Você está na página 1de 74

Somuel N/urgel Bronco

i
t
t
!

t
-t

ta
ia ,
I{ t I{
t
I
a 4 {,rí-,r,, ri,é'é{,e
A PAJ5A6EIV1 E O HOIVlEI!l sE,RTANEJ 0
14s
IlllPRtSSÂ0

ffiÊi! Moderna
Somuel tVlurgel Bronco
Biólogo e naturalista. ProÍessor titular de Saneamento e Ecologia
Aplicada da Universidade de São Paulo. Como consultor internacional
da OMS (Organização l/undial da Saúde), ministrou cursos em muitos
países da América Latina. Atualmente se dedica quase exclusivamente
à produçáo de obras de divulgaçáo cientÍÍica voltadas ao Ensino
Fundamental e Ensino Médio.

aatinga
A paisagem e
o homem sertanejo

Rua Pabtjya,151 .\/t ,Íaletuoa


cLP:12.220.14a
São JosÉ dos Campoysp
Te,s:: (12) 2s ediÇÕo
§431.§t?1/991ta"3138 Ediçoo reÍormulqdq
98869_4111
site:. www.àikysebo.com-br
e-ma : aikJ@Aikysebo.com.b;

# Elll Moderna
O SAML.]EL ML]RGET BRANCO 2OO3

Elll Moderna
cooRDENÀCÀO EDLTORIAI É EDçÀO DE TÉrlO: lÔsé Ctrnos (lc
PREPÀRAçÀO DE IÉrlO 'rnro
.ooRDENÂcÀo DE PRoDUçÃo GútlcÀ: l'e,nrnd! D,xo Des,n
cooRDENÀÇÃODEREv§Àor F-{c!rm \Gntr Lé'r).lr
RNI§Ào: Denise cú'l niu de c:issix À1 ]'ÔPes
rDcroDaqTt.8..- l '.l.'
PQÔETÔ GúFlco, Lun Femrndô Rubio
aÁPA Hcnrique Utr'trnx
loro: \rqueiro De'iuLolÚ(trnÕ dtr silvr PcrÔ[tbko
O \Írtuo 1'tonio §i riino
cooRDENAçio DÉ PESoulSa lcoNocúFlc-À: \'en Lu.ir d' srha RrÍLonrr'Ô
PESOU§q CONOGúfCA: D€ni§e Dunnd KÍenrer

ITUSTRAçõES: ROMNIo..SJÍ
CÂRÍOGRÁflÂr L!É iiiouÍi
D|ÀGRAMÀCÀO f i' d.'l' n
ÍRAÍA,,1ENTo DE iÀtaGENs: l]\?ldo de Àlmeillx. rderãldÔ Ànúio lte \lcl'
saíDÂ DE ÊltMEs Éelio P. dc souzr ljrlh' \{ârciÔ Hidelakr Kanoro
cooRDENAçÀO DE PRODr.jçÂO lNDLlsÍRlaL \t/ikon ,\prif ido 1 Ôque
'

IMPRES$ÀO E ACÀBAMEMO: Crcnosetê Gráíica ê EdiroÍa Ltdâ

Dolo5lni€ho(lonoi5 de Cololosocôo no Puhltocõo (ClP)

côi.ro Ero5ileto do Livro,5P, Brosil)

-r&É
rEE dsô i*.fiG
lcj,rinEaihEêE:J...-':
tund:tuít l l-1111
2 Li,c de làM : Esrc :r3-:
3121r1

tslN 85-l€3óOê5
Hêproduçáo poibidâ. aí.1 84 do códioo Pênal e Lê 9 610 dê r9 é b!€m dê I 993

'tbd6 os diftitos @aà6


BDrÍoRÀ MoDERNA LÍDÁ-
Ru2 PâdE Adeli.o. 7t8 - Belenzinho
Sào Pâulo sP li6si1 _ cEP 03303 90'1
\tndas e Tel (L-ll) 6090_1100
Frx ío 11) 6090 1501
^reodnnenbr
Nrv§,..roderm.coú bÍ
2006

e'â\1 É

âF*-P,m
l"fl- n
Ao meu fiel amigo Rosendo, de
quem ouoi muitas históras do sertão.

ll,
a

Sumório

Apresentaçáo 6

I Um panorama do sertáo 8

A paisagem sertaneja 8

A caatinga 9

A caatinga se veste de verde 11

O Velho Chico 13

O sertanejo t6
2 O ambiente da caatinga 79
A origem das terras do sertão 79

Como se iormou a caatinga ZJ

O clima da região 26

3OrioeavegetaÇáo 29
O Rio São Francisco 29

O caminho do Velho Chico JL


A vegetação
4 A fauna da caatinga 4L

Os anÍmais nativos 47

Os animais aquáticos 46

B' Os animais domésticos 49


5 O home- da caatinga e seus problemas 52
O sertanejo e seu ambiente 52
A vegetação para consumo 55
Osertanejoeaágua 56
6 A brsca de soluções para os
problemas da caatinga 58
A vida nos açudes 58
A morte de alguns açudes 60
Outras fontes de água 62
7 O futr.o do sertáo 65
Buscando uma saída 65
Buscando soluçóes 69
Considerações Finais 72
Ap rese nto ÇÕ o

ste Iivro constitui uma introdução à


ecologia de uma das regiões mais sin-
gulares do território brasileiro, o Nordeste semi-árido'
também conhecido como o Polígono do Seca'
Esse polígono, na verdade, é uma área de
defi-
nem
niçáo muito discutível, por náo ser homogênea'
mesmo quanto à ocorrência de chuvas, que determi-
na se uma regiáo é ou náo seca'
Ao que tudo indica, muitos proprietários de ter-
para suas
ras naquelas regiões, interessados em obter
fazendas os benefícios que o governo destina
aos
do
Ílagelados da seca, procuram ampliar essa área
polígono, a fim de que ela possa abranger suas ter-
toda a
ras. Isso vem acontecendo no transcorrer de
nossa história.
Entretanto, se por um lado existe uma disputa
gover-
desonesta por uma iá insuíiciente ajuda do
no, por outro o Ílagelo da seca é real, deprimindo
e
infelicitando uma parcela significativa da populaçáo
brasileira que nasce, vive e luta nessa região e que
deveria ser obieto de maior atenção por parte dos
adminisrradores deste país.
Essa população consegue sobreviver em um
ambiente muito peculiar. Por causa da má distribui-
çáo das chuvas e das águas, esse ambiente se carac-
teiza por uma vegetação particularmente adaptada.
O mesmo acontece com a fauna, constituída de ani-
mais capazes de obter água e alimento mesmo quan-
do as chur,as deixam de cair por muitos meses e até
anos a fio.
É esse ambiente, com sua flora e fauna carac-
terísticas. que vamos estudar neste livro. Falaremos,
também. lxn pouco sobre o sertanejo, o heróico ha-
bitante da caatinga. que consegue, à custa de muito
trabalho e perseveranca, sobreviver às diÍiculdades
desse ambiente.
al
copÍtulo

m panorama do sertão

A paisagem sertaneja
Se você viajar de aviáo, de Salvador para as teÍras do interior
da Bahia, e observar a paisagem, irá deparar com uma brusca mu-
dança. O ambiente úmido da orla marinha. povoado de graciosos
coqueiros, e a extensa planície de densa vegetação são, repenti-
namente, substituídos a menos de 90 quilômetros do mar
- -
por uma platafor-
ma imensa, de solo A
pedregoso, de co-
loraçáo amarelo-
avermelhada onde
vegetam apenas os
cactos e arbustos
espinhosos e retor-
cidos. Uma paisa-
gem seca e pobre,
contrastando tris-
temente com o pa- qqF4{q,
norama vivo e ale-
gre do mar e das Ári,ÁN Ii{,:ó
matas que ficaram
para trás. ,_. Caatinga

I
I
É a paisagem do sertão. Sua vegetaçáo é a caatinga. Mas não
é só nesse trajeto que se observa o rude contraste. Se seguirmos do
mar para o interior, esse contraste pode ser üsto às vezes em
-
menores distâncias nos estados de Sergipe, Alagoas, Pernambu-
-
co, Paraíba, Rio Grande do Norte ou Ceará. A regiáo seca, domi-
nada pela caatinga. estende-se por quase 1 milhão de quilômetros
quadrados, abrangendo a maior parte desses estados e mais uma
grande parte do Piauí e a porção do norte de Minas Gerais. É uma
área bem maior que a de qualquer estado brasileiro com exceção
-
do Amazonas e do Pará.
No entanto. como acontece com todos os ambientes da Terra
incluindo os mais áridos desertos da Ásia e da África essa
- -,
regiáo tem suas belezas e seus encantos. Náo, certamente, para
quem a sobrevoa a bordo de um aúão, mas para quem, a pé, a
cavalo ou num carro resisienre. se aventura a conhecêla de perto.

A caatinga
A caatinga, a comeÇar pelo nome, é cheia de mistérios. A
maior parte dos pesquisadores concorda que a palavra é de origem
tupi, derivada de coo (mato. t,egetação) e fingo (branco); mas há
muitas dúvidas a esse respeito. Por que os indios chamariam de
"mato branco" a essa vegetação. formada de cactos verdes e arbus-
tos retorcidos de casca escura e espinhenta? Estudiosos da língua
indígena afirmam que, na verdade. coo náo se reÍere, nesse caso,
ao mato propriamente dito, mas. sim. à composição de morros e
vegetação. Isso porque, tornando-se rala e despida de folhas na
época de seca, a vegetaçáo que cobre os morros íorma uma paisa-
gem clara e desértica. Finalmente, outros atribuem origem diferen-
te ao termo. Alegam que ele surgiu da combinação abreúada de
coo (mato) e tíninga (seco), isto é, "mato seco".
O que caracteriza, realmente, essa vegetação, que se estende
a perder de üsta sobre as chapadas nordestinas, é a sua aparência
9
I
z G

Vista parcial da caatinoa.


ressequida, tortuosa e agressiva, como que torturada pelo
sol calcinante e pela ausência de chuvas, que presenciamos quer cami-
nhemos 500 quilômetros para o interior, quer percorramos mais de mil
quilômetros no sentido norte-sul, desde o Ceará até Minas Gerais.
É uma vegetaçáo rala, que deixa à mostra o solo argiloso e
pedregoso debaixo dos arbustos e das áruores. Predominam as plan-
tas de pequeno porte, como
os cactos de muitas es-
-
pê.cies d\Íerentes e os ar-
-
bustos cheios de espinhos e
de ramos retorcidos, que,
durante a estaçáo seca! per-
dem completamente as fo-
thas. Algumas árvores de
g

O umbuzeiro se destaca
em meio à caaiinga; sêu .
fruto, o umbu, é saboroso.

l0 a
maior porte (que raramente atingem 10 metros de altura) se desta
cam nessa paisagem, principalmente aquelas que conservam suas
folhas sempre verdes.

A caatinga se Yeste deverde


A vegetação da caatinga está muito bem adaptada ao clima
e ao solo do sertão. AIi. a Íalta de chuva pode durar meses, e até
anos. e o solo não é profundo: uma camada arenosa, de poucos
centímetros de espessura, recobre a rocha viva e dura que, em
muitos pontos. aparece à superfície. Os rios sào secos, verdadei-
ras estradas poeirentas e pedregosas sulcando a terra e forman-
do vales de pouca profundidade. Mas, quando chove, eles se en-
chem quase repentinamente. formando torrentes de águas velo-
zes e barrentas. que afogam os vales, inundam as terras, trans-
portando os restos morlos de vegetação e rolando cascalhos nos
leitos pedregosos. As terras. tostadas e ressequidas por muitos
meses de sol, encharcam-se r-apidamente, como uma grande es-
ponja sedenta de umidade.
É .r"ssa época que se obserl a o milagre do sertão. De um
dia para o outro a paisagem se iransforma completamente. Aque-
las plantas desidratadas e tortas. de galharia espinhenta. que nào
mais pareciam
ter vida, subita-
mente se reves-
tem de verde. É'
como se a vida

O juazeiro
resisle bem
à seca por
conservar a
umidade. Í
:

II
Com as
chuvas, a
caatinga
se cobre
de verde.

