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Henry Maksoud

O CRUZADO
E OUTRAS
O CRUZADO ILUSÕES
E OUTRAS
ILUSÕES

. São Paulo
Editora Visão Ltd
1987 a.
OBRAS DO AUTOR:

COLET ÂNEA de editoriais publicados de setembro de 1974 a março de


1977. São Paulo, Ed. Visão, 1977. 149 p. SUMÁRIO
, IDÉIAS para a nação progredir com liberdade e empreendimento;
coletânea de editoriais, de abril de 1977 a abril de 1978, artigos,
conferências e entrevistas. São Paulo, Ed. Visão, 1978. 136 p.
Apresentação 9
DEMARQUIA, um novo regime político, e outras idéias ... ; 3~ coletânea
de editoriais, artigos e entrevistas (fevereiro de 1978 a maio de I - INFLAÇÃO E PLANO CRUZADO
1979). São Paulo, Ed. Visão, 1979. 160 p.
1. CIPs e SUNABs que nada resolvem (12-3-86) 13
A REVOLUÇÃO que precisa ser feita. São Paulo, Ed. Visão, 1980.
209 p. 2. O monetarismo keynesiano-estruturalista (19-3-86) 16
ENSAIOS sobre a liberdade. São Paulo, Ed. Visão, 1981. 262 p. 3. O Presidente foi à feira (2-4-86) 20
4. Os mistérios da inflação ou Acabou-se a inflação? (16-4-86) 25
OS PODERES do Governo. São Paulo, Ed. Visão, 1984. 269 p.
5. Você sabe o que é a inflação? ou
Ficha catalográfica preparada pelo
Setor de Documentação da Editora Visão: O trocadilho da inflação (23-4-86) 30
6. Por que discordo do pacote (30-4-86) 34
7. A inflação dos economistas (14-5-86) 38
Maksoud, Henry, 1929- 8. O balão inflacionário (21-5-86)
M235c O Cruzado e outras ilusões. São Paulo, 43
Visão, 1987. 9. Gastos públicos, déficits, inflação e
325 p.
os malefícios decorrentes (28-5-86) 48
1. Brasil - Política econômica 2. Reforma 10. A fantasia dos 'preços' controlados e a realidade
monetária- Brasil 3. Plano Cruzado I. Título.
dos preços de mercado (9-7-86) 52
11. A televisão e a falta de leite (6-8-86) 56
CDD-332.4981
12. Onde esconderam a inflação? (20-8-86) 59
13. O mal maior é o governo leviatã (27-8-86) 63
Editora Visão Ltda. 14. O aniversário do pacote (17-9-86) 67
Rua Afonso Celso, 243 15. Um embuste político (15-10..86) 72
São Paulo - SP ·16. Dos crimes contra o Património (22-J0-86)
Brasil 76
17. Que Deus ilumine os professores que nos
1987 governam (12-11-86) 80
Impresso no Brasil
Printed in Brazil
18. A inflação nas prateleiras (26-/1-86) 83 40. Ilusões humanas e realidades políticas (30-7-86) 168
19. As críticas e os aplausos ao Cruzado II (3-12-86) 88 41. Que é mercado e que é economia. E por que a
20. O caos que ninguém percebe (17-12-86) 92 intervenção no mercado leva à sociedade fechada
21. Um pacto de mandachuvas (24-12-86) 95 e antidemocrática. (13-8-86) 171
22. Caos político: a culpa dos professores (21-1-87) 98 42. O mutirão do progresso humano (3-9-86) 175
23. O cálculo económico para continuar no caos (28-1-87) 102 43. Leis, paraleis e pseudoleis (1-J0-86) 178
24. As pragas em nossa vida económica (4-2-87) 105 44. Reacionários e progressistas: a confusão da linguagem
25. A quantidade de dinheiro de que a economia no discurso político (29-10-86) 182
necessita (8-4-87) 110 45. O que é o Estado de Direito (5-ll-86) 185
46. A ilusão panacéica do parlamentarismo (18-2-87) 187
47. Em junho de 1980 perguntei: Teremos de ser meio
II- FILOSOFIA POLÍTICA escravos porque somos subdesenvolvidos? (18-3-87) 191

26. Retrato em 3x4 da demarquia (24-7-78) 117


27. Nosso futuro político na sociedade III - CONSTITUIÇÃO E CONSTITUINTE
de informação (15-10-84) 120
48. Legislativo, partidos e Constituinte:
28. A ação do governo na economia (31-8-85) 123
não se deve misturá-los (4-9-85) 197
29. Direito, Legislação e Liberdade (25-9-85) 126
49. Quem poderá ser constituinte? (JJ-9-85) 200
30. O remédio constitucional para as endemias
50. Constituição não é lei (18-9-85) 203
económicas (4-12-85) 129
51. A ideologia da Constituinte (16-10-85) 206
31. Uma Utopia liberal (18-12-85) 132
52. Não haverá sociedade livre nem progresso económico
32. Concerto de idéias (9-4-86) 136
sem o amplo direito à propriedade
33. Saiba de onde saíram as idéias do pacote
(será preciso acordarmos com uma constituição
(conheça o filósofo que faz sua cabeça) (7-5-86) 141
socialista para aprendermos isso?) (J0-9-86) 209
34. O poder, o mercado, a liberdade e
53. A constituição e os limites da escravidão (J0-12-86) 213
o progresso de cada um (4-6-86) 145
54. O que é uma constituição (ll-2-87) 217
35. Governo vs. Mercado (ll-6-86) 148
36. O pacote, a opinião pública e a vontade popular (18-6-86) 151
~

37. A ilusão do Estado Benfeitor (25-6-86) 155 IV - TRIBUTAÇÃO E CONSTITUIÇÃO


38. As saudades do recente passado tribal (16-7-86) 159
39. Vigília da liberdade e obsessão coletivista (23-7-86) 164 55. Quem deve pagar mais impostos? (30-10-85) 223
56. Os logros do imposto progressivo (06-11-85) 226 Apresentação
57. A fobia escondida no pacote (11-12-85) 229
58. Memento importante para os constituintes. Todos os sessenta e nove artigos deste livro estão relacionados com o
Ideologia do imposto progressivo (1-4-87) 232 Plano Cruzado, ou 'da inflação zero', pois todos eles têm a ver, de ma-
neira mais direta ou menos, com a imposição de tabelamentos e conge-
59. Memento importante para os constituintes. lamentos e de outras medidas governamentais arbitrárias e discricioná-
As falácias do tributo progressivo (15-4-87) 235 rias e suas funestas conseqüências econômicas, políticas e sociais.
Os vinte e cinco artigos da primeira parte, intitulada Inflação e Pla-
60. Memento importante para os constituintes. no Cruzado, tratam mais diretamente do equívoco que é tentar curar a
inflação (a expansão monetária acima do crescimento da produção de
Balizamento do sistema tributário para controlar bens e serviços) através da colocação de uma camisa-de-força nos pre-
o governo (22-4-87) 240 ços, cujo aumento é apenas uma decorrência da desvalorização da moe-
da pelo excesso de oferta monetária. E algo semelhante a querer curar
uma infecção abafando um de seus sintomas, a febre, com um antitér-
mico. E as conseqüências, no caso da inflação, são tétricas: o congela-
mento/tabelamento aniquila o mecanismo de preços, ou seja, a ciber-
V - AÇÃO EMPREENDEDORIAL nética do mercado. Destruir o mecanismo de preços equivale a terminar
com a ordem de mercado e a acabar com a liberdade individual e o di-
61. O hibridismo inibe o empreendedor (2-10-85) 247 reito à propriedade. Nesse sentido, a imposição do Plano Cruzado
assemelha-se à tentativa de aplicar um golpe de Estado socialista por
62. Quem são esses empreendedores? (9-10-85) 250 decreto ao incipiente 'capitalismo' brasileiro, revertendo-o para um re-
63. A liberdade de iniciativa na constituição (23-J0-85) 253 gime de inspiração marxista.
Os vinte e dois textos da segunda seção do livro, Filosofia Política,
64. Defesa da liberdade na homenagem a Eugênio Gudin, exploram principalmente as vinculações de cunho político-filosófico de
Homem de Visão de 1974 (2-7-86) 256 movimentos do gênero do Plano Cruzado com o socialismo.
Os sete artigos da terceira parte do livro, Constituição e Constituin-
te, investigam como deveria ser uma Constituição que, adotando os
ideais do Estado de Direito e da verdadeira separação de poderes, efeti-
vamente limitasse os poderes do Governo e garantisse a liberdade indi-
VI- SINDICATOS, SALÁRIOS, HABITAÇÃO E vidual, tornando inexeqüíveis aventuras no campo do planejamento es-
DÍVIDA EXTERNA tatal como as que envolvem a intervenção no mercado para impedir que
funcione livremente. Os seis estudos da quarta parte, Tributação e
65. O despotismo sindical (25-12-85) 261 Constituição, fazem recomendações sobre como deveriam ser conside-
radas as questões relativas a impostos em uma Constituição preserva-
66. Os perigos do sindicalismo à margem do direito (24-9-86) 264 dora da liberdade do indivíduo. Aliás, para incentivar debates s<'bre es-
67. O controle dos salários (26-3-861 269 ses e outros temas constitucionais, recentemente tornei pública uma
proposta de Constituição para o Brasil, a qual, acredito, conseguiria
68. Uma visão crítica da questão habitacional (8-10-86) 273 encaminhar nosso país para um verdadeiro governo de leis e não da
vontade dos governantes, que, atualmente, com um simples decreto,
69. Os poderes malignos do FMI (25-3-87) 277 como o do Cruzado e outros que se seguiram a ele, lançam o país no
caos.
Nos quatro artigos da quinta parte, Ação empreendedorial, analiso
como a ação dos empreendedores pode trazer progresso para o país. E,
VII- INFLAÇÃO E PREÇOS NO BRASIL 283 indiretamente, como planos denominados pretensiosamente de 'planos
de estabilidade econômica', como o famigerado Cruzado, só servem
para inibir a ação empreendedorial. Na sexta parte, Sindicatos, salá-
ÍNDICE DE ASSUNTOS 317 rios, habitação e dívida externa, discuto questões- por exemplo, o sin-

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dicalismo acima da lei e as 'políticas' habitacionais - que partilham
com o Plano Cruzado o caráter totalitário.
A última seção do livro é um ensaio sobre Inflação e preços no Bra-
sil, com ênfase maior nos períodos do Cruzado e imediatamente ante-
rior ao mesmo. É uma monografia que estou divulgando pela primeira
vez neste livro e que se apóia sobre alguns dos elementos gráficos e esta-
tísticos que venho utilizando em palestras, no Brasil e no exterior, vi-
sando a conscientizar mais pessoas dos perigos trazidos para a liberda-
de por planos ilusórios de controle de salários, juros, aluguéis e demais
preços de mercadorias, bens e serviços.
Um golpe de Estado socialista foi dado em 28 de fevereiro de 1986.
No começo foi uma louca euforia, seguida meses depois de muita desi-
I
lusão. Mas a lição não foi suficiente. Outro golpe foi dado em 12 de ju-
nho de 1987. A implantação de uma revolução, no caso socialista, leva
tempo! Os golpes são o começo. No caso, foram golpes dados por meio
INFLAÇÃO
da moderníssima 'tecnologia' do decreto-lei. Supostamente para acabar
com a inflação. Esta ainda não acabou, pois a força bruta está aí para
escondê-la, reprimindo os agentes econômicos e impedindo que funcio-
E PLANO
nem livremente o mecanismo dos preços e a correspondente lei da ofer-
ta e da demanda. Mas o mercado está certamente estropiado. Graças
aos golpistas. Será que a revolução socialista pretendida por eles está
CRUZADO
dando certo? E não será a ilusão do Cruzado nada mais que um logro
para levar-nos mais próximos de um regime totalitário?

Henry Maksoud
julho de 1987

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1. CIPs e SUNABs que nada resolvem
Este artigo foi por mim escrito e publicado na VISÃO de 30 de outubro
de 1978. Mais uma vez, neste momento negro da vida econômica brasi-
leira, engalanada por falsas promessas, reapresento-o para que os leito-
res não acreditem que haja unanimidade (como pode parecer aos menos
avisados) a respeito da violenta, arbitrária e detestável forma que está
sendo aplicada à atu ai política de congelamento de preços, em total des-
prezo aos princípios de justiça da verdadeira lei e dos procedimentos ju-
rfdicos e judiciais próprios da civilização. Comerciantes, empresários e
executivos estão sendo submetidos a denúncias anônimas e a "patru-
lhas justicialistas, iguais às que ocorreram no regime de terror nazi-fas-
cista, sofrem prisão arbitrária e são colocados pelas autoridades à exe-
cração pública, transformados em bodes expiatórios, como se fossem
eles os responsáveis pela inflação que há décadas (e até agora) vem sen-
do produzida pelos órgãos econômicos do governo.
Estas observações e o artigo que republicamos não significam que eu
ou a VISÃO sejamos contrários à necessidade premente de combater a
inflação no Brasil. Eles insinuam que os preços são uma "conseqüên-
cia, e não a "causa, da inflação. E lembram que é mais importante-
mais do que qualquer combate à inflação - viver na justiça de um ver-
dadeiro Estado de Direito, alertando as autoridades para a violência
histérica exercida hoje contra os homens de negócios e que está sendo
suscitada por setores mal-intencionados do próprio governo.

Poucos se dão conta de que o desenvolvimento da civilização e o si-


multâneo surgimento da sociedade aberta se tornaram possíveis, princi-
palmente a partir do século XVII, pela substituição gradual dos atos ar-

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bitrários visando a fins concretos por regras abstratas de conduta justa preocupação com a inflação, por exemplo, e principalmente .quando há
iguais para todos e aplicáveis em número desconhecido de casos futu- eleições à vista ou necessidade de mobilizações demagógicas para quais-
ros. Foi quando, também, o jogo regulamentado do mercado passou a quer fins, os órgãos de controle de preços são excitados pelo governo e
tomar o lugar da ação gerada pela voz única de comando. . pelos políticos mais voltados ao populismo ou às esquerdas. Passam en-
A grande vantagem desta substituição foi a de fazer com que as m- tão a agir em setores da agricultura, no comércio de alimentos e de cer-
formações bastante dispersas sobre os negócios e afazeres dos homens tos bens de consumo e em determinados ramos de serviços privados
pudessem chegar a comunidades dos mais variados tamanhos sob a for- (hotelaria, por exemplo), estabelecendo tabelamentos compulsórios e,
ma de símbolos que passaram a ser chamados de 'preços de mercado'. pois, 'preços' máximos. Verdadeiras polícias são implantadas para, à
A forma pela qual os preços são estabelecidos num mercado não força, fazer cumprir os comandos arbitrários e discricionários desses
obstruído faz com que a produção se dirija normalmente (espontanea- 'justicialistas sociais'.
mente) para os canais em que ela melhor serve os desejos manifestados Quem quer saber fica sabendo, porém, que o controle de preços não
no mercado pelos consumidores. Isto só não acontece, em parte, no ca- funciona; atrapalha os que querem trabalhar, desmantela o mercado,
so de preços de monopólio, em que os monopolistas podem desviar a torna crônica a inflação, mascara os índices de custo de vida, produz
produção para onde lhes pareça haver mais benefício. O monopóli~, conflitos, causa inquietação, mas não atinge os objetivos de seus ideali-
entretanto, numa sociedade livre, é a exceção e não a regra. O monopo- zadores de dar acesso permanente de certos bens e serviços a certas pes-
lio é o lugar-comum, a regra, quando predomina o estatismo, isto é, soas ou de forçar a 'redistribuição' de renda a determinados grupos.
quando a sociedade é fechada. O que realmente acontece é que, uma vez iniciado o processo de con-
Os preços são um fenômeno do merca~o. Eles são gerados pelo ~e­ trole de preços num dado setor de atividades, ele dificilmente pára aí;
canismo do mercado e são o ponto essencial, o cerne, do chamado sis- os equívocos em cadeia e as pressões levam fatalmente ao circuito com-
tema de mercado'. Não existe o 'preço fora do mercado'. Os preços não pleto do controle total de preços. Não é possível aplicar os princípios do
podem ser construídos sinteticamente, como pretende~ os fazed~res de socialismo para o benefício de somente um grupo; se isso for tentado,
'políticas de preços' dos CIPs e das SUNABs que existem por a1. Eles não se pode esperar que seja possível resistir às exigências de outros
resultam de uma constelação de dados resultante da ação e reação de grupos que quererão ser favorecidos pelos mesmos supostos princípios
todos os membros da sociedade atuando no mercado. O fator determi- de justiça e ter suas rendas também determinadas e 'aumentadas' pelo
nante no mercado é o empenho de cada indivíduo em buscar satisfazer poder coercitivo da autoridade.
suas necessidades e carências da melhor forma possível. Comprando, Nunca é demais repetir que a experiência já demonstrou insofisma-
ou deixando de comprar, os consumidores determinam não somente a velmente que os controles de preços somente podem tornar-se eficazes
estrutura de preços do mercado mas também o que deve ser produzido, se as autoridades também assumirem o controle direto da produção,
em que quantidade, em qual qualidade, e por quem. decidindo e determinando, portanto, o quanto as pe~soas ou as empre-
Mas, se o fenômeno do mercado trouxe imensos progressos e satis- sas poderão produzir, comprar ou vender. Isto quer dizer, noutras pa-
fação para os povos, muitas pessoas e grupos, sem saber bem por que lavras, que o governo precisará, para tornar eficaz o controle de preços,
- talvez ainda afetados por sentimentos atávicos tribais, que moderna- restringir o direito à propriedade, limitar a liberdade de empreendimen-
mente são denominados 'justiça social' e 'distributivismo' -, reagem to e acabar com a liberdade de escolha e decisão quanto ao investimen-
às regras não escritas do mercado livre e insistem em tirar-lhe autono- to, à poupança ou ao consumo dos recursos financeiros gerados pelos
mia por meio de medidas de controle de preços pelo governo. indivíduos e pelas empresas em suas atividades profissionais, empresa·
Ao lançar mão de tais medidas, o governo pretende ou favorecer o riais e pelo trabalho assalariado.
comprador - quando estabelece preços máximos - ou o vendedor - Quando se aproxima de um tal nível de controle sobre os negócios
quando estabelece preços mínimos. O preço máximo é usado para to~­ dos indivíduos, o regime há muito deixou de ser o do mercado e foi
nar possível ao comprador adquirir o que ele pretende a um preço mais substituído por um sistema de planejamento centralizado, também cha-
baixo que o do mercado livre. O preço mínimo é usado para tornar pos- mado de socialismo ou comunismo. Obviamente totalitário, queiram
sível ao vendedor dispor de sua mercadoria ou de seus serviços a um ou não queiram, gostem ou não gostem todos os que apóiam os CIPs e
preço mais alto que aquele do mercado desobstruído, isto é, sem con- as SUNABs desta terra.
trole de preços. Quem será favorecido e quando, dependerá das for~as
políticas em jogo e da conjuntura econômica. Nos períodos de maiOr VISÃO, 12-3-86

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Com base no modo de pensar dos Professores foi fácil ter uma 'vi-
2. O monetarismo keynesiano-estruturalista são' do que poderia vir a acontecer. E que de fato aconteceu meses de-
Semana passada reproduzi artigo publicado originalmente na VI- pois, em fevereiro de 1986: o congelamento dos preços; como se essa
medida representasse também um congelamento do inflamento da base
SÃO de 30-10-1978. Calhou como uma luva para a situação presente.
monetária. E a partir daí bastaria medir os novos preços, que não mais
Muitos artigos que escrevi nestes dez/ doze anos passados - questio-
podem subir, pretendendo com isso simular que se estaria medindo a
nando sobre problemas de nossa vida política e económica ou alertando
inflação. Bastará, então, apenas trombetear que o plano funcionou, a
para situações difíceis e perigosas em que estaríamos nos meten_do -
'inflação' acabou, já que os preços congelados nem um pouco muda-
poderiam ser agora reproduzidos para chamar outra vez a ~tençao. das ram. Talvez até diminuam pelo degelo.
pessoas, principalmente daquelas que eventualmente estejam agmdo
Acontece, no entanto, que os aumentos de preços não são em si mes-
em equívoco. _ mos a inflação. Podem ser uma conseqüência da inflação, jamais sua
O artigo de hoje apareceu inicialmente na VISAO de 20-11-1985.
causa, como pretendem fazer crer aos incautos os macroeconomancis-
Trata de "fascinantes porém perigosas" teorias económicas que, enten-
tas neokeynesiano-estruturalistas de plantão. A matéria de capa desta
do, são o fulcro do pensamento dos Professores que, para todos os fins
edição, como também as duas últimas, destaca a gravidade deste erro.
práticos, controlam a 'Política de Governo' e, pois, todos os aspectos
Quero que os leitores saibam, no entanto, que eu gostaria muito que
de nossa vida. as coisas erradas que estou enxergando nesse plano de combate à infla-
Denomino-os 'monetaristas keynesiano-estruturalistas'. Sei que eles ção não passem de um sonho-pesadelo meu.
em geral não admitem ser chamados de 'monetaristas'. Há os que se au-
toc/assificam de 'neokeynesianos'. Todos preferem ser chamados de O monetarismo deve ter nascido quando os homens decidiram dar
'progressistas' e adoram~ expressão 'ec~n~mistas he!erocfoxos'. c_e~tos aos governos o monopólio de criação e gestão do dinheiro em circula-
analistas contundentes dtzem que eles sao neomarxtstas . Sem duvtda, ção na economia. No início, a tarefa que se atribuía aos governos era
a maioria tem admiração secreta pela linha geral de Marx. Mas jamais não tanto a de produzir o dinheiro em si mas principalmente a de certi-
confessariam isso nem para si próprios. Penso que nenhum deles se ficar o peso e o grau de pureza dos materiais usados universalmente co-
considera xingado se for chamado de 'estruturalista', pois esse termo mo dinheiro. Apesar de que seu papel era o de assegurar que as moedas
tem conotação com as teorias macroeconómicas supostamente especifi- tivessem o peso e a pureza compatíveis com seus valores, todos os go-
cas para os países em desenvolvimento, discutidas no seio da CEPAL vernos sempre trataram de persuadir o público de que o direito de pro-
- Comissão Económica para a América Latina e Caribe, das Nações duzir dinheiro cabia a eles exclusivamente. Com o tempo, criou-se a su-
Unidas, que há muitos anos tem sede no Chile. . , . perstição de que era o ato de cunhagem ou emissão que conferia o valor
Da mesma forma que existe na crendice popular o jogo de buzws, ao dinheiro. Essa superstição foi logo substituída por doutrinas legais
em que os 'pais e mães-de-santo' usam conchas para adivinhações fan- sobre o poder do Estado na imposição de valor ao dinheiro, as quais, já
tásticas e há também a 'cartomancia' e a 'quiromancia', ou seja, a adi-
neste século, foram reforçadas por certas teorias econômicas fascinan-
vinhação por meio de cartas de jogar ou por meio do exame das linhas tes porém perigosas, tais como a de 1905 do alemão Prof. G. F. Knapp
da palma da mão, tudo muito ao gosto da gente supers.ti~iosa. ~ que (' 'The State Theory of Money' ') e a de 1936 de J. M. Keynes (''General
adora ser lograda, igualmente existe a 'macroeconomancta , adtvmha- Theory of Employment, Interest and Money"). Quanto à teoria de
ção por meio de agregados económicos, que tem sido amplamente usa-
Knapp, basta citar que ela foi a fonte inspiradora da 'política monetá-
da para difundir, principalmente em países meAno~ e~oluídos co"!o o ria' do governo alemão que produziu a fantástica inflação que em 1923
nosso, uma 'ideologia do desenvolvimento economtco que se basera no
derrubou o marco a um trilionésimo de seu valor anterior. A 'Teoria
logro fundamental de que o Estado pode administrar com justiça todas
Geral' de Keynes gerou a onda multiface chamada keynesianismo e seus
as atividades do homem e em conseqüência propiciar-lhe progresso.
desdobramentos, onde se pode destacar as teorias de tipo estruturalista-
O monetarismo keynesiano-estruturalista é, em última análise, isso
macroeconômico que tantos percalços têm trazido para as pretensões
aí. Tudo bem certinho e planejado pelos Professores no Governo. Mas,
de progresso do Brasil e de outros 'países em desenvolvimento'.
independente do nome que se lhe dê, quando os planos não funcionam
Devido ao fato de que alguns dos mais conhecidos 'monetaristas'
eles dizem que há gente atrapalhando a teoria, que precisa ser. enqua-
drada. O resultado é a repressão e o controle geral da economta, con- são também defensores do mercado livre, a expressão 'monetarismo' é
forme explico no final do artigo que escrevi em novembro passado. tida erroneamente como igual a 'capitalismo' ou a 'conservadorismo'.

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O monetarismo, no entanto, é uma teoria sem qualquer cor ideológica.
O próprio 'guru' moderno do monetarismo, Milton Friedman, escreveu Essa teoria gerou o 'keynesianismo', que deixou os governos com-
num artigo em 1980 que "a teoria monetária não tem conteúdo ideoló- pletamente soltos para gastar mais e mais: financiados pelo aumento da
gico". Nesse mesmo artigo, Friedman reproduz trechos do relatório oferta de dinheiro ou por empréstimos, os déficits dão-lhes condição de
anual do presidente Li Baohua, do Banco do Povo da China, onde apa- gastar sem ter de aumentar os tributos; os superávits, de outro lado, so-
recem coisas sobre monetarismo que o professor da Universidade de mente podem ser acumulados ou aumentando os impostos ou cortando
Chicago afirma que ele mesmo não saberia escrever melhor. Sobre a os gastos, que são medidas de caráter impopular. O resultado dessa si-
quantidade de dinheiro no mercado, por exemplo: "Emissões de natu- tuação tem sido a assimetria na aplicação da teoria de Keynes, ou seja:
reza fiscal devem ser evitadas, pois não devemos entrar no caminho in- uma persistente preferência pelo déficit orçamentário e seu financia-
flacionário dos países capitalistas ... Um excesso de papel-moeda no mento pelo inchaço da dívida pública e aumento crescente dos meios de
mercado ... trará flutuações nos preços das mercadorias ... Se ocorrer pagamento; um contínuo aumento dos gastos governamentais com
uma falta de papel-moeda no mercado, a circulação das mercadorias crescente intervenção do Estado na economia; uma inflação instável e
será afetada ... ''. E sobre política fiscal: ''Devido ao fato de que os défi- incessante; e um permanente e elevado grau de desemprego.
cits orçamentários causados por um aumento direto dos gastos fiscais Apesar desse descalabro, os keynesianistas não se deram por venci-
são de tal natureza que atraem a atenção, medidas são geralmente to- dos. Para eles haveria também complexos aspectos 'estruturais' nos
madas com rapidez para corrigir tais situações logo que elas surjam; países 'periféricos' que deveriam ser considerados na aplicação e/ou
mas o aumento dos gastos fiscais mascarados por meio de empréstimos correção das teorias vigentes. Lançando mão da macroeconomia (análi-
bancários, e a brecha crescente entre créditos e empréstimos, e o au- se de agregados econômicos) surgida com a 'Teoria Geral' em 1936,
mento de emissão de notas decorrente desse desequilíbrio, são situações passaram a desenvolver 'modelos dinâmicos' de análise aplicáveis a paí-
às quais normalmente não se presta a devida atenção ... A experiência ses em desenvolvimento. Eles enfatizam a necessidade de técnicas espe-
mostrou que, para regular a circulação da moeda de forma planejada, é cíficas de planejamento para corrigir aqueles efeitos desastrosos da
importante que se tenha um orçamento equilibrado e um equilíbrio ge- aplicação de Keynes e para isso desenvolveram algo que poderia ser
ral das finanças públicas e créditos bancários". chamado de 'monetarismo keynesiano-estruturalista'.
Mas se o monetarismo é assim neutro sob o aspecto ideológico, co- Para continuar sendo monetaristas e simultaneamente keynesianis-
mo, então, ocorrem os desvios que produzem não só a barafunda ideo- tas a despeito da inflação, da estatização e do desemprego decorrentes
lógica mas também a persistente e variável febre inflacionária que se dessa atitude, a resposta teórica é a de que existe "uma descontinuidade
observa comumente nos países como o nosso? Esses desvios se dão on- estrutural no sistema capitalista, geradora de dinâmicas distintas nos
de entra a aplicação da teoria monetária mesclada com o keynesianismo países centrais e periféricos"; e a resposta prática é a convocação dos
e com as tais teorias estruturalistas macroeconômicas. órgãos governamentais de repressão para que "o mercado se comporte
Na sua 'Teoria Geral', Keynes substituiu a visão clássica do orç·a: de modo a manter os produtos a preços compatíveis com as necessida-
mento governamental equilibrado pela idéia de que as flutuações ine- des da população". No final das contas, os econometristas poderão vir
rentes à economia poderiam ser atenuadas pela criação de um desequilí- a querer medir os preços por eles totalmente congelados e chegar à con-
brio orçamentário, de modo a criar déficits na recessão e superávits na clusão de que 'os preços não mais sobem' e, portanto, 'a inflação é nu-
inflação. Ele diagnosticou como causa da Grande Depressão um nível la', foi vencida pelo controle de preços ...
inadequado de demanda efetiva e por isso receitou um aumento nos
VISÃO, 19-3-86
gastos do governo como meio direto de estimular a demanda e, em con-
seqüência, a produção e o emprego, assegurando, desse modo, o pleno
emprego dos fatores de produção subutilizados na conjuntura de crise.
Argumentava que os trabalhadores previamente desempregados, con-
tratados para produzir o que o governo comprava, gastariam a maior
parte de seus ganhos em mercadorias, o que estimularia outro turno de
aumento da demanda. Este processo se repetiria automaticamente e,
deste modo, o aumento total da demanda global seria um múltiplo
substancialmente grande do incremento no gasto do governo.

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3. O Presidente foi à feira O artigo que segue foi publicado originalmente na VISÃO de 3-9-
1979 e pode ser encontrado também em meu livro "A Revolução que
Há não muito tempo o vilão responsável por um 'surto inflacioná- Precisa Ser Feita'', Ed. Visão, 1980. Creio que vale a pena ser lido e re-
rio' foi o chuchu. Não foi à toa que o Presidente da República veio pes- lido por todos aqueles que prezam sua liberdade, pois fala de coisas de
soalmente verificar que havia apreciável diferença entre os preços das grande alua/idade.
verduras nas chácaras de produção e nas zonas de consumo. Seus asses- Todos os meios de comunicação deram ampla cobertura ao dia (9-8-
sores económicos devem ter soprado que era preciso ver in loco como ~e 79) em que o Presidente da República passou em São Paulo visitando o
dava a 'especulação' nos preços dos hortifrutigranjeiros que estana mercado da Cantareira, a feira livre do Bom Retiro, chácaras de produ-
acelerando a inflação... . _ .. tos hortigranjeiros de Mogi das Cruzes e, no Jaguaré, o centro de co-
A confusão semântica entre aumento de preços e mflaç~o foz mtro- mercialização da Ceagesp - Companhia de Entrepostos e Armazéns
duzida e difundida pelos economistas a tal ponto que, hoje, o que as Gerais do Estado de São Paulo.
pessoas chamam de inflação não é realmente inflação. l~flaç~o é o au- O Presidente João Figueiredo queria saber como funciona o merca-
mento da quantidade de dinheiros circulante~ na econo_mz~. Nao have~­ do no caso dos hortifrutigranjeiros. Procurou conhecer, nesse dia, por
do aumento nas quantidades de bens e servzços vendavezs, a expansao quanto vendiam os chacareiros de Mogi alguns de seus produtos e a que
da demanda criada pela inflação monetária produzirá, mais cedo ou preço compravam nas feiras os consumidores desses mesmos produtos.
mais tarde, uma tendência geral de subida dos preços. Este aumento ~g~­ Descobriu que o consumidor paga bem mais que o preço cobrado pelo
neralizado dos preços reflete uma desvalorização da unidade monetana produtor. Mostrou-se impressionado com a significativa diferença.
(uma diluição do valor do dinheiro) que na~a mais é que. uma conse- Perguntado sobre o porquê dessa diferença e que medidas tomaria, dis-
qüência inevitável do 'inflame?.to' da ?uantz~ade .dos, mew~ ~e pa~a­ se o Presidente que "nesse duelo entre produtor e consumidor" existe
mento. Esse 'inflamento' (ou mchaço ')do dmhezro e que e mflaçao_. alguma coisa errada que não sabe o que é, mas vai tentar responder de-
Tendo o governo o monopólio da fabricação do 'din.heiro~(em suas ~a­ pois de se reunir com seus auxiliares. "O que eu quero identificar",
rias formas), só ele pode medir esse inflamento ou mflaçao. E, obvza- confirmou o Presidente, "é justamente o que existe entre o início e o
mente, só ele pode especular com o dinheiro, ajetando os preços, os sa- fim da cadeia. Pode ser que seja o atravessador, mas pode ser também
lários e os juros. . que o culpado seja a nossa própria legislação. Só poderei saber que me-
Quando o mercado funciona livremente, os preços (dos bens, servz- Jidas tomar quando conhecer o problema, suas causas, e puder res-
ços e do trabalho) são sinais autênticos do comportamento da econo- ponder sobre o porquê dessa diferença de preço entre o" produtor e o
mia. Quando o mercado não é livre (quando há controles de preço~, .ta- consumidor.'' o l
belamentos e/ou congelamentos), os preços (inclusive os dos salanos) Existem, todos sabem, entre o produtor e o consumidor, dependen-
passam a dar sinais falsos sobre o funcioname~to da ec?nomia..Quan- do da mercadoria e das características de sua comercialização, diversos
do o mercado é livre, a inflação pode ser medzda, availada, estzmada, elementos intermediários (tais como o transporte, o armazenamento, a
sinalizada por meio de índices de preços. (Os índices de preços- que estocagem e a refrigeração, além da incidência de impostos e da própria
têm sido usados até abusivamente no processo de indexação da econo- intermediação normal no comércio) que tendem a tornar menos simples
mia inventado pelos economistas- são pois, obviamente, ~m efeito ~a as relações de preços entre as regiões de produção e as de consumo. As
inflação.) Os economistas confundem a: bolas po;q_ue ~te agora :zm- características dessas estruturas de comercialização obviamente pode-
guém conseguiu estabelecer uma correlaçao mate'!'atzca szmples e dzret_,a rão afetar não só os preços dos produtos e as relações de preços dos
entre índices de inflação e índices de preços; pozs se trata. de "!"! fen?- produtores para os consumidores finais, mas também a regularidade e a
meno realmente complexo como é, aliás, toda a vida soczal. E msojzs- garantia dos suprimentos. Há, sem dúvida, em todo esse procedimento
mável, entretanto, a relação de causa e efeito entre estes dois eleme~~os. inúmeras oportunidades para abusos e especulações altistas. Ninguém,
Quando o mercado é estropiado por controles de preços e salanos, entretanto, consegue abusar ou especular permanentemente, provocan-
os preços não mais servem para indicar a inflação., Q~ando se decreta do aumentos contínuos e persistentes de preços, a não ser em condições
um congelamento/tabelamento geral como agora, e szmplesm~nt~ gro- de monopólio toleradas pelo governo. Doutra forma, os aumentos sis-
tesco e ofende a inteligência mais pueril pretender calcular um mdzce de
'variação' de preços que foram previamente congelados e!ou tabelados (1) Transcrição livre de trechos de uma entrevista publicada pelo "Jornal do Brasil"
e jazer a população acreditar que se está medindo a inflação! de 10-8-79, página 14.

20 21
temáticos de preços só ocorrem quando o mercado perde sua autono- xo do índice determinado pelo mercado livre e quiser, não obstante,
mia pela interferência tácita ou expressa do governo no processo de es- evitar uma queda no suprimento do leite, deve procurar eliminar as
truturação dos preços. causas que tornam não-lucrativo o negócio do produtor que trabalha
"Vou dar um jeito para que o consumidor gaste menos e o produtor com margem apertada. Deve então acrescentar ao primeiro decreto, re-
ganhe mais." Este teria sido um desabafo do Presidente, registrado por lativo apenas ao preço do leite, um segundo decreto, fixando os preços
um jornalista durante a visita às granjas de Mogi das Cruzes<2>. Isto se- dos fatores de produção necessários à produção do leite a um custo su-
ria quase o mesmo que dizer ·vou mudar as regras do mercado e estabe- ficientemente baixo para que os produtores marginais de leite não so-
lecer um novo sistema de preços'. Uma tal medida seria imaginável ape- fram mais prejuízos e, desse modo, não provoquem a escassez de oferta
nas num regime de governo que desejasse acabar de vez com o mercado do produto. Acontece, porém, que a mesma história se repete num pla-
pelo controle de preços. Há válidas esperanças de que este não é ainda o no mais remoto. O suprimento dos fatores de produção exigidos para a
caso do atual governo. produção do leite cai e, novamente, o governo está de volta ao ponto de
O que se passaria num caso desses, entretanto, é que, uma vez inicia- partida. Se não quer admitir seu fracasso nem abster-se de qualquer in-
do o processo de controle de preços num dado campo de atividades, ele gerência nos preços, ele precisa prosseguir e fixar os preços daqueles fa-
dificilmente conseguiria parar aí; as novas pressões geradas disparam tores de produção requeridos para a produção dos fatores necessários à
uma cadeia de eventos que conduzem fatalmente ao completo controle produção do leite.
do sistema de preços e à destruição do mercado, como nos mostra o Dessa forma, o governo se vê forçado a ir mais e mais avante, fixan-
grande economista e filósofo político austríaco Ludwig von Mises na do, um a um, passo a passo, os preços de todos os artigos de consumo e
descrição(3> que segue: de todos os fatores de produção - tanto os humanos (isto é, o traba-
"O governo passa a crer que o preço de um certo produto, o leite lho) como os materiais - e obrigando cada empresário e cada trabalha-
por exemplo, está demasiado alto. Ele quer que os pobres tenham r;~s­ dor a continuar a operar com esses preços e salários. Nenhum ramo da
sibilidade de dar mais leite a seus filhos. Recorre, então, a uma politica indústria pode ser excluído desse 'tabelamento' global de preços e salá-
de preço máximo e fixa o preço do leite num nível mais baixo que o que rios e desta obrigação de produzir as quantidades determinadas pelo
prevalece no mercado livre. O resultado é que os produtores marginais, governo. Se alguns se tores fossem desconsiderados, pelo fato de prúJU-
aqueles que se encontram produzindo aos custos mais elevados, passam zirem apenas mercadorias classificadas como não-vitais ou até mesmo
a ter prejuízo. Como nenhum fazendeiro ou homem de negócios pode supérfluas, o capital e o trabalho tenderiam a convergir para eles e o re-
manter-se trabalhando com prejuízo, esses produtores marginais param sultado seria uma queda no suprimento daqueles produtos cujos preços
de produzir e de vender leite no mercado. Passarão a usar seu gado e foram fixados pelo governo precisamente por considerá-los indispensá-
suas habilidades noutros negócios mais rentáveis. Produzirão, por veis à satisfação das necessidades das massas.
exemplo, manteiga, queijo ou carne. Haverá, pois, menos leite à dispo- Quando esse sistema de total controle dos negócios for atingido, não
sição dos consumidores, não mais como se pretendia. Isto, claro, é con- restará nenhum vestígio de uma economia de mercado. Os cidadãos
trário às intenções do governo, que queria facilitar para certas pessoas a não mais determinarão, comprando ou abstendo-se de comprar, o que
compra de mais leite. Como resultado de sua interferência, caiu o ritmo deve ser produzido e como. O poder de decisão nessas questões terá
de suprimento do produto. A medida se mostra abortiva do próprio passado à incumbência do governo. Não haverá mais capitalismo e sim
ponto de vista do governo e dos grupos que ele estava ansioso para fa- total planificação governamental; socialismo, enfim.
vorecer, provocando um estado de coisas que - também do ponto de É verdade óbvia que esse tipo de socialismo preserva alguns dos ró-
vista do governo - é ainda menos desejável que o anterior, que se visa- tulos e a aparência exterior de capitalismo. Mantém, na aparência e no-
va melhorar. minalmente, a propriedade privada dos meios de produção, os preços,
Então, o governo depara com duas alternativas. Uma é revogar seu os salários, os juros e os lucros. Na verdade, entretanto, nadu tem in-
decreto e abster-se de quaisquer outras medidas para controlar o preço fluência e importância a não ser a autocracia irrestrita do governo. É
do leite. Mas, se insistir em seu intento de manter o preço do leite abai- ele quem determina aos empresários e capitalistas o que produzir e em
que quantidade e qualidade, a que preços comprar e de quem; a que
(2) "Jornal do Brasil", 10-8-79, página 14. preço vender e a quem. Ele decreta os salários e onde os trabalhadores
(3) Parte de uma palestra proferida em 8 de abril de 1950 no University C!ub, devem trabalhar. As aparências de existência dum mercado não passam
de Nova Iorque.
dum simulacro.

22 23
Todos os preços, salários e taxas de juro são determinados pela au- 4. Os mistérios da inflação ou
toridade. São preços, salários e juros apenas na aparência; são, de fato,
meras relações de quantidades nas encomendas governamentais. O go- Acabou-se a inflação?
verno é quem dirige a produção, não os consumidores. O governo de-
termina a renda de cada cidadão e atribui a cada um a posição em que Como ocorre o aumento generalizado dos preços? Como é possível
deve trabalhar. Isto é socialismo mascarado de capitalismo. É o socia- chegar-se a uma situação na qual os preços sobem continuamente como
lismo do tipo do Zwangswirtschaft (economia de guerra ou economia acontecia até 28 de fevereiro, quando todos os preços dos bens, servi-
dirigida) do Reich alemão de Hitler e da economia planificada da Grã- ços, salários e aluguéis foram congelados ou tabelados por decreto?
Bretanha''. Acabou-se a inflação? Ou apenas esconderam-se os seus efeitos?
Queremos todos que a feira do Presidente tenha sido útil e proveito- Há muitos anos venho afirmando que a inflação é uma perigosa en-
sa. Que no balanço que fará com seus auxiliares o saldo seja rendoso de fermidade monetária causada somente pelo Governo Federal e que so-
ensinamentos. Entretanto, rezamos todos para que não levem a Sua Ex- mente o próprio Governo Federal pode acabar com ela. Só o governo
celência idéias de intervenção, como as acima descritas, que pretendam pode produzir e também só ele pode eliminá-la porque só o governo de-
dar ao povo mais leite ou mais verduras. tém o monopólio de emissão do dinheiro em suas várias formas. Sem-
pre enfatizo que para acabar com a contínua redução do poder aquisiti-
VISÃO, 2-4-86 vo da moeda (inflação) bastaria que o governo parasse de 'fabricar di-
nheiro' em ritmo mais rápido que o do aumento da produção.
Parece simples mas não é. As coisas se complicam porque os gover-
nos não assumem a responsabilidade pela geração da inflação, princi-
palmente quando ela 'pega fogo' como vem acontecendo nos últimos
tempos. Tudo fica mais difícil ainda, porque os economistas que se in-
crustam nos governos são geralmente 'monetaristas keynesiano-estru-
turalistas'; eles não só acreditam no ativismo governamental como tam-
bém crêem que possuem conhecimentos suficientes para atenuar a cada
instante as flutuações inerentes à economia pela 'dosagem manual' da
oferta de dinheiro no mercado. Eles agem como se tivessem um dom ci-
bernético. Como o povo em geral e muita gente bem diplomada não co-
nhece os mistérios da inflação, aos governantes é mais fácil dissimular
do que enfrentar algo que parece ser um explosivo problema político.
Enquanto for possível, o governo lança mão de 'pacotes' atrás de 'pa-
cotes', com medidas intervencionistas evasivas baseadas em tudo que
possa parecer plausível como 'causa' do aumento do custo de vida; co-
mo, por exemplo, a ganância dos comerciantes, os atravessadores, a es-
peculação, os sindicatos, os salários, as enchentes e as secas, o consu-
mismo, o cartel do petróleo, a quebra de safra, etc. Não há dúvida de
que esses elementos podem ocasionar subidas de preços de determina-
dos produtos; podem até provocar variações temporárias em muitos
preços. Mas não conseguem gerar o crescimento generalizado de todos
os preços. E não podem causar a inflação propriamente dita pela sim-
ples razão de que nenhum desses citados vilões possui o monopólio que
possibilita a oferta excessiva de dinheiro na economia.
Quando o governo faz crescer a quantidade de dinheiro objetivando
atingir qualquer meta ecônomica, seus planejadores confundem dinhei-
ro com riqueza. O que não percebem, porém, é que, neste aspecto, o di-

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nheiro é uma mercadoria diferente das demais: quando a oferta de di- nheiro em relação ao crescimento do produto bastaria citar que o total
nheiro aumenta, a sociedade não fica mais rica como acontece quando do M4 em dezembro de I979 era de 2.I64 bilhões de cruzeiros e de
cresce a oferta de outras mercadorias. O dinheiro é também diferente 922.822 bilhões em fevereiro de I986. Esse aumento de 42.5440Jo na
das outras mercadorias porque não é consumido, já que é apenas um 'quantidade de dinheiro' foi efetuado pelo governo enquanto a 'oferta
instrumento de troca que permanece circulando no mercado. de produtos' (medida pelo PIB real no mesmo período) crescia apenas
No âmbito da eterna lei da oferta e da procura, no entanto, o dinhei- cerca de I7,50Jo. Noutras palavras: a 'fábrica' de dinheiro do governo
ro deixa de ser diferente e funciona como se fosse uma mercadoria. Es- fez crescer nesse período 363 vezes mais quantidade de dinheiro (papéis
sa lei do mercado determina o 'preço' do dinheiro e das demais merca- impressos de vários tipos) que o crescimento da quantidade de produ-
dorias, serviços, juros, salários e aluguéis. Todo mundo sabe que se ção gerada por toda a nação. Aí está a inflação. Esse aumento estapa-
houver, por exemplo, falta de tomate (isto é, se a oferta cair) e conti- fúrdio na 'oferta de dinheiro' sem lastro foi sem dúvida a causa funda-
nuar havendo a mesma procura, o preço do tomate tende a subir; se a mental do aumento de 37.3570Jo no Índice Geral de Preços (IGP/DI)
oferta de tomate aumentar, o preço tende a baixar. O mesmo se dá com observado nesses mesmos seis anos e dois meses.
o dinheiro: um aumento da oferta de dinheiro tenderá a diminuir seu E como foi que essa massa absurda de dinheiro sem lastro entrou em
preço - ou seja, o dinheiro valerá menos: é a inflação. Quando há nossa economia? Esse excesso de dinheiro em relação ao crescimento da
mais dinheiro procurando a mesma quantidade de bens, cada unidade riqueza nacional foi simplesmente injetado no sistema financeiro pelo
monetária (hoje chamada Cruzado) vale menos. Logo, são necessárias governo, já que o cruzeiro (e o cruzado agora) não possui nenhum su-
mais unidades monetárias para comprar um mesmo par de sapatos ou porte real como o ouro, a prata ou qualquer outra coisa que tenha valor
um quilo de feijão. Portanto, num regime em que a massa monetária real e nada impede que nosso dinheiro seja 'criado' ilimitadamente.
foi inflacionada, os preços todos sobem, não porque a produção é mais Pode-se dizer que a inflação (inflamento dos meios de pagamento)
escassa do que antes, mas porque há superabundância de dinheiro. Não começa quando o executivo governamental procura equilibrar seu défi-
necessariamente porque a demanda física aumentou nem porque os cit orçamentário. (É preciso alertar que os monetaristas de plantão po-
custos reais subiram, mas porque há excesso de dinheiro na economia. dem produzir inflação mesmo que não haja déficit orçamentário - ge-
(É preciso, no entanto, alertar que, embora a inflação tenda a fazer su- ralmente trata-se de falácia que chamam de 'emissão não
bir todos os preços, isto não se dá na mesma medida e ao mesmo tempo inflacionária'.) Como os governos se acostumaram a operar sempre
para todas as pessoas e todos os preços. Não se trata de um movimento com déficit - gastam mais do que o que recebem - eles procuram co-
ascendente geral e uniforme que os macroeconomistas chamam, por brir a diferença. Resolveriam essa questão por métodos realmente não
metáfora, de 'nível dos preços' - como se fosse o nível dum líquido inflacionários (embora causando outros problemas) se o déficit pudesse
num vaso - e que eles medem por meio de um agregado arbitrário de ser coberto por receitas tributárias adicionais, ou através de emprésti-
preços denominado 'índice geral de preços'.) mos pagáveis inteiramente por poupanças reais. Mas as dificuldades
A 'oferta de dinheiro' num dado momento é avaliada pelo cômputo para aplicação de qualquer desses métodos são tão grandes, devido aos
dos Meios de Pagamento, que são valores pouco conhecidos pelo públi- contínuos e pesados déficits, que é quase inevitável recorrer à fabrica-
co mas disponíveis no Banco Central do Brasil e periodicamente compi- ção inflacionária de dinheiro.
lados e analisados pelo Instituto Brasileiro de Economia (IBRE) da É quando se dá o procedimento que os economistas denominam
Fundação Getúlio Vargas, Rio. Há no Brasil quatro conceitos de Meios curiosamente 'monetização do débito'. É um método sinuoso de produ-
de Pagamento. O chamado MI inclui o papel-moeda em poder do pú- zir inflação que a seguir descrevemos simplificadamente. Para 'contor-
blico + depósitos à vista nos bancos comerciais e no Banco do Brasil. nar' o crescente défict orçamentário, o governo arranja dinheiro 'em-
O M2 é igual ao MI + depósitos à vista nas caixas econômicas e BNCC prestado' através da emissão de Obrigações e Letras do Tesouro. Parte
+ depósitos a prazo. O M3 é o M2 + depósitos de poupança. E o M4 é desses títulos é vendida aos bancos e a outros tomadores que em paga-
igual ao M3 + títulos públicos federais (ORTN e LTN) em poder do mento transferem recursos próprios para o Tesouro. A outra parte fica
público, ou seja, fora da carteira do Banco Central. Entre o M3 e o M4 na cartl'!ra de títulos públicos do Banco Central que 'paga' o Tesouro
talvez esteja a medida mais representativa da 'quantidade de dinheiro' fabricando papel-moeda e/ou usando recursos dos depósitos compul-
em nosso país, embora para os efeitos deste artigo qualquer conceito sórios que os bancos são obrigados a mant.!r no BC. De outro lado, o
serviria. Banco Central também entra em cena para resgatar e/ou recomprar no
Para dar uma idéia do aumento assombroso da quantidade de di- mercado (bancos e público) os títulos do Tesouro. Quando não joga no

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mercado novos títulos para 'girar a dívida', o Banco Central ou cria 're- método, infelizmente, não acabará com a inflação mas produzirá danos e
servas' em nome dos bancos ou faz outra vez a Casa da Moeda impri- seqüelas na vida política e econômica, muito mais graves e desagradáveis
mir novas notas para entregar aos portadores dos títulos. Além dessas para todos que o método de atacar as verdadeiras causas do problema.
emissões, o BC ordena emissões para cobrir contas de subsídios como
VISÃO, 16-4-86
as do trigo, produtos energéticos, créditos e exportação. É óbvio que
ninguém antes possuía o dinheiro que o BC emitiu em todas essas ope-
rações. Ele foi criado de simples penadas como um artifício monetário
para cobrir o excesso de gastos do governo. Num curto período de tem-
po, portanto, maciças quantidades de dinheiro são introduzidas no
mercado sem um correspondente aumento da oferta de bens e serviços.
É esse novo dinheiro 'tirado do ar' que gera a dilapidação do poder
aquisitivo da moeda. É isso a inflação: queda do 'preço' do dinheiro
devido à 'oferta' monetária excessiva em relação à quantidade de coisas
ofertadas no mercado.
A confusão semântica entre aumento de preços e inflação foi intro-
duzida e difundida pelos economistas. Chegou a tal ponto essa confu-
são que o que as pessoas e os próprios economistas chamam hoje de in-
flação não é realmente inflação. Os aumentos generalizados dos preços
refletem desvalorizações da unidade monetária (diluição do valor do di-
nheiro) que nada mais são que conseqüências inevitáveis do 'inflamen-
to' das quantidades dos meios de pagamento num ritmo mais rápido do
que o do crescimento da produção nacional. Esse 'inflamento' (ou 'in-
chaço') do dinheiro é que é a inflação. Possuindo o governo o monopó-
lio do dinheiro, só ele pode especular com a inflação. Nesses cerca de
seis anos, desde dezembro de 1979 até fevereiro de 1986, o governo pro-
duziu inflação desvairadamente: enquanto o PIB global aumentou ape-
nas cerca de 17,50Jo, a quantidade de dinheiro M1 cresceu 12.669%; a
M2 cresceu 23.710%; a M3 cresceu 33.458%; e, conforme já Yimos, a
M4 cresceu 42.544%. Só nos últimos doze meses até fevereiro de 1986,
os meios de pagamento M1 aumentaram 317,7%; o M2, 284,8%; o M3,
273,7%; e o M4, 305,2%, o que certamente causou o aumento de
265,8% no IGP/DI, enquanto o Produto cresceu na ordem de 8,5%.
Embora bastasse parar com o aumento da quantidade de dinheiro
para, após um tempo, ter finda a inflação (e conseqüentemente os au-
mentos generalizados dos preços por ela produzidos), essa solução cau-
sa temor aos governantes porque envolve pormenores complexos e pos-
síveis efeitos colaterais desagradáveis e aparentemente enigmáticos para
muitos economistas. O atual governo brasileiro preferiu um método ar-
bitrário e estatocrático instantâneo, politicamente imediatista, e mais
agradável para ele governo e para todos os que se alegram com milagres
e panacéias. Consiste na aplicação de medidas draconianas e demagógi-
cas para impor o congelamento/tabelamento de todos os preços de mo-
do a encobrir os efeitos de uma inflação que continua subjacente en-
quanto continuar a excessiva liquidez dos meios de pagamento. Esse

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aqueles que consideram que um pouco de inflação não faz tanto mal. ..
5. Você sabe o que é a inflação? ou "que é preferível 5o/o de inflação que 5% de desemprego". Os keynesia-
O trocadilho da inflação nos acreditam mais na inflação (pela injeção de papel impresso no mer-
cado a título de aumento da demanda agregada e garantia do pleno em-
Quase todos sabem que a inflação não é coisa boa. Mas quem sabe, prego) que na criação de condições institucionais permanentes para es-
precisamente, o que é a inflação? Muito pouca gente. Por que isso? timular a atividade empreendedorial e para fazer crescer a produção e a
Porque estamos metidos num emaranhado de equívocos semânticos produtividade. O grande economista, filósofo político e Prêmio Nobel
que dificulta o entendimento dos eventos políticos e econômicos como F. A. Hayek, que sempre se contrapôs a Keynes, no entanto, diz que
eles realmente são. O ambiente de confusão no uso das palavras nos "não é de forma alguma verdade que um aumento da demanda agrega-
abrange de tal modo que são poucos os eventos sociais que podem hoje da só faz bem e nenhum mal desde que exista o desemprego. Isso pode
ser descritos por expressões inequívocas. O fenômeno da inflação não ser verdadeiro num curto prazo mas não ao longo do tempo. Não existe
foge a essa regra. Não é sem motivo, pois, que o governo, coadjuvado realmente a escolha entre inflação e desemprego. É como o comer de-
pelos meios de comunicação, mostrou estar embrenhado nessa confu- mais e a indigestão: embora comer demais possa ser agradável enquan-
são quando anunciou o 'resultado' do primeiro mês do 'plano da infla- to se come, a indigestão se seguirá invariavelmente''. De qualquer mo-
ção zero': informou que durante o mês de março o IBGE mediu a varia- do, é interessante lembrar que uma inflação de 10% num país desenvol-
ção dos preços tabelados e/ ou congelados no começo do mês pelo De- vido é considerada calamidade pública, enquanto, aqui, conseguir ficar
creto-lei 2.284/86 e chegou à conclusão de que tinha havido uma "de- nos 20% é motivo até de ufanismo ...
flação", uma "inflação negativa", já que esses preços reprimidos ti- Qualquer pessoa estudiosa e sensata concorda que os efeitos da in-
nham baixado 1,48% no período. flação acarretam o empobrecimento daqueles que possuem receitas fi-
A despeito do extraordinário êxito dos filósofos políticos do século xas. Concordam todos que esses efeitos são devastadores no planeja-
XVIII (que substituíram o racionalismo ingênuo ou cartesiano por um mento e na contabilidade das empresas e das famílias. Estão todos de
racionalismo evolucionário que examina criticamente as condições e li- acordo em que a inflação prejudica as relações industriais ao propiciar
mitações do uso efetivo da razão consciente), os problemas importantes um campo de luta selvagem em torno da folha de pagamentos, não só
de nosso tempo são ainda obscurecidos pelo uso inadequado de pala- para manter o valor aquisitivo dos salários como também para anteci-
vras que espelham um modo de pensar anterior, tribal, e dão conota- par as mudanças em seu poder aquisitivo. E todos concordam também
ções antropomórficas (concedem atributos humanos) a instituições abs- quanto aos efeitos inquietantes e crescentemente perturbadores da in-
tratas como sociedade, Estado, etc. Essas conotações, entretanto, es- flação sobre a moral e o ânimo do povo. Não é à toa, portanto, que
condem a verdade fundamental de que todos os esforços dirigidos in- uma teoria que parece fulminar esses efeitos maléficos, da noite para o
tencionalmente para desenvolver uma ordem social têm lugar sempre dia, de modo aparentemente indolor para a maioria, seja aceita com
dentro de uma ordem espontânea, muito mais abrangente, que não é o inebriante prazer por todos.
resultado de qualquer plano intencional do homem. O uso equivocado Embora todos estejam de acordo quanto aos efeitos da inflação, na
da linguagem faz, portanto, com que os homens imaginem que todo o hora de tratar das suas causas não tem havido a mesma concordância.
ordenamento do ambiente social em que vivem é nada mais' que o pro- Há pessoas que sempre denunciaram graves erros nas políticas monetá-
duto deliberado da ação humana. E é por isso que os povos aceitam, rias e financeiras dos governos, situando aí as causas do fenômeno in-
tantas vezes, passivamente a imposição de planos governamentais de flacionário. Muitos, no entanto, preferem atribuir os males da inflação
tendência totalitária; que, aliás, são todos de base racionalista cartesia- a tudo que possa parecer plausível como causa da carestia, como, por
na (inclusive com muitas tabelas e expressões matemáticas) e natureza exemplo, a especulação, as pressões sindicais, a gula dos empresários
messiânica, altruística e benevolente. os salários elevados, os juros, o cartel do petróleo, as secas e enchentes:
As pessoas observadoras sabem que os economistas vêm, há muito etc. Todos, porém, são unânimes em aceitar que o aumento da base
tempo, estudando e debatendo as causas e os efeitos da inflação. E que monetária numa intensidade maior que o ritmo de crescimento do pro-
há muita controvérsia entre eles. Principalmente intensificada nestes úl- duto bruto constitui uma condição para a manutenção da inflação.
timos cinqüenta anos pelos seguidores de Lord Keynes. Essa unanimidade se deve a que sempre se soube que a inflação é um
A grande maioria dos economistas, no entanto, concorda que os processo em que se dá um grande aumento na quantidade de dinheiro
efeitos da inflação são geralmente perniciosos. É verdade que existem em circulação. Ela é produzida e mantida quando todos tentam com-

