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“Cardeal Valerian Gracias: Confrontado por duas transições coloniais”

Ecos do Oriente, Nº 21, Janº a Marº de 2011 – Ano VI, pp. 14-16
Teotónio R. de Souza

[14] Cardeal Valerian Gracias escreveu no Prólogo da segunda edição (1968) da bem conhecida
obra do Revdo. John Correia Afonso, Jesuit Letters and Indian History: «As investigações
históricas contribuem de maneira significativa para a nossa visão do mundo nos seus aspectos
mutáveis e evolucionários». É nestas palavras que o Cardial parece ter muito bem resumido a
sua percepção da ligação entre a Igreja, a Cultura e a História. Ele inspirou-se no concílio
Vaticano II, muito particularmente na sua Constituição sobre o Mundo Moderno. É muito
provável que o Cardeal defendia a missão da História no âmbito das suas experências pessoais
de ter que confrontar duas transições coloniais, ou seja, a independência da Índia e o fim do
colonialismo em Goa.

Enquanto Goa comemora 50 anos da sua «libertação», os historiadores goeses têm uma bela
oportunidade de investigar e esclarecer as ambiguidades que permanecem acerca de
personalidades e eventos que contribuiram para o fim do colonialismo, ou mesmo para [15] o
dificultar. Seria objecto destas investigações a comunidade goesa em Bombaim, onde houve
quem liderou o movimento em prol da integração na Índia, e muitos outros que preferiram a
segurança dos seus pequenos empregos e o prazer de fazer “mudança”(expressão luso-goesa
para as férias de verão) na sua terra natal em Goa, onde pudessem ainda beneficiar de
bebidas alcóolicas e queijos suíços entre outras bugigangas importadas.

Tristão Bragança-Cunha publicou um panfleto sobre a Desnacionalização dos Goeses, Por isto
e outras actividades suas contra o colonialismo português em Goa, ele foi o primeiro goês a ser
condenado em 1946 pelo Tribunal Militar com pena de 8 anos de prisão e 15 anos de privação
de direitos civis. Foi o primeiro prisioneiro politico a ser exilado para Lisboa e a dar entrada na
prisão de Peniche. Tudo por ter denunciado a colonização material e mental dos goeses
através da Igreja, Inquisição e política ditadorial do Estado Novo. Tristão Bragança-Cunha não
era dos vivos quando da libertação de Goa, mas em compensação foi reconhecido unânimente
pelos combatentes da liberdade de Goa como seu legítimo representante quando erigiram o
monumento em Azad Maidan e colocaram nele uma urna com as suas cinzas.

Juntamente com o combatente político como T.B. Cunha, Bombaim também presenciou
vários médicos goeses que serviram como presidentes da câmara municipal da cidade, tais
como Acácio Viegas, J.A. Colaço, Alban D’Souza e Leo D’Souza (pai e filho) Ubald
Mascarenhas, J.N. Heredia, Simon Fernandes. Houve outros goeses distintos, entre os quais
podemos citar Gerson da Cunha, J. N. da Fonseca, e muitos outros mais recentes que se
mantiveram indiferentes perante a causa da libertação política de Goa, ou souberam manter
posições ambíguas ou não-comprometedoras que lhes permitissem beneficiar do melhor dos
dois mundos, ou seja, continuar a ganhar e viver com estatuto social em Bombaim, e também
ir passar as férias de verão nas suas herdades em Goa. Francisco Correia Afonso ainda ganhou
uma medalha papal por ter tido a habilidade de cunhar o slogan “Rome Rule is Home Rule”. O
célebre Concanista goês Mariano Saldanha, que vivia na altura em Lisboa, qualificou esta
habilidade como “saber aliar beatice à vaidade”.

A clã dos Herédias apadrinhava as actividades do Instituto Luso-Indiano, administrado pelos


emigrantes goeses em Bombaim, mas sob a supervisão do governo de Goa, que lhe tinha
dedicado uma verba anual de 75,000 rupias desde 1929, em reconhecimento e compensação
das remessas dos goeses que beneficiavam as suas famílias em Goa. 1929. Curiosamente, J.N.
Heredia foi também, secretário e vice-presidente do Goa Liberation Council. Estes e outros
malabarismos requerem investigação. Simon Fernandes, manteve uma campanha pela defesa
da identidade luso-goesa no jornal Goa Times, mas também misturava discursos em prol da
libertação, que nunca deixou bem definida.

