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A Morte em tempos de negação ou a condição humana da morte

(o que desperta em nós a Covid-19)

Waleska Rodrigues de M. Oliveira Martins1

O poeta Álvaro Moreyra, em seu livro “As amargas, não...” (1954), já


anunciava: “Uma coisa acorda os vivos, é a morte”. Sim. Parece que
precisamos de mortes em grande escala para lembrarmos da nossa fugacidade
e condição frágil de humanos. Parece que precisamos de pandemias para
lembrarmos que não estamos sozinhos ou que dependemos, de alguma forma
(na verdade, de muitas formas), do outro. Em tempos de pandemia, nos damos
conta que vivemos por muito tempo anestesiados. E pior do que viver na
insensibilidade é perceber que estivemos longos períodos nesse torpor. É “a
morte da alma” que nos fala Miriam Panighel Carvalho, a “vista cansada” que
nos embaça a vida e que nos alerta Otto Lara Resende, é a “angústia” que nos
gela a leitura em Tchekhov, é o incrível horror de perceber que se pode morrer
estando vivo no Primo Levi. Vivemos ilhados em caminhos coletivos, e isso não
se relaciona com o tempo. A questão não é de tempo, mas de humanidade ou
da falência humana frente à morte.

1
Docente no Centro de Cultura, Linguagens e Tecnologias Aplicadas da Universidade Federal
do Recôncavo da Bahia. Mestra em Estudos de Linguagens e doutora em Estudos Literários.
E-mail: waleskamartins.wm@gmail.com
No livro “A Peste”, de 1947, Albert Camus nos coloca diante de Oran,
uma pequena cidade na costa argelina. Oran, no espaço temporal indefinido da
década de 40, olha e vive uma epidemia avassaladora: a peste bubônica. O
interessante dessa obra é a proximidade entre essa ficção e a Covid-19.
Inicialmente - o narrador nos conta - os concidadãos de Oran estão incrédulos
com os acontecimentos e deixam o tempo percorrer seu caminho. Já sabemos,
ou imaginamos, o caminho desse tempo. Enquanto não se acreditava (na
força) na doença, autoridades tentavam se desvencilhar das evidências,
atribuindo pouca importância aos fatos e às mortes. O prefeito decide, ainda
muito desorientado e encarando a morte de significativa parte da população de
Oran, isolar a cidade. Imaginamos o tipo de isolamento e qual esfera estava
protegida (uma significativa lembrança da Necropolítica de Achille Mbembe).
Enquanto uns morriam de maneira isolada, distante de seus parentes, a esfera
protegida aguardava o momento de sair de suas tocas. A cidade fechada e as
pessoas isoladas constroem cenários doentes e contextos inusitados. Mas eis
que o mal espreita pelas frestas e novas ondas da epidemia atingem todas as
esferas. Mesmo que agora, na realidade da pandemia da Covid-19, o
isolamento tenha uma diferença da ficção de Camus, uma vez que o
isolamento não se faz como privilégio, mas necessidade vital, há muito de Oran
espalhado pelo mundo. Estamos com muitas dificuldades em diferenciar se
estamos na dimensão fictícia ou real.
A morte do outro (próximo ou não) gera, em muitos casos, uma dor
profunda que é inexplicável. Mesmo conscientes de que a morte vive em nós,
que ela nos torna humanos, que nos alerta para o sensível, Bauman, quando
fala no “Medo líquido” (aquele que infiltra, invade num fluxo contínuo e afoga os
sentidos), nos lembra que ela, a morte, é vigilante e vigiada em cada
movimento humano. Ela é presença invisível que não dorme. Heidegger diria
que o homem, no seu nascimento, já realiza uma dupla movimentação no
sentido da morte, colocando-se, então, como “ser-para-a-morte”. Essa
lembrança, essa simples constatação, nos provoca dor. Falo da dor no
estômago que desfaz a unidade do corpo e da alma em “A insustentável leveza
do ser” (1984), de Milan Kundera. Ou aquela dor que Aramides Florença, no
“Insubmissas lágrimas de mulheres” (2016), de Conceição Evaristo, sentiu nas
sucessivas agressões sexuais que recebeu do marido no instante que
amamentava seu filho recém nascido. Talvez aquela dor, não dita (apenas
através dos olhos que continham todo um céu de fúria), de Minosse ao sufocar
e matar seu filho no colo, porque ele chorava assustado com a guerra que
acontecia lá fora, em “Mata que amanhã faremos outro” do livro de Paulina
Chiziane, “Ventos do Apocalipse” (1995). Sim, ainda falamos da dor alheia. Da
dor que reflete em nós. Da dor ao perceber que nós, mesmo distantes,
matamos a infância de alguma criança estuprada pelo pai, como aconteceu
com Pecola Breedlove em “O olho mais azul” (1965), de Toni Morrison. Nas
várias mortes físicas e sociais que Svetlana Aleksiévitch relata em “As últimas
testemunhas” (1985). Na dor que abraça o ser humano, igual crepúsculo, de
mansinho. Como a dor de Manoel de Barros, invadido pelo deserto à tarde,
quando deixa Bernardo em sua sepultura de manhã, em “Escritos em verbal de
aves” (2011). Ou a dor da súplica que Noémia de Sousa faz a toda irmandade
negra em “Sangue negro” (2001). São tantas dores e tantas condições da
morte na literatura que esse texto não dá conta. No fundo, as linhas que
conduzem essa escrita estão em algo mais recente, mas que me fizeram
percorrer essas dores que me marcaram.
A imagem de caminhões carregados de caixões, e seus corpos, em
fileiras que se assemelhava ao cortejo fúnebre provocou em mim todas as
dores. Não tanto pelos tanques, ou pela quantidade deles. Mas o que rasgou o
dia, fissurou a linha da minha (pseudo) tranquilidade, retirou a paz da minha