30 31
prar mais que o que há no mercado e, simultaneamente, insistem em
que lhes seja dado dinheiro suficiente para possibilitar a compra, apre- funcionar numa economia baseada no mercado. Os esforços para fazer
ços correntes, daquilo que pretendem adquirir. esse cont~ole fu~cionar exige~ o contínuo alargamento da gama de
A inflação resulta sempre numa tendência geral e duradoura de au- mercadonas, t~nfas, honorános, salários, aluguéis, juros, etc. sujeitos
mento de preços. Os que recebem as quantidades adicionais de moeda e ao controle, ate que os preços de todos os bens e serviços sejam tabela-
crédito geralmente aumentam suas demandas por bens e serviços ven- dos e/ou congelados por decretos discricionários e o mercado deixa de
existir.
dáveis. E uma demanda adicional (se as demais condições dos bens dis-
poníveis para venda permanecerem inalteradas) forçará a subida geral Não há dúvida que determinadas circunstâncias econômicas podem
dos preços. Esta é uma inevitável conseqüência da inflação que nenhum elevar os preços de certas mercadorias e serviços e que uma crise impor-
sofisma e nenhum silogismo poderá conjurar. tante (uma guerra, por exemplo) pode aumentar temporariamente o
A confusão semântica, tão comum no pensamento político em nos- preço de todos os bens e serviços. Mas o aumento geral, duradouro e
sos dias, entretanto, conseguiu obscurecer e dar caráter ambíguo ao fa- acelerado dos preços é, essencialmente, um fenômeno político-governa-
to de que a subida de preços é conseqüência e não causa da inflação. O mental, ~ somente se dá quando o governo passa a gastar e/ ou faz com
termo inflação passou, assim, a ser usado com uma nova conotação. que os cidadãos gastem mais quantidade de dinheiro que a quantidade
Quantas vezes não dizem por aí, p. ex., que "inflação quer dizer au- de produtos disponíveis para aquisição a preços estáveis. Este conceito
mento do custo de vida" ou "inflação é filha do lucro excessivo", "dos do que realmente é inflação subsiste quaisquer que sejam as razões últi-
juros altos", "da ganância", etc.? O que hoje se chama 'inflação' não mas ou primárias ,do au~ento da quantidade de dinheiro em quaisquer
é inflação, ou seja, não é o excesso de suprimento monetário; é a subida das suas formas. E preciso que se tome nota que, no período de dezem-
geral dos preços (das mercadorias, dos serviços, dos salários, dos juros bro de I979 a janeiro de I986, a base monetária cresceu 107 vezes em re-
e dos aluguéis) que, em verdade, nada mais é que uma conseqüência da lação ao PIB, e os meios de pagamento cresceram: MI, 109 vezes; M2,
203 vezes; M3, 286 vezes; e M4, 363 vezes. No período de fevereiro de
inflação.
Esse equívoco semântico é mais danoso do que aparenta ser à pri- I985 a fevereiro de I986, a base cresceu 2,9 vezes mais que o PIB; o MI,
3:9 vezes; o M2, 3,6 vezes; o M3, 3,5 vezes; e o M4, 3, 7 vezes. (As defi-
meira vista, pois é impossível lutar contra um mal que não tenha um
mções de MI a M4 podem ser encontradas no artigo "Os mistérios da
nome reconhecido. A confusão de linguagem não deixa nenhum termo
inflação", VISÃO de I6-4-86.)
disponível para denominar o que a inflação sempre foi e realmente é.
. O trocadilho semântico que leva à doutrina espúria da luta contra a
Por isso, os homens públicos e os estudiosos não podem mais dispor de
mflação pelo cont~ole do mercado é um perigo real. Enquanto os políti-
uma terminologia simples, aceita e entendida de imediato por todos,
cos e os mtelectuais exigem maior dirigismo estatal nas atividades eco-
quando pretendem, por exemplo, expor suas idéias contra uma política
n?m~cas .e! simultaneamente, demandam novas realizações sociais ou
referente ao meio circulante a que se opõem. Eles precisam entrar em
dist~IbutlVlstas dos órgãos da administração pública, que se destacam
análises pormenorizadas, rebuscar na descrição e repetir a descrição do
glonosamente nas manchetes, as atividades dos homens de negócios e
fenômeno a cada sentença que tiverem que usar para tratar do assunto. dos empreendedores são cada vez mais menoscabadas e perseguidas
O dano maior, entretanto, está em que aqueles que se envolvem em
c?m a~upos pelos meios de comunicação, o mercado é cada vez mais
tentativas fúteis e sem esperança de combater as inevitáveis conseqüên- distorcido pelo controle estatal, e os dados estatísticos relativos aos au-
cias da inflação, as altas generalizadas dos preços, estão usando no seu mentos dos meios de ~agamento, que realmente geram a inflação, são
empenho somente a máscara da luta contra a inflação. Enquanto bri- rele~ados~ quando mmto, a lugar inconspícuo nas páginas financeiras
gam com os sintomas, pretextam combater as causas fundamentais do dos JOrnais.
mal. É como no caso do doente que tem dor de cabeça devido a um tu-
mor no cérebro e recebe como medicamentos apenas analgésicos. É VISÃO, 23-4-86
agradável ficar sem dor por uns tempos, mas e o tumor? No caso da in-
flação, quando não se quer compreender a relação causal entre, de um
lado, o aumento da quantidade de dinheiro e, de outro, a subida dos
preços, o resultado prático é que as coisas tendem a piorar.
Sob a justificativa da luta contra a inflação, o governo se mete a fa-
zer controle de preços. Acontece que o controle de preços não pode

32 33
Ainda que elaborado pelos melhores, mais honestos e mais patrióticos
6. Por que discordo do pacote especialistas. Numa economia de mercado existem muitos milhões de
Não discordo nem um pouco da idéia em si de dar um fim à conti- preços diferentes e ocorrem dezenas de trilhões de inter-relações possí-
nuada escalada geral dos preços em nossa economia. Sei por longa vi- veis entre esses preços. A mudança em um preço provoca mudança em
vência que essa escalada produz danos devastadores na vida dos i~?iví­ miríades de outros preços. Se a complexidade fosse muito menor, ainda
duos, famílias e empresas; prejudica as relações humanas; e.de~Il.Ita o assim seria inviável dar uma solução justa ao problema do estabeleci-
progresso da nação. Mas sei também, pelo conhecimento cientifico e mento de preços por métodos outros que não os espontâneos do merca-
pela prática, que a escalada de preços é apenas um dos sintomas de um do; mesmo que as pessoas envolvidas fossem verdadeiros eunucos da
mal maior que é a inflação. O contínuo e não-uniforme aumento gene- economia e imunes a quaisquer pressões. A busca da planificação da
ralizado dos preços se dá em conseqüência de uma contínua e também economia a qualquer custo tende a dar cabo do processo competitivo
não-uniforme redução do poder aquisitivo da unidade monetária, oca- do mercado, pois obriga à simplificação do problema, transformando
sionada pela 'fabricação' descomedida de dinheiro, em suas várias for- todos os casos atípicos em médias ou agregados econométricos, para
mas, pelo governo. Desde que assumi a direção da Editora Visão ~m se- possibilitar a elaboração matemática, a organização de tabelas e o en-
tembro de 1974 tenho procurado chamar a atenção de todos, leigos e quadramento de toda a atividade econômica em pseudoleis e regula-
doutores, que o combate à inflação só pode ter sucesso penetrand? na mentos policiáveis. Numa sociedade livre, entretanto, a diferença entre
essência do processo, atacando o mal pela raiz e não pelos seus efeitos. as pessoas é normal e a possibilidade de ter preços diferentes para os
Quem acompanhou essa trajetória sabe que sempre, sem exceção, criti- bens, serviços ou salários é um direito natural de cada pessoa.
quei os incontáveis pacotes e atos de intervenção no mercado, que eram Na tentativa de acabar com a inflação agindo sobre os preços, os au-
invariavelmente apresentados como medidas para 'deter a inflação'. tores do pacote cometem um pecado capital confundindo as causas da
Nenhum deles jamais foi eficaz, pois, além de só atacar os efeitos da in- inflação com seus sintomas. É como no caso do doente que tem febre
flação (distorcendo os preços, p. ex.), ap~nas visavam a facilita~ a vi~a devido a infecção generalizada em seu organismo e recebe na medica-
perdulária do próprio governo. Ao ser divulgado o 'Decreto-lei da .m- ção apenas antitérmicos. É agradável ficar sem febre, é bom baixar a
flação zero', logo notei que nada havia mudado no enfoque substantivo febre, mas e a infecção? No caso do pacote, os responsáveis afirmam
dado à inflação, mas percebi de imediato como seria muitís~imo ma~s que são os próprios aumentos de preços que realimentam a 'inflação'
iníqua e abrangente que antes a intrusão governamental na VIda, ~na .h- subseqüente, ou seja, segundo eles, os novos aumentos de preços. As
herdade e na propriedade das pessoas. Por uma questão de coerencia, medidas infligidas pelo Decreto-lei sequer consideram que foi a expan-
de princípios e não de dogmas, e para estar em paz com ~ consciênci~, são excessiva da quantidade de dinheiro pelo governo que produziu to-
tive que me postar outra vez na difícil posição de quem diverge da opi- da a escalada dos preços que há tantos anos observamos e que também
nião geral. Apesar da extasiante aceitação popular, do patrulhamento no último ano se acelerou em função da própria 'política monetária' do
ideológico que emergiu (que supostamente não existiria na 'democra- governo. Qualquer observador um pouco atento sabe que na inflação
cia' da Nova República) e da absurda violência, estimulada pela propa- há muito mais dinheiro no mercado. Quando por qualquer motivo o
ganda nos meios de comunicação, sou dissente. em relação ~ este pla.no governo fabrica mais dinheiro, passa a existir mais dinheiro nas mãos
por muitas razões concretas, algumas das quais vou a segmr resumir. das pessoas para trocar por produtos. Se a quantidade destes não au-
A decretação do pacote comandou uma série de violentas medidas menta, ou se não aumenta tanto quanto o 'inflamento' do dinheiro, a
de intervenção no mercado, já estropiado por ações anteriores. Todos demanda adicional forçará o aumento generalizado dos preços. Isso
os preços de mercadorias, salários, serviços, tarifas, honorários, alu- não quer dizer que houve, propriamente, um aumento nos 'custos' dos
guéis, mensalidades, etc. foram tabelados e/ou congelados na press~­ produtos mas sim uma redução no valor do dinheiro. Se for fabricado
posição de que no momento da imposição do plano se dava um "ah- mais dinheiro pelo governo, um produto que se compra hoje com uma
nhamento dos preços relativos". Foi 'revogada' a lei da oferta e da pro- nota de dez cruzados, por exemplo, pode exigir várias dessas notas me-
cura e desmantelado o mecanismo de preços da economia. Tudo foi ses depois, mesmo que não tenha havido mudança na produção nem na
montado cartesianamente como se houvesse fundamentação científica qualidade. Este é um inevitável efeito da inflação que nenhum artifício
para cada equação do projeto. No entanto, embora os autores po~sam poderá esconder.
ser mestres na matemática e nas finanças, a ordem do mercado e por A escalada geral dos preços somente se mantém se o governo aumen-
demais complexa para ser enquadrável em qualquer planejamento. ta a Base Monetária e/ ou os Meios de Pagamento numa intensidade

34 35
maior que o ritmo de crescimento dos produtos disponíveis para aquisi- mo têm certas dúvidas nesse keynesianismo, preferem manter o merca-
ção a preços estáveis. Este é o conceito verdadeiro da inflação, e que do imobilizado pelo tabelamento e/ou congelamento, pois que assim fi-
subsiste quaisquer que sejam as razões últim~s ou primária~ d.o aumen- ca garantido que os preços não darão sinais da inflação que eles pró-
to da quantidade de dinheiro. Para que o leitor não-especialista possa prios produzirem. Pois os aumentos de preços são logo noticiados com
ter uma idéia de como o governo produziu inflação desvairadamente, alarde, enquanto a verdadeira inflação (medida por dados sobre meios
basta relembrar que, no período de dez/79 a fev /86, a quantidade de de pagamento) é relegada, quando aparece, a posição discreta e lingua-
dinheiro em suas várias formas (papel-moeda, depósitos e títulos fede- gem complicada em alguns jornais.
rais) cresceu do seguinte modo: a Base Monetária (BM) cresceu 126 Se a inflação aberta é um fenômeno pernicioso, muitíssimo pior e
vezes; e os Meios de Pagamento cresceram: M1, 128 vezes; M2, 238 mais perversa é a inflação dissimulada ('inflação reprimida') pelo tabe-
vezes; M3, 336 vezes; e M4, 426 vezes. Enquanto isso, a produção na- lamento/congelamento ou controle dos preços. Se aquela gera proble-
cional (PIB) cresceu só 1,175 vez, o que quer dizer que o produto cres- mas gravosos para todos, principalmente para os que menos podem de-
ceu menos que três milésimos (0,00276) em relação ao aumento dos fender-se, esta, em especial pelos métodos que são usados para mantê-
meios de pagamento M4! E, no período de fev/85 a fev/86, enquanto o la, produz seqüelas de difícil reparação e conduz ao totalitarismo. To-
produto cresceu 1 085 vez a BM cresceu 3,20 vezes; o M1, 4,18 vezes; o das as forças propulsoras do progresso se retraem, intensificando o es-
M2, 3,85 vezes; o 'M3, 3,74 vezes; e o M4, 4,05 vezes.(*) Par~ exemplif~­ tado de pobreza nacional. Nenhuma pessoa sensata deveria concordar
car em termos absolutos o aumento assombroso da quantidade de di- com isso.
nheiro, basta citar que em dez/79 o total do M4 era de 2.164 bilhões de
cruzeiros e de 922.822 bilhões em fev/86. Esse aumento de 42.5440Jo na VISÃO, 30-4-86
quantidade de dinheiro deu-se enquanto a produção (PIB) crescia ape-
nas cerca de 17,5%. O Índice Geral de Preços (IGP/DI) aumentou
37.357% nesses mesmos seis anos e dois meses. No período de fev/85 a
fev/86 a BM aumentou 221,80Jo, o M1, 317,7%, e o M4, 305,2%, em-
bora o PIB tenha crescido apenas uns 8,5%. O IGP/DI aumentou
265,8%.
A despeito dessa simples mas óbvia demonstração, os 'monetaristas
keynesiano-estruturalistas' preferem continuar escondendo que os ~u­
mentos de preços são uma conseqüência da inflação por eles produzida
para resolver os problemas financeiros e 'político-econômicos' do go-
verno gerados principalmente pelo déficit orçamentário. Estes econo-
mista~ foram saturados tão profundamente pelo keynesianismo e pelo
ativismo governamental dele derivado que cheg~m a despr.ezar. ou mi-
nimizar o fato de que todo 'inflamento' da quantidade de dmheiro pro-
duz, mais cedo ou mais tarde, uma desvalorização da unidade monetá-
ria e, conseqüentemente, aumentos generalizados dos preços. Mas, co-

(*)Base Monetária (BM) é a quantidade de papel-moed:J em poder do público + depósi-


tos à vista do público no Banco do Brasil (BB) + depósitos voluntários dos bancos co-
merciais no BB + depósitos compulsórios no Banco Central. Há quatro conceitos de
Meios de Pagamento. O chamado MI inclui o papel-moeda em poder do público + depó-
sitos à vista do público nos bancos comerciais e no Banco do Brasil. O M2 é igual ao MI
+ depósitos à vista nas caixas económicas e BNCC + depósitos a prazo. O M3 é o M2 +
depósitos de poupança. E o M4 é igual ao M3 + títulos públicos fed~rais (O~ TN e L ~N!
em poder do público, ou seja, fora da carteira do Bane~ Cent~al. Mwtos te~mcos ?rastlel.-
ros admitem que entre o M3 e o M4 talvez esteja a med1da m01s representativa da quanti-
dade de dinheiro' em nosso país.

36 37
7. A inflação dos economistas pies criação de dinheiro em quantidades que qualquer bom economista
anterior a Keynes teria previsto que causaria o efeito inflacionário (es-
Não se pode esperar que os economistas que há várias décadas con- calada dos preços) que se observa em toda parte. Eles agem assim ba-
trolam nossa vida económica confessem agora que são eles os responsá- seados na idéia errónea de que o inflamento da quantidade de dinheiro
veis pela inflação. Creio que não fariam isso por muitas razões, dentre na economia constitui um instrumento necessário e de eficácia dura-
as quais a de que não acreditam serem eles próprios os causadores da doura de política de emprego e crescimento económico.
inflação, embora admitam sua responsabilidade pelas políticas monetá- Os economistas clássicos aprenderam com Adam Smith que na ad-
rias do governo. Na tentativa de justificarem essa postura de isenção de ministração pública era imprescindível respeitar a regra fundamental
culpa (que também interessa ao governo e políticos), eles produzem as do orçamento equilibrado para conter a tendência dos governos de gas-
mais variadas teorias. E chegam ao ponto absurdo de se autoconvence- tar descontroladamente e de financiar seus déficits. Aprenderam eles
rem de que a inflação não é decorrência de suas políticas monetárias também que, quanto mais livre, melhor funciona a economia. Tinham
mas é um fenômeno gerado no seio do mercado pelos agentes económi- certeza de que o mecanismo de preços seria um sistema eficiente para
cos que exigem o pleno emprego ou aumentam os preços por ganância, fazer com que o mui complexo e descentralizado processo de produção
especulação, pressão sindical, quebras de safra, altas de matérias-pri- de bens e serviços refletisse com precisão as preferências dos consumi-
mas, etc. ou por motivos que agora chamam genericamente de "menta- dores e dos trabalhadores, bem como o custo da produção. Embora ti-
lidade inflacionária". Dessa posição para o controle do mercado é um vessem também consciência das imperfeições do mercado livre, esses
só passo. Sucessivas medidas de intervenção são tomadas (incluindo homens estavam em geral de acordo em que a 'mão invisível', ou seja, a
controles parciais de preços, empréstimos compulsórios, tributos mais cibernética do mercado, atráves da sinalização dos preços, era a melhor
progressivos e políticas salariais) e não cessam as resoluções nas áreas forma de alocar e distribuir os recursos escassos da economia.
fiscal e monetária. Como os efeitos inflacionários continuam, como sói A Grande Depressão dos anos 30 mudou muito dessa crença, embo-
acontecer quando não se vai às raízes da inflação, os economistas enge- ra ela não tivesse ocorrido devido ao livre mercado. Uma década de
dram planos para neutralizar os resultados negativos de suas próprias muito desemprego e de quase nenhum progresso económico destruiu a
políticas anteriores, persuadindo o governo a chegar, como agora, ao fé de grande parte dos economistas no mercado. Nasceu assim a síndro-
drástico congelamento de todos os preços e a tomar medidas draconia- me da Depressão, que dura até hoje e afeta muito o modo de pensar dos
nas pseudolegais contra todos os agentes económicos. Agindo assim, economistas.
paralisam o mecanismo automático de preços do mercado, tornam ca- Com a publicação por John Maynard Keynes de "A Teoria Geral do
da vez mais difícil a alocação eficaz dos recursos escassos da economia Emprego, do Juro e do Dinheiro" em 1936, surgiu a onda keynesiana
e estropiam o processo espontâneo de competição da sociedade livre. que substituiu a visão clássica pela idéia de que, embora a economia
Nada pode ser mais danoso para o verdadeiro progresso económico de fosse inerentemente instável, suas flutuações poderiam ser atenuadas
que o país tanto necessita. E tudo é feito para encobrir os efeitos da in- pela criação de um desequilibrio no orçamento governamental, de mo-
flação que eles mesmos produzem. do a gerar déficits na recessão e superávits na inflação. A partir dessa
Não pense o leitor que estou inventando maledicência contra os eco- simples idéia de Keynes, que apenas serviu para estimular a demanda na
nomistas em geral. Refiro-me aos que não querem admitir que a infla- Depressão de 30, quase todos os economistas se foram convertendo ao
ção seja um fenômeno essencialmente monetário. Esse terrível equívo- keynesianismo (muitos nem sequer sabem disso), criando-se em conse-
co tem sido amplamente revelado em foros especializados, e para os qüência uma cega confiança na capacidade dos governos para resolver
fins deste artigo basta citar a denúncia do filósofo político F. A. todos os problemas sociais pela simples manipulação da máquina pro-
Hayek, Prêmio Nobel de Economia de 1974, que no artigo "lnflation's dutora de dinheiro.
path to unemployment", IEA- Readings 14, Londres, 1974, escreveu: Pela 'Teoria Geral', no entanto, essa máquina seria usada ou não
"Sinto muito ter de dizer que a inflação que grassa no mundo se deve para produzir superávits ou déficits orçamentários de acordo com a ne-
total e exclusivamente aos economistas, ou pelo menos à grande maio- cessidade. Uma suposição implicita fundamental na teoria de Keynes
ria de meus colegas economistas que abraçaram sem reservas os ensina- era a de que as políticas económica e monetária seriam realizadas por
mentos de Lord Keynes". Hayek fez essa reprimenda porque foi sob a sábios ou santos, que agiriam sem levar em conta quaisquer pressões e
persuasiva orientação dos economistas keynesianos que os governos oportunidades políticas; e que seriam assessorados por economistas
passaram a financiar partes cada vez maiores de seus gastos pela sim- sem qualquer coloração ideológica e isentos de interesse pessoal, verda-

38 39
deiros eunucos da economia nacional. A verdade dos fatos mostra que
o comportamento dos políticos, dos próprios eleitores e dos tecnocratas
nada tem a ver com essa suposição idealista. Nas democracias represen-
tativas, ninguém age em conformidade com a teoria keynesiana. Os dé-
ficits dão aos governantes condição de gastar sem ter que aumentar os
impostos ou as tarifas dos serviços públicos; os superávits, entretanto,
somente podem ser acumulados ou aumentando os impostos ou cortan-
do os gastos, que são medidas de caráter impopular e, pois, não do gos- INFLAÇÃO E PREÇOS
to dos que estão no governo. Além de tudo, existe a preferência dos so- Brasil, 1973 a 1985
cialistas pelo déficit keynesiano, pois dele advêm uma fé ilimitada no ati-
vismo governamental e um grande desinteresse pelo processo de forma- I I I I I
ção de capital, pelo direito à propriedade e pela liberdade de iniciativa. A escalada dos preços resulta
O resultado de toda essa situação tem sido uma persistente preferên- do inflamento dos meios de
cia pelo déficit orçamentário e seu financiamento principalmente pela pagamento.
inflação da base monetária e dos meios de pagamento, produzindo uma
incessante desvalorização do poder aquisitivo da moeda e, como conse-
qüência, o contínuo e não-uniforme aumento generalizado dos preços.
Mas os economistas que denomino 'monetaristas keynesiano-estrutura-
listas' não querem admitir que os aumentos de preços sejam uma conse- Média 1973-85 100
qüência da inflação que eles produzem ao 'administrarem' suas 'políti-
cas monetárias'. Eles não só preferem acreditar no ativismo governa-
mental à la Keynes' (pela injeção de dinheiro no mercado como se fosse
a própria riqueza) como também estão saturados tão profundamente
pelo keynesianismo que acreditam possuir um dom cibernético para
atenuar a cada instante as flutuações inerentes à economia, manipulan-
do a oferta de dinheiro no mercado sem que isso jamais produza a esca-
lada dos preços. Mas os fatos desmentem isso. Quando criam dinheiro 10+--t--auantidade
livremente aumentando sua oferta no mercado, os economistas cau- -+--+--+--1-+--t---l-+10
sam, ou endossam, mais cedo ou mais tarde, aproximadamente corres- de dinheiro por
pondentes aumentos generalizados nos preços. Já citei em artigos ante- unidade de produto
riores os impressionantes números relativos ao crescimento da quanti- (M3/PIB)
dade de moeda devido à política monetária dos governos até hoje. No
período de dez/79 a fev /86, por exemplo, a quantidade de dinheiro em
suas várias formas (papel-moeda, depósitos e títulos federais) cresceu
cerca de quatrocentas vezes, enquanto a produção nacional (PIB) cres-
ceu só 1,175 vez, o que significa que a produção cresceu menos que três
milésimos em relação ao aumento da quantidade de dinheiro que os
economistas fabricaram. Nesse mesmo período os preços aumentaram
também quase quatrocentas vezes.
u~--~~--~--L--L--~~--~~---L--L-~0
O gráfico anexo mostra claramente como foi a escalada dos preços ~ N ~ ~ TI M ~ 00 ~ ~ ~ M ~
em razão do aumento da oferta de dinheiro no período de 1973 a 1985.
Uma das curvas representa a quantidade de dinheiro ano a ano no mer-
cado (medida pelo conceito M3 dos meios de pagamento, isto é, pela so-
ma do papel-moeda em poder do público mais os depósitos à vista nos

40 41
bancos e caixas econômicas mais os depósitos a prazo e mais os depósi-
tos de poupança) por unidade de produção. A outra curva se refere aos
8. O balão inflacionário
valores anuais do índice geral de preços (IGP-DI). Para poder compa- Todo mundo sabe que na inflação há sempre uma tendência de au-
rar as tendências das duas curvas, os dados das duas séries foram ex- mento geral dos preços. Mas qualquer pessoa atenta também nota que
pressos como porcentagens de seus valores médios e, a fim de locar no na inflação há mais dinheiro no mercado. A escalada geral dos preços é
gráfico, à média de cada série foi dado o valor de 100 no período consi- mais 'visível' porque os preços das mercadorias, salários, imóveis, alu-
derado. Como se vê, as duas curvas são quase iguais, só sendo possível guéis, juros, honorários, taxas, etc. afetam diretamente a economia das
distinguir uma da outra nos primeiros anos. Esse diagrama reflete a es- pessoas, e por isso são sempre amplamente noticiados, ao passo que os
treita relação de causa e efeito que existe entre o aumento da quantida- aumentos na quantidade de dinheiro em circulação - que são a causa
de de dinheiro (causa) e o aumento generalizado dos preços (efeito). A da subida generalizada dos preços - só aparecem timidamente, em no-
escalada geral dos preços é,pois, um resultado da política monetária. A ticiário altamente especializado, inacessível para a quase totalidade do
subida dos preços é um sintoma de que está sendo fabricado dinheiro povo.
em excesso. O tabelamento/congelamento esconde esse sintoma e impe- Num mercado que funciona livremente - isto é, sem controles, ta-
de que haja um método popular de 'anunciar' a inflação subjacente. belamentos e/ou congelamehtos- os preços relativos dos bens e servi-
Além dessa violência, procura-se, através de uma fantástica propagan- ços sempre mudam em resposta a variações da oferta e da demanda. Se
da e por meio de uma espécie de conspiração do silêncio (que provoca os consumidores gastam mais dinheiro num dado produto, têm de gas-
uma perversa censura nos meios de comunicação), evitar que se acabe tar menos noutros. A redução de demanda a esses outros produtos faz
com a ilusão do público de que a inflação seja um defeito inerente à com que seus preços caiam. Assim, à medida que alguns preços sobem,
economia de mercado, causada pelos agentes econômicos e não pelos outros devem cair. (Convém ressaltar que, se o mercado deixa de ser li-
economistas no governo. vre, os preços controlados passam a ser nada mais que sinais falsifica-
dos dessa relação entre oferta e demanda.)
VISÃO, 14-5-86
Os preços são, pois, relações de câmbio entre a unidade monetária e
a unidade de cada um dos produtos disponíveis. Quando por qualquer
motivo o governo (que detém o monopólio da moeda) fabrica mais di-
nheiro, passam a existir mais meios de pagamento nas mãos das pessoas
para trocar por produtos. Os que recebem as quantidades adicionais de
moeda e crédito geralmente aumentam suas demandas por bens e servi-
ços vendáveis. Se a quantidade destes não aumenta, ou se não cresce
tanto quanto o 'inflamento' da quantidade de dinheiro, as demanda~
adicionais forçarão um aumento geral e não-uniforme dos preços. E
um erro dizer que houve um aumento nos 'custos' dos produtos no
mercado. A alta generalizada dos preços é uma inevitável conseqüência
do aumento da oferta de dinheiro numa intensidade maior que o ritmo
de crescimento dos produtos disponíveis para aquisição a preços está-
veis. Este conceito será válido sempre, não importa quais as razões últi-
mas ou primárias para o governo ter aumentado a quantidade de di-
nheiro no mercado.
O dinheiro no mercado se apresenta em várias formas: papel-
moeda, depósitos de diversos tipos e títulos públicos federais (espécies
de notas promissórias emitidas pelo governo). Num dado momento, a
quantidade de dinheiro em suas várias formas pode ser avaliada pelo
cômputo da chamada Base Monetária e dos Meios de Pagamento, que
são valores de difícil acesso geral mas disponíveis periodicamente no
Banco Central ou através de publicações do Instituto Brasileiro de Eco-

42 43
nomia (IBRE), da Fundação Getúlio Vargas, Rio. Em 25 de abril de se novo dinheiro é injetado na economia e vai aparecendo nas medidas
1986, o governo apresentou novas definições de Base Monetária e dos componentes da Base e dos Meios de Pagamento. De outro lado, o
Meios de Pagamento e divulgou as quantidades de dinheiro criadas em Banco Central também entra em cena para resgatar e/ou recomprar no
março, dentro dos novos conceitos de moeda. Até então, Base Monetá- mercado (bancos e público) os títulos do Tesouro. Quando não joga no
ria era a 'quantidade de papel-moeda em poder do público + depósitos mercado novos títulos para 'girar a dívida', o Banco Central ou cria 're-
à vista do público e voluntários dos bancos comerciais no Banco do servas' em nome dos bancos ou faz outra vez a Casa da Moeda impri-
Brasil + depósitos compulsórios no Banco Central'. O Meio de Paga- mir novas notas para entregar aos portadores dos títulos. Além dessas
mento M1 incluía o 'papel-moeda em poder do público + depósitos à emissões, o BC ordena outras para cobrir subsídios como os do trigo,
vista do público nos bancos comerciais e no Banco do Brasil'. O M2 era produtos energéticos, créditos e exportação. É óbvio que ninguém antes
igual ao 'M1 + depósitos à vista nas caixas econômicas e BNCC + de- possuía o dinheiro que o BC emitiu em todas essas operações. Ele foi
pósitos a prazo'. O M3 era o 'M2 + os depósitos de poupança'. E o M4 criado com simples penadas como um artifício monetário para cobrir o
era igual ao 'M3 + títulos públicos federais (ORTN e LTN) em poder excesso de gastos do governo. (Ou para atender a determinadas 'políti-
do público, ou seja, fora da carteira do Banco Central'. Muitos técni- cas monetárias'.) Num curto período de tempo, portanto, maciças
cos brasileiros consideravam que a medida talvez mais representativa quantidades de dinheiro são introduzidas no mercado sem um corres-
da 'quantidade de dinheiro' em nosso país era representada por valores pondente aumento da oferta de bens e serviços. É esse inflamento do
entre o M3 e o M4. As mudanças de definição realizadas agora não afe- volume monetário que gera a dilapidação do poder aquisitivo da moe-
tam nenhuma das considerações apresentadas neste artigo. da. É isso a inflação: queda do 'preço' do dinheiro devido à 'oferta'
O gráfico mostra simbolicamente como se deu o inflamento da monetária excessiva em relação à quantidade de produtos ofertados no
quantidade de dinheiro no período de dez/79 a fev /86. Pelo aumento mercado.
do diâmetro dos círculos e pelos números nos quadros anexos se vê co- A única solução definitiva para acabar com a inflação e a conse-
mo foi gigantesca e contínua a expansão da oferta de dinheiro durante qüente escalada geral dos preços consiste em parar o inflamento da
esse período. A constatação se torna espantosa quando se verifica, por quantidade de dinheiro em suas várias formas. Mas os governantes e os
exemplo, que o M3 aumentou 336 vezes e o M4, 426 vezes, enquanto a políticos não querem enfrentar decididamente o problema por essa via.
produção nacional (PIB) cresceu só 1,175 vez! A conseqüência desse in- Insinuam que os efeitos colaterais são política e economicamente desa-
flacionamento foi a persistente escalada dos preços, medida pelo gradáveis. Por isso preferiram atacar agora os efeitos e não a causa do
IGP. DI, que nesses seis anos e dois meses subiu 37.3570Jo. problema. É necessário, no entanto, ressaltar que o mais difícil não é
E como se deu esse absurdo inflamento monetário? Para dar início a acabar com a inflação. O mais difícil, perto do impossível numa econo-
uma descrição simplificada pode-se dizer que tudo começa quando o mia altamente estatizada, é evitar a inflação com um contínuo e pesado
governo procura equilibrar seu déficit orçamentário. (Convém avisar, déficit. Porque qualquer tentativa de manter esse déficit por meios não
no entanto, que a injeção de dinheiro sem lastro - que produz inflação inflacionários, através de receitas tributárias adicionais e de emprésti-
- é também realizada mesmo que não haja déficit orçamentário: os mos pagáveis inteiramente por poupanças reais tiradas do setor priva-
monetaristas keynesianos crêem que podem fazer 'sintonia fina' e esti- do, certamente resultará em desestímulo à iniciativa empreendedorial,
mular a economia através da falácia da 'emissão não-inflacionária'.) na redução do crescimento econômico e finalmente na destruição da ca-
Como os governos se acostumaram a operar sempre com déficit - gas- pacidade empresarial. O remédio para os gigantescos gastos governa-
tam mais do que o que arrecadam - seus economistas procuram cobrir mentais não é esse de fazer também gi~antescos empréstimos públicos e
a diferença. Tratam de tomar empréstimos através da emissão de Obri- continuar aumentando os impostos. E acabar com os enormes gastos
gações e Letras do Tesouro. Parte desses títulos é vendida ao público e improdutivos, o que só será possível desinflando a imensa máquina de
a outros tomadores que transferem recursos próprios para o Tesouro. ação do governo e estimulando a ação privada num mercado livre e
Essa parte é acrescentada aos Meios de Pagamento M4. A parte que desimpedido.
não dá para ser colocada no mercado (inclusive porque esses emprésti- VISÃO. 21-5-86
mos governamentais tendem a elevar os juros, estimulando a tal 'ciran-
da financeira') fica na carteira de títulos públicos do Banco Central,
que 'paga' o Tesouro fabricando papel-moeda sem lastro e/ou usando
recursos dos depósitos compulsórios que os bancos mantêm no BC. Es-

45
44
/

INFLAMENTO
INFLAÇÃO DA BASE MONETÁRIA
E DOS MEIOS DE PAGAMENTO
'
(Bilhões de cruzeiros)
DA OFERTA DE
MOEDA Final de Base
M1 M2 M3 M4
perfodo monetéria
1979 446 803 1.248 1.770 2.164
1980 700 1.367 2.067 3.052 3.672
1981 1.188 2.558 4.232 6.716 8.885
1982 2.225 4.222 7.776 13.496 18.362
1983 4.367 8.232 18.312 36.466 45.988
1984 15.015 24.985 65.541 128.863 182.040
1985• 52.772 101.315 248.586 463.820 723.304
Fev. 88• 56.258 102.532 297.145 593.978 922.822
79-fev. 86 12.516% 12.669% 2a.n0% 33.4611% 42.544%
Fonte: "Conjuntura Económica", fev. de 1986.
*Dados preliminares

/
EVOLUÇÃO
DOS PREÇOS E '
DO PRODUTO
ESCALA Índice
100 tnlhões de cruzeiros
Ano IGP-DI PIB
(1977= 100) (%)
1984(G))"
M3 1979 214 6,4
M2
1980 428 7,2
1981 897 -1,6
1982 1.754 0,9
1983 cQ 1983
1984
4.464 -3,2
4,5*
14.312
1982 @ 1885 46.588 8,3*

1981 i@l
Fev. 86 106.004 -
79-fev. 86 37.357% 17.5%
1980 " ..
1979 • • Dados preilmmares

46 47
trilhões de receitas tarifárias, de vendas e outras das empresas estatais,
9. Gastos públicos, déficits, inflação e os inclusive bancos oficiais.
malefícios decorrentes Por esses números, verifica-se que o Tesouro com as Autoridades
Monetárias tiveram um déficit de caixa de 60 trilhões de cruzeiros que
Embora seja um fato científico universalmente conhecido, somente representa 4,40J'o do PIB. O déficit total do Governo Federal, incluindo
agora alguns brasileiros estão começando a aprender que os verdadei- todas as estatais, foi de 110 trílhões de cruzeiros, correspondendo a
ros vilões da escalada inflacionária dos preços não são os agentes eco- 8,0% do PIB.
nómicos (famílias e empresas) mas sim aqueles que ininterruptamente O Governo Federal em 1985 gastou Cr$ 655 trilhões mas só dispu-
subtraem valor da moeda fabricando dinheiro sem lastro. A causa mais nha de uma receita de Cr$ 545 trilhões. Como foi coberto esse déficit de
comum da emissão de quantidades adicionais de dinheiro são os déficits 110 trilhões? Só há duas formas possíveis: fabricando mais papel-
criados propositadamente nos orçamentos governamentais. Mas o défi- moeda e tomando dinheiro emprestado. Os dados publicados indicam
cit não é apenas um fator gerador de inflação; é também um artifício que de dez/84 a dez/85 o governo inflacionou a Base Monetária de Cr$
para aumentar cada vez mais os gastos governamentais. No Brasil qua- 15 trilhões para Cr$ 53 trilhões, ou seja, aumentou a quantidade de di-
se nada tem sido exposto ao público sobre o que significam e quais os nheiro em 251%. (Os preços nesse período, medido pelo IGP/DI, subi-
males que decorrem dos déficits orçamentários sistemáticos. E, ainda ram 226%.) O saldo, para fechar o déficit, foi tomado emprestado cap-
que se fale às vezes sobre o alto grau de estatização da economia, pouca tando-se Cr$ 22 trilhões pela colocação de títulos federais (ORTNs) no
ênfase tem sido dada aos maleficios que advêm do gasto governamental mercado e realizando-se Cr$ 50 trilhões em operações de crédito nos
exorbitante, mesmo que este resulte de um orçamento equilibrado. bancos. Nesse mesmo período, os demais agregados monetários tam-
A determinação dos gastos, dos déficits orçamentários e dos saldos bém aumentaram: o meio de pagamento M1 (papel-moeda +depósitos
das dívidas dos diferentes órgãos do setor público não é tarefa simples à vista) subiu 306%; o M2 (Ml + depósitos a prazo), 278%; o M3 (M2
.nem mesmo para experientes economistas. A despeito da existência de + depósitos de poupança), 262%; e o M4 (M3 + títulos públicos fede-
certas publicações especializadas do Banco Central e da Fundação Ge·· rais, ORTNs e LTNs, em poder do público), 298%.
túlio Vargas do Rio de Janeiro, as informações e análises consistentes Quando o governo preenche um déficit imprimindo dinheiro novo
sobre esses assuntos são praticamente inacessíveis inclusive para as pes- sem lastro, como aconteceu nesse ano de 1985, está simplesmente pro-
soas de formação superior. Qualquer tentativa para juntar dados ofi- duzindo inflação. Isso pode ser feito pela emissão e distribuição direta
ciais e realizar estimativas sobre os déficits, por exemplo, estará sempre do papel-moeda ou por meios indiretos, pedindo ao Banco Central ou
sujeita a alguma controvérsia porque há diferentes enfoques concei- aos bancos comerciais privados que 'comprem' títulos do Tesouro
tuais, preferidos por uns e outros, e os dados básicos não são todos dis- (agora as OTNs e LBCs), os quais são pagos ou pela emissão de notas
poníveis. Para os objetivos deste artigo, no entanto, o exame orçamen- Pelo BC ou por meio de linhas de crédito ao governo. Esse é um proces-
tário sumário que segue é suficiente. so inflacionário que cria verdadeiros substitutos da moeda, que passam
No ano de 1985 o produto interno bruto (PIB) a valores correntes pelas mãos do governo e daí se espalham por toda a comunidade à me-
dida que os gastos vão se realizando. Basta observar o inflamento da
foi de 1.365 trilhões de cruzeiros. Representou um crescimento real glo-
base monetária e dos meios de pagamento para 'sentir' esse processo in-
bal da economia de 8,3% e um crescimento per capita de 5, 7%. Ades-
sidioso. Ao imprimir novas quantidades de dinheiro, o governo declara
pesa global do Governo Federal foi da ordem de 655 trilhões de cruzei- 'legalmente' que cada uma das novas unidades de papel-moeda possui
ros, correspondendo a 48,0% do PIB. Esse valor foi estimado com base um valor igual a cada uma das unidades de dinheiro anteriormente em
nos seguintes gastos: Administração Direta (inclusive transferências pa- circulação. Isso equipara o poder aquisitivo do dinheiro recém-fabrica-
ra estatais e Previdência): Cr$ 120 trilhões; Administração Indireta do ao daqueles dinheiros previamente ganhos por trabalhadores e em-
(empresas estatais, autarquias e fundações): Cr$ 460 trilhões; Déficit de presários na venda de bens e serviços. Embora o aumento da oferta de
Caixa das Autoridades Monetárias (operações do Banco Central e Ban- moeda tenda a fazer subir todos os preços, isso não se dá na mesma me-
co do Brasil relativas a encargos financeiros e subsídios diversos): Cr$ dida e ao mesmo tempo para todas as pessoas e todos os preços. Não se
75 trilhões. A receita total estimada foi de 545 trilhões de cruzeiros (re- trata de um movimento ascendente geral e uniforme dos preços que os
presentando 39,9% do PIB), composta de Cr$ 135 trilhões de receita macroeconomistas chamam, por metáfora, de 'nível dos preços' e que é
fiscal do Tesouro Nacional (impostos, taxas e outras receitas) e Cr$ 410 medido por um agregado arbitrário denominado 'índice geral de pre-

48 49
ços'. Os primeiros usuários do novo dinheiro, dentre os quais se destaca eliminar o déficit reduzindo os gastos em lugar de aumentar os tributos
o governo, certamente ganham algo por nada, pois após algum tempo - a taxação pesada, principalmente quando progressiva, sempre tende
todo o dinheiro circulante terá sofrido uma desvalorização inflacioná- a esmorecer e a desorganizar a produção.
ria pelo excesso de oferta monetária. E o novo dinheiro também depre-
cia um dos lados de cada contrato e de cada obrigação expressa em ter- VISÃO, 28-5-~"
mos de dinheiro, seja um aluguel, uma apólice de seguro, uma ação,
um depósito a prazo ou de poupança, ou o rendimento de uma pensão
de aposentadoria; mesmo que tenham algum tipo de correção monetá-
ria que atenue essa desvalorização.
Quando, no entanto, o governo financia seu déficit vendendo seus
títulos (OTNs e LBCs) ao público e fazendo com que eles sejam pagos
com poupanças reais, o processo é completamente diferente e não é di-
retamente inflacionário. Mas isso leva a um outro tipo de malefício. O
empréstimo governamental compete com o investimento privado de ca-
pital, desviando as poupanças dos canais do livre mercado preferidos
pelos consumidores, conduzindo-as para os usos desejados pelos gover-
nantes. Do ponto de vista do mercado e dos consumidores, portanto, a
DÉFICIT DO GOVERNO EM 1985
tomada de empréstimo do público para os gastos do governo constitui (Em trilhões de cruzeiros)
um desperdício de poupança. As conseqüências desse desperdício são o
Cr$1012 o/o PIB
desestímulo à formação de capital na sociedade, o retardamento do Receita
Fiscal 135
crescimento econômico e o rebaixamento do padrão geral de vida pre- Estatais (inclusive Sinpas e Bancos oficiais) ___11Q_
sente e futuro. Ademais, esse desvio e desperdício, de poupança real do ~ 39,9
mercado para os gastos governamentais, faz com que os juros sejam Daspasa
Administração Direta 120
mais altos, já que os tomadores privados de financiamento se vêem Estatais 460
obrigados a competir com o governo que, além de regulamentador do Déficit de caixa das Autoridades Mc;metárias (AMI 75
sistema bancário, detém o monopólio da fabricação do dinheiro. A --s55 48,0
chamada 'ciranda financeira' de que tanto se fala ultimamente no Bra- Déficit de Caixa do Tesouro e AM 60 4,4
sil é gerada pelo chamariz do empréstimo governamental que tem pro- Déficit Total 110 8,0
curado atrair toda poupança do público para si. Financiamento do Déficit Total
Os gastos governamentais, com ou sem déficit, desviam recursos das Aumento da Base Monetária (BM) 38
pessoas privadas para o setor público. A única forma possível pela qual Colocação de Títulos Federais 22
Operações de Crédito
esse desvio poderia melhorar o padrão de produção da sociedade seria _l.!Q_
aquela em que o governo satisfizesse os desejos humanos mais eficiente-
mente que o setor privado. Esse seria o caso se a propriedade e controle AUMENTO DE OFERTA DE MOEDA, SUBIDA DOS PREÇOS
pelo Estado dos meios de produção fosse mais eficiente que a ordem do E CRESCIMENTO DO PRODUTO INTERNO BRUTO
mercado. Os fatos negam isso. Os efeitos econômicos dos gastos gover-
Trilhões de Cruzeiros Índice
namentais dependem, portanto, da natureza dos dispêndios, quandç> Final de PIB
Base IGP/01
comparados com os gastos do setor privado que forem deslocados. E Período M1 M2 M3 M4 (1977 = 100) o/o
Monetãria
óbvio que há certos tipos de serviços governamentais que são sempre
benéficos à comunidade, pois eles não seriam ou não poderiam ser rea- 1984 15,0 25,0 65,6 128,0 182,0 14.312 4,5%
1985 52,7 101,3 248,5 463,8 723,4 46.588 8,3%
lizados pela iniciativa patticular. Com referência aos déficits, sempre se
Evolução
pode imaginar que, por definição, seja possível acabar com eles aumen- 84-85
251% 306% 278% 262% 298% 226% -
tando os impostos. Mas isso não quer dizer que seja esse o melhor cami- Fontes: SEPLAN, BACEN, SEST e FGV.
nho. A não ser no caso de uma guerra, por exemplo, é sempre preferível ."

50 51
10. A fantasia dos 'preços' controlados e a gente com saldos monetários à procura de produtos com preços manti-
realidade dos preços de mercado dos à força abaixo do valor de mercado. Enquanto houver capacidade
produtiva e puderem os produtores equilibrar-se na corda bamba dos
'preços fora-do-mercado', os pontos-de-venda serão supridos com
Enquanto estivermos sujeitos a falsos diagnósticos sobre o que cau- maior ou menor deficiência. Se a inflação subjacente (engendrada pela
sa a doença da inflação, estaremos também submetidos à praga do~ fal- injeção de mais dinheiro na economia) continuar derrubando o poder
sos remédios. Nossos economistas, políticos, governantes e demais se- aquisitivo da moeda, os preços dos bens e serviços que não desaparece-
guidores intelectuais não querem confessar qll:e _o aume~to g~neralizado rem subirão de qualquer modo, mais cedo ou mais tarde. A esta altura,
dos preços se deve à redução do poder aqUISitivo do dmheiro caus~d.a os falsos remédios já provocaram danos terríveis à economia nacional,
pelo inflacionamento da oferta de meios de pagamento (moeda e credi- com seqüelas de reparação difícil e de longo prazo.
to) pelo governo e sistema bancário todo ele paraestatal_. Por sa~erem Há dois tipos principais de controle de preços: o 'seletivo' e o 'glo-
que somos um povo mal-informado a respeito das _rems. questoes da bal'. No regime seletivo, o governo tenta manter 'baixos' apenas alguns
economia, eles preferem espalhar, por exemplo, teonas ta~s _como a de bens, serviços e/ou gêneros chamados de primeira necessidade. A 'luta
que a 'inflação' é só aamento de preços causado pel~ ambi?ao dos ,e!fl- contra a inflação' sempre lidera o rol das justificativas que também in-
presários, ganância dos comerciantes, especulação fmanceira, politica clui o discurso da 'justiça social' e a suposta necessidade de 'vigilância'
cambial subida de salários, escassez por quebra de safras, altas de ma- a produtores 'oligopolistas' e 'monopolistas'. O que geralmente aconte-
térias-p;imas como o petróleo, etc. e que ela é també~ 'inerci~l', isto é, ce é que a margem de lucro na produção das coisas tabeladas se reduz
que a 'inflação' básica tende a se auto-sustentar pela md_exaçao d~ eco- (ou desaparece) em relação à margem que é conseguida na produção de
nomia. Com base nesses diagnósticos, eles decretam a mtervençao no outros bens. Cai a oferta e passa a haver escassez justamente daqueles
mercado para domar todos os preços desgarrados. O resll:ltado (que produtos que o governo se põe mais ansioso por promover. Um dos ca-
ninguém deseja) é o caos, pois não existem preços que não seJam os for- sos mais flagrantes é o do leite, que todo mundo conhece. Em lugar de
mados livremente no mercado. deixar o mercado 'arrumar' leite para todos, os governos insensatos in-
Não há dúvida de que as variações do poder aquisitivo do dinheiro sistem em fazer preços sintéticos tecnocráticos que geram o desapareci-
- ou seja, as mudanças na relação de troca entre o dinheiro _e os. bens e mento quase que imediato do produto, porque todos os produtores
serviços vendáveis - podem originar-se tanto do l~do do~ di~heiro co- marginais são expelidos do mercado. O governo não se dá por vencido e
mo do lado dos bens e serviços. As alterações de circunstancias que as inventa subsídios que são financiados pela fabricação de quantidades
provocam podem produzir-se na oferta e demanda de dinheiro ou na adicionais de dinheiro, provocando efeitos inflacionários em toda a
oferta e demanda dos demais bens e serviços. Cabe, no entanto, fazer economia mas que atingem com mais rigor justamente aqueles que o
uma distinção vital entre as variações do poder aquisitivo de origem governo desejava beneficiar com leite tabelado. Se os consumidores
monetária e as variações que têm origem nos bens e serviços. Estas últi- simplesmente pagassem os preços de mercado, não só não haveria ex-
mas são variações no poder aquisitivo do dinheiro, variações no preço cesso de dinheiro gerando imposto inflacionário como também os pro-
da unidade monetária, que podem ser induzidas por mudanças específi- dutos, como o leite, talvez surgissem em maior quantidade, melhor
cas na oferta ou na demanda de determinados bens e serviços - o pe- qualidade e a preços acessíveis para mais gente, a exemplo do que ocor-
tróleo, por exemplo. Mas um aumento ou queda generalizada na de- re noutras civilizações alhures.
manda de todos os bens e serviços ou da maior parte deles somente po- Quando o governo penetra no campo do tabelamento e/ou congela-
de dar-se do lado do dinheiro; ou seja: a inflação verdadeira é forçosa- mento 'global', a questão do controle de preços se transforma em algo
mente de origem monetária. Embora a escalada geral dos preç?s seja capcioso, ilusório e extremamente perigoso. Mas antes de tudo é um
em verdade essencialmente uma conseqüência do excesso de supnmento problema insolúvel. Sob este aspecto, bastaria lembrar alguns dados
monetário os economistas aproveitam o trocadilho semântico entre que nos fornece o escritor americano Henry Hazlitt. Durante o governo
causa e ef~ito da inflação e propõem o falso remédio do controle de de Franklin D. Roosevelt na segunda guerra mundial, o órgão federal
preços e salários. encarregado do controle global de preços (realizado entre outubro de
O mais calamitoso deles é o tabelamento e/ou congelamento global, 1942 e agosto de 1945) fez uma avaliação, a pedido do Congresso, do
como o que agora nos impõem. E, se mais d~nh~ir? novo conti~ua se~­ número total de preços nos Estados Unidos. A primeira estimativa foi
do posto em circulação pelo governo, a tendencia e a de ter mais e mais logo retirada, por confessar o órgão que era muito baixa. Essa estimati-

52 53
va por baixo dava 9 milhões de preços diferentes que Hazlitt diz gera- aparecimento deste preço, este, com referência a esta situação, é sempre
rem mais de 40 trilhões de inter-relações entre eles; pois a mudança em adequado, genuíno e real. Ele não pode ser maior se ninguém estiver
um preço sempre repercute numa miríade de outros preços. (Quantos disposto a pagar mais pela mercadoria e não pode ser menor se nenhum
preços e inter-relações temos hoje no continente brasileiro?) É óbvio que vendedor estiver disposto a entregá-la por menor preço. O preço só po-
nenhum órgão ou grupo de pessoas, por mais competentes, honestos e derá ser alterado se surgirem essas tais pessoas dispostas a comprar ou
bem equipados que fossem, seria capaz de resolver um tal problema. vender.
Não se trata, porém, apenas de uma questão de quantidade. Há o Mas se não é possível tabelar e/ou congelar os preços sem, mais cedo
problema em si da natureza dos preços, de sua valoração e das infinita- ou mais tarde, produzir graves danos numa sociedade livre, por que en-
mente complexas inter-relações entre todos os preços dos bens, servi- tão tanta gente aplaude ou aceita de bom grado estas medidas quando
ços, salários, aluguéis e juros no dia em que se decidiu tabelar e/ou con- elas são implantadas? Porque quando se trata de melhorar seu preço de
gelar os preços, e que eram o resultado das condições da oferta e da de- compra, seu salário, sua receita de aluguel, seu honorário, sua tarifa;
manda naquele dia. Os economistas que realmente conhecem seu ofício ou de baixar seus juros a pagar ou subir sua renda de aplicação finan-
sabem que a oferta e demanda raramente permanecem estagnadas, ceira, toda pessoa fica feliz. Qualquer pessoa fica contente se caem os
mesmo para uma mesma mercadoria e por poucos dias seguidos, ainda preços das coisas que quer comprar e se sobem os preços das que quer
que não haja mudanças significativas na oferta monetária. E toda vez vender. Todos gostaríamos que isso sempre ocorresse. Mas, ao expres-
que o órgão controlador tenta corrigir um preço, salário ou juro 'desa- sar estes anseios, uma pessoa consciente só poderá ser considerada dig-
justado' é criada uma quantidade de novos desajustes e iniqüidades. na e sincera se admitir que seu ponto de vista (ou entendimento dos fe-
Os preços são um fenômeno típico de mercado. Eles são engendra- nômenos econômicos) é pessoal ou é ditado por mero interesse particu-
dos no seio do mercado e constituem a própria essência da economia de lar ou ideológico. Isso porque há aqueles que, embora movidos por
mercado. Fora do mercado, nada há que se possa considerar como pre- ponto de vista ou por entendimento teórico das coisas, essencialmente
ços. Não é possível, portanto, construir preços sinteticamente, como pessoais, impelem o governo a usar seus poderes de coerção e opressão
fazem os CIPs, SUNABs, etc. Eles resultam de uma certa constelação para interferir na estrutura de preços do mercado como se essa inter-
de elementos determinantes concorrentes; são o fruto das ações e rea- venção violenta tivesse suporte científico comprovado e fosse impres-
ções dos que integram a sociedade de mercado. É fútillucubrar ares- cindível para o bem-estar e progresso duradouros da comunidade.
peito de quais teriam sido os preços se fossem diferentes alguns dos fa- A essência dos preços estriba-se no fato de que eles são fruto de um
tores determinantes dos mesmos. São os juízos sujetivos de valor dos processo de valoração subjetiva e das ações de indivíduos e grupos de
consumidores que em última instância determinam os preços. Eles de- indivíduos que operam por interesse próprio no mercado. O conceito
correm da valoração subjetiva que faz uma pessoa preferir um produto fundamental da economia de mercado rejeita por princípio a interven-
e não outro. Os preços são engendrados pelo subjetivismo e a ação indi- ção de qualquer autoridade governamental, de massas populares que
vidual. Eles são fenômenos sociais, porquanto resultam da interação ameaçam e usam a violência em nome da sociedade e do Estado, ou da
das valorações de todas as pessoas que participam na operação do mer- força policial. Não é nenhum absurdo de lógica afirmar que não com-
cado. Cada indivíduo, comprando ou deixando de comprar e vendendo pete ao governo nem a qualquer poder coercitivo determinar os preços.
ou deixando de vender, contribui com sua parcela na formação dos pre- É, isto sim, absolutamente necessário distinguir com clareza a diferença
ços do mercado. É claro que, quanto maior for o mercado, menor será entre preços de mercado e 'preços' decretados. É preciso jamais perder-
o peso de cada contribuição individual. É por isso que a estrutura de se a noção dessa diferença fundamental entre o fenômeno de mercado
preços do mercado surge para o indivíduo como se fosse um dado fixo dos preços dos bens, serviços, salários, aluguéis e juros, de um lado, e o
de referência ao qual ele deve ajustar sua conduta. fenômeno 'legal' de fixação de preços, salários, aluguéis e juros, do ou-
A Economia analisa o processo do mercado que engendra os preços tro lado, que objetiva anular pela violência da intervenção o regime vo-
dos bens, serviços, salários e juros. Mas ela não produz fórmulas que luntário do mercado. Quando o mercado é globalmente mutilado pela
possibilitem calcular supostos preços 'corretos' ou 'adequados' diferen- fixação 'legal' de preços, a tendência é sempre a desorganização da eco-
tes daqueles estabelecidos no mercado pela atuação mútua e voluntária nomia e a marcha batida rumo ao estatismo e a um regime totalitário
de compradores e vendedores. Todo preço de mercado é o resultado ne- dirigido centralmente.
cessário da interação das forças de oferta e demanda que nele operam.
Seja qual for a situação conjuntural do mercado (livre) que provoque o VISÃO, 9-7-86

54 55
11. A televisão e a falta de leite tremo, na produção, e o controle de preços no outro, na distribuição.)
A 'política' de preços máximos presume tornar possível ao comprador
A televisão é formidável. Aprende-se bastante mas também se desa- adquirir a mercadoria desejada a um preço mais baixo que o do merca-
prende muito com a TV. É um bom entretenimento, ajuda quando se do livre. Noutras palavras, no regime de preços controlados é o gover-
quer distrair a cabeça cansada. Gosto dos filmes, dos espetáculos em sé- no e não o mercado (o consumidor) quem determina o valor pelo qual
rie- bons atares, os brasileiros-, alguns concertos são excelentes, o pode ser vendido um determinado produto. A famosa 'lei da oferta e da
futebol, o tênis, o basquete e até a chata corrida de fórmula l ficam me- procura' fica revogada nesse caso ...
lhores na televisão. Os programas jornalísticos e de entrevistas são sem- O controle de preços, seletivo ou global, é sempre nefasto. Não se
pre uma atração especial, embora alguns destes só sirvam para a propa- pode dizer, entretanto, que o subsídio em si mesmo seja uma ferramen-
ganda das pessoas que estão eventualmente no poder - aliás, o homem ta ilegítima numa sociedade livre. Deve-se considerar, isto sim, que o
com seus quefazeres é sempre algo que aos outros homens atrai. Se de subsídio é sempre um instrumento perigoso de se usar, no que diz res-
um lado a televisão distrai e diverte, de outro lado ela é às vezes uma vi- peito à operação desimpedida da economia de mercado. A questão pri-
trina mostrando como pensam e o que estão pensando as pessoas que a mordial é que o subsídio seja usado apenas para realmente gerar benefí-
ela têm acesso. E, assim, mostra, também, muita coisa errada. E faz cios gerais que possam ser usufruídos por todos os cidadãos. Mas é
ver, a quem está mais ou menos acordado para as realidades da vida, também necessário definir de onde saem e para onde vão os recursos.
que há determinadas verdades e certos conceitos fundamentais que es- Os governos comumente apartam fundos para o subsídio fabricando
tão sendo deixados à margem ou sendo distorcidos no seio da enorme dinheiro novo e conseqüentemente desvalorizando o poder aquisitivo
massa de informações que todo dia se lança para a quase obrigatória as- da moeda- produzindo inflação, portanto, que penaliza todos, menos
sistência desse importante veículo de formação de opinião. o governo, sobrecarregando mais os que pretensamente seriam benefi-
Outro dia, por exemplo, num programa de noticias e informações, ciários do subsídio. E onde serão aplicadas as verbas de subsídio, quais
assisti a um breve debate, entre os apresentadores do programa, sobre o serão os bens e serviços sujeitos ao controle de preços e quem será favo-
problema do abastecimento de leite à população. Foi um desses casos recido e quando - isso dependerá da atuação dos grupos de pressão em
típicos de distorção dos fatos que, ao invés de melhorar o nível cultural, jogo e da conjuntura econômica. Se o planejamento governamental in-
leva à confusão e à deseducação do telespectador. Falavam que, além dica ser necessário estimular as atividades de um determinado setor eco-
de faltar, o leite estava caro. E para resolver esse problema propôs-se nômico, recursos financeiros serão alocados para subsidiá-lo. Quando
uma "democracia social mais humana" (essa foi exatamente a frase há necessidade de mobilizações demagógicas (com eleições à vista, por
metafórica usada) em que o governo subsidiasse o leite e outros "ali- exemplo) ou quando os índices de custo de vida (que sobem devido ao
mentos insubstituíveis" ou então que seus preços fossem mais rigida- inflamento monetário produzido pelo goverrío) causam maior preocu-
mente controlados. (Como se sabe, os preços de muitos alimentos são pação, o governo se vê atiçado pelos populistas e pelos economistas vol-
controlados pelo governo há muito tempo- o do leite, por exemplo.) tados para a onda social distributivista, no sentido de subsidiar certos
Ou uma 'política' de preços mínimos (subsídio) ou a intensificação bens e serviços e de excitar os órgãos estatais de controle de preços.
do controle de preços com uma 'política' de preços máximos. Talvez Acontece, porém, que nem a política generalizada de subsídios nem
não imaginassem os que propunham tais medidas que, com qualquer a do controle de preços conseguem atingir seus objetivos numa econo-
delas, se estropia ainda mais o mercado e o resultado é que, em lugar de mia não-inflacionária e fundada no mercado. A política de subsídios
mais leite ou menores preços, se terá menos leite, maiores preços e in- trás subsídios gera o processo inflacionário através do déficit orçamen-
flação de troco. tário, que desencadeia metástases de inflação por todo o corpo econó-
Quando estabelece preços máximos o governo pretende favorecer o mico. O controle de preços atrapalha os que querem produzir, mascara
comprador; e quando estabelece preços mínimos supõe favorecer o pro- os índices de custo de vida, 'esconde' a inflação, tornando-a crônica,
dutor/vendedor. A 'política' de preços mínimos pretende tornar possí- gera conflitos e produz inquietações na população, além de não atingir
vel ao vendedor dispor de sua mercadoria a um preço (ou a uma mar- os objetivos pretendidos de dar acesso permanente de certos bens e ser-
gem de lucro) mais alto que aquele do mercado desobstruído. A presun- viços a determinadas pessoas ou de forçar a distribuiçf\o 'mais eqüitati-
ção é a de que haveria maior produção daquelas mercadorias subsidia- va' da riqueza entre as várias classes.
das (o leite, o feijão ou a carne, por exemplo), o produto não faltaria e Todo o esforço que se faça para que esse controle funcione só fará
os preços não seriam altos. (E não é incomum ter-se o subsídio num ex- com que se dê um contínuo alargamento da gama de bens e serviços su-