Leo Lawrence foi um critico mais duro do Cardeal Valerian Gracias por ter alegadamente
legitimado a ocupação de Goa, defendendo Nehru publicamente em vésperas do Natal de
1961. O seu livro Nehru Seizes Goa (1963), publicado em Nova Iorque, deve ser lido no
contexto do seu envolvimento professional como advogado nomeado pela administração
portuguesa de Goa para defender os interesses do Instituto Luso Indiano. Foi o que o colocou
sob a vigilância da administração Indiana e o obrigou a deslocar-se para Goa em 1959. Em Goa
foi recrutado para Adjunto da direcção de Informação e Turismo sob a chefia de Márires
Lopes, a quem T.B. Cunha descreveu no Free Goa (25-12-54) em termos pouco elogiosos.

Pouco antes da conquista de Goa, Leo foi indicado para acompanhar os jornalistas
estrangeiros convidados pelo governo português para noticiar a campanha de satyagraha na
imprensa internacional em defesa dos interesses portugueses. Logo a seguir à ocupação
militar de Goa pelas forces indianas, Leo serviu-se de um reporter Americano, e conseguiu um
visto da embaixada brasileira em Nova Delhi para chegar à Lisboa. Foi lá integrado no
Ministério dos Negócios Estrangeiros e serviu na Missão Permanente de Portugal nas Nações
Unidas durante quase duas décadas, procurando reverter a situação política em Goa.

Leo Lawrence dedica muito espaço do seu acima referido livro para o que ele chama o
Manifesto do Cardeal. Leo consegue indicar um total de quase cem mil goeses em Bombaim,
dos quais ele afirma não terem assinado o Manifesto mais do que noventa e seis, e dois terços
deles terem-no feito por coerção. Leo não deixa de mencionar a forma como o Cardeal foi
ridicularizado pela imprensa goesa de Bombaim, e que alguns goeses chegaram a mandar-lhe
uma túnica de Sadhu hindu como símbolo da sua alegada traição da causa cristã na Índia.

Segundo Leo Lawrence, quando o Cardeal fracassou na sua tentativa de ganhar os goeses para
a causa de Nehru, foi criada uma secção especial no quartel-geral da Polícia de Bombaim para
dirigir os «assuntos de Goa». A sua função seria a de vigiar os goeses opositores da causa da
libertação e integração de Goa na União Indiana. Obviamente, nem era de esperar que a
administração indiana tolerasse a ingerência da administração portugueesa de Goa através de
instituições e elementos localizados no território indiano. Analisando hoje, à distância de
quatro décadas, nenhuma das profecias funestas e disastres previstos por Leo Lawrence se
realizaram em Goa, nem mesmo o que ele contava acerca da solidez do império colonial
português em África.

A escolha do arcebispo de Bombaim fora influenciada pelo seu antecessor jesuíta, T.D.
Roberts, e a sua nomeação como Cardeal foi uma maneira de Vaticano compensar a política
religiosa de Nehru como chefe da India independente, e declaradamente secular. O futuro da
igreja na Índia independente certamente preocupava o Vaticano. O arcebispo Roberts poderá
ter resolvido alguns [16] dos seus problemas pessoais quando avançou com a ideia da sua
substituição pelo arcebispo Valerian Gracias, e tem sido muito criticado pelo historiador goês
George Morais. Todavia tudo o que sabemos acerca da participação activa do arcebispo no
concílio Vaticano II através das reportagens da revista TIME, T.D. Roberts revelou-se uma
pessoa de longa visão na Igreja e merece melhor apreciação pelas decisões que tomou antes
de sair de Bombaim.

Quanto à influência do Cardeal perante Nehru, a sua personalidade e o seu cargo já eram
suficientes, mas ganharam mais peso perante a hostilidade que manifestaram as autoridades
coloniais portuguesas quando da sua nomeação. Foi tratado como persona non grata, e as
forças policiais vigiavam os seus passos quando decidiu visitar Goa e ordenar padres goeses na
sua aldeia natal de Navelim em 1947.