Í
-

escondida sob a casca das plantas estivesse à espera da água, pron_


ta para desabrochar em brotos e folhas, que, com rapidez espanto_
sa, se desenrolam e crescem.
Algumas plantas rasteiras, como o jerícó (parente das samam_
baias e licopódios), parecem realmente reviver. Antes das chuvas
ficam completamente secas, transformando-se em pó quando esfa-
reladas entre os dedos. Mas, assim que surgem as primeiras gotas
de chuva, incham e como que despertam, readquirindo rapidamen-
te a coloraçáo verde e o aspecto de plantas vivas.
Antes da era espacial, quando pouco se conhecia acerca do
ambiente em outros planetas, alguns botânicos achavam possível (

que a superfície de Marte pudesse ser habitada por plantas desse (


tipo, desabrochando apenas nas ocasiões em que sua atmosfera
a

estivesse mais úmida.. .


I
Naturalmente, esse revivescer da caatinga é acompanhado do
I
reaparecimento de inúmeras espécies animais. As chuvas em geral
t
ocorrem entre outubro e marÇo, e esses pequenos animais, que se
2
encontravam escondidos, aproveitam a época para fazer seus ni_
t
nhos, reproduzir-se e alimentar os filhotes. Assim que as folhas co_
c
meçam a brotar, surgem as flores e, em seguída, os frutos e as
o

t2
I
sementes, que atraem inúmeras espécies de pássaros, insetos e ro_
edores, dando vida e alegria ao ambiente agreste do sertão.
As águas passam logo. As chuvas são repentinas e fugazes. Os
rios, que se enchem com toda aquela água, em poucos dias voltam a
secar, caso náo ocorram novos temporais. O solo mantém_se úmido
por algum tempo, e a vegetação completa o seu ciclo anual. Depois,
inicia-se um novo período de seca. As folhas das plantas novamente
caem para que os vegetais náo percam água. Nesse período só per_
manecem verdes as plantas que têm capacidade de armazenar água,
um precioso líquido no sertão, como os cactos de caule suculento e
os frondosos umbuzeiros. que possuem nas raízes grandes h-rbércu_
los, como se fossem cocos cheios de água.

O Velho Chico

O Velho Chico nào é um caboclo de pele curtida, carapinha


branca, cachimbo na boca e contador de histórias. É, sirrr. o nome
carinhoso que se dá ao Rio
Sào Francisco. Por sua ida ÂCAATINGAEORIO FRAT{GISCO
de avançada, se o Velho Chi
co falasse, teria muitas histó-
v---'
rias para contar.
O Sáo Francisco nasce CE
RN
em pleno coraçáo do estado
P8
de Minas Gerais. nas lerras PI PE
altas atrás da Serra do Espi- E

nhaço. Suas águas correm


para o norte, atravessando BA
todo o estado da Bahia, fa-
zendo divisa com Pernam-
buco. Depois se dirigem ao
.

oceano, separando os esla- a

dos de Sergipe e Alagoas.

t3
I
O Sáo Francisco é
chamaóo Rio da Nesse enorme tmjeto, ele corta grande par-
Unidade Nacional.
te da caatinga, com decliüdades suaves (cer-
ca de 2 mil quilômetros, entre Minas e Ju-
azeiro, no norte da Bahia) que o tornam navegável. Depois de Jua-
zeiro, ao seguir para leste, ele cava profundas gargantas. formando
várias corredeiras e cachoeiras, sendo a Cachoeira de Paulo Afonso
a mais famosa.
O Sáo Francisco é considerado um rio perene. isto é, ele nun-
ca seca, apesar de seu volume de água variar muito entre a estaçáo
das chuvas e a das secas. Em geral. de janeiro a marÇo, ele possui
os maiores volumes de água. Com isso. suas margens acabam trans-
bordando e atingem, em alguns pontos. mais de 10 quilômetros de
largura. Depois, ele se esvazia rapidamente. deixando o solo en-
charcado e bastante Íértil, favorecendo. assim, a agricultura. Atual
mente o São Francisco se acha represado em alguns pontos para a
geração de energia elêlrica e para a irrigaçáo. A maior dessas re-
presas é a de Sobradinho, na Bahia.
Tanta água assim não chega, porém, a umedecer o solo da
regiáo das secas. Em muitos lugares, a apenas uns poucos quilôme-
tros das margens do grande rio, a terra é seca, esturricada, em que

t4
I
predomina a caatinga, com seus cactos e árvores sem folhas. Para
um sertanejo que úva a 50 quilômetros do Sáo Francisco distância
-
muito pequena, comparada com a grandeza do sertão
- essa água é
como se náo existisse. Morre se de sede e Íome a meia hora de auto-
móvel, partindo das margens do rio em direçáo ao interior... Como
náo possui automóvel. o sertanejo leva um dia inteiro transportando,
sobre a cabeça ou no lombo do iegue, uma lata d'água que mal dá
para saciar a sede da família.
As águas do Velho Chico sáo
muito ricas. A pesca nele realizada
ê em geral produtiva. e os solos do
seu vale são bastante fárteis. Os sais
minerais e o húmus Por ele trans-
portados depo;itam-.e nas regiões
inundadas. e. à medida que as águas
baixam. o senaneio ribeirinho plan-
ta suas mudas e sementes, que de-
vem ser colhidas antes das próximas
cheias. Esse iipo de agricultura é
praticado há mllhares de anos em tr.
todos os grandes rios que cortam
regióes desét'iicas. como o Nilo, no 1

Egito, ou o Tigre e o Eufrates, nos


desertos do Oriente Médio.

AgricuLtura às
margens do Rio
Sáo Francisco.
a

i
-

l5
It
ll
I
O seftanejo
Em toda a caatinga, mesmo nos locais mais secos, a pÍesenÇa
pelo sol'
do sertanejo é constante. De aparência indolente e tostado I
e re-
com a pel ES turri.uà-uraorno as próprias plantas espinhentas
de
torcidas que o cercam, esse caboclo é o único ser humano capaz
sobreviver nessas terras. Aí ele planta sua roça de milho, Íeijáo
e
náo
mandioca quando pressente a chegada da chuva' Quando ela
vem, ele acaba náo tendo o que comer' O gado é muito magro'
alimentando-se durante a seca com a palma ou polmatória, espê'
masti-
cie de cacto que solta uma água pegajosa e amarga quando
gada, Íerindo o animal com seus espinhos'

O sertanejo
é parte
integrantê da
paisagem.

A palmatóriâ é alimento
e água para o gado
dúrante as sêcas.

x é I


I
É ainda nesse solo ressequido que o sertanejo cava suas co-
cimbos ou poÇos Íasos para obter a água lamacenta com que satis-
faz sua sede e cozinha seu alimento. Desse solo ele também extrai o
I sal para preparar sua comida, conservar a carne e alimentar o gado.
Esse sal, originário de antigos mares que existiram na região e seca
ram há milhões de anos. está presente em quase todos os barran
cos que margeiam os rios secos, consistindo, ao mesmo tempo,
numa riqueza e num Ílagelo.
Muitos açudes. construídos poÍ represamento dos rios para
conservar água na ápoca de seca, formam grandes e promissores
lagos. Mas, se a seca é muito intensa, o nível da água baixa, e o
grau de salinidade vai ficando maior, até chegar ao ponto em que
ela não serve mais para o consumo. No sertão ressecado, até a
água pode tornar-se agressiva. como os espinhos da caatinga!
O principal meio de transporte no sertão nordestino é o je-
gue: um pequeno burro. muito resistente à sede e à fome. Esse
animal á capaz de percorrer enormes dis-
O gado garan:e a
tâncias por entre os espinheiros. carr€gan-
sobrevivênc:a do
do em seu lombo a carga e até o próprio sertanejo em épocas
de grande seca.

t7
I
-

Assim como o
sêrtânejo, o jegue
resiste às agruras
do sertáo
nordeslino.

Carregar água faz


partê do dia-a dia =

do sertanejo.

caboclo em suas longas viagens em


busca de água e comida. Mas para os
trabalhos próximos de casa, como
tanger o gado ou correr atrás de uma
noúlha desgarrada, girando o seu laço
de couro trançado. o sertanejo usa o
cavalo, que é bem mais ligeiro, em-
bora menos resistente.
a

I O escritor Euclides da Cunha co-


menta em seu famoso liwo Os ser-
9
tões: "O sertanejo é, antes de tudo,
um forte". E é verdade. É preciso ser um forte para sobreviver nes
se ambiente, vencendo todas as misérias do clima, extraindo do
solo tostado a água e o alimento para o sustento. É necessário man-
ter uma esperança contínua na época das chuvas, a fim de recome-
çar o plantio da roça. Mas para isso o sertanejo precisa reservar o
I8
I
melhor saco de feijáo e de milho, conseguido com muito trabalho,
numa colheita anterior.
Quando a falta de água e de comida trazem a doença e a
morte para o gado e para dentro de casa, o sertanejo abandona
suas terras, em busca de abrigo e trabalho na Zona da Mata nordes-
tina. Mas ele acaba retornando. Iogo que recebe notícias de que as
chuvas chegaram. Entretanto. a maioria dos que se aventuram em
regiões mais distantes. nas grandes cidades do Sudeste crasileiro,
acaba tendo que ficar por lá mesmo, Íora do seu meio. Muitos nor-
destinos não se ad4ptam às novas condições de vida dessas grandes
cidades e acabam se sentindo marginalizados.

copítulo

o ambiente da caatinga
A origem das terras do sertão
Sertao é, o nome que se dá às regióes agrestes, distantes
das
zonas mais povoadas e cultivadas. Em sua origem latina, tem o mes-
mo significado que deserlo. Iugar abandonado, e se caracteriza pela
produção de gado, em lugar da agriculhrra, tendo em üsta a escassez
das chuvas e a aridez do solo.

t9
I
I
O solo da caatinga é formado de muitas pedras soltas, des-
de pequenos cascalhos até grandes blocos isolados que paÍecem
ter sido transportados por alguma força impetuosa há milhóes
de anos. Esses pedregulhos acham-se misturados com argila aver-
melhada (ou escura nos lugares mais úmidos) ou com uma areia
de cor amarelada. Mas, ao contrário das regiões úmidas e quen-
tes, o solo é raso. Com a escassez de água, a desagregação e a
decomposiçáo química das rochas, necessárias à formaçáo do
solo, sáo muito mais lentas. Cavando-se a uns poucos palmos de
profundidade, encontra-se uma rocha virgem e dura, constituída
geralmente de granito, a pedra cinzenia que, ao se decompor, dá
origem à areia e às argilas.
É nas argilas dos barrancos que se encontra o sal. Não ape-
nas o sal de cozinha ou cloreto de sódio. mas também o salitre
(que torna o solo féÍtil) e o gesso, que vêm misturados à terra. O
sertanejo, há vários séculos, descobriu o modo de retirar esse sal
para seu uso e para a alimentaçáo do gado. Pri-
Nos períodos de meiro, ele raspa o solo da superfície uns poucos
grande sêcâ, o solo -
centímetros e o dissolve em água, formando a
chega a rachar.
-

20
I
Cabra lambendo
o solo salgado.

Í
à

salmoura, que é colocada sobre grandes couros de boi. O couro,


estendido e preso em quatro estacas de pau, forma uma rede com
um furo no centro, o qual é tapado com folhas de palmeiras co-
bertas com areia. Por esse filtro escoa-se a salmoura, que é sepa-
rada da argila e, depois, recolhida em grandes baldes de madeira
para secar ao sol. Como o sal de cozinha se cristaliza mais depres-
sa que os outros sais, à superfície da salmoura Íiltrada forma-se
uma crosta dura, que é retirada e triturada.
A existência desse sal em quase todo o solo da caatinga faz
supor que o sertão já foi um grande mar. cujas ondas espalharam os
cascalhos que lá se encontram.
Segundo os geólogos, há cerca de 400 milhões de anos, a
maioria das terras brasileiras esteve submersa. Um grande mar co-
bria a Bacia Amazônica: um outro mar se estendia pela bacia do
atual Paraná. e. ainda. um terceiro abrangia a área correspondente
aos estados do Ceará. Piaui, Maranháo e à parte leste do Pará.
Houve época mesmo em que esse último mar esteve ligado ao da
Bacia do Paraná por um canal marinho que se estendia pelo vale do
atual Rio Tocantins.
Essas invasões marinhas (e posteriores recuos) ocorreram vá-
rias vezes e em diferentes lugares do continente, correspondendo a
períodos de elevação do nível dos oceanos. Cada vez que o nível

2t
I
subia, o mar invadia as partes mais baixas, por onde podia pene-
trar. Depois, à medida que o nível do oceano baixava, ficavam gran-
des mares, que iam secando progressivamente e depositando seu
sal. Da mesma forma, a regiáo hoje percorrida pelo Rio Sáo Fran-
cisco também foi invadida pelo mar. Mas isso aconteceu muito mais
tarde, há cerca de 135 milhões de anos, logo após a separação do
nosso continente da África. Esses avanços e recuos do mar sobre o
continente ocorreram outras vezes.
Depois que o oceano recuou, atingindo o seu nível atual, mais
baixo, os próprios rios carregaram para o mar parte do sal acumu_
lado. Além disso, trouxeram de suas cachoeiras novos sedimentos

GEOSS

...:,'

EI

Áeos de invosÕo no &osn


-__-"]
Áeos dê invo§óo torodo srosl

22
I
I ê-i;T
d

A rocha em primeiro plano, de cor


acinzentada, é calcário de origêm marinha.
E uma evidencia oe que o seíào ja ,oi mar.

argilosos e arenosos que foram sendo depositados em toda a


bacia. Finalmente, a região, tornando-se mais seca, sofreu a ação
dos ventos, que espalharam esse material, formando dunas em
alguns pontos, enquanto as chuvas torrenciais nivelaram o lerre-
no. Novos rios rasgaram os solos, {azendo com que o sal, mistu-
rado com as argilas, aparecesse nos barrancos.

