, de repente, lá volta com ela,
desmaiada. Correm os pescadores a dar-lhe a mão, porque a maré tinha escavado
mais o declive e já de lá não saíam sem ajuda.
Um rapaz tão sossegado, que a gente só o via por ali sentado a ler ou a pensar,
apertando as fontes com os dedos.
Confesso que penso muito neles. Vim para aqui tratar os meus ossos doentes e
quase não tenho outra vida senão a dos olhos.
Leio, vejo. Ouço também. E imagino. Às vezes falo com os pescadores e com os
empregados do hotel. Ou treino o meu inglês junto dos estrangeiros nos snacks e
nas cervejarias que dão para o mar.
Não sou bisbilhoteiro, nem por sombras, a minha curiosidade é de outro tipo,
irradia de mim para os outros, o que neles procuro é o meu prolongamento.
A Brunilde e o Olaf estavam, em cima do muro, na mesma tarde,
suficientemente perto de mim para que pudesse ver-lhes bem a expressão.
Com quem quer que esteja a falar, ela dá sempre uma impressão de
superioridade.
«Você tinha mesmo consciência do risco que corria?»
«Acho que sim.»
«E fez aquilo por mim?»
Ele ficou a olhá-la, parecia hesitante, ou atordoado, a remexer nas suas
motivações.
«Então?»
«Tudo leva a crer que sim.»
«Por mim?, ou por si?»
«Não creio. Já resolvi há muito essas questões comigo, não 182
procuro na coragem uma certa forma de virilidade. Não sou exibicionista. Nem
altruísta. Foi mesmo por si.»
«Mas porquê?»
«Não sei.» Estava quase arreliado. Pôs-se a olhar para o mar e para as grandes
rochas do lado poente da praia onde o grulhar dos pássaros negros se abateu, de
repente, sobre a água espelhada, que ali se reparte em piscinas naturais, àquela
hora baixas, balizadas pelos próprios alcantis. Lá estavam os putos de quinze
anos dando saltos acrobáticos sobre a flor da onda, em risco de partirem o
pescoço.
Tudo aquilo eles miram e remiram, com um interesse que me impressiona. Está
escrito, em grandes letras brancas, na mesma penedia «APU» (já sabem o que
significa) e «O Povo vencerá».
Aquele povo baixo, escuro, nodoso, que dali sai, ainda de noite, para o mar ou
para as fábricas, que serve os turistas e os espreita e deles se ri à socapa como
daquela italiana que se pôs a gritar desabaladamente no meio da rua «Aluto,
aluto!» quando dois garotões, com uma motoreta, lhe levaram a mala, de esticão.
O apartamento que o Olaf tinha alugado de meio de Setembro a meio de Outubro
fica pendurado, entre outros, a meio da falésia e tem uma grande varanda, com
gerânios e campainhas muito azuis. Imagino-o a fazer a salada sueca e a pôr a
mesa (já ela vai a caminho) hesitando onde colocar as velas e o ramo de flores
silvestres, que foi ele próprio apanhar na encosta do castelo (é homem para andar
dez quilómetros a pé, só por gosto).
Tentam, com o auxílio do pouco espanhol que conhecem, decifrar os títulos de
um jornal da tarde. Brunilde consegue compreender que Reagan ameaça com um
tiro atómico de aviso. Fixa Olaf com expressão interrogativa.
Lentamente, abanando a cabeça, ele denuncia o seu pessimismo: «Receio que a
Humanidade esteja a caminho da sua autodestruição.
Afinal, talvez todas as civilizações se aniquilem, ciclicamente. O
erro é tocar na árvore da ciência...»
«E é você, biólogo, que diz isso?»
«Não quero dizer que eu não lhe tocasse. Sem isso valem a pena viver?»
183
«Acha que nos faz alguma falta o sentimento do pecado?»
«Já é outra questão.»
«Você tem esse sentimento?»
«O que eu tenho é uma imensa angústia quando imagino a vida extinta na Terra e
milénios pela frente antes de renascer.»
«Não respondeu à minha pergunta.»
Olaf sacode negativamente a cabeça, sorrindo, mas não aguenta o olhar dela.