56 57
jeitos ao controle, até que os preços de todas as mercadorias e serviços 12. Onde esconderam a inflação?
sejam determinados pelo arbítrio estatal. Já está mais do que compro-
vado que jamais existirá qualquer tipo eficaz de controle de preços sem Ninguém deveria ignorar que a inflação não começou neste governo
que o Estado assuma o controle direto de todo o processo de produção, e nem com os atuais condutores de nossa política monetária. Eles sim-
decidindo e determinando o quanto, quando e o que as pessoas ou as plesmente continuaram e intensificaram o processo inflacionário e, por
empresas poderão produzir, comprar ou vender. Isso quer dizer, nou- meio de um decreto, congelaram seu principal sintoma, a escalada geral
tros termos, que, para fazer um controle de preços eficaz, as autorida- dos preços. Entretanto, como apenas poucas pessoas sabiam que a per-
des terão que acabar com o direito à propriedade, acabar com a liberda- sistente majoração de preços somente se dava por causa da presença de
de de iniciativa e acabar com a liberdade de escolha e decisão das pes- uma também persistente expansão monetária não compensada por um .
soas. Será isso o que quereriam esses homens que na TV estavam discu- aumento correspondente da produção, todos passaram a crer que a in-
tindo o problema do leite? (Quero que o leitor saiba que este meu artigo flação estava contida. Mas não estava. Após a decretação do 'pacote da
foi, com pouca diferença, publicado pela primeira vez há cinco anos na inflação zero' no dia 28 de fevereiro, os índices oficiais dos 'preços' ta-
VISÃO - foi mais um chamamento de atenção a respeito dos males do belados e/ou congelados referentes aos meses de março a julho perma-
controle de preços que sempre nos atingiu, embora setorialmente. Ho- neceram próximos a zero mas a expansão monetária cresceu num ritmo
je, com tudo controlado, os fatos falam por si mesmos. Só espero que o assustador, mais que nunca.
fim do processo seja melhor que o que foi aqui descrito.) Convém destacar, inicialmente, outra vez nestas páginas, o que sig-
nifica essa 'persistente majoração de preços por causa de uma também
VISÃO, 6-8-86 persistente expansão monetária não compensada por um aumento cor-
respondente da produção'. Se forem tomados os dados referentes às
quantidades de dinheiro (nas suas várias formas) que foram sendo colo-
cadas em circulação ano a ano desde, por exemplo, fevereiro de 1974
até fevereiro de 1986, verificar-se-á que nesses doze anos: a Base Mone-
tária (BM) cresceu 1.777 vezes, o Meio de Pagamento M1 aumentou
1.194 vezes, o M2 (agregado que inclui papel-moeda e os depósitos à
vista e a prazo) cresceu 2.47I vezes, e o M3 (que inclui o M2 mais a pou-
pança), 4.394 vezes. Toda essa expansão monetária não foi compensa-
da por um correspondente aumento da produção, pois nesse período o
produto interno bruto (PIB) só aumentou I, 74 vez! Não foi à toa que o
índice geral de preços (IGP-DI) subiu 3.I25 vezes. (É bom já adiantar
que nos quatro meses após o congelamento, de março a junho de 86, a
Base cresceu 2,34 vezes e o MI, 2,85 vezes. Compare-se esse crescimen-
to da oferta monetária com o aumento total da produção brasileira em
doze anos de apenas I,74 vez.)
A questão de que existe uma relação de dependência entre dinheiro e
preços é a proposição mais testada e verificada da economia. Talvez ne-
nhum outro problema econômico abranja tanta experiência em diferen-
tes tempos, lugares e circunstâncias, sempre essencialmente com os
mesmos resultados: as curvas de tendências gerais de variações de pre-
ços são consistentemente paralelas às de variações monetárias. Estudos
realizados em muitas e diferentes economias, com mercado livre ou
pouco controlado, inclusive no Brasil, mostram claramente (ver artigo
meu na VISÃO de I4-5-86) que as mudanças de preços são causadas basi-
camente por mudanças no estoque monetário por unidade de produto.
A evolução da escalada dos preços em função do inflamento da

58 59
quantidade de dinheiro em circulação se dá exatamente como se a moe-
da fosse uma mercadoria negociada no âmbito da economia de merca- 1 · 400 ~1 TTTl-r : -~ f I r -1-T r1_T_
do. A 'lei' da oferta e da procura e um processo de valoração subjetiva
da moeda pelos indivíduos engendram o valor (isto é, o 'preço') do po-
.1·300ItCRESCIMENTO DA BASE
+-t -j MONETÁRIA,-+
I

der aquisitivo da unidade monetária numa dada circunstância do mer-


cado. Quando aumenta a oferta de meios de pagamento, as pessoas
passam a dispor de mais dinheiro à procura de bens e serviços vendá-
I I ! DO M1 E DO IGP-DI
1·200 , ANTES E APÓS +-+----+---111r---1
veis. Se a oferta destes produtos também não aumenta (ou não aumenta
tanto quanto aumentou a oferta de dinheiro novo), os preços dos bens e I
1 100 -+
o CONGELAMENTO
I I I I I I
serviços tenderão a subir. Isto se dá porque, quando há mais dinheiro 1, 1

procurando a mesma quantidade de produtos, cada unidade monetária ·I 1 (lndice 100 para as três
vale menos. Assim, ao crescer o estoque de cruzados, se desvaloriza o rran,dezas ~m janeiro de 1985)
poder aquisitivo de cada cruzado. Portanto, quando o governo incha a
massa monetária criando mais e mais moeda e crédito, dá-se a majora-
1.000 - I

I
1lt
I '
++I i-+
I I
ção geral dos preços não porque a produção é mais escassa que antes e I I I
~
também não, necessariamente, porque a demanda física aumentou nem '

porque os custos reais subiram, mas porque se aumentou excessivamen-


te a quantidade de dinheiro no mercado.
Sendo o dinheiro nada mais que um instrumento de intercâmbio su-
jeito ao subjetivismo e à ação individual no mercado, sempre que hou-
ver aumentos na quantidade de dinheiro em relação aos aumentos de
produção os preços mais cedo ou mais tarde subirão, isto é, serão ne- 700
cessárias mais unidades monetárias para comprar o mesmo tipo de pro-
duto. Por exemplo: no Brasil, a quantidade de dinheiro em circulação
(M3), representada pela soma do papel-moeda em poder do público e
mais os depósitos à vista, a prazo e de poupança, aumentou 267 vezes
no período de dez/79 a dez/85. Daí, o pacote de arroz (5 kg) que era
anunciado num jornal do dia 28-12-79 em São Paulo a Cr$ 100,00; o
macarrão (500 g) a Cr$ 14,50; e a manteiga (200 g) a Cr$ 28,00, tinham
que ser vendidos (intercambiados) por número muito maior de unida-
des monetárias em 14-12-85, conforme anunciado: o arroz a Cr$
17 .000; o macarrão a Cr$ 4.000; e a manteiga a Cr$ 6.500. Essa imensa
variação (de 170, 276 e 232 vezes, respectivamente) se deve ao absurdo 300
inchaço monetário (inflação) provocado pelos governos ao longo dos
anos. Cabe ressaltar que nesses seis anos referidos a produção nacional
(PIB) cresceu 1,166 vez, ou seja, apenas 16,6%. Uma outra forma
curiosa de verificar a impressionante desvalorização da moeda brasilei-
ra, causada pela fabricação de dinheiro sem nenhum lastro, é compa-
rando valores aproximados dos preços de um 'bushel' de trigo em nossa
unidade monetária com os preços em moedas da Alemanha Ocidental, z>~~~z~o~~>~z>~~~z
Suíça, Estados Unidos e Inglaterra, sabidamente com menor ritmo de ~w~m~:::>~~
,~:2:~~,,~~ozo,~~~~,
::>o ~w~~ :::>
inflação. Em dezembro de 1979 a cotação média internacional do
'bushel' era respectivamente de 174,00 cruzeiros; 7,45 marcos alemães; ~------1~--------~-1~__j
6,85 francos suíços; 4,30 dólares americanos; e 1,95 libra esterlina. Seis

60 61
anos depois, em dez/85, a cotação do mesmo 'bushel' exigia 205 vezes
mais unidades monetárias brasileiras (Cr$ 35.700) e relativamente pou-
13. O mal maior é o governo leviatã *
co mais ou menos nas demais moedas: 9,00 marcos; 7,60 francos; 3,60 Os governos de constituição defeituosa possuem poderes ilimitados.
dólares; e 2,50 libras. Podem, por exemplo, criar dinheiro à vontade, reduzindo o poder aqui-
Mas o que aconteceu com o valor de nossa moeda após o congela- sitivo da moeda. A inflação (isto é, a fabricação de dinheiro sem lastro
mento do fim de fevereiro? Ora, num mercado livre, os preços são o em suas várias formas) é um procedimento perverso que os governos
único sinal que as pessoas comuns possuem para saber se há ou não va- todo-poderosos usam para alimentar sub-repticiamente o agigantamen-
riações no poder aquisitivo do dinheiro. Se o mercado é todo controla- to da intervenção do Estado em todos os aspectos da vida social. Como
do, deixa de existir o mecanismo de preços e esse termômetro de valora- o inflamento da oferta monetária é feito às ocultas, o único termômetro
ção da moeda não mais dá indicações corretas. O gráfico anexo mostra que as pessoas dispõem para detectar sinais da sistemática redução do
o crescimento de dois tipos de quantidades de dinheiro e de um índice poder de compra de seu dinheiro é o mecanismo de preços do mercado .
.de preços, abrangendo o período de janeiro de 1985 a junho de 1986: a Mas os governos inchados querem esconder esses sinais e podem usar a
Base Monetária (BM) (papel-moeda em circulação mais reservas bancá- força para destruir o termômetro dos preços livres. Fazem tudo para
rias), o Meio de Pagamento M1 (papel-moeda mais depósitos à vista) e acabar com o regime de funcionamento competitivo do mercado. Os
o Índice Geral de Preços (IGP-DI) medido pela Fundação Getúlio Var- danos decorrentes são graves e de difícil reparação. O mal maior, no
gas. A partir de fev/86 a curva do IGP-DI apresenta-se quase horizon- entanto, é o leviatã governamental e não simplesmente a inflação.
tal, pois reflete apenas preços tabelados/congelados. Vê-se, outrossim, É evidente, no Brasil, o processo de crescimento e diversificação das
que a fabricação de dinheiro, que foi grande principalmente no fim de atividades do governo, aumentando, incessantemente, o controle atual
85, intensificou-se nos meses de março a junho/86, como mostram as e potencial do Estado sobre a economia nacional. Tal processo de con-
curvas da BM e do Ml. Em termos de tudo o que foi dito, isso significa trole se reveste de múltiplos aspectos e de características extremamente
que, subjacente, continuou havendo inflação e, pois, desvalorização do abrangentes. A falta de estímulo à ação empreendedorial e à livre ini-
poder aquisitivo da moeda. Onde estaria o IGP-DI se os preços, livres, ciativa e sua substituição por um sistemático planejamento centralizado
tivessem atingido, por exemplo, o nível 900 da BM ou o nível1.380 do e impositivo; o abandono do mecanismo de formação de preços no
Ml ou o nível 1.150, intermediário entre os anteriores, em jun/86? A mercado, com dispositivos antimonopolísticos adequados, por uma po-
resposta seria 2020Jo, 3630Jo e 2860Jo no semestre, valores que correspon- lítica repressiva e permanente de preços controlados e/ou administra-
dem a médias de 20,20Jo, 29,1 OJo e 25,20Jo ao mês, respectivamente. O dos; a substituição do fortalecimento efetivo do mercado privado de ca-
termômetro dos preços se estropiou mas a impessoalidade cibernética pitais por um complexo e burocratizado sistema governamental de cap-
do mercado reage com a escassez, o desabastecimento, o desestímulo ao tação e gestão de quase toda a poupança financeira disponível para in-
investimento, a economia paralela, etc., que no final das contas fará vestimentos são aspectos relevantes do processo de estatização da eco-
muito mal a todos, ricos e pobres. nomia nacional. A hipertrofia da ação de grande número de entidades
governamentais, afastando-se de seus objetivos públicos e estratégicos,
VISÃO, 20.8-86 invadindo predatoriamente a esfera de ação da iniciativa privada, e
o crescente ativismo governamental são indicadores concretos de tal
processo.
É lícito supor, por conseguinte, que o impacto global do setor públi-
co já ultrapasse, substancialmente, as dimensões verificadas no fim da
década de 70, que já emprestava ao sistema econômico brasileiro visí-
veis características de um sistema híbrido de capitalismo de Estado e de
capitalismo privado. Em 29 de agosto de 1977, no Seminário sobre Ca-
pitalização da Empresa Privada no Brasil, promovido pela VISÃO em
seu 25? aniversário, apresentei o estudo "A ação do Estado, o mercado

* Baseado em parte nas idéias, ainda atuais, de "Inflação, o mal maior?" que publiquei
na VISÃO de 11-10-76, e no ensaio citado no corpo do presente artigo.

62 63
de capitais e a capitalização da empresa privada nacional" que, na sua financeiro. Assim, deficiências nos Planos Nacionais de Desenvolvi-
introdução, dizia: "Não é possível determinar o matiz político - ou mento ou na política monetária do governo provocam, mutatis mutan-
melhor, o matiz político-ideológico- de uma nação sem ter bem anali- dis, impactos negativos, até certo ponto assemelhados aos erros dos
sadas a natureza e características de seu mercado de capitais. Sabe-se planos qüinqüenais soviéticos ou aos decorrentes do insucesso do
igualmente que, quanto mais desenvolvido e aberto for o mercado de "Grande Salto para a Frente" da China maoísta.
capitais de uma nação, maior será sua formação de capital e mais efi- Assim também a deformação ou, como agora, a eliminação dos me-
ciente será sua alocação de recursos. É indiscutível, também, que exis- canismos de mercado requerem verdadeira enxurrada de medidas go-
tem uma forte interdependência e uma estreita complementaridade en- vernamentais para tentar corrigir, não raro inutilmente, imperfeições
tre o desenvolvimento económico e o desenvolvimento do mercado de criadas por medidas precedentes que não existiriam ou seriam corrigi-
capitais. Tem-seja/ado muito na fragilidade e insuficiência do mercado das com facilidade numa ordem econômica menos centralizada e menos
de capitais brasileiro, principalmente agora que a inflação volta a casti- estatizada. A título de exemplo, veja-se o caso do open market, nos
gar o país, os juros estão altos, as empresas privadas se encontram endi- tempos anteriores ao 'pacote da inflação zero', para o qual afluíam
vidadas e descapitalizadas e se acirra a disputa, entre os diferentes seto- grandes massas de recursos financeiros muitas vezes desviadas de inves-
res da produção e entre os setores público e privado, pelos capitais dis- timentos produtivos. Esses recursos, no open market desses dias, des-
poníveis. É fato conhecido por todos que a poupança, ou seja, a dispo- frutavam simultaneamente liquidez, rentabilidade elevada e razoável
nibilidade de capitais, é altamente estatizada no Brasil. Nem todos sa- segurança contra a desvalorização da moeda, características dificilmen-
bem, entretanto, que na formação da poupança financeira bruta inter- te observadas em outros tipos de aplicação. O principal captador foi
na para emprego na economia o governo contribui com talvez menos sempre o próprio governo que, para sugar o máximo possível de recur-
que 10%, enquanto os 90% restantes provêm dos particulares, isto é, sos da poupança popular, aumentava os juros reais, criando o que hoje
da poupança das famílias e das empresas privadas. Não são muitos os se denomina pejorativamente de 'ciranda financeira'. Como esperar,
que sabem que - a despeito de contribuir com menos de 10% na gera- então, que os investidores aplicassem as suas economias em empreendi-.
ção da poupança- a participação estatal na gestão dos recursos finan- mentos produtivos que envolvessem os riscos normalmente encontra-
ceiros da nação atinge a elevada cifra de 65%, ficando, portanto, so- dos nos sistemas econômicos sadios? O pacote de fevereiro 86 nada
mente 35% para intermediação pelas instituições financeiras privadas. trouxe no sentido de incentivar a poupança para novos investimentos.
E também poucos têm noção de que, dos empréstimos realizados em Ao contrário: qualquer controle de preços só desestimula o investimen-
1976 pelo mercado financeiro do Brasil, 68% o foram por entidades fi- to produtivo a médio e longo prazo. As pessoas que possuem alguma
nanceiras estatais. E será, talvez, espantoso para muitos verificar que, sobra tratam de encontrar correndo coisas palpáveis para trocar pelo
além de dispor de todas as receitas orçamentárias, o setor público, na dinheiro que se desvaloriza celeremente.
distribuição dos recursos financeiros de que dispomos, absorve a signi- Outro aspecto relevante é a criação de mentalidade paternalista e de-
ficativa parcela de 34% desses recursos. Isto significa que o setor públi- pendente, em amplos segmentos do setor privado, para os quais as deci-
co gera menos de 10% e absorve cerca de 46% da poupança bruta inter- sões e incentivos governamentais passam a ter maior importância que
na". Atualmente, os dados disponíveis indicam que as despesas do Go- as leis do mercado e a racionalidade econômica. Paralelamente, gera-se
verno Federal e suas empresas representam mais que 500Jo do PIB e é ra- nos setores mais vigorosos e infensos ao paternalismo um clima de in-
zoável estimar que o Governo Federal mais estatais, Sinpas e bancos fe- certeza e inibição, em face da constante agressividade da ação governa-
derais são responsáveis por dois terços do investimento do país. mental e da eliminação do mercado.
O elevado grau de estatização e de controle governamental da eco- Não menos importante é a deformação do papel do investimento go-
nomia envolve um conjunto de implicações que, explicitadas, permitem vernamental. O progressivo desvio de recursos financeiros, para aplica-
um melhor entendimento das dificuldades da conjuntura em que vive o ção pelo Estado em campos estranhos à infra-estrutura básica e a seto-
país. res que requerem pioneirismo e elevado risco ou envolvem a segurança
A vulnerabilidade aos erros do planejamento oficial, a grande di- do cidadão e a segurança nacional, além de provocar a inibição e o defi-
mensão do setor governamental e a acentuada dependência do setor pri- nhamento do setor privado, contribui para gerar escassez de meios, im-
vado às decisões da política econômica tornam, tal como nos países to- pedindo o governo de cumprir suas funções precípuas. Soma-se a isso o
talitários de planejamento central, o sistema econômico extremamente congelamento de muitos preços e tarifas de empresas governamentais.
sensível às falhas das decisões governamentais no campo econômico- Merece registro, também, a queda da produtividade do sistema eco-

64 1: 65
I
I
nômico, em particular do setor público, pois a ausência ou a atrofia dos
controles de mercado para as empresas e atividades governamentais as
14. O aniversário do pacote
tornam praticamente imunes às sanções e estímulos que impulsionam a • Agora quando se comemora o sexto mês de vigência do famigerado
busca da produtividade no setor privado.
O maior mal de que sofre o país, portanto, não é a inflação, mas a
'I 'pacote da inflação zero', julgamos importante resumir os seguintes as-
pectos morais, técnicos, jurídicos e político-filosóficos desse pacote
hipertrofia governamental. Porque o governo leviatã, que gera o mons-
trengo inflacionário e nele se enrosca tentando esconder a desvaloriza-
ção da moeda, além de impedir a eficiente e eficaz ação do governo on-
'I (também chamado 'plano cruzado', 'plano heterodoxo' e 'plano de es-
tabilização econômica'), que consideramos ser a medida individual de
caráter político-econômico mais maléfica tomada por governantes bra-
de ela é necessária, torna impossível a generalização da prosperidade sileiros em muitas décadas:
econômica a todos os quadrantes da sociedade. Isso tudo sem falar na
lenta e persistente redução da liberdade de ação de cada um de nós, que 1. Em 28-2-86, com o objetivo oficial declarado de acabar definiti-
o gigantismo governamental provoca. vamente com o contínuo e generalizado aumento dos preços, o governo
decretou o congelamento (através de certas regras arbitrárias) de todos
VISÃO, 27-8-86
os preços vigentes no país e, dias depois, o tabelamento de grande nú-
mero de produtos. Não estabeleceu, porém, qualquer medida de restri-
ção ao próprio governo para pelo menos controlar a causa dessa escala-
da de preços, que é o contínuo aumento da quantidade de dinheiro sa:..
cado do nada, posto em circulação no mercado pelo governo.

2. É incontestável que a escalada contínua dos preços sempre só


existiu em função de uma também contínua expansão monetária exces-
siva. Os dados do Banco Central mostram que a quantidade de papel-
moeda mais os depósitos à vista (M1) aumentou de 94 milhões de cruza-
dos, em dez/73, para 107,5 bilhões, em fev/86, quando foi lançado o
'pacote da inflação zero'. Nesse período, outro agregado monetário, o
M3 (que inclui o total do M1 mais os depósitos a prazo e os de poupan-
ça), foi inflado de 134 milhões para 617,7 bilhões. O M1 aumentou,
pois, 1.143 vezes e o M3, 4.610 vezes, enquanto a produção nacional
(PIB) cresceu somente 76,7f1Jo, ou seja, apenas 1,767 vez. Não foi à toa
que o índice de preços (IGP. DI) subiu 3.302 vezes nesse período: pois,
ao passo que a quantidade de dinheiro em suas várias formas foi multi-
plicada milhares de vezes, a quantidade de produtos não chegou a au-
mentar duas vezes. A raiz da inflação não está nos aumentos dos preços
mas no inflamento monetário e, decorrente desta inflação, na continua-
da diminuição do poder aquisitivo da moeda.

3. Ao ser denunciado, logo após a edição do 'pacote', que estava


apenas atacando os efeitos da inflação sem considerar a questão do
enorme aumento da oferta de dinheiro novo sem lastro, o governo de-
, clarou que a razão que anteriormente existia para os aumentos inflacio-
..l nários de dinheiro deixaria de existir na 'nova economia', já que o défi-
cit orçamentário seria logo 'zerado'. O tempo mostrou que esta afirma-
tiva não se baseava em conhecimento real da máquina governamental
nem na intenção de desinchá-la. A questão do orçamento público, do

66 67
déficit total do governo e da expansão monetária excessiva em relaç_ão nheiro) nem com suas mazelas. Apenas muda uma situação ruim de 'in-
ao produto interno bruto continua até hoje obnu~ilada por falta de In- flação aberta' para uma situação muito pior de 'inflação dissimulada'.
formações concretas e confiáveis. Mas os economis:as _comandantes ~o Quanto a querer que se esqueça a inflação passada, é claro que nunca
'plano' insistem em afirmar em seus trabalhos academico_s e n~s .~on~­ houve esta tal 'memória inflacionária', que supostamente provocava
logos pelas redes de TV que é "absurdo falar-se e~ ~eduzir o deficit pu- reajustes dos preços. Existe sim um processo de valoração subjetiva e
blico e promover uma restrição na oferta monetana para combater a de interação individual no mercado que engendra os preços e tende a
inflação". corrigi-los em função das desvalorizações da moeda pelo excesso de
oferta. A restrição ao livre funcionamento do mercado, longe de ser
4. Administrando uma doutrina híbrida pró-socialismo, que deno- uma evolução para melhor, é um retrocesso na luta contra a penúria no
mino de 'monetarismo keynesiano-estruturalista', os autores do 'plano' Brasil. A 'estabilidade' de que fala o 'plano' na melhor hipótese apenas
insistem como se lê, por exemplo, em "A economia política da crise", manterá estável nosso padrão de pobreza.
pág. 28, IERJ, 1982: "Ao invés d~ ~dotar metas c_ontra~ionistas, o go-
verno deve expandir a base monetana a uma taxa Igual ~ som~ ~? cres- 6. O tabelamento/congelamento de preços é a mais perniciosa medi-
cimento do produto potencial com a taxa observada de mflaçao . Eles da que se pode tomar contra uma economia de mercado. É o pior ins-
usam e abusam desta receita, fabricando dinheiro como nunca. Cha- trumento possível, mesmo que a economia esteja submetida a elevadís-
mam essa 'política monetária' de "estratégia antiinflacionária, não re- simos índices de inflação. O controle global dos preços (que mexe ape-
cessiva". Não é à toa que a Base Monetária (BM) cresceu 2420Jo (3,4 ve- nas num sintoma da inflação) significa não só a 'revogação' da lei da
zes) e o meio de pagamento M1 foi inflado em 312% (4,1 vezes) no pe- oferta e da procura mas também a paralisação do mecanismo automáti-
ríodo de fev/85 a fev/86 que, como efeito, levou o índice de preços co de preços e a destruição do processo espontâneo de competição, pró-
·IGP. DI a subir 266% (3, 7 vezes) nesse período. Ressalte-se ~ue o PIB prio da sociedade livre. Desse controle resultam (como se nota nestes
nesse ano cresceu bastante: 8,30Jo ou 1,083 vez. Esse crescimento do meses do 'pacote') a desorganização da atividade econômica, óbices de
PIB no entanto é obviamente muito menor que o inflamento monetá- alocação eficaz dos recursos escassos da economia, desestímulo à pou-
rio que foi reco;de na histórla da inflação brasileira até então .. Só f?i pança para investimentos a longo prazo e inibição da verdadeira ação
batido, proporcionalmente, pela inflação que o governo produziU apos empreendedorial; além da escassez crescente e o desaparecimento de
a decretação do 'pacote da inflação zero': em cinco meses, de mar~o.a bens, produtos e serviços, baixa de padrões, qualidade e quantidade das
julho de 86, com o termômetro dos preços congelado, a B~~e Mon.etana mercadorias e a generalização do comércio subterrâneo. A tal ponto já
(BM) foi inflacionada 167% (2,67 vezes) e o balão monetano M1 mflou chegou neste curto tempo o estado de coisas, que os jornais noticiam
197% (2,97 vezes). É ínfimo o crescimento da produç~~ ~ace a ess~s va- que toda a distribuição de carne imponada pelo governo será acompa-
lores de inflamento da oferta mon:tária. O v_alor aqmsltiV~ da um~ad_e nhada por equipes da Polícia Federal e da SUNAB para evitar corrup-
monetária cai celeremente com tal mflação. E claro que os preços ofi- ção de agentes do próprio governo. (OESP, 6-9-86)
ciais se tornam cada vez mais incompatíveis com os preços reais do mer-
cado, e a escassez de produtos e o inconformismo salarial pa~sam apre- 7. Fazendo crer que a liberdade do mercado era apenas um dogma
dominar. É a simples lei da oferta e da procura que fm revogada de 'direitistas' e 'especuladores', os pais do 'pacote' lançaram uma
pelo 'pacote', com o objetivo declarado de 'trazer estabilidade à campanha de propaganda messiânica para demonstrar que a 'salvação
economia' ... nacional' dependia do 'plano de estabilização econômica'. A partir daí
foi fácil implantar um terrorismo econômico pela via da denúncia anô-
5. o discurso do 'plano cruzado' fala de saneamento da economia nima, da delação, do uso de falsas leis e do repasse de poder coercitivo
pela correção das distorções geradas pela inflação passada. Fala tam- à pequena autoridade. Este repasse torna o poder mais agressivo com o
bém em apagar a 'memória inflacionária'. Não é difícil perceber. que risco do zelo fanático. O terrorismo político-econômico acaba criando
por esse método o saneamento cogitado é missã~ impc:ssível, pms as um estranho sistema de 'censura por uma boa causa' que funciona com
premissas do plano são falsas. Não se combate a I~flaç~o mas ~penas uma bem orquestrada 'propaganda pela boa causa' que acontece não só
reprime-se, pelo poder coercitivo do governo, o ?lais evidente s~ntoma nas redes de televisão.
dela, que é a subida dos preços. A repress~o policial aos preços nao ac~­
ba nem com a inflação (expansão monetana que reduz o valor do di- 8. Igualmente terrível no ambiente de estropiamento do mercado

68 69
causado pelo controle dos preços é a confusão existente na mente da quaisquer outros equivalentes)" (grifo meu). Não importa que ninguém
maioria dos economistas de que a demanda excessiva em relação à pro- saiba hoje neste país o que é "bola-de-neve", "cadeias" ou "pichardis-
dução seja um problema de gerenciamento (para reduzir à força a de- mo" e que com certeza a remarcação da goiabada não é
manda) e não um problema de excesso de oferta de dinheiro. Dessa "bola-de-neve", "cadeias" ou "pichardismo". Mesmo assim, os pro-
malformação profissional surgem variedades de proposições interven- cessos criminais têm sido encaminhados admitindo brutalmente que a
cionistas, muitas delas resultando em novos pacotes, como, por exem- remarcação, por exemplo, seja especulação ou fraude, equivalente a
plo, o do 'empréstimo compulsório' (um imposto mascarado), cujo "pichardismo" ou "cadeias" ou "bola-de-neve". A expressão "e
único efeito foi o de gerar mais recursos para o governo alimentar seu quaisquer outros equivalentes" do inciso IX do Art. 2? da Lei 1.521 é
déficit. Essa idéia de que os economistas conseguem substituir a ciber- 'pau pra toda obra' nos processos judiciais do 'pacote' no momento
nética do mercado por q1eio de sucessivos 'pacotes' para balancear a atual brasileiro. É também o desprezo dos princípios de justiça e do di-
oferta e a demanda só serve para inibir o crescimento da capacidade de reito em nome de uma suposta 'revolução cultural' que estamos viven-
produção e para impedir a melhoria da produtividade.· do neste sexto mês de aniversário do 'plano cruzado'.

9. Mas o cúmulo da soberba e da arrogância estatocrática é atingido VISÃO, 17-9-86


quando as autoridades dizem que o congelamento permanecerá até que
haja equilíbrio entre a oferta e a demanda. Como se todos devessem es-
quecer os grilhões e passassem a agir supondo que o mercado não está
congelado e preso. E para destacar esse conceito estapafúrdio ainda di-
zem que "dentro dos limites do tabelamento/congelamento os agentes
econômicos podem negociar livremente ... " E que, "antigamente, o
controle de preços retirava da empresa o poder de investir. Hoje, o con-
gelamento devolve à empresa o poder de competição via volume, maior
tecnologia, mudanças". A presunção vai longe quando se afirma que o
'pacote' representa uma "revolução cultural" e transformou a socieda-
de de especulativa para produtiva!

10. A defesa de um plano inviável leva os poderes a desprezar 0 Es-


tado de Direito. Ferem princípios constitucionais ao emitir o decreto-lei
do pacote e elegem os homens do comércio como bodes expiatórios a
serem punidos por 'crimes contra a economia popular'. Para isso de-
senterraram duas falsas leis da ditadura de Getúlio e de Goulart, a Lei
Criminal1.521, de 1951, e a Lei Delegada 4, de 1962. Ambas, usadas
para submeter a indignidades pessoas e empresas supostamente respon-
sáveis por 'crimes contra a economia popular' que em verdade não são
tipificados por qualquer lei de verdade. Passaram a lançar mão do ex-
pediente de destacar certas palavras de efeito pinçadas em incisos da lei
1.521 para incriminar comerciantes. Por exemplo: um gerente de loja,
no dia 28 de fevereiro de 1986, é incriminado de remarcar uma lata de
goiabada e apontado à execração pública com apoio frenético dos
meios de comunicação. Para isto é capitulado no inciso IX do Art. 2?
da Lei 1.521 que pode levar a detenção de seis meses a dois anos e mul-
ta: "IX- obter ou tentar obter ganhos ilícitos em detrimento do povo
ou de número indeterminado de pessoas mediante especulação ou pro-
cessos fraudulentos ("bola-de-neve", "cadeias", "pichardismo" e

70 71
15. Um embuste político da crescente e contínua dos preços. Na medida em que subiam os pre-
ços, diminuía a popularidade dos governantes e dos políticos, que já vi-
Desde a primeira hora de sua decretação, acuso o 'pacote da infla- nha em baixa também devido à frustração pela perda do líder Tancredo
ção zero' (agora também chamado de 'plano cruzado' ou 'plano de es- Neves. O momento parecia propício, portanto, para que os professores
tabilização econômica') de ser um verdadeiro embuste político - um de plantão no poder oferecessem às autoridades uma 'solução hetero-
abuso da credibilidade do cidadão brasileiro. Não me canso de repetir doxa' para resolver de vez o problema da inflação. (Seria uma solução
que esta postura minha não é novidade, pois todos os que acompanham diferente da 'ortodoxa'. Porém nunca explicaram como esta seria; ape-
as coisas que tenho escrito nestes últimos cerca de vinte anos sabem que nas diziam que a ortodoxia produziria terríveis dificuldades recessivas.)
sempre guardei uma linha de coerência. Sempre fui um crítico acerbo Foi quando o governo resolveu 'parar' os preços, isto é, passou a con-
do crescente intervencionismo que só serve para manter entorpecidas as trolar os efeitos da inflação que os próprios professores vinham produ-
reais possibilidades de progresso de nosso país. Se for julgado que o zindo. (É preciso neste ponto destacar que aumentos de salários, oure-
tratamento de agora soa demasiado severo, sugiro que se leia ou releia o duções de impostos sobre os salários, não são em si mesmos causadores
que escrevi no passado. Mas também admito que a ênfase mais sentida de subidas gerais e contínuas de preços. Estas só se dão quando há au-
hoje se deve à extrema gravidade da situação institucional decorrente mentos na quantidade de dinheiro em suas várias formas na economia.)
do pacote legiferante de fevereiro deste ano. Essa solução apresentada como nova e diferente das 'tradicionais',
Por incrível que possa parecer, esse verdadeiro ato institucional cor- no entanto, nada mais é que um método ardiloso muito antigo, usado
responde a um golpe de Estado que para os socialistas significará o ar- há milhares de anos por governos demagógicos ou desorientados. O li-
rasamento do que ainda existe de livre iniciativa, direito à propriedade e vro "Forty centuries of wage and price controls: how not to fight infla-
economia de mercado no incipiente 'capitalismo' brasileiro. Se o golpe- tion" (publicado pela The Heritage Foundation e que a Editora Visão
por-decreto for bem-sucedido, teremos 'mudanças' que nos trarão uma está traduzindo) apresenta inúmeros exemplos que começam na antiga
contínua e gradual perda de nossa liberdade individual, associada a in- Babilônia, dois mil anos antes de Cristo. São quatro mil anos de regis-
flação, escassez e pobreza crescentes, até o total nivelamento igualita- tros históricos irrefutáveis de tentativas de controle de preços, iguais a
rista. A 'revolução' já foi longe e precisa ser imediatamente detida para esta do nosso 'plano heterodoxo', que não mostram um caso sequer
que as seqüelas não sejam demasiado profundas e duradouras. Depen- que tenha funcionado no sentido de parar a inflação ou acabar com a
dendo de como (e quando) for abortado o golpe, é possível ainda mini- escassez. Porque sempre foram esquemas artificiosos que atacaram os
mizar essas más conseqüências. Desejo ansiosamente que a solução se efeitos e não a causa dos males. A experiência da história ressalta que
dê neste melhor sentido, para o bem de todos nós. Infelizmente, no en- os resultados desastrosos desse falso método de combate à inflação são
tanto, o debate até agora, da crise que se torna cada vez mais aguda, previsíveis e inevitáveis. As pessoas melhor informadas a respeito da
não mostra que a maioria das pessoas responsáveis de dentro e de fora economia de mercado sabem disso muito bem.
do governo já tenha detectado as verdadeiras raízes do mal. Continua Algumas pessoas acreditaram, de boa fé, que essa estancada repenti-
acreditando que a crise pode ser contornada, simplesmente aprimoran- na nos aumentos dos preços seria apenas uma parte preliminar desse
do o 'plano' aqui e ali. plano 'diferente'. Que seria um primeiro passo para dar cabo da corre-
O logro começou quando os tecnocratas (adeptos do que denomino ção monetária, parar a tal de 'inflação inerciai' teorizada pelos 'econo-
monetarismo keynesiano-estruturalista) aceleraram a desvalorização da mistas heterodoxos', e para dar um mínimo de tempo e condições polí-
moeda, fabricando dinheíro no segundo semestre de 1985 num ritmo ticas para que o governo pudesse então atacar de chofre a inflação pro-
nunca antes observado. E no fim desse ano, com objetivos distributivis- priamente dita. Nada disso. Em lugar de paralisar a fabricação desbra-
tas, o governo decretou modificações nas políticas 'fiscal' e 'salarial'. gada de dinheiro, o contrário se deu. Nunca se aumentou tão intensa-
Os assalariados em geral passaram a ter mais dinheiro em mãos. Obvia- mente a Base Monetária (BM) e o agregado monetário Ml como se fez
mente aumentaram suas demandas por bens e serviços vendáveis. Estas nos primeiros seis meses após o congelamento/tabelamento dos preços
demandas, no entanto, já vinham sendo muito mais estimuladas pela J de fev/86. O recorde semestral anterior ocorreu entre jul/85 e dez/85,
intensificação da expansão monetária. Como os aumentos na quantida- quando a BM aumentou 155% e o M1, 1540Jo. De mar/86 a ago/86 a
de de moeda e crédito em circulação se tornaram disparadamente maio- Base Monetária bateu novo recorde aumentando 183% e o M1, 206%.
res que os aumentos na oferta dos bens e serviços disponíveis para ven- Os economistas responsáveis pela política monetária justificam que to-
da, a conseqüência da política governamental foi também uma dispara- do esse dinheiro foi 'fabricado' para 'remonetizar' a economia, pois

72 73
quando 'se estabilizasse o poder aquisitivo da moeda' as pessoas passa- preços e tarifas de estatais sabidamente deficitárias, o rombo só poderá
riam a desejar mais papel-moeda e depósitos à vista. Essa chamada re- ser fechado com mais inflamento monetário. Aliás, além dos comer-
monetização justificou a maior inflação da história brasileira que não ciantes, as estatais, mesmo as mais eficientes, são excelentes bodes ex-
se mostra claramente nos 'preços oficiais' (que não são preços de verda- piatórios pelas mazelas econômicas dos governos.
de, pois não são os de mercado) mas surge cada vez mais flagrante na Abusando da credibilidade do povo brasileiro no paternalismo go-
forma de desabastecimento, de escassez de bens e serviços, de filas e de vernamental e aproveitando a ignorância no campo da economia de
mercados negro e cinzento naqueles setores mais violentamente policia- nossa elite intelectual e da maioria de nossos empresários, os insucessos
dos e na forma de aumentos reais de preços nos setores que atuam em do 'plano cruzado' são então atribuídos aos agentes econômicos e não à
'low-profile' ou onde a força bruta da intervenção governamental ain- destruição da lei da oferta e da demanda que só o mercado livre pode
da não atingiu. (Sugiro ao leitor que veja à página 74 da VISÃO de 15- fazer funcionar. Os preços de mercado são os únicos sinais que permi-
10-86 os comentários sobre um importante livro de George Reisman tem numa sociedade livre conseguir um adequado equilíbrio entre oferta
que, entre muitas lições sobre o intervencionismo, demonstra que ares- e demanda. O homem até agora não descobriu nenhum método mais jus-
ponsabilidade pelo desaparecimento de produtos e pela escassez - re- to nem mais eficiente que seja, mesmo de perto, capaz de substituir esse
presentada por filas, mercado negro, etc. -cabe sempre à autoridade mecanismo impessoal de alocação dos recursos escassos da economia.
que decretou e impôs o controle de preços. E que, quando se abstém de Quanto maior for a intervenção no mercado objetivando controlar
vender por preços impostos pelo governo, o comerciante, além de estar- os preços, tanto mais errôneos e erráticos serão os sinais que chegam
se recusando a funcionar em condições de trabalho forçado, desenvolve aos produtores e aos consumidores. Os falsos sinais oficiais de preços
uma ação a favor do interesse público, no melhor sentido da 'baixos' dados aos produtores tendem a limitar a oferta; e os sinais de
expressão.) preços 'baixos' que chegam aos consumidores estimulam a demanda. O
O fato de a demanda ser muito alta - pois todos querem livrar-se resultado da violência intervencionista é inevitavelmente o aumento da
imediatamente de seus dinheiros - já é em si mesmo um sintoma de disparidade entre a oferta e a demanda. É o governo, portanto, que en-
que as pessoas 'sentem' a perda do poder aquisitivo da moeda pela in- gendra todas as falhas no abastecimento observadas quando há tabela-
flação escondida. Em vez de controlar a causa dessa diminuição do va- mento e/ou congelamento. E o mais seriamente atingido será sempre o
lor da unidade monetária a tecnocracia volta-se outra vez ao sintoma consumidor, que é o personagem mais importante da economia de mer-
do problema: insinua-se a aplicação de mais tributos, na fonte, para cado. Pode-se afirmar, então, que, além do descaminho ideológico e do
'desaquecer' a demanda. Mas o que realmente conduz à inflação conti- descalabro econômico, fica assim, também, caracterizado o embuste
nua incólume. Praticamente nada é feito para tirar o governo das costas político: os supostos beneficiários do 'plano' serão os que mais sofre-
dos que querem produzir ou para reduzir o ativismo governamental e rão no final das contas.
diminuir seus gastos. O déficit global do governo continua sendo muito
grande, mas ninguém sabe exatamente de que tamanho está o gigante. VISÃO, 15-10-86
Além de se ter transformado a questão orçamentária num problema de
'semântica econométrica', hoje no Brasil quase não dá mais para se reali-
zar qualquer cálculo econômico. Nos tempos da inflação aberta, era difí-
cil mas era possível. Agora é quase impossível, pois o mecanismo de pre-
ços do mercado foi desmantelado. Antes se criticava que a moeda não
era o cruzeiro mas sim a ORTN. Agora nem disso se dispõe. Só mesmo
puxando pela memória em termos dalguns preços em moeda estrangeira.
Entretanto, a mistificação dos controles chega a atingir níveis de es-
pantosa incongruência quando a autoridade age no sentido de impedir
a redução do próprio déficit governamental. Exemplos são os subsídios
ao leite e à carne e a proibição de atualização de tarifas e preços de em-
presas estatais. Ao reduzir o ICM do gado e complementar o preço do
leite, dinheiro terá que ser 'criado'. (No caso da carne, para compensar
as perdas da tributação, pelos Estados.) E, mantendo desatualizados

74
75
16. Dos crimes contra o Patrimônio tranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, e com o intuito de
obter para si ou para outrem indevida vantagem econômica, afazer, to-
O governo de uma sociedade livre é um governo de leis e não de ho- lerar que se faça ou deixar de fazer alguma coisa,. O objeto jurídico in-
mens. Este é um conceito antológico da filosofia política da liberdade. clui o patrimônio, a liberdade e a incolumidade pessoais e a ação penal
Mas numa sociedade livre, onde impera o ideal político do Estado de é também 'pública incondicionada'.
Direito, as normas de conduta só recebem a importante denominação Cabe neste ponto indagar sobre como seriam criminalmente enqua-
de leis se possuírem certos atributos: devem sempre ser gerais, conheci- drados os casos de inúmeras pessoas que vêm sofrendo sérias lesões pa-
das e certas, iguais para todos e aplicáveis a um número desconhecido trimoniais, constrangimentos para ceder vantagens econômicas a ou-
de ocasiões futuras. As leis de verdade proíbem em vez de autorizarem trem, restrições à sua liberdade, e danos à integridade física e moral,
determinados tipos de ação. O furto, a extorsão e o roubo são exemplos consumados mediante graves ameaças, impossibilitação de defesa, e
de conduta injusta proibida pelas leis do verdadeiro Estado de Direito. violência, tudo isso gerado pelo uso atual de pseudoleis baixadas ao
De outro lado, não são nem legais nem legítimos os atos de violação da longo do tempo por diferentes governantes.
propriedade, de imposição de sua transferência sem consentimento e de Embora as leis verdadeiras sejam de caráter proibitivo, não se pode
quebra de promessas contratuais, mesmo quando realizados com base pretender que elas simplesmente proíbam todas as ações danosas aos
em atos legislativos supostamente democráticos, tais como os que im- demais, procurando proteger todos os interesses, inclusive aqueles que
põem controles de preços e salários, estabelecem os chamados 'crimes tenham muita importância para determinada pessoa. Elas podem,
contra a economia popular' e os que autorizam a 'intervenção no domí- quando muito, proteger certas expectativas legítimas sensatas que tradi-
nio econômico' e certos 'tombamentos' de propriedades privadas para cionalmente fundamentam determinadas normas do direito e que pos-
fins preservacionistas. sam ser definidas por leis que não provoquem o desabamento do edifí-
O fato de serem essencialmente negativas, no sentido de normalmen- cio jurídico. É preciso ter sempre em boa conta que no Estado de Direi-
te não imporem obrigações positivas a ninguém (a menos que alguém as to o objetivo é a salvaguarda da liberdade individual na livre esfera de
tenha contraído por suas próprias ações ou em casos legítimos excep- ação de cada pessoa. Assim, o 'ato de comprar ou não de uma determi-
cionalíssimos), é uma característica das leis de verdade cujo objetivo é o nada pessoa e o de prestar-lhe ou não um serviço fazem parte essencial
de proteger as esferas de ação pessoal em cujo âmbito cada indivíduo é de nossa liberdade; mas, se decidimos não comprar de um ou prestar
livre para agir como melhor lhe convier. É daí que vem a conhecida ex- serviço a outro, podemos causar grande dano se os envolvidos conta-
pressão de que 'numa sociedade aberta todos são livres para fazer tudo vam com nossa freguesia ou com nossos serviços; e, ao removermos
que a lei não proíba e numa sociedade fechada só se pode fazer o que a uma árvore de nosso jardim ou ao alterarmos a fachada de nossa casa,
lei permitir'. Na sociedade livre as leis são, pois, quase sempre, normas podemos privar nosso vizinho de algo que tem para ele grande valor
que estabelecem proibições de conduta injusta. E o Direito Privado en- sentimental'. Portanto, para assegurar a todos a mesma liberdade de
globa as normas gerais de conduta justa individual que cobrem as rela- decisão, as leis de verdade não podem 'proporcionar igual segurança
ções das pessoas entre si e entre as pessoas e o Estado. Incluem-se aqui com relação ao que os outros farão, a menos que estes tenham consenti-
as normas que cominam os crimes contra o patrimônio, tais como o do voluntariamente, em função de seus próprios desígnios, em agir de
furto, o roubo e a extorsão. O artigo 155 da lei penal brasileira trata do uma determinada maneira' (*).
furto dizendo que é proibido "subtrair, para si ou para outrem, coisa Ao delimitarem os domínios protegidos de cada um, as leis de verda-
alheia móvel,. O objeto jurídico do furto é 'a propriedade, a posse e a de não atribuem diretamente coisas específicas a determinadas pessoas
detenção da coisa móvel'. A ação penal é, normalmente, 'pública in- mas tornam possível verificar, a partir de fatos verificáveis, a quem per-
condicionada', isto é, o governo deve buscar o criminoso independente- tencem coisas específicas como, por exemplo, um boi, um pacote de
macarrão, um apartamento, um automóvel, uma geladeira ou uma área
mente de representação. O artigo 157 proíbe o roubo, que consiste em
de terra. As chamadas 'leis' de que nos tempos atuais nossos governan-
"subtrair coisa móvel alheia, para si ou para outrem, mediante grave
tes lançam mão para justificar a desapropriação de gado a preços que
ameaça ou violência a pessoa, ou depois de havê-la, por qualquer meio,
eles mesmos impõem; o estabelecimento e/ou congelamento de alu-
reduzido à impossibilidade de resistência,. O objeto jurídico é comple-
guéis, tarifas de serviços, taxas escolares e honorários; a fixação e/ou
xo, 'incluindo o patrimônio, posse, liberdade individual e integridade
física'. E a ação penal é também 'pública incondicionada'. A extorsão,
cominada no artigo 158 do Código Penal brasileiro, consiste em "cons- (*) "Direito, Legislação e Liberdade", F. A. Hayek, Ed. Visão, 1985, Vol. IL pág. 48.

76 77
I
.!
congelamento de grande parte dos salários; o tabelamento e/ou conge-
lamento dos preços de bens e serviços; e o tombamento (congelamento) damentais do Direito Privado: 'a liberdade de contrato, a inviolabilida-
arbitrário de número crescente de propriedades a título de defesa do pa- de da propriedade e a obrigação de compensar o outro pelo dano pro-

r
trimônio histórico, artístico, etc., não atendem nem a uma mínima par- duzido por culpa própria'.

t
te dos atributos que devem possuir as leis de verdade. As leis de verdade servem, simplesmente, "para evitar conflito e fa-
Três são os exemplos-símbolo desses absurdos jurídicos mais em vo- cilitar a cooperação na vida em sociedade mediante a eliminação de cer-
ga: 1. a pseudolei penal n? 1.521, de 26-12-51, que, nas suas disposições tas fontes de incerteza. Mas, sendo seu objetivo (já que falamos das leis
a respeito dos chamados 'crimes contra a economia popular', destrói o de uma sociedade livre) permitir a cada indivíduo agir segundo seus
próprio objetivo do Estado de Direito que é a salvaguarda da liberdade próprios planos e decisões, não podem eliminar de todo a incerteza. Só
individual. E não passa pela prova da generalização ou universalização I podem gerar certeza na medida em que protegem os meios contra a in-
a que todas as leis de verdade precisam ser submetidas para que não se terferência de outros, e desse modo permitem ao indivíduo considerar
promovam a infecção e degeneração de todo o sistema jurídico. Além que esses meios estão à sua disposição. Mas não lhe podem assegurar
de todo o arbítrio, discricionariedade e vaguidade contidos nos incisos
dessa suposta lei, ela trata com tamanha amplitude e incerteza os 'ser-
) sucesso no uso dos mesmos, nem mesmo quando este depende somente
de fatos materiais, nem quando depende das ações previstas de outros.
viços e mercadorias essenciais à subsistência' que constituem o seu ob- Não podem, por exemplo, garantir-lhe que conseguirá vender, ao preço
jeto, que qualquer produto ou serviço incluído nas atividades econômi- esperado, o que tem a oferecer, nem comprar o que quer"(***). Isto
cas do homem passa a ser classificado de 'essencial' (a ponto de se po- quer dizer que - numa sociedade livre - não é lei de verdade o ato le-
der enquadrar como criminoso nessa pseudolei, favorita do atual go- gislativo que pretenda garantir a qualquer cidadão-consumidor ou ao
verno 'democrático', e ser submetido à execração pública, o indivíduo próprio governo o 'direito' de adquirir por preços 'legais', 'oficiais',
que tiver em sua loja um pedaço de sabão com peso abaixo do 'oficial' 'tabelados' e/ou 'congelados' os produtos e serviços pertencentes a ou-
ou de se configurar o uísque ou a coca-cola como gêneros de primeira I tras pessoas.
-.. Então, como ficamos? Aquele que pensa que tem 'direito' de sub-
necessidade- sem exagero: basta ler os incisos da 'lei' e certos 'comen-
trair a propriedade de alguém, ou de constranger alguém para obter in-
tários' disponíveis referentes à mesma); 2. a 'Lei Delegada 4', de 26-9-
62, e seu co-irmão, o 'Decreto-lei 2', de 14-1-66, que autorizam o gover-
) devida vantagem econômica, está cometendo crime contra o patrimô-
no a intervir de todos os modos e meios na vida dos agentes econômi- l nio? Ou a responsabilidade pelo roubo ou pela extorsão seria de quem
criou a violência e/ou grave ameaça? S.M.J., são considerações de
cos, possuem os mesmos defeitos fundamentais e, além de tudo, permi-
tem a delegação em cascata de poderes praticamente ilimitados que nin- quem acredita na utopia da liberdade com um governo de leis de verda-
guém deveria possuir, nem mesmo o Presidente da República; e 3. os
J de e não de homens. Mesmo que seja um governo de homens bons e ca-
decretos-leis 2.283 (28-2-86) e 2.284 (**) (10-3-86) que geraram famoso o ridosos - pois eles geralmente gostam muito de distribuir o que perten-
ce aos outros e não se importam em cometer infrações na liberdade e na
'pacote da inflação zero', que sequer tocou na verdadeira inflação mas
que (conforme escreveu conhecido advogado paulista em artigo na propriedade da minoria que mais produz. E vendem até a alma pro dia-
"Folha de S. Paulo" de 13-3-86) "no capítulo dos contratos, e, portan- bo para não perder uma eleição. O Direito e o progresso do país que se
to, da autonomia da vontade das partes de locar, vender e comprar, e danem.
prestar serviços, foi uma intervenção plena do Estado ao estabelecer, VISÃO, 22-10-86
em todos eles, preços congelados, tabelados, desindexados, conforme
sejam tais ajustes à vista ou a prazo. O que importa é que o decreto-lei
de 28 de fevereiro feriu, com legitimidade inconteste, o ato jurídico per-
feito consubstanciado nos contratos anteriormente firmados". Há mui-
to mais nesse artigo, mas basta isso para mostrar o que significa a per-
versa postura do positivismo jurídico, contrária aos três elementos fun-

(**)Este Decreto-lei inclusive 'virou' também lei p'enal e 'dicionário jurfdico' ao tornar
sinônimas as palavras 'tabelamento' e 'congelamento', para poder melhor enquadrar os
'criminosos do comércio' pela pseudolei 1.521. (***) "lb. "., pág. 48.