Como se formou a caatinga

Aos fenômenos da natureza em geral não se aplicam os ,.por


quê?" e os "para quê?" usuais nas questões que envolvem nosso
raciocínio lógico. Apenas os "como?". A natureza náo segue as
nossas regras lógicas e náo tem finalidade explícita. A lógica que
explica uma seqüência de fatos e de fenômenos naturais surge de
nossa própria criaçáo, da necessidade que sentimos de organizar e
de tornar claros os acontecimentos.
Entretanto, no caso da formação de desertos e de paisagens
em estágio de desertificaçôo como parece ser a caatinga
- -,
23

I lt,
freqüentemente se aponta o ser humano como seu principal res-
ponsável. Se assim for, é justiÍicável o "por quê?", embora seja
muito duvidoso um "para quê?". O ser humano é indiscutivel-
mente causador de desertos, embora náo os faça conscientemen-
te, como se tivesse uma finalidade premeditada. No caso da caa-
tinga. porám, essa suposiÇáo de uma origem humana ou "antró-
pica" é discutível.
Tem sido muito apontada e demonstrada a forma pela qual o
ser humano inlerÍere emregiôes de densas florestas tropicais, trans-
formando-as, progressivamente. em áreas estéreis, em campos de
areia solta, alterando até mesmo o regime de chuvas. A esse pro-
cesso já foi atribuída a formação de pelo menos alguns dos atuais
desertos africanos. uma vez que. há poucos milhares de anos, ali
existiam florestas exploradas pelo ser humano.
Na regiáo amazônica temos exemplos muito claros desse pro-
cesso de desertificaçáo. Em grandes áreas, as florestas Íoram sen-
do cortadas ou queimadas, repetidas vezes,
Na Amazônia, as para dar lugar a pastagens ou a plantações
queimadas dáo
origem a extênsas de cereais. Com isso, em poucos anos, a
áreas estéreis.

!,,

24
a

O corte das árvores para


terra tornou-se improdutiva, formando exten- formaÇáo de pastagens
contriLlui para a alteração
sos areais onde náo cresce mais nada. A mes do ambiente na Amazônia
ma coisa pode ser observada nas terras proxi
mas ao litoral. em toda a costa brasileira.
Porém, como já Íoi dito, a situação na caatinga é bem dife-
rente. Nela os solos sáo muito rasos e férteis, ao contrário da
Amazônia ou de grande parte do litoral, que sáo regiÕes cons-
tantemente lavadas pelas chuvas contínuas. Nessas regiões, o
terreno formado por depósitos de areia ou de argila chega a ter
até 60 metros, antes de atingir a rocha, e o solo é constituído de
materiais muito permeáveis.
Nessas condições, os poucos sais fertilizantes existentes na su-
perfície do solo amazônico, pela açáo da chuva, são continuamente
lavados e transportados para o fundo, fora do alcance das raízes. Na
caatinga, ao contrário. o solo tem apenas poucos centímetros de
espessura. E as chuvas sáo poucas, de modo que esse solo é cons-
tituído, em sua maior parte, de argilas ricas em sais nutrientes.
O clima também é muito diíerente. A julgar pela pouca espes-
sura dos solos, as chuvas sempre íoram aÍ muito menos Íreqüentes

25
I
I
que na Amazônia e no litoral, pois a decomposição das rochas para
formaçáo de solos proÍundos é devida, em grande parte, à presen-
ça de umidade constante.

O clima da região

O clima no sertão não é de deserto, ou árido, mas, sim, semi-


árido. No clima árido chove, em média, menos de 100 milímetros
por ano. Se medirmos com auxílio de uma régua a altura da água que
cai em cada chuva em uma pÍoveta. por exemplo veremos que
- -,
a sua soma, ao Íim de um ano. em média náo chega a atingir mais do
que 10 centímetros. Ao contrário. na Amazônia, ou no litoral, essa
soma em geral ultrapassa 2 e. às vezes. até mais de 3 metros.
No sertão, entretanto, as chuvas atingem médias superiores a
400 ou a 500 milímetros e, às vezes, mais. Ora, chuvas de 400
milímetros anuais caracterizam, na Europa, extensas áreas, muito
produtivas, como a regiáo central da
Espanha, por exemplo, onde são pro-
duzidas excelentes maçás, muita azei-
tona e até um ótimo vinho, além de
milho, girassol e outras sementes. Qual
a diferença? Por que o solo do sertáo
não produz quase nada?
A principal diferença se deve à
irregularidade das chuvas. Embora, em
E
alguns lugares. as precipitações pos-
sam chegar a quase mil milímetros
anuais, elas não ocorrem sempre na
mesma época e, às vezes, passam-se
alguns anos sem que caia uma gota de
chuva. Nas regiÕes citadas da Europa,
as chuvas ocorrem durante alguns
meses, na mesma época, todos os
26

I
)
M5m .1 .l
liil
,GíiiÚt
t 1

t.,

s
I
Inundaqáo de uma
anos. encharcando os solos e armazenando-se no sub- cidade no Nordêsle.

solo. tal como acontece, por exemplo, nas matas de


cerrado. que recobrem a maior parte do Brasil central
Dizemos. Dofianto. que o regime de chuvas no sertáo é Íor-
renciol. isto é. chove tudo de uma só vez", em poucos dias, trans-
bordando rios. inundando cidades, Íormando torrentes que esca-
vam o solo em r. ários lugares. Como esse solo náo é muito perme-
ável, a água não penetra, não se acumula, isto é, escoa toda de uma
vez. Em seguida ,, oltam o sol e a seca, a qual pode durar um ano ou,
às vezes. muito mais. Quando náo sofre pela seca, o nordestino
padece pelas inundaçôes, que invadem casas, destroem plantações
e chegam a afogar seu gado.
Além da elevada temperatura, que provoca uma evaporação
muito grande e rápida das águas, os morros do Nordeste se acham
de tal modo situados que canalizam os ventos quentes que provêm do
Oceano Atlântico (ventos á[sios). Esses ventos, emboia tenham ori-
gem no oceano. perdem sua umidade ao contato com as regiões
litorâneas. Além disso a região do sertão está localizada sobre chapa-
dos ou planaltos de 200 a 500 metros de altitude, os quais formam
um degrau ou paredão. ao longo da costa, dificultando a penetraçáo

27

I
r

da umidade marinha. Essa umidade é toda precipitada na orla mari


nha e na Zona da Mata nordestina.
Finalmente, é a própria geologia isto é, a natureza do solo
e das rochas que dificulta a
-
retenção
de água. A presença de sal
-
no solo Íaz com que a água de muitos poços e lagoas seja imprópria
para ser bebida ou para ser utilizada na irrigação. Muitos açudes,
construídos com a finalidade de reter a água que cai na época de
chuva, toÍnaram-se mais salgados que a própria água do mar, per-
dendo totalmente a sua utilidade.

copí1ulo

rio e a vegetação

O Rio São Francisco


O São Francisco, chamado Rio da Unidade Nacíonal, tem
um trajeto de 2.600 quilômetros. Ele nasce no Estado de Minas
Gerais e atravessa a maior parte da região da caatinga, no sentido
sul-norte, até o extremo norte da Bahia. Aí ele se volta para o mar,
a leste, formando as divisas entre Bahia e Pernambuco e, depois,
entre Sergipe e Alagoas.

28
I
O volume de água que
as I DnE GAS DO o FRAiactsco
o Sáo Francisco lança ao mar
ê de, em média, 3.300 me- LUIs

tros cúbicos por segundo. No


trajeto. siluam-se algumas gi. MA
gantescas usinas hidrelátricas. t: Notol

como a de Paulo Aíonso, na l


Bahia. e Xingó, entre Alago-
as e Sergipe. Essas duas usi-
nas estão entre as de maior
BA
rendimento energético do '.i.ósotvooor

mundo, pela quantidade de -'--


energia que produzem em re-
laçáo à pequena área de terra
MG,
inundada pelas represas. lsso -..'
é possível porque o Sáo Fran-
cisco Íorma nesse trecho um vale profundo, com grande volume de
água. As represas de Sobradinho e Itaparica, localizadas no mesmo
rio. ao contrário, ocupam grandes áreas, pois o Velho Chico, nesse
trecho. corre numa planície.
Como se explica, entáo. que um rio com tanta água (um dos
maiores do Brasil) atÍavesse uma região de secas tão Íortes e táo
prolongadas? E por que esse grande rio não fornece água para o
sertão? Embora não seja. talvez. percebida à primeira üsta, a expli-
caÇão não é difícil.
Em primeiro lugar. essa vazáo média, de mais de 3 mil metros
cúbicos por segundo. á muito variável. Quando chove no sertáo, o
rio se enche e transborda. chegando a Íicar, em alguns lugares, com
mais de 10 quilômetros de largura. Quando, porém, há uma seca
prolongada, em que o Nordeste permanece sem chuvas por mais de
um ano, a largura do rio. nesse mesmo lugar, se reduz a 500 ou 600
metros. Nessas ocasióes, o Velho Chico transporta apenas a água
que traz lá do estado de Minas Gerais, onde chove todos os anos.

29
I
(

Complexo
hidrelétrico de
Paulo Afonso,
no Fiio Sáo
Francisco.

A segunda questão reÍerente ao aproveitamento da água do


-
Sáo Francisco para melhorar as condiÇões do Nordeste _
dá margem
a muitas discussões. É preciso lembrar, de início, que
um rio. normal_
mente, náo fornece óguq, mas. ao contrário, d,rena umaregiáo.
Isso
quer dízer que ele aproveita a água da chuva que
cai sobre os solos.
Assim sendo, o Rio Sáo Francisco está continuamente recolhendo
a
água que cai sobre as teÍTas do sertão, levando_a para o
mar.
Mas é claro que, em seu trajeto, o Velho Chico acaba transfe_
rindo água de uma região para outra. É possível aproveitar
uma
parte dessa água transportada como aquela que vem das regiões
chuvosas de Minas Gerais
-
beneficiando o sertão da Bahia e de
-,
Pernambuco. Do mesmo modo, as chuvas que, repentinamente,
caem na Bahia serviriam para irrigar Sergipe ou Alagoas.
Isso só é
víável (e vem sendo feito, mas ainda em pequena escala)
mediante a
construçáo de represas e canais de irrigação que levem as
águas do
rio às regióes de plantações situadas às suas margens. Infelizmente,
ainda se morre de sede e fome em lugares situados
a 30 ou 40
quilômetros desse grande rio. Um bom exemplo
disso foi a constru_
çáo em poucos meses de um grande canal que leva água do
- -
Rio Jaguaribe o maior rio do Ceará para alimentar a região de
-
Fortaleza, a mais de 100 quilômetros -de distância.
30
I
Atualmente, as obras de um grande projeto de irrigação e abas-
tecimento de águas, abrangendo mais de quinhentos municípios do
Nordeste, estão sendo Íeitas. Tal projeto prevê desvios e canalizaçôes
de parte das águas do São Francisco. lsso seria realizado por meio de
dois grandes sistemas de canais: o eixo norte, que deve partir da
região de Cabrobó, em Pernambuco, e dirigir-se através desse estado
em direção ao Rio Grande do Norte, fornecendo água, em sua passa-
gem! paÍa uma grande área do Ceará e oeste da Paraíba; e o eíxo
Ieste, que partiria da grande represa de Itaparica e seguiria em dire-
ção à porçáo leste da Paraíba, através do estado de Pernambuco.
Grandes divergências ocorrem entre políticos e técnicos a res-
peito desse grande plano, o qualjá Íoi objeto de diferen-
tesalternativasdeprojeto,desdemeadosdoséculoXIX.