Bebem a sangria gelada e comem o resto dos pêssegos em silêncio. Ele levanta-
se para fazer café e Brunilde ajuda-o.
Da varanda, cuja lâmpada se fundiu, observam a ascensão da Lua, primeiro
quase vermelha, depois açafroada, ouro, a enternecer o mar, que brilha até aos
minúsculos barcos de pesca, às fragatas, aos couraçados com iluminação de gala,
aos sinais do porto de abrigo.
Brunilde dá-lhe a mão, que ele aperta febrilmente. Não dizem palavra. Até que o
silêncio começa a molestar, a doer.
Então ela propõe. Despem-se como se fosse ao desafio. Mas, já só com o slip,
Brunilde pede licença para tomar um banho; e, enquanto a espera, deitado na
cama estreita, Olaf perde a erecção, começam a tremer-lhe as mãos, fica com os
dedos e com as fontes suadas. «Vai ser como das outras vezes. É irremediável.
Não devia deixar-me iludir. Já me conheço, infelizmente.»
Quando ela volta, Olaf deita-se de bruços, escondendo o sexo mole e pendente,
mas, ao ver, nua, a soberania daqueles seios, daquelas ancas, a animalidade do
triângulo escuro, que se prolonga até quase ao umbigo, em pequenos pêlos
rebeldes, dentro dele renasce o desejo e de novo, pouco a pouco, o sexo
entumesce.
Brunilde senta-se na cama, tem o olhar mais verde e o riso em sangue. Olaf
morde-lhe os mamilos, até fazer mal, lambe-lhe o pescoço, as orelhas, os lábios,
as gengivas, a espinha, os flancos, o umbigo, o clitóris. Súbito, pára, sem a
deixar chegar ao orgasmo, para a penetrar, no auge da tensão, naquele cheiro
exasperado de amor, mas precipita-se, encontra resistência, falha. E apetece-lhe
morrer.
184
«Comigo é difícil», diz Brunilde, abraçando-o. E é ela, por seu turno, a acariciá-
lo, primeiro em vão, mas logo com êxito. Ele quer tentar de novo, porém ela
trava-o: «Espera. Ainda não.»
E é então que lhe conta como só teve relações com um homem, o primeiro e o
último, uma experiência bruta, asquerosa.
«E depois?»
«Tenho tido amigas, talvez amor, não sei. O que quer isso dizer?, dar tudo, a
tranquilidade, a saúde, até a vida?, então deve valer a pena.»
«Eu nunca consegui. Sou uma espécie de indiferente.»
«Não és.»
«Pois não. Realmente não. Mas já tinha desistido, de vez.»
«Connosco resulta, vais ver. Senti logo que sim, até me estranhei. Talvez seja por
seres diferente. Ao pé de ti nunca, desde o primeiro dia, me senti uma coisa, uma
peça de gado. Pelo contrário, eu é que te dou a segurança que tu não tens.»
Corre uma paz imensa sobre o teu rosto molhado de luz. Os nossos lábios não se
despegam. Gozámos ao mesmo tempo, exaustos, na afluência da dor, e
mantemos as pernas enredadas, sinto os teus peitos erguerem-se, respirando, o
teu púbis espesso contra o meu, os nossos líquidos escorrendo misturados. Tem
vontade de gritar, de chorar, de lhe beijar os olhos, as axilas, as plantas dos pés,
de a adorar ritualmente. Mas deixa-se ficar quieto, uma réstia de lua que entra
pela porta a esfriar-lhes os corpos docemente. Só a aperta mais e ela sorri: pode
ser um sopro de triunfo, uma promessa, uma jura ou apenas água de alegria.
Tudo nela cheira a vida que rebentou, desde as clinas negras transpiradas, que se
interpõem entre os dois rostos, à espuma que lhe retira aos lábios o vermelho de
ferida, à cintura embrandecida, às agora suadas nádegas entregues às mãos dele.
Brunilde é a primeira a soltar-se daquele abraço ainda fumegante que parecia
poder ir, assim, até ao sono conjunto. Curva-se e beija-lhe a palma das mãos,
encosta-lhe o sexo ao rosto moreno e beija a glande, repetidamente, até que o
sobressalto em Olaf, principiando no peito, no ventre, nas virilhas, o torna de
novo viril e ansioso, os olhos alucinados.