78 79
i
\
17. Que Deus ilumine os professores no. Surgem filas, racionamento e falta de produtos e serviços. Os que
estão no poder logo descobrem que o controle de preços, salários, alu-
que nos governam guéis, etc. constitui uma poderosa arma para conseguir a adesão de gru-
pos de pressão organizados, ajudar os amigos e punir a oposição. Mul-
Aproxima-se o dia das eleições de novembro, o povo não está tão tiplicam-se os negócios que funcionam à margem do regime coercitivo
eufórico como nos idos de março/abril e os professores-no-poder e seus de tabelamento/congelamento, passando a existir uma espécie de mer-
amigos 'ad-hoc' já admitem que reformas virão no Plano. Mas não há ~1 cado livre à parte - que pode inclusive funcionar com preços mais al-
indícios de que nossa vida eco~ômica seja des~~brulhada .. Parece que, , I tos que num mercado sem peias. Tudo - bens, serviços e moradia -
infelizmente a falta de conhecimentos e de pratica a respeito da verda- l'
., fica mais diflcil de conseguir. Mesmo que a produção num dado setor
deira econo~ia moderna, sobretudo no que se refere à causa e ef~itos nlo caia, ou mesmo suba, há uma aparente 'escassez' crescente.
da inflação, continuará predominando, com o respaldo de teonas e I
Os falsos sinais oficiais de preços produzem uma cada vez maior dis-

'~
ideologias caducas, supostamente heterodoxas. paridade entre a oferta e a demanda. Mas em geral, quando chegam aos
Seja porque nunca aprenderam o que é a econ?mia de mercad~;, ou consumidores os sinais de 'preços baixos' dados pelo tabelamento, a
porque, embora dela já tenham agora noções, te~ ~e~o de, d~txa-la demanda é estimulada e cresce. (Surge o "boom", parecido com a eu-
funcionar; ou então porque têm motivos de preferencta tdeologtca s~­ foria de quando começa a embriaguez - beber é bom enquanto se be-
cialista para acabar de vez com a incipiente ordem de mercado no pats, be; a ressaca vem depois.) A tendência dos falsos sinais oficiais de 'pre-
o fato é que os professores e seus chefes, de plantão no 'controle' de ços baixos' dados aos produtores é a de limitar a oferta provocando o
nossa economia, que reembrulharam a já sofrida vida, br~silei~·a co~ o desabastecimento. E essa situação é péssima para todo o país porque
papel furta-cor do paradoxal 'pacote da inflação zero , nao vao detxar ela só pode conduzir no final das contas à quebra da produção, ao de-
voltar plenamente a lei da oferta e da demanda que re~ogaram, nem semprego, à desordem institucional e à total desintegração da divisão
vão estimular o processo de competição do mercado e mmto menos pe~­ do trabalho. (Que começa com a dessincronização das atividades dos
mitirão o funcionamento desimpedido do mecanismo de preços que si- chamados setores primário, secundário e terciário da economia que
naliza o mercado. É o que se pode concluir observando os balões de en- compõem cada ramo de produção - observe-se p. ex. o caso do ramo
saio sobre 'mudanças' que surgem nesta véspera eleitoral quando cres- automobilístico com as crescentes dificuldades entre os setores de maté-
cem as insatisfações. rias-primas, autopeças, montadoras e distribuidoras.) ,
Mas o Plano apenas começa a se mostrar inteiro, mesmo para a As pessoas geralmente acreditam que, se os preços param de subir,
maioria da gente esclarecida. São poucas as pessoas que já enxergam a acabou-se o mal da inflação. Este equívoco se deve ao fato, amplamen-
incrível nudez do cruzado: pouco mais que o arbítrio de preços e de te reconhecido na verdadeira economia moderna, de que num mercado
câmbio. O 'pouco mais' foi a quase eliminação 'legal' da correção ,mo- livre a escalada geral dos preços é o sinal mais conspícuo da existência
netária· mas isto foi feito sem simultaneamente .acabar com a celere
desval~rização da moeda através do surdo inflacionamento da oferta
'i de um excesso de oferta de dinheiro para gastar em relação à oferta de
bens e serviços compráveis. Cabe entretanto ressaltar que, embora a in-
monetária. . flação aberta (que se manifesta na forma dessa contínua elevação dos
Em lugar de abandonar o grave erro do controle de preços, deixando
livre o mercado e atacando o fulcro da infl_ação brasileira que é a espan- preços) seja um mal terrfvel, ela é um mal menor que uma inflação es-
tosa fabricação de dinheiros-sem-lastro para cobrir déficits governa- condida, chamada também de 'inflação reprimida'. Esta provoca efei-
mentais, tudo indica, então, que vai continuar, em essência, a violenta tos malignos retardados de ressaca piores que os da inflação sinalizada
pelos preços. E, quanto mais tempo o governo teima em manter a infla-
intervenção no mercado. Isso é ruim para o go~erno e pior para t~~os
nós. Para o governo é ruim porque continuar simulando combate a m- '4 ção escondida, tanto mais difícil se torna a remoção dos controles im-
postos arbitrariamente à economia. No regime de mercado sob inter-
flação pelo tabelamento e/ou congelamento é o mesmo que segurar
uma onça pelo rabo - ela acaba devorando o 'cruzado' que se mete I
'I
venção, a alocação dos limitados recursos da economia é inicialmente
determinada pela estrutura de tabelamento/congelamento dos preços
nessa expedição. É pior para nós todos porque, embora muitos pre~o_s
permaneçam aparentemente 'estáveis' por alg~m tempo, o v~lor aqms!- relativos qlle já vinham sendo distorcidos pela inflação passada. Com o
tivo da moeda vai sendo derrubado pela persistente expansao maneta- passar do tempo esses preços relativos congelados não mais poderão si-
ria, já que a verdadeira inflação continua sendo produzida pelo gover- nalizar os ajustes no rumo da produção, em função das condições e ne-

80
l cessidades que seriam ditadas pelo progresso. Por isso, a pretensão do

j 81
controle da inflação pelo controle de preços sempre conduz a um regi- 18. A inflação nas prateleiras
me de cada vez maior intervenção em todos os aspectos da vida social
que não fica apenas no estabelecimento de regulamentos, licenciamen- Todas as pessoas que têm acesso a informações verídicas sobre nossa
tos, racionamentos, permissões e rígidos controles sobre a distribuição economia já deveriam a esta altura saber que o 'pacote da inflação ze-
de bens, serviços e recursos de financiamento. A liberdade de movimen- ro' (também chamado de 'Plano Cruzado' ou de 'Plano de Estabiliza-
tação elas pessoas, por exemplo, passa a ser limitada pela restrição cam- ção'), dos idos de 28 de fevereiro, simplesmente não existe nem como
bial, que se transforma num problema policial, como nos países totali- medida para acabar de fato com a inflação que vinha galopando nem
tários. É óbvio que a direção de toda a produção passa a ser também como ação governamental para propiciar o deslanche da economia na-
crescentemente determinada por um planejamento governamental cen- •T cional. Não existe nem para dar origem a uma moeda decente para nos-
tralizado. E, quanto maior o governo, maior será a necessidade de fa- so país e nem para viabilizar um processo de elevação do baixíssimo pa-
bricar dinheiro novo, cujo controle será cada vez mais difícil sem o ter- drão de vida da gente brasileira. E essas pessoas deveriam agora, no mí-
mómetro dos preços do mercado. nimo, desconfiar de quaisquer novos pacotes para corrigir os supostos
Se o governo continuar teimando em querer substituir a fantástica e 'desvios' (tais como o superaquecimento da demanda e a falta de pou-
complexa cibernética do mercado por ajustes tecnocráticos dos preços pança para novos investimentos produtivos) que vêm sendo tão clara-
relativos, o fim será um regime ditatorial. Socialista. Numa economia mente observados nestes mais de oito meses de imposição do tal plano
de mercado os preços dos bens, serviços, salários, juros e aluguéis são heterodoxo. A verdade, no entanto, é que só poucas pessoas já perce-
em número imenso. Milhões deles e não apenas esses milhares que apa- bem que nada mais existe nesse plano do que um processo policial de
recem nas tabelas oficiais. Mesmo que fossem apenas alguns milhares, controle apenas do mais conspícuo efeito da inflação. O 'Plano' não
· toda pessoa esclarecida na economia de mercado sabe que existem deze- passa de uma tentativa de deter a contínua escalada dos preços dos
nas de bilhões ou trilhões de inter-relações entre esses preços, o que tor- bens, serviços, salários e aluguéis, pela imposição de um regime de ta-
na o problema infinitamente complexo. Só o mercado livre consegue re- belamento e/ou congelamento desses preços. A inflação propriamente
solver essa equação e estabelecer o equilíbrio mais justo possível entre dita - que é um estado de contínua desvalorização do poder aquisitivo
oferta e demanda. E daí pra diante noutros aspectos da vida em socie- da moeda pela expansão monetária excessiva em relação ao crescimento
dade. Qualquer tentativa de tentar 'corrigir' ou substituir o mercado da produção - não foi sequer tocada. Ela foi somente escamoteada pe-
pela macroeconomancia monetarista-keynesiano-estruturalista fatal- la remoção do termómetro dos preços do corpo económico enfermo. E
mente falhará. E, se um governo pretender resolver à força esse proble- mais: após o tabelamento/congelamento, a inflação foi intensificada.
ma insolúvel, o resultado será parecido ao que se conseguiu nos países ~!
O resultado são as distorções mais óbvias na vida económica que mes-
totalitários de que todos já ouviram falar. Será o nivelamento por bai- mo os leigos conseguem notar e muitas outras mais graves, diagnosticá-
xo; muito aquém de nosso atual padrão médio de vida. Na tentativa de veis pelos que realmente conhecem a economia política, que se refleti-
solução dessa 'matemática econométrica', Deus não será brasileiro. rão com ·crescente malignidade na medida em que se prossiga impedin-
Mas, antes de chegarmos nesse ponto, espero que Ele nos ajude, ilumi- do o livre funcionamento do mercado e se continue produzindo infla-
nando os professores que nos governam. ção e simultâneo controle de preços.
A maioria das pessoas não entende que a escalada dos preços não é a
VISÃO, 12-11-86 inflação. Não se pode, porém, culpar o homem comum por não enten-
der que a inflação é o aumento excessivo da oferta de dinheiro. Num
país como o nosso, as informações sistematizadas sobre a expansão
monetária são de muito difícil acesso para a quase totalidade dos cida-
dãos. As pessoas acreditam que a escalada geral e contínua dos preços
se deve à atividade especulativa dos agentes económicos (comerciantes,
banqueiros, locadores, sindicatos, etc.) e à ação de elementos da natu-
reza, como a meteorologia. No entanto, a verdade é que, embora esses
fatores possam provocar variações de preços, numa economia de mer-
cado eles não conduzem a uma persistente majoração dos preços em ge-
ral. Quando o mercado funciona livremente, a persistente elevação ge-

I
82 83

I
ral de preços (exceto em casos muito especiais) somente se dará por cau- acumulado até esse mês. (Como se sabe, o montante do PIB é medido
sa da presença de uma também persistente expansão monetária não na mesma unidade que o dinheiro em circulação.) A prateleira inferior
compensada por um aumento equivalente da produção. Existe, portan- e a parte de baixo da estante mostram como variaram o estoque de di-
to, uma relação de dependência entre preços e quantidades de dinheiro nheiro e o de produtos ao longo dos anos até outubro 86. O exame deti-
e de produtos que mostra insofismavelmente que as mudanças gerais de do dessa figura é estonteante. Nos seis anos de dez/73 a dez/79 o gover-
preços são conseqüências, mais cedo ou mais tarde, de mudanças no es- no aumentou em nove vezes (7880Jo) o Meio de Pagamento Ml. A pra-
toque monetário por unidade de produto. · · • teleira passou a ter nove livros contendo um estoque monetário de 835
É preciso neste ponto avisar o leitor que quando falamos aqui numa milhões de cruzados. Enquanto isso, o PIB cresceu comparativamente
relação de dependência entre preço e dinheiro não estamos pretendendo pouco: apenas 1,5 vez, ou seja, 50%. Cerca de cinco anos depois, em
enquadrar-nos rigidamente na estrita, ou mecânica, 'teoria quantitati- fev/85, já eram 299livros na prateleira, pois houve um inflacionamen-
va' da moeda do chamado monetarismo. Na moderna economia de to de 29.823% nesse meio de pagamento, ao passo que a produção do
mercado (escola pouca conhecida em nosso país, desenvolvida por eco- país tinha crescido só 63% desde dez/73. Crescimento escasso da pro-
nomistas austríacos desde o fim do século passado a partir da economia dução nestes cinco anos. No primeiro ano da Nova República, de
clássica) o valor do dinheiro é determinado não só pela sua quantidade fev/85 a fev/86 (o pacote foi decretado no fim deste mês!), o governo
- nem mesmo apenas pela expectativa futura de sua quantidade - bateu recorde na fabricação de dinheiro, de modo que a prateleira pas-
mas também pela sua 'qualidade'. Os monetaristas porém estão sem sou a conter 1.240 livros, correspondente a um inflacionamento de
dúvida corretos em afirmar que em geral, e num certo prazo, o mais po- 123.927% desde dez/73. Mas o PIB só acumulou 77% de crescimento
deroso fator na determinação do poder aquisitivo da unidade monetá- nesses doze ano's e dois meses, como mostram os números e símbolos
ria é a quantidade de dinheiro. Portanto, embora sua aplicação não se- do desenho.
ja tão mecânica como os monetaristas pretendem, a verdade é que a 1 Quando aumenta a oferta de meios de pagamento, as pessoas pas-
teoria quantitativa contém uma verdade insofismável: as variações na
quantidade de dinheiro são um fator fundamental na determinação do ~\ sam a dispor de mais dinheiro à procura de bens e serviços vendáveis.
Se a oferta destes produtos também não aumenta (ou não aumenta tan-
valor de troca da unidade monetária. Isto quer dizer que o que é válido to quanto aumentou a oferta de dinheiro novo, como aconteceu nesse
para outros produtos é também válido para o dinheiro. O valor de mer-
cado do dinheiro, da mesma forma que o valor de outros bens e servi-
I período que examinamos), os preços dos bens e serviços tenderão a su-
bir. Isto se dá porque, quando há mais dinheiro procurando a mesma
ços em geral, é determinado pela lei da oferta e demanda. Noutras pala- quantidade de produtos, cada unidade monetária vale menos. Assim,
vras: no seio do mercado atuam não só relações puramente objetivas, ao crescer o estoque de cruzados, se desvaloriza o poder aquisitivo de
quantitativas, mas, também, o tempo todo, valorações subjetivas dos cada cruzado. Portanto, quando o governo inflaciona a massa monetá-
indivíduos que interagem no mercado. (Os macroeconomistas keynesia- ria criando mais e mais moeda e crédito, dá-se a majoração geral dos
no-estruturalistas detestam a economia de mercado devido a este aspec- preços não porque a produção é mais escassa que antes e também não
to (microeconômico) de subjetivismo e causação individual na forma- necessariamente porque a demanda física aumentou e nem porque os
ção dos preços que os impede de usar a matemática e a estatística para custos reais subiram, mas porque houve excessiva expansão monetária.
tentar simular e prognosticar todos os fenômentos econômicos. Estes Sendo o dinheiro nada mais que um instrumento de troca sujeito (como
são problemas que somente o processo impessoal da cibernética do todas as mercadorias) ao subjetivismo e à ação individual no mercado,
mercado consegue resolver.) sempre que houver aumentos excessivos de dinheiro em suas várias for-
A escalada dos preços em função do inflamento monetário e do cres- mas em relação aos aumentos de produção, os preços mais cedo ou
cimento da oferta de bens e serviços se dá, pois, exatamente como se a mais tarde subirão, isto é, serão necessárias mais unidades monetárias
moeda fosse uma mercadoria negociada no mercado. Dê agora uma para comprar o mesmo tipo de produto ou serviço.
olhada no desenho da estante onde são mostradas, como exemplos, as Espero que a imagem das prateleiras desvende para muitos leitores o
quantidades de dinheiro na forma M1 (papel-moeda + depósitos à vis- mistério da terrível escalada de preços que sempre nos afligiu. Mas
ta) que foram sendo acrescidas à economia a partir de dezembro de quem imaginou que a inflação acabou em fev /86, quando passou a vi-
1973. A prateleira superior da estante mostra um livro que representa o gero 'pacote da inflação zero', se engana. A partir de março 86 a prate-
estoque de 94 milhões de cruzados em dez/73. Nessa prateleira vê-se leira recebeu muito dinheiro e até out/86 já possuía 4.228 livros. De
também um símbolo que representa o Produto Interno Bruto (PIB) dez/73 a out/86 a produção brasileira, isto é, grosso modo, a quantida-

84 85
' !n de total de bens disponíveis no mercado para ser eventualmente trocada
- ~-----------------------------
por dinheiro aumentou menos que duas vezes (1,85 vez, ou 850fo), en-
"
~ I. quanto a quantidade total de dinheiro aumentou 4.228 vezes
~ ~ (422.6700/o) nesse mesmo período. Sugiro que o leitor compare a quan-
o
tidade de 4.228 livros necessária para conter todo o dinheiro Ml fabri-

--~i----------------------
cado até out/86 com o valor do PIB acumulado nesses doze anos e dez
meses representado por menos que dois livros! O crescimento do PIB
pode também ser observado e comparado por meio dos símbolos pró-