A TNAN§POSI ODORIOS O FRANCISCO

CEARA

t RIO GRANDE
DO NONÍE

PIAUI
r "fY1on*.
PARAIBA

í.*"
J I
i
)
Pêssdtó ó
r.+.

PÊR

BÂBlÂ

ATAGOAS

conÔis o conlÍuÍ ..SERGIPE


3
-
t!
Eixo poro o sêmi'óido pLôuleNê (êm eíudo) ,!

- I
p

I
Alguns acham que, nas épocas de seca justamente quando haverá
maior necessidade de irrigaçáo
-
o Sáo Francisco dispõe de muito
-,
pouca água, correndo o risco de secar, ou, pelo menos, ter suas ca-
racterísticas de tal maneira modiÍicadas a ponto de prejudicar sua rica
Íauna aquática. Outros, ao contrário, garantem que a quantidade de
'l_ água desúada para esse sistema será mínima, em relaçáo ao volume
do rio: apenas 64 metros cúbicos por segundo, o que representa não
mais que 2o/o da suavazáo média. Outra corrente sustenta que a obra
é desnecessária diante das enormes reseryas de águas subterrâneas,
inteiramente inexploradas. que existem na região. Entretanto, mui_
tos temem que as águas do subsolo contenham grande quantidade de
sal, o que as tornaria inaproveitáveis. Tais divergências exigem estu_
dos mais aproÍundados. que estáo sendo realizados.

O caminho do Velho Chico


Muitas lendas existem em toÍno do Rio São Francisco. No
século XVIII contava-se que ele nascia em uma fabulosa lagoa

Luís

Noiol

Rêclre

Poilgoôo dos secoâ


a.êcrprtoçõ* iníêÍiôrês
-

32

Ê: I
E

q
a

Ilm Íecho do Rio das Velhas


dourada, chamada Manoa,
localizada em \I:nas Gerais, onde havia quantidades enormes
de pepitas de o.,t:o brilhando ao sol. Outra lenda dizia que, em
um certo treclo. o rio desaparecia em um sumidouro, percor-
rendo 70 quilôi:eiros. ou mais, por baixo da terra Na verdade,
desde o iníc:o co século XIX, todo o trajeto do Velho Chico
'rem
passou a ser conhecido, e o rio tem sido utilizado para
navegaeão e penetracão pelas terras do Nordeste' Mas, muito
antes dessa data. os bandeirantes paulistas e mineiros já havi-
am colonizado a região através do rio.
O Rio São Francisco nasce junto à Serra da Canastra, onde
é formado principalmente pelo Rio Paraopeba e pelo Rio das
Velhas, sendo que €sse último nasce próximo à cidade de Belo
Horizonte. Nessa região chove, normalm ente, entte os meses de
outubro e marÇo. e. com menos intensidade e freqüência, algu-
mas precipitacóes tambám podem ocorrer em outros meses' Ao
norte de Minas. entretanto, já se inicia o Polígono das Secas'
Embora as precipitaÇóes médias não sejam muito baixas, como
vimos anteriormente. as chuvas são irregulares, podendo passar
anos sem que elas ocorram.
33
Afualmente o Rio São Francisco é quase todo navegável,
com
exceção de um trecho sihrado ao longo da diüsa entre
os estados da
Bahia e de Pernambuco, onde ele corre em g&gantas
muito estreitas,
cavadas na rocha calcária, e é entremeado de corredeiras
e cachoeiras.
Quando o rio se enche e transborda, sua várzea, isto é, toda a
parte baixa atingida por ele, torna-se muito fértil. Isso
acontece não
só por causa da água, mas também pelo limo fino que
ele transporta,
em seu hajeto. de regiões dislantes. A medida que as águas
baixam
novamente a partir de abril ou maio, dependendo do ano e do
lugar
-
o sertanejo começa a Íazer suas plantações. primeiro são
-,
semeadas aquelas plantas que váo levar mais tempo para
ser colhi_
das: mandioca, milho, feijão. Enquanto o nível da água
vai baixando,
o rio deixa uma faixa de várzea que se alarga. E o caboclo
vai plan_
tando sempre, durante os meses seguintes, até que o rio
volte à sua
largura normal. Nessa faixa sáo semeadas as plantas de
colheita rápi_
da cebola e verduras pois o sertanejo sabe que, de repente, o
- -,
rio pode receber mais chuva em algum ponto, e toda a
várzea será
novamente inundada, a comeÇar pelas partes mais baixas.

Depois de Juazeiro, o Rio São Francisco corre


34 êm profundas gargantas cavadas na rocha.

I
A vegetação
*
O Íermo caatingo aplica-se a toda a vegetaçáo típica do semi-
árido. Entretanto, ele não se reÍere, na verdade, a um tipo de vege-
tação homogênea em toda a área do sertáo. Há lugares onde pre-
domina a vegetaçáo arbórea: outros em que sáo mais freqüentes os
arbustos. Em alguns pontos os cactos estáo presentes em grande
quantidade; em outros eles sáo muito raros. Essas variaçôes depen-
dem, naturalmente. das condiçôes de solo e de topografia, ocorren-
do diÍerenças significativas entre as regiões de vârzeas, cortadas por
rios (mesmo que não sejam perenes), as de solo mais pedregoso, as
de terra mais escura, os locais altos, os vales e assim por diante. Por
isso o sertanejo usa diferentes palavras para expressar as diÍerentes
feições da caatinga. como: cdrrdsco (carrascal, ou carrasqueira),
quando possui l,egetacão mais rala e enÍezada; coriri, quando, ao
contrário. apresenla vegetação mais branda; seridó, quando tem
características de campo. com vegetação rasteira; ogreste, quando
tem solo muito pedregoso. etc.
Entretanto. todas essas variantes apresentam características em
comum, representadas por adaptações ao calor e à falta de água. Por
exemplo, as plantas da caatinga são, em geral, caducífólios (ou co'
ducos), isto é. perdem as folhas durante o período de ausência de
chuvas. Ou. então. são destituidas completa ou parcialmente de fo-
lhas, como os cacros e as coroas-de-cristo. A ausência ou perda tem-
porária das folhas constitui uma resposta à falta de água no solo, uma
vez que e pelas folhas que as plantas perdem água. Outro modo de
prevenção contra a seca consiste no armazenamento de água no
caule ou nas raízes. Os cactos, por exemplo, guardam grande quan-
tidade de água em seus caules suculentos; o umbuzeíro (ou imbuzei
ro) possui tubérculos (cuncos) nas raízes que contêm água; as borri-
gudos armazenam o líquido em seu tronco obeso.
Nas proximidades das margens do São Francisco, a vegeta-
çáo é densa, íormada de árvores grandes e arbustos com muitas
35
I
O ipê-roxo e o
ipê-amarelo.
Um momento
de grande
beleza.

Í
Íolhas. Aí são comuns a braúno. a
aroeira. o umbuzeiro e o juazeiro-
todas árvores de grande porte. bem
copadas e quase sempre com folhas
que oferecem boa sombra. Há tam-
bêm o ipê-amarelo (no sertáo é cha-
mado de caraibeira) e outras boas
madeiras, como o pau-de-balso, o
1 pau-d'orco (o ipê-roxo. do sul), que,
IÍ embora sejam árvores grandes, per-
dem completamente as folhas nos
meses secos. Mas essa faixa verde.
numa parte considerável do rio, varia de 100 a 200 metros de
largura. Quando o terreno, afastando-se do São Francisco, se
eleva um pouco, comeÇa a caatinga propriamente dita.
A diferença em poucos metros é fantástica. A vegetação
- -
torna-se rala, deixando aparecer sempre o solo nu de cor ferrugino-
sa, e as plantas sáo agora apenas arbustos retorcidos e espinhen,
tos. Em lugar das grandes árvores que, entretanto, podem ainda
-
ocorrer aqui e ali, quase sempre secas e sem folhas predomi-
nam agora os cactos, de várias espécies diÍerentes.
-,

--+ l
Os cactos sáo plantas muito interessantes. Na verdade, sáo
resultado de uma completa e verdadeira adaptaçáo às condições de
seca muito prolongada. Essa adaptação consiste, antes de tudo, na
inexistência de folhas, que, em qualquer planta, são órgáos de gran-
de superÍície e de pequeno volume, destinados à transpiração -
Em vez de
isto é, à eliminação de vapor de água
- e à fotossíntese.
folhas, os cactos possuem espinhos, com muito menor superfície e
que não transpiram. Com isso perdem muito menos vapor de água'
Como não possuem superficie de folhas pata Íazer a indispensável
fotossíntese, eles adaptaram seu caule a essa funçáo. Por isso, este
se apÍesenta achatado, como uma raquete de pingue-pongue, ou
em Íorma cilíndrica. recortado em número variável de gomos' Esse
caule (ou clodódio) é ainda sempre verde, pois é nele que se encon-
tra a clorofila. Além disso. os cladódios sáo constituídos por uma
espécie de tecido que contém muito suco, formando uma reserva
de água para a planta.
Alguns cactos conseguem retirar umidade do próprio ar, armaze-
nando-a nesse seu estranho caule. Sáo, pois, plantas particularmente
adaptadas aos desertos americanos, como os do México e outros da
América do Norte e do Sul. Ao contrário do que geralmente se supõe,
os grandes .desertos africanos náo possuem cactos, mas, sim, outras
{amílias de plantas como as euló rbias, de que Íazem parte as nossas
-

. f.. .*
Cactos de várias
espécies fazem parle ; l'r
da paisagem típica da .
2
caatinga. a
I
Í
37
I
coroas-de-cristo e outras que segregam "leite,, com os mesmos
-
tipos de adaptação que os cactos, isto é, reduçáo das folhas e sua
substituição por espinhos, ou, ainda, acúmulo de líquido no caule ou
nas raízes.
São inúmeros os tipos e formatos de cactos existentes na
caatinga. Entre os que possuem o caule em forma de raquete está
a palmatória ou quipá. Cultivada pelo sertanejo. essa planta for_
ma verdadeiras cercas e, cortada em pedacinhos. é utilizada (como
já dissemos) para matar a fome e a sede do gado. Os maiores
cactos são encontrados entre as espécies cujos caules têm o for_
mato aproximado de um cilindro. Alguns possuem um aspecto
bonito. É o caso do mandacaru. cuja aparência é a de uma árvo-
re, e o tronco principal chega a rer dezenas de centímetros de
diâmetro. Ele é usado em carpinraria. pois fornece tábuas de cor
clara e leve. muito empregadas na confecção
de caixotes e caixões.
A espécie mais bela. pelo pone e pelo for-
mato quase cilíndrico. não muito recoftado em

I
t
É

'*§

'<"
O Íacheiro é F
outra cactácea
comum na
caatinga.

O mandacaru
também é usado
como forragem
38 para o gado.