185
«Achas que posso? Foi tão perfeito. Agora tenho medo. Receio que não se
repita.»
Ela puxa-o. E é como se tivessem arrancado a pele do rosto, tão sem máscara se
olham e se amam, se devoram, se aniquilam um no outro, forcejando Brunilde
por ficar de cima e conseguindo-o, empalada, retardando o espasmo, num prazer
imenso, que é quase antessabor da morte.
Pela segunda vez descansam, ainda mais sagradamente unidos, enroscados,
protegidos do mundo. Quando Olaf se mexe, Brunilde vê-lhe os músculos
deslizarem sob a carnação loira.
«Creio que só pude gostar de ti porque quase não tens pêlos, no peito, nas costas,
pareces ainda um rapazinho.»
«E sou mais velho do que tu.»
«Temos a mesma idade, Olaf, a idade da quadra nuclear. Estou a contar a partir
do fim.» Desapareceu dos olhos verde-relva o repouso líquido de há instantes.
«Não sejas fúnebre.»
«Não sou. O amor faz pensar na morte. Mas estou feliz. Não se pode ser feliz
por muito tempo, pois não?»
«Eu nunca fui feliz assim.»
Que fantasmas estarei neles projectando? Receio menos falar dos outros
(adivinhá-los, confabulá-los) do que de mim. Nem quero reconhecer-me nas
coortes dos meus sonhos nem nas vertentes do vazio por onde me escorrego, até
ao cinábrio da madrugada, quando vêm tranquilamente juntar-se-me, no visco da
cama, os monstros familiares. Tinha de remexer tanta coisa, queimar tanto
pergaminho acumulado, desrespeitar até estes ossos doentes, que são já o meu
traje social, para abrir esses segredos. Não. Renuncio a dizer o que ponho, o que
pus de mim nessa última manhã. Os trabalhadores do hotel, que estavam em
greve, com grande fúria especialmente dos hóspedes nacionais, tinham vindo
para a praia jogar a bola, excepto os que, tendo um palmo de terra, lhe
dedicavam 186
todos os ócios. Haviam parado as marés vivas, embora o vento, diziam os
entendidos, não estivesse de fiar.
Até o futebol fez uma pausa quando o Olaf e a Brunilde desceram a rampa com
as pranchas de wind-surf ao ombro. Uma das velas, a dele, era vermelha; a dela
branca, com um sol pintado.
Armaram-nas à beira de água, rindo, as gaivotas voando tão perto, em loucas
geometrias, na luz claríssima; abraçavam-se, largavam-se, brincando, metidos já
na água até à cinta, eram exímios no surf, sobretudo ela, que, segundo parece,
terá sido jogadora de ténis, embora ganhe a vida (a minha toca é na zona do
hotel) como professora de educação física.
Ziguezaguearam primeiro a toda a largura da enseada, um para poente, outro
para nascente, cruzando as bóias e as chatas ancoradas (os iates haviam sido
retirados uns dias antes, por causa da força do mar); reuniram-se depois, já na
linha divisória, que ao longe parece de anil, onde começa o mar aberto.
Atravessavam nesse instante a praia, dois deles tocando guitarra, três holandeses
de cabelos compridos, com rostos de apóstolos e umas camisolas pingonas,
branco-sujo, onde estavam pintadas caveiras e umas frases que mais ou menos se
percebiam, pela semelhança com o inglês, e deviam significar: «não às armas
nucleares.»
Os dois jovens - é como se fizessem um pouco parte de mim, de tanto que os
tenho contemplado, perscrutado-vão a direito sobre as ancas do oceano, que a
brisa arredonda e escava sem exagero (adivinho-as, essas ondas, mais do que as
vejo, apenas diviso os carneirinhos e as oscilações das velas).
É onde se perde a conta aos números e o infinito se pressente, calculo que pelo
tremor da luz na lonjura sempre, sempre azul e renovada. Mas, curiosamente,
àquela hora do meio da manhã, que costuma ser tão cristalina em Outubro,
apareceu no firmamento, rente ao mar, uma indefinível mancha alaranjada. Que
parece convidá-los a avançarem ainda mais, lado a lado, para além das águas
domesticadas, na leve embriaguez do vento, da manhã desamarrada.