' ~~ ~ ~
~ prios mostrados no desenho.
No entanto, se além de inflacionar a oferta de dinheiro o governo
impede (como vem fazendo desde a implantação do Plano Cruzado) a
~~~-- ~-----------------
livre operação do mecanismo de preços do mercado, a situação fica
\'m:t=~ ----~t---------z ~ muito mais grave. Basta dizer que, mesmo se não houvesse uma infla-
ção subjacente significativa, o controle global dos preços tornaria im-
possível a existência de um razoável equilíbrio entre oferta e demanda.
~ A experiência de milhares de anos em países e regimes os mais diversos
demonstra cabalmente essa dura realidade. A inflação precisa ser com-
batida. Acabando com a fabricação de dinheiro sem lastro para atender
a políticas governamentais. Mas a inflação escamoteada é muito pior
para o país que uma inflação aberta. Se a inflação aberta causa sérias
distorções na vida econômica, a inflação escondida conduz à destruição
de toda a economia e da própria liberdade. Dizer-se que o tratamento
introduzido pelo Plano já trouxe benefícios para os mais pobres é um
equívoco, a não ser que se pretenda mantê-los permanentemente no
baixo nível em que se encontram. A intervenção violenta no mercado
como se fez aqui é e será sempre um falso remédio; que só atenua par-
cialmente e temporariamente o efeito de um mal sem sequer tocar na
causa fundamental da doença que produz esse mesmo mal.
VISÃO, 26-11-86

;
i

86 87
19. As críticas e os aplausos ao Cruzado II patronos do pacote e seus seguidores afirmavam que não ocorreria re-
cessão, pois no 'plano heterodoxo' só haveria crescimento econômico,
Todos sabem que o pacote de medidas chamado Cruzado II, apre- pleno emprego, salários crescentes e, ao mesmo tempo, preços imutá-
sentado à nação apenas seis dias após as eleições de 15 de novembro, veis! À medida que as inevitáveis conseqüências desastrosas do plano
não foi recebido com as mesmas manifestações de entusiasmo que se se- (escassez, desabastecimento, mercado subterrâneo, crescimento incon-
guiram ao 'pacote da inflação zero' (agora Cruzado I) de 28 de feverei- trolável dos preços e salários, '/obby tabelatório', desmantelamento do
ro. A popularidade do presidente e seus ministros da área econômica, sistema produtivo, etc.) foram surgindo, começaram as explicações de
que estava nas nuvens, caiu abruptamente. Os políticos situacionistas que faltavam ajustes, mais fiscalização do próprio consumidor e mais
que ganharam votos fazendo campanha com base numa suposta estabi- intervenção do governo. Era preciso, diziam os economistas de dentro e
lidade econômica sem inflação voltaram-se contra seus próprios aliados de fora do governo, conter a demanda e seu excessivo crescimento. Si-
tecnocratas logo que as reações negativas se generalizaram. E quase to- multaneamente saudavam a milagrosa, instantânea e indolor 'redistri-
dos os economistas-de-fora-do-governo (das várias colorações tecno- buição' da renda que possibilitou entronizar no mercado consumidor
cráticas), que vinham propondo 'medidas corretivas' equivalentes às algumas dezenas de milhões de brasileiros; e isso precisaria ser preser-
que foram finalmente adotadas pelos seus colegas governantes, torna- vado ao mesmo tempo que se viesse a deter a demanda. O crescimento
ram-se críticos acerbos do novo pacote. No âmbito empresarial somen- econômico, que há poucas semanas era celebrado em cantos e versos
te os dirigentes das federações de indústrias, contumazes intervencio- como o grande feito do plano, passou a ser considerado como um fan-
nistas, se postaram ainda favoráveis ao Cruzado original e ao novo. Se tasma perigoso. O resultado foi o plano II com muitos decretos de au-
bem que fosse quase unânime a popularidade do Cruzado no seu início mento nas tabelas de preços de determinadas mercadorias e tarifas (e da
e que desde então venha sendo crescente sua impopularidade, a espan- tributação), pondo completamente a nu perante o público o fato de que
tosa realidade é que pouca gente, inclusive leigos e doutores, se aperce- não existia o milagre do Cruzado estável.
beu até o momento que a verdadeira e única inflação continua invicta. A reação de decepção generalizada, principalmente da classe média,
Isto quer dizer que, para a maioria das pessoas, os aplausos de ontem e foi o estopim para que os políticos logo reagissem, lavando as mãos das
as críticas de hoje se referem tão-somente aos efeitos mais sentidos da partes do novo pacote que lhes pareciam 'impopulares'. E passaram a
inflação e não ao seu tratamento e cura propriamente ditos. O plano I, criticar o uso do decreto-lei e a falta de diálogo dos tecnocratas com os
que se tornou tão popular por congelar os preços, somente fez escamo- recém-ungidos pelo voto. No momento do sucesso político inicial todos
teá-la. E desencadeou virulenta desordem no corpo econômico nacio- os políticos trataram de se promover com o Cruzado, a despeito de
nal. E o plano II, conquanto aparentemente impopular, permanece no também ter sido produzido às escondidas e lançado por decreto-lei. E
mesmo rumo, pois continua renegando a economia de mercado, única durante a recente campanha eleitoral os candidatos de todas as facções,
saída para as dificuldades em que nos encontramos. com mui raras exceções, apelaram insistentemente para as maravilhas
Dizem que o público reagiu mal às recentes medidas devido ao mo- do pacote, que supunham já ter 'daúo certo', embora também repetis-
mento de sua imposição, logo após as eleições, e ao esquema improvisa- sem o refrão dos economistas de que eram necessárias 'medidas correti-
do de comunicação, julgado deficiente para uma adequada mobilização vas' para conter a demanda. Salvo um ou dois casos excepcionais, eles
popular. Mas não são esses os motivos primordiais da impopularidade. não ousaram criticar a quebra da liberdade no mercado. Mas isso tudo
Houve sem dúvida uma traição indesculpável ao eleitorado mas qual- não é de se estranhar. Conforme já escrevi anteriormente, os políticos
quer pessoa que esteja a par do tecnocratismo demagógico que domina partidaristas "são .em geral pessoas pragmáticas, preocupadas quase
o país saberia que jamais seriam tomadas, meses antes das eleições, me- que somente com casos específicos e concretos. Eles tratam do que jul-
didas tidas como 'amargas' pelos economistas. E não creio que um 'tra- gam ser a arte do possível e são por isso praticamente desprovidos de
balho' melhor de comunicação teria ajudado no sentido de conseguir o originalidade quanto a novas idéias e princípios gerais. Para serem
aplauso a medidas que frustraram a todos os crentes. É que o povo to- bem-sucedidos, eles buscam descobrir quais são as opiniões majoritá-
do acreditou na propaganda de que a 'inflação' tinha acabado no dia rias das 'bases', para se manterem no contexto das idéias aceitas por um
primeiro de março, após o pacote do dia anterior. O povo foi tomado I maior número possível de eleitores. Eles têm de pensar e falar de modo
de exaltação e arrebatamento extraordinário por aqueles que pareciam convencional e de estabelecer seus programas partidários a partir de
estar sob inspiração divina e profetizaram uma nova era de preços fixos idéias que lhes pareçam ser comuns à maioric. do povo. É quase impos-
e progresso. Todos acreditaram no milagre instantâneo do Cruzado. Os sível, portanto, que um político partidarista seja simultaneamente um

88
J 89

1
~ivulgador de novas idéias e um campeão em popularidade eleitoral".
do livre, nada há que se possa chamar de preços. Em última instância,
E um mal que as coisas sejam geralmente assim. Em lugar de apenas
são os juízos de valor dos produtores e dos consumidores que determi-
sintonizar a aprovação ruidosa, o político deveria também lembrar-se
nam os preços. Eles resultam da valoração subjetiva que faz uma pes-
de que a base da pirâmide social, constituída de gente que tem menos
soa preferir um produto e não outro. Os preços são, pois, engendrados
preparo e está mais preocupada com a sobrevivência, não desperta no-
pelo subjetivismo e a ação individual num mecanismo de interação des-
vas idéias, inclusive porque não tem interesse nem tempo de examinar
sas valorações por parte de todas as pessoas que atuam no mercado.
as complexidades da vida social e apenas reivindica soluções para os
Cada indivíduo, comprando ou deixando de comprar e vendendo ou
problemas imediatos, do dia. No caso em pauta, é imperdoável que os
deixando de vender, contribui com sua parcela na formação dos preços
políticos profissionais não procurem aprimorar seus conhecimentos do mercado. Ao tabelar I congelar os preços, os economistas destroem
político-econômicos e se deixem apenas conduzir por reações emocio-
esse mecanismo e tornam impossível a contribuição espontânea e inteli-
nais da massa ou pela voz dos economistas em voga. gente de milhares de produtores e milhões de consumidores, num ver-
Mais pragmáticos que os políticos partidaristas, só mesmo muitos
dadeiro processo cibernético que é o único capaz de realizar o melhor
dos empresários industriais. Já que seu objetivo não é conseguir o voto
equilíbrio possível entre oferta e demanda.
e nem a sabedoria política mas o sucesso nos negócios, eles muitas vezes O plano II continua desmantelando os resíduos do incipiente merca-
se esquecem de que a atividade empreendedorial e a vida empresarial
do brasileiro. E não ataca a raiz da inflação, que é a expansão monetá-
deixam de existir se for destruída a ordem de mercado. Basta que uma ria excessiva em relação ao crescimento da produção. Os resultados
política governamental traga algum benefício imediato aos negócios pa- pretendidos infelizmente não serão atingidos. As medidas ou serão inó-
ra que abram mão de certos princípios que a curto prazo podem ser vi- cuas para uma mudança de rumo ou introduzirão crescentes distorções
tais para a própria existência da empresa privada. Não faz nenhum sen- na economia. Se as pessoas responsáveis continuarem confundindo
tido, por exemplo, que um empresário apóie o controle de preços. A causas com efeitos e também apenas procurarem o fácil aplauso popu-
qualquer título. No entanto, como "800Jo das indústrias foram extre- lar, novos pacotes se sucederão, com crescentes prejuízos para o país e
mamente beneficiadas" pelo aquecimento artificial da demanda provo- para a liberdade de cada cidadão. É preciso, pois, parar-já o inflamento
cado pelo plano I, as associações representativas da indústria apóiam a monetário e instituir-já o descongelamento dos preços. A liberação to-
continuação do congelamento do mercado. Isso mostra como o conser- tal do mercado e o fim da persistente desvalorização da moeda serão
vadorismo desses empresários - que possui facetas de paternalismo e muito menos traumáticos a curto prazo e extremamente mais benéficos
intervencionismo - parece preferir os preços manipulados pelos tecno- a médio e longo prazos para todas as camadas do povo brasileiro.
cratas à livre concorrência do mercado. Como se o dirigismo estatal
protegesse os que já estão bem implantados na economia e estabelecesse VISÃO, 3-12-86
barreiras para que não penetrem novos competidores.
Embora os economistas-de-fora-do-governo estejam agora critican-
do seus colegas governistas pelas recentes medidas, não se dá aqui a
mesma incoerência demonstrada pelos políticos e empresários. Os eco-
nomistas brasileiros têm sido, na sua quase totalidade, consistentemen-
te contrários à economia de mercado. Eles são em verdade mestres na
matemática e estatística e só acreditam nas 'políticas monetárias e fis-
cais' que impõem para dirigir todos os aspectos da vida econômica de
todas as pessoas. São infindáveis em quantidade e diversidade os paco-
tes que podem ser gerados por essas políticas. Que geralmente aparen-
tam uma precisão matemática mas que em verdade são o resultado do
puro arbítrio tecnocrático. Os resultados do funcionamento do merca-
do, os preços, simplesmente não podem ser calculados. Ninguém ja-
mais conseguirá construir preços sintéticos, como pretendem os órgãos
de controle de preços. Os preços são formados no seio do mercado e re-
presentam a própria essência da economia de mercado. Fora do merca-

90 91
20. O caos que ninguém percebe cente da economia, que só pode ser gerado pelo governo devido ao mo-
nopólio da moeda, e que só se manifesta no mercado pelos seus efeitos.
O povo brasileiro vai terminar o ano de 86 ainda metido num terrível Que são muitos, todos perversos. O efeito que mais dá na vista é o au-
emaranhado de equívocos a respeito do que é o melhor para sua vida mento persistente dos preços, que as pessoas erroneamente chamam de
econômica. Se antes da imposição do Plano Cruzado quase ninguém ti- "inflação". Esse efeito mais conspícuo, no entanto, só reflete a infla-
nha dúvidas de que a inflação (então visível pela sinalização continua- ção se o mercado funcionar livremente. Se o mecanismo de preços do
mente ascendente dos preços) era um monstro maligno, agora quase mercado for estropiado por um processo de tabelamento e/ ou congela-
ninguém tem certeza do que está realmente se passando. E as pessoas se mento (como o que foi imposto pelo Plano Cruzado) é óbvio que deixa
perguntam: será que é somente a difícil transição dum longo período in- de haver qualquer possível relação de causa e efeito e os preços falsifi-
flacionário para uma era de estabilidade econômica, como prometem cados (que não são mais os de mercado) deixam de sinalizar as reduções
os pais do cruzado? Ou serão mesmo tempos de incerteza porque persis- do poder de compra do dinheiro devidas à excessiva expansão monetá-
te a grande confusão entre as causas e os efeitos das endemias político- ria, resultando daí graves distorções na economia.
econômicas (como p. ex. a inflação e a estatolatria) que atrapalham insi- Passa a existir um crescente desequilíbrio entre a oferta e a demanda
diosamente nosso desenvolvimento? Se o caos existe, a. culpa não é do de diferentes mercadorias, serviços, mão-de-obra especializada, capaci-
povo e nem dos leigos circunstantes, mas é da parcela mais ativa da elite dade fabril instalada, equipamentos, ferramentas, peças de reposição,
intelectual (fabricantes e/ou disseminadores de teorias, idéias e informa- matéria-prima, etc., etc. Pontos de estrangulamento se desenvolvem as-
ções), que é geralmente despreparada e às vezes mal-intencionada. sustadoramente nos diferentes setores produtivos. O preço do dinheiro,
As manifestações resultantes do lançamento do Cruzado II no dia 20 o juro, não atingido pelo congelamento, reflete a desvalorização da
de novembro são típicas da situação de deplorável perplexidade em que moeda e aumenta desvairadamente em comparação com os índices ofi-
nos encontramos: a maioria se revoltou amargamente porque o próprio ciais dos 'preços' em geral. Novos investimentos são desencorajados.
governo "furou" o congelamento decretando um abrupto acréscimo de Artigos que representam avanços em determinados ramos de atividade
preços e impostos sobre vários produtos e tarifas de serviços públicos; e simplesmente deixam de ser fabricados já que os produtores se vêem
quase todas as demais pessoas ficaram a favor porque presumem que as impedidos, pela ditadura econômica, de vender a preços justos de mer-
novas medidas desenhadas para reduzir a 'demanda superaquecida' se- cado. Sem saber ao certo a causa de seus problemas, os assalariados se
riam eficazes para, simultaneamente, manter o congelamento, o pleno agitam com a erosão de suas receitas. Et cetera, et cetera.
emprego, os 'ganhos salariais das classes menos favorecidas' e os bai- Essas anomalias entre oferta e demanda (intensificadas por todas as
xos índices oficiais de preços (erroneamente chamados de taxas de in- novas ações de policiamento dos preços) não são um desequilíbrio mé-
flação) medidos por critérios arbitrários do governo a partir de 28 de dio, ou agregado, como imaginam os macroeconomistas keynesianos.
fevereiro. Isso tudo quer dizer que as pessoas em geral (estimuladas pe- São ocorrências que se dão em medida e natureza as mais diversas, va-
lo que dizem os intelectuais tecnocráticos) continuam engolindo a ilu- riando de caso para caso individual. 'A macroeconomia lida com médias
são de que o congelamento dos preços equivale ao controle da inflação e agregados e por isso falsifica as relações de causa e efeito dos fenôme-
e ainda acreditam que o Plano Cruzado veio para lhes trazer benesses nos econômicos e despreza os comportamentos individuais, os proces-
permanentes. E que só não estaria dando certo por falta de uma eficaz sos individuais, as empresas individuais, as indústrias individuais, as
fiscalização e de medidas corretivas adequadas. Continuam todos, capacidades fabris individuais, os preços e salários individuais, as ener-
pois, confundindo a causalidade dos fenômenos econômicos, esperan- gias individuais das pessoas, os talentos individuais, e a imensa diversi-
do resultados milagrosos de medidas causativas que, no entanto, são in- dade de produtos, serviços, insumos, matérias-primas e especialidades
compatíveis com os efeitos esperados. individuais que existem e/ou surgem no mercado. É absurdo, portanto,
Muito pouca gente se dá conta de que a escalada contínua dos preços tentar equilibrar a oferta e a demanda por meio de políticas monetárias
que ocorria antes do congelamento de 28 de fevereiro era apenas o mais e fiscais da economia keynesiano-estruturalista, como as que os gover-
conspícuo efeito da inflação. Mas não era a inflação propriamente dita. nos têm usado comumente no Brasil, ou as que agora foram impostas
A inflação mesma é um estado de contínua desvalorização do poder pelo Cruzado II e as que certamente virão daqui a pouco em novos pa-
aquisitivo da moeda produzido pela expansão monetária excessiva em cotes para tentar corrigir as infindáveis distorções geradas pelos inúme-
relação ao crescimento da produção real. A inflação não é, pois, o sim- ros pacotes anteriores.
ples aumento de preços. É um complexo fenômeno monetário subja- Portanto, o Plano que a elite intelectual adepta do keynesianismo-

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estruturalista advoga para manter o pleno emprego e os supostos 'ga- 21. Um pacto de mandachuvas
nhos de poder aquisitivo', equilibrar a demanda com a produção, esti-
mular o investimento e simultaneamente manter os preços congelados Só os tolos não perceberam ainda que o Plano Cruzado não passou
só pode levar mais cedo ou mais tarde a resultados diametralmente de um perverso embuste. Lamentavelmente são muitos os tolos (princi-
opostos: desemprego e diminuição das rendas reais; inibição da produ- palmente no âmbito da elite intelectual, onde se inclui imensa parcela
ção e crescente escassez; obsolescência do parque fabril e desencoraja- de economistas e políticos) e por isso vem aí um novo pacote, descen-
mento a novos investimentos. Não se deve intervir no mercado, princi- dente dos anteriores: o Cruzado III. Que, pelo menos de início, levará o
palmente quando se confunde causas e efeitos no combate à inflação. bonito nome de 'pacto social'. Pretendem fazer supor que será um
Porque a economia de mercado não pode progredir no caos. acordo de toda sociedade para tentar salvar a economia do descalabro
em que foi metida. Mas será apenas um outro logro, infelizmente. Por-
VISÃO, 17-12-86
que as premissas político-econômicas são tão falsas quanto as do primo-
gênito Cruzado I e não existe uma tal coisa como uin 'pacto social' numa
economia de mercado. Aliás, o que se costuma chamar de 'pacto social'
nada mais é que um acerto de cúpula, um 'arreglo de mandachuvas'.
A economia brasileira chegou a uma situação de verdadeiro caos
graças ao controle global de preços, salários e aluguéis imposto pelo
Plano Cruzado ou 'pacote da inflação zero'. O caos se caracteriza pelos
seguintes graves desequilíbrios principais: a) uma formidável expansão
monetária (inflação recorde na história do Brasil) concomitante com o
tabelamento/congelamento de todos os preços desde março 86; b) um
conseqüente desequilíbrio crescente entre todos os aspectos da oferta e
da demanda de produtos, serviços, mão-de-obra qualificada, matéria-
prima, etc., representado pela escassez, racionamento, filas, desabaste-
cimento, mercado paralelo, desaparecimento de produtos, crise nos
transportes e comunicações, desestruturação nos meios produtivos,
etc.; c) a falta de crescimento dos meios de produção devido ao desestí-
mulo a novos investimentos e ao escasseamento de capitais de poupan-
ça; d) uma forte baixa nos saldos do comércio exterior; e) juros bancá-
rios preferenciais que já ultrapassam os 2000Jo a.a.
Conforme já afirmei inúmeras vezes, o fracasso no combate à infla-
ção não se deve (como muita gente ainda pensa) ao fracasso do tabela-
mento/congelamento, por falta de fiscalização ou por deficiência das
políticas governamentais corretivas do 'plano', mas ao fato de que o ta-
belamento/congelamento ou qualquer tipo de controle/administração
de preços simplesmente não consegue atingir seu objetivo antiinflacio-
nário porque a inflação não pode ser combatida pelo ataque a um de
seus efeitos, os preços. A inflação verdadeira (que é um estado de contí-
nua desvalorização da moeda pela expansão monetária excessiva em re-
lação ao crescimento da produção) só pode ser combatida no âmbito do
próprio governo, parando de fabricar dinheiro. Se o governo não qui-
ser fazer isso e/ou se a sociedade não conseguir fazer com que o gover-
no pare de impor-lhe sub-repticiamente a inflação, o povo terá de con-
viver com o terrível mal inflacionário, como até hoje e até que a moeda
seja completamente desmoralizada.

94 95
J
Fàce ao descontentamento popular, devido à grave situação reinan- uma nação é, portanto, um ato extremo de arrogância. Ou, então, de
te, e graças a essa confusão de causas e efeitos no trato da inflação, pura mistificação.
vem à tona a idéia do 'pacto social'. O governo 'ouviria' os empresá- A abdicação, forçada pelo dirigismo estatal, mesmo que por curtos
rios, os trabalhadores e os políticos, a fim de estabelecer: 1) como 'rea- períodos, dos objetivos de crescimento e da simultânea incorporação
linhar' os preços, salários e tarifas e voltar a congelá-los e/ou a de crescentes camadas da população à riqueza (como produtores, inves-
controlá-los ou 'administrá-los'; 2) como reajustar e controlar os alu- tidores e consumidores) contribui para gerar e agravar insatisfações,
guéis; 3) qual a taxa de crescimento desejável da economia; 4) como cal- abalar tradições morais, além de servir de caldo de cultura para a disse-
cular o índice que determinará os salários; 5) qual a 'inflação' tolerável; minação de idéias políticas e teorias econômicas espúrias, que só ser-
6) como negociar a dívida externa; e 7) tudo o mais que surgir no entre- vem para confundir a opinião pública. De outro lado, o progresso auto-
vero, que certamente será animado pela televisão com a predominân- sustentado e acelerado somente terá chance de ocorrer se for mantido
cia, de sempre, da voz oficial. (Até agora ninguém se lembrou de querer por um sistema de governo que assegure insofismavelmente a ordem de
'ouvir' sobre a desvalorização da moeda pela expansão dos meios de mercado. Esta é uma condição indispensável para debelar a pobreza,
pagamento.) No Cruzado I, os 'fiscais do Sarney' denunciaram à von- para elevar o nível geral de bem-estar e de prosperidade, para obter
tade os comerciantes e assumiram gostosamente a delegação de poder mais segurança pessoal, para melhorar a saúde, para possibilitar cres-
de policiamento dos preços, embora não tenham participado da elabo- cente igualdade de oportunidades, para evoluir na educação e, portan-
ração do plano. Agora, toda a nação é convocada a responsabilizar-se to, para atingir maior grau de civilização. Para construir essa ordem so-
por cada preço, cada salário, cada tarifa e também pelas variações futu- cial aberta, espontânea e pluralmente benéfica e pacífica, há que criar-
ras desses preços e pela fixação das metas de crescimento do PIB ... se condições favoráveis ao desenvolvimento de instituições onde pos-
Quem estiver desatento e quiser entender o absurdo que isso significa sam florescer os ideais da liberdade individual e do Estado de Direito.
basta lembrar que numa economia como a nossa devem existir muitos Neste caso as pessoas só precisam concordar em submeter-se todas ao
milhões de preços diferentes; e que qualquer mudança num preço pro- Governo da Lei, ou seja, às normas gerais de conduta justa do verda-
duz repercussões numa miríade de outros preços. Em suma: o estabele- deiro Direito.
cimento coercitivo de preços, ainda que temperado por um suposto 'en- Todavia, se for para enquadrar a economia nalgum tipo de arranjo
tendimento social' como esse cogitado, é um problema insolúvel. intencional das atividades humanas, como é o caso de qualquer 'plano
A evolução da economia é uma tarefa que compreende o uso de cruzado' ou 'pacto social', todas as pessoas terão de concordar ou se-
imensa variedade de conhecimentos que jamais poderiam ser contidos rão forçadas a aceitar medidas arbitrárias de fixação de preços, salá-
em qualquer mente ou planejamento humanos. Esses conhecimentos e rios, aluguéis, etc., etc., que representam nada mais que a vontade de
os fatos concretos que os acompanham estão dispersos entre milhões de alguns poucos. É óbvio que um tal 'pacto social' não poderá ser jamais
pessoas separadas entre si, que não possuem objetivos em comum, não um concerto de idéias e opiniões de todos os membros ativos da !:ocie-
se conhecem e não sabem das circunstâncias da vida umas das outras. dade. Um quebra-galhos, talvez. O governo dará ouvidos a um punha-
Não há, pois, inteligência humana ou grupo de trabalho ou instituto de do de líderes sindicais e de partidos, dirigentes de associações empresa-
pesquisas que possa gerar um planejamento ou qualquer plano de ação riais e pessoas mais conhecidas e, no fim, um 'plano' será imposto. Se
governamental capaz de substituir ou melhorar a cibernética espontâ- houver algum tipo de acordo ou entendimento, será certamente mais
nea do mercado que, como um milagre, funciona sem que os partici- um 'arreglo de mandachuvas', uma espécie de oligocracia.
pantes saibam de tudo o que se esteja passando.
Não existem níveis de riqueza e bem-estar que, uma vez alcançados, VISÃO, 24-12-86
justifiquem planificar a desaceleração do crescimento. A evolução da
economia funciona como a evolução da civilização: não pode permane-
cer estacionária e, quando estagna, logo entra em declínio. Mesmo que
fosse vantajoso deter o crescimento econômico, o homem não conse-
guiria graduá-lo, pois o progresso não pode ser dosado. Ele poderá ser
estimulado ou freado por atos do governo, mas ninguém conseguirá ja-
mais saber com razoável precisão os efeitos dessas medidas. Pretender
ou pretextar saber o rumo ou a medida do crescimento desejável para

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22. Caos político: a culpa dos professores conceito as partes que presumem ser as melhores. Esta é, porém, nada
mais que uma atitude construtivista, de tendência totalitária. É a pro-
Grande parte da culpa pela grave enrascada em que estamos metidos pensão de atribuir a origem de todas as instituições da vida social à in-
se deve aos professores que vêm dominando com mão de ferro o gover- venção ou à criação intencional. Por esta abordagem intencionalista ou
no. Os que estão hoje no poder governam quase sozinhos o país. Fazem cartesiana da história todas as realizações úteis do homem seriam pro-,
e desfazem 'políticas' que atingem fundo a vida de todos. Antes não era duto de seu raciocínio. As instituições e práticas da moral e ética, reli-
muito diferente, mas agora eles foram ao extremo e nos puseram num gião e direito, linguagem e escrita, moeda e mercado são consideradas
verdadeiro caos político-econômico. As pessoas mais bem-avisadas que nesta linha construtivista como tendo sido deliberadamente construídas
ainda não notaram essa situação embaraçosa mais cedo ou mais tarde por alguém. A razão humana, por si só, seria então capaz de construir
irão notar, dependendo do grau de desinformação que continuar ema- uma nova sociedade. Daí decorre, por exemplo, a versão construtivista
nando dos professores que governam e dos outros que, de fora, discu- de organização da sociedade por meio de um 'contrato social' (descrito
tem as decisões de seus pares. Embora sejam culpáveis, não se pode di- primeiramente por Thomas Hobbes e depois por J. J. Rousseau), que
zer que os professores provocam todo esse dano por serem pessoas ma- agora chamam de pacto social.
lignas ou apenas por convicção ideológica, messianismo ou fome de po- Contudo, essa idéia.de que o homem conseguiu controlar o seu meio
der. A causa preponderante é a sua defeituosa formação político-filosó- principalmente através da razão consciente e que dessa mesma forma
fica. No entanto, não são apenas eles que merecem repreensão. Todos conseguirá reordenar a sociedade de acordo com seus desígnios é falsa.
aqueles que possuem posição privilegiada nos altos escalões do gover- Conforme escreve F. A. Hayek, "o erro característico dos racionalistas
no, nos sindicatos, na política e na sociedade, e que apenas 'comem das construtivistas é tenderem a fundamentar sua argumentação numa es-
mãos' dos professores tudo que estes lhes oferecem, são também dignos pécie de 'ilusão sinótica', ou seja, na ficção de que todos os fatos rele-
de censura, pois são pessoas adultas com autoridade e não simples ór- vantes são conhecidos por alguma mente e que é possível construir, a
gãos intelectuais. partir desse conhecimento dos fatos particulares, uma ordem social de-
Os professores a que faço referência são em especial os das chama- sejável. .. Parecem ignorar que esse sonho simplesmente deixa de levar
das ciências humanas como a economia, sociologia, direito e adminis- em conta o problema central suscitado por toda tentativa de compreen-
tração. O busílis está na sua formação cartesiano-construtivista e, em der ou moldar a ordem social: a incapacidade humana de reunir num
conseqüência, na orientação que dão a outros professores, aos estudan- conjunto passível de uma visão geral todos os dados que integram essa
tes e a todos aqueles que os escutam ou lêem com atenção. Dos econo- complexa ordem. No entanto, os que ficam fascinados com os belos
mistas formados nos últimos 50 anos, p. ex., uns 900Jo foram apenas planos resultantes dessa abordagem, todos 'tão organizados, tão visí-
treinados na linha do keynesianismo matematicista geradora de infla- veis, tão fáceis de entender', são vítimas da ilusão sinótica e esquecem
ção, 10% no monetarismo ou em mescla deste com o keynesianismo e o que tais planos devem sua aparente clareza à indiferença do planejador
estruturalismo e só parcela ínfima teve cantata com a economia moder- para com os fatos que ele desconhece".
na (de mercado) que evoluiu (desprezada pelos keynesianos) desde o Mas os professores formados na escola construtivista não admitem
fim do século passado. que exista uma barreira instransponível à possibilidade de construção
Quase todas as pessoas que hoje procuram estudar os problemas da pela mente humana de uma ordem para modelar a sociedade. É a con-
vida em sociedade adquirem instrução vasta e algo variada, porém não fiança irrestrita nos poderes da ciência e nas técnicas da organização. O
assimilam cultura suficiente para discernir as diferenças fundamentais progresso estarrecedor das disciplinas que estudam os fenômenos do
entre as duas principais escolas de pensamento político-filosófico exis- mundo físico criou a ilusão no meio dos economistas e cientistas sociais
tentes: o racionalismo evolucionista fundado na liberdade individual e de que com o método científico e a organização, o mesmo seria viável
na propriedade privada, que corresponde à sociedade aberta; e o racio- em relação aos fenômenos complexos da vida em sociedade. Mas nem a
nalismo construtivista baseado no coletivismo e no estatismo, que cor- ciência nem qualquer técnica conhecida, inclusive a informática, permi-
responde à sociedade planificada totalitária. O resultado dessa forma- te superar o fato de que mente alguma, e, portanto, nenhuma ação deli-
ção erudita porém deficiente de verdadeira cultura político-filosófica é berada, pode levar em conta todos os fatos específicos conhecidos por
a incapacidade de reconhecer que é impossível o amálgama desses dois algumas pessoas mas não conhecidos, em sua totalidade, por ninguém
conceitos filosóficos, com a conseqüente pretensão de querer construir em particular. O progresso da civilização se deve ao fato de nos benefi-
um sistema político-econômico híbrido, misto, aproveitando de cada ciarmos todos de conhecimentos que não possuímos, mediante a utili-

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zação do conhecimento que está e permanece amplamente disperso en- cricionária dos professores. O homem comum nos dias de hoje aprende
tre os indivíduos. Isto só é possível se formos todos governados não por muito pouco sobre os eventos sócio-econômicos fora dos canais de co-
um governo de homens e planos tecnocráticos, mas por um governo do municação controlados pelos intelectuais, principalmente os jornalis-
Direito, onde predominará a ação humana espontânea no seio de um tas. Estes comunicadores são apenas intermediários na disseminação de
mercado livre. uma vasta gama de idéias e informações; pois em geral não possuem co-
Os professores brasileiros, entretanto, insistem em governar num nhecimento especializado. Dessa forma, são eles que decidem quais os
emaranhado de equívocos •.Quando há poucos meses eles construíram o pontos de vista e opiniões que devem chegar até nós; e que fatos são su-
chamado Plano Cruzado - que mexeu com a vida de toda a população ficientemente importantes para nos serem comunicados; e também de
-, eles apenas valorizaram a matemática e a estatística e simplesmente que forma e sob que ângulo devem eles ser-nos apresentados. Portanto,
deixaram à margem os extremamente complexos, dispersos e variados o povo somente conhecerá as idéias e/ ou críticas de uma pessoa a res-
fatos do mercado. Por desconhecerem que a economia de mercado na- peito de determinado plano governamental, por exemplo, se as pessoas
da mais é que a própria ação humana, eles desprezam a espontaneidade que controlam os meios de comunicação populares, como o rádio e a
e só acreditam na planificação e em certas políticas discricionárias. Que TV, assim decidirem. A supremacia dos professores tem sido tamanha
jamais darão frutos benéficos permanentes porque contrariam a pró- em nossa terra, nos últimos tempos, que as informações que recebemos
pria natureza humana. sobre nossa vida econômica dos meios de comunicação representam em
A título de dar fim à inflação, impuseram um regime violento de ta- grande parte a disseminação em segunda mão das idéias dos professores
belamento/congelamento de preços e salários que as pessoas bem for- - de dentro e de fora do governo. Idéias todas muito parecidas. Todas
madas dos países civilizados estão cansadas de saber que só pode causar contrárias à ação humana espontânea num mercado livre. O caos políti-
seriíssimos problemas e seqüelas e que simplesmente não é sequer um co que isso produz e que tende a se agravar parece não perturbar a so-
método para dar combate à inflação mas apenas um estratagema para berba majestática dos professores que assumiram o poder para cons-
escondê-la, em parte, por algum tempo. O fim da inflação só se dará truir 'cientificamente' uma nova ordem social.
parando a expansão monetária e não pelo ataque aos efeitos dessa ex-
pansão, através do controle de preços. No entanto, os professores até VISÃO, 21-1-87
hoje teimam que o Cruzado não deu certo porque faltaram certos con-
troles e ingredientes de política para complementar o congelamento.
Até os mais esclarecidos professores de fora do governo discutem a
conjuntura resultante do cruzado/congelamento propondo medidas
construtivistas que só na aparência diferem das que os professores/go-
vernantes vêm adotando. Nenhum deles sequer toca no nó górdio da
questão, que é o próprio congelamento e qualquer tipo de .;ontro-
le/administração de preços. Nenhum professor diz que a única solução
para sairmos da cada vez mais profunda enrascada é deixar o mercado
livre. Agora.
Nada tem mais força p·olítica na vida social que o fato econômico,
principalmente quando ele é manipulado. Basta observar a atual pree-
minência dos professores em relação à cúpula governamental, aos líde-
res sindicais e partidários e aos empresários. Os governantes entrega-
ram toda a máquina governamental ao arbítrio dos professores. Os po-
líticos e os sindicalistas só enxergam o fato político pela visão dos pro-
fessores. E os empresários aceitaram docilmente a destruição do merca-
do e a execração pública talvez por acreditarem ingenuamente que fos-
sem eles próprios os causadores da inflação.
Essa preeminência adquire contornos ainda mais graves quando se
constata que a opinião pública é profundamente afetada pela visão dis-

100 101
23. O cálculo econômico para preços', 'gatilho salarial', 'mercado controlado pelo CIP', 'manuten-
continuar no caos ção da redistribuição de rendas conquistada pelo Cruzado', 'salários
perseguindo preços', 'tabelamento de juros' e sobre uma tal 'política
A cada dia que passa fico mais perplexo e preocupado com o triste mais duradoura para aumentar preços e salários'. Só não se fala em dei-
quadro político em que· nosso país está metido. Embora estejamos xar o mercado funcionar livremente. E nem se discute a causa da inflação
·afundando no banco de areia movediça em que fomos lançados pelos e como acabá-la de vez. Para que, com um mercado livre e sem inflação,
professores-que-nos-governam, parece que as pessoas da elite que o país pudesse, afinal, prosperar e os preços pudessem baixar gradual-
atuam sobre a crise ou não querem resolvê-la ou não enxergam a gravi- mente em termos reais, graças ao aumento da produção e da produtivida-
dade da situação. É verdade que o cenário econômico está coberto de de que a verdadeira ordem de mercado seguramente proporcionaria.
seriíssimos equívocos de fundamentação teórica. Isto leva os atares à Grande parte dessa confusão se explica porque na raiz das discus-
presunção fatídica de que os complexos problemas da economia e, pois, sões se alojam certos erros básicos de conceituação econômica. O mais
da política podem ser encaminhados pela simples boa vontade e enten- grave destes erros é o que faz com que os economistas imaginem que pe-
dimento entre certas pessoas hábeis e de maior prestígio, pelo acordo la análise econômica e por meio de 'planilhas de custos' se possa com-
entre líderes importantes, pela crescente coerção governamental, por putar os preços considerados corretos dos produtos e serviços, diferen-
pseudoleis draconianas, pelo controle popular orquestrado ou pela or- tes dos que seriam engendrados no mercado pela interação de compra-
denação tabelatória/congelatória de preços, salários, aluguéis e juros dores e vendedores. É a teoria incoerente e confusa (ultrapassada pelos
através de órgãos tecnocráticos policialescos. conhecimentos da moderna economia de mercado) de que os preços po-
A origem do atual impasse (que ainda não é aparente para muita deriam ser determinados por quantidades objetivamente discerníveis e
gente) é a estúpida tentativa de esconder a abominável inflação através mensuráveis que constituiriam os 'custos reais'. Durante muito rempo
do tabelamento e/ou congelamento dos preços decretado em 28-2-86. essa noção equivocada, de que os custos eram sempre elemento real na
(É preciso relembrar mais uma vez que nos meses imediatamente ante- formação dos preços, impediu que os economistas percebessem algo ex-
riores ao do congelamento o governo causou uma aceleração na escala- tremamente importante: que eram os preços que funcionavam como si-
da dos preços graças à intensificação da fabricação de dinheiro sem las- nais indispensáveis para os produtores saberem que custos valia a pena
tro como nunca tinha sido feito antes na história do Brasil - esse recor- despender na produção das diferentes mercadorias e serviços; e não o
de de desvalorização da moeda nacional só foi batido, por larga mar- contrário. Não são os gastos (custos) efetuados que determinam os pre-
gem, nos meses posteriores ao congelamento!) Apesar do extasiante ços das coisas produzidas e/ou sujeitas a operações de troca. (Isso é vá-
apoio com que o pacote da inflação zero foi recebido e do seu aparente lido para todos os preços, mas o leitor, para perceber logo esse insight,
sucesso inicial, o fato é que tudo não passou de um grande logro desde bastaria pensar sobre como são valorados, em determinadas circuns-
o começo. Atacaram um dos efeitos da inflação e só. Um logro que até tâncias de lugar e tempo, produtos ou serviços como por exemplo uma
hoje ilude as pessoas, que ainda peLSam que o que falhou foi a execu- água engarrafada, uma bebida mais ou menos rara, uma obra de arte,
ção do plano de congelamento, e não atinam para o fato de que o au- uma área de terra ou o trabalho de um cirurgião especialista.)
mento generalizado dos preços é sempre provocado pelo próprio gover- Os preços são um fenômeno típico da ordem de mercado. Em verda-
no e não pelos agentes econômicos privados. É o governo que, possuin- de, os custos e os preços são fenômenos equivalentes. Eles são o fruto
do o monopólio da produção de dinheiro, infla continuamente a base de um complexo processo de valoração subjetiva individual e das ações
monetária e os meios de pagamento, o que se traduz numa também e reações de indivíduos e grupos de indivíduos que operam por interesse
contínua desvalorização da unidade monetária que tem como efeito a próprio no mercado. A valoração subjetiva faz com que uma pessoa
escalada dos preços. Portanto, a truculenta intervenção congelatória só prefira um produto em vez de outro. Os preços são, pois, formados pe-
pode ter sido o resultado ou de razões político-eleitorais ou de incompe- lo subjetivismo e a causação individual. Pode-se dizer que os preços (e
tência ou de posições ideológicas para acabar de vez com a incipiente os custos) são fenômenos sociais, pois decorrem da interação das valo-
economia de mercado no Brasil. rações de todos os que operam no mercado. Cada pessoa, comprando
É espantoso e preocupante, no entanto, que, a despeito do flagrante ou deixando de comprar e vendendo ou deixando de vender, contribui
malogro do pacote de fevereiro e de todas as medidas subseqüentes, se com sua parcela no estabelecimento dos preços do mercado. Todo pre-
continue insistindo em apenas discutir os ehitos e não a própria infla- ço de mercado é portanto o resultado necessário da interação das forças
ção. Fica-se apenas falando baboseiras tais como 'realinhamento de de oferta e demanda que participam no jogo do mercado.

102 103
É a errônea 'teoria de custos' que conduz os economistas a inventar 24. As pragas em nossa vida econômica
fórmulas que os levam a estabelecer, por exemplo, 'leis salariais', 'con-
troles de aluguéis', 'gatilhos' e outros supostos 'alinhamentos de pre- ·• As pessoas que acompanham as coisas que escrevo semanalmente
ços', diversos daqueles engendrados no mercado pela atuação mútua e notam que venho há tempos fazendo críticas aos economistas,
voluntária de compradores e consumidores. Fora do mercado, porém, referindo-me em especial aos professores-que-nos-têm-governado e
nada há que se possa chamar de preço, seja ele preço dum salário, dum àqueles outros que também se arrogam o direito de intervir em todos os
aluguel, dum bem ou dum serviço qualquer. Não é possível, portanto, aspectos de nossa vida económica por meio de pacotes e políticas tecno-
sem que se produzam graves danos à economia e à liberdade dos indiví- cráticas. Essas críticas não são simples apreciações sobre questões técni-
duos, construir preços sinteticamente, como fazem os CIPs e SUNABs cas que poderiam estar sendo tratadas erroneamente por esses especia-
e como pretendem os grupos de pressão, tais como os sindicatos e ou- listas. São divergências muito mais profundas. Tenho dito claramente
tras associações. que eles ou simplesmente desprezam o mercado ou estão por fora dos
Nenhum preço escapa à lei económica da oferta e demanda. Se ova- conceitos fundamentais da moderna economia. Embora se autodeno-
lor de um produto é 'calculado' artificialmente baixo, toda sorte de minem 'progressistas', são de fato verdadeiras pragas reacionárias que
traumas passa a ocorrer, inevitavelmente, como temos experimentado não admitem os princípios e idéias a respeito da livre ação humana que
nos últímos meses graças ao tabelamento/congelamento que nos foi im- revolucionaram e redirecionaram desde o fim do século passado o pen-
posto. Embora não sejam mercadorias, tanto o trabalhador como o di- samento económico clássico. Em vez de aprenderem os novos conceitos
nheiro também não escapam à lei da oferta e demanda. Se o serviço do que fizeram evoluir a Economia, quase que só lhes foi ensinada a "Teo-
trabalhador tiver seu preço feito artificialmente alto, por pressão sindi- ria Geral" macroeconômica de Keynes e outras doutrinas decorrentes
cal por exemplo, os consumidores comprarão menos desse serviço. O dessa espécie de religião que canonizou a guitarra inflacionária e vem
preço fora do mercado de qualquer produto pode provocar a redução impedindo há mais de cinqüenta anos a disseminação do progresso ha-
da demanda, ou seja, neste caso, o desemprego. E, se houver demasia- vido na economia. (Coadjuvante dessa leitura defeituosa da economia e
da oferta de dinheiro em relação às reais necessidades do mercado, o igualmente perniciosa para a liberdade na vida social foi a propagação
preço da unidade monetária fatalmente diminuirá como se fosse uma neste mesmo período de outra 'teoria geral', a "Teoria Geral do Direito
mercadoria qualquer. A desvalorização da moeda exigirá mais quanti- e do Estado" de Hans Kelsen, que corrompeu os fundamentos do Di-
dade de dinheiro para adquirir a mesma quantidade de produtos. É a reito com as idéias do positivismo jurídico.)
inflação (expansão monetária) produzindo a carestia geral. Esta, nada Dou-me ao trabalho e ao risco de criticar esses importantes persona-
mais é que um efeito da inflação, embora seja, erroneamente, chamada gens porque eles são hoje uma fonte importante de infecção do caráter
de inflação. político-filosófico dos advogados, juízes, jornalistas, escritores, políti-
Enquanto os lideres de nossa elite continuam pretendendo calcular o cos, empresários e até dos estadistas, de quem muito dependemos na vi-
que não é calculável, a música de fundo é o discurso político que fala da contemporânea. Exemplo desse contágio são todas as inúmeras
em uma opção pelos pobres. A pretensão de determinar um 'realinha- pseudoleis (fundadas no arbítrio e na discricionariedade, tais como as
mento' dos preços, salários, aluguéis e juros por meio de acordos, pac- 'leis salariais', a 'lei delegada n? 4', a 'lei 1.521 da economia popular' e
tos, trégua, CIPs, SUNABs, leis ou decretos jamais passará de uma me- as 'leis' do progressivismo tributário) que são criadas porque os econo-
ra opção pela pobreza. Que é uma decisão simples de tomar porque a mistas engendram situações caóticas na economia mas nas suas prega-
pobreza é o status quo. ções convencem os advogados, juízes, políticos e demais autoridades de
que ao governo seja dada capacidade ilimitada de estabelecer 'os instru-
VISÃO, 28-1-87 mentos políticos e legais necessários para enfrentar e superar todos os
impasses que surgirem'. Outro exemplo se refere à inflação propria-
mente dita: a macroeconomia keynesiana deixou os políticos e os gover-
nantes completamente fora de controle nos seus apetites de gastar e in-
tervir na vida dos cidadãos. E os eleitores, também contaminados, acei-
tam docilmente todas as propostas que lhes fazem de crescente subordi-
nação da liberdade individual aos planos tecnocráticos.
Os economistas clássicos e os economistas modernos de mercado (da

105
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106 107
chamada escola austríaca) sempre entenderam que na Administração posterior ao início do tabelamento/congelamento. Após fevereiro de
Pública é imprescindível respeitar a regra do orçamento equilibrado pa- 86, quando foi quebrado o termômetro dos preços, a expansão monetá-
ra conter a tendência dos governos de fazer crescer descontroladamente ria (e, pois, a desvalorização do dinheiro) continuou espantosamente
os gastos públicos e de financiar os déficits orçamentários. Eles sabem elevada. Enquanto a produção (PIB) crescia menos de 71tfo nos dez me-
que o mecanismo de preços do mercado é o mais eficiente sistema de ses de março a dezembro 86, a inflação monetária chegava perto dos
que se pode dispor numa sociedade livre para fazer com que o comple- 300%. Nos dois anos de jan/85 a dez/86 a expansão monetária foi
xo e descentralizado processo de produção de bens e serviços reflita maior que 1.700%, para um PIB total da ordem de 17%. O caos decor-
com adequada precisão as preferências dos consumidores e dos traba- rente do desnaturado e injustificado congelamento geral, acrescido des-
lhadores, bem como o 'custo' da produção. Embora tenham plena sa contínua desvalorização monetária produzida pelo persistente au-
consciência das imperfeições do mercado livre, eles também sabem que mento dos meios de pagamento, aí está para qualquer pessoa de bom
a ação humana no livre jogo cibernético da oferta e da demanda é a me- senso notar.
lhor forma de distribuir os recursos escassos da economia. Eles não têm Este artigo serve para apontar um fato espantoso: contam-se pelos
dúvida de que as intervenções no mercado, que ferem o mecanismo de dedos de uma só mão os economistas que sabem (e dizem) que a infla-
preços e a lei da oferta e demanda, levam inevitavelmente ao desastre ção está aí presente e é devida exclusivamente à desvalorização provo-
econômico. cada pela expansão monetária; e que o tabelamento/congelamento de
A onda keynesiana substituiu essa visão de mercado pela idéia de preços jamais será um remédio para curar a inflação, pois a escalada
que as flutuações econômicas poderiam ser atenuadas pela criação de geral dos preços (erradamente chamada de inflação) é nada mais que
déficits na recessão e superávits na inflação. Isso porque Keynes havia um dos efeitos da inflação. Se os economistas não absorverem estas
diagnosticado a causa da Grande Depressão de 30 como sendo um nível simples noções de economia e ainda assim quiserem continuar nos go-
inadequado de demanda total e então receitou um aumento nos gastos vernando, logo vai aparecer um novo Saint-Hilaire dizendo que 'ou o
do governo como meio direto de estimular a demanda e, pois, a produ- Brasil acaba com os economistas-no-governo, ou os economistas-no-
ção e o emprego. O resultado dessa falsa 'Teoria Geral' tem sido uma governo acabam com o Brasil'. Como disse o naturalista no século pas-
persistente preferência pelo déficit orçamentário e seu financiamento sado referindo-se à saúva, conhecida praga agrícola.
principalmente pela inflação monetária, produzindo uma permanente
desvalorização da moeda e, como efeito, a contínua escalada geral dos VISÃO, 4-2-87
preços.
O Gráfico I mostra claramente a ocorrência deste fenômeno durante
o período de jan/85 a fev /86. A inflação, ilustrada pela curva de au-
mento da oferta de dinheiro, foi reduzindo o poder aquisitivo da unida-
de monetária, o que fez com que os preços subiss~m ccnforme mostra
de modo simplificado a curva de crescimento do Indice Geral de Pre-
ços. Até fevereiro de 86 a desvalorização da moeda causada pela infla-
ção monetária podia ser observada pelo público através de seu efeito
nos preços, já que o mercado funcionava com pouco controle. Os eco-
nomistas, no entanto, não confessam que a escalada geral dos preços
seja uma conseqüência da inflação que eles mesmos produzem com
suas 'políticas monetárias'. Eles fogem desse fato jogando a culpa nos
agentes econômicos e em fatores que nada têm a ver com a subida con-
tínua e generalizada dos preços.
O absurdo acontece, porém, quando eles tentam esconder os efeitos
de suas políticas errôneas por meio da intervenção violenta no mercado
pelo controle, tabelamento ou congelamento, como fizeram decretando
o chamado Plano Cruzado. O que antes era uma inflação aberta passou
a ser uma inflação dissimulada, como se vê no Gráfico II, no período

108 109
importante, como o Prêmio Nobel de Economia de 1985, Franco Modi-
25. A quantidade de dinheiro de que a gliani. O ilustre professor confessa-se um 'neokeynesiano', dizendo que
economia necessita "o essencial da teoria de Keynes continua válido ... ". E afirma que
"continua tendo valor e vigência a tese de que o sistema de mercado de-
Como se não bastasse a enorme complexidade inerente à própria vi- ve ser estabilizado (grifo meu) através do sistema político". O que ele
da em sociedade, o homem é ainda atormentado por muitas supersti- . quer dizer é que o mercado não basta para se ter uma economia normal.
ções no campo da economia. Uma dessas superstições é a de que o di- Ele considera válida a idéia de Keynes de que as flutuações inerentes à
nheiro não só precisa ser um monopólio do Estado mas também deve economia podem ser atenuadas provocando desequilíbrios orçamentá-
ter sua quantidade controlada e estabelecida pelo governo. Em função rios. E como bom 'neokeynesiano' (e estruturalista também) receita a
dessa superstição existem as chamadas políticas monetárias, todas elas intervenção no mercado até pelo congelamento dos preços. Isto signifi-
circundando o mesmo tema: qual a quantidade 'correta' de dinheiro ca que o dinheiro não deve ser regulado livremente pelo mecanismo de
que o governo deve manter na economia para que ela 'funcione bem'? preços do mercado. Como outras mercadorias da economia, o dinheiro
E como se fosse questão fechada a de que os planejadores monetaristas também precisa estar sujeito à planificação governamental. Todos
devessem e,star continuamente tirando e pondo meios de pagamento no aqueles que congregam a assembléia híbrida de economistas, que cha-
mercado. E a 'sintonia fina' (fine tuning) de que tanto falam os econo- mo de monetarismo keynesiano-estruturalista, acreditam cegamente
mistas. Há, no entanto, uma outra visão, completamente distinta e es- nessa superstição. Os livros de economia mais apreciados por eles, co-
pantosa: a quantidade de dinheiro na economia não tem essa importân- mo por exemplo o do Prof. Paul Samuelson, mostram bem essa crença
cia meritória que presumem. O importante é ter dinheiro com poder na manipulação monetária. É verdade que desde sua primeira edição
aquisitivo estável. em 1948 Samuelson vem reduzindo a porcentagem anual de acréscimo
Devido principalmente ao keynesianismo(*) existe atualmente uma na quantidade de dinheiro em circulação que os monetaristas keynesia-
crença arraigada de que o dinheiro é um instrumento de planejamento nos (inclusive Friedman até recentemente) arbitrariamente receitam em
que pode ser manipulado para produzir resultados econômicos deseja- suas teorias monetárias de estabilidade.
dos. De acordo com essa mística, o emprego, os juros e outros resulta- Quando o planejamento econômico faz crescer a quantidade de
dos econômicos poderão ser predeterminados pelo controle da quanti- meios de pagamento presumindo uma meta de crescimento econômico,
dade de dinheiro. Isso faz com que a atenção dos especialistas fique confunde-se dinheiro com riqueza. O que não se percebe, porém, é que,
concentrada na determinação do montante supostamente 'adequado' neste aspecto, o dinheiro é uma mercadoria diferente das demais: quan-
de dinheiro que os técnicos devem manter em circulação. E são muitas do a 'oferta' de dinheiro aumenta, a sociedade não fica mais rica; mas
as teorias sobre o estabelecimento dessa oferta: que fosse baseada no quando aumenta a oferta de outras mercadorias a sociedade se benefi-
tamanho do déficit orçamentário e no suposto benefício que esse déficit cia, fica mais rica. Um aumento de bens e serviços traz melhor padrão
(coberto ·por emissão e/ou financiamento) trará para a economia; que de vida para a sociedade; a descoberta e exploração de uma jazida ou de
fosse relacionada com a produção nacional planejada; ou que tivesse uma região fértil, também. Mas um aumento da quantidade de dinheiro
relação com o volume do comércio ou as variações dos preços, etc. Há não melhora o padrão de vida; apenas dilui o valor de cada unidade
pouca gente hoje disposta a rejeitar essas teorias intervencionistas para monetária, isto é, provoca a perda de poder aquisitivo da moeda com o
deixar que o mercado equilibre a oferta e a procura de dinheiro. So- conseqüente aumento geral dos preços.
mente um ou outro economista deixam entrever séria preocupação com O dinheiro é também diferente das outras mercadorias por outro
relação ao desenfreado aumento dos meios de pagamento como causa motivo. Os bens de capital e os recursos naturais são consumidos no
fundamental da inflação. processo de produção; e os bens de consumo e os serviços são usados e
Quase todos laboram em torno de complexas políticas monetárias, eventualmente destruídos pelos consumidores. Mas o dinheiro não é
de controles de preços, juros e salários e outras formas de dirigismo consumido, porque é um instrumento de troca que permanece 'circu-
econômico. Esse é um enfoque também infelizmente apoiado por gente lando' no mercado.
De outro lado, o dinheiro deixa de ser diferente e funciona como as
(*) Espécie de religião económica gerada a partir do lançamento da "Teoria Geral
outras mercadorias, quando opera a eterna lei da oferta e da demanda.
do Emprego, Juros e Dinheiro", de J. M. Keynes (1935), e que·deu origem à chamada Essa lei determina o 'preço' (ou 'valor' ou 'poder aquisitivo') do di-.
'macroeconomia'. nheiro e das demais mercadorias. Todo mundo sabe que, se houver, por

110 111
exemplo, falta de tomate (isto é, se a oferta cair) e continuar havendo a questão da oferta de dinheiro em relação às necessidades dos consumi-
mesma procura, o preço do tomate tende a subir; se a oferta de tomate dores. O que todos querem é ter um dinheiro que valha. Porque tam-
aumentar, o preço tende a baixar. O mesmo se dá com o dinheiro: um bém sem uma moeda decente a liberdade vai para o brejo.
aumento da oferta de dinheiro tenderá a diminuir seu preço - ou seja,
VISÃO, 8-4-87
o dinheiro valerá menos.
Estas considerações servem para mostrar que as variações no poder
aquisitivo da unidade monetária (isto é, a relação de troca entre o di-
nheiro e os produtos vendáveis) podem ter origem tanto no lado do di-
nheiro quanto no lado dos produtos vendáveis. Quer dizer: as modifi-
cações que provocam essas variações podem se dar tanto na oferta e de-
manda de/por dinheiro ou na oferta e demanda de/por quaisquer ou-
tros produtos. Noutras palavras: há duas possibilidades de variações no
poder aquisitivo da moeda - a induzida pelos produtos e a induzida
pela moeda. As variações no poder aquisitivo induzidas pelos produtos
podem se dar devido a variações na oferta ou na demanda de determi-
nados bens e serviços. Mas é preciso enfatizar que um aumento ou di-
minuição geral na demanda por todos ou pela maior parte dos bens e
serviços só pode se dar pelo lado do dinheiro.
É fácil perceber, então, que, ao passo que um aumento da produção
de qualquer mercadoria traz beneficio para as pessoas, pois tende a re-
duzir o preço de cada unidade produzida, um aumento da quantidade
de dinheiro nenhum beneficio produz. A razão é simples: o dinheiro
tem só uma utilidade; é um instrumento de troca. Os outros bens têm
várias utilidades: uma fruta, p. ex., serve para produzir suco, geléia,
compota ou extrato, de modo que um aumento de sua quantidade tende
a satisfazer um maior número de consumidores. Como o dinheiro não
tem outra utilidade a não ser como meio de troca, um aumento de sua
quantidade não traz qualquer beneficio, ou utilidade social, embora
produza todos os males sobejamente conhecidos da inflação.

~
O aumento da quantidade de dinheiro, portanto, apenas diminui o
poder aquisitivo da unidade monetária; de outro lado, a contração da
oferta de dinheiro apenas aumenta o poder aquisitivo da moeda. Ou se-
ja, o mercado ajusta automaticamente o valor das unidades monetárias
às necessidades dos agentes econômicos. Isto só nos conduz a uma con- I
clusão: funcionando o mercado, a quantidade de dinheiro na economia I

não tem a menor importância no que se refere a benefícios para à socie-


dade. Ou, como escreve Von Mises: "A quantidade de dinheiro dispo-
nível na economia toda é sempre suficiente para assegurar a todos tudo
o que o dinheiro faz e pode fazer". Moral da história: em lugar de abra-
çar políticas monetárias que jamais trarão resultados benéficos, os cien-
tistas, os políticos e os estadistas deveriam livrar-se das superstições e
teorias sobre o governo e a quantidade 'correta' de dinheiro e tratar de
compreender que somente um verdadeiro mercado monetário (inclusive
sem o monopólio estatal) pode ser imparcial, racional e eficaz nessa

112

I 113
II
FILOSOFIA
POLÍTICA
26. Retrato em 3x4 da demarquia
São três os 'órgãos' ou 'agências' principais do governo demárqui-
co: a assembléia legislativa, a corporação governamental e o judiciário.
Suas 'funções' são, respectivamente, a de legislar em termos de normas
gerais de conduta; administrar os negócios públicos dentro dos limites
das normas gerais de conduta; e administrar a justiça sob a luz das leis e
a inspiração do Estado de Direito. Cada um dós órgãos será composto
de pessoas completamente distintas das que integram os demais, não
podendo haver nenhuma superposição entre os indivíduos que com-
põem cada um deles.
Ao órgão superior do sistema- que denominamos de assembléia le-
gislativa - cabe tratar, com dedicação exclusiva, da elaboração das leis
civis e criminais necessárias à condução da nação, leis essas sempre com
caráter de normas universais de conduta justa conforme definição cons-
titucional. A constituição, além de estabelecer as regras de organização
do sistema demárquico, definirá as propriedades que essas normas te-
nham que ter para terem validade de lei, tais como a de serem normas
de conduta uniformes e gerais; de caráter definitivo, embora sujeitas a
revisão sob circunstâncias especiais; aplicáveis a qualquer pessoa ou
grupo de pessoas, inclusive ao governo e ao legislativo e seus membros;
aplicáveis a número desconhecido de casos futuros, abstraídas, portan-
to, de quaisquer circunstâncias específicas de tempo e de lugar e referin-
do-se apenas a condições que possam ocorrer em qualquer lugar e a
qualquer tempo.
Para verificar se os atos da assembléia legislativa possuem ou não es-
sas propriedades formais caracterizadoras da verdadeira lei, basta um
tribunal constitucional, que decidiria, também, sobre os conflitos de

117
competência entre a assembléia legislativa e os outros setores do sistema. básico da demarquia que deve ser obedecido pela corporação governa-
Este tribunal não necessita deter nenhum poder positivo para fazer-se im- mental ao prestar seus serviços, elaborar regulamentações ou atender a
por. Só tem que ser completamente independente e imparcial(!) para deci- interesses específicos: subordinar-se sempre às normas gerais de condu-
dir sobre o caráter do que for resolvido pelo legislativo, de modo a esta- ta, decorrentes de um consenso de opiniões esclarecidas e não da mira-
belecer se se trata de lei que a todos deve obrigar. Uma condição funda- gem da chamada 'justiça social'( 2). E, como já foi enfatizado, essas
mental e determinante da demarquia é a de que o órgão legislativo não normas gerais serão elaboradas sempre e unicamente pela assembléia le-
seja organizado sob bases político-partidárias. Além de não serem vin- gislativa e jamais poderão ser influenciadas ou modificadas pela corpo-
culados a partidos políticos, os membros da assembléia legislativa não ração governamental ou pela vontade de grupos ou maiorias eventuais.
podem ser reeleitos. Isto, para livrar a instituição legislativa do jogo de Para executar as suas obrigações, a corporação governamental de-
influências, pressões, trocas de apoio e conflitos de interesses que po- márquica, como em qualquer outra forma de governo democrático, de-
dem afetar, como se observa nos dias atuais, a natureza do produto le- penderá do apoio de uma maioria organizada e comprometida com um
gislativo, deformando a propriedade das leis. . _ programa. Sua ação, por outro lado, deverá estar sujeita à fiscalização
Os membros da assembléia legislativa são escolhtdos, em processo de uma oposição independente e também organizada, capaz de, a qual-
democrático, por coetâneos. Aos candidatos não se admite filiação par- quer tempo, tornar-se governo. Daí a necessidade de, na demarquia,
tidária, mas exige-se uma certa idade mínima (45 anos, por exemplo) e haver, pelo menos, dois partidos.
qualificações que os próprios eleitores, individualmente, ~edirão, ao A demarquia contaria, ainda, com o poder judiciário. Que, ao ad-
escolher seus candidatos, levando em conta as responsabthdades e as ministrar a justiça, considera toda a estrutura legal permanente e a dou-
características das tarefas exclusivamente legislativas que serão a eles trina metalegal que constitui o Estado de Direito da demarquia. O judi-
atribuídas. Os mandatos são por longo período, de, digamos, quinze ciário será, também, obviamente, completamente separado e indepen-
anos, ao fim do qual os membros da assembléia ~ão irreelegíveis, em~o­ dente dos demais órgãos do sistema.
ra possam ser aproveitados em funções de magtstratura, sendo porem A demarquia é um sistema inédito muito simples, mas que vai à raiz
inelegíveis para quaisquer funções na corporação governamental: De dos problemas- vale a pena ser estudado e compreendido por todos
qualquer maneira, terão suas condições de vida asseguradas a parttr do aqueles que realmente prezam a liberdade e amam sua pátria(3),
término do mandato na assembléia legislativa. Sua implantação não necessita ser feita de uma só vez. O importante
Cada cidadão votaria, para a composição do legislativo, uma vez na é escolher o rumo certo e estabelecer um balizamento correto, para co-
vida (no caso do nosso exemplo, ao completar 45 anos), escolhendo meçar a reforma demárquica, isto é, a reforma em que o governo conti-
candidato, com a mesma idade, a legislador. Estas eleições democráti- nue sendo representativo do povo (demos), porém limitado a governar
cas poderiam ser anuais, renovando-se um quinze avos dos membros. (archein) subordinado a leis verdadeiras, as normas universais de con-
A corporação governamental constitui outro setor do regime demár- duta justa. No Brasil não será difícil realizar suaves alterações no atual
quico e compreende um órgão executivo e uma câmara de deputados, sistema que permitirão adentrar o caminho da demarquia: poder-se-ia,
ambos compostos de membros eleitos pelo método democrático conven- por exemplo, dar-se ao atual Senado atribuições exclusivamente legisla-
cional nos moldes dos atualmente adotados, inclusive obedecendo a es- tivas, tirando-lhe as vinculações partidárias, estabelecendo-se constitu-
quem~s partidários. As gestões poderiam durar de quatro a cinco_ anos, cionalmente a definição de lei e elegendo-se novos legisladores, dentro
como é hoje. das normas demárquicas aqui descritas, para complementar o atual
Na corporação governamental estarão todos os órgãos que adminis- quadro e também à medida que os atuais mandatos fossem vencendo.
tram os recursos materiais e pessoais à sua disposição para prestar ser-
viços aos cidadãos ou estabelecendo regulamentações gerais sobre mui- VISÃO, 24-7-78
tas de suas atividades, atendendo inclusive a interesses concretos da
maioria, ou seja, à vontade geral. Nisso não haveria prati~amen:e ~if~­
rença com os regimes atuais. A diferença fundamental esta no pnnctpto

(I) H. MAKSOUD, "A opinião e a lei na demarquia", em "Idéias para a Nação Progre- (2) H. MAKSOUD, "Sacrifício da liberdade a pretexto de uma justiça social", VISÃO
dir com Liberdade e Empreendimento", Editora Visão Ltda., São Paulo, março 23-1-78.
de 1978. (3) H. MAKSOUD, "Demarquia: a reforma política que buscamos", VISÃO, 6-3-78.

118 119
27. Nosso futuro político A classe dos intelectuais é surpreendentemente numerosa e o seu
campo de atividades se torna cada vez maior na sociedade moderna. A
na sociedade de informação lista de profissões e atividades pertencentes a esta classe não consiste
apena~ ~aqueles intelectuais óbvios como os jornalistas, padres e pasto-
A mais sutil e explosiva transformação que ocorre hoje na sociedade res rehgwsos, professores, conferencistas, publicitários, comentaristas
é a 'megamudança' de uma Sociedade Industrial para uma Sociedade de rádio e TV, autores de ficção, atores e artistas- que podem ser mes-
de Informação. A Sociedade de Informação traz mudanças que produ- tres nas técnicas de comunicação de informações mas que geralmente
zirão certamente influência crescente na maneira como as pessoas jul- são amadores no que se referem à substância das informações que co-
garão as instituições políticas. O impacto político da comunicação e da municam. A classe intelectual também inclui diversos tipos de profis-
informação sobre a sociedade moderna depende não apenas das carac- sionais~ técnicos, tais como por exemplo os cientistas, os sociólogos, os
terísticas tecnológicas dos meios de comunicação mas principalmente economistas e os advogados, que, graças ao seu habitual relacionamen-
da natureza das idéias contidas nas informações que nos atingem. to com a palavra .escrita, se tornam comunicadores de idéias fora de
Aliás, pode-se dizer que toda a história da evolução cultural da civiliza- seus próprios campos e que, por possuírem conhecimento especializado
ção é a história de um aprendizado baseado na absorção de informa- em seus respectivos setores, passam a ser ouvidos com respeito em ou-
ções captadas aleatoriamente dos meios de comunicação que a cada tros campos.
tempo existiram. Fora de nossos campos específicos de trabalho, somos neste aspecto
As informações chegam ao público em geral por caminhos e proces- todos homens comuns dependentes para nossa informação daqueles
sos indiretos e 'circuitosos', através dos intelectuais. Assim, o homem que fazem com que seja seu o trabalho de estar ao corrente com a opi-
comum adquire suas concepções sobre a história e sobre as condições niã? sobre o~ fatos e os eventos. Dessa forma, são os intelectuais que
da vida em sociedade não diretamente de historiadores ou de filósofos decidem quais os pontos de vista e opiniões que devem chegar até nós; e
mas por intermédio da conversa comum, das novelas e dos romances, que fatos são suficientemente importantes para nos serem comuni-
dos jornais e revistas, das peças teatrais, do rádio, cinema e televisão, cados; e também de que forma e sob que ângulo devem eles ser-nos
do discurso político, da pregação religiosa, e por meio das escolas e uni- apresentados.
versidades. Mesmo aqueles que nunca leram um livro passam a enxer- Os intelectuais funcionam como uma espécie de filtro (ou 'caixa
gar as coisas do passado e prospectar o futuro pela visão dos intelec- acústica') através do qual todas as novas idéias devem ser peneiradas
tuais. São eles que detêm o poder de moldar gradualmente a opinião antes de chegarem aos membros da sociedade. E já que "os intelectuais
pública, pela contínua e persistente comunicação de certos tipos mais são em geral intelectualmente honestos" é natural e inevitável "que si-
favorecidos de informação. gam suas próprias convicções sempre que tiverem escolha, e que tam-
Somos todos grandemente dependentes dessa nova classe de dissemi- bém ponham um viés correspondente a essas convicções em tudo que
nadores em segunda mão de idéias, em geral contrárias às bases políti- lhes passe pelas mãos". Mesmo que as políticas de comunicação sejam
co-institucionais do Liberalismo Clássico que deram partida e força à estabelecidas por empresários que tenham convicções diferentes das de-
Revolução Industrial, pois toda a tradição literária e a maior parte das les, é preciso não esquecer que a execução dessas políticas fica em geral
obras de historiadores das décadas iniciais da Revolução Industrial e de nas mãos dos intelectuais; e é óbvio que o caráter final duma informa-
todo o século XIX incorporaram aos pósteros tão-somente uma enorme ção dependerá muito da decisão quanto aos detalhes executivos da mes-
hostilidade e quase nenhuma informação factual econômica que possi- ma. Não é sem razão que mesmo os jornais e revistas, redes de rádio e
bilitasse uma avaliação objetiva do sistema que se passou a chamar er- televisão, e até as igrejas e universidades, de propriedade ou presididos
roneamente de "Capitalismo". Não estranha, assim, que os esquerdis- por gente classificada como 'capitalista', conservadora ou liberal são
tas de todas as tonalidades dirijam seu principal esforço no sentido de todos meios de comunicação que pregam o socialismo - porque e'ssa é
obter o apoio dos intelectuais, enquanto aqueles ingênuos democratas geralmente a convicção de seus quadros de pessoal.
mais chegados ao espírito do liberalismo clássico procuram atingir e A tendência dos intelectuais é tentar melhorar a sociedade de acordo
persuadir o eleitor individual. com algum ideal ou padrão concebido em teoria. Eles se revelam em
geral, avessos à idéia de que as relações dos homens na sociedad; são
uma questão de tentativa e erro. Recusam-se a considerar os sistemas
Sumário da palestra feita pelo autor no "Congresso Nacional de Comunicação e Infor-
mação" no dia 8 de outubro em São Paulo. políticos como expedientes pragmáticos do engenho e espontaneidade

121
120
humana e acham a sociedade livre "cansativamente desordenada e im- 28. A ação do governo na economia
previsível, confusa e insatisfatória". Conseqüentemente, não vêem ou-
tra saída senão aperfeiçoar o Estado como instrumento que visa a im- Venho há mais de dez anos tratando sistematicamente deste assunto
por os padrões ideais de sua escolha, criando "novos" modelos sócio- polêmico que é a ação do governo em todas as atividades de nossa vida
econômicos cheios de nobres sentimentos, justificativas enganadoras e econômica. Tenho observado que, como está acontecendo atualmente,
uma bela fachada "democrática". O resultado disso é um intenso e per- vez por outra ocorrem surtos de intensos debates sobre o elevado grau
sistente esforço intelectual no sentido de apagar todos os vestígios insti- de estatização da economia mas que, infelizmente, até agora quase ne-
tucionais do sistema político liberal clássico, que deu origem e sempre nhum efeito positivo trouxeram para o efetivo desinchamento da gigan-
sustentou o movimento acelerado da era industrial. tesca e onerosa máquina governamental. Em lugar de atenuar os pro-
Paradoxalmente, a luta contra a liberdade individual, o progresso blemas causados pelo excessivo ativismo estatal, a barafunda destes de-
pessoal e a livre iniciativa se deu justamente quando a humanidade co- bates só aumentou a ilusão de que é possível, impunemente, fazer o
nheceu pela primeira vez o que era uma sociedade livre. Todo esse es- governo atender a todas as aspirações individuais detectáveis no seio
forço de retrocesso da civilização se deve a forças atávicas advindas dos da nação.
milhares de séculos durante os quais a humanidade viveu na forma de Quando se fala em 'desestatização', é freqüente imaginar que a coisa
hordas de caçadores e tribos selvagens. se resume em o governo se livrar de certas empresas estatais, seja por