_§: I
gomos, é o t'acheiro, um cacto grande, com seus caules de cor
azulada, elevando-se quase verticalmente.
Há ainda espécies mais rasteiras, como o xíquexíque e o alas-
trado, que espalham seus caules espinhentos rente ao solo. Um
cacto muito interessante. pelo formato quase de uma bola e por
possuir flores muito vistosas por isso cultivado em vasos, em
-
toda a parte é a coroa-de-Jrade.
-.
Quase todas essas plantas produzem flores muito bonitas e
frutos saborosos principalmente os Írutos vermelhos do manda-
caru. Mas á necessário ter muito cuidado com seus espinhos, mes-
mo quando são reduzidos a agulhas muito Íinas e pequenas, de cor
esbranquicada.
Existem também outras espécies de plan-
ta que. apesar de nào pertencerem à Íamília
dos cactos. apresentam, como já dissemos, o
mesmo tipo de adaptação à seca. O cansan-
Ção, que muira gente conÍunde com o cacto,
Í
à

A coroa-dêJradê

O xiquexique é lambém
& conhecido como chocalf,o
, e guizo-de-cascavel.
-j

.-
I
d

q.

a ,.4
í

náo pertença à íamília


=mbora
dos cactos, o cansanÇáo
possui muitos espinhos. 39
é, entretanto, uma planta perlencente a outra família botânica, a
mesma das conhecidas coroas de-cristo, que são cultivadas em jar-
dins. Estas são eut'órbias, tal como a mandioca, e distinguem-se pelo
"leite" que sempre produzem quando seu caule ou folhas são corta
dos. Em algumas espécies do sertão, esse "leite" é fosforescente, isto
ê, emíte lw à noite. Os ferimentos produzidos pelos espinhos do
cansanção podem causar queimaduras bastante doloridas.
Outras plantas agressivas, cujas folhas espinhentas brotam di
retamente do solo da caatinga, sáo os grouolás. da família dos aba-
caxis, porém muito maiores. As macambiras e os coroós. que for-
necem boa fibra para fazer cordôes. redes e panos para roupa,
também Íazem parle desse grupo.
Os outros vegetais da caatinga arbustos ou árvores
-
também estão adaptados às condicÕes de seca prolongada, mas
-
não táo radicais. A maior parte deles despe-se das folhas durante
o período em que não chove. Outra parcela possui reservas de
água no caule, como a Íamosa barriguda. uma espácie de pai
neira do sertáo, de caule muito grosso. que tem a aparância de
um grande barril. Alguns, ainda. reservam água nas
A bâÍriguda acumu,a raizes; entre estes o mais famoso ê o umbuzeiro. a
água no seu tronco.

Ç'
EF-I

40 I

I
grande áÍvore que Euclides da Cunha em Os serÍóes
denominou
em suas
de "a árvore sagrada do sertáo" O umbuzeiro possui
raízes grandes bolas cheias de água, parecidas
com o coco-da-
pelas pessoas'
baía. Essa água pode ser bebida pelos animais ou
Nas secas mais Íortes. quando o sertanejo vem
tangendo o seu
gado ao longo da caatinga por dias e dias sem achar água'
o

encontro de um grande umbuzeiro pode ser a sua salvaçáo'

copÍtulo

A f"un" da caatinga

Os animais nativos
às condi-
Assim como as plantas, espécies animais adaptadas
ções da seca desenvolvem-se
ali Porém, há uma diferença muito
isto á'
importante: ao contrário das plantas, os animais migram'
da presença
mudam de morada no decorrer do ano, dependendo
ou ausência de água e de alimento em cada época'
novo'
É interessante observar, por exemplo, como um açude
]
regiôes mais
formado pelo represamento de um pequeno rio nas
41

i
secas da caatinga, em poucos meses se torna povoado. São patos,
frangos d'água e outros animais terrestres, aêreos e aquáticos que
transÍormam a regiáo inóspita em um verdadeiro oásis fértil e rico.
Idêntico fenômeno pode ser observado nas poÇas, que. poucos dias
após as chuvas, aparecem povoadas de pequenos animais aquáticos.
Contudo, pequenos animais terrestres predominantes na re-
gião, embora sejam também encontrados em outros ambientes, sáo
os que têm maior capacidade de economizar água ou de obtêJa por
processos peculiares. Insetos, aranhas, pássaros e lagartos vivem,
permanentemente, entre os cactos e plantas secas da caatinga. Es-
ses animais se alimentam e retiram água diretamente dos frutos, da
seiva ou do pólen dos vegetais ou de outros animais que capturam.
Vivem geralmente em tocas cavadas nas árr",ores e arbustos. prote-
gendo-se do sol forte. Muitos insetos. aranhas e também pequenas
aves e mamíferos encontram no meio dos espinheiros um lugar
protegido contra o ataque de animais predadores. sendr: essa uma
possível explicaçáo pela preferência que manifestam pela caatinga
como seu ambiente natural.
Os répteis, como os lagartos, as serpentes. as laganxas etc.,
são animais que economizam água seja por não excretarem urina,
mas, sim, ácido úrico em forma sólida, seja por não possuírem tem-
peratura constante. não necessi-
Lando transpirar para regulaçào
térmica, como as aves € os rna-
míferos. Por isso são animais que
üvem bem nos desertos.
As aves, apesar de também
excretarem sólidos (o que lhes

O gavião conseguê
enxergar as suas
presas de grandes
Í alturas.

42
I
,l
A seriema alimenta se de
lagartos e lagartixâs bem
como de cobras.

g
A rolinha é
semelhanie à
pomba, mas
bem mênor.
dispensa a presenÇa de bexiga, aliviando-
lhes o peso para o vôo), necessitam de
.%." 1jffik-wt ..,a

água para transpirar. principalmente atra-


vés das áreas cobertas pelas asas, que 4
mantêm abertas nas horas de muito ca-
lor. Em geral. obtêm água por meio do Í
alimento. que ingerem continuamente.
Gavióes e urubus são comuns na
regiáo da seca. Os pdmeiros atacam e devoram pássaros, ratos,
lagartos e até serpentes venenosas. Quanto aos urubus
- e às ve-
zes os próprios gavióes estes costumam alimentar-se fartamente
-,
dos animais que moÍrem de fome ou de sede, como bois e cavalos,
que nas secas mais prolongadas sucumbem em grande quantidade.
Há também uma enorme variedade de aves de grande porte,
como a seriemo. que se alimenta de lagartos, lagartixas, serpentes
e vegetais.
Outras aves menores, como as pombas e as rolas, gostam
sobretudo de sementes e migram para regiões onde ocorrem chu-
vas e a vegetaçáo está verde e florida. Aproveitam, então, para
alimentar-se, fazer seus ninhos e reproduzir-se rapidamente. Quan-
do volta a faltar água, os filhotes já estão crescidos e podem voar
para regiões mais propícias, às vezes muito distantes.

43
I
Já os mamíferos, embora realizem grandes caminhadas, náo
migram como os pássaros para lugares muito distantes. Procuram
os rios e as lagoas que ainda contenham água e aí permanecem.
Pequenos mamíferos, como ratos, abrigam-se em tocas ca-
vadas no solo, onde conseguem um ambiente mais úmido, e ali-
mentam-se de sementes e raizes que lhes garantem o suprimen-
to de água. Já outros que são carnívoros abastecem-se pela caça,
uma vez que o corpo de qualquer animal contém Ílelo menos
7 Oo/o de âgua.

Ao entardecer ou durante a noite, o sertanejo. conhecedor


dos hábitos dos animais, prepara armadilhas ou íaz a sua "to,
caia", de espingarda em punho, justamente nesses poucos ma,
nanciais barrentos que sobram, onde a caça vem beber água. Aí
é possível capturar até animais de grande porte, como o lobo-
guará (o "falso lobo" brasileiro), de pernas longas e pêlo aver,
melhado, ou animais menoÍes, como fofus, gambás e roedores.
Se tiver sorte, o sertanejo
pode até caçar um goro-
do-mato, que costuma vir
_t
para a beira da lagoa à
I procura de água ou para
caÇar os animais que ali se
É
encontram. Às u"r"a o
sertanejo consegue captu-
O cateto é rar alguns catetos ou cai-
ouÍo habitante
da caatinga.
firus, pequenos porcos selvagens que. em
bandos, atravessam a caatinga.
Nos rios em que a água é permanente como no São Fran-
cisco
-
podem ser encontrados on tas, copioaras, /on Íros e vários
-,
outros animais. Estes náo costumam se afastar muito do grande rio,
mesmo nas épocas em que chove na caatinga. São espécies que
dependem da água e usam o São Francisco tambám como meio de
defesa ou ambiente natural.

44
I
Há ainda os animais inimigos do sertanejo É o caso de
parecem ser
algumas perigosas serpentes, como a cascouel, que
mais numerosas durante as secas prolongadas' Outro exemplo
sáo os morcegos hematófogos (vampiros), que sugam
o sangue
de bois e cavalos (e. eventualmente, de pessoas profundamente
adormecidas). enfraquecendo os rebanhos ou transmitindo-lhes
doenças. provocando,
assim. perdas Para o ser-
tanejo. E. f inalmente, a
suÇuarano. uma onÇa
cor de palha. quase do
tamanho da onca-Pinta-
da. Embora menos
agressiva. ataca e devo- z
ra um grande número de
cabras ou. às vezes, de e
Í
bezerros p€quenos.
As capivaras
costumâm andar
em bandos.

A suÇuarana,
ou onça-Parda,
uma caÇadora
z de hábitos
noturnos.
9
Í

45
Os animais aquáticos

E interessante observar que, ao ser formada uma lagoa ou um


açude, logo aparecem os peixes, em plena região seca do sertáo.
Alguns ovos são trazidos pelo próprio rio que Íormou o açude. Outros
são transportados por pássaros pescadores. que os deixam cair ao
sobrevoar um riacho ou lagoa próxima em direÇão ao seu ninho. É
mais comum, porém, o transporte dos ovos dos peixes presos nos
pés de garças e marrecos ou nas plantas que estes carregam de um
lago para o outro.
Nos rios permanentes e em alguns lagos e ãçudes sào encon-
trados animais que atacam as pessoas e o gado, como os jacarés e,
sobretudo, as píranhas.
O jacaretinga, uma espécie de lacarê que chega a ter mais de
2 metros, já foi muito abundante em todo o Rio São Francisco. mas
tornou-se bem mais raro. A "jacarezada" é um prato típico das regi-
ões situadas às margens do Velho Chico e, segundo dizem. muito
saboroso, parecendo-se com a carne de peixe. Mas a procura pelo
couro do jacaré
- paraqueatender à moda de bolsas, sapatos e cintos
de "crocodilo"
- é o verdadeiramente tem exterminado esses
animais no São Francisco e nos rios do Pantanal Mato-Grossense.
Atualmente, entretanto, esses répteis se acham sob protecào legal
e estáo aumentando bastante em número.

O jacaÍé do
Flio São
Francisco.

46
I
O mais famoso dos
peixes do Nordeste. não
pelo seu tamanho e sa-
bor, mas, ao contrário.
pelo perigo e pelos pre-
juízos que causa. é a pi-
ranha. o mais voraz e
panguinário p eixe de
água doce em todo o
mundo. Ela rambém é
responsável pelo extermi
nio do jacareiinga. A pi-
ranha é pequena: seu
comprimento geralmente
não ultrapassa um palmo. Seus dentes, solidamente en- As piranhas sáo
comuns nâs águas
cravados na boca grande que se abre desmesuradamen- do sertão.
te, sáo cortar:,tes como pequenas navalhas. Sempre em
cardumes numerosos, ela ataca qualquer coisa que se mova na su-
períície da água. principalmente se sentir a presença de sangue. A
piranha chega a saltar fora da água ou sobre a margem para atacar
sua presa. por rsso e facilmente pescada. Quando bem preparada e
liwe de sua grande quantidade de espinhas, Íica muito saborosa. O
caldo de piranhas coado, que se toma como sopa nas cidades de
Mato Grosso e em regióes do Nordeste, além de gostoso, consiste
em rica íonte de proteínas.
Entretanto. a piranha é mais um flagelo a dificultar a vida
do sertanejo. iá bastante castigado pela seca e pela fome. É um
peixe que se adapra facilmente a todos os ambientes de água
doce: grandes rios. como o Sáo Francisco, ou pequenos, de águas
velozes ou lentas. assim como açudes e represas de qualquer
tamanho. Por isso muitos açudes construídos no Nordeste em
pouco tempo váo perdendo uma de suas mais importantes utili-
dades, que ê íornecer água para o gado. As piranhas invadem

47
O surubim

esses aÇudes, e aí se multipli-


cam exkaordinariamenle, des-
truindo outros peixes. alacan-
do, ferindo, e até matando o
gado que se aproxima da água
para beber ou que entra no
açude para banhar-se.
Muitas vezes, quando é necessário atravessar um rio inÍestado
de piranhas, o sertanejo, ao conduzir sua boiada, vê-se obrigado
a
sacrificar um dos animais. Lançado à água, rio abaixo, o animal
é
imediatamente atacado por milhares de piranhas, que o devoram
em poucos minutos. É o tempo necessário para que o sertanejo
faça a travessia do gado, o mais rápido possível, num ponto situado
mais acima. Vem daí a expressáo "boi de piranha,,, empregada em
situações que exigem o sacriíício de alguém ou de alguma coisa.
Muitos pescadores e criadores de gado que vivem em regiÕes
próximas aos rios e açudes onde proliferam piranhas têm suas
màos
e pés mutilados, ou grandes cicatrizes nas pernas e braços. em de_
corrência das mordidas desses peixes.
O Rio São Francisco, assim como outros rios do Nordeste. é
muito rico em peixes de boa qualidade. O maior e um dos mais
saborosos ê. o píntado ou surubim, que chega a ter mais de
3
metros de comprimento e é a base de vários pratos extremamente
ricos e saborosos, típicos do interior de Minas Gerais e de todo
o
sertão nordestino. São comuns ainda no Sáo Francisco. nos afluen_
tes e nas lagoas por ele formados outros peixes de boa qualidade,
como a pírapitínga, o pacu, o bagre, o cascudo etc. 1