O sal e o sol nas faces salpicadas, as mãos atentas à direcção, presas à vara
elástica que lhes serve de leme, porque a corrida não pára.
187
Alguns banhistas juntaram-se aos pescadores, que põem as mãos em pala sobre
os olhos, começam a recear um acidente. Por mim, tenho quase a certeza de que
eles sabem para onde vão.
Acabaram por parar os out-boards, que nunca mais se resignam a deixar de
poluir a zona de banhos. Só agora me lembro de que é domingo, dia ingrato.
São já pouco mais do que pontos, muito ao longe, a vela vermelha e a vela
branca. Mas ainda se distinguem as cores, o vermelho tomou-se uma poeira
purpurina, uma diminuta chama, e o branco uma armadura, ou um gládio,
cortando sempre, sempre em frente. Não se pode ser feliz por muito tempo, pois
não?
Lisboa, Junho de 1982 - Sesimbra, Agosto de 1984

** obras publicadas nesta colecção
1 - A Centelha da Vida, Erich Maria
Remarque.
2 -Tempo para Amar e Tempo para
Morrer, Erich Maria Remarque.
3 - 08/15 - A Caserna, Hans Heilmut
Kirst.
4 - Filho de Ladrão, Manuel Rojai.
3 - 08/15 - A Guerra, Hans Heilmut
Kirst.
6 - 0 Denunciante. Liam O Ylaherty.
7-08/15 -A Derrota, Hans Heilmut
Kirst.
8 - Uma Mulher em Berlim, Christine
Gamier.
9 - Trabalho sem Esperança. Kamala
Markandaya.
10 - Fim-de-Semana em Zuydcoote, Ro>
bert Merle.
11 - A Oeste nada de Novo, Erich Maria Remarque.
12 - Um Rapaz de Florença, Vasco Pratolini.
13 - A Meta, Yves Gibeau.
14 - A Barca dos Sete Lemes. Alves
Redol.
15 - Deus Dorme em Masúria, Hans
Heilmut Kirst.
16 - Chora, Terra Bem Amada!, Alan
Paton.
17 - Nem só de Pão Vive o Homem,
Vladimir Dudintsev.
18 - Um Intimo Furor, Kamala Markandaya.
19 - A Náusea, Jean-Paul Sartre.
20 - 2455, Cela da Morte, Caryl Chessman.
21 - Fontamara, Ignazio Silone.
22 -* Uma Família de Atenas, André
Kedros.
23 - Era a Madrugada, Emmanuel Roblès.
24 - Vinho e Pão, Ignazio Silone.
25 - Entre o Pavor e a Esperança. Loys
Masson.
26 - A Pousada da Sexta Felicidade, Alan
Burgess.
27 - A Morte É o Meu Oficio, Robert
Merle.
28 - Condenado em nome da Lei, Caryl
Chessman.
29 - Gabríela, Cravo e Canela. Jorge
Amado.
30 - De Víbora na Mão, Hervé Bazin.
31 - A Face da Justiça, Caryl Chessman.
32 - O Último Justo, André SchwarzBart.
33 - O Garoto Era Um Assassino, Caryl
Chessman.
34 - Desenraizados, Erich Maria Remarque.
35 - Exodus, Leon Uris.
36 - A Felicidade não Se Compra. Hans
Hettmut Kirst.
37 - Sentinela Inútil. René Hardy.
38 - A Ponte, Manfred Gregor.
39 - Terra de Nod, Judith Navarro.
40 - Infortúnio de Amar. Qaude Roy.
41 - Um Silêncio de Desejo, Kamala
Markandaya.
42 - A Última Viagem do ePort Polis*.
André Kedros.
43 - Esteiros, Soeiro Pereira Gomes.
44 - Esmeralda, Stratís Myrivilis.
45 - Jantar Mundano. Qaude Mauriac.
46 - Mila 18, Leon Uris.
47 - Levanta-Te e Caminha, Hervé Bazin.