Na nova Sociedade de Informação, as inovações na comunicação re- sua venda a grupos privados ou, até, pela doação de ações aos 'menos
duzem grandemente a distância entre o intelectual e o homem comum. favorecidos', conforme modelo distributivista proposto há alguns
E, embora pareça que as amplas opções de comunicação tendem a fa- anos. Embora muitas empresas ou entidades estatais possam e/ou de-
vorecer o indivíduo e sua liberdade, não se pode menosprezar a trágica vam ser transferidas ao setor privado ou ser simplesmente fechadas, a
possibilidade de que os intelectuais, fazendo uso agora de uma fantásti- colocação do problema da desestatização apenas nestes termos leva a
ca tecnologia, persistam por mais algum tempo na concretização de debates estéreis sobre 'viabilidade financeira', 'desnacionalização', etc. e
seus ideais socialistas, pedindo sempre um Estado mais poderoso foge da possível solução imediata que seria a de começar agora mesmo a
clamando por mais governo, mais ação coletivista e menos liberdad~ reduzir a parafernália estatal simplesmente aplicando, por exemplo, o
pessoal. Decreto-lei 200, de 1967. Mesmo que num dado momento o governo pos-
sa estar mais apto para uma certa atividade, há sempre ampla margem
VISÃO, 15-10-84 para delegação de muitas atribuições a empresas competitivas do setor
privado. Não é de forma alguma necessário que o governo se envolva na
efetiva gestão de todas as atividades nos campos em que atua. Muitas das
atividades-fim e sem dúvida quase todas as atividades-meio poderiam ser
executadas mais eficazmente e a menor custo, se o governo apenas assu-
misse a ação promotora e financeira, deixando a condução da maior par-
cela possível das atividades a empresas não vinculadas a ele. O desincha-
mento não provocaria o chamado 'desemprego estrutural' e contribuiria
para solução do crônico déficit orçamentário governamental.
O aspecto grave do debate, no entanto, é que o fulcro da discussão
tem ficado muito nas questões casuísticas sobre as vantagens ou des-
vantagens imediatas da criação ou extinção de medidas ou de empreen-
dimentos governamentais. Isto obnubilou os juízos e critérios político-
filosóficos mais fundamentais de distinção entre os tipos de atividade
que seriam compatíveis ou não com um sistema de governo que fosse
efetivamente ·baseado na liberdade individual. Deixou-se de avaliar o
problema por meio de valores mais permanentes e marcantes para o in-
divíduo e a nação a fim de considerar tão-somente pontos de vista ba-
seados em razões de expediente, ou seja, apenas em considerações de

122 123
ção, a não ser para financiá-la pela tributação, que numa sociedade li-
conveniência, oportunidade e utilidade. É o caso dos chamados 'espa-
ços vazios', que serviram para justificar inumeráveis ações estatizantes vre será feita por meio de normas legais gerais que o executivo não pode
que, se tivessem sido considerados os postulados da ordem de mercado mudar e que são estabelecidas por um legislativo efetivamente separado
jamais teriam sido levadas adiante. ' do executivo. Se o governo reivindicar para si o· direito exclusivo de ex-
Uma sociedade livre não implica, porém, que o governo não deva ou plorar determinados serviços, deixará de haver esse caráter não coerci-
não possa prestar muitos serviços à coletividade ou estabelecer regula- vo, passando a ocorrer o monopólio. O Estado, entretanto, não deveria
mentações gerais. A argumentação clássica a favor da liberade no cam- possuir o monopólio de quaisquer atividades. É pelo caráter monopo-
po econômico sempre se baseou no princípio de que toda ação nessa es- lista e coercitivo da ação governamental que existe tanta objeção em re-
fera deveria ser compatível com o ideal político e a estrutura isonômica lação aos empreendimentos estatais. Há bastante justificativa para essa
do verdadeiro Estado de Direito. Para os clássicos do liberalismo, a li- objeção, pois sendo monopolistas torna-se impossível medir suas efi-
berdade de iniciativa significava liberdade subordinada ao Direito e não ciências e é muito difícil garantir que eles sejam conduzidos dentro das
a ausência de toda atividade governamental no setor econômico. Há, mesmas regras que a empresa privada. E, se não são monopolistas, o
na ordem de mercado, motivos suficientes para desejar-se que o gover- governo acaba transformando-os em verdadeiros monopólios na medi-
no: a) estabeleça determinadas medidas regulamentárias úteis ao pró- da em que, para auxiliá-los, utiliza seus poderes coercitivos, particular-
prio funcionamento do mercado e, b) preste, 'à margem do mercado' mente na tributação e no uso discricionário da capacidade de compra
determinados serviços que por esta ou aquela razão o mercado não pos: das organizações governamentais. Seria difícil para qualquer governo
sa, realmente, oferecer. dar estas mesmas condições às empresas privadas concorrentes em todo
O regime baseado na liberdade individual admite ampla gama de re- os campos. Por isso, permanece a presunção geral contra a empresa
gulamentação governamental, mas exclui todos os tipos de controles ar- estatal.
bitrários de preços e salários, de acesso aos negócios e ocupações e de Há, entretanto, setores em que não se questiona o interesse pela
quantidades produzidas ou vendidas. Prevê a existência de regulamen- ação governamental. Incluem-se aqui todas aquelas obras públicas que
tação da atividade econômica que não seja restritiva ao adequado fun- o governo tem de construir e manter porque, conforme escreveu Adam
cionamento do mercado e que possa ser estabelecida no âmbito do Es- Smith, principal mestre do liberalismo clássico, em seu "The Wealth of
tado de Direito sob a forma de regras gerais que especifiquem as condi- Nations" (Livro V, Cap. I, Parte III), "embora as obras públicas sejam
ções a serem obedecidas por todos, inclusive pelo próprio governo. É altamente vantajosas para uma grande sociedade, elas são de uma natu-
provável que essas regulamentações não sejam, na maioria das vezes reza tal que o lucro nunca pagará de volta o investimento a qualquer in-
medidas sábias e abertas. Elas certamente reduzirão a produtividade e: divíduo ou pequeno número de indivíduos; e por isso não se pode espe-
portanto, trarão aumento nos custos de produção. Dificultarão novos rar que qualquer indivíduo ou pequeno número de indivíduos devam
desenvolvimentos, pois serão sempre um freio à experimentação e à construí-las ou mantê-las. A realização dessa tarefa requer, também,
inovação. O efeito da produtividade sobre o custo para o consumidor volumes muito variados de despesas nas diferentes fases de crescimento
imposto por uma dada medida regulamentária, pode em geral ser leva: da sociedade".
do em conta na decisão final sobre a conveniência e utilidade da regula-
VISÃO, 31-8-85
mentação. Mas persistirá sempre uma forte suspeita contra muitas des-
sas medidas porque os custos totais delas decorrentes são sempre subes-
timados e também porque não se pode medir plenamente as limitações
ao progresso que elas impõem.
No que se refere à prestação de serviços 'à margem do mercado' é
evidente que a ação estatal deve ser mantida dentro de limites redu~i­
dos; constitui um perigo sempre iminente para a liberdade quando par-
celas significativas das fontes de riqueza ficam sujeitas ao controle do
Estado. E é importante destacar que, mesmo quando justificáveis, as
atividades da administração pública deveriam sempre representar uma
verdadeira prestação de serviço público, no antigo e tradicional sentido
da expressão. Essa prestação não deveria depender do poder de coer-

124 125
Direito quando saúda o filósofo político inglês John Locke
29. Direito, Legislação e Liberdade (1632-1704), por tornar claro que não pode haver liberdade fora da
ordem jurídica porque, como disse Locke, "onde não há lei não há li-
Creio que neste inicio da primavera de 1985 podemos dizer que já
possuímos em nossa língua, em versão brasileira, duas das mais impor- berdade ... Pois liberdade significa estar livre de coerção e da violência
tantes e mais completas obras escritas neste século sobre os complexos dos outros, o que não pode ocorrer onde não há lei; e não significa, co-
aspectos políticos, econômicos e morais da vida do homem em socieda- mo dizem alguns, liberdade de cada um fazer o que lhe apraz (pois
de. Em 1983 a Editora Visão lançou 'Os Fundamentos da Liberdade' quem poderia ser livre se estivesse sujeito aos humores de algum
outro?), mas liberdade de dispor a seu bel-prazer de sua pessoa, suas
do eminente filósofo político Friedrich A. Hayek e agora sai do prelo o
magnífico conjunto de três volumes de 'Direito, Legislação e Liberda- ações, bens e todas as suas propriedades, com a limitação apenas das
de' do mesmo autor, tradução de seu 'Law, Legislation and Liberty'. leis às quais está sujeito".
Pretendendo "preencher as lacunas" que descobriu depois de haver Ao contrário do que muita gente imagina, o verdadeiro Estado de
publicado 'Os Fundamentos da Liberdade', Hayek explica que 'Direi- Direito não significa apenas o império da lei. O Estado de Direito ("the
to, Legislação e Liberdade' é um trabalho suplementar, não um substi- rule of law") "é um ideal político que transcende a simples legalidade,
tuto daquele. Ele demonstra nesta obra por que as idéias básicas do li- pois concerne àquilo que a lei deva ser e implica que o governo nunca
beralismo clássico que há muito vêm sendo consideradas antiquadas se deva c~agir. um indivíduo, salvo no caso da aplicação de uma lei geral,
apresentam em verdade ainda "imensamente superiores a quaisquer conhecida, Igual para todos. Ele é então uma doutrina que limita os po-
doutrinas alternativas que tenham encontrado maior receptividade do deres de todo o governo. Limita os poderes do legislativo, pois os legis-
público nos últimos tempos". E conclui pondo às claras que o perigoso ladores somente podem elaborar leis que possuam os atributos de serem
~or.mas gerais e prospectivas de conduta justa. Além de, dessa forma,
rumo totalitário que vêm tomando os 'governos democráticos' dos paí-
ses mais avançados (em decorrência de certos defeitos institucionais hmltar os poderes do legislativo, o Estado de Direito estabelece que so-
profundamente arraigados de seus sistemas políticos) o levou a "uma mente o legislativo pode legislar. Uma lei produzida por um órgão não
nova formulação dos princípios de justiça e economia política", ou se- autorizado a legislar não será, portanto, uma lei de verdade". Estes
conceitos apresentam correspondência e se entrelaçam com aqueles da
ja, à exposição das bases de uma 'Constituição da Liberdade', que é o
doutrina da Separação de Poderes.
tema central deste seu trabalho.
O objetivo primordial de 'Direito, Legislação e Liberdade' é a liber- O ideal do Estado de Direito e a doutrina da Separação de Poderes
pre~supõem, na Constituição da Liberdade de Hayek, uma concepção
dade que Hayek define com muita clareza e de forma insofismável co-
mo sendo um valor uno e indivisível, pois que só existe uma liberdade, a mmto bem definida do que significa a palavra 'lei'. Na prática corrente,
liberdade individual. As duas outras expressões que também compõem no entanto, tudo que for estabelecido por um órgão legislativo ou mes-
o título do livro, 'Direito' e 'Legislação', correspondem a meios que mo por qualquer outra autoridade, por meio de algum processo de 'le-
precedem o fim maior que é a liberdade do indivíduo: o Direito, em ge- gis!ação', é chamado de 'lei'. Na maior parte, estas assim chamadas
ral preservando-a, e a Legislação, muitas vezes desafiando-a e colo- 'leis', porém, nada mais são que normas organizacionais relativas ao
cando-a ilegitimamente sob restrição, como mostram magistralmente modo pelo qual os governos devem conduzir suas máquinas administra-
os dois primeiros volumes, que ganharam os subtítulos de 'Normas e tivas e manejar os meios de que dispõem. São normas de organização
Ordem' e 'A Miragem da Justiça Social'. O terceiro volume, com o sub- governamental e não normas de conduta individual. Esta confusão tem
título 'A Ordem Política de um Povo Livre', examina pormenorizada- levado os chamados governos democráticos e as muitas ditaduras exis-
mente o porquê do persistente malogro dos sistemas de governo repre- tentes a usar freqüentemente o processo de legislação para criar normas
sentativos atuais e apresenta uma formulação constitucional básica, de organização fantasiadas de normas de conduta (leis) que são usadas
original, que tem por finalidade o cultivo e a salvaguarda da liberdade como instrumentos de perversão do verdadeiro Estado de Direito. Des-
~e ~odo os ~?':ernos tentam realizar a chamada 'justiça social' e alguns
individual. Neste volume, Hayek fala da 'Demarquia', neologismo que
dá nome a um novo sistema de governo, de que venho escrevendo há Juristas positivistas chegam a inventar um Estado de Direito degenera-
do que chamam de 'Estado Social de Direito'.
vários anos.
Apesar da predominância da liberdade na escala de valores de Hayek, Embora Hayek nos mostre que o Direito no sentido estrito de 'or-
ele enfatiza o quanto pode que a liberdad~ que ele tem em mente é a li- dem jurídica que visa à salvaguarda da liberdade' seja oriundo de um
berdade subordinada ao Direito. Ele proclama a liberdade no Estado de processo evolutivo, ele destaca que não se pode prescindir da legislação

126 127
por várias razões que pormenorizadamente descreve em seu livro. Ele
também ressalta que o "Direito é mais antigo que a legislação". E que a 30. O remédio constitucional para as endemias
legislação, dentre todas as invenções do homem, é aquela mais prenhe econômicas
de graves conseqüências, tendo seus efeitos alcance maior que os do fo-
go e da pólvora. E afirma que a legislação "continuará sendo um poder Os mais doídos problemas económicos que nos afligem hoje são em
extremamente perigoso enquanto acreditarmos que só será nocivo se verdade doenças endêmicas de natureza constitucional. Decorrem,
exercido por homens maus". pois, das normas de organização do sistema de governo vigente. Essas
Estes são apenas alguns poucos conceitos introdutórios encontrados endemias não são erradicadas, numa sociedade como a nossa, porque
neste importante livro, 'Direito, Legislação e Liberdade', que todas as as pessoas de responsabilidade simplesmente não querem uma consti-
pessoas que querem esclarecer-se sobre os problemas da vida em socie- tuição em que as atividades económicas sejam essencialmente baseadas
dade deveriam conhecer. na interação espontânea e auto-reguladora do mercado. Uma constitui-
ção assim é tida como 'politicamente impossível' no atual cenário socia-
VISÃO, 25-9-85
lista montado pelos intelectuais em geral. Se esse mito pudesse ser des-
truído, um arranjo constitucional baseado no livre-arbítrio individual
seria um tratamento definitivo para todos os males crónicos de nossa
economia. Como se daria essa cura? Tomemos como exemplo o caso da
persistente inflação e o inexorável crescimento do ativismo governa-
mental na economia.
Como não há limitação constitucional aos seus poderes de fabricar
dinheiro, tributar os cidadãos e empresas e aumentar o endividamento
público, os governos preferem sempre operar com cada vez maior défi-
cit orçamentário (despesa maior que a receita) e para cobrir a diferença
emitem mais moeda, tomam mais dinheiro emprestado e aumentam
ainda mais os impostos. Como conseqüência, penetram cada vez mais
na vida económica nacional. Produzem quatro males terríveis (a infla-
ção, a dívida pública, os impostos excessivos e a estatização) que atin-
gem duramente a vida de todos os indivíduos, embora a maioria das
pessoas não saiba exatamente o que está acontecendo. Essa situação ca-
lamitosa, no entanto, poderia ser evitada por um sistema de governo
inspirado na liberdade individual e constituído com fundamento no
ideal político do verdadeiro Estado de Direito e na doutrina da Separa-
ção de Poderes. Seria o que poderíamos chamar de Demarquia, um go-
verno constitucional democrático subordinado ao Direito.
Num regime governamental baseado no conceito de que a lei é geral,
prospectiva e igual para todos os cidadãos e instituições, não pode ha-
ver nenhuma autoridade com poder coercitivo sobre os contratos vo-
luntários e as ações pacíficas das pessoas. Nesse regime, a intervenção
do Estado só seria aceita (e apenas em cumprimento das normas do Di-
reito) quando houvesse coação e intromissão de uma pessoa, ou do go-
verno, na esfera de liberdade legalmente protegida de outra pessoa. E,
como a lei é igual para todos, nessa sociedade o governo não poderia
fazer o que fosse proibido aos indivíduos. Por imposição constitucio-
nal, seu orçamento teria que ser sempre equilibrado (sem déficit), os tri-
butos seriam essencialmente proporcionais e não progressivos e seus

128 129
gastos não poderiam exceder uma certa porcentagem do Produto Bru- vemos impedir o movimento internacional das pessoas, do dinheiro e
to. Assim, o governo não teria poderes nem para gastar sem possuir do capital, movimento esse que constitui uma salvaguarda dos dissiden-
meios reais de pagamento, nem para impedir ou obstruir as atividades tes políticos de escaparem à opressão.
económicas legítimas dos cidadãos e nem para criar taxas e impostos ar- É possível erradicar as endemias económicas que nos castigam inces-
bitrários e discricionários. Não poderia, pois, financiar seus gastos por santemente desde sempre. Para conseguir essa cura definitiva é necessá-
emissão de moeda sem lastro, promovendo a inflação, nem poderia au- rio tratar o 'corpo político' com adequados remédios constitucionais
mentar sem limites os tributos e nem endividar-se crescentemente sem baseados em determinados princípios e doutrinas aqui expostos. Com
qualquer vislumbre de equilíbrio orçamentário, como se faz nos dias de todas as vantagens decorrentes, não valeria a pena verificar se é de fato
hoje. Não poderia também distorcer a informação económica pelo con- politicamente impossível essa revolução constitucional?
trole de preços e salários e/ou por quaisquer políticas monetaristas,
keynesianas, estruturalistas, de 'justiça social', etc., que além de mas- VISÃO, 4-12-85
cararem a inflação levam os investidores a fazer maus investimentos
que eventualmente produzem falências, desemprego e outras desgraças.
Sob o regime demárquico, o Estado estaria separado não só da Igreja
mas também da Economia, pois um requisito imprescindível para a sal-
vaguarda da liberdade individual é ter fontes económicas bem distintas
do governo.
Nessa forma ideal de sistema político a produção de dinheiro não se-
ria um monopólio estatal. Se o governo pretendesse produzir dinheiro
estatal, teria de concorrer com os outros produtores; não poderia elimi-
nar a concorrência por algum tipo de pseudolei ou impedir seu surgi-
mento no mercado monetário. O governo não poderia, pois, compelir o
público a aceitar o dinheiro 'oficial'; a moeda, nesse sistema político,
seria parte do livre mercado, o qual ofereceria diferentes unidades mo-
netárias competitivas, inclusive moedas estrangeiras. A tendência seria
a de se ter dinheiros brasileiros de circulação e aceitação internacional.
Problemas de 'pacotes económicos' e de 'balanço de pagamento' e 'po-
líticas monetárias' deixariam de existir como tal.
Ao possibilitar a criação de um verdadeiro mercado monetário, a
Demarquia acabaria com a questão do aumento arbitrário da quantida-
de de dinheiro na economia e o cidadão, como faz com outras mercado-
rias, escolheria livremente as moedas que lhe garantissem melhores con-
dições como instrumentos de troca e mais estabilidade de poder aquisi-
tivo. Os bancos, subordinados às normas do Direito mas sem dirigismo
estatal, oferecendo juros competitivos incentivariam a poupança que a
cibernética do mercado equilibraria com as necessidades de novos in-
vestimentos. O livre funcionamento do mercado, inclusive do dinheiro,
eliminaria certas moléstias crónicas falsamente atribuídas ao 'capitalis-
mo', características das economias inflacionadas, resultantes do inter-
vencionismo monetário, geralmente representadas pela instabilidade
das atividades económicas, pelo alto grau de desemprego, pela grande
discrepância dos níveis de renda das pessoas e por distorções nos níveis
de investimento nos diferentes setores industriais. A abolição do mono-
pólio estatal do dinheiro tornaria também cada vez mais difícil aos go-

130 131
31. Uma Utopia liberal Não é o caso de clamar-se contra os socialistas por cativarem a men-
te dos intelectuais. Eles estão no seu papel de Utopistas que sabem per-
A grande lição que se deve absorver dos socialistas é a de terem eles feitamente que os intelectuais constituem uma classe muito eficaz de
tido a coragem de criar uma Utopia que lhes trouxe um maciço apoio disseminadores em segunda mão de idéias. Não é sem motivo que os
dos intelectuais e daí uma forte influência socialista na opinião pública políticos da Esquerda que tanto falam na democracia e na 'força da
e em toda a vida em sociedade. Nos dias de hoje o homem comum massa trabalhadora', na prática o que eles realmente querem é situar-se
aprende muito pouco sobre os eventos da vida social, fora dos canais de bem junto aos intelectuais. Assim, enquanto os candidatos mais chega-
comunicação controlados pelos intelectuais. O resultado disso tudo é dos ao espírito do liberalismo clássico procuram ingenuamente persua-
uma onda intelectual quase universal que vem usando a bandeira cha- dir o eleitor individual, como é próprio da verdadeira democracia, os
mada 'justiça social', que é predominantemente contrária à liberdade esquerdistas de todos os matizes dirigem seu principal esforço no senti-
individual, ao livre funcionamento do mercado e ao princípio da pro- do de obter o apoio dos intelectuais artistas, professores, escritores,
priedade particular. cantores, etc.
Quando se insinua para as pessoas que muitas de suas convicções Seduzidos pelo socialismo, os intelectuais desprezam a luta pela li-
político-filosóficas foram ou estão sendo afetadas por essa onda inte- berdade de iniciativa no mercado, embora sejam os primeiros a se re-
lectual predominantemente socialista, a maior parte delas responderá voltar contra qualquer obstáculo que se interpõe à sua liberdade de ex-
que nunca se interessou por esse tipo de coisa e que jamais leu ou pres- pressão. Embora este seja um grave equívoco, não se pode dizer que se
tou muita atenção a trabalhos de filósofos, historiadores, novelistas ou trata de um erro premeditado, pois "os intelectuais são em geral inte-
escritores socialistas. Entretanto, mesmo que seja assim, no final das lectualmente honestos"; e é inevitável, então, que eles "sigam suas pró-
contas todos passarão a enxergar as coisas do passado e prospectar o prias convicções sempre que tiverem escolha, e que também coloquem
futuro pelo ângulo de uma nova classe de comunicadores de idéias, os um viés correspondente a essas convicções em tudo que lhes passe pelas
intelectuais dos tempos modernos, que em sua maioria se incumbem de mãos".
fazer com que as pessoas tenham como fatos estabelecidos em suas O que está errado é não se aceitar uma Utopia verdadeiramente libe-
mentes as proposições da Utopia socialista. Estas proposições chegam ral que retome e faça progredir a corajosa aventura intelectual que foi o
ao público por caminhos e processos indiretos os mais diversos, tais co- liberalismo clássico. O que é preciso é um programa político que corrija
mo a conversa comum, os textos escolares, os jornais e revistas, a músi- radicalmente os erros cometidos na implantação do liberalismo e apro-
ca popular, as peças teatrais, o rádio, cinema e televisão, o discurso po- veite a experiência até agora adquirida, sem preocupações exageradas
lítico, as aulas nas escolas e universidades, e as pregações nas igrejas. com a viabilidade prática ou com aspectos que possam parecer politica-
A classe dos intelectuais aqui referidos é surpreendentemente nume- mente impossíveis de serem realizados. Um tal programa requer líderes
rosa e o seu campo de atividade cada vez mais se amplia na sociedade intelectuais que se agarrem aos princípios do novo ideal, que resistam
moderna. A lista não se limita àqueles intelectuais óbvios, como os jor- ao magnetismo do poder, à tentação eleitoreira e queiram trabalhar por
nalistas, clero, professores, conferencistas, publicitários, comentaristas um ideal, mesmo que sua completa realização não esteja à vista.
de rádio e televisão, autores de ficção, cartunistas, compositores musi- Uma forma de encarar essa Utopia liberal é a de como tornar possí-
cais, cantores, atares e artistas - que dominam as técnicas de comuni- vel um verdadeiro governo do povo, pelo povo e para o povo. Seria um
cação de informações mas que geralmente são amadores no que se refe- sistema de governo completamente diverso do proposto na Utopia so-
re à substância das informações que comunicam. Essa lista também in- cialista e também bastante diferente dos regimes híbridos das atuais
clui diversos tipos de profissionais advindos do meio acadêmico, tais 'democracias ocidentais'. Seria um governo, como até agora não exis-
como os economistas, os sociólogos, os advogados e os cientistas que, tiu, que fosse representativo do universo da população mas que, tam-
graças ao seu habitual relacionamento com a palavra escrita, se tornam bém, governasse garantindo a todo tempo o direito do indivíduo aos
comunicadores de idéias fora de seus próprios campos e que, por serem frutos de seu esforço, a trocar livremente seus bens com outros proprie-
especialistas reconhecidos em seus respectivos setores, passam a ser ou- tários, a ter, manter e dispor de sua propriedade e a ficar seguro de sua
vidos com respeito em outros campos. Todos sabemos, por exemplo, o posse, sem interferência arbitrária de qualquer pessoa ou autoridade.
quanto tem sido influente e penetrante até agora a ação intelectual so- Já que é praticamente impossível a qualquer povo governar-se dire-
cializante de diferentes grupos de professores de Economia nas institui- tamente, parte da questão (a do povo, pelo povo) é resolvida pelo esta-
ções político-governamentais brasileiras. belecimento, na constituição, de um procedimento democrático pelo

132 133
qual o povo escolhe certo número de representantes para exercer o po- to) haveria uma Assembléia Governamental, ambas eleitas democrati-
der em seu nome. Algumas constituições já conseguiram chegar a um camente em bases partidárias. O Judiciário seria também, pela primeira
alto grau de aperfeiçoamento neste aspecto. Mas não basta apenas apli- vez, completamente separado dos demais poderes, com independência
car corretamente o método democrático. O mero estabelecimento de administrativa e financeira.
uma adequada representatividade popular não responde à questão refe- Estas seriam muito resumidamente as bases do novo sistema de go-
rente a como deverão esses representantes governar para o povo, tendo verno que poderíamo~chamar de Demarquia. Os órgãos, as funções e
em vista o objetivo mais fundamental de todos, que é o da garantia da as pessoas que constituem os três poderes (Legislativo, Executivo e Ju-
liberdade individual. A questão do como governar é vital, pois não se diciário) seriam efetivamente separados entre si, o que até hoje não
pode esquecer que as pessoas escolhidas como representantes do povo aconteceu em lugar algum. O Legislativo não teria vinculação com os
são meros seres humanos imperfeitos. E, como disse James Madison, partidos para que esse poder seja de fato separado do Executivo e as leis
"se os homens fossem anjos, nenhum governo seria necessário. Se os não sofram influências dos interesses e paixões partidaristas. O partida-
anjos fossem governar os homens, não haveria necessidade de nenhum rismo existiria apenas no âmbito do Executivo, pois para executar suas
controle, interno ou externo, no sistema de governo". obrigações a Administração dependerá do apoio democrático de uma
A instituição de amplos direitos eleitorais não é, então, condição su- maioria organizada e comprometida com um programa. Sua ação, por
ficiente para tornar possível um verdadeiro sistema de governo do po- outro lado, precisaria estar sujeita à fiscalização de uma oposição inde-
vo, pelo povo e para o povo. A simples aplicação do método democráti- pendente (via Assembléia Governamental) e também organizada para,
co sem um balizamento constitucional que estabeleça limites à ação go- a qualquer tempo, tornar-se governo. Entretanto, nenhum representan-
vernamental produz (como já fez muitas vezes) sistemas híbridos e ins- te do povo, nenhuma assembléia democrática e nem mesmo o povo so-
táveis, de tendência totalitária. Nestes casos, a cúpula oligárquica e to- berano possuiria poderes ilimitados para impor leis que não obedeçam
da a parafernália político-partidária e tecnoburocrática, ao mesmo ao rígido critério de serem normas gerais de conduta justa, iguais para
tempo que cortejam e bajulam o povo, dito soberano, corrompem e todos e aplicáveis a número desconhecido de casos no futuro. Têm,
coagem esse mesmo povo, que se mostra incompetente e indefeso. Cor- portanto, de ser leis gerais, iguais para todos, prospectivas, abstratas e
tejam e bajulam prometendo o paraíso na terra e tudo o mais que nasce de caráter essencialmente negativo, proibitivo, em lugar de serem co-
da imaginação demagógica; corrompem trocando pseudoleis, casuísti- mandos positivistas, arbitrários e discricionários, como são as pseudo-
cas e discricionárias, por favores eleitorais; e coagem impondo infla- leis da Utopia socialista que também ocorrem freqüentemente em paí-
ção, dívida pública e tributos cada vez mais pesados para manter o in- ses como o nosso. Na constituição de um governo que além de ser do
chaço da máquina governamental e para cobrir os déficits públicos re- povo e pelo povo fosse também para o povo, essa 'norma de identifica-
sultantes dos programas antieconômicos e das promessas inexeqüíveis. ção' do que é lei de verdade teria de estar escrita, em linguagem apro-
O povo não será nem livre, nem próspero e nem feliz com a emancipa- priada e com destaque, na constituição. Isto não foi feito em nenhuma
ção eleitoral, se seus representantes no governo possuírem prerrogati- constituição, até agora.
vas ilimitadas que possibilitem que eles atuem, falando em nome do po-
VISÃO, 18-12-85
vo soberano, de modo arbitrário e discricionário.
O corolário indispensável da democracia na Utopia liberal é portan-
to um sistema de governo organizado conforme uma certa maneira. Se-
ria uma constituição que não só alocasse os diferentes poderes governa-
mentais mas que também obrigatoriamente limitasse esses mesmos po-
deres às esferas que lhes são próprias numa sociedade aberta. Essa
constituição precisa conter várias disposições radicais para a realização
do ideal do Estado de Direito e da doutrina da Separação de Poderes.
Uma delas, fundamental, é a clara definição dos atributos formais que
devem possuir todas as leis para serem válidas. Outra disposição é a de
se ter uma Assembléia Legislativa eleita democraticamente porém sem
partidarismo. Os Partidos operariam apenas no ramo Executivo do sis-
tema, onde além da Administração Pública (executivo propriamente di-

134 135
32. Concerto de idéias tismo totalitário. E o caminho equivocado (que muitas vezes vem asso-
ciado ao caminho demagógico) é comuníssimo entre nós, dada a confu-
Quem ler este artigo poderá pensar que tenha sido escrito ontem. são filosófica reinante; freqüentemente, por exemplo, misturam-se
Foi, no entanto, elaborado há oito anos e publicado em março de 1978, Descartes, Comte, Rousseau e Tomás de Aquino, com uma pitada de
na introdução do livro "Idéias para a Nação Progredir com Liberdade 'neokeynesianismo', na presunção de estar-se combatendo simultanea-
e Empreendimento", de Henry Maksoud, Editora Visão Ltda., São mente o comunismo, a autocracia, a iniqüidade social, etc. O resultado
Paulo. Não é como um filme antigo, mas creio que vale a pena ler final, também, é exatamente o oposto do pretendido.
de novo, pois retrata bem muitos aspectos importantes do momento Há também casos em que as idéias são interpretadas erroneamente e
presente. desvirtuadas. Exemplos clássicos de distorções são encontrados em es-
tudos sobre as obras de Adam Smith (1723-1790) e de John Maynard
Quando se transmite uma nova idéia, especialmente se ela destoa do Keynes (1883-1946). Tanto Smith como Keynes não foram felizes com
senso comum ou do que é mais alardeado pelos meios de comunicação, seus discípulos e intérpretes. Smith pagou o preço da sua grandeza ao
ela é geralmente recebida com estranheza ou com espanto, quando não ter suas idéias transmitidas. em segunda, terceira e mais mãos para mi-
é repelida. Por alguns ela é desprezada porque uma idéia sempre dá o lhões que não tiveram a condição ou o ânimo para lê-lo em primeira
que pensar, dá trabalho, puxa pelo intelecto. Por outros ela é rejeitada mão. Suas inspiradoras e proféticas idéias passaram a ser vistas como
'in limine' simplesmente porque não se enquadra nos conceitos ou pre- mais e mais embotadas ou retrógradas pelos equívocos e pela falsa in-
conceitos vigentes. Às vezes, entretanto, ela pode produzir alterações terpretação que se foram incrustando a cada versão incompetente ou
imediatas no procedimento do homem, mas o mais provável é que a sua espúria elaborada nestes últimos duzentos e tantos anos de decadência
influência venha a se exercer muito mais tarde. de nosso clima intelectual. Keynes também teve suas idéias e teorias
Certas idéias são mais usadas que outras e geralmente fora dum con- desvirtuadas. Seu processo segue, porém, outro caminho: em lugar de
texto filosófico. Isso pode conduzir a sérios equívocos no produto polí- as aderências incorretas levarem ao enfraquecimento, levaram ao exa-
tico final. As pessoas raras vezes sabem ou se interessam em saber se gero, à extrapolação e à aplicação generalizada de um remédio teórico
suas idéias advêm desta ou daquela linha de pensamento político-filosó- que tinha em vista uma doença económica específica. Isso ficou bem
fico; se de Hobbes ou Locke, René Descartes ou Adam Smith, Comte claro na conferência sobre Keynes realizada na British Academy, em
ou Hume, Kant ou Spinoza, Tocqueville ou Marx, Rousseau ou Mon- abril de 1971, 25 anos após sua morte. Seu amigo e colega Austin Ro-
tesquieu, Santo Agostinho ou São Tomás de Aquino, Kelsen ou Hayek, binson disse, então, que o próprio Keynes não seria hoje um keynesiano
ou se provêm de algum professor cujas idéias estiveram há tempos ou se visse a 'economia keynesiana' (que, como tal, hoje, é tida como um
ainda estão em voga no meio intelectual. A maioria nunca leu os traba- conjunto de panacéias para a doença económica dos anos 30) aplicada
lhos ou mesmo ouviu os nomes dos autores das concepções e ideais que indiscriminadamente a condições completamente diferentes do mundo
transitam em sua mente. O homem coruum, normalmente preocupado nas décadas de 60 e 70. É curioso, entretanto, que o próprio Lord Key-
com os problemas imediatos do seu dia-a-dia, não tem interesse e não nes se tenha tornado personagem morta do que profetizou em 1936 em
dispõe de tempo para se aprofundar no exame das partes que interagem seu "The General Theory of Employment, Interest, and Money": "Há
na cada vez mais complexa sociedade em que vive. Quando lhe é dada neste momento uma expectativa incomum por um diagnóstico bem fun-
oportunidade, ele escolhe uma entre as idéias que lhe são oferecidas e damentado; mais do que nunca, todos estão prontos a aceitá-lo e dese-
passa a aceitar uma doutrina política ou um conjunto de conceitos ela- josos de verificá-lo, desde que seja ao menos plausível. Mas, à parte es-
borados e apresentados por outros. Até aqui, nada de muito grave. É o ta disposição peculiar à época, as idéias dos economistas e dos filósofos
que se constata geralmente. Acontece, porém, que, se as idéias transmi- políticos, sejam elas corretas ou não, possuem mais poder do que co-
tidas forem conduzidas por caminhos demagógicos, como sói acontecer mumente se imagina. De fato, o mundo é governado por pouco mais do
nas teorias coletivo-distributivistas, que apenas elaboram em torno de que isso. Muitos homens que se consideram pragmáticos e livres de
certos fenômenos sociais (em geral verdadeiros), ou se forem levadas qualquer influência intelectual são, em geral, escravos de algum econo-
pelo caminho filosófico equivocado, se torna impossível chegar-se a um mista defunto. Os obsessos investidos de autoridade, que ouvem vozes
produto final de sistema político que permita a liberdade individual. O, no ar, destilam seus delírios inspirados em algum escriba acadêmico de,
caminho demagógico da 'justiça social', por exemplo, normalmente anos passados. Estou seguro de que se exagera enormemente a força
possui bandeiras 'democráticas', porém fatalmente desemboca no esta- atribuída aos interesses pré-adquiridos quando se compara esta força

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com a intrusão gradual das idéias. É natural que as idéias não atuem de blicado na VISÃO de 26-5-75 e na "Coletânea de editoriais de 1974 a
modo imediato, mas só depois de um certo tempo; isso porque, nos 1977", escrevi algo neste sentido que continua válido: ... "Expor uma
campos da economia e da filosofia política, raros são os homens de opinião crítica, lutar por uma posição, pode significar, muitas vezes,
mais de 25 ou trinta anos que são influenciados por novas teorias, de arriscar-se a um ato de retaliação, pois há, no Brasil, personagens do
modo que as idéias que os burocratas, os políticos e mesmo os agitado- serviço público que julgam a represália um direito sagrado. A triste e
res aplicam aos acontecimentos atuais não são provavelmente as mais detestável verdade, que temos tido a oportunidade de recolher, é que a
recentes. No entanto, cedo ou tarde, são as idéias, e não os interesses pré- ação inovadora dos homens que se atrevem a lutar por novas idéias ou a
adquiridos, que representam um perigo, seja para o bem ou para o mal". trilhar novos caminhos, ou dos que buscam tenazmente uma participa-
Muitas vezes as idéias não são debatidas com lealdade e decência. ção condigna de suas empresas em alguns setores, encontra, da parte de
Há sempre aqueles que preferem desdenhar as questões substantivas certos homens bem situados no poder governamental, dificuldades, re-
optando pela impugnação dos motivos e pela suspeição sobre a boa fé sistências e, mesmo, reações de cruel injustiça manifestadas por boi:
de quem propõe ou critica certas idéias. Usam com freqüência o méto- cote, difamação, discriminação, 'gelo', pressão económica, etc. ... E
do socialista de contracrítica que mostra mais interesse em desacreditar uma minoria atuante que assume autoridade maior que a que lhe cor-
o autor que em contestar seus argumentos. Sua máxima parece ser a de responde e age predatoriamente contra o empresário e sua empresa.
que "se não conseguires refutar os argumentos, difama o autor". Talvez não saiba, o mau representante do Estado, que a empresa é a
A coisa piora quando surge a questão sobre quem pode e quem não unidade de produção da economia e o empresário a sua força motora.
pode expor suas idéias e críticas independentemente de algum tipo de A penalidade resultante de abuso do poder, mesmó que surda e infor-
punição. Há, entre os que prezam a liberdade individual, unanimidade mal como muitas vezes sói acontecer, tem ressonância nacional e retrai
quanto ao princípio da liberdade de expressão. Não há, entretanto, a os empreendedores, afetando, pois, não só o desempenho desta ou da-
contrapartida unânime nos meios de comunicação de massa, quando quela empresa, mas acima de tudo comprometendo o próprio clima de
homens que questionam dogmas 'esquerdistas' ou apóiam idéias 'capi- desenvolvimento".
talistas' ou discutem a limitação do intervencionismo estatal na econo- Não se deve esperar, entretanto, que a influência de um pensamento
mia ou pregam o problema da liberdade com amplitude (isto é, abran- político se reflita nas tendências atuais. O seu conteúdo pode passar por
gendo não só os 'pensadores' mas também os 'fazedores') são virtual- um longo processo de maturação, que inclui seleção e modificação, até
mente 'cassados' por uma 'caixa acústica', ideológica ou pretensamente ser aceito e posto em prática. Para que a opinião pública possa desen-
ideológica, que controla internamente esses meios, não permitindo que volver-se livremente, quem oferece orientação não deve vincular-se ao
certas idéias atinjam normalmente o público ou que tenham o mesmo modo de pensar da maioria. Assim agem os filósofos políticos e assim
tipo de repercussão que outras idéias mais 'favorecidas'. devem agir os seus seguidOres, aqueles que divulgam e debatem os seus
Não é fácil defender certas idéias a favor da economia de mercado, pensamentos. Embora não devam assumir a posição de líderes que esta-
da liberdade de escolha, da propriedade particular, do mercado finan- belecem o que as pessoas devem pensar, é sua obrigação mostrar possi-
ceiro aberto e de livre acesso, e de uma democracia sem defeitos basea- bilidades e conseqüências da ação comum, oferecendo objetivos da po-
da na liberdade individual e não no coletivismo, em um país em que o lítica que a maioria ainda não imaginou ou para os quais ainda não
Estado interfere cada vez mais na liberdade individual, onde não preva- atentou.
lecem as regras do jogo de uma economia de mercado, onde todos se es- Nesta tarefa, o pensador político muitas vezes se opõe à maioria.
tão habituando a uma completa dependência às normas e decisões go- Aliás, não existe, de fato, melhor ocasião para o pensador político sus-
vernamentais em todos os campos de atividade, em que 700Jo dos recur- peitar de que está falhando em sua tarefa do que quando percebe que as
sos financeiros para empreendimentos são geridos por entidades esta- su~s opiniões se estão tornando populares. É insistindo sobre conside-
tais, e em que se alardeia o mito da inevitabilidade do socialismo. rações que a maioria não quer levar em conta e defendendo princípios
Dessa situação decorre o confronto dos autores das idéias e autori- julgados inconvenientes e aborrecidos que ele prova o seu valor. O fato
dade. Aqui se coloca o problema da censura, mas surge uma nova e per- de os intelectuais se curvarem perante uma convicção, simplesmente
versa forma de punição surdamente elaborada pelos estatocratas: a que porque é o pensamento da maioria, também é uma traição não somente
pretende atingir a liberdade de iniciativa, as realizações e o patrimônio à sua missão, mas aos verdadeiros valores humanos.
dos autores das idéias que possam significar perigo para o estatismo ou Foi o economista e filósofo inglês Alfred Marshall (1842-1924)
para certos interesses criados. No editorial "As lições do silêncio", pu- que, em 1890, disse que "os que estudam, falam e escrevem sobre o ho-

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mem, a política e a sociedade devem temer a aprovação popular, princi- 33. Saiba de onde saíram as idéias do pacote
palmente quando ela for unânime: o mal estará com eles quando todos (conheça o filósofo que faz sua cabeça)
falarem bem deles. Os que desejarem deixar o mundo e seus países em
situação melhor do que se não tivessem nascido não devem nunca ado-
tar e apoiar incondicionalmente aquelas idéias e opiniões cuja advoca- Todos conhecem o desenrolar dos eventos na área da economia políti-
cia possa aumentar as vendas de um jornal ou a audiência de um pro- ca nestes últimos dois meses mas poucos prestam atenção para os perigos
grama; eles devem fixar-se criticamente nas limitações e defeitos e er- das seqüelas político-filosóficas que as violações despóticas à liberdade
ros, se existirem, dessas idéias e opiniões. Os que assim fizerem serão, individual, ao Direito e à propriedade hão de produzir no progresso de
provavelmente, patriotas de verdade. Mas é quase impossível que ho- nossas instituições e, pois, em todos os aspectos de nossa vida pessoal.
mens como esses sejam verdadeiros patriotas e, simultaneamente, ga- O povo brasileiro foi envolvido a partir do último dia do mês de feve-
nhem a reputação de sê-los na sua própria geração". reiro por uma série de medidas de violenta intervenção no mercado, que
Divulgando, expondo ou debatendo pensamentos e pontos de vista o governo disse ter decretado para dar fim, de pronto, à longa e dolorosa
nossos e de outros com quem comungamos, como num concerto de doença da inflação. Todo mundo foi nomeado 'delegado do governo'
idéias, o fazemos convictos de que prestamos serviço útil à nação. E as- para acabar com os vilões causadores da alta contínua e generalizada dos
sim fazemos, também, a despeito das desleais e torpes ameaças e pres- preços. O êxtase participativo tomou conta do país, pois da noite para o
sões oriundas de uns poucos maus cidadãos, encastelados em posições dia desapareceu o mais desagradável "sintoma" da inflação- a escala-
de poder, que, talvez por preconceito ideológico ou por ambição cega, da dos preços nos supermercados e outros pontos-de-venda. Foi para es-
temem tanto as idéias, que se esquecem do dever e da honra. sa gente como se terminasse uma terrível dor de dente.
Os cínicos e os que pensam que o governo e a 'política' podem ser
VISÃO, 9-4-86 amorais admitem que os fins justificam os meios e colocam a questão
desse pacote como sendo uma de estratégia político-eleitoral. (Não é à
toa que tantos políticos e pessoas que buscam popularidade logo aderi-
ram ao fácil aplauso popular.) É que muito pouca gente sabe que a es-
calada dos preços não é a inflação mas apenas um "efeito" dela. É um
sintoma da inflação e não a própria inflação. É como a dor de dente,
apenas o sintoma de uma enfermidade qualquer - uma infecção, por
exemplo. A inflação é um fenômeno monetário que acontece quando a
moeda vai perdendo seu valor. Isso se dá sempre que o governo, por
qualquer motivo (geralmente para cobrir seus déficits), fabrica dinheiro
sem que tenha havido um aumento real da riqueza nacional. O governo
detém o monopólio da fabricação do dinheiro. SÓ ele, portanto, pode
especular com o valor da moeda, isto é, com a inflação. Não é, pois,
sem fundamento a idéia dos cínicos e dos amorais de que o pacote nada
mais foi que uma 'bela jogada' eleitoral visando às eleições de novem-
bro: use analgésico para tirar a dor e faça o paciente contente por uns
tempos; a infecção exige tratamento profundo e se for proposto o pa-
ciente pode não voltar ...
Há, no entanto, um outro lado muito mais grave da questão: mesmo
que a intenção pudesse ter sido apenas eleitoral, um objetivo político-fi-
losófico espúrio já foi atingido e pode levar o país ao totalitarismo.
Basta ir à raiz filosófica do problema para perceber isso.
O regime totalitário é a antítese do regime baseado na liberdade indi-
vidual. No totalitarismo não existe anoção do ideal político do Estado de
Direito (no qual, por exemplo, a lei tem que possuir determinados atribu-

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tos para ser lei de verdade) mas há somente o 'direito do Estado' (ou algo ção entre eles impede a realização dos objetivos de qualquer dos dois e
chamado 'estado social de direito'), onde predomina o positivismo jurí- apenas mantém uma situação de compromisso sempre instável.
dico e onde surgem aos borbotões as leis (pseudoleis) feitas de encomen- Nessa classificação, um dos tipos pode ser denominado de raciona-
da para atender aos interesses imediatos do governo. A separação de po- lismo evolucionário ou crítico e o outro - errôneo - de racionalismo
deres também não existe, pois o sistema de governo tende para a máxima construtivista ou cartesiano ou ingênuo.
centralização: o executivo, o legislativo e o judiciário são uma coisa só. O racionalismo evolucionário baseia-se no princípio da liberdade in-
Mas esse regime só se mantém totalitário - isto é, o poder total emana dividual e deu origem ao ideal político do Estado de Direito, à doutrina
do governo - porque não se admite a liberdade económica. da Separação de Poderes e ao conceito cibernético do mercado no âm-
A ação humana, espontânea, voluntária, que caracteriza a ordem de bito da economia. Esta escola acredita que o progresso humano somen-
mercado simplesmente não pode existir no regime totalitário. E foi jus- te será possível pela ação humana espontânea, voluntária. E também
tamente essa linha político-filosófica adotada no pacote da inflação ze- acredita que o uso efetivo da razão humana requer o devido insight
ro: esqueceu-se completamente do princípio da liberdade individual e quanto às limitações do uso eficaz da razão individual na regulamenta-
sua contraparte, o direito à propriedade. O vestígio do ideal do Estado ção das relações entre os seres racionais. O grande filósofo evolucioná-
de Direito que havia no Brasil foi apagado; além da inconstitucionali- rio Montesquieu escreveu que ''la raison même a besoin de limites''. E
dade do próprio decreto do pacote, o ato jurídico perfeito (o direito ad- Hayek enfatiza dizendo que "a razão é como um perigoso explosivo
quirido) foi pisoteado e falsas leis- como a Lei 1.521/51, da 'Econo- que, usado prudentemente, poderá ser bastante benéfico, mas, se for
mia Popular', e a Lei Delegada 4162 -foram desenterradas para im- usado imprudentemente, poderá estourar a civilização".
plantar o congelamento de preços pela força e o terror. Da separação de Revivendo a tradição do individualismo básico de Péricles, Cícero e
poderes nem se fala: a atual situação, quando era oposição, jurou ja- Erasmo, algumas das mais destacadas figuras do racionalismo evolu-
mais usar o iníquo método legislativo do decreto-lei; os congressistas cionário a partir do século XVII são: Bernard Mandeville, John Mil-
não paravam de discursar sobre a retomada de suas prerrogativas, mas ton, John Locke, David Hume, Montesquieu, Adam Smith, Adam Fer-
agora nem discutiram o famigerado decreto-lei; resta o refúgio do judi- guson, David Ricardo, Alexis de Tocqueville, Emmanuel Kant, F. Bas-
ciário, que, no entanto, nalguns casos tem aceito denúncias com base tiat, Friedrich von Schiller, Wilhelm von Humboldt, Lord Acton e os
no arbítrio policial e em pseudoleis de natureza totalitária. Quanto ao contemporâneos Carl Menger, Alfred Marshal, Ludwig von Mises,
mercado, é o caos: revogou-se a lei da oferta e da procura; quebrou-se Walter Lippman, José Ortega y Gasset, Sylvester Petro, M. J. C. Vile,
pelo tabelamento/congelamento o processo competitivo da sociedade Bertrand de Jouvenel, Friedrich A. Hayek e Karl R. Popper.
livre; e apagou-se o farol sinalizado r dos preços, que não só é impres- Embora suas origens estejam na antiga Grécia, com Platão, o racio-
cindível para balizar a alocação dos recursos da economia, é insubsti- nalismo constnítivista é um fenômeno relativamente recente cuja in-
tuível para possibilitar novos investimentos, mas também é um termó- fluência nos tempos modernos começa principalmente no século XVII
metro para medir a febre inflacionária provocada pela 'política mone- com Francis Bacon e Thomas Hobbes e, em especial, com René Descar-
tária' do governo. tes. Foi graças ao 'espírito geométrico' cartesiano que a expressão 'ra-
Para que o leitor verifique de que fonte saiu nosso pacote sugiro a zão' passou a possuir mais que um significado; e é por isso que este tipo
leitura que segue- o artigo "Conheça o filósofo que faz sua cabeça, de escola de pensamento também é conhecido como 'racionalismo car-
que publiquei na VISÃO de 20-6-83 e que também pode ser encontrado tesiano'. Os seguidores deste novo racionalismo passaram a disseminar
em meu livro "Os Poderes do Governo,, SP, 1984. que todas as instituições humanas úteis devem ser o resultado da cria-
ção intencional da razão consciente do homem. De acordo com Hayek,
A mais importante divergência político-filosófica de nosso tempo um crítico radical deste tipo de filosofia, o racionalismo construtivista
tem fundamento nas diferenças básicas filosóficas entre duas escolas de "é a doutrina que supõe que todas as instituições que beneficiam a hu-
pensamento, uma das quais é comprovadamente errônea, pois sempre manidade foram no passado e devem ser no futuro inventadas com ple-
que foi aplicada levou à autocracia, ao totalitarismo e à perda dos direi- na consciência dos efeitos desejáveis que elas produzem; que elas devem
tos humanos fundamentais. É possível dizer-se que as duas escolas se ser aprovadas e respeitadas somente enquanto pudermos demonstrar
baseiam no uso da razão e por isso são comumente chamadas de racio- que os efeitos específicos que elas produzirão em uma dada situação se-
nalismo. São, entretanto, dois tipos diversos de racionalismo baseados rão preferíveis aos efeitos que outro arranjo pudesse produzir; que pos-
em princípios irreconciliáveis entre si. Qualquer tentativa de composi- suímos em nossas mãos o poder de modelar nossas instituições, de mo-

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do que, de todos os possíveis conjuntos de resultados, aquele que mais 34. O poder, o mercado, a liberdade e o
preferirmos será o realizado; e que nossa razão nunca deve recorrer a
artifícios automáticos ou mecânicos, quando a consideração consciente progresso de cada um
de todos os fatores tornar preferível um resultado diferente daquele que
adviria de um processo espontâneo". A história da liberdade individual e da prosperidade pessoal é mui-
Todos os sistemas autocráticos e totalitários, tais como o comunis- tíssimo recente. Durante quase toda a existência da humanidade o ho-
mo, o fascismo, o nazismo e todos os 'socialismos' que grassam masca- mem viveu sem noção de que poderia ser livre como indivíduo e muito
rados em vários países chamados de 'democracia', têm sua origem nes- menos de que poderia almejar seu próprio progresso material. A liber-
se racionalismo construtivista. A árvore genealógica do construtivismo dade e a riqueza começaram a espalhar-se num ritmo firme e cumulati-
é grande e variada, possui raízes em Platão, desenvolveu-se principal- vo por áreas cada vez maiores do mundo apenas a partir de meados do
mente a partir do século XVII com Francis Bacon, René Descartes e século XVIII. O que tornou possível esse crescente progresso material
Thomas Hobbes, porém foi com B. Espinosa, Jean-Jacques Rousseau, das pessoas e conduziu a civilização à sociedade livre foi o surgimento
Voltaire, Saint-Simon, Georg Hegel e Karl Marx e com os utilitaristas e do sistema de governo liberal clássico, baseado na liberdade individual,
os positivistas filosóficos e jurídicos, tais como Jeremy Bentham, Au- no Estado de Direito e na doutrina da Separação dos Poderes. O libera-
guste Comte, John Austin, Paul Laband, Leon Duguit, Gustav Rad- lismo produziu um poderoso amálgama constitucional da 'liberdade
bruch e principalmente Hans Kelsen no campo jurídico, que o culto à política' com a 'liberdade econômica'. Essa combinação da democracia
razão construtivista cartesiana adquiriu maior vigor e se projetou larga- política com a ordem de mercado gerou o único surto persistente de
mente até muitos contemporâneos, como por exemplo Sidney e Beatri- prosperidade com liberdade que a humanidade conheceu em cerca de
ce Webb, George Bernard Shaw, John Dewey, H. G. Wells, G. Lukács, um milhão de anos de história. A despeito de ter esse regime político-
A. Gramsci, B. Brecht, Karl Mannhein, John Maynard Keynes e Gun- econômico criado "forças produtivas mais maciças e colossais do que
nar Myrdal. todas as gerações precedentes em conjunto", conforme atestou o pró-
As duas correntes básicas de pensamento que governam nosso modo prio Marx em 1848, os governos, mal orientados, ditos democráticos,
de ver e entender as coisas da vida em sociedade jamais se mesclarão vêm sempre provocando intervenções de controle na economia, causan-
porque se fundamentam em princípios irreconciliáveis. Qualquer tenta- do danos cada vez mais graves ao mecanismo auto-regulador de preços
tiva de amálgama entre o racionalismo construtivista e o racionalismo do mercado. O recente pacote da inflação zero é um exemplo extremo.
crítico - que significa o mesmo que tentar compatibilizar a liberdade Não houve apenas mais uma intervenção: a ordem de mercado foi arra-
com a escravidão - somente conduz a um regime instável. Não há dú- sada. No fundo, uma ação como essa tem a ver com um emaranhado de
vida de que a adoção de uma ou outra corrente nos levará sempre a algo equívocos sobre os conceitos de liberdade, riqueza e poder. Vale a pena
imperfeito; pois não há nada perfeito neste mundo dos homens. Depen- voltar a discuti-los para verificar como é importante o mercado para a
dendo, entretanto, da escolha, o resultado estará mais e mais próximo liberdade e o progresso material de cada pessoa.
do extremo escolhido: o totalitário, no caso do racionalismo construti- No discurso político, a liberdade é uma das expressões mais mal de-
vista; e o libertário, se a escolha for pelo racionalismo evolucionário. finidas e mal aplicadas. É uma das palavras mais usadas pelo homem
Eis a importância vital das idéias que nos guiam e dos filósofos que as quando ele quer fazer referência a algo sobre a vida em comum com ou-
produziram. Se você acredita que sabe o que quer, assegure-se de que tros homens. Todos clamam por liberdade, usam a mesma palavra, mas
não está misturando filósofos e filosofias irreconciliáveis. Conheça a li- o sentido do que querem traduzir não é sempre o mesmo. Além da con-
nha de pensamento do filósofo que faz sua cabeça. fusão causada aos indivíduos pelo conceito metafísico da chamada 'li-
berdade íntima' (que se identifica com as idéias de vontade própria, li-
VISÃO, 7-5-86 vre-arbítrio ou convicção pessoal- racionalizações conscientes de uma
pessoa), existe a perigosa confusão metafórica, introduzida pela dialéti-
ca socialista, em que o significado natural da palavra liberdade é substi-
tuído por outro. No argumento socialista, o conceito de liberdade pro-
voca uma ilusão de onipotência que conduz à identificação da liberdade
com o poder. Assim,"o que os tecnocratas e os políticos que os apóiam
chamam de 'liberdade coletiva' quando pedem mais intervenção no

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mercado não é a liberdade dos cidadãos, mas a liberdade ilimitada dos tro lado, porém, a 'liberdade econômica' é menosprezada e acusada de
próprios tecnocratas e políticos para fazerem com a economia e a socie- representar apenas interesses materiais egoísticos, sendo, portanto, as-
dade o que eles bem entenderem. É a confusão entre liberdade e poder sim, incompatível com o 'bem-estar geral' e os 'anseios da
levada ao extremo. coletividade'.
A partir daí, não há limites para os truques político-ideológicos. Ao pretender dividir a liberdade em 'econômica' e 'política', os so-
Lançam mão de todos os atrativos da palavra 'liberdade', para conse- cialistas de todas as tonalidades se baseiam na falsa equação que iguala
guir apoio popular a pseudoleis, arbitrárias e discricionárias, visando a a 'liberdade' ao 'poder'. Dai, para identificar o poder com a riqueza e a
destruir pouco a pouco a ordem de mercado, a propriedade privada e liberdade com a riqueza, bastam poucos esforços demagógicos e dialéti-
finalmente todos os vestígios de liberdade individual. Todos os dias são cos visando a aproveitar certas razões 'práticas' e as forças atávicas ain-
feitas exortações para que cada um de nós, em nome da liberdade, abra da contidas no espírito dos homens. As razões 'práticas' são todas
mão dos vários usos que se pode fazer da liberdade individual, tais co- aquelas que fazerp. as pessoas pensarem, por exemplo, que os malefícios
mo: a liberdade de empreendimento e de gestão empresarial; de expres- dos pacotes de intervenção no mercado somente atingirão os homens de
são e pensamento; de escolha do próprio salário e honorários profissio- negócios, os locadores, os 'mais ricos', e nunca a si próprias. As forças
nais; de filiação ou não-filiação a associações ou sindicatos; de escolha atávicas vêm da experiência feudal e anteriormente tribal por que pas-
e mudança da profissão e de trabalho; e a liberdade de vender, com- sou a humanidade por imenso tempo antes do surgimento da verdadei-
prar, alugar, poupar, investir ou consumir os bens próprios ou os recur- ra civilização, onde o poder (político e físico) mantinha relação de de-
sos gerados pelo próprio trabalho. Foi assim, aproveitando-se do sofis- pendência total com a riqueza. A idéia era de que o dinheiro simples-
ma de que a noção de liberdade individual não tinha mais razão de ser mente comprava o poder. Quando toda riqueza era obtida do cultivo da
na complexa sociedade moderna, pois, para atender ao 'bem comum', terra, ela só podia ser acumulada pela posse física da terra e pela subju-
poderia ser substituída pela idéia do poder coletivo, que os ideólogos do gação de indivíduos e famílias para cultivá-la. A riqueza e o poder
totalitarismo suprimiram fatia por fatia a liberdade, em nome da liber- eram, então, condições inseparáveis. A liberdade não existia nem mes-
dade. E é assim também que vem acontecendo nas nações, como a nos- mo como idéia; o que havia era mais, ou menos, tirania.
sa, ainda não entregues completamente ao totalitarismo. Dessa forma primitiva de usar a razão e os instintos advém a obses-
No Brasil, onde o bolo econômico é muito pequeno (renda per capi- são marxista de que a riqueza deva ser controlada pelo governo e por-
ta de US$ 1.600 comparada com USS 16.00Ó dos Estados Unidos, por tanto deva ser transferida do setor privado para as mãos do povo repre-
exemplo), observa-se um enorme esforço intelectual no sentido de fazer sentadas pelo Estado. Essa obsessão, entretanto, ataca frontalmente
crer que o ideal denominado 'justiça social' seria atingido redistribuin- um princípio fundamental da civilização: o de que a liberdade só existe
do à força a pouca riqueza disponível, igualando as situações e condi- quando existe uma separação muito distinta entre a riqueza e o poder.
ções de vida de todos, e estereotipando seu comportamento. E que, pa- A história do desenvolvimento da civilização mostra claramente que a
ra atingir esse objetivo, é preciso aceitar-se a doutrina (marxista) de que liberdade individual só passou a ter existência consistente quando e on-
o 'poder econômico' tem que ser transferido das mãos da 'elite capita- de ficou bem caracterizada a separação entre as fontes geradoras de ri-
lista' para a massa do povo. (E é exatamente isso que vem sendo feito queza e o poder. O surgimento e a afirmação de instituições políticas na
sistematicamente através de tributação progressiva, políticas salariais, história da humanidade mostram que o primeiro requisito para a exis-
impostos inflacionários, reforma agrária, projeto de 'lei' de uso do solo tência de instituições livres é ter fontes econômicas bem distintas do go-
urbano, e agora o pacote da inflação zero e subseqüentes ... ) verno; quanto mais fontes de riqueza e quanto mais independentes esti-
Nessa guerra intelectual, os marxistas por devoção e os que funcio- verem do poder, tanto mais livres, mais fortes e mais estáveis serão as
nam como se marxistas fossem vivem pregando que existem dois tipos instituições. No Brasil, neste 1986, estamos marchando no exato senti-
de liberdade: 'liberdade política' e 'liberdade econômica'. A expressão do oposto.
'liberdade política' é geralmente usada nesse contexto como sinônimo
de 'liberdade democrática', de 'democracia política' e de 'liberalismo VISÃO, 4-6-86
político'; e a 'liberdade econômica' é também chamada de 'liberalismo
econômico', 'mercado livre' e 'capitalismo'. De um lado, a 'liberdade
política' é exortada e defendida como sendo, de per si, um conjunto de
liberdades essenciais e de importância para a maioria do povo. De ou-

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35. Governo vs. Mercado (que se dá no Mercado). Outra forma, então, de mostrar a diferença en-
tre o 'poder econômico' e o 'poder político'- ou entre o Mercado e o
São quatro mil anos de registro histórico de tentativas governamen- Governo - é a de que o Governo detém o monopólio legal da força
tais de controle de preços e salários e nenhuma delas jamais deu certo bruta. Nenhuma pessoa ou organização privada possui tal poder; ne-
em relação aos seus objetivos proclamados de estabilização da econo- nhuma pessoa numa sociedade livre é depositária do poder legal de ini-
mia ou de combate à inflação. São quarenta séculos de vasta e diversifi- ciar o uso da força (ou de ameaçar usá-la) contra outras pessoas ou or-
cada experiência de malogros, documentada em diferentes épocas, po- ganizações para compeli-las a agir de maneira contrária às suas vonta-
vos, lugares, sistemas de governo e de economia que vão desde a Babi- des. A iniciação do uso da força é, por necessidade, prerrogativa do
lônia e do Código de Hamurabi até os inúmeros países do mundo atual, Governo. Como o Governo representa a força organizada, ele se carac-
com seus controles, tabelamentos e congelamentos. Mas como os ho- teriza pelo poder coercitivo- ou seja, o poder de aplicação do Direito.
mens, ou seus governantes, não conseguem reconhecer os erros do pas- Nenhuma organização privada, num regime baseado no livre mercado,
sado, e aprender com eles, continuamos fadados a simplesmente repeti- tem o poder de compelir alguém a aceitar qualquer produto ou salário
los. As explicações modernas para esses controles vêm sempre rechea- ou negar-lhe o direito de procurar outro produto ou salário. Só o Go-
das de uma mistura de ideologia, demagogia e teorias econômicas con- verno tem um tal poder, porém ele só o usaria num regime que não res-
fusionistas. Os socialistas justificam a intervenção do Governo na eco- peitasse o verdadeiro ideal do Estado de Direito. Isso acontece freqüen-
nomia (e, pois, na vida privada dos cidadãos) dizendo que o livre mer- temente nos regimes híbridos como o nosso. E é uma constante nos sis-
cado é puro 'capitalismo selvagem' que só conduz à exploração do ho- temas totalitários que hoje abundam pelo mundo, onde os governos
mem pelo homem. E os políticos aceitam docilmente falsas teorias que exigem a obediência aos seus comandos legiferantes falsamente chama-
obscurecem a realidade econômica, confundindo causas com efeitos, dos de 'leis'.
apontando os homens de negócios que aumentam seus preços como Nem o indivíduo nem o Governo têm o direito de iniciar o uso da
sendo os causadores da inflação, desviando assim a atenção do fulcro força (ou de ameaçar usá-la) contra outros. O indivíduo tem, todavia, o
do problema que é o inflamento pelo Governo da oferta de dinheiro. direito de se defender dos que iniciarem o uso da força contra ele. O di-
Ouve-se portanto, a todo momento, que, se o Governo não intervier no reito de autodefesa é a única coisa que, entretanto, numa sociedade li-
mercado para proteger os trabalhadores e os consumidores, o 'poder vre, ele deve delegar ao Governo, a fim de não ter que se armar e tam-
econômico' dos homens de negócios seria o único 'poder político' efeti- bém para organizar a aplicação do Direito. Mas, como o indivíduo não
vo e todos estaríamos dominados pela força arbitrária das empresas tem o direito de iniciar o uso da força contra outros, tampouco pode
privadas e seus representantes. delegar um tal poder ao Governo. O Governo legítimo existe, então,
Criando, de um lado, um sentimento de impotência popular face à apenas como delegado do cidadão, para agir dentro das normas do Di-
aura protetoral e de benevolência do Estado e, de outro, um bode ex- reito; sua função é punir os que iniciam o uso da força (ou os que amea-
piatório sobre o qual as pessoas podem concentrar suas desconfianças, çam iniciá-lo) para usurpar a vida, a liberdade e a propriedade de ou-
invejas ou frustrações, os demagogos e os ideólogos do intervencionis- trem. Sua ação é essencialmente negativa; não visa a fazer o 'bem', mas
mo geram um clima de absolvição do 'Governo Benfeitor' em relação a a evitar que o mal seja perpetrado e a punir os que o praticam. Os esbu-
quaisquer violações aos direitos individuais e à própria constituição. E lhos da liberdade e da propriedade inerentes aos regimes que pretendem
incitam o povo a ceder ao Governo parcelas crescentes de sua liberdade fazer o 'bem' testemunham quão perigosa é a ação positiva do Governo.
e todo o 'poder econômico' (e supostamente 'político' também) que os E o que é, então, o tão falado 'poder econômico'? Não é o poder
empresários e demais agentes econômicos teriam sob o regime do mer- dos ricos, ou dos homens de negócios, ou das empresas que os socialis-
cado livre. Já que essa representação do 'poder econômico' como equi- tas chamam de 'monopólios capitalistas'. É o 'poder' de agir com liber-
valente a um poder político arbitrário e discricionário vem sendo cada dade no campo econômico, subordinado apenas à ordem jurídica do
vez mais usada para confundir a opinião pública e para impedir o livre Estado de Direito, sem receio de limitações arbitrárias; criando, produ-
funcionamento da verdadeira Ordem de Mercado, é preciso alertar pa- zindo e comercializando os próprios bens e serviços. Na Ordem de Mer-
ra esse falso conceito, mostrando que o chamado 'poder econômico' e cado, onde ninguém pode usar a coerção contra outras pessoas, o 'po-
o 'poder político' são duas coisas diversas. der econômico' só pode ser realizado com o consentimento espontâneo
A diferença fundamental é a mesma que há entre a ação coercitiva e a cooperação voluntária dos outros cidadãos. No Mercado, os preços,
organizada (que é própria do Governo) e a ação humana voluntária os salários, lucros, perdas, etc. não são determinados pelo arbítrio de

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indivíduos ou classes, mas pelo equilíbrio de todos os fatores e manifes- 36. O pacote, a opinião pública
tações econômicos refletidos imparcialmente na cibernética do meca-
nismo de preços. No livre mercado, as pessoas, que em geral não seco- e a vontade popular
nhecem, cooperam inadvertidamente umas com as outras, trocando va-
lores voluntariamente, visando a benefício mútuo. E a riqueza, maior Os governos intervêm freqüentemente no mercado e muitas vezes
ou menor, advinda do·'poder econômico' (ação voluntária ou espontâ- conseguem aplausos que são consignados como se fossem apoio da
nea na economia) recai sobre os que, além de terem um pouco de sorte, 'opinião pública'. Foi o caso do extraordinário entusiasmo coletivo
se esforçam e são mais aptos para desenvolver melhores produtos e ser- com que foi recebido o pacote da inflação zero. Uma aprovação popu-
viços que venham a ser aceitos no livre mercado. Não se trata de produ- lar, no entanto, nem sempre representa a verdadeira opinião pública.
tos e serviços que o agente econômico pensa que os consumidores 'de- Pois o aplauso a uma decisão pode mostrar o que as pessoas querem
vem' querer ou preferir. num dado momento, mas não estabelece o que seria de seu interesse
Se, por 'poder econômico', os críticos do livre mercado se referem querer que se decidisse, se estivessem mais bem informadas. O povo
às 'boas relações' de empresários com o Governo a fim de obter vanta- brasileiro queria e quer o fim da inflação. Os economistas e os gover-
gens contra os concorrentes ou contra os consumidores (inclusive às ve- nantes, auxiliados pelos meios de comunicação, confundem o povoes-
zes até pedindo a intervenção pelo controle de preços, juros e salários), palhando que a inflação nada mais é que a subida dos preços; e que essa
esses críticos deveriam procurar ver que estes são defeitos inerentes ao escalada dos preços é sempre provocada deliberadamente pela especula-
que se poderia chamar de neomercantilismo dos regimes híbridos atuais ção e ganância dos agentes econômicos. Aproveitando-se da ignorância
(meio 'socialista' e meio 'capitalista'), e que a verdadeira Ordem de popular a respeito de como ela é gerada, eles apontam apenas para os
Mercado implica a separação entre o 'poder político' do Governo e as sintomas concretos da inflação (os aumentos dos preços) e para suas ví-
fontes geradoras de riqueza do 'poder econômico'. É bem verdade que timas mais visíveis (os assalariados), em lugar de mostrarem a verdadei-
a quantidade de poluição ideológica, demagógica e de enganosas teo- ra essência do mal, que é a expansão monetária produzida por vontade
rias econômicas que nos atiram nos olhos obnubila a tal ponto nossa vi- e decisão exclusiva do governo. Tabelam e congelam, pois, todo o mer-
são que até muitos dos melhores homens deixam de enxergar a vital im- cado, pretextando estar dando cabo da inflação para satisfazer à vonta-
portância dessa separação entre o Governo e o Mercado. Não é uma de do povo. Mas se o povo aprendesse que é impossível acabar com a
questão de opção: trata-se de uma necessidade imperiosa para a liber- inflação confundindo causas com efeitos, e também que para a nação
dade e o progresso da Nação. ser livre e próspera o mercado não pode ser violentado como está sen-
do, a vontade popular certamente tenderia a se aproximar rapidamente
VISÃO, 11-6-86 da verdadeira opinião pública.
Muita gente pensa que essas duas expressões - vontade popular e
opinião pública - significam a mesma coisa. Não é essa a verdade.
Elas representam dois conceitos absolutamente distintos. Para alguns
filósofos políticos, os problemas gerados pela confusão entre essas ex-
pressões estão dentre os mais graves de todos na ciência política.
É longínqua a procedência dessa confusão. O uso abusivo da expres-
são 'vontade geral' em lugar de 'opinião pública' vem da tradição ra-
cionalista construtivista de Platão (427-347 A.C.) e Descartes
( 1596-1650), porém sua generalização é creditada a 1. 1. Rousseau
(1712-1778). Para Rousseau a 'vontade geral' constitui a origem do
poder soberano e é o critério final para estabelecer a autoridade ilimita-
da em relação a todas as atividades sociais, políticas e econômicas. Em
sua obra "O Contrato Social" (1762), ele prega, por exemplo, que a
única fonte legítima do Direito é a universalidade da vontade geral e
não a própria justiça. Foi essa forma de interpretar a soberania popu-
lar, a representatividade do povo no governo e o Direito, que transfor-

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mou Rousseau no principal precursor do totalitarismo. Antes dele, os certamente seria punido se degenerasse o poder aquisitivo da moeda,
pensadores políticos clássicos chamavam de 'opinião' a base que sus- como faz agora, para impingir um imposto dissimulado a todo o povo e
tentaria as instituições de governo fundadas no Estado de Direito. Da- para pagar suas dívidas.)
vid Hume (1711-1776), contemporâneo de Rousseau e um dos mais A vontade popular, então, se refere a sentimentos que evocam ações
destacados filósofos do liberalismo clássico, assim se expressou sobre a específicas em busca de determinados objetivos concretos. A opinião
força da 'opinião': "Embora os homens sejam grandemente governa- pública, de outro lado, não visa a objetivos conhecidos, pois nada mais
dos pelo interesse, o próprio interesse e todas as atividades humanas é que uma disposição duradoura que guia, com base em normas abstra-
são inteiramente governados pela opinião. E, como a força está sempre tas de conduta justa, as ações das pessoas pela maior parte de suas vi-
do lado dos governados, os governantes somente possuem, para apoiá- das. A vontade é um impulso que incita a ação num dado momento mas
los, a opinião. É portanto apenas na opinião pública que o governo se que cessa quando a ação é tomada e o objetivo atingido. (Algo como no
baseia; e esta máxima se estende tanto ao mais despótico governo mili- caso da vontade de comer; saciado o apetite, passa a vontade.) As dis-