distância espacial, e me jogou diante da condição da morte, foi a negação do
rito. Não sou antropóloga (e acho que não precisamos ser) para entender
profundamente a importância dos ritos. Pensei nas famílias daqueles corpos
pequeninos, grandes, novos, velhos, no meio do caminho da vida, no antes do
beijo secreto, no subjuntivo e imperfeito das ações, no meio do pentear o
cabelo da filha, no planejamento das férinterrompidas, no entre-lugar do
entender sua mãe ou seu pai, depois da briga e sem tempo de pedir desculpas.
Pensei no velório e nesse momento em que nos preparamos (sem aceitar
direito) para a finitude desse ciclo, momento em que olhamos incrédulos no
que aconteceu, no momento em que prometemos seguir a vida (mesmo com o
buraco na alma gritando que não), que levemente beijamos a testa dos nossos
amores e depois abraçamos a tampa do caixão dizendo palavras tropeçadas.
Penso na importância desse ritual que antecede a cremação ou o
sepultamento. Sem ele o que fazemos? Quando fechamos a porta? Quando
vamos dizer ao corpo que dorme que em breve nos veremos? Que não
conseguimos entender a vida e que ela nunca mais será a mesma? Quando
poderemos simplesmente olhar, silenciosa e longamente, aquele corpo que
dorme e fotografar aquela dor?
Esse cortejo fúnebre atravessou pela madrugada. Na calada e sombria
noite de recolhimento compulsório, Bérgamo, na Itália, acompanhava chorosa o
desfile. Essa condição do ser humano de constatar sua finitude é, em tempos
de pandemia, no mínimo angustiante. Estamos o tempo todo com os sentidos
abertos e com a sensação de que algo nos espreita. A morte desfilou nas ruas
de Bérgamo e mostrou toda a sua grandeza e nos colocou diante da nossa
nulidade. Não estamos preparados, muitos de nós, para constatar nossa
insignificância diante dela e do mundo. Ela, encarnada em algo tão minúsculo
como um vírus, nos priva do adeus, nos priva da sociabilidade real, nos priva
do convívio e da alegria plena (porque sentimos aquela dor no estômago). Ela
nos vigia de soslaio. Essa angústia, na verdade, é uma morte silenciosa e
diária. Sartre, já no título de sua obra filosófica mais conhecida, diria que é o
ser e o nada.
Estamos vivendo o que o fotógrafo Cartier-Bresson chamava de
“instante decisivo”. A imagem dos caminhões em cortejo registra, ou provoca,
uma dor comum e sintetiza esse sentimento coletivo de impotência.
Lembremos de instantes decisivos em imagens que são ícones dos tempos de
falência humana: em 1972 Nick Ut registrou a dor de uma criança que corria
nua, com seu corpo queimado e chorando, na Guerra do Vietnã. Kevin Carter,
em 1993, chocou o mundo com a foto de um abutre aguardando a morte de
uma criança no sul do Sudão. Em 2015, Nilüfer Demir revelou a crise dos
refugiados que tentavam fugir dos horrores das guerras, com a imagem de um
menino sírio morto em uma praia da Turquia. Pode ser que a cena dos tanques
não seja esse instante decisivo de Cartier-Bresson. Mas nos coloca diante da
fragilidade do ser que somos - por mais que não acreditemos nisso. Talvez a
face humana da morte (e precisamos dessa inversão para pensarmos que
conduzimos algo) é justamente de nos fazer sentir aquelas dores pelo/com o
outro. Sua condição humana, e que nos desloca os sentidos, é de nos
despertar da anestesia. É de nos colocarmos no jogo da empatia (termo tão
cotidiano e banalizado, mas pouco praticado verdadeiramente).
Assistimos a China correr com suas tecnologias contra o avanço
inexorável do Covid-19. Vemos a Europa correr contra o rápido avanço da
doença e seus mortos. Assistimos ao Brasil com um prefeito de Oran,
desorientado, incrédulo, tropeçando em egos e ignorâncias. Ou, o que seria
crível também, pensando em uma reformulação do projeto de higienização
humana (isso nos lembra um período de 1939 a 1954). Tenta-se controlar a
besta-fera para que pessoas doentes e idosos, também chamados de “grupo
de risco”, pesem menos no sistema. Como se eles fossem a camada menos
importante à economia de mercado. A morte, nesse contexto, é pornográfica e
indecente, como nos lembra Geoffrey Gorer. Mas limpa. Não há sangue nas
mãos. Só fantasmas que se somam aos números. O que essas lideranças não
acreditam é que não se domina a besta-fera sem que haja a perda da alma. É
só voltarmos os olhos para a gravura da “dança macabra” (1424), de Hans
Holbien, para perceber que ela, a morte, dança e brinca de mãos dadas com
clérigos, poderosos, jovens (atletas ou não), leigos, humildes – uma força
impessoal que tudo abraça em ciranda.
Sim, a morte acorda os vivos da anestesia. Ela nos desperta, revela
nossa porção humana, realoca sentimentos, provoca solidariedade, desperta a
empatia. Sempre que o ser humano se depara com a instabilidade da sua
existência, ou com a inerência de sua condição inconstante, o sentimento de
medo (ou angústia) impulsiona uma mudança de paradigma individual.
Precisamos lembrar do nosso “direito de sonhar” (ou delirar), como sinaliza
Eduardo Galeano (1998) ou que a Terra e a humanidade podem se “curar”,
como poetizou Kathleen O’Meara (quem diria?) em 1839. Somos capazes de
nos refazermos diferentes e mais humanos?
É uma pena que tudo isso se desperta com a dor no estômago, com a
morte e suas leituras da condição humana.

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