48 - Os Velhos Marinheiros, Jorge Amado.
49 - A Sentença, Manfred Gregor.*
50 - A Guerra das Bananas, K. H. Poppe.
51 - Encontro em Samarra, John 0'Hara.
52 - Fábrica de Oficiais. Hans Hdlmut
Kirst.
53 - 0 Regimento da Morte, Sven Hassel.
54 - óleo sobre as Chamas, Hervé Bazin.
55 - Mães e Filhas, Evan Hunter.
56 - Eu e Eles..., Charlotte Bíngham.
57 - O Céu não Tem Favoritos, Erich
Maria Remarque.
58 - Camaradas, Hans Heilmut Kirst.
59 - Zly, o Mau, Leopold Tynnand.
60 - Ponto-Limite, Eu gene Burdick e
Harvey Wheeler.
61 - Não Matem a Cotovia, Harper Lee.
62 - A Rua, Manfred Gregor.
63 - Uma Noite em Lisboa. Erich Maria
Remarque.
64 - Os Carros do Inferno, Sven Hassel.
65 - Os Dias Selvagens, Judith Navarro.
66 - Rebelião dos Perdidos, Henry Jacger.
67 - Os Pastores da Noite, Jorge Amado.
68 - A Morte do Cavalinho, Hervé Bazin.
69 - Relógio sem Ponteiros, Carson McCullers.
70 - 08/15 - Hoje, Hans Heilmut Kirst.
71 - Chamado do Mar, James Amado.
72 - Mar Morto, Jorge Amado.
73 - Um Caso de Consciência, Evan
Hunter.
74 - Corre, Coelho, John Updiko.
75 - O Calo Vermelho, Miodrag Bulatovic.
76 - Armagedão, Leon Uris.
77 - O Ferrolho, André Kedros.
78 - A Noite dos Generais, Hans Hcllmut Kirst.
79 - O Processo de Adão Pollo, J. M.
G. Le Clézio.
80 - Sorge, o Espião do Século. Hans
Heilmut Kirst.
81-Dona Flor e Seus Dois Maridos,
Jorge Amado.
82 - O Notário dos Negros, Loys Masson.
83 - O Centauro, John Updike.
84 - Sarkhan, William J. Lcdercr e Eugene Burdick.
85 - A Revolta dos Soldados, Hans Halmut Kirst.
86 - Grito de Batalha, Leon Uris.
87 - Filho de Homem, Augusto Roa
Bastos.
88 - Camaradas de Guerra, Sven Hassel.
89 - Soldados Desconhecidos, Viinõ Linna.
90 - 39.9 Andar - U Drama da O. N. U.,
Cjifford Irving.
91 - Sem Piedade, Albertine Sarrazin.
92 - O Homem sem Nome, Evan Hunter.
93 - A Grande Missão, Hans Habe.
94 - Sementes de Violência, Evan Hunter.
95 - Os Lobos, Hans Heilmut Kirst.
96 - A Esperança dos Vivos, Millen
Brmnd.
97 - Destruam Paris!, Sven Hasseft.
98 - Na Casa da Morte, Edgar Smith.
99 - Rapazes e Raparigas, William Saroyan.
100 - Campo 7 - Última Estação, Hans
Heilmut Kirst.
101 - O Segundo Dia da Criação. Uya
Ehrenburg.
102 - Sem Pátria, Hans Heilmut Kirst.
103 - Léone e os Outros, Claade Roy.
104 - O Direito do mais Forte, Hans HelImut Kirst.
105 - O Homem da Cabeça Rapada, Johan
Daisne.
106 - cLove Story» (História de Amor),
Erich Segai.
107 - Cem Anos de Solidão, Gabriel Garcia Márquez.
108 - Batalhão de Choque, Sven Hassel.
109 - Amor Numa Rua Escura, Irwin
Shaw.
110 - O Solar, William Faulkner.
111 - Conversa na Catedral, Mario Vargas Llosa.
112 - O Veneno da Madrugada, Gabriel
Garcia Márquez.
113-Os Funerais da Mamã Grande, Gabriel Garcia Márquez.
114 - 0 Enterro do Diabo, Gabriel Garcia Márquez.