48
t
I
Os animais domésticos

A atividade principal na caatinga é a criação de gado: vacas e


cabras. No dizer de Euclides da Cunha, "todo sertanejo é vaqueiro".
E prossegue: Aparte a agricultura rudimentar das plantações de
uazonte. pela beira dos rios, para a aquisiçáo de cereais de primeira
necessidade. a criacão de gado é, ali, a sorte de trabalho menos
impropriada ao homem e à Íerra" .
Os rebanhos nordestinos sáo grandes. Geralmente pertencem
a fazendeiros ricos. que não vivem no sertáo e sim no litoral. O
sertanejo cuida do gado para eles e recebe, em troca, uma parte da
sua producão em leite e bezerros.
As racas mais rústicas de bois sáo as que suportam bem a
seca. Alimentam-se. às vezes, sô de cactos e, por isso, freqüente-
mente têm o focinho marcado por grandes cicatrizes resultantes de
ferimentos ca rsados pelos espinhos.
A ma:o:- :al'te desse rebanho é constituída de
gado de corre. ic qual são aproveitados a carne e o A criação de cabras é uma
couro. Em g:-ar.ie parte, essa carne é salgada e seca das principais atividades
econômicas da caatingâ.

:
49
I
A carne de-sol
é um alimento
muito típico do
sertáo
nordestino.

ao sol. originando a famosa carne de-sol. Misturada à iarinha


de
mandioca e temperada na manteiga de garrat'a _ uma
manteiga
fervida, salgada e conservada em garraÍas
pal alimento do sertanejo. -. ela constitui o orinci_
O jerimum (ou abóbora) com leite acompanha a carne,de-sol
nas épocas de fartura, e a umbuzada, doce feito com
umbu. o fruto
do umbuzeiro, é a sobremesa mais comum e mais apreciada.
Há também criaçóes de cabra, da qual se aproveitam acarne
conhecida como carne de bode, mesmo quando não pror",ém
- do
macho-eocouÍo.
Finalmente, há os animais de carga e de montaria. criados
com grande cuidado, pois são o único meio de o sertanejo loco
mover-se e transportar carga e água a grandes distâncias.
Sem o
jegue e o cavalo, é impossível sobreviver
nas terras da caatinga.
No dizer pitoresco de Euclides da Cunha, o boiadeiro é tão
ajusta-
do ao seu cavalo que ambos formam um só corpo, como
o Cen-
tauro, íigura da mitologia grega.
Naturalmente, é impossível falar do homem sertanejo sem
Íalar do seu companheiro inseparável, o cão. É no sertáo que
50
I
melhor se entende a veracidade e a justiÇa da expressáo ,,o
me_
lhor amigo do homem atribuída ao cão. É ali, na luta
do cabo_
clo, que enfrenta com heroísmo a seca, a sede e a fome, que
melhor se pode observar e avaliar a imensa solidariedade
de um
animal para com seu dono.
Magro. r, i,,.endo apenas dos pequenos animais que raramen-
te consegue cacar- ou dos restos apodrecidos de alguma
carcaÇa
disputada con: :s urubus. e ofegante pela sede, ele
não deixa de
acompanha: se.l dono. seja nas tentativas de caçar, seja
no tanger
do gado er:,:-.?:l aos espinhos dos mandacarus selvagens.
Quar_d: ::Ce. deita-se à sombra de uma árvore ou arbusto,
protegendc-sa :: sol inclemente, ao ver seu
amo apeado. po_
rém, ao me:::- n-.or.:imento deste, ergue de imediato as
orelhas
em sinal de a.::.ia. pronto para seguir viagem, ou para
correr
atrás de un:a:<s desgarrada. Jamais reclama, jamais
agride o
patrão. Ao cc:-,::.a:-io. defende-o, Íeroz, em caso
de ataque, seja
da suçuarana _a:-.:ria. seja da cascavel impiedosa,
seja de outro
inimigo ever-:-:.. Àtuda-o em seu trabalh o e Íaz_Ihe
companhia
nos poucos n.:-.erios de lazer. Em casa, suporta com paciência
infinita os mimos n em sempre muito agradáveis das crianças,
dandoJhes seguranÇ a e carinho.
Criaçáo de jegues.

5t
copÍtulo

o homem da caatinga e
seus problemas

O sertanejo e seu ambiente

Se a caatinga é adaptada à seca, o seftanejo é um homem


adap_
tado à caaünga. Dificilmente outro ser humano seria capaz
de úver.
por séctrlos, nesse ambiente árido e agressivo. Magro.
anguioso. tosta_
do pelo sol e meio curvado, como as próprias varas espinhenras
da
vegetação que o cerca, ele consegue camiúar ou
cavalgar com de_
sembaraço, em meio aos espinheiros tortuosos dos mandacatus.
a pro_
cura de água, da caça ou de uma noülha desgarrada.
Geralmente veste
uma roupa de couro, que o protege dos espinhos afiados
e. por L,ezes,
venenosos, que o agridem na sua rápida e silenciosa passagem.
O nosso sertanejo é bem diferente do beduíno do deseno. que
viaja. ao passo ondulado e largo do dromedário, sobre
a areia escar-
dante, ou que cavalga veloz, sem obstáculos, à sela
de seu cavalo
árabe. Para o sertanejo, não há o horizonte distaóte.
desenhado
pelo dorso das dunas intermináveis; há, sim, a realidade
proxima da
mata emaranhada e ressequida, que lhe tolhe a üsão, que
o dilace-
ra, que esconde, que desnorteia. A distância, no espaÇo
ou no tem_
po, para ele não existe.
O futuro, para o sertanejo, é a chuva. No mês que vem...
ou só no próximo ano? A sua chegada e a sua espera
constante
52

êr ,-
constituem todo o seu sonho, toda a sua esperanÇa, o seu proje_
to de vida. Suas histórias e lembranças giram em torno das gran_
des chuvas ou das secas muito prolongadas. Sua memória, a perda
de um filho, de seu rebanho, de sua plantação estáo ligadas sem_
pre aos longos e calcinantes estios ou às tempestades e inunda_
ções avassaladoras.
O que torna possível a vida do sertanejo na caatinga, longe
dos grandes rios. é o gado. Animais domésticos, adaptados como
o
próprio sertanelo ao solo ressequido, ao calor inclemente e à vege_
taçáo espinhenta. conseguem encontrar nos caules suculentos
da
palmatória e de outros cactos a água e o alimento que lhes permi_
tem sobreviver aos longos meses
sem chuva. E. em troca da carne,
do couro e do leire desses animais,
o sertaneio executa o trabalho pa-
ciente e perseuerante de conduzi-
los, de separá-los. de fornecer-lhes
o sal retirado dos barrancos e,
quando íaltam as fo]has e o capim
rasteiro que verdejam no inverno,
de alimentá-los com pedaços do
caule das palmarórias.
O milho. a ntandioca, o feijão e o jerimum garantem Mulher
Sertaneja com
boa alimentacão, mas somente nos anos em que a seca náo é palmatória.
muito prolongada ou quando as chuvas não caem em dema_
sia, afogando as piantações.
Nos anos ruins. o que garante a sobrevivência,do sertanejo é o
gado. Por isso toda a vida do homem da caatinga é dedicada
à sua
criação; a agrícultura é atividade secundária, de resultado incerto. É
comum o sertanejo se arrepender amargamente de haver plantado
um saco de feijão: Foi todo perdido; antes tivesse comido...,,
No entanto. esse gado de que o sertanejo cuida com tanto
carinho ele dá nome a cada um dos noülhos, como se fossem
-
53
I
O sertanejo
conduzindo
o gado.

seus filhos não lhe pertence. Ele é apenas contratado pe)o


-
deiro, um rico proprietário, que vive no litoral
fazen_
e que, muitas vezes.
nem sequer conhece suas próprias terras. Este
confia cegamente
no vaqueiro sertanejo, deixando a seu cargo
o trato das reses. a
venda dos novilhos, a remessa do dinheiro.
E tem razáo em confiar.
pois o sertanejo, mesmo a centenas de quilômetros
do seu parráo.
náo ê capaz de enganáJo, nem para salvar_se
da miséria. Em troca
desse serviço, recebe uma parte das crias,
que, depois de crescidas,
vende ou mata para consumo.
Essas fazendas têm limite incerto. Náo
há cercas. não há
porteiras, e o gado de diferentes proprietários
é criado junto. mis_
turado pelo meio da caatinga, que é seu pasto
comum. Mas cada
rês é marcada a Íerro e fogo. E os boiadeiros
sertanejos conhecem
todas essas marcas.
Na hora de separar o gado para a venda,
ou para transpor_
tálo a outras paragens, em busca de melhores pastos.
todos os
boiadeiros da região se reúnem e trabalham juntos.
Todos são
hábeis cavaleiros e exímios no manejo
do laço. A solidariedade
entre eles é muito grande. É ali a terra
do mutirão,da reunião de
toda a vizinhanÇa para ajudar uns aos
outros, seja na construcão
54
l
de uma casa, seja nas tarefas da colheita, seja na busca
de novi-
lhos desgarrados.

A vegeta ção para consumo


Inúmeras áruores da região da caatinga Íornecem madeira
de
boa qualidade. Entre elas, destacam-se o bálsamo, a
caraibeira, o
pau-d'arco, a canafístulo (uma variedade de cássio)
e a oroeira.
Além disso vários vegetais, entre palmeiras e plantas arbusti_
vas, fornecem excelentes fibras para a tecelagem, para
a
de cordas e finalidades diversas. É o caso do ouricuri
e do catolé,
palmeiras de pequeno porte cujas folhas, depois
de secas, tanto
servem para a cobertura de casas como para a fabricação
de estei_
ras, chapéus, abanos etc. A macambíra e o caroó.,
ambos da fam!
lia dos abacaxis e gravatás, também são bons exemplos
dessas plan_
tas. O pano de caroá é muito apreciado, no Nordeste, pela
sua
Ieveza e resistência.
Árvores frutíferas são muito comuns entre as plantas do
Nor_
deste. O juazeiro é uma dessas árvores e permanece
sempre com
folhas, mesmo na época de seca. Seu fruto ê o juá. Hátambém
os
frutos de alguns cactos, como os do mandacaru, vermelhos,
sucu_
lentos e muito saborosos. Finalmente, algumas plantas
fornecem
sucos que podem ser bebidos para matar a sede, como
a
jurema e
o próprio umbuzeiro.
O solo da caatinga é fértil, graças aos sais minerãis que
con_
tám; só lhe falta a água. Nele são cultivadas várias plantas
das quais
se obtêm colheitas fartas, nos anos menos secos. Entre
elas, talvez
a mais importante seja a mandioca, preciosa pelas
suas raizes co_
mestíveis, ricas em proteínas. Existem as mandiocas
doces, que são
comidas simplesmente cozidas, e as brauas, que sáo
venenosas,
mas das quais sáo extraídos Íarinhas e produtos fermentados (du_
rante o processo de preparação, a fermentação
e a lavagem aca-
bam eliminando o veneno).

55
I
I

É nas Íeiras da
cidadê que o
sertanejo vende
SUA ESCASSA
produçáo.

A carne-seca, socada no pilão juntamente com a farinha de


mandioca, constitui o Íamoso jabá, que o sertanejo carrega em al-
forjes presos à cela da montaria , e qüe, por vezes. é o único alimen-
to nas suas longas viagens a cavalo ou montado no pequeno jegue.
Além da mandioca, são cultivados principalmente o Íeijão e o
milho. Há diferentes variedades de feijáo, que é comido seco ou
verde e preparado de várias maneiras. Alimento rico em proteínas,
consistindo em verdadeira delícia, só ê, porém, obtido nos anos em
que a seca não se prolonga em demasia.
Embora nem sempre esteja disponível, o milho, além de ser o
alimento predileto do gado e dos cavalos, é também consumido
pelo sertanejo em forma de farinha fermentada e tostada Íubá é
o milho seco moído bem fino, e quirera, o moído grosso.
-

Osertanejoeaágua
Para o sertanejo que vive em plena caatinga, longe dos rios per-
manentes, o grande problema é mesmo a falta de água, nas estiagens
prolongadas, ou o seu excesso, quando as chuvas sáo muito intensas.
Os rios pequenos, e até os de grande porte, que nascem no
próprio sertáo e atravessam a caatinga, secam completamente nos


I
períodos em que não chove.
Mas quando as chuvas chegam
e são
muito copiosas, esses rios se enchem
quase repentinamente e
trans-
bordam, inundando plantações,
casas, currais e povoaÇões inteiras.
Então, o sertanejo que, diariamente, n*urninuuu
de algumas nuvens
- o céu à procura
passa, agora, a rezar paraque
-
e as águas baixem. ao ver sua plantação
a chuva pare
comprometida, o gado
afogado, o celeiro apodrecido
e a sua casa destruída.
Quando a estiagem é prolongada, os pequenos
poÇos ou ca_
cimbas secam completamente.
O sertanejo é entâooúrigado
a ca_
minhar muitos quilômetros à procura
de água. Carrega seu pote de
barro ou sua coboço, uma variedade
seca de leri_r_]pu.u recolher
o pouco de água lamacenta e meio
salgada qrn uindu resta em
algum barreiro que náo secou
de todo. As v".e.,
me todo o seu dia. Como r "..";;n vir conso-
ente para si e para ,.0,
"
;m:::i:*:i::_,?,:,,:J:::i;H._
te, a mesma viagem. Menos mal quando dispõe de um pequeno
e
paciente jegue que o ajude
no transporte.
Quando chove, o sertanejo consegue armazenaruma
quan-
tidade conside rável de água em
lagoas ou açudes escavados
no
solo ou represados pela barragem
de terra e de pedras que cons_
truiu' Mas, durante a estiagem, o sor,
o calor forte e a ausência

I
Um dos principais
problemas do
sertanejo é a
1
escassêz da água

I
57
I
de umidade no ar fazem com que essa água seque rapidamente.
Dia após dia, o nível da água vai baixando. Com isso ela se torna
cada vez mais avermelhada, até ser reduzida a um atoleiro lama-
cento que ainda servirá para saciar um pouco a sede do gado.
Por fim, essa lama seca e racha, formando um solo ladrilhado,
como se fosse de tijolos, vermelho e poeirento. E o flagelo da
sede recomeça.

copítulo

A busca de soluções
para os problemas da caatinga

A vida nos açudes

A formação de um grande açude ou represa no interior da


caatinga tem a importância de um milagre. A paisagem à sua volta
torna-se completamente diferente do restante do sertão. Essa mu-
dança acontece poucas semanas depois de ele jâ estar cheio.
A medida que o solo e os rios váo secando, com o avanço do
veráo, o contraste se torna cada vez mais acentuado. Enquanto a

58
e
vegetaÇáo que está Íora da área de inÍluência do lago vai perdendo
suas folhas e adquirindo a aparência seca e retorcida que a caracte-
riza na maior parte do tempo, os arbustos e as árvores à margem da
represa, ao contrário, mantêm-se üçosos, pois conseguem retirar
água do solo encharcado.
Alguns meses depois, já em plena seca, o açude se transÍorma
num verdadeiro oásis. Marrecos, frangos-d'água e até garças, reÍu-
giando-se da seca, povoam rapidamente seus arredores, esconden-
do-se em meio às taboas ou aninhando-se, como as garças, no alto
das árvores mais próximas.
O milagre se completa, em poucos meses! com a chegada
de inúmeras outras espécies de animais. Além disso, sementes
carregadas pelos ventos ou pelas penas e pés dos pássaros e que,
normalmente, náo encontram solo propÍcio para germinar, ao cair
perto do açude, desenvolvem-se rapidamente, Íormando uma ve-
getação densa, só encontrada a centenas de quilômetros, às mar-
gens de grandes rios perenes.
Outras espécies de vida animal também migram, seja na for-
ma de ovos transportados, seja voando, rastejando ou caminhan-
do em busca de água. Insetos, aranhas, serpentes, rás, lagartos,

O açude é uma
das formas dê
combâte à seca

59
l
pássaros de todas as cores e tamanhos, além dos roedores, apare_
cem como que por encanto, aumentando em número e variedade
a cada dia. Reproduzem-se rapidamente, formando uma comuni_
dade rica e variada no oásis do sertanejo, que, além da água para
saciar sua sede e a de seu gado, passa a contar com a pesca e a
caça como fonte de alimento.

( A morte de alguns açudes


&
Nem sempre os açudes são a solução adequada e definitiva.
Em muitos lugares, nas regiões mais secas da caatinga, encontra_
mos açudes cheios de água, porém abandonados. A vegetação ao
seu redor está seca e retorcida, como nos lugares onde não existe
água. Náo há mais peixes, nem patos, nem outros animais. As pró_
prias casas do vilarejo que se desenvolveu ao seu redor foram
aban-
donadas por seus habitantes. Na verdade, a regiáo parece estar
mais desolada e seca do que quando não havia o açude.
Ao nos aproximarmos do lago, é possível observar que sua
superfície ê diÍerente da de outros, não só pela total ausência das
taboas e outras Íormas de vegetação aquática, mas também pela
própria água, que parece mais pesada, grossa, embora de impres-
sionante transparência. Se a provarmos na concha da máo, tere_
mos a resposta imediata do enigma: ela é mais salgada do que
a
água do mar.
Como já vimos, no solo e subsolo da caatinga é encontrada
uma grande quantidade de sal, indicando que, há milhões de anos,
a regiáo já foi ocupada pelo mar. O sal existente no subsolo
tende a
subir para a superfície, em Íorma de solução salÍna, e aÍÍ se
concen_
tra, à medida que a água se evapora. É por isso que os sertanejos
utilizam a terra da superfície cavando apenas uns 20 centímetros
-
para retirar o sal que usam ou vendem. Em muitos desses
- lugares
escavados, o sal volta, de modo que, no ano seguinte ou
alguns
anos depois, é possível retirálo do mesmo lugar onde havia
sido
ó0
I
recolhido. Por isso, se a represa inundar um terreno que possua sal
à superfície, ou se o próprio rio que a Íorma provier de um subsolo
salino, ela acabará recebendo sal, continuamente.
A quantidade de sal transportada pela água é, às vezes, muito
pequena; mas, quando chega a estaÇáo da seca, uma grande parte
da água do açude é evaporada, o que a torna cada vez mais salgada.
No inverno seguinte, isto é, no próximo período de chuvas, o
rio traz mais água, que contém sempre um pouco de sal, e assim
mais sal é acrescentado à água do lago. Em seguida, a nova seca faz
com que essa água evapore, concentrando cada vez mais sal... e
esse processo vai se repetindo até o açude se transformar num ver-
dadeiro tacho de salmoura.
Quem já viu como se Íaz doce de leite caseiro tem um bom
exemplo de como isso acontece. À medida que a água do leite
evapora, o açúcar que foi colocado vai se concentrando, transfor-
mando-se em calda grossa e,, por fim, em uma espécie de rapadura.
No caso do açude, se a água salgada náo fosse renovada a cada
inverno, com as chuvas, ele se transíormaria em pouco tempo em
uma grossa crosta de sal puro
Açude abandonado.

TI

ól
I
Para que não ac onteça a salinização do açude, é necessário, em
primeiro lugar, que a água do rio a ser represado seja repetidamente
analisada para verificar a concentraçáo e o tipo de sais que possui. Se
houver muito sal, não adianta represá-lo, porque o açude será perdido.
Mesmo quando o teor de sal náo é muito alto, o açude precisa ser
controlado, isto é, manejado de modo que náo concentre sais.

Outras fontes de água

Segundo afirmam os geólogos, o subsolo da regiáo da caatin-


ga é muito rico em água. Especialistas calculam que esses depósitos
subterrâneos poderiam fornecer, em toda a área do sertáo, cerca de
58 bilhões de metros cúbicos de água por ano, isto e, uma vez e
meia o volume de água que corre pelo Rio São Francisco.
As dificuldades para o aproveitamento de toda essa água es-
táo, em primeiro lugar, no custo da abertura dos poços, uma vez
que a maioria deles teria de ser perfurada em rochas muito duras.
Além disso, há sempre a necessidade de alguma forma de energia
que movimente as bombas para extraçáo da água.
É possível que em inúmeros lugares do Nordeste onde ven-
ta bastante essa energia possa ser obtida do próprio
-
vento, com
-
o uso de moinhos, a exemplo do que se Íaz em vários países. Como
há abundância de radiações solares na região, a instalação de siste-
mas de captação de energia solar, embora de baixo rendimento,
poderia também suprir as necessidades.
Finalmente, havendo disponibilidade de energia, o próprio des-
salgamento das águas consistiria num modo de amenizar o proble-
ma de obtenção de água potável. Há vários processos de dessalga-
mento perfeitamente viáveis, capazes de produzir grandes quanti,
dades de água potável, a partir do oceano e de lagos salgados. Tais
processos têm sido empregados em países desérticos, como a Ará-
bia Saudita. Mesmo no Brasil já Íoram instalados inúmeros equipa-
mentos que realizam o dessalgamento em pequenas produções, e

62
i
I
muitos deles empregam energia solar. A ilha de Fernando de Noro-
nha, por exemplo, é abastecida de água por um desses equipamen-
tos. Náo se trata, porêm, de uma tofal dessalinízaçõo, feita por
destilação, como já foi sonhado no passado.
Já mencionamos as grandes obras que estáo em curso, para
distribuir a água do Rio Sáo Francisco a áreas da sua bacia. Para
tanto, é utilizada uma rede de canais ou valos ou, ainda, modernos
sistemas de irrigaçáo mecanizada.
Os benefícios são enormes, dada a fertilidade dos solos, re-
sultando numa produçáo muito grande, não só de cereais, mas
também de uma variedade de frutas de excelenle qualidade. Po-
rém, esses beneÍícios estáo circunscritos a uma área relativamente
estreita, à margem desses canais. Além disso, é pre-
l\,4oinhos
ciso bastante prudência no uso de irrigaçáo, pois, dê vento
para
em regiões de alta taxa de evaporaçáo, as águas que movimentar
penetram no solo tendem a subir de novo e, carre- bombâs
d'água.
gando sais do Íundo para a su-
perÍicie, ocasionam a saliniza-
çáo do terreno, que acaba se
tornando"àtéril. É comum, no
sertão, o solo se tornar ladri-
lhado, resultado da subida de
sais de ferro para a superfície,
em conseqüência da excessiva
evaporação da água do solo.
O chão se torna compacto e
duro, como se fosse revestido
de tijolos.
No livro Os sertões, Eu-
clides da Cunha comenta o
fato de os antigos romanos,
há vinte séculos, terem feito
recuar os deserlos da Tunísia

ó3
I
às margens do Mediterrâneo. Ainda hoje podem ser vistos na-
t' quela região os restos de grandes construções de pedra, mura-
i

lhas e aquedutos que foram edificados visando tornar férteis as


terras do deserto.
Apesar de a quantidade de chuvas que cai anualmente naque-
las regiões ser cinco vezes menor do que as que se precipitam na
caatinga, os romanos conseguiram disciplinar e distribuir adequada-
mente essas águas por meio de canais, aquedutos, comportas e
açudes sabiamente distribuídos. Desse modo, fizeram com que as
águas permanecessem o maior tempo possível em contato com o
solo, antes de escoar-se para o mar ou evaporar-se. Assim, conse-
guiram transformar aqueles desertos em grandes celeiros, bem como
em locais propícios às pastagens.
Já vimos que a regiáo da caatinga está longe de ser um verda-
deiro deserto. As chuvas caem em abundância, só que de maneira
irregular. O próprio reflorestamento das regiões mais favoráveis,
próximas ao São Francisco, certamente tornaria as chuvas e o seu
escoamento mais regulares em grande parte daquela área. Tâl me-
dida poderia ser complementada por perfurações para buscar águas
subterrâneas; pela utilização dos ventos constantes, na movimenta-
çáo de moinhos de vento; pelo aproveitamento das incríveis taxas
de radiações solares para a produçáo de energia elétrica.
Estudos de natureza geológica, agrícola e pecuária, üsando co-
nhecer as taxas de salinidade, as resetvas de água subterrânea e as
espécies vegetais e animais mâis adequadas à região, certamente muito
contribuiriam para o desenvolümento da caatinga, ao possibilitar maior
aproveitamentô da sua riqueza e da fertilidade de seu solo.
Regiões muito produtivas da Europa, como grande parte do
centro da Espanha, que recebem menos de 400 milímetros de chu-
vas por ano, conseguem, porem, distribuir racionalmente essa água,
por meio de imensa rede de canais de irrigaçáo. No sertão as preci-
pitações médias são superiores a 400 milímetros, chegando até a
mil milímetros por ano.