tar quanto ao mais livre governo popular,. posições da opinião, entretanto, não cessam, pois são permanentes ou
A substituição por Rousseau, e depois por Hegel (1770-1831) e se- quase permanentes; e servem para balizar muitos atos específicos de
guidores, da palavra 'opinião' pelo termo 'vontade' foi o resultado de vontade. (É assim que a opinião pública orienta muitos atos concretos
um preconceito racionalista cartesiano que imaginava que todas as leis da vontade popular através de ações legítimas de governo.)
foram 'inventadas' para exprimir 'vontades' visando a determinados As disposições da opinião pública compreendem sistemas hierárqui-
objetivos concretos ao invés de serem decorrência do descobrimento, cos altamente complexos contendo regras embutidas nos seres das pes-
ou da articulação, ou da formulação aperfeiçoada, de práticas e expe- soas, que não só estabelecem quais tipos de ação concreta conduzem a
riências que haviam prevalecido porque, de acordo com a 'opinião' dos um certo tipo de resultado, mas também indicam quais tipos de ação
membros da comunidade, elas produziram 'valores' mais aceitos e mais devem ser geralmente evitados. Estas disposições negativas contra tipos
viáveis que os que vigoravam noutras sociedades. Os 'valores' visados de ação que podem causar danos ao indivíduo ou a grupos de indiví-
pela 'opinião pública' não se referem a pessoas, eventos ou objetos em duos são uma das mais importantes adaptações que os indivíduos vi-
particular mas a atributos que muitas pessoas, eventos ou objetos dife- vendo em sociedade devem possuir para tornar a vida possível. Por is-
rentes possuem em diferentes lugares e diferentes ocasiões. Quando se so, nesse estrito sentido, os tabus e as inibições são uma base tão neces-
procura descrever esses valores através de leis, isso é feito por meio de sária à vida civilizada quanto são os conhecimentos positivos sobre que
normas gerais de conduta justa, às quais as pessoas, os eventos e os ob- tipos de ação produzirão um dado resultado. (Esta observação tem a
jetos se ajustam. As leis numa sociedade que respeita a verdadeira opi- maior importância para ajudar a entender por que os que prezam o pro-
nião pública, portanto, são baseadas em 'valores abstratos' comu•1s à gresso cultural atingido pela civilização combatem a desenfreada prega-
maioria dos membros da sociedade, e não em 'objetivos concretos', co- ção freudiana da liberação dos instintos. E serve do mesmo modo para
mo ocorre, infelizmente, nas atuais instituições brasileiras, mais dedica- indicar o quão retrógrado, reacionário, é o pacote e as pseudoleis que
das a satisfazer os impulsos de 'vontade' dos diversos grupamentos tec- ele adota, pelo ataque destruidor que faz a progressos vitais da humani-
nocráticos, ideológicos, eleitorais, sindicais ou de outros interesses que dade, que são o mercado e o ideal político do Estado de Direito.)
dominam momentaneamente o governo. O discurso destes tempos, lançando novas e messiânicas medidas de
E para se enquadrarem no Estado de Direito as leis só podem ser ela- intervenção violenta na política e na economia, é sempre recheado de
boradas por um órgão exclusivamente legislativo, separado dos dois frases que enfatizam o poder ilimitado da 'vontade do povo'. O texto
outros órgãos do governo, e têm que possuir certos atributos. Quanto trata com reverência a expressão 'opinião pública' mas a substitui pela
maiores forem as comunidades dentro das quais as pessoas pretendem 'vontade popular' quando pretende dar conotação de força a uma pro-
viver em paz, tanto mais abstratas e gerais devem ser as normas de con- posição que supostamente interessa ao público em geral, a uma classe
duta, as leis, que confinam os valores comuns almejados. Por isso, para ou à facção ideológica do autor. O que o observador atento e crítico po-
conseguir-se uma Ordem onde predominam a paz e o entendimento, é derá perceber na maior parte dessas manifestações, porém, é o intuito
preciso limitar os poderes de coerção do governo e fazer cumprir nor- de incitamento das massas populares no sentido de que elas realizarão
mas abstratas de conduta justa, conhecidas e certas, aplicáveis igual- os desejos, anseios e aspirações de cada uma das pessoas que as com-
mente a todos, inclusive a quem faz as leis, a quem as aplica e aos fun- põem, delegando aos governantes a faculdade soberana da vontade po-
cionários da administração pública. (Assim limitado, um tal governo pular. E foi assim que, em função do vibrante aplauso popular dado ao

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pacote da inflação zero, todos os órgãos do governo assumiram carta 37. A ilusão do Estado Benfeitor
branca e poder ilimitado, e passaram a agir sem mais nada levar em
conta, nem mesmo a própria opinião pública. Sempre que se tornaram mais agudas as dificuldades reais mas não
insolúveis de nossa economia, o que mais se fez notar foram as propos-
VISÃO, 18-6-86
tas vagas de reformas, principalmente as que propugnavam por um tal
de 'novo modelo económico', mais recentemente chamado também de
'modelo heterodoxo'. Com a intensificação da subida dos preços a par-
tir do último trimestre de 1985, os próprios economistas causadores
dessa escalada (fabricantes inveterados de dinheiro keynesiano sem las-
tro) criaram uma atmosfera de fim de mundo para poder mostrar o que
queriam dizer por 'novo modelo': uma intervenção violenta no merca-
do, tabelando e/ou congelando todos os preços e salários; impondo pe-
nas injustas aos supostos infratores pela via de pseudoleis 'da economia
popular', inadmissíveis numa sociedade livre; e revogando a lei da ofer-
ta e demanda, tudo isso através do famigerado 'pacote da inflação ze-
ro'. Sendo uma reforma antiinstitucional, seus autores certamente pres-
supõem-na como 'de Esquerda', já que o esquerdismo tem sido, princi-
palmente nos últimos cento e tantos anos, o lugar-comum da expressão
intelectual contrária ao progresso da ordem de mercado do mundo oci-
dental. Se essa coisa de 'Esquerda' e 'Direita' realmente existisse na for-
ma em que muitos a imaginam, esse reformismo quereria colocar-nos
ainda mais 'à Esquerda' do que já estamos, pois, no fim das contas, a
pregação é a de ainda mais ativismo governamental e menos liberdade
de iniciativa. Pretendem continuar vendendo a velha ilusão de que é
possível, pelo dirigismo governamental, controlar a vida económica do
povo, mantendo, simultaneamente, sua liberdade. Nesse pacote fantás-
tico, a liberdade muda de nome e passa a chamar-se 'libertação coleti-
va' ou 'felicidade coletiva'. E a fantasia vira dura realidade.
Quando a crise fica parecida com o caos, todos os princípios e cren-
ças tradicionais são engavetados e somente os efeitos aparentes e os ex-
pedientes mais imediatistas são postos na mesa para orientar os debates
e a ação. Na ausência de um adequado balizamento político-filosófico e
por um falso sentido de benevolência e compaixão, não se consegue
perceber a insensatez e o caráter totalitário que muitas vezes são conti-
dos nas propostas de reforma de mais fácil apelo popular. Por isso é
importante relembrar como evoluíram no passado as idéias que deram
sustentação às propostas estatizantes de reformas sócio-económicas.
Durante mais ou menos um século, desde 1848 até após o fim da II
Guerra Mundial (cerca de 1948), os discursos sobre reformas sociais
eram inspirados nos ideais do socialismo propriamente dito. Nesse pe-
ríodo, o socialismo (ou comunismo) possuía o significado preciso e ex-
plícito de ser um movimento que tinha por objetivo a estatização dos
meios de produção, de distribuição e de comércio, de modo que todas
as atividades económicas pudessem ser direcionadas de acordo com um

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planejamento global visando a um certo ideal chamado de 'justiça so- objetivos do 'Estado Previdenciário' somente podem ser conseguidos
cial'. As várias facções socialistas diferiam tão-somente no método po- por métodos contrários à liberdade; e que todos esses objetivos podem
lítico que seria adotado para 'reformar' a sociedade. O socialismo mar- vir a ser tentados pela via liberticida, como acentua F. A. Hayek em seu
xista e o socialismo fabiano (organizado através da Sociedade Fabiana, "Fundamentos da Liberdade", Ed. Visão, 1983.
Inglaterra, 1884) eram diferentes apenas na medida em que o primeiro Embora o mito seja de que o socialismo é uma fatalidade, poucos
era revolucionário numa certa etapa do processo e o segundo era são os que se apresentam apenas como socialistas. O que ocorre em
gradualista. abundância é o disparate dos que se dizem socialistas porém democra-
A partir do fim da II Guerra Mundial, os socialistas passaram a per- tas e se camuflam sob as mais diversas e ambíguas denominações parti-
der terreno devido principalmente à obviedade do descalabro nos regi- dárias que contêm em seus programas e slogans nada menos que as
mes socialistas já implantados, como por exemplo na União Soviética. mais ortodoxas receitas marxistas. Esta escamoteação é chamada de
Por razões táticas, abandonaram o culto formal do Estado e da sua in- 'via democrática' para o socialismo.
tervenção na política, na economia e na vida social. Trataram de fazer Os socialistas que preferem ser chamados de comunistas pouco dife-
com que todos acreditassem que 'socialismo' e 'comunismo' eram duas rem dos demais na associação final que pretendem fazer entre a demo-
coisas completamente distintas. Passaram a disseminar novos métodos cracia e o socialismo. Eles sabem perfeitamente bem que a democracia é
de ação e a buscar novos líderes ideológicos (tais como Lukács e um processo, um método político para tomada de decisões, e não um
Gramsci) e, inclusive, novas denominações. No campo da economia regime político com balizamento filosófico definido. Sabem que a de-
passaram a adaptar teorias propícias ao estatismo, como por exemplo a mocracia é um meio e não um fim e por isso tratam de usá-la abusiva-
coisa híbrida que chamo de 'monetarismo keynesiano-estruturalista' mente, inclusive fazendo com que a opinião pública se confunda supon-
(ver artigo na pág. 16 deste livro). Chegam hoje até a abjurar o próprio do que a democracia seja um fim em si mesma. Um exemplo interessan-
Marx, embora o marxismo seja ainda a linguagem mais conveniente te dessa associação foi dado pelo ex-secretário-geral do antigo Partido
que encontram. Renegam o termo 'socialismo burocrático de Estado' e Comunista Brasileiro, o líder socialista Luiz Carlos Prestes, quando,
procuram difundir a expressão 'socialismo democrático', que muito em entrevista à "Folha de S. Paulo" (18-11-79, pág. 8), declarou que
apreciam atualmente. Seu objetivo, entretanto, continua sendo a mes- " ... o socialismo é inerente à democracia. Não pode haver socialismo
ma 'justiça social', porém esta expressão deixou de ser apenas o ideal sem democracia . .. .Lenin já dizia em 1905 que a única forma de se che-
do socialismo para ser o próprio slogan do que seria o novo socialismo. gar ao socialismo é através do 'democratismo' absoluto . .. .Nós lutamos
As palavras de ordem são a 'igualdade' e a 'redistribuição da renda' e pela democracia econômica, política, social que abra caminho para o
os métodos são os da intervenção do governo, dos sindicatos e dos par- socialismo. Essa é a nossa bandeira estratégica. Mas a tática é a demo-
tidos no mercado. cracia atual. É a luta pelas liberdades democráticas. . ..A tática do PC
Nestas últimas décadas, o socialismo nos países do Ocidente mudou pode ser modificada da noite para o dia . ... Quer dizer: de um momen-
de aparência, pois passou a caracterizar-se também pelo que se chama to para o outro, se houver uma explosão popular no Brasil, o que não é
de 'Estado Previdenciário', 'Estado do Bem-Estar Social' ou 'Estado inviável, nós teremos que mudar a tática. E a tática será de chamar as
Benfeitor'. A expressão 'bem comum' (pretendendo denotar 'felicidade massas para empunhar armas, para derrubar a reação".
coletiva') passou a ser enfatizada nos discursos igualitaristas e redistri- Algo faz com que os socialistas abertamente caracterizados como
butivistas. A defesa da liberdade individual tornou-se mais difícil por- tais não escondam que a democracia é nada mais que um trampolim,
que a ameaça mais geral deixou de vir apenas dos socialistas nitidamen- uma 'tática', como dizem, que utilizarão para chegar ao fim colimado
te caracterizados mas passou a vir também da autoridade travestida de que é o socialismo. Veja-se, por exemplo, quão similares são essas de-
benfeitora. Essa ameaça se materializa quando o governo outorga a si clarações do líder comunista Prestes com as que Santiago Carrillo, se-
mesmo, pelo exercício de seu poder coercitivo, direitos exclusivos de cretário-geral do Partido Comunista Espanhol, escreveu em seu livro
realização do bem-estar do povo. O conceito de bem-estar geral da na- "Eurocomunismo y Estado", Barcelona, 1977: " ... os grupos sociais
ção, que se poderia ter como um ideal, degenerou no conceito do 'Esta- dominantes esforçam-se em jazer acreditar na noção ideológica de que
do do Bem-Estar Social' ou 'Estado Benfeitor', que pode significar a democracia = capitalismo e, ao inverso, de que socialismo = domi-
quase qualquer coisa. Há certamente necessidades comuns que podem nação soviética . ... Certamente, a via democrática ao socialismo supõe
ser satisfeitas pela ação coletiva e que podem ser assim atendidas sem um processo de transformações econômicas distinto do que poderíamos
restrição à liberdade individual. Mas é preciso ressaltar que alguns dos considerar de modelo clássico. Isto é, supõe a coexistência de formas

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públicas e privadas de propriedade durante um longo perfodo ... O su- 38. As saudades do recente passado tribal
frágio universal, entretanto, não é a panacéia que vai remediar todos os
males; .. .Pode ser que, na transformação do Estado atual em um Esta- Poucos sabem que a história da civilização cobre um tempo que é
do apto para o exercicio de hegemonia das forças socialistas, a aliança menor que um por cento do tempo de existência da humanidade. Du-
das forças trabalhistas e culturais não seja obtida somente através de . rante os noventa e nove por cento restantes o homem viveu na forma de
uma ação política e de medidas democráticas de governo; pode ser que, hordas de caçadores e de tribos selvagens. Predominavam apenas os
em um determinado momento, se faça necessário reduzir pela força re- instintos inatos e, mais recentemente, também a razão consciente. Tal-
sistências de força ... ". O dirigente do Partido Comunista da Espanha vez ainda menos gente saiba que, mesmo muito após começar o período
conclui dizendo que se o socialismo "tiver o apoio popular, conquista- da civilização, não havia noção de que cada pessoa poderia acreditar no
do em boa lide democrática, e se tiver feito uma política inteligente de seu· próprio progresso material. Isto somente passou a existir e a se di-
democratização do aparelhamento do Estado, tanto da situação quanto fundir pelos povos a partir de meados do século dezoito - há menos de
da oposição, ele se encontrará em condições favoráveis para consumar 240 anos, portanto! Foi quando se deu a revolução industrial (também
sua obra e varrer os resfduos da hegemonia oligárquica". O que ele chamada de capitalismo) que, baseada nos ideais da liberdade indivi-
quer dizer é que, assim, ficarão sós, 'democraticamente', os socialistas. dual e do Estado de Direito, se caracterizava pelo livro funcionamento
E a inquestionável tentação totalitária de toda e qualquer facção do do mercado. Mas a magnífica vitória em favor do progresso humano,
socialismo. conseguida pela revolução liberal do século XVIII contra a vida "curta,
Seja lá por que razão for, a questão é que, no ambiente econômico brutal e sórdida'' de toda a história anterior, passou desde então a ser
combalido e na falta de cultura política e político-econômica em que vi- combatida por incríveis forças atávicas contrárias à liberdade. Obser-
vemos, não é difícil propagar que é possível o amálgama de dois ele- vando com espírito crítico o que se diz e o que se faz hoje a respeito da
mentos totalmente incompatíveis e heterogêneos: o do processo demo- vida em sociedade, destaca-se, no discurso político e na ação administra-
crático, que só sobreexiste num regime baseado na liberdade individual tiva, a preponderância do apelo aos instintos animais que haviam sido
e no verdadeiro Estado de Direito, com o do socialismo, cujo conceito é restringidos pela civilização e a certo tipo de racionalismo messiânico tí-
um só, coletivista, e cuja natureza é sempre totalitária. A 'libertação pico também dos tempos das hordas selvagens e do coletivismo tribal.
coletiva' dos que propugnam por mais intervenção governamental na A parte mais fundamental de toda essa evolução foi a da domestica-
vida econômica não é a liberdade dos cidadãos da comunidade mas ção do selvagem, que se completou muito antes de haver começado
o poder ilimitado dos tecnocratas planejadores para fazerem com o qualquer registro sobre a humanidade. E é justamente esta evolução bá-
mercado e a sociedade o que lhes der na veneta. É quando a quimera sica, pela qual somente o ser humano passou, que o distingue agora dos
pode transformar-se num verdadeiro pesadelo totalitário. Nascido da outros animais. O que, entretanto, hoje conhecemos por evolução cul-
benevolência. tural, isto é, o rápido e acelerado desenvolvimento da civilização, teve
lugar apenas durante o último um por cento do tempo de existência do
VISÃO, 25-6-86 Homo sapiens. Nesse processo de evolução da civilização, o homem foi
aprendendo e acumulando um repertório de 'regras de conduta' que
passou a constituir uma tradição, independentemente de qualquer ação
premeditada. Estas regras balizavam seu caminho indicando-lhe a for-
ma certa e a errada de ação em diferentes circunstâncias. Esse 'sistema'
de normas de conduta que ele foi adquirindo por aprendizado, na base
de tentativa e erro, deu-lhe crescente capacidade de adaptação a condi-
ções em contínua mutação e de cooperação com os demais membros de
sua comunidade.
Em lugar de dar vazão a emoções apenas perseguindo instintivamen-

Baseado em: "The Three Sources of Human Values", F. A. Hayek, Londres, 1978; "ln
Search of Cultural History ", E. H. Gombrich, Oxford, 1969; e "A meia-vitória que pode
transformar-se numa perda total", H. Maksoud, VISÃO, 28-5-79.

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te as necessidades mais sentidas ou certos objetos mais diretamente per- Na sociedade tribal a raça humana não ganhou muito em termos de
cebidos, o homem civilizado descobriu que a obediência a certas regras evolução cultural. Continuaram prevalecendo os instintos inatos sim-
abstratas de conduta que ele aprendeu ao longo do tempo se tornou ne- plesmente adaptados às circunstâncias, mas o uso da razão consciente
cessária para restringir os instintos inatos que não se enquadravam na também passa a ter destaque na construção de unidades sociais maiores
ordem social de uma sociedade livre. Mas é justamente contra esta espé- porém ainda 'solidárias' e, pois, fundadas na concepção de um fim úni-
cie de 'disciplina da civilização', isto é, contra esse sistema de normas co e de uma participação dos indivíduos baseada nesse mesmo fim co-
abstratas de comportamento, que o homem ainda se revolta. As persis- mum e em uma idéia comum do mérito individual. O indivíduo conti-
tentes exigências por uma 'justa distribuição' ou 'justiça social', que re- nuava privado da decisão moral quanto à maneira de viver sua própria
clamam o uso arbitrário e discriminatório de poder coercitivo organizado vida e, em lugar de ter reconhecida para si uma esfera de ação indepen-
(do governo ou dos sindicatos) para alocar rendas e múltiplos 'beneficios dente, é dirigido, alimentado, agasalhado, entretido e treinado como
sociais' conforme supostos critérios de mérito, são exemplos de atos de uma peça que serve a uma ordem hierárquica de necessidades da comuni-
revolta fundamentados num puro atavismo de sentimentos tribais. dade e sujeito ao poder autocrático de um chefe ou de uma oligarquia.
Para melhor entendermos a origem desse atavismo, é preciso que Embora nossos instintos estejam ainda governados pelas emoções
nos lembremos de que, anteriormente aos últimos seis a dez mil anos mais propícias ao êxito da pequena horda de caçadores, nossa lingua-
(durante os quais se desenvolveram a agricultura, as cidades e por fim a gem política espelha fortemente a 'solidariedade' de origem tribal, re-
grande e complexa sociedade atual), o homem viveu, durante pelo me- presentada pela ênfase ao ordenamento deliberado do ambiente social,
nos cem vezes mais tempo, em pequenos bandos de caçadores, com- pelos deveres em relação ao 'próximo' (ou seja, ao 'membro da tribo'),
preendendo no máximo algumas dezenas de indivíduos que comparti- ao 'bem-estar social' (ou seja, aos interesses da tribo, fix~dos pelo seu
lhavam o alimento caçado e/ou catado, se sujeitavam a uma estrita or- cacique), e em grande parte (como acontecia nas hordas e nas tribos)
dem hierárquica e defendiam o território comum que ocupavam contra ainda considera o estrangeiro excluído do círculo abrangido pelas obri-
quaisquer estranhos à horda. Eram bandos nos quais a busca em co- gações morais. Nesse ambiente, dominado por uma mistura de instintos
mum de um determinado objetivo, sob a direção do chefe do bando, primitivos com um racionalismo construtivista ingênuo, medram hoje
era uma condição tão importante quanto a alocação de diferentes por- as mais perigosas ameaças para a civilização livre: o socialismo, o falso
ções da presa aos diferentes membros, segundo sua importância para a nacionalismo e o sindicalismo desobrigado de obediência às normas do
sobrevivência do grupo. Foram as necessidades deste tipo de organiza- Direito.
ção social que determinaram muitos dos sentimentos morais que ainda O que tornou possível o desenvolvimento da civilização e conduziu a
nos influenciam e que ainda buscamos encontrar nas outras pessoas. humanidade à sociedade aberta foi a substituição gradual de uma estri-
(Dizem os estudiosos que provavelmente grande parte dos sentimentos ta ordem hierárquica de necessidades visando a fins obrigatórios e con-
morais então adquiridos não tenha sido objeto de evolução cultural pe- cretos por uma ordem espontânea baseada em regras gerais abstratas de
lo aprendizado ou imitação, mas que eram adaptações para aquele tipo conduta justa. Um tipo de jogo regulamentado, o do mercado, passou
de vida de instintos inatos ou geneticamente determinados.) a substituir a ação concertada sob uma única voz de comando. A gran-
Ao passar da moral da horda caçadora (na qual a raça humana viveu de vantagem que a humanidade conseguiu com essa substituição foi a
a quase totalidade de sua história) à que tornou possível a ordem de de tornar possível que certas informações amplamente dispersas entre
mercado da sociedade aberta que conhecemos desde o século XVIII, multidões de pessoas separadas entre si, que não se conhecem e que não
houve o longo estágio intermediário da sociedade tribal, mais breve que possuem objetivos em comum, pudessem ser transmitidas por um me-
o vivido pela espécie humana naqueles pequenos grupos, porém de mui- canismo auto-regulador (a cibernética do mercado) sob a forma de sím-
to maior duração que a que teve até agora a sociedade urbana, comer- bolos denominados 'preços de mercado'.
cial e industrial da civilização. A sociedade tribal representa em muitos O jogo do mercado passou a conduzir o progresso das comunidades
aspectos uma etapa de transição entre a ordem concreta da sociedade que dele lançavam mão porque, sendo um jogo aberto à participação de
primitiva de caçadores, na qual todos se conheciam e serviam a deter- todos, aumentava as oportunidades de todos. Isso se dava, porém, por-
minados fins comuns, e a sociedade aberta e abstrata, na qual impera que as remunerações dos diferentes indivíduos partícipes dependiam de
uma ordem resultante da observância por todos os indivíduos das mes- dados objetivos que ninguém conhecia totalmente e não da opinião que
mas regras de conduta, uma vez que usam de seus esforços, conheci- alguém tivesse sobre o que devia corresponder a cada um. Significava,
mentos e sortes pessoais na busca de seus próprios objetivos. também, que, embora a capacidade e o esforço melhorassem as oportu-

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nidades do indivíduo, estes atributos não lhe garantiriam determinadas nada por um sistema de normas gerais de conduta onde ele passou a
rendas. Significava, outrossim, que o processo impessoal que utilizava controlar suas emoções instintivas inatas, a cultivar as artes, a exercitar
todo esse conhecimento disperso lançava os sinais dos preços para indi- livremente sua razão e a adotar valores da civilização. Da mesma forma
. càr às pessoas o que fazer, mas não tinha nenhuma relação com as ne- como evoluiu a cultura e em conseqüência progrediu a civilização, am-
cessidades ou os méritos de cada um. O resultado do jogo do mercado é bas podem declinar e se perder. Há muitos profetas (sociólogos, econo-
função da aptidão, do esforço e da sorte dos participantes e serve para mistas, políticos, filósofos e outros intelectuais cartesianos, construti-
obter de cada partícipe a máxima contribuição a um fundo comum de vistas e positivistas) por aí apelando para as emoções primitivas do ho-
onde cada qual obterá uma parte incerta. Como no caso de qualquer jo- mem a fim de fazer suceder seus planos salvadores para a criação deli-
go, se as regras forem por todos conhecidas e respeitadas, o resu~tado berada de um novo tipo de sociedade que não explicam bem qual será.
poderá ser sempre classificado de bom ou mau, porém nunca de JUsto Aqueles que ainda não desconfiaram devem lembrar-se de que esses
ou injusto. profetas têm a seu favor o apoio atávico resultante dos instintos herda-
Como- asrendas denvadas de um mercado livre são muito diversas dos pela civilização dos tempos dos bandos de caçadores e das tribos
das remunerações relativas que caracterizavam o modelo de organiza- primitivas.
ção social no qual a espécie humana viveu durante muito mais tempo, e
que em conseqüência ainda governa os sentimentos dominantes, os ho- VISÃO, 16-7-86
mens deixaram de aceitar que os preços e os demais resultados do mer-
cado fossem devidos a circunstâncias desconhecidas, e os governos co-
meçaram a crer que, ditando-os, poderiam conseguir efeitos benéficos.
Passaram a surgir decretos arbitrários e discricionários de controles de
preços e salários. Quando começaram a falsificar os sinais, cuja idonei-
dade não estavam em condições de julgar (porque nem os governos nem
ninguém possuía toda a informação da qual os sinais eram a
resultante), na esperança de ajudar a grupos que se julgavam mais me-
recedores, as coisas começaram a ir irremediavelmente mal. Passou-se a
desprezar o fator eficiência no uso dos recursos e, pior ainda, despreza-
ram-se as perspectivas de ver cumpridas as expectativas de vender ou
comprar, baseadas na coincidência da demanda e da oferta. Nos qua-
renta séculos de registro de experiências de controles de preços e salá-
rios não há sequer uma só que tenha sido bem-sucedida no atingimento
.d~ _r:~s:ultados pretendidos.
O resultado é a confusão e o caos. O que mantém a civilização a sal-
vo até agora de sua completa destruição é a meia-vitória da evolução
cultural sobre os instintos inatos e o racionalismo positivista construti-
vista, conseguida a partir do século XVIII até meados do século XIX e
que tornou possível a liberdade individual e a sociedade aberta. Foi a
meia-vitória da norma geral e abstrata de conduta sobre o fim comum e
concreto como método de coordenação social que o consórcio fatídico
deste século entre o socialismo, o sindicalismo monopolista, o positivis-
mo jurídico e o democratismo irrefreado vem tentando transformar nu-
ma perda total. Quando as palavras cultura e civilização surgiram e fo-
ram difundidas no século XVIII, elas eram expressões sinônimas deva-
lores humanos usados para contrastar o barbarismo, a rudeza ou a sel-
vageria. A história da cultura, e, pois, da civilização, é a história da as-
censão do homem de um estado quase animal a uma sociedade discipli-

162 163
39. Vigília da liberdade e obsessão coletivista os conflitos que existem fora de si mesmas. As pessoas sadias são capa-
zes de muita contribuição para o verdadeiro progresso social porque ca-
Na noite de 28 de janeiro de 1852, o abolicionista americano Wendell da uma delas representa uma 'pessoa inteira' e não uma personalidade
Phillips usou, num discurso em Boston, frase que ficou famosa: ''A eter- dividida. Pelas suas características psíquicas, os indivíduos da classe 'Z'
na vigilância é o preço da liberdade". Ninguém pode questionar a elo- possuem uma tendência coletivista 'pró-sociedade' que é, entretanto,
qüência dessa expressão. Mas, em termos práticos, não seria o caso de antiindividual; são pessoas que reagem à sua insegurança íntima procu-
perguntar: e quem fará essa vigilância numa sociedade como a nossa? rando identificar-se com a autoridade. Não se trata de uma identifica-
A resposta pode estar contida num interessante estudo sobre a saúde ção saudável e madura porque não se trata de um processo que se de-
mental e a democracia publicado em Londres em 1965 pelo eminente senvolve espontaneamente. Essas pessoas procuram posições-chave de
médico e cientista inglês D. W. Winnicott, ex-presidente da Associação natureza coletivista e conseguem lá chegar com certa facilidade porque
Britânica de Psicanálise. Nesse estudo o Professor Winnicott define a gente comum sempre deixa o caminho livre para aqueles que querem
uma sociedade democrática madura como sendo "uma sociedade bem avidamente assumir papéis de autoridade. Uma vez nessas posições, es-
ajustada a seus membros individuais sadios". Isto quer dizer que aso- ses líderes imaturos passam a exercer predomínio sobre os antiindiví-
ciedade é 'madura' quando possui uma qualidade psicossocial que se duos manifestos da classe 'X', que aceitam esses antiindivíduos não
coaduna com a qualidade da maturidade individual que caracteriza seus manifestos da classe 'Z' como seus comandantes naturais. (O psicanalista
membros sadios. Nessa sociedade, num dado momento, "há suficiente Winnicott chama isto de 'false resolution of splitting' .) Conjuntamente,
maturidade no desenvolvimento emocional de uma proporção suficien- os 'X' e os 'Z' operam num sentido contrário ao do procedimento demo-
te dos indivíduos que compõem a sociedade, de modo a existir uma ten- crático de tendência libertária. Seriam provavelmente aqueles indivíduos
dência natural no sentido de criar, recriar e manter um adequado arran- tomados pela enfermidade que Carl Gustav Jung, o grande pioneiro da
jo institucional democrático" necessário à salvaguarda da liberdade. moderna psiquiatria, chamou de "obsessão coletivista".
Resta saber, então, qual a proporção de indivíduos adultos com maturi- Num trabalho publicado em 1957 ("The Undiscovered Self") sobre
dade psicossocial que um país deve possuir para criar e preservar uma a condição do indivíduo na sociedade atual, Jung indicou que, pelas
tendência democrático-libertária natural. Ou, inversamente, qual a suas estimativas, para cada caso flagrante de insanidade existem pelo
pr<'porção de indivíduos contrários à liberdade individual que pode menos dez casos latentes "que, conservando todas as aparências de
uma sociedade conter sem afogar essa tendência natural. Para respon- normalidade, têm uma concepção das coisas e um comportamento in-
der a esse questionamento, pode-se dizer que toda a carga da responsa- fluenciados por fatores inconscientemente mórbidos e perversos, e só
bilidade pela defesa da liberdade recai sobre uma parcela muito peque- raramente chegam ao ponto de manifesta demência". Jung reconhece
na da sociedade. Essa parcela pode ser representada pela equação que não é possível, por razões óbvias, haver estatísticas médicas relati-
100-(X + Y + Z), que determina a percentagem das pessoas que possuem vas à freqüência das psicoses latentes. Mas adverte que, "mesmo que a
suficiente maturidade individual e que somam espontaneamente aos relação entre psicoses manifestas e psicoses latentes seja menor que dez,
seus progressos pessoais uma adequada e bem qualificada noção de res- por pequena que seja essa percentagem da população, ela será ampla-
ponsabilidade social. O valor 'X' representa a percentagem dos indiví- mente compensada pela periculosidade peculiar desse tipo de gente.
duos psicossocialmente malsãos que possuem uma tendência antiindivi- Suas condições mentais são de tal ordem que, num ambiente de 'obses-
dual manifesta; 'Y' mede a quantidade de indivíduos com tendência são coletiva', eles são os adaptados e se sentem à vontade nesse
psicossocial indeterminada; e 'Z' é a percentagem dos antiindividuais habitat". Suas idéias quiméricas, suas pregações apoiadas por ressenti-
não manifestos. mentos fanáticos agradam à irracionalidade coletiva e encontram nela
Os indivíduos da classe 'Z' fornecem material para estudo de um ti- solo fértil, pois "expressam todos aqueles motivos e ressentimentos
po perigoso, socialmente imaturo, que sempre busca liderança em enti- que, nas pessoas mais normais, espreitam sob o manto da razão e in-
dades de natureza coletivista. Tanto quanto os antiindivíduos manifes- trospecção". Por isso, a despeito de seu eventual pequeno número em
tos da classe 'X', estes 'anti-sociais ocultos' não se apresentam como comparação com a população como um todo, "eles são perigosos como
'pessoas inteiras', pois necessitam encontrar e controlar todas as forças fonte de infecção precisamente porque a chamada 'pessoa normal' tem
conflitantes, no mundo exterior, fora de si mesmos, em contraste com poucas defesas psíquicas". E é também por tal razão, diz ele, que é tão
as pessoas sadias que conseguem detectar seus próprios conflitos inte- comum o preconceito de que tais e quais coisas (como um regime totali-
riores, bem como são capazes de visualizar dentro da realidade exterior tário, p. ex.) jamais acontecerão "conosco" ou em nosso país ...

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teressados e indefinidos a aderir à vigília da liberdade. Se essa vigilância
Diz também Jung que, "neste estado, todos os acontecimentos indi- não d~r resultado, mesmo uma nação cuja gente preferiria ser livre po-
viduais sofrem uma nivelação para baixo e um processo de obnubilação de der~v~r para o rumo de uma forma rudimentar de sociedade que na-
que distorce o quadro da realidade, transformando-o numa média con- da mais e, como ale~t~ Jung, que "o comunismo de uma tribo primitiva
ceituai ... A responsabilidade moral do indivíduo é então inevitavelmen- onde todos estão SUJeitos ao poder autocrático de um chefe ou de uma
oligarquia".
te substituída pela raison d'État. O objetivo e o sentido da vida indivi-
dual, que é a única vida real, não se encontram mais no desenvolvimen-
VISÃO, 23-7-86
to individual, mas na política do Estado, que, em última instância, atrai
toda a vida para si. O indivíduo é cada vez mais privado da decisão mo-
ral no que diz respeito à maneira como deveria viver sua própria vida e,
ao invés disso, é dirigido, alimentado, vestido e educado como uma
unidade social, alojado em sua determinada unidade habitacional e en-
tretido de acordo com os padrões que dão prazer e satisfação às massas.
A doutrina estatal aparentemente onipotente é, por sua vez, manipula-
da em nome do interesse do Estado por aqueles poucos que ocupam no
Governo as mais altas posições, nas quais está concentrado todo o po-
der. Aquele que, por escolha ou capricho, passa a ocupar uma destas
posições já não fica subserviente à autoridade, pois passa a ser a pró-
pria política do Estado, e nos limites da situação vigente age segundo
seu próprio arbítrio".
Se o indivíduo não estiver, então, enquadrado em uma das classes
psicóticas antiindividuais, dos 'X' e dos 'Z', talvez esteja dentre aqueles
que se qualificam pela sua maturidade. Mas não é correto dizer-se que
100-(X + Z) por cento são favoráveis ao indivíduo. Há também os que
estão na posição indeterminada da classe 'Y'. Estes podem ser influen-
ciados e podem pender parte para o lado que deseja o predomínio da li-
berdade individual e parte para o outro lado, que prefere o coletivismo.
Tomemos um exemplo: suponhamos que, num país, os
100-(X + Y + Z) de pessoas maduras pró-indivíduo e liberdade sejam de
apenas 30 por cento. Esses 30 por cento talvez influenciassem uns 20
por cento dos indeterminados (Y), perfazendo um total de 50 por cento
de pessoas com suficiente maturidade. Mas, se a percentagem de matu-
ridade cair de 30 para 20, é de se esperar que haja uma queda maior na
percentagem dos indeterminados capazes de agir com maturidade. Se
30 por cento de maturidade consegue congregar 20 por cento de indeter-
minados (ou seja, um total de 50 por cento), é provável que 20 por cen-
to de maturidade numa comunidade consiga coletar apenas 1O por cen-
to de indeterminados, ou seja, um total de 30 por cento. Conclusão:
conquanto 50 por cento do total possa significar, para todo fim prático,
uma tendência democrático-libertária natural, 30 por cento pode não
ser suficiente para evitar a submergência da liberdade individual pela
onda dos antiindivíduos (manifestos e não manifestos) que se somam
aos indeterminados que aderirem a eles por fraqueza, medo, ignorância
ou omissão. No final das contas, portanto, a liberdade depende de uns
poucos indivíduos maduros que procuram persuadir os cidadãos desin-
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166
40. Dusões humanas e realidades políticas mo personagens vivos, dotados de inteligência e de capacidade de julgar
o bem e o mal.
Sei que é difícil ao homem comum ter uma visão clara dos fenôme- E assim, através desse processo de antropomorfismo em que as enti-
nos sociais que afetam sua vida. Sei o quanto a pregação socialista, bem dades abstratas são personificadas, o estado e a sociedade se transfor-
como os falsos conceitos de participação democrática, embaça os legíti- mam em agentes onipotentes do justicialismo social que se sobrepoem
mos ideais políticos e a verdade sobre a ação humana na economia. Sei em importância aos próprios indivíduos. E o instrumento desse justicia-
como o engodo demagógico, ingrediente constante no discurso político lismo social são as ordens de comando arbitrárias e discricionárias que
dos tempos modernos, induz a conflitos sociais e inibe o progresso. Sei falsamente são chamadas de 'leis'. Na tradição constitucional represen-
outrossim que os políticos, os governantes e os disseminadores de idéias tativa ocidental, a lei verdadeira sempre teve o sentido de serem normas
se deixam influenciar demasiadamente pelas teorias e pelo cientismo gerais, abstratas e prospectivas de conduta individual, conhecidas, cer-
dos tecnocratas e dos professores. Mas sei também que os homens são tas e iguais para todos. Na vã tentativa de fazer o que chamam de 'justi-
facilmente ludibriados pela demagogia que tudo promete, pelo positi- ça social distributiva', procura-se dar aparência de legalidade e legitimi-
vismo jurídico que faz crer na existência de um estado de legalidade na dade aos atas de arbítrio e violência que são necessários para tal finali-
implementação do arbítrio distributivista, e se deixam fascinar por mui- dade. Aí, então, o conceito original de lei é falsificado pelo positivismo
tos outros logros políticos e de conceituação econômica, por sofrerem jurídico que despreza a equanimidade, a moral e a própria justiça para
de um mal chamado de auto-ilusão. possibilitar a elaboração de pseudoleis que nada mais são que coman-
Os homens, por exemplo, aceitam abrir mão de sua liberdade pes- dos arbitrários e discricionários visando a favorecer ou punir certos in-
soal em favor de uma figura de retórica chamada liberdade coletiva. divíduos, certos grupos ou determinadas empresas, de forma aparente-
Acreditam que pode haver justiça verdadeira quando são decretados mente legal.
atas legais discricionários acompanhados do slogan socialista da justiça Além de toda essa espécie de ludíbrio coletivo há, também, o triste
social. Abdicam por isso de suas responsabilidades pessoais em relação fenômeno da auto-ilusão humana. Por receio de responsabilidades, por
às suas próprias vidas para deixar que seus problemas sejam, por assim temor das incertezas da vida, o homem 'pede' que seja iludido, engana-
dizer, resolvidos por algum ente coletivo superior, como um sindicato, do por falsas promessas. É por isso que o subdesenvolvimento é difícil
um partido, ou o governo. de ser vencido: leva tempo até que se caracterizem e se desvendem os
Não é fácil ao homem moderno entender o que significa a individua- engodos e as promessas enganosas que os homens facilmente aceitam.
lidade, numa sociedade em que as idéias e as atitudes políticas são em A auto-ilusão humana é um excelente caldo de cultura para a dema-
geral voltadas para a massa. Não é fácil sensibilizar a maioria dos ho- gogia, o logro político e a mistificação conceituai dos problemas econô-
mens sobre as vantagens e a importância da liberdade pessoal una e in- micos. É também um veículo propício para as manifestações políticas
divisível quando o grupo econômico dominante é um movimento sindi- equivocadas dos irresponsáveis bem-intencionados que só servem para
cal de massa desinteressado e talvez até inimigo mortal da liberdade in- confundir a opinião dos menos avisados. O pior da demagogia, do lo-
dividual, porque seus líderes acreditam que sua força depende não só gro político e da mistificação econômica, entretanto, não são essas
da ação uniforme, disciplinada, unificada e solidária de seus membros, ações em si mas a frustração de todas as expectativas criadas por elas.
mas também da incondicional adesão de todos. Essa unidade e comple- Quando o governo, por exemplo, assume a responsabilidade pelo bem-
ta adesão não é difícil de viabilizar-se, pois se trata de pessoas que fo- estar, pleno emprego, saúde, educação e prosperidade de todos os cida-
ram ensinadas a descrer de sua capacidade de fazer bom uso da liberda- dãos, os custos de operação da máquina governamental podem crescer
de individual, e que também foram induzidas a crer que seu interesse além do ponto em que os governantes julgam ser 'politicamente viável'
material depende da negação dessa liberdade individual. cobri-los por meio de tributação normal, igual para todos. A partirdes-
se ponto, o governo passa a permitir que seus agentes lancem mão de
Quando não são renúncias à liberdade de ação individual em favor
toda sorte de artifícios no sistema fiscal (principalmente aqueles que
desses movimentos de massa, o que o homem comum perplexo encon- 'pegam bem' eleitoralmente ou 'politicamente'), introduzindo ou inten-
tra são pregações em favor do uso indiscriminado do poder legiferante sificando, por exemplo, a taxação progressiva, os tributos sobre heran-
como caminho para o estatismo. Nessas pregações, os conceitos de 'es- ças, os impostos sobre a propriedade e ganhos de capital e os chamados
tado' e 'sociedade' (que são em verdade abstrações políticas) são hipos- 'empréstimos' compulsórios.
tasiados, isto é, as abstrações passam a ser falsamente consideradas co- Como tudo isso nada resolve (pois, inclusive, é coisa mais ideológi-

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co-socialista que fiscal), o governo recorre ao financiamento de seu dé- 41. Que é mercado e que é economia. E por
ficit orçamentãrio e, portanto, ao inflamento dos meios de pagamento,
imprimindo papel-moeda e outros tipos de dinheiro. A inflação, então, que a intervenção no mercado leva à sociedade
dilui o poder aquisitivo da moeda produzindo toda sorte de frustrações fechada e antidemocrática.
e inconvenientes, como bem conhecemos no Brasil. Mas também o pior
da inflação não é a própria inflação mas o falso remédio, que usa o en- É importante relembrar a significativa diferença entre o que é mer-
godo político como ingrediente, como é o caso do controle de preços .e cado (ou economia de mercado, como costumamos chamar) e o que é
da intervenção no mercado. Intervindo no mercado, em lugar de deixá- economia. Principalmente num momento como o atual, em que se in-
lo livre e desimpedido, ele se estropia e a economia passa a existir em es- tervém violentamente no mercado para fazê-lo desaparecer. As concei-
tado de anarquia. Controlando os preços, desestimulam-se a produção, tuações que seguem já apresentei anteriormente em VISÃO de 13-11-78
a produtividade e novos investimentos, torna-se impossível o uso efi- e 17-9-84. Gostaria que desta vez o leitor dedicasse mais atenção à es-
ciente dos recursos, desaparecem os produtos (e até sobem os preços) e treita correlação entre o funcionamento desimpedido do mercado e a
o melhor que se consegue com o controle de preços é 'esconder', 'fal- existência da ordem política -de uma sociedade livre.
sear' a inflação, que passa a ser apelidada de 'inflação reprimida' que é A intervenção no mercado, que conduz à destruição da liberdade,
pior em seus efeitos que a inflação aberta. decorre dum modo de pensar estatizante baseado no racionalismo cons-
Ao invés de desinchar criando clima político favorável ao desenvol- trutivista cartesiano. Os filósofos liberais do século XVIII conseguiram
vimento de instituições fundadas na espontaneidade e na ação voluntá- algo notável ao mostrar o grave erro do pensamento racionalista cons-
ria dos indivíduos, os políticos e os governantes, com o apoio de seus trutivista de períodos anteriores, que considerava todas as instituições
economistas, preferem entrincheirar-se na posição, que lhes parece político-sociais como sendo produtos de projetos deliberadamente ela-
mais segura e permanente, de que o Estado a todos e a tudo proverá. borados para atingir fins previsíveis e prefixáveis. Eles substituíram es-
Essa preferência é, porém, também, uma grande ilusão. se racionalismo construtivista ingênuo por um raciocínio crítico e evo-
lucionário que levava em conta as condições e limitações do uso efetivo
VISÃO, 30-7-86 da razão consciente no desenvolvimento do ambiente social. Essa nova
compreensão se baseava na verdade fundamental de que todo esforço
voltado intencionalmente para 'construir' uma ordem social se dará
sempre dentro de uma ordem muito mais abrangente que não é resul-
tante de um esforço intencional, sendo, isto sim, o resultado de um de-
senvolvimento empírico, não-sistemático, espontâneo.
Entretanto, a tentação existente no sentido de considerar toda a or-
dem social como parte de um planejamen1.o deliberado ou de uma orga-
nização intencional decorrente da ação humana sempre dificultou a
compreensão de que nem toda ordem que resulta da interação dos ho-
mens é produto de um desígnio. Esta tentação advém de conceitos filo-
sóficos da chamada 'tradição francesa' imbuída nos racionalismos de
René Descartes e Thomas Hobbes, e tendo como representantes clássi-
cos mais conhecidos Spinoza, Rousseau, Saint-Simon e o fundador do
positivismo Auguste Comte.
Uma ordem existente, ou que se formou independentemente de
qualquer desejo humano, constitui uma ordem espontânea ou um 'cos-
mos'. 'Cosmos' é a denominação advinda do grego antigo que alguns
filósofos políticos modernos recomendam para distinguir a ordem es-
pontânea da ordem artificial, 'construída', 'projetada', 'sistemática'
ou não-espontânea, que chamam de 'taxis'.
Quando se trata de usar recursos limitados conhecidos, para atender

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aos objetivos de uma dada unidade hierárquica, o método mais efetivo realização de determinados fins"; "é o estudo da maneira pela qual a
será o de um 'plano' ou 'organização', ou seja, um 'taxis'. Mas, quan· humanidade realiza a tarefa de organizar suas atividades de consumo e
do a tarefa envolve o uso de conhecimentos dispersos entre milhares ou produção"; "é o estudo de como melhorar a sociedade"; ou, "é o estu-
milhões de indivíduos separados entre si, e acessíveis somente a eles, o do de como os homens e a sociedade decidem empregar recursos produ-
uso de forças espontâneas de ordenação ('cosmos') será melhor. Nou- tivos escassos para produzir diversas mercadorias ao longo do tempo e
tras palavras: as pessoas que não possuem objetivos em comum, espe- distribuHas para consumo, entre diversas pessoas e grupos da socieda-
cialmente as que não se conhecem ou que não sabem das circunstâncias de. Ela analisa os custos e os beneficias da melhoria das configurações
umas das outras, poderão formar uma ordem espontânea mutuamente de alocação de recursos".
benéfica e pacífica se se submeterem às mesmas normas abstratas: as A ordem espontânea do mercado responde plenamente à definição
normas gerais do Direito, por exemplo. A formação de uma 'organiza- de 'jogo' que se encontra nos bons dicionários e que designa "uma
ção', ou seja, um 'taxis', poderá dar-se, entretanto, se todos se subme- competição sujeita a regras e na qual decidem a maior habilidade, a for-
terem à vontade concreta de alguém, o chefe da tribo, um governante, ça e a sorte". Trata-se, pois, no caso do mercado, de um jogo tanto de
um grupo de gestores sindicais, por exemplo. Para formar um 'cosmos' destreza como de sorte, e que serve 'para obter de cada partícipe a má-
comum, as pessoas só precisam, pois, concordar com regras abstratas xima contribuição a um fundo comum, de onde cada qual obterá uma
(normas gerais de conduta justa aplicáveis em número incerto de casos parte incerta'. O mercado funciona, como em todos os jogos, de acor-
futuros), enquanto que, para formar uma organização, elas precisam do com regras que todos conhecem, iguais para todos, aplicáveis em
ou concordar ou ser forçadas a aceitar uma hierarquia de objetivos pre- número incerto de ocasiões futuras e que guiam as ações dos indivíduos
determinados. Portanto, somente um 'cosmos' pode constituir uma so- participantes. São regras universais e abstratas. Os intentos dos partíci-
ciedade aberta, livre, enquanto que uma ordem política concebida co- pes, suas perícias e graus de conhecimento e percepção das coisas são
mo uma organização ('taxis') será fechada, tribal e antidemocrática. diferentes para cada um, sendo, pois, imprevisível o resultado, haven-
A operação desimpedida do mercado leva à criação de uma ordem do, assim, normalmente, vencedores e perdedores. E já que, como em
politica. Essa ordem, entretanto, não tem o caráter de uma 'organiza- qualquer jogo, será exigido que ele seja leal e franco e que ninguém tra-
ção' (ou de um planejamento) mas sim o de uma estrutura ordenada es- paceie, não faz nenhum sentido exigir que o resultado seja justo para
pontânea, um 'cosmos'. Por isso, a 'ordem de mercado' difere funda- quaisquer dos diferentes jogadores. A base racional do jogo do merca-
mentalmente, em muitos aspectos, do 'planejamento' ou 'organização' do é a de que o que deve ser justo é a conduta dos participes e não o re-
que usualmente se denomina 'economia'. Dai terem Ludwig von Mises sultado. O resultado é função da aptidão e da sorte dos participantes,
e F. Hayek proposto, há já anos, o termo 'cataláctica' (do grego katal- não podendo, pois, ser classificado nem como justo nem como injusto.
lactein) para denominar a teoria do mercado, em substituição à expres- Esse sumário de conceituação filosófica sobre o que é mercado e o
são 'economia' usada enganosamente para esse fim. Hayek usa a pala- que é economia é suficiente para mostrar o absurdo das interferências
vra 'catalaxia' para descrever a ordem ou o 'jogo' do mercado. dos economistas, dos políticos e dos governos que procuram transfor-
A razão primordial do neologismo é para enfatizar que a 'catalaxia', mar o 'cosmos' da ordem espontânea do mercado num arranjo econô-
ou o jogo do mercado, não deve e nem pode ser usada para servir a uma mico ('taxis') visando à chamada 'redistribuição de renda' ou à 'estabi-
hierarquia determinada de objetivos concretos e que, portanto, seu de- lização da economia', lançando mão do conceito demagógico e intelec-
sempenho não pode ser avaliado em termos de um somatório de resul- tualmente espúrio de justiça chamada 'justiça social' e de falsas teorias
tados específicos, como se faz com a economia propriamente dita, em envolvendo o controle de preços de bens, serviços, salários, aluguéis e
especial na chamada macroeconomia. O jogo do mercado ou 'catala- juros.
xia' representa uma ordem espontânea, ao passo que a 'economia' se É da maior conveniência, pois, lembrar e repetir: fora do mercado,
refere mais a algo no sentido de um arranjo deliberado de recursos a nada pode ser considerado como preço. Não é possível construir preços
serviço de uma unidade organizacional (uma familia, uma empresa ou sinteticamente através de tabelamentos, decretos, etc. Os preços são um
o governo, por exemplo) ou no sentido da estruturação de muitas eco- fenômeno tipico e exclusivo de mercado. Eles são o fruto de um proces·
nomias inter-relacionadas, tais como as chamadas 'economia nacional' so de valoração subjetiva e das ações e reações dos indivíduos ou gru-
e 'economia mundial'. pos de indivíduos que participam da catalaxia, ou seja, do jogo do mer-
Encontram-se nos livros inúmeras definições da ciência da econo- cado. A economia analisa o processo cataláctico (do mercado) que en-
mia. Eis algumas: "é o estudo da utilização de meios escassos para a gendra os preços dos bens, serviços, salários, aluguéis e preços. Mas ela

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não produz fórmulas que possibilitem calcular supostos preços 'ade- 42. O mutirão do progresso humano
quados', 'corretos' ou 'satisfatórios' diferentes daqueles estabelecidos
no mercado pela atuação mútua de compradores e vendedores. O preço Apesar de os macroeconomistas situarem o Brasil entre as dez maio-
verdadeiro só pode ser aquele que resulta da interação das forças da res potências econômicas do planeta, a verdade é que o bolo econômico
oferta e demanda que operam no mercado. Seja qual for a situação brasileiro é muito pequeno para o tamanho da população e, para a
conjuntural do mercado que engendre um tal preço, este, com referên- grande maioria do povo, o nível de renda pessoal é extremamente bai-
cia a esta situação, é sempre adequado, genuíno e real. Ele não pode ser xo. Quando se pergunta sobre o que fazer para reverter essa situação, a
maior se ninguém estiver disposto a pagar mais pela mercadoria e não resposta raramente tem a ver com a verdadeira mola mestra do progres-
pode ser menor se nenhum vendedor estiver disposto a entregá-la por so humano, que é a energia humana. O que geralmente se diz é que falta
menor preço. O uso dos poderes de coerção e opressão dos governos para uma nova forma de autoridade - um governo progressista a quem se
intervir no processo de formação de preços do mercado produz sempre, 'possa entregar todos os angustiantes problemas da nação; um governo
mais cedo ou mais tarde, gravíssimos danos à vida em sociedade. 'que seja 'democrático' (e tenha uma equipe híbrida de professores mo-
I netário-keynesiano-estruturalistas para dirigir a vida econômica da na-

VISÃO, 13-8-86 ção), mas que possua suficiente força e carisma e um ordenamento bu-
rocrático para ter todas as coisas sob controle e para poder atender aos
'anseios e aspirações' do povo. Essa resposta mostra que ainda não per-
cebemos que a questão fundamental não é a de identificarmos uma au-
toridade messiânica com determinados atributos e a ela delegarmos po-
deres para resolver todos os nossos problemas sociais. A questão fun-
damental, isto sim, está em descobrirmos como usar eficazmente a
energia humana que temos no país para substituirmos esse constante
clima de indigência por tempos de maior progresso geral.
A energia do homem é muito diferente das demais formas de ener-
gia. Além de ter o poder da razão e a força da imaginação, o homem
possui a capacidade de capitalizar sobre suas experiências do passado e
do presente e pode usar esse patrimônio para a solução de seus proble-
mas futuros. Só o homem é capaz de progredir e de manter-se em contí-
nuo progresso. Só ele consegue efetuar mudanças em si mesmo e tam-
bém no ambiente em que vive. Como todo ser vivo, seu estado natural é
de permanente luta pela manutenção da existência. Para sobreviver, ele
luta constantemente contra todas as energias não humanas que colocam
em perigo a existência humana. Para satisfazer suas necessidades, ele se
acha constantemente usando sua energia para converter outras formas
de energia em seu beneficio.
Poucas pessoas têm consciência da dura realidade dessa verdadeira
porfia do homem em relação ao clima, às intempéries, às doenças, às
pragas, à seca, à enchente, ao solo, ao mar, à própria gravidade, etc., e
também em relação aos fenômenos científicos, à tecnologia, às artes, à
educação, à produção e distribuição de alimentos, vestuário e moradia,
à descoberta, exploração e transporte de matérias-primas, à invenção e
fabricação de ferramentas, máquinas e equipamentos de todos os tipos
e para todos os usos, e à criação de recursos intangíveis, tais como no-
vos processos, novas idéias, novas formas de organização e de presta-
ção de serviços. A energia humana já chegou ao ponto, por exemplo, de

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converter a areia comum, cujas reservas são literalmente inexauríveis, realizar, desde que se tivesse uma ordem política baseada na liberdade
em chips de silício, criando nesse processo uma condição praticamente individual.
ilimitada de novas oportunidades para o progresso do homem. Mas é Bastaria que nos convencêssemos destas simples verdades que alguns
preciso destacar enfaticamente que a energia humana pertence exclusi- sábios de boa índole às vezes tentam ensinar-nos: 1) que a liberdade hu-
vamente a cada indivíduo. Poucos percebem que o ritmo de progresso mana é individual (una e indivisível) e advém da própria natureza das
de um país depende do quão efetivo for o uso que se fizer da energia hu- coisas; 2) que somente um ser humano individual pode gerar a energia
mana individual e, em conseqüência, das iniciativas individuais e das humana; e 3) que somente um ser humano individual pode controlar a
capacidades criativas individuais, aplicadas às forças e às matérias da energia por ele gerada. Agora que vamos discutir uma nova constitui-
natureza. ção, temos de levar em conta essas verdades. Para liberar a energia hu-
Levou quase toda a existência da humanidade para que se descobris- mana que o Brasil possui, o nosso sistema de governo precisa ser clara-
se como usar eficazmente a energia humana. Durante mais que uns 600 mente constituído com base na liberdade individual de modo a respeitar
mil anos o homem viveu em bandos ou tribos num estado de completa a propriedade privada, estimular a ação empreendedorial e propiciar o
servidão, primitivo e miserável. O homem civilizado só começou a sur- funcionamento desimpedido do mercado. Além de caracterizar e alocar
gir há cerca de 6 mil anos. A história da civilização mostra que durante convenientemente as funções e atribuições dos diferentes órgãos gover-
esses milhares de anos não houve praticamente nenhum progresso hu- namentais, a nova constituição deve limitar estritamente os poderes do
mano; quase todos os homens viviam subalimentados e maltrapilhos e, governo, organizando-o sob a luz do verdadeiro Estado de Direito, de
quando não morriam numa guerra, morriam de fome ou de alguma modo a haver (o que não há hoje) uma efetiva separação entre os três
peste, sempre com muito pouca idade. Os homens não tinham, sequer, poderes. Assim, descobriríamos como estimular o mutirão do progres-
noção da possibilidade de seu próprio progresso material. Durante todo so humano de que tanto necessitamos para saltarmos da penúria crôni-
esse tempo foram testadas todas as formas concebíveis de governo. To- ca para tempos de real prosperidade.
das falharam. Nenhuma conseguiu uma melhoria progressiva no nível
geral de vida do povo. Antes de meados do século XVIII, se se compa- VISÃO, 3-9-86
rar um século com outro, nesses sessenta séculos não houve muita
variação na sina da vasta maioria dos homens em todos os centros da
civilização.
No século XVIII o progresso começou a ocorrer sobre vastas áreas,
principalmente nalgumas partes da Europa e na América do Norte,
num ritmo seguro e cumulativo como nunca antes havia sido observa-
do. Nessas áreas, os homens conseguiram plantar instituições governa-
mentais extremamente favoráveis à liberdade de iniciativa, à proprieda-
de particular e ao mercado livre, baseadas no ideal político do Estado
de Direito e na doutrina da Separação de Poderes e fundadas na raiz
político-filosófica da liberdade individual, que se vinham desenvolven-
do, principalmente na Inglaterra, desde o século XVII. A partir daí, ficou
patente o quanto pode produzir a energia humana quando existem con-
dições propícias. Num espaço de tempo de apenas cem anos, a energia
humana, liberada pelo clima de liberdade individual, "criou forças pro-
dutivas mais maciças e colossais do que todas as gerações precedentes
em conjunto", como confessou o próprio Marx em seu "Manifesto Co-
munista" de 1848. Apesar desse testemunho notável e irretorquível,
ainda vivemos à procura de soluções construtivistas pretensiosas (com
base em governantes cada vez mais intervencionistas, estatocráticos,
demagógicos e messiânicos) para o nosso subdesenvolvimento, sem nos
darmos conta do mutirão do progresso que a energia humana poderia

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43. Leis, paraleis e pseudoleis * rios, relativas ao modo pelo qual eles devem conduzir a máquina gover-
namental e gerir os meios de que dispõem. São regras ou normas de or-
Em termos estritamente jurídicos, a grande maioria dos atos que ho- ganização governamental e não normas de conduta justa individual.
je chamamos de leis no Brasil não é propriamente lei. Numa sociedade São chamadas 'leis' porque os governos passaram a reivindicar para
livre o ideal político do Estado de Direito e a doutrina da Separação de elas a mesma respeitabilidade conferida às normas gerais de conduta,
Pod~res pressupõem uma concepção muito bem definida do que signifi- que são as verdadeiras leis. Seria mais apropriado que tivessem outro
ca a palavra 'lei'. Somente são leis. de verdade as norm~s ?e
c~mduta nome - já foram sugeridas expressões genéricas tais como 'estatutos
justa individual que possuam os atnbutos de serem gerais, Iguais para de governo', 'paraleis' ou 'infraleis'. Os decretos, portarias, etc. dos di-
todos (inclusive para o governo) e prospectivas, além de conhecidas e ferentes Poderes se enquadrariam aqui. A finalidade dessas instruções
certas. São normas abstratas, essencialmente permanentes, que se refe- governamentais é autorizar os órgãos do governo a executar determina-
rem a casos ainda desconhecidos e não contêm referências a pessoas, lu- das tarefas visando a fins específicos, para o que lhes são destinados de-
gares ou objetos determinados, mas que regulam as relações de conduta terminados meios. Numa sociedade livre, esses meios não incluem o ci-
entre pessoas privadas ou entre essas pessoas e o Estado. N~~ pod~m, dadão; ao passo que num governo coletivista as 'leis' são sempre nor-
portanto, ser chamadas de leis todas. aquelas n?rma~ a~mmistratl~as mas de organização e o cidadão se vê permanentemente coagido por
produzidas pelos governos para orgamzar o serviço pubhco. E são am- elas.
da menos enquadráveis na categoria de leis de verdade aquelas ordens Os governos coletivistas têm por objetivo a re~lização de planos e
de comando de diferentes autoridades (mesmo que aprovadas por re- metas específicos nos campos econômico e social. 'Estabilização econô-
presentantes do povo) que visam tão-somente a estabelecer a mer~ l~ga­ mica', 'justiça social', 'abastecimento do povo', 'controle de preços',
lidade a ações arbitrárias e discricionárias dos governos. No Brasll, mu- etc. são alguns dos slogans preferidos. Para conseguir seus intentos,
meráveis são os casos de normas legislativas que não passam de pseudo- eles determinam a maneira de agir dos cidadãos e conduzem o esforço
/eis para servir aos planos dos que estão no poder. O momento brasilei- de todos no sentido exclusivo dos objetivos governamentais por meio
ro de verdadeira repressão à liberdade individual e ao direito à proprie- de ordens de comando malignamente chamadas de 'leis', para dar a im-
d;de privada, obriga-nos a citar como exemplo típico desta categoria o pressão de que se trata de algo fundamentalmente justo e democrático.
Decreto-lei 2.283, de 28-2-86, revogado e modificado pelo 2.284, de 11- Uma tal sociedade, no entanto, não é uma sociedade livre baseada na
3-86, que introduziu o famigerado 'plano da inflação zero' e fez com lei verdadeira. É um povo obrigado a obedecer a pseudoleis, que não
que as autoridades desengavetassem velhas pseudoleis, que chamam de passam de normas de organização mascaradas de normas de conduta
"poderosas armas legais": Lei 1.521, de 26-12-51, de 'crimes contra a justa e que são arbitrárias, mutáveis, inconsistentes, discricionárias, in-
economia popular'; Lei Delegada 4, de 26-9-62 (sobre a 'intervenção no certas e até retroativas.
domínio econômico para assegurar a livre distribuição de produtos ne- Dando a denominação de 'leis' às normas de organização, os gover-
cessários ao consumo do povo'); e Decreto-lei 2, de 14-1-66 (autoriza a nos em geral conseguiram impor ao cidadão obediência a determina-
'requisição de bens ou serviços essenciais ao abastecimento d~ popu!a- ções específicas destinadas à realização de tarefas especiais que geral-
ção'). Outra falsa lei é o Decreto-lei 2.288, de 23-7-86, que mstltm o mente interessam somente à atividade governamental propriamente di-
'empréstimo compulsório'. Estas pseudoleis são exemplos flagrantes de ta. E muita gente julga que as regras de organização governamental são
como as forças antilibertárias (fazendo o mal aparentando fazer o bem) do mesmo gênero que as normas de conduta justa pelo fato de ambas
assimilaram a doutrina do positivismo jurídico pela qual o Estado não emanarem, nos países livres mais adiantados, da mesma entidade (o Le-
deve sofrer quaisquer restrições impostas pelas normas do Direito. gislativo) que detém o poder de elaborar as normas do verdadeiro Direi-
Na prática corrente brasileira, todas as normas estabelecidas ou ava- to. É preciso porém lembrar que as leis de verdade (as normas de con-
lizadas pelo órgão eufemisticamente denominado 'Legislativo' ou por duta justa) que hoje conhecemos não são todas elas resultado de cria-
qualquer outra autoridade, através dalgum tipo de ritual, lev~m ~ no~e ção intencional, embora o homem tenha aprendido aos poucos a aper-
de 'lei'. Em geral, porém, nada mais são que normas orgamzacwnais, feiçoá-las de acordo com suas necessidades. Essas leis foram, de fato,
instruções administrativas, baixadas pelo governo para seus funcioná- descobertas através de um processo evolutivo de seleção entre diferen-
tes sistemas de normas e passaram a compor um sistema jurídico aceito
• Este artigo é extensão de outro, sob o mesmo título, que publiquei em 25-6-84. Con- por todos à medida que foi ficando patente que elas ajudavam certas
tém, p. ex., referências a pseudoleis em voga atualmente. comunidades a prosperar mais e a sobreviver melhor que outras que vi-

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viam tão-somente à sombra de normas de organização decretadas por pelo lawyer's law. Hesitamos, por isso, em considerá-los profissionais
algum tipo de autoridade. Elas foram sendo transpostas para o papel à do direito. São eles que, nos tempos modernos, têm dominado quase
proporção que a experiência, principalmente judicial, ia gradualmente totalmente a filosofia do direito e afetaram profundamente o direito
acumulando-se e as comunidades iam aceitando-as como fatores de paz privado. O fato de que a Jurisprudência (em especial na Europa conti-
e entendimento. nental) vem sendo realizada quase exclusivamente por publicistas - pa-
Embora sejam usadas freqüentemente como instrumento de perver- ra quem o direito é antes de mais nada o direito público, e a ordem se
são do Direito nos regimes democráticos híbridos e nas autocracias, e reduz à organização - é uma das principais causas da preponderância
como instrumento de dominação nos governos totalitários, as normas não apenas do positivismo jurídico (que, no direito privado, simples-
de organização propriamente ditas são necessárias numa sociedade li- mente não tem sentido) mas também das ideologias socialistas e totali-
vre. Elas sempre devem, porém, subordinar-se às normas do verdadeiro tárias nele implícitas".
Estado de Direito, :!m que todas as leis são gerais, iguais para todos, A concepção básica do positivismo jurídico é a identificação do Es-
abstratas, prospectivas, conhecidas e certas e, acima de tudo, visam à tado com a ordem legal, de modo a tornar ilimitado o poder do legisla-
salvaguarda da liberdade do indivíduo. Nas sociedades não tribais, a dor de plantão. Qualquer observador arguto perceberá o quanto esse
máquina governamental não pode operar exclusivamente na base de co- clima de confusão entre as leis verdadeiras, as normas de organização e
mandos diretos de um mandante ou de um grupo partidário/tecnocráti- as pseudoleis (como as citadas) favorece a implantação de uma ditadura
co. Portanto, a organização necessária a qualquer governo moderno sem limites. A vitória progressiva dessa tendência significa a extinção
para preservar a paz interna, guardar o país contra os inimigos externos gradual do verdadeiro Estado de Direito, como aconteceu com o surgi-
e prestar outros serviços exigirá normas distintas e próprias que lhe de- mento dos Estados nazista, fascista e bolchevista. Alguns juristas brasi-
terminem a estrutura, as funções, os objetivos e suas limitações. No en- leiros já têm até o nome pomposo para esse regime de tendência totali-
tanto, estas normas que comandam a máquina governamental terão de tária: Estado Social de Direito.
possuir, necessariamente, um caráter diverso daquele das normas gerais
de conduta individual. Serão, como escreve Friedrich Hayek, "normas VISÃO, 1-10-86
orgrutizacionais, criadas para alcançar fins específicos, para suplemen-
tar determinações positivas no sentido de que se façam coisas específi-
cas ou se obtenham certos resultados, e para estabelecer os diversos ór-
gãos por meio dos quais 'opera' o governo". Mesmo um sistema de go-
verno dedicado exclusivamente a fazer cumprir as normas inalteráveis
de conduta justa (as leis) exigiria, para seu funcionamento, "um outro
conjunto de normas".
Esse "outro conjunto de normas" que engloba as normas de organi-
zação (onde se inclui também a constituição) é, praticamente, o que co-
nhecemos como direito público, em contraposição ao direito privado,
que envolve as normas gerais de conduta individual. Este cobre as rela-
ções das pessoas entre si e entre as pessoas e o Estado, e também o cha-
mado direito 'penal' (criminal). O direito público abrange principal-
mente o direito administrativo, o direito constitucional e o direito pro- ,
cessual. Para os que acreditam no positivismo jurídico, cujo padroeiro
é Hans Kelsen, não haveria nenhuma diferença qualitativa entre esses
dois tipos de norma. Assim critica Hayek (in "Direito, Legislação e Li-
berdade", Ed. Visão, 1985) este ponto de vista: "Visto que a constru-
ção intencional de normas tem por principal objeto as normas organi-
zacionais, a reflexão sobre os princípios gerais da atividade legislativa
ficou também quase inteiramente a cargo dos publicistas, ou seja, dos
especialistas em organização que, freqüentemente, têm pouca simpatia

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44. Reacionários e progressistas: a confusão da ·palavras que representam valores indivisíveis, como por exemplo a ex-
pressão liberdade. E a terceira é a tendência de tornar ambíguas, pela
linguagem no discurso político adjetivação, idéias tradicionalmente reconhecidas, tais como justiça,
democracia, economia de mercado, Estado de Direito e progresso.
O pensamento político moderno é muito influenciado pela confusão A expressão lei, a mais importante do sistema constitucional repre-
no uso das palavras. Os fenômenos políticos e econômicos da vida em sentativo, sempre foi entendida na tradição do Estado de Direito como
sociedade não são entendidos pelas pessoas por causa dessa confusão. sendo uma norma universal e abstrata de conduta justa, que somente
Muitas divergências supostamente ideológicas se devem à falta de ex- poderia ser elaborada e/ ou modificada por um órgão legislativo com
pressões inequívocas nas discussões políticas. Esse emaranhado na lin- atribuições bem definidas para esse fim. Passou, porém, a ser usada
guagem política tem origem atávica. Isto porque, em muitos aspectos, o abusivamente por quaisquer órgãos para facilitar toda política governa-
equipamento biológico do homem não evoluiu com a rapidez com que mental ou para atender a fins específicos de indivíduos, do governo ou
ele mudou do estado primitivo para a civilização. Para tirar proveito da de associações de pessoas. O positivismo jurídico tornou· concreto e
natureza atávica desses defeitos lingüísticos, grande parte das expres- particularizou o sentido abstrato, universal e prospectivo da lei, falsifi-
sões contidas no atual vocabulário político é usada com a intenção do cando seus atributos originais. O Estado transformou-se na fonte ines-
logro. gotável de todos os bens, e é feito responsável, é invocado e é objeto de
Convém lembrar que o homem viveu muitíssimo mais tempo (pelo queixumes como se fosse um chefe de tribo, um senhor feudal ou um
menos cem vezes mais tempo) na forma primitiva de pequenos grupos monarca. A sociedade, conceito abstrato, adquiriu personalidade com
de caçadores e organizações tribais do que na maneira civilizada que co- princípios éticos altruísticos e dela tudo se espera. Passou-se a negar a
nhecemos. A raça humana viveu, então, a maior parte de sua história responsabilidade pessoal em favor de uma 'responsabilidade da socie-
na base de hordas de caça e de cata de coisas da natureza. Ao passar da dade', presumindo que seja obrigação da sociedade fazer a 'justa distri-
moral das hordas de caçadores àquela que tornou possível a ordem de buição da riqueza'. Para isso, 'materializam' a sociedade na forma de
mercado da grande sociedade aberta e abstrata, houve o estágio inter- órgãos estatais que passam a determinar não só como mas também
mediário da sociedade tribal. Foi um estágio muitíssimo mais breve que quando e onde os indivíduos podem fazer uso de suas capacidades e
o vivido pela espécie humana naqueles pequenos grupos de caçadores, talentos.
porém de bastante maior duração que a que teve até agora a sociedade A liberdade na vida em sociedade é una e indivisível. Embora os
civilizada. A despeito da extraordinária evolução ocorrida no pensa- usos que se podem fazer dela sejam muitos, não faz sentido falar-se em
mento filosófico a partir do século XVIII, a capacidade humana de tra- tipos de 'liberdade' e nem dar-se um sentido coletivo, abstrato, à liber-
dução verbal dos mais importantes eventos de nossa época é obscureci- dade, porque ela é uma só; ela é individual.
da pelo uso inadequado das palavras, que ainda reflete um modo de A palavra social, que objetivamente significa tudo aquilo que é per-
pensar desses antepassados e que procura dar interpretação antropo- tinente à sociedade, é usada hoje, mais que qualquer outra, para provo-