115 - Ninguém Escreve ao Coronel, Gabriel Garcia Márquez.
116 - Escuro como o Támulo onde Jaz
o Meu Amigo, Malcolm Lowry.
117 - Diário de Um Ladrão, Jean Genet.
118-Filhos de Torremolinos, James A.
Michener.
119 - Heróis e Túmulos, Ernesto Sábato.
120 - Quarup, António Callado.
121 - O Forte, Adonias Filho.
122 - O Paraíso, Alberto Moravia.
123-A Incrível e Triste História da Cândida Eréndira e de Sua Avó Desalmada,
Gabriel Garcia Márquez.
124 - Responso das Almas, Wilson Lins.
125 - A Golpada, Robert Weverka.
126 - General S. S., Sven Hassel.
127 - A Traição de Rita Hayworth, Manuel Puig.
128 - O Contrabandista de Deus, René
Fallet.
129 - São Camilo, 1936, Camilo José Cela.
130 - Malevil, Robert Merle.
131 - Pantaleão e as Visitadoras, Mario
Vargas Llosa.
132 - Uma Vez não Basta, Jacqueline Susann.
133 - Uma Outra Vida, Alberto Moravia.
134 - ...E as Pedras Choveram do Céu,
Stephea King.
135 - O Herói da Torre, Hans Heilmut
Kirst.
136 - Rosebud, Paul Bonecarrère e Joan
Hemingway.
137 - Tempo de Quimeras, Arthur Koestler.
138 - A Divorciada, Hervé Bazin.
139 - Os Vivos e os Mortos, Constantino
Simonov.
140 - O Vale das Bonecas, Jacqueline Susann.
141 - A Cidade e os Cães, Mario Vargas
Llosa.
142 - Mortos: Duzentos Milhões - Todos
Nós, Jean Raspail.
143 - Amar e Matar, Jean Genet.
144 - A da, ou Ardor, Vladimir Nabokov.
143 - Três Camaradas, Erich Maria Remarque.
146 - Todas as Noites, Josephine!, Jacqueline Susann.
147 - O Pão Que o Diabo Amassou,
Georges-Emmanuel Clancier.
148 - O Pão Que o Diabo Amassou - II.
A Fábrica do Rei, Georges-Emmanuel Clancier.
149 - O Pão Que o Diabo Amassou - Hl.
As Bandeiras da Cidade, GeorgesEmannuel Clancier.
150 - O Pão Que o Diabo Amassou - IV.
O Cair das Folhas, Georges-Emmanuel Clancier.
151 - O Outono do Patriarca, Gabriel Garcia Márquez.
152 - Os Vivos e os Mortos - II. Ninguém Nasce Soldado (1.* parte),
Constantino Simonov.
153 - Os Vivos e os Mortos - H. Ninguém Nasce Soldado (2.* parte),
Constantino Simonov.
154 - O Caminho do Regresso, Erich Maria Remarque.
155 - A Outra Face da Lua, Alberto Moravia.
156 - Chantagem, Paul Bonnecarrère.
157 - Os Vivos e os Mortos - III. O Último Verão (l.a parte), Constantino
Simonov.
158 - Os Vivos e os Mortos - III. O Último Verão (2.* parte), Constantino
Simonov.
159 - Gestapo, Sven Hassel.
160 - Dolores, Jacqueline Susann.
161 - Tudo Tem Um Preço, Hans Hellmut Kirst.
162 - A Virgem Guerreira, Alberto Moravia.
163 - Belém do Grão-Pará, Dalcídio Jurandir.
164 - Paloverde - I. O Caminho da Glória, Jacqueline Briskin.
165 - A Ponte de Andou, James A. Michener.
166 - O Dia dos Prodígios, Lídia Jorge.
167 - O Caso dos Generais, Hans Hdlmut Kirst.
168 - Paloverde - H. As Sombras do Passado, Jacqueline Briskin.
169 - O Venerável Espião - LA Corda
do Relógio, John Le Carré.
170 - Cais da Sagração, Josué Montello.
171 - Yargo, Jacqueline Susann.
172 - Catástrofe, Arthur Hailey.