64
!§i) I
O jovem Estado de Israel, no Oriente Médio, implantado em
região muito mais árida e enfrentando idênticos problemas de sali-
nidade dos solos e irregularidade das precipitações, conseguiu de-
senvolver uma das mais avançadas agriculturas do mundo.

copÍtulo

O frtrro do sertão

Buscando uma saída

Quando se fala em Nordeste, em sertáo, em caatinga, logo se


pensa na seca. Na verdade, toda a produçáo da região, seja agrícola
ou pecuária, seja a própria atividade humana, está na dependência
do fator climático, Quando ocorrem chuvas o sertáo produz, apesar
de algumas perdas causadas por inundações nos vales dos grandes
rios. Se não chove, não há produção.
Num ano chamado "normal", a seca dura seis meses. Entre-
tanto, há períodos em que a falta de chuva pode se prolongar por
um ou mais anos. Nesses casos extremos, o serianejo abandona
sua casa, sua terra e sai à procura de uma cidade onde possa sobre-
üver. Ele recebe o nome de retirante.

ó5
I
lt
)
t

II
...,§. ,l
s
ta

O retirante abandonando
o sertáo na seca (cena do
filme Y/das secas); e
iI Retirantes, famoso qüadro
É de Portinari.

.t
z r(TI I !r'
li
a '{
'a*.: Quando essas retiradas se dão
em massa e no caminho faltam
-
comida e água os retirantes po-
dem promover
-,
assaltos. Já houve época em que alguns indiúduos
desses grupos de retirantes tornaram-se bandidos os chamados
jagunços -
os quais se embrenhavam na caatinga para fugir da
-,
polícia. Formavam, então, bandos, que passavam a üver de assal-
tos e matanças e empregavam sua própria justiça. O mais famoso
desses bandos foi o de Lampião.
Houve, também, lutas mais organizadas, verdadeiras revoluções.
Estas buscavam uma nova ordem social, geralmente fundamentada

66
i

t
em ideais religiosos, de natureza intensamente mística, assumindo
as naturais superstições populares como base de uma filosoÍia
ingênua, mas legítima. Tal tendência Íaz parte da natureza hu-
mana: quando o homem atinge a mais extrema miséria e não vê
saída para a sua situaçáo, porque esta não depende mais do seu
esforço, ele passa a procurar soluçóes sobrenaturais. A partir
daí, ele cria preconceitos, ídolos, amuletos, cerimoniais estra-
nhos, rituais que, segundo sua nova crenÇa, possam atrair os
benefícios necessários para melhorar sua vida. Surgem, então,
a descrença no trabalho e a convicçáo de que sua miséria se
deve a alguma falta cometida, a algum pecado contra os céus.
Conseqüentemente, novos rituais são criados para redimi-lo de
seus pecados.
Nessas ocasiões, aparecem os profetas, úsionários conüctos, a
indicar o caminho da redenção desejada. São pessoas que, geral-
mente, após ter sofrido na própria carne as injustiças sociais, encon-
tram nos textos religiosos a explicação de sua condiçáo e o caminho
da salvação coletiva. Tornam-se, assim, verdadeiros líderes. Graças à
capacidade de remrnciar aos seus próprios bens e conforto e à arte
da pregaçáo übrante e da persu-
asão, conseguem levar ao seu Lampiáo e sua companheira,
l\y'aÍia Bonita.

\,.'

I a

:
a
E-

67
I
a

O arraial de
Canudos antes
povo uma esperança de libertação e de justiÇa soci-
de sua
desÍuiçáo. al. Isso tudo baseado nos textos bíblicos, no exem-
plo dos mártires e numa percepÇáo mais ou me-
nos clara da origem de seus sofrimentos. Criam o ideal de uma
nova lei, de uma nova religião, de uma nova ordem social e fana-
tizam multidões em torno desse propósito.
No sertão, um desses movimentos, o maior deles, ocorreu
durante os primeiros anos da República, em 1896 e 1,g97 , no
pequeno povoado de Belo Monte, que passou para a história
com o nome de Canudos. Situado num profundo vale, às mar-
gens do Rio Vaza Barris, no sertão da Bahia, esse povoado ti_
nha como pregador religioso-social Antônio Conselheiro. Ele
se tornou líder da mais famosa revolução popular ocorrida no
Brasil. Munidos de armas de fogo toscas e primitivas, os habi-
tantes de Canudos conseguiram enfrentar e repelir diversas cam_
panhas militares enviadas pelo governo republicano, apesar da
superioridade em número e em armamentos dessas últimas. per_
feitamente adaptados ao ambiente do sertão, os habitantes de
Canudos conseguiam caminhar rápido e esconder-se com
perfeição em meio aos arbustos da caatinga, armando suas
ó8
I
tocaias e armadilhas, organizando uma luta de guerrilha a que o
soldado da tropa náo estava acostumado. Entretanto, a quarta e
última expedição militar, enviada em abril de 1,897 e munida de
potentes canhões, conseguiu derrotar e extinguir o povoado de
Belo Monte, matando cruelmente todos os habitantes que lá
resistiam, após seis meses de luta.

Buscando soluções

O sertáo é uma regiáo que exige investimentos e assistência


social. Em primeiro lugar é necessário fixar o sertanejo no seu ambi-
ente. Nenhuma soluçáo será definitiva e satisfatória se Íor baseada na
transÍerência do sertanejo para o norte, para o sul ou para o litoral.
.1

O sertanejo gosta da caatinga e, desde que tenha trabalho e *,,


alimento para si e para seus filhos, náo deseja abandonar sua casa.
Mesmo o retirante que, numa seca excepcional,
§
se afasta milhares de quilômetros, em busca de Terminal Rodoviário Tieiê. §

trabalho e moradia em Minas Gerais ou em Sáo em São Pau,o. Aqui o


Í
sonho de muitos
Paulo, volta à sua terra ao ter notícias de que retirantes começa a virar
pesadelo.

srrl
\
à

r;

I
69
andou chovendo por lá.. . euando chove, quando
há reservas de águas
acumuladas nas cacimbas e nos açudes próximos,
a caaünga é o para_
íso do sertanejo. Ele náo troca o lombo de
seu cavalo, que coÍre em
meio aos espinheiros atrás de uma noülha fugitiva, por
nenhum trans_
porte moderno ao longo das belas avenidas
das grandes cidades.
Mas é preciso viver. É necessário ter alimento
e condições
para sustentar e educar os filhos, ter água
o ano todo para o gado e
para as plantações.
A maneira de fixar o nordestino na caatinga é fornecendo_lhe
água, alimento, quando a terra não produz, bem
como assÍstência
educacional e sanitária.
Para que um plano de assistência ao sertanejo
dê resultados
concretos e permanentes, ele deve estar fundamentado
em um per_
feito conhecimento da região e de seus recursos
naturais. Não há
estudos completos que detalhem palmo a palmo
a natureza das
rochas, a quantidade e qualidade das águas
subterrâneas, a presen-
ça de sal no solo e nos rios. O próprio conhecimento do clima
é,
em grande parte, baseado em conjecturas.
Clima e geologia constituem as duas grandes incógnitas
da
região da caatinga. E só conhecendo a equação
é que se pode ter a
solução de um problema.

O satélite Aqua
monitora a
situaçáo climática
da Terra.

u;.
õ

70
I
Hoje, com o emprego das técnicas de observação por satélites
artificiais, pode-se ter em pouco tempo o levantamento detalhado
do relevo e de outras particularidades do solo e do subsolo. Até a
presença de água subterrânea é detectada como nos desertos da
-
AÍrica com o uso de modernas técnicas de sensoriamento aêreo
-
já disponíveis no Brasil. Além disso, com o emprego de alguma
forma de energia, até o clima pode ser mudado.
Energia é o que não falta no Nordeste brasileiro, que é uma
das regiões de mais alta incidência de radiações solares em todo o
mundo. É claro que os métodos para a obtenção de energia na
caatinga não poderão ser os mesmos tradicionalmente utilizados
nos países da Europa e da América do Norte ou no sul do Brasil. No
Nordeste não existe combustível ou água para mover turbinas, mas
há o so[, que produz energia na forma de calor, [uz, ventos etc.
Náo se pode, contudo, pôr o carro adiante dos bois. Tentar
soluções sem o conhecimento prévio e detalhado da regiáo ê correr
o risco de novos fracassos. Felizmente, alguns bons estudos e proje-
tos têm sido feitos por técnicos competentes de instituições locais
do Desenvolümento do Nordeste (Su-
- como a Superintendência
dene), anos atrás e universidades da regiáo, embora náo tenham
-
sido executados. Por sua vez, há os projetos tendenciosos, destina-
dos a favorecer áreas e propriedades menos necessitadas.
De propostas absurdas o Nordeste está farto: até a destila-
çáo de água do mar, para distribuiçáo nas terras secas da caatinga,
já foi projetada, em outros tempos. Pensou-se até mesmo no trans-
porte de gigantescos icebergs, puxados por rebocadores, desde as
regiões frias da Antártida até o litoral nordestino; ou, ainda, na
inundaçáo de áreas gigantescas da caatinga pelo represamento ou
extravasamento das águas do Rio Sáo Francisco...

7l
ConsideroçÕes Íi NCI S I

Como já foi dito, é indispeásável investir no sertão. Investir


intensivamente, e durante vários anos, na busca de dados confiáveis
que permitam elaborar um plano de transformaçáo da caatinga.
i Isso não quer dizer que se deva transÍigurar ou alterar completa-
mente a natureza da regiáo, mas apenas intervir de forma que pos-
sibilite a permanência do sertanejo na sua terra, para que ele possa
manter os mesmos hábitos, a mesma roupa de couro, as mesmas
festiüdades e o mesmo folclore que caracterizam a sua cultura.
Para que isso aconteça, é preciso que se invista no conheci-
mento da regiáo. Mas também é necessário que esses conhecimen_
tos sejam transÍeridos ao próprio sertanejo mediante un processo
educacional adequado e dirigido, no sentido de introduzir uma nova
úsáo da regiáo sem, porém, que se perca a sua autenticidade
-
folclórica e ecológica respeitosa para com os seus valores nati-
-,
vos, em substituiçáo a uma cultura baseada apenas em preconceitos
e na falsa compreensáo dos fenômenos naturais. A riqueza cultural
do sertanejo, responsável pela sua regionalidade e baseada em tra_
dições, observações e costumes milenares, deve ser objeto de estu-
do para oÍerecer-lhe explicações racionais e objetivas sobre a nafu-
reza da caatinga, em substituição às suas crendices e atitudes inco-
erentes e nocivas. Só com um razoável conhecimento objetivo e
racional de sua condiçáo, aliado a políticas e soluções governamen-
tais para a regiáo, é que o sertanejo poderá ter na caatinga o para_
íso sempre sonhado, sem fome, sem miséria, sem as grandes secas.

70 72
I
A caatinga r€presenta um dos mais singulares
ambientes do tenitório brasileiro. Suas características
peculiares são resultado não propriamente da falta
de chuvas, como nos ambientes desérticos, mas da
falta de uniformidade na distribuição das mesmas, e
a sua paisagem possui aspectos que a d€stacôm
daquelas de clima seco de todo o mundo'
Para o naturalista que a contempla, há beleza
nessa paisagem rude e agressiva, mas há, também,
Íristezat pelas dificuldades encontradas pelo
homem que a habita, o sertanejo, em dominá-la e
em retirar dela o seu sustento.
Disciplinar as águas, no sentido de perenizar a
sua presença e disponibilidade, não é apenas urnô
possibilidade técnica, mas uma questão de justiça e
de humanidade.

tSBN a5 I6'03606-5

Elll Moderna

Você também pode gostar