Lembro-me de ter recebido uma oferta do Sr. Percival Noronha, oficial-chefe em reforma do
Departamento de Informação e Turismo, para a biblioteca do Centro Xavier de Investigações
Históricas. Isto foi quando eu ainda era o director responsável do Instituto até 1994. Poderão
agora estar disponíveis ou não para a consulta dos investigadores estes relatórios da Polícia
portuguesa para a administração interna e em que se referia aos planos de intervenção em
caso de qualquer desacato durante a visita do arcebispo de Bombaim. Esses documentos
podem ser uma fonte importante para o estudo do funcionamento da polícia secreta em Goa
no período crítico para o regime colonial em Goa.

D. José da Costa Nunes tinha chegado à Goa vindo de Macau, e assumiu o cargo de
arecebispo-patriarca de Goa alguns meses após a assinatura do Acordo Missionário de 1940
entre Portugal e a Santa Sé. O novo incumbente manifestou enorme zelo em reformar a
diocese, incluindo em particular os seus sacerdotes. Dirigiu uma série de 62 cartas pastorais
mês após mês. Queria ver os padres livres das ideias idependentistas que circulavam e
infectavam a arquidiocese. Os seus conselhos pareciam às vezes respeitar pouco a capacidade
intelectual, ou a autonomia e responsabilidade moral dos padres goeses. Avisava o arcebispo
na sua carta XIX: «Deveis tudo a Portugal … Sabeis que o desaparecimento de Portugal da Índia
representaria o maior desastre para os católicos goeses. Com o domínio português vocês são
alguma coisa, sem ele bem triste será a vossa situação».

T.B.Cunha accusava o Cardeal de timidez em defender as liberdades políticas dos seus


conterrâneos quando comparado com as autoridades religiosas coloniais portuguesas que não
cessavam de defender publicamente a continuidade da sua missão secular exercida através do
Padroado (Free Goa, 25-7-56). As acusações de Tristão Bragança-Cunha eram dirigidas no
âmbito do relatório judicial de Nyogi sobre a questão das conversões forçadas ao Cristianismo,
e a intervenção do Cardial perante Nehru para que o governo concedesse vistos de entrada
aos missionários estrangeiros que fossem necessários para ajudar na formação dos
formadores nos seminários. Conta-se que Nehru quis saber de Cardeal nessa altura se os
politicos da Índia deveriam ter pedido aos ingleses para continuarem na Índia mais alguns anos
para treinar os indianos a assumirem as suas responsabilidades de governação!

Em jeito de conclusão, gostaríamos de recomendar uma obra de Manuel Braga da Cruz,


actualmente no segundo termo do seu ofício como Reitor da Universidade Católica
Portuguesa, O Estado Novo e a Igreja Católica (Lisboa, 1998), em que investigou bem o
conflito diplomático entre Portugal e o Vaticano sobre as questões relacionadas com a
nomeação do arcebispo Valerian Gracias, as reacções do arcebispo-patriarca D. José da Costa
Nunes e a sua auto-demissão, o empenho demonstrado por Salazar em conseguir arranjar um
nicho para ele no Vaticano como vice-camerlengo, e finalmente sobre a zanga de Salazar
quando o Papa Paulo VI decidiu participar na celebração do Congresso Eucarístico em
Bombaim em 1964. Salazar via neste último acto de Vaticano uma legitimação internacional da
ocupação forçada de Goa pela União Indiana.

É pouco conhecido o que nos conta Braga da Cruz acerca das tentativas abortadas de uma
visita do Papa ao túmulo de S. Francisco Xavier, ou em deslocar as reliquias do santo à
Bombaim. Nenhuma das duas hipóteses se realizou, nem o Papa visitou Goa ou Nova Delhi,
somente para transmitir mais claramente a natureza meramente religiosa da sua visita. E para
compensar por quaisquer consequências políticas não intencionadas, o Santo Padre ofereceu
em 1965 uma Rosa de Ouro ao Santuário de N. Senhora de Fátima.

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