173 - Kramer contra Kramer, Avery Cor*
man.
174 - O Venerável Espião - II. O Abanar da Arvore, John Le Carré.
175 - Projecto Pombo-Correio, Irving Wallace.
176 - O Abismo Negro, Alan Dean Foster.
177 - O Mundo dos Ricos, Graham Greene.
178 - O Navegante, Morris West.
179 - A Palavra, Irving Wallace.
180 - O Senhor dos Anéis - I. A Irmandade do Anel, J. R. R. Tolkien.
181 - O Senhor dos Anéis - II. As Duas
Torres, J. R. R. Tolkien.
182 - O Senhor dos Anéis - HL O Regresso do Rei, J. R. R. Tolkien.
183 - 08/15 - No Partido, Hans Heilmut
Kirst.
184 - Chesapeake - I, James Michener.
185 - Chesapeake - II, James Michener.
186 - Um Lugar no Arco-Íris (Calais),
Kathleen Winsor.
187 - O Mago de Lublim, Isaac Bashevis
Singer.
188 - Proteu, Morris West.
189 - Os Emigrantes, Howard Fast.
190 - A Banqueira, Georges Conchon e
Jean Noli.
191 - Vi-Os Morrer, Sven Hassel.
192 - Um Homem, Oriana Fallaci.
193 - Comando Reichs/uhrer Himmler -
O Assalto a Varsóvia, Sven Hassel.
194 - Os Palhaços de Deus, Morris West.
195 - Dallas, Lee Raintree.
196 - O Cais das Merendas, Lídia Jorge.
197 - A Segunda Geração, Howard Fast.
198 - A Noite dos Facas Longas, Hans
Heilmut Kirst.
199 - A Velha Vizinhança, Avery Corman.
200 - O Poder Instituído - O tEstablishment», Howard Fast.
201 - O Vencedor do Pós-Guerra, Hans
Heilmut Kirst.
202 - O ri ente-Expresso, Pierre-Jean Remy.
203 - Conselho de Guerra, Sven Hassel.
204 - O Amante Ingénuo e Sentimental,
John Le Carré.
205 - O Amigo Sinistro, Hans Heilmut
Kirst.
206 - A Herança, Howard Fast.
207 - A Arte da Fuga, Álvaro Manuel
Machado.
208 - Esquecidos de Deus, Sven Hassel.
209 - A Gente de Smiley, John Le Carré.
210 - Shõgun - I, James Clavell.
211 - Shõgun - II, James Clavell.
212 - Havai - I, James A. Michener.
213 - Havai - II, James A. Michener.
214 - O Rescaldo dos Heróis, Hans Hellmut Kirst.
215 - Monte Cassino, Sven Hassel.
216 - O Silmarillion, J. R. R. Tolkien.
217 - Desaparecido, Beth Gutcheon.
218 - Monsenhor Quixote, Graham Greene.
219 - Dinastia, Eileen Lottman.
220 - O Despir da Névoa, José Manuel
Mendes.
221 - O Pacto - I, James A. Michener.
222 - O Pacto - II, James A. Michener.
223 - Uma Armadilha de Papel, Hans
Heilmut Kirst.
224 - A Prisão de OGPU, Sven Hassel.
225 - Tai-Pan - I, James Clavell.
226 - Tai-Pan - II, James Clavell.
227 - Ambas as Mãos sobre o Corpo.
Maria Teresa Horta.
228 - Os Filhos da Costa do Sol, Manuel
Arouca.
229 - Notícia da Cidade SUvestre. Lídia
Jorge.
230 - Miguel Várzea, Alferes e Paisano,
Carlos Urgel Dirceu.
231-Dia da Guerra, Whitley Strieber e
James Kunetka.
232 - Noites Antigas - I, Norman Mafler.
233 - Noites Antigas - II, Norman Mafler.
234 - O Ónix, Jacqueline Briskin.
235 - O Terceiro Homem, Graham Greene.
236 - Romance de Uma Sereia - A Claridade da Terra, Eduardo Jorge Brum.
237 - Capitão-de-Mar-e-Terra, Teixeira de
Sousa.
238 - Oceano Obliquo - Novelas e Contos,

Fim

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