mórfica, ou seja, personificada, às instituições sociais. Os instintos do car ambigüidade lingüística no ambiente político. O uso pleonástico do
homem moderno ainda estão em boa parte dominados pelas emoções adjetivo social nas expressões 'justiça social', 'democracia social', 'eco-
inatas que eram vitais para a sobrevivência das hordas primitivas de ca- nomia social de mercado' e 'estado social de direito', p. ex., é confusio-
çadores; sua linguagem política, outrossim, espelha flagrantemente a nista com objetivo ideológico. É claro que tudo na vida em sociedade é
natureza solidarista e distributivista tribal, caracterizada em nossos dias social; mas a idéia doutrinária subjacente é a de que os problemas que
principalmente pelo ordenamento autoritário e coletivista da vida em nesse enleio político-semântico são qualificados como 'má distribuição
sociedade, pela compulsoriedade dos deveres de alguns em relação a da renda', 'déficit habitacional', 'desordem do mercado', 'injustiça so-
uma.noção vaga chamada 'justiça social' e por um pseudonacionalismo cial', etc. só poderão ser resolvidos através de mais e mais controles de
que advém atavicamente da repulsa tribal à invasão estrangeira de seus preços, salários e aluguéis, de mais e mais organização compulsória da
domínios. vida social, ou seja, pelo socialismo. O uso abusivo do adjetivo social é
São três as principais características dessa confusão semântica. A acima de tudo um excelente instrumento de demagogia, pois que das ex-
primeira é a tendência de materializar e personalizar expressões de sen- pressões onde ele é usado se pode extrair praticamente qualquer signifi-
tido abstrato, como fazem, por exemplo, com as palavras lei, Estado e cado político que se queira e haverá nelas sempre uma simulação de al-
sociedade. A segunda é a de exprimir de forma abstrata e coletivizada truísmo, comiseração e bem-estar geral.

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Reacionário e progressista, esquerda e direita são também palavras 45. O que é o Estado de Direito
que se somam a essa série da confusão semântica. As discussões vicia-
das pela vaguidade das palavras-chave dão margem para que os socia- Agora que vamos escolher dentro de dias as pessoas que deverão ela-
listas se autodenominem 'progressistas' e 'de esquerda' e atribuam a borar nossa próxima constituição, vale a pena rememorar estes impor-
suas doutrinas títulos 'sociais' altruísticos e humanitários. Embora pra- tantíssimos conceitos básicos referentes ao ideal político do verdadeiro
ticamente todas as tendências políticas pretendam ser descritas como Estado de Direito. Você sabe o que é o Estado de Direito? Se não sabe,
'progressistas', a expressão é usada pela chamada 'Esquerda' como for- não se envergonhe, porque muitos do que dele falam também não sabem.
ça de argumentação na sua pretensão de indicar que caminha pára a Querer saber o que realmente significa a expressão 'estado de direi-
frente no sentido da mudança, da reforma, da revolução. Quem se to' é, pelo menos, tão importante para o dia-a-dia da vida do homem
opõe a esse pretenso progresso é logo classificado como 'reacionário' quanto costuma ser o conhecimento dos problemas econômicos que
ou 'de direita'; ou seja, é reacionário aquele que resiste ou é contra as afetam diretamente sua vida, como por exemplo a inflação, o desem-
'reformas progressistas socialistas'. prego e a recessão. Acontece que essa expressão tem sido - como tan-
Todos querem ser 'progressistas' e ninguém quer ser 'reacionário' tas outras - tão mal-usada, deturpada e degenerada nos discursos polí-
porque todos aceitam intuitivamente que Progresso é bom. Não é à toa ticos em nossa época, que a maioria das pessoas a tem como coisa teóri-
que os socialistas se apropriaram da palavra 'progressista' - lhes é útil. ca, sem maior importância, mas que pode ser usada livremente em
Mas é aqui justamente onde desembocam certas verdades que toda essa qualquer peroração à qual se pretenda dar a impressão de luta por direi-
confusão da linguagem não consegue esconder: os partidários do socia- tos e contra o arbítrio.
lismo é que são, de fato, os únicos 'reacionários', pois, no final das Não é exagero dizer que o Estado de Direito soa hoje como coisa va-
contas, o que eles propõem nada mais é que o retrocesso ao estado ga e até de pouco interesse para o povo, porque em verdade pouca gente
primitivo. conhece bem o seu significado e muitos dos que conhecem nada querem
As palavras 'progresso', 'civilização' e 'cultura' são praticamente si- ter a ver com esse ideal político.
nônimas e constituem expressões de valores humanos que servem para A compreensão do significado real e original do Estado de Direito
contrastar a barbárie, a rudeza e o estado selvagem de antigamente. A envolve a aceitação de dois princípios ou duas tradições que a humani-
história da cultura e da civilização é a história do progresso do homem dade aprendeu após longa experiência: primeiro, que a lei, para ser lei
desde um estado quase animal até uma sociedade aberta balizada por de verdade, deve possuir certos atributos bem definidos; segundo, que
um sistema de normas universais e abstratas de conduta justa. É a his- deve haver limites bem explícitos nos poderes de todos os setores dum
tória da ascensão do homem de um estágio primitivo, em que predomi- sistema de governo.
navam os instintos inatos e o uso inadequado da razão, para um estágio Muita gente pensa que o Estado de Direito significa apenas o impé-
da civilização em que ele passou a controlar seus instintos, a cultivar a rio da lei. O Estado de Direito, entretanto, é um ideal que transcende a
inteligência e as artes todas, a exercitar criticamente sua razão conscien- simples legalidade, pois concerne àquilo que a lei deva ser e implica que
te e a adotar os valores culturais abstratos que a humanidade aprendeu o governo nunca deve coagir um indivíduo, salvo no caso da aplicação
gradualmente durante toda essa evolução. de uma lei geral conhecida. Ele é então também uma doutrina que limi-
É justamente todo esse Progresso que o 'progressivismo' socialista ta os poderes de todo o governo. Limita os poderes do legislativo, pois
pretende fazer retroceder apelando intensamente para toda a confusão os legisladores somente podem elaborar leis que possuam os atributos
lingüística de que puder lançar mão a fim de atingir os pontos fracos de ser normas gerais e prospectivas de conduta justa. Além de, dessa
das emoções humanas, sabendo que existem a seu favor muitos vestí- forma, limitar os poderes do legislativo, o Estado de Direito estabelece
gios atávicos dos longos séculos vividos pelo homem na forma de hor- que somente o legislativo pode legislar. Uma lei produzida por um ór-
das de caçadores e de tribos selvagens. Os socialistas e seus amigos tra- gão não autorizado a legislar não será, portanto, uma lei de verdade.
balham, pois, para o retorno ao passado primitivo. Fazem-se passar O Estado de Direito não pode, portanto, ser confundido com a exi-
por 'progressistas' para confundir; eles são, no entanto, nada mais que gência de mera legalidade em todos os atas do governo. Ele obviamente
'reacionários' mascarados de 'progressistas'. pressupõe legalidade completa, mas isto não basta: se uma lei concedes-
se aos órgãos do sistema de governo poderes ilimitados para agir como
VISÃO, 29-10-86 bem lhes aprouvesse (por exemplo, por decisão da maioria, sem restri-
ções, numa assembléia legislativa), todas as suas ações seriam formal-

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mente legais, mas certamente não estariam enquadradas no Estado de 46. A ilusão panacéica do parlamentarismo *
Direito. É importante distinguir essa nuança entre, digamos, a 'mera le-
galidade' e a verdadeira 'legitimidade da lei' no ideal político do Estado O desprezo à evolução histórica do pensamento político, e das cir~
de Direito. A mera legalidade pode significar uma lei 'encomendada' cunstâncias em que ela se dá, nos condena a repetir no campo institu-
que não possua os atributos mínimos exigidos pela estrutura legal geral cional os mesmos enganos dos antepassados. Exemplo típico é o erro
do Estado de Direito. O arbítrio e a iniqüidade podem ser e são muitas conceituai do parlamentarismo, que vem sendo repetido desde sua in-
vezes autorizados por leis dessa natureza, que são, em verdade, tam- trodução na Inglaterra no século XIX.
bém, falsas leis, pois não possuem as características que as leis do ver- Diz o dicionário que parlamentarismo "é uma forma de governo em
dadeiro Estado de Direito devem possuir. que o gabinete, constituído pelos ministros de Estado, é responsável pe-
O Estado de Direito, todavia, é também algo diferente do constitu- rante o parlamento, que através dele governa a nação". Ele foi introdu-
cionalismo. A posse de uma constituição não significa, necessariamen- zido com base na premissa de que a completa separação de poderes se
te, estar-se vivendo sob um Estado de Direito. O Estado de Direito exi- vinha mostrando, na prática, incompatível com a realização de um sis-
ge que todas as leis se conformem a determinados princípios. A consti- tema de governo limitado, equilibrado e eficaz. A premissa era, porém,
tuição não é uma lei mais sim uma. norma de organização dum sistema falsa, porque de fato, até então, a doutrina pura da separação de pode-
de governo; ela pode conter a explicitação dos atributos da lei, embora res não havia sido aplicada em nenhuma constituição. Dessa falsa pre-
isso infelizmente não tenha ocorrido até hoje em qualquer constituição; missa nasceu uma teoria de governo que pretendia combinar todas as
numa constituição moderna, fundada no verdadeiro Estado de Direito, qualidades desejáveis de um governo limitado com todos os requisitos
essa explicitação seria imperativa. de harmonia, entre as partes do Estado, que as condições da vida mo-
O Estado de Direito, portanto, não é apenas o domínio da lei, mas derna exigissem. Supunham que, assim, seriam resolvidos os problemas
uma doutrina metalegal ou um ideal político que diz respeito aos atri- que durante séculos vinham causando perplexidade aos políticos. A
butos gerais que as leis específicas devem forçosamente possuir - elas teoria surgida dessa ilusão provocou tanto fascínio por todo o mundo
devem ser normas gerais de conduta justa, iguais para todos e aplicáveis que até hoje constitui o ideal de muitos constitucionalistas, a despeito
a número desconhecido de casos futuros, abstraídas, portanto, de de ter há muito deixado de operar no próprio país de sua origem.
quaisquer circunstâncias específicas de tempo e de lugar e referindo-se O parlamentarismo tem, portanto, sua história bastante ligada à
apenas a condições que possam ocorrer em qualquer lugar ou a qual- doutrina pura da separação de poderes. Seus primeiros propugnadores
quer tempo. usaram como ponto de partida para justificá-lo um insidioso ataque
Se é isso tudo o que significa o Estado de Direito, é óbvio que os contra essa doutrina, tachando-a de "obsoleta" e atribuindo-lhe mui-
adeptos do positivismo jurídico (que pregam que a lei não precisa ser tos outros defeitos. Um pioneiro dessa campanha, em 1831, foi J. J.
igual para todos, pode ser retroativa e até discricionária, desde que Park, do King's College de Londres; porém o mais famoso e influente
atinja objetivos 'sociais' ou fins concretos) e os que favorecem o autori- foi Walter Bagehot, cujo livro "The English Constitution", de 1867, é
tarismo e o totalitarismo só podem menoscabar esses princípios, pois a até agora talvez a obra mais citada de todas sobre o sistema de gabinete,
eles bastam a mera formalidade legal e a simples predominância de apesar das falsidades de fundamento apontadas em seu trabalho(!). O
pseudoleis que somente atendem a falsos pressupostos de justiça. Eles que pretendiam era um moderno sistema de governo que produzisse a
chegam até ao absurdo de adjetivar esse ideal político, chamando-o de harmonia entre as até então supostamente dissonantes partes da Consti-
'estado social de direito', para quebrar a tradição da expressão dando- tuição inglesa, de modo que elas pudessem agir "sem distúrbios ou con-
lhe ambigüidade. Estes homens jamais quererão ver uma constituição vulsão" para levar a cabo todas as tarefas julgadas necessárias pelo
na qual estejam claramente explicitados os princípios que salvaguarda- parlamento. Ao descrever como funcionaria o novo regime, Bagehot
rão a liberdade individual e o Estado de Direito, principalmente aquele afirmava que "a sorte do gbverno é determinada pelo debate no parla-
que estabelece que a lei, para ser lei de verdade, deve possuir certos atri-
butos mínimos: ser geral, ser igual para todos, ter caráter abstrato e ser
*Partes deste artigo acham-se na VISÃO de 28-5-84 e em meu livro "Os Poderes do Go-
prospectiva, nunca retroativa. verno", Ed. Visão, 1984, pág. 238.

VISÃO, 5-11-86 (1) Ver, p. ex., "Constitucionalism and the Separation oj Powers", M. J. C. Vi/e, Ox-
ford University Press, London, 1967.

186 187
mento ... O gabinete é criatura, mas possui o poder de destruir seus cria- dividual - mais vulnerável aos ataques demagógicos que com mais in-
dores". E resumia sua visão do parlamentarismo dizendo: "Toda a vi- sistência e força passaram a ocorrer na última parte do século XIX com o
da da política inglesa está na ação e reação entre o Ministério e o Parla- advento dos partidos políticos de massa, da disciplina partidária, do po-
mento". Em fins do século XIX, graças a essas pregações, a doutrina sitivismo jurídico e do sindicalismo desenfreado que, associados à onda
da separação de poderes estava praticamente rejeitada não só na Ingla- socialista, marcam os tempos modernos como a 'era do coletivismo'.
terra mas também noutras partes do mundo, apesar de jamais ter sido A incipiente separação de poderes tornou-se praticamente inexisten-
testada em qualquer país. te e os órgãos representativos arrogaram-se poderes ilimitados em n:ome
A separação de poderes foi o dispositivo institucional que os teóri- da soberania do povo. Acabou-se com a idéia de um governo da lei, li-
cos do constitucionalismo e do governo representativo desenvolveram a mitado, equilibrado, harmônico e interagente presumido pelos teóricos
partir do século XVII para estabelecer um governo da lei, e não de ho- do parlamentarismo. Quando os representantes do povo no parlamento
mens, visando a limitar os poderes absolutistas monárquicos<2>. Os fun- e no gabinete, agindo com base em arreglos majoritaristas partidários,
damentos dessa doutrina eram: 1) que deveria haver uma divisão da au- de composição geralmente variável, passaram a governar como se tives-
toridade governamental em três órgãos, com funções legislativa, execu- sem herdado as prerrogativas reais, tornaram-se evidentes os mesmos
tiva e judiciária completamente distintas entre si e exclusivas a cada ór- defeitos de que os homens se queixavam no regime absolutista monár-
gão; 2) que os três órgãos fossem constituídos de grupos bem separados quico (como se queixam até hoje das ditaduras): arbítrio, corrupção,
e distintos de pessoas, sem nenhuma sobreposição entre os membros ineficiência, estatização, irresponsabilidade e, acima de tudo, crescente
desses grupos; 3) que somente seriam reconhecidas como leis de verda- limitação da liberdade individual pela produção de falsas leis.
de aquelas normas emanadas do legislativo e que possuíssem os atribu- Os esforços que por séculos vinham sendo realizados para tornar
tos de serem normas gerais de conduta justa individual, iguais para to- realidade os ideais da separação de poderes e do Estado de Direito, para
dos (inclusive para os leg!sladores e demais governantes e entidades do limitar os poderes coercitivos dos governos tornando-os mais propícios
governo) e aplicáveis a número desconhecido de casos futuros; e 4) que ao progresso humano, foram anulados pela pregação de que não havia
a coerção (pelo governo ou por qualquer outra pessoa ou grupo) so- necessidade dessa separação e nem mesmo de qualquer limitação dos
mente seria admitida para fazer valer a verdadeira lei. Essa versão da poderes, já que o controle do governo se faria automaticam~nte pelos
doutrina pura da separação de poderes contém, portanto, o ideal políti- representantes do povo eleitos, uma vez que nesse regime ('democráti-
co do Estado de Direito, que exige não apenas que haja a supremacia da co') o governo já era o próprio povo soberano. Deixaram de atentar pa-
lei mas também que todas as leis e sua origem se conformem a determi- ra o fato de que a democracia nada mais é que um método para tomada
nados princípios. Não basta que uma lei seja votada por maioria do le- de decisões que, no caso, apenas permite que um cidadão vote num seu
gislativo: a lei precisa possuir certos atributos (geral, igual para todos, candidato a representante mas não estabelece quais os limites de sua
abstrata e prospectiva ... ) ou não será lei de verdade. eventual ação no governo. A democracia permite determinar quem de-
Apesar de ter sido lançado como alternativa à doutrina da separação ve governar, porém não como deve ser o governo para ser preservada a
de poderes, o parlamentarismo nada mais é que uma degeneração dessa liberdade individual. Isto requer uma adequada constituição que sus-
doutrina. No regime parlamentarista, os órgãos legislativo e executivo tente a estrutura jurídica do verdadeiro Estado de Direito.
praticamente se fundem, através de um Gabinete, ocorrendo não só Sempre que se intensifica a crise política brasileira, que é crônica e
uma separação parcial das pessoas mas também uma separação parcial de natureza institucional, um dos lugares-comuns que se destacam no
de funções, pois algumas pessoas fazem parte de mais de um órgão go- debate é a questão do parlamentarismo. Fala-se num modelo similar ao
vernamental e as funções legislativa e executiva são de fato comparti- de tal ou qual país, onde ele parece funcionar bem. Ou, então, que po-
lhadas. Embora a interpenetração fosse apenas parcial e tivesse havido deria ser um sistema misto, para se adaptar à nossa índole. O parlamen-
sempre uma preocupação com o grau de separação de pessoas e fun- tarismo é mostrado como se fosse um novo sistema de governo para
ções, a verdade é que essa adulteração tornou o ~overno constitucional tratar de nossa velha moléstia constitucional. Mas não é. Colocado nu-
, representativo - que, em sua origem, visava a proteger a liberdade in- ma organização governamental igual ou parecida com a que temos ago-
ra, esse sistema (qualquer que seja seu tipo) será mais um retrocesso.
(2) Ver, p. ex., "Direito, Legislação e Liberdade", F. A. Hayek, Ed. Visão, SP, 1985, 3 Em lugar de se separarem mais os três órgãos governamentais para limi-
vols.; e "The Meaning of the Separation of Powers", W. B. Gwyn, Tulane University, tar seus poderes, a fim de preservar mais a liberdade, haverá uma fusão
New Orleans, 1965. quase total deles, pois, além de o Judiciário ser dependente dos dois ou-

188 189
tros (principalmente do Executivo), o Legislativo e o Executivo já são 47. Em junho de 1980 perguntei: Teremos de
interligados pelo partidarismo, pela faculdade legiferante do Executi-
vo, pela mistura de pessoas entre os dois órgãos e pela perversa confu- ser meio escravos porque somos
são, amplamente disseminada, por defeito constitucional, de que o Le- subdesenvolvidos? *
gislativo é também um órgão controlador e fiscalizador do Executivo.
Pensar, portanto, que a adaptação parlamentarista poderá ser um novo Quando as pessoas conversam sobre as coisas que não andam bem
sistema de governo não passa de mais uma ilusão panacéica dentre as em nosso país, costumam compará-lo com as nações mais evoluídas di-
muitas que observamos até agora no paupérrimo debate sobre a futura zendo que não podemos ir melhor somente porque nosso povo está muito
constituição. atrasado, raça ruim, religião, pouca instrução, miséria e tal. Quando a
discussão é sobre política, os argumentos não são diferentes e são usados
VISÃO, 18-2-87 para explicar e justificar muita coisa má que ainda ocorre por aqui. Tudo
isso, entretanto, é conseqüência de uma guerra intelectual messiânica,
que aproveita o despreparo político-filosófico reinante para tirar partido
das muitas carências e anseios que realmente existem no Brasil. (Noutras
palavras, há gente que aproveita nosso estado de subdesenvolvimento pa-
ra fazer-nos cada vez menos livres, mais escravos.)
Os que são contra o regime socialista, por saberem-no totalitário,
coletivista e fechado, nem sempre são a favor da espontaneidade, ca-
racterística do regime fundado na liberdade individual, porque enten-
dem que numa nação em que predominam a falta de instrução e a po-
breza não poderia sobreviver um sistema com toda a liberdade. E por-
que acreditam que, enquanto persistir a barriga vazia, não será possível
considerar a liberdade de ação individual como questão prioritária.
As pessoas que assim pensam não compreendem como seria um regi-
_me de liberdade e em conseqüência reagem erroneamente diante dum
fato negativo, porém real, que é o subdesenvolvimento. Não querem o
comunismo mas propõem um certo grau de socialismo (chamam isso,
às vezes, de 'democracia social', ou de 'socialismo democrático', ou de
'centro-esquerda', etc.), fazendo crer a si mesmas que 'socialismo' e
'comunismo' são duas coisas distintas: o socialismo seria um comunis-
mo bonzinho, caritativo, como se a meia escravidão fosse coisa razoá-
vel. Admitem que o governo intervenha na vida econômica das pessoas
desde que isso não inclua a elas próprias ou que soe como 'justiça so-
cial', isto é, desde que o arbítrio atinja somente os outros ou se dê ape-
nas contra os mais ricos, supostamente 'mais favorecidos'. Não se
preocupam com a arbitrariedade legiferante, fechando os olhos e, às
vezes, até aplaudindo a retroatividade, a discricionariedade, a injustiça
de certas supostas leis, desde que elas sejam elaboradas 'sob medida'
para fazer 'justiça distributiva', pegando os que estão mais bem de vi-
da, que afinal 'possuem mais que o suficiente e, pois, podem devolver

* Ver também "Ensaios sobre a liberdade", H. Maksoud, Ed. Visão, SP, 1981.

190 191
uma parte ao setor injustiçado da sociedade', pela via da burra do Esta- festas de seus credos". Não é à toa que para ganhar a guerra contra o
do que, supõem, irá 'redistribuir' a riqueza. totalitarismo sabemos ter de lutar no 'front' intelectual.
Não atinam como poderia ser um governo baseado no Estado de Di-
reito, na subordinação à lei geral e não na vontade dos homens. Não sa- VISÃO, 18-3-87
bem (ou não se interessam em saber) o que significa um governo de leis
e não de homens. Não conseguem entender como é possível debelar a
pobreza generalizada, elevar o nível geral de bem-estar e de riqueza, ob-
ter crescente igualdade de oportunidades e conseguir mais segurança
pessoal, mais educação e melhor saúde por meio de um sistema político
que simplesmente dê condições para que predomine a ação humana vo-
luntária, não intencional, não deliberada, espontânea.
Não percebem que o progresso de uma nação é um empreendimento
que requer o bom funcionamento de um fantástico mecanismo ciberné-
tico, chamado mercado, que envolve a interação espontânea e auto-re-
guladora de conhecimentos individuais (dispersos entre multidões de
pessoas separadas entre si, que não possuem objetivos em comum e que
não se conhecem) que jamais poderiam estar contidos numa mente hu-
mana, num instituto de investigações ou em qualquer superestrutura de
planejamento governamental. Não enxergam que qualquer ação inter-
vencionista ou de controle sobre a cibernética espontânea de competi-
ção que existe naturalmente nas comunidades humanas inibirá o meca-
nismo do mercado e consumirá fatias importantes da liberdade de cada
indivíduo, transformando-o gradualmente num escravo.
Não conseguem ver as coisas claras e buscam justificativas nos efei-
tos e não nas causas dos fenômenos sociais, porque se encontram em
densa fumaceira provocada por uma prolongada guerra intelectual.
Uma guerra em que o sentido das palavras é pervertido para provocar a
confusão semântica no pensamento político. Trata-se de uma guerra
em que a estratégia é a mudança do processo de evolução cultural da ci-
vilização e a tática o controle da capacidade de aprender do homem,
pois o objetivo é a messiânica construção de uma nova ordem social to-
talmente planejada. Mas é uma guerra que não é local nem começou
apenas ontem. Ela atinge desde há muito a maioria dos países, inclusive
as mais ricas, educadas e bem alimentadas nações da Europa e da Amé-
rica, tais como a Inglaterra, a Itália, a Suécia e os Estados Unidos ... Ela
não é uma realização da massa popular, nem da 'vontade geral' do po-
vo, nem dos mais atrasados ou dos mais famintos: ela se faz, por meio
de uma minoria, através das cátedras e púlpitos, dos jornais e revistas,
dos teatros e cinemas, das novelas e romances, das rádios e televisões,
dos partidos e assembléias políticas. Conforme observou o insigne eco-
nomista e filósofo-político austríaco Ludwig von Mises, "os mais entu-
siásticos defensores do marxismo, do nazismo e do fascismo foram os
intelectuais, não os operários e os camponeses. Os intelectuais nunca
foram suficientemente perspicazes para perceber as contradições mani-

192 193
III
CONSTITUIÇÃO
E 48. Legislativo, partidos e Constituinte:
não se deve misturá-los
CONSTITUINTE O Brasil fala mais uma vez que precisamos ter uma nova constitui-
ção. Concordamos que nada é mais importante para a vida em socieda-
de que uma constituição. No entanto, no mundo conturbado pela con-
fusão intelectual em que vivemos, ela pode ser a base do bem ou do mal
ou da indiferença em relação à liberdade. Todas as constituições até ho-
je escritas para o Brasil se classificariam nesta terceira categoria. As dos
países totalitários ficariam na vertente do mal, pois prescrevem poderes
ilimitados para o Estado e praticamente desprezam o indivíduo e sua li-
berdade. A primeira constituição escrita, a dos Estados Unidos da
América (1787), foi concebida para ser uma proteção do povo contra
qualquer ação arbitrária dos poderes governamentais e, embora ela te-
nha sido sempre um paradigma, sabemos hoje que há nela certas falhas
que alguns de seus autores originais provavelmente não teriam deixado
passar se tivessem tido a experiência vivenciada desde então. Para que
possamos vir a ter um dia uma constituição permanente que nos sinalize
o caminho da liberdade, e do progresso que a liberdade gera, será preci-
so que saibamos, antes de tudo, responder a certas questões fundamen-
tais, como por exemplo: o que é uma constituição de verdade?; e como
deveria ser ela elaborada? Bastante tem sido escrito por mim sobre uma
constituição que fosse um instrumento de limitação do governo e ga-
rantisse a liberdade. Mas quase nada ainda foi dito sobre a importância
de não se confundir os poderes de uma Constituinte com os de um Le-

Este artigo foi publicado originalmente em VISÃO de 13-8-84 e no livro "Os Po-
deres do Governo", de Henry Maksoud. Estamos agora reproduzindo-o como aber-
tura de um debate que VISÃO começa a publicar a partir da edição de 4-9-85.

197
gislativo e vice-versa. E também de que não se deve ter uma Constituin- ção, "primeiramente, porque entendemos que uma constituição, em
te com partidarismos. seu conceito verdadeiro, visa a um sistema de princípios estabelecidos
Nos primórdios do constitucionalismo, na Inglaterra a partir do sé- com a finalidade de garantir ao cidadão a posse e o gozo de direitos e
culo XVII, a constituição foi idealizada para ser um estatuto permanen- privil~gios contra qualquer intromissão do governo. Em segundo lugar,
te que tratasse da distribuição e da limitação dos poderes governamen- porque o mesmo organismo que elabora a constituição teria, portanto,
tais, visando à preservação da liberdade individual, fosse qual fosse o poder para alterá-la; e, terceiro, porque uma constituição que pode ser
jogo das forças do momento. Embora o constitucionalismo tenha nas- alterada pelo Legislativo não representa para os cidadãos nenhuma ga-
cido na Inglaterra, a idéia de uma constituição escrita só aconteceu tem- rantia contra a ingerência do governo em algum ou em todos os direitos
pos depois nos Estados Unidos, onde os colonizadores aprenderam que e privilégios".
um tal documento, que concedesse poderes específicos aos diferentes Uma sociedade livre necessita de normas permanentes de organiza-
setores do governo, também poderia limitar esses poderes não só quan- ção para restringir os poderes do governo, seja qual for o grau de exci-
to às funções ou aos objetivos de cada setor, como também quanto aos t~ção ou o conjunto de forças em disputa no momento político. É pre-
métodos que poderiam utilizar. A condição precípua de liberdade ima- ciso pois que uma constituição seja elaborada por uma entidade consti-
ginada por esses pioneiros americanos da constituição escrita era de que tuinte independente de qualquer dos três poderes e de quaisquer parti-
nenhuma autoridade poderia estar investida de poder supremo ilimita- darismos; pois a adesão a princípios gerais permanentes significa deixar
do. Nem mesmo a vontade popular. de tomar medidas imediatistas e facciosas a que os membros de uma
Quando hoje falamos de regime constitucional representativo, não maioria eventual não gostariam de se submeter se estas medidas fossem
podemos olvidar que o conceito a partir dessa época ficou intimamente adotadas se eles se encontrassem em minoria. Não basta, entretanto,
ligado à idéia de um governo composto de representantes do povo, no apenas eleger ou nomear um órgão constituinte com poder para votar
qual seus órgãos são estritamente circunscritos pela constituição escri- uma nova constituição. A constituição não é um documento que se
ta, que lhes atribui poderes específicos. Portanto, o preceito de que to- compõe votando capítulos ou parágrafos um a um. A constituição é o
do poder emana do povo refere-se não tanto à eleição periódica de re- estat.).ltO completo de organização de um determinado sistema de gover-
presentantes mas ao fato de que o povo, organizado nalgum tipo de no. E preciso, pois, a priori, estabelecer-se qual o regime político de go-
convenção constituinte, tem o direito exclusivo de determinar os pode- verno que se pretende ter. Só existem dois: o aberto, baseado na salva-
res dos órgãos Executivo, Judiciário e Legislativo. E, como a constitui- guarda da vida, liberdade e propriedade do cidadão; e o totalitário, que
ção é o instrumento que estabelece os princípios mais gerais que regu- despreza a liberdade individual e não tolera o direito fundamental à
lam os atas do Poder Legislativo, não faz sentido que este mesmo Le- propriedade legitimamente adquirida. O terceiro é o tipo híbrido, indi-
gislativo possa elaborar ou modificar uma constituição e tampouco que ferente aos princípios, igual ao das nossas constituições de 1891, 1934,
uma convenção constituinte ou entidade equivalente seja considerada 1937, 1946, 1967 e 1969- que nada significaram em termos de institui-
competente· para aprovar leis específicas. ções permanentes, tendo sido todas rejeitadas.
Sobre estas limitações vale a pena transcrever duas citações apresen-
tadas por F. A. Hayek em seu "Os Fundamentos da Liberdade" (Ed. VISÃO, 4-9-85
Visão, 1983, pág. 211). A primeira vem de John Lilburne, um político e
escritor inglês que em 1649 escreveu que os membros da convenção
constitucional ''não deveriam exercitar nenhum poder legislativo, mas
unicamente elaborar os fundamentos de um governo justo e propor às
pessoas de boa vontade de cada país sua aceitação. Tal aceitação deve-
ria estar acima da lei e, para tanto, os limites, as restrições e a margem
de ação dos representantes do povo no poder legislativo, contidos no
Acordo, deveriam constar de um contrato formal mutuamente assina-
do". A segunda citação é parte de uma resolução da assembléia munici-
pal realizada em Concord, Massachusetts, em outubro de 1776, pouco
depois da Declaração da Independência, onde se diz que o Legislativo
não é uma assembléia apropriada para a elaboração de uma constitui-

198 199
49. Quem poderá ser constituinte? partidos, inclusive porque a existência dos partidos é mais recente que a
da democracia e a da representação popular nos governos; que na ori-
Dentre as discussões do momento politico, destaca-se agora a de que gem do constitucionalismo o Legislativo era para ser apartidário, ha-
é necessária uma nova constituição para o Brasil. O que se diz é que a vendo inclusive proposta para que volte a sê-lo a fim de assegurar a Se-
constituição de 1967/69 não mais pode servir, nem mesmo para serre- paração de Poderes e o Estado de Direito, o que será muito dificil numa
formada, pois ela não emanou do povo mas teve origem autocrática. Constituinte partidarista; que a liberdade de associação só existe se for
Cumprindo promessa eleitoral de 'fazer democraticamente' uma nova voluntária e portanto aquele que não deseja filiar-se a um partido não
constituição, o atual Executivo enviou ao atual Congresso projeto de pode perder nem a cidadania e nem o direito de ser eleito; que o que
Emenda da atual constituição, onde estabelece que o Congresso a ser querem os partidos é manter o monopólio eleitoral; que o delegado
eleito ano que vem, por via do sistema partidário vigente, acumulará as constituinte deve apenas exercer a função específica de elaborar a cons-
funções de 'Poder Legislativo' e de 'Poder Constituinte'. Desta propo- tituição; que a idéia do 'abuso do poder econômico' não existe tal como
sição nasceu uma séria controvérsia que se caracteriza pela confusão se insinua e se ocorrer pode dar-se também no âmbito dos partidos,
político-filosófica. Hã, por exemplo, entre as partes conflitantes, gru- pois bastaria assinar uma ficha partidária para se tornar elegível; que a
pos que se colocam do mesmo lado mas que divergem diametralmente questão do 'vazio legislativo' é em verdade falta de argumento, pois é
sobre o ângulo ideológico. No fulcro do problema está o fato de que possível fazer-se de muitas maneiras o cronograma de elaboração e iní-
pouca gente sabe, de verdade, o que é e para que serve uma constitui- cio de vigência constitucional; e etc.
ção. E os que sabem que uma constituição 'bem manipulada' pode ge- A despeito da confusão aparente, principalmente para aqueles que
rar um regime totalitário ou, pelo menos, pode impedir que surja uma terão de escolher e votar, não há dúvida de que a discussão aberta se
sociedade livre procuram fazer crer ao povo que a nova constituição transforma num processo público de aprendizado sobre as coisas da vi-
poderá ser um santo remédio para todas as moléstias da vida social. da política. Mas se as questões de expediente, de conveniências e de in-
Não é à toa, portanto, que o que todos querem é apenas discutir quem teresses partidários e/ou ideológicos continuarem não permitindo que
vai receitar a nova panacéia constitucional. se entre no âmago do problema - que é o de fazer a todos saber, antes
Um dos lados do debate defende a posição de que é justo que o novo da escolha dos delegados constituintes, o que é de verdade a constitui-
Congresso seja também uma Assembléia Constituinte. Destacam que ção de uma sociedade livre e o que deve ela conter-, de pouca valia se-
haverá um procedimento democrático explícito para essa dupla atribui- rá toda essa polêmica, pois seu resultado será apenas o de se vir a saber
ção, derivando daí a legitimidade e representatividade do Legislati- quem poderá e quem não poderá candidatar-se ao futuro Congres-
vo/Constituinte; que se as duas assembléias não tiverem a mesma com- so/Constituinte. Se for assim, no final teremos, infelizmente, mais uma
posição haverá o perigo dum 'vácuo legislativo'; que é absurda a idéia pseudoconstituição, como as de 1891, 1934, 1937, 1946 e 1967/69, para
de uma constituinte apartidária, pois que sem partidos não haveria de- ser também eventualmente rejeitada.
mocracia; que hã partidos suficientes para abrigar todas as tendências Têm surgido ultimamente, nas bancas e livrarias, diversos panfletos,
políticas; e etc. Esta facção também rejeita a idéia de, simultaneamente folhetos e até manuais de instrução, preparados com a melhor intenção
com a eleição do novo Congresso, possibilitar a eleição de candidatos
de mostrar às pessoas pormenores sobre o que seria a Constituinte e a
independentes que atuariam apenas como constituintes; os argumentos
constituição. Estas publicações, entretanto, pouca ou nenhuma contri-
contrários a essa idéia são de que haveria 'abuso do poder econômico';
buição trazem para o esclarecimento do problema, pois seus autores es-
ou de que o atual esquema de cociente eleitoral partidário dificultaria a
eleição de avulsos; ou de que só se tem condições para tratar de política tão, aparentemente, tão confusos quanto aqueles a quem pretendem
e representar o povo por intermédio dos partidos. - 'orientar.
O outro lado do debate adverte que, se é para formular uma nova A idéia de se ter uma constituição escrita foi primeiro concebida por
constituição, é absurdo conferir poder constituinte originário a um po- uma sociedade livre. Era para ser uma proteção do povo contra qual-
der já constituído, como é o caso de um Congresso partidário; que não quer ação arbitrária dos poderes governamentais e visava à preservação
faz sentido dar poder quase ilimitado aos deputados e senadores para da liberdade individual. Essa idéia foi depois imitada pelos regimes to-
que estabeleçam não só suas próprias atribuições, privilégios e imunida- talitários com objetivo exatamente oposto. Sociedades imaturas, com
des mas também as limitações dos demais poderes; que não é verdadei- sistemas de governo indefinidos, como é o caso do Brasil, possuem
ra a idéia de que só existe democracia e representatividade por meio dos constituições híbridas, colocadas entre esses dois extremos, que pouco

200 201
têm a ver com o estabelecimento de instituições permanentes adequadas 50. Constituição não é lei
para o florescimento de sociedades livres e prósperas.
A constituição de uma sociedade aberta sempre foi idealizada para Embora os estudiosos de hoje se esqueçam disso, o verdadeiro Esta-
ser um conjunto harmónico de normas de organização de um sistema do de Direito estabelece um significado muito claro para a expressão
de governo que não só estabelecesse e alocasse os diferentes poderes 'lei'. Somente são leis de verdade, na acepção deste ideal político, as
mas que também obrigatoriamente limitasse esses mesmos poderes à es- normas abstratas e prospectivas de conduta justa individual que pos-
fera que lhes é própria numa sociedade de homens livres. Uma tal cons- suam os atributos de serem gerais, iguais para todos e aplicáveis a nú-
tituição levaria à organização de um sistema governamental que seria mero indefinido de casos futuros. Na equívoca prática corrente, porém,
um instrumento permanente de salvaguarda do indivíduo contra todo todo ato que emana de um órgão legislativo ou mesmo de qualquer ou-
ato discricionário do governo e çle outros indivíduos ou grupos, fosse tra autoridade instituída é também denominado 'lei'. Quando não são
qual fosse o grau de excitação ou o balanço das forças na atualidade pseudoleis, a grande maioria destes atos que hoje chamamos leis, no en-
política. . tanto, são algo muito diferente. São normas de organização, isto é, são
Se a constituição é por definição um conjunto de normas de organi- instruções, regulamentações ou regras de procedimento baixadas pelo
zação, ela não pode ser confundida com uma lei, no sentido do verda- governo, referentes a como devem ser manejados os órgãos governa-
deiro Estado de Direito, pois não é uma norma de conduta individual. mentais e geridos os meios de que dispõem. Dentre as normas que erro-
Esta confusão, no entanto, reina no debate sobre a Constituinte. É o er- neamente denominamos 'leis', mas que são normas de organização
ro crasso de que a constituição é a 'Lei Magna' ou, como dizem, é a 'lei e não normas de conduta, destacam-se as compreendidas no direito
substantiva através da qual se chegará às leis ordinárias'. Esse equívo- constitucional.
co, aliado ao positivismo jurídico que admite que toda norma votada Nas chamadas democracias ocidentais, o conjunto das normas de
por uma assembléia legislativa deva ser 'lei', faz com que muita gente organização ou de procedimento constitui o que conhecemos como di-
aceite a ilusão de que uma assembléia legislativo-constituinte pluriparti- reito público, em suposta comparação ao direito privado, que engloba
dária possa produzir uma verdadeira panacéia constitucional para to- as verdadeiras leis, ou seja, as normas de conduta ou de comportamen-
dos os males do Brasil. to. O direito público inclui principalmente o direito administrativo, o
É possível que se tratássemos com mais seriedade a questão sobre o direito processual e o direito constitucional. O direito privado abrange
que é uma constituição (uma norma de organização de um determinado as relações das pessoas entre si e entre as pessoas e o Estado, e também
sistema de governo) e para que serve essa constituição (para alocar e li- o direito 'penal' (criminal). Em verdade, o direito público não deveria
mitar os poderes do governo) talvez chegássemos à conclusão de que a ser considerado 'direito' na mesma acepção que o direito privado. No
Constituinte, os Partidos e o Legislativo não podem estar numa única entanto, torna-se cada vez menos clara a diferença entre o direito públi-
assembléia. co e o direito privado. Isso acontece porque os governos, nos últimos
cem anos, acobertados pelo positivismo jurídico e sobretudo procuran-
VISÃO, 11-9-85 do atingir os objetivos da chamada 'justiça social', vêm reivindicando
sistematicamente para as normas de organização a respeitabilidade que
antes só era conferida às normas gerais de conduta justa. Não é à toa
que quase desapareceu a distinção entre essas normas, tão diversas en-
tre si. O que agora se observa são os órgãos governamentais se isentan-
do cada vez mais da obediência às normas de conduta do verdadeiro Es-
tado de Direito, ao passo que a conduta dos indivíduos e a ação das ati-
vidades particulares se vêem cada vez mais submetidas a regulamentos,
autorizações e outras normas organizacionais emanadas de órgãos esta-
tais visando a finalidades ou casos específicos. Sobre essa obliteração,
assim escreveu J. Walter Jones em "Historical Introduction to the
Theory of Law" (Oxford, 1956) conforme citado por F. A. Hayek em
"Direito, Legislação e Liberdade", recém-lançado no Brasil pela Edi-
tora Visão: "O direito público, em decorrência de sua relação com o

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Estado, mostra-se tão acentuadamente marcado pela característica da leis e para que os tribunais verifiquem se os atos legislativos possuem ou
força, que o traço da ordem ou regularidade, tão pronunciado nas nor- não os atributos formais da verdadeira lei. Dessa forma a constituição
mas de que o profissional do direito em geral se ocupa, parece totalmente ao mesmo tempo em que estabelece, pela doutrina da Separação de Po-
ofuscado. Em conseqüência, a diferença entre o direito público e o priva- deres, que cabe exclusivamente à Assembléia Legislativa fazer leis, tam-
do torna-se antes de gênero que de grau - uma diferença entre força e bém limita os poderes dessa Assembléia à elaboração de normas de con-
norma. O direito público deixa por completo de ser direito, ou pelo me- duta que possuam as características exigidas pelo ideal político do Esta-
nos de ser direito no mesmo sentido em que o é o direito privado". do de Direito. E, já que a constituição é um conjunto de normas (for-
Do seio desta confusão entre direito público e privado afloram os mais) de organização dum sistema de governo e não uma lei, não faz
profissionais do direito constitucional que fazem questão de considerar sentido (como na atual discussão sobre a Constituinte) que se queira
a constituição a mais elevada espécie de lei, que chamam de Lei Magna, que no novo Estatuto se incluam normas (materiais) de conduta, i. e.,
à qual conferem uma.dignidade especial e dedicam uma reverência leis, que só deveriam ser elaboradas pelo Legislativo e tão-somente den-
maior que a qualquer outra parte do direito. Para eles, a constituição é tro dessa limitação de seus poderes.
uma categoria primordial do direito que fica sendo a origem de todos os
outros direitos. Embora essa distorção possa ser atribuída a razões his- VISÃO, 18-9-85
tóricas conforme explica Hayek em seu livro, a verdade é que "a consti-'
tuição existe para garantir que o direito seja mantido, e não a origem de·
todos os direitos". É, portanto, "uma superestrutura erigida sobre
um sistema jurídico preexistente, para organizar a aplicação do mes-
mo". Ainda que, uma vez em vigor, "possa parecer 'primeira' no senti-
do lógico de que é dela que as demais normas passam a derivar a pró-
pria autoridade, ela mesmo assim se destina a corroborar essas normas
preexistentes". O próprio Hayek enfatiza que é na área do direito cons-
titucional, mais que em qualquer outra área do direito público, que se
encontra a grande resistência à afirmação de que uma constituição não
é uma lei por não possuir os atributos das normas de conduta justa: ''A
maioria dos estudiosos da matéria parece julgar simplesmente abusivo e
indigno de consideração o argumento de que o direito constitucional
não é direito no mesmo sentido em c. ue assim chamamos o conjunto das:
normas de conduta justa. De fato, por essa razão, os mais prolongados!
e minuciosos esforços para chegar a uma distinção nítida entre os dois
tipos de direito - aqueles empreendidos na Alemanha, no final do sé-
culo passado, com relação ao que então se denominava direito no senti-
do 'material' (ou 'substantivo') e direito no sentido puramente 'formal'
- não puderam levar a qualquer resultado. Isso porque nenhum dos
autores envolvidos foi capaz de aceitar o que lhes pareceu ser a conclu-
são inevitável, mas a seu ver absurda, isto é, que, com base em qualquer
princípio judicioso de distinção, o direito constitucional teria de ser
classificado junto com o direito no sentido puramente formal, e não
com o direito no sentido material".
Embora o direito constitucional não seja direito no mesmo sentido
em que é classificado o direito privado, é imprescindível que a constitui-
ção de uma sociedade livre defina as propriedades que uma lei deve pos-
suir para ser válida. Essa definição não seria em si uma norma de con-
duta justa, uma lei, mas serviria de balizamento na elaboração de novas

204 205
51. A ideologia da Constituinte para se ter uma constituição adequada para o Brasil; como foi anterior-
mente feito para produzir as constituições de 1891, 1934 e 1946.
Neste outubro de 1985 intensifica-se o debate sobre a composição da Ao destrinchar esse problema da composição da futura Constituin-
futura Constituinte, mas pouco se discute a respeito do que vai ou não te, quisemos mais uma vez destacar que, fora de uma entidade aparti-
estar contido na nova constituição. Embora a controvérsia pareça ser dária e independente dos poderes constituídos, será quase impossível
quase que apenas sobre quem vai elaborar o estatuto constitucional, a elaborar a constituição de uma sociedade livre e democrática, pois uma
verdade é que a questão de fundo, não explicitada, tem muito a ver com tal constituição teria de, antes de tudo, formalizar a doutrina da Sepa-
o conteúdo da futura constituição. Nos extremos do debate sobre a ração de Poderes. Mas, se é para instituir a separação entre os poderes
composição da Assembléia Constituinte estão: de um lado, aqueles que Executivo, Legislativo e Judiciário (condição sine qua non para assegu-
aceitam que o Congresso a ser eleito ano que vem acumule as funções rar a vigência do verdadeiro Estado de Direito), é preciso compreender
legislativa e constituinte e seja partidarista; e, de outro, os que lutam que a função de uma Assembléia Legislativa permanente não deve ser
por uma Constituinte independente e apartidária. Cada um desses dois confundida com a de uma instituição temporária criada para elaborar
grandes grupamentos, no entanto, não é homogêneo no que se refere à ou reformar a constituição. A função de uma verdadeira Assembléia
'ideologia' que gostariam de ver na nova constituição. Legislativa é tão diversa do mister da feitura de uma constituição quan-
Do lado dos que insistem na Assembléia independente, ou seja, na to o é do de governar ou do de administrar a justiça, sendo portanto im-
eleição de um Poder Constituinte que emane do povo para apenas ela- prescindível distingui-la tanto do mister da Constituinte quanto das
borar a nova constituição, pode-se dizer que existem duas 'facções' funções do Executivo e do Judiciário.
principais. Cada facção pretende uma constituição diferente das que ti- Para tornar clara a relação entre o Poder Constituinte e os poderes
vemos até agora. O marco ideológico de uma, entretanto, é completa- instituídos pela constituição de uma sociedade livre, convém descrever
mente divergente do da outra: uma das facções busca a organização de resumidamente quais seriam as quatro categorias de poder deste regi-
um sistema de governo que distribua e simultaneamente limite os pode- me: O Poder Constituinte trataria sobretudo da organização do sistema
res do governo, tendo em vista a salvaguarda da liberdade individual; e de governo e da alocação e limitação dos diferentes poderes às várias
a outra procura a criação de um regime em que o governo possua pode- instâncias dessa organização. Embora devesse incluir nas normas for-
res praticamente ilimitados para conduzir todos os aspectos da vida dos mais que 'constituem' a organização do Estado alguns princípios de di-
indivíduos na sociedade. Este último sistema gera o socialismo que se reito substantivo (definir o que é lei, por exemplo), a Constituinte dei-
caracteriza pela propriedade estatal ('social') dos meios de produção e xaria a formulação do conteúdo desse direito e a sua aplicação a casos
pela 'democracia socialista' também denominada centralismo democrá- concretos a cargo respectivamente dos órgãos Legislativo e Judiciário.
tico. O primeiro conduz a uma sociedade aberta caracterizada pelo Já que o Poder Constituinte se ocuparia de uma estrutura semiperma-
exercício político liberal democrático e pela ordem de mercado onde se nente de normas de organização, ela só precisaria atuar a longos inter-
destaca o respeito à propriedade particular. valos, quando fosse imprescindível alterar essa estrutura. O Poder Le-
Do lado dos que admitem um Congresso partidarista com as atribui- gislativo trataria permanentemente de desenvolver o direito substantivo
ções simultâneas de Poder Legislativo e Poder Constituinte, o grupo é através do aperfeiçoamento gradual das leis; seus poderes seriam limi-
amplamente heterogêneo no que tange ao conteúdo ideológico da futu- tados apenas pelo dispositivo da constituição que definisse os atributos
ra constituição. A maior parte talvez seja composta por pessoas que (normas gerais de conduta, iguais para todos, abstratas e prospectivas)
não vêem problema maior em produzir uma constituição parecida com que as verdadeiras leis devem possuir. O Poder Judiciário seria também
algumas que já tivemos no passado, como por exemplo a de 1946, com completamente separado dos demais poderes, tendo a atribuição cons-
algum 'melhoramento' democrático e atualização. Muitos acreditam titucional de administrar a justiça face às leis emanadas do Legislativo.
que a questão central está na escolha (que em verdade é uma alternativa Todas as pessoas, dentro ou fora do governo, estariam sujeitas à revi-
ilusória) entre o parlamentarismo e o presidencialismo. Há também os são judicial. O Poder Executivo teria o encargo da condução das tare-
ativistas de difer~ntes segmentos sociais, que esperam juntar votos sufi- fas concretas do governo propriamente dito, administrando os recursos
cientes na futura Assembléia para introduzir na redação constitucional materiais e de pessoal a sua disposição. Os órgãos do Executivo seriam
expressões convenientes aos interesses que representam. Mas o que a limitados tanto pelas normas de organização da constituição quanto pe-
grande maioria imagina é que bastará conseguir uma composição repre- las normas de conduta justa estabelecidas (ou reconhecidas) pela As-
sentativa da vontade popular no congresso-constituinte pluripartidário sembléia Legislativa. A subordinação do Executivo às normas de orga-

206 207
nização da constituição, à revisão judicial pelo Judiciário e às normas 52. Não haverá sociedade livre nem progresso
de conduta justa explicitadas pelo Legislativo; e, de outro lado, a restri-
ção constitucional do Legislativo de apenas poder elaborar leis que pos- econômico sem o amplo direito à propriedade
suam determinados atributos, é o que se chama de 'Governo da lei, e (será preciso acordarmos com uma constituição
não de homens'. É óbvio que um tal sistema de governo só pode ser
plantado num terreno especial e por pessoas que tenham noção exata socialista para aprendermos isso?)*
do que significa o ideal do Estado de Direito, a doutrina da Separação
de Poderes, o que é lei de verdade e outros importantes conceitos que Nestes dias de polémica sobre os problemas de nossa vida social
consubstanciariam um sistema de governo baseado em instituições mui- poucos se dão conta da importância vital da instituição da propriedade
to mais imunes a ressentimentos momentâneos e a destemperos e impul- particular no seu sentido mais amplo. Embora imprescindível para a
sos de meras maiorias pseudodemocráticas. existência de uma sociedade livre, aberta, a propriedade é quase esque-
cida ainda quando se discute o que será a nova constituição, que logo
VISÃO, 16-10-85
mais estará sendo elaborada para nosso país.
Não se fala dela nas escolas, não nos deixam ouvir sobre ela nos pro-
gramas de rádio e TV, nada se menciona a respeito dela na imprensa e
nos discursos políticos e nem nos deixam entendê-la nos sermões das
igrejas. Aliás, para descrever com precisão o que se passa, é necessário
dizer que só se lembra da instituição da propriedade privada para atacá-
la e para planejar sua destruição. Ela é vilipendiada e tripudiada por to-
dos que conseguem falar alto em nossa terra, porém ninguém parece
importar-se. Todas as medidas demagógicas mais alardeadas dos gover-
nos - como p. ex. a 'reforma agrária' e o famigerado 'pacote da infla-
ção zero' - sempre procuram ferir antes de tudo o conceito amplo da
propriedade, mas poucos parecem preocupar-se com isso. O fato, po-
rém, é que a propriedade privada constitui o núcleo moral, e o coração
pulsante, dos aspectos culturais que mais prezamos na civilização
moderna.
Nas discussões que se oferecem ao público a respeito das questões
que no dia-a-dia afetam nossas vidas tudo vem à tona - juros, salários,
greves, emprego, participação política, partidos, sindicatos, mordo-
mias, preços, inflação, violência, eleições, casa própria, aluguel, consti-
tuinte, etc. -,mas não se fala de princípios fundamentais como o da
propriedade. E não há referências no debate ao estreito relacionamento
que efetivamente existe entre a propriedade privada, o indivíduo priva-
do e a liberdade individual. Se a omissão quanto aos princípios é total,
há um olímpico desprezo à simples idéia de defender a instituição da
propriedade privada. Conheço pessoas (dentro e fora do governo) que,
paradoxalmente, têm até raiva da própria expressão 'propriedade', em-
bora sejam proprietários e queiram ter mais ... E há, obviamente, os so-
cialistas de todas as tonalidades que fazem do combate à propriedade

* Certas partes deste texto aparecem em meu artigo "Quem vai defender o direito à pro-
priedade?" (VISÃO, 1817/83).

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a sua religião, embora não se decidam a distribuir as posses de que propriedade particular. Por isso, o homem deve ser livre para viver,
dispõem. consumir, investir, poupar, produzir, servir, comprar, vender e inter-
Entretanto, juntamente com os direitos à vida e à liberdade, o direi- cambiar, sem coerção nem privilégios. Ele deve poder não só ir e vir e
to à propriedade completa o conjunto dos direitos naturais individuais crer ou não crer mas também fazer ou não fazer e escolher livremente o
que deveriam interessar-nos mais que qualquer outra coisa em nossa vi- que mais convier para seu progresso e aperfeiçoamento, tudo isso na
da política. Esses direitos vêm de uma safra muito antiga e antecedem medida em que ao fazê-lo não prejudique os demais.
até mesmo os governos, tribunais e constituições, pois são próprios da Sim, isso tudo está na natureza das coisas. Mas quem é que está que-
natureza das coisas. rendo dar atenção e entender a fundamentação desses princípios? E
Como disse o historiador americano Clarence B. Carson, num arti- quem é que está importando-se com as agressões a todo instante desfe-
go publicado na VISÃO de 16-8-82, a fomiulação tradicional do concei- ridas contra essa natureza? Praticamente ninguém. Ninguém está real-
to da natureza das coisas "era a de que o homem tem direito à vida, à li- mente interessado (talvez por não se dar conta da gravidade da omis-
berdade e à propriedade justamente adquirida. Pode-se chegar à justifi- são) nos direitos humanos que realmente contam para separar o estado
cação do direito à vida da seguinte maneira: quem, a não ser o homem, de liberdade do de escravidão. No estado de liberdade a propriedade
tem o direito a sua própria vida? E, dentro da real natureza das coisas, pertence especificamente a quem a adquire, enquanto que numa condi-
como pode haver uma demanda que preceda a do indivíduo? Em resu- ção de escravidão tudo pertence aos que governam e nada aos súditos.
mo, o direito de um homem à sua vida é primário. Ela é dele por direi- No Brasil, costumavam dizer-nos que em 1964 se fez um 'movimen-
to. Ele só pode perder esse direito por um ato próprio voluntário. O di- . to revolucionário', que durou mais de vinte anos, em razão, principal-
reito à liberdade, por sua vez, é sobretudo o direito de não ser tolhido · mente, de um processo de comunização da propriedade, em contraposi-
ou preso, de poder ir ou vir sem impedimento ou restrição. Na prática ção ao princípio da propriedade exclusiva, privada. Não sei, todavia, se
significa o direito de agir desse modo, a não ser que haja uma boa razão jamais houve anteriormente mais ataque à propriedade privada que
para restrição, atestada e provada. Em sentido amplo, o direito à liber- nesse período. Foi nesse tempo, por exemplo, que se tentou aprovar
dade é o direito de usar as próprias faculdades como se queira, para os uma chamada 'lei do uso do solo urbano' (está ainda no Congresso
fins que se queira. Isso também tem fundamento na natureza das coi- aguardando momento propício) que fere mortalmente o princípio da
propriedade. O chamado Estatuto da Terra foi produzido logo no iní-
sas. O direito ao uso das próprias faculdades é adjunto ao direito à vi-
cio desse 'movimento anticomunizante'. Um órgão ministerial de 'as-
da, porque é pelo emprego delas para finalidades construtivas que a vi- suntos fundiários' baseado nesse Estatuto foi criado no período de dita-
da pode ser mantida. O direito natural à propriedade justamente adqui- dura militar. Foi sucedido na chamada Nova República, dita democrá-
rida surge dessa maneira. O que uma pessoa concebe em sua própria tica, pelo Ministério da Reforma Agrária; e os proprietários de terras e
mente, faz com suas próprias mãos, utilizando suas próprias ferramen- produtores rurais, que já vinham ressabiados, nunca sofreram tantas
tas, com materiais seus, lhe pertence, por direito. É seu direito ficar agressões e ameaças insidiosas contra o direito à propriedade. (Não é
com isso ou dispor disso; guardar, vender ou passar como herança para sem razão que a produção de alimentos no Brasil está estacionária há
quem quiser. O direito à propriedade privada da terra é um corolário ao muitos anos.)
direito natural à propriedade. O direito a melhorias na terra pertence E os tecnocratas vêm falando há tempos numa outra pseudolei sobre
naturalmente àquele que as faz (a não ser que seja recompensado de ou- terras ao longo da costa marítima ... Mas o golpe mais forte até agora
tra maneira). Isso está na natureza das coisas". contra a propriedade foi dado pelo Decreto-lei 2.283, de 28 de fevereiro
Por incrível que possa parecer para as pessoas ainda mal informadas de 1986, que, a título de acabar com a inflação, praticamente desmante-
de nosso país (ou àquelas que, sem perceberem, só aprenderam coisas lou a já frágil economia de mercado em nosso país. Como a função do
erradas nas suas escolas), há muita gente neste mundo que sabe muito mercado jamais cessa completamente, a absurda ditadura econômica,
bem que a liberdade individual é um direito inato. E que o homem só que leva inexoravelmente à perda de parcelas crescentes de liberdade, in-
passou a ter consciência firme disso quando o princípio da propriedade duz a um cada vez maior comércio subterrâneo (que as autoridades liber-
privada adquiriu vigor. As ·sociedades livres mais avançadas demons- ticidas falsamente chamam de 'ilegais') que nada mais é que um movi-
tram cabalmente que a única forma de conseguir que a maioria da po- mento espontâneo que procura manter acesa a chama do livre mercado.
pulação eleve seu padrão de vida e melhore sua situação econômica é Há, como sempre, uma ojeriza governamental e política (representa-
por meio da salvaguarda da liberdade individual e de seu corolário, a da, por exemplo, por sugestões de pesada e crescente tributação pro-

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gressiva) em relação aos rendimentos salariais dos cidadãos, ao lucro, 53. A constituição e os limites da escravidão
aos ganhos de capital e às heranças. Todas essas coisas têm a vertam-
bém com a tentativa de acabar com a propriedade privada, o mercado Ainda que estejamos afundando num atoleiro de crises devido aos
livre e a liberdade pessoal. Alguns poucos se insurgem contra isso. Mas sucessivos planos econômicos lançados pelos agentes do Estado no afã
não se ouve nenhum intelectual, nenhum político, nenhum candidato, de corrigir os males gerados pelos pacotes anteriores, precisamos tam-
nenhum professor, nenhum artista, nenhum cronista, nenhum colunis- bém preocupar-nos com a questão fundamental da nova constituição
ta profissional, nenhum líder sindical, nenhum economista, nenhuma que brevemente começará a ser elaborada. A grave situação hoje rei-
autoridade, nenhum padre, nenhum bispo, nenhum coronel, nenhum nante talvez ajude algumas pessoas de responsabilidade a entenderem
general, nenhum dono de rede de TV, nenhum presidente e nenhum mi- que o excessivo ativismo governamental pode custar muito caro não só
nistro, desses que se dizem 'democratas', tratar desses direitos humanos para a bolsa dos pobres e dos ricos mas principalmente para a liberdade
fundamentais para a vida de uma sociedade livre. E os demais, os que de todos os indivíduos. E é possível que, então, uma parcela da elite in-
assistem a esse triste espetáculo de omissão coletiva, nem se dão conta telectual brasileira (aquela que possui autêntica consideração pela liber-
disso. Talvez acordem quando chegarmos ao fundo do poço com uma dade) se torne mais interessada em compreender a organização e a ope-
constituição socialista disfarçada, como se disfarçou o verdadeiro golpe ração das instituições do Estado antes de começar a discutir sobre a ad-
de Estado socialista dado contra o mercado pelos 'cruzados' que recen- judicação ao governo desta ou daquela função ou sobre opções de pa-
temente assumiram o poder. Neste caso, a saída do buraco será extre- cotes de medidas para levar a cabo este ou aquele programa governa-
mamente penosa. E com mais pobreza acumulada, além da que já te- mental. Essa compreensão é imprescindível para que haja alguma chan-
mos tanto hoje.
ce de conseguirmos, afinal, uma constituição baseada na preservação
do bem maior do homem, que é a sua liberdade. Que para ser uma
VISÃO, 10-9-86 Constituição da Liberdade terá de ser uma norma de organização do
Estado que estabeleça o mínimo possível de intrusão estatal na vida
social.
Conforme ensina em tom dramático James Buchanan (que este ano
recebeu o Prêmio Nobel de Economia), qualquer intrusão do Estado
nas atividades do indivíduo significa uma servidão humana nos limites
dessa intrusão. Isto quer dizer que, ao rejeitarmos a estrutura social
anárquica (em que não se exerce qualquer coerção governamental sobre
os indivíduos) e fizermos uma genuína escolha constitucional, nós cida-
dãos concedemos uma certa autoridade ao Estado, mesmo sabendo que
essa cessão de autoridade corresponde a um certo sacrifício de nossa
autonomia individual. Nesse sentido bastante realista o contrato cons-
titucional que estabelece a autoridade do Estado sob;e as pessoas é um
'contrato d~ escra~iz~ção'. ~cada extensão do poder estatal, entrega-
mo-nos mais e mais a escravidão.
Cada aumento da autoridade governamental representa um preço
que pagamos em termos de nossa liberdade. É verdade que, dentro de
certos limites bem reconhecidos de ação do Estado, o custo em liberda-
de poderá ser menor que os benefícios que podem advir do exercício da
autoridade estatal dentro desses limites. Mas mesmo que o indivíduo
sujeito ao Estado possa gozar um padrão de vida mais alto que o de um
homem completamente livre, enfatiza Buchanan, ele será um tolo se es-
quecer, mesmo que por um momento, o fato elementar de que perma-
nece sendo um escravo na medida em que exista algum grau de sacrifí-
cio de sua liberdade em favor da ação do Estado. Ele lembra, por exem-

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plo, que, embora dez por cento de sujeição seja diferente de cinq~enta gar, que nosso dever se resume primordialmente em atender as necessi-
por cento, é importante ter bem claro que os dez por cento constituem dades visíveis das pessoas amigas que conhecemos; e em segundo lugar
sempre um certo nível de escravização. que a atividade que nos traz mais satisfação é aquela que envolve a ação
Quando o discurso político, baseado no totalitário Rousseau, usa a coletiva visando a objetivos comuns. Como esses sentimentos estão
expressão 'contrato social' ou quando se diz (corretamente) que uma profundamente entranhados em nosso ser, o coletivismo, representado
constituição é um estatuto bem ordenado contendo as normas de orga- pela presença governamental em todas as etapas da vida, é um fenôme-
nização de um sistema de governo, não se deve confundir o Estado com no que se multiplica facilmente se não houver cuidado.
outros tipos de organização que também usam contratos ou estatutos. Não é o caso, contudo, de apenas escrever-se na constituição que to-
Em relação aos indivíduos, o Estado pode ser imaginado como uma or- do poder emana do povo e em seu nome é exercido. Isso é somente uma
ganização em que a filiação é compulsória, enquanto em outras organi- presunção de que, com tal frase impressa, os governantes automatica-
zações a filiação é voluntária. Tanto num caso como no outro o indiví- mente funcionariam sempre como servidores do povo. Nem basta esta-
duo é membro de uma-organização e portanto deve aderir às normas da belecer amplos direitos eleitorais e uma legítima representação popular
organização, quaisquer que sejam elas. Mas, no cas? do Estado, as n~~­ no governo. O simples procedimento democrático não responde à ques-
mas constitucionais estabelecem sempre um determmado grau de sujei- tão primordial sobre como deverão esses representantes governar para
ção do indivíduo ao Estado, ou seja, um 'contrato de escravização', o povo, tendo sempre em conta o objetivo do governo numa sociedade
que é diferente de outros tipos de contrato. Na filiação a um Estado a livre, que é o da garantia da vida, da liberdade e da propriedade dos in-
pessoa não possui saídas-a-custo viável da situação de sujeição em que divíduos.
se encontra. Pois não tem alternativas ao contrato de servidão ao qual Sem que se estabeleçam limites à ação governamental, a constitui-
adere compulsoriamente e pelo qual o Estado adquire autoridade para ção, como já aconteceu tantas vezes, é vulnerável ao desenvolvimento
dirigir e intervir em suas atividades, inclusive para apoderar-se de bens, de regimes autocráticos e totalitários. Nestes regimes, os políticos e go-
produtos ou dinheiros que lhe pertencem legitimamente. Bastam essas vernantes, ao mesmo tempo que cortejam e adulam o povo, presumi-
considerações sobre o maior ou menor grau de sujeição do indivíduo ao velmente soberano, corrompem e coagem esse mesmo povo, que se
Estado para vislumbrar-se o quão importantes para a liberdade são as mostra incompetente e indefeso. Cortejam e bajulam prometendo o pa-
normas de organização e operação dos órgãos do governo que a nova raíso na terra e tudo o mais que nasce da imaginação demagógica. Cor-
constituição deverá conter. rompem fazendo barganha de pseudoleis por favores eleitorais; e coa-
Hoje quase ninguém questiona que nas sociedades complexas em gem impondo tributos (explícitos ou escamoteados pela inflação) cada
que vivemos o governo é necessário. Mas as pessoas sensíveis em rela- vez mais onerosos para manter o inchamento da máquina governamen-
ção à liberdade individual sabem que a constituição representa sempre tal e para cobrir os déficits públicos resultantes de programas antieco-
um prejuízo à liberdade mais ampla; é o tal 'contrato de escravização'. nômicos e das promessas de favores 'sociais'. Aproveitando a omissão
Elas sabem portanto que o governo não é tão-somente uma necessidade constitucional, os representantes do povo atribuem-se prerrogativas le-
mas é igualmente um certo mal. Sendo assim, não é dificil para estas giferantes ilimitadas que possibilitam uma atuação governamental cada
pessoas entender por que é preciso limitar o mais possível os poderes do vez mais arbitrária e discricionária, com perda gradual da liberdade in-
governo. . dividual. Cada vez mais servidão. Mesmo quando submetido à chama-
Mas o governo é também um mal porque nele existe sempre um po- da vontade popular majoritária, o indivíduo não passa de mero escra-
tencial de força coercitiva que quer controlar todas as fases da vida so- vo. O contrato de prestação de serviço pelo governo se tornará cada vez
cial, política e econômica, na busca de satisfação das necessidade~ ap~­ mais um contrato de escravização.
rentes do homem. Essa ingerência do Estado na vida das pes~oas e acei- Se o ideal é viver numa sociedade de homens livres na qual os proce-
ta com facilidade porque ainda estamos sob a influência atávica do mi- dimentos de decisão política sejam democráticos, a constituição terá de
lhão de anos em que a raça humana viveu na forma de pequenos ban- limitar claramente, e reduzir ao mínimo, a intrusão do Estado na vida
dos de caçadores ou de grupos tribais, em que tudo girava em torno de dos cidadãos, a fim de que o 'contrato de escravização' constitucional
uma espécie de governo centralizado na figura do chefe do bando ou da gere a mínima perda possível de autonomia dos indivíduos. O que será
tribo. Durante todo esse tempo desenvoheram-se os instintos e emo- bom para a liberdade e também para liberar toda a energia humana in-
ções que até hoje estão encarnados em nosso ser físico. Esses instintos dividual de que necessitamos para progredir. Para atingir esse objetivo,
·inatos, em termos de vida em comunidade, nos dizem, em primeiro lu- a constituição não só precisará explicitar os elementos e arranjos insti-

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tucionâis imprescindíveis para o funcionamento pleno da Federação e 54. O que é uma constituição *
da Democracia, mas também terá de conter disposições (que até agora
não apareceram nas constituições) sobre a efetiva separação e indepen- A primeira constituição escrita de um país é a dos Estados Unidos da
dência entre os poderes Legislativo, Judiciário e Executivo; sobre os América, aprovada em 17 de setembro de 1787 pela Convenção de Phi-
atributos (normas gerais de conduta, iguais para todos e aplicáveis a ladelphia e tornada efetiva no dia 4 de março de 1789. Neste ano de
número indeterminado de casos futuros) que devem possuir todas as 1987, portanto, ela completa duzentos anos de vigência. Antes dela, on-
leis; e sobre o direito fundamental à propriedade legitimamente adqui- ze dos treze Estados americanos já haviam escrito suas constituições,
rida. O Legislativo, para ser separado e independente e para assegurar- destacando-se a de Massachusetts, também em vigor até hoje, elabora-
se que só produzirá leis de verdade, não poderá ter bases partidárias. Os da em 1780 por John Adams, sete anos antes da constituição federal.
partidos só fazem sentido e terão lugar de destaque nos órgãos do Exe- Estas constituições tiveram grande impacto e foram publicadas e copia-
cutivo governamental. das em sua forma na Europa (principalmente na França, na década que
se seguiu a 1789) e depois nas mais 'jovens democracias' da América
VISÃO, 10-12-86 Latina. Embora a constituição americana tenha sido produzida pelo gê-
nio de homens que conheciam muito bem e professavam os princípios e
doutrinas que vinham sendo disseminados especialmente desde fins do
século XVII pelos filósofos políticos do constitucionalismo liberal da
Inglaterra e Escócia, ela deixou de explicitar certas questões fundamen-
tais consideradas naquela época evidentes em si mesmas e aceitou certos
compromissos institucionais, tal como o da separação apenas parcial
entre os poderes. Essas falhas provavelmente não ocorreriam hoje se
aqueles mesmos homens, com a experiência adquirida, fossem elaborar
uma constituição, como aquela, voltada para a liberdade do indivíduo.
É preciso jamais esquecer que a idéia da constituição de um sistema de
governo representativo surgiu do ideal político metalegal do Estado de
Direito que visava a proteger a liberdade individual contra os poderes
arbitrários e discricionários do governo - que à época eram, circuns-
tancialmente, monárquicos.
A constituição idealizada pelos filósofos políticos do constituciona-
lismo representativo (princípio de governo que presumimos adotar no
Brasil desde a Independência) sempre visou a ser um estatuto bem orde-
nado relativo à distribuição e à limitação dos poderes governamentais,
tendo em vista a preservação da liberdade individual. Ela foi imaginada
como sendo um conjunto permanente de normas de organização de um
determinado sistema de governo que não só alocasse os diferentes pode-
res mas que também obrigatoriamente limitasse esses mesmos poderes
do governo à esfera que lhe é própria.
Assim concebida, a constituição permitiria organizar um sistema go-
vernamental que seria um instrumento permanente de salvaguarda do
indivíduo contra toda ação arbitrária de qualquer setor do governo e de
outros indivíduos ou grupos, fosse qual fosse o balanço das forças do
momento. Essa seria a constituição de uma sociedade aberta e de ho-

* Baseado em parte num artigo meu publicado na VISÃO de 11-06-84.

217
216
mens livres. Entretanto, embora o constitucionalismo tivesse objetiva- termo a uma longa disputa e fora muitas vezes objeto de juramento so-
do uma constituição que fosse um estatuto relativo à organização de lene, consistindo em princípios cuja infração reacenderia conflitos re-
um governo limitado pelo Direito, tem havido mais deturpação que ob- gionais ou mesmo guerra civil. Freqüentemente as constituições eram
servância aos seus princípios originais. também documentos que, pela primeira vez, concediam direitos iguais
Alguns países de mais sorte (pois contaram com estadistas que com- de plena cidadania a uma classe numerosa e até então oprimida''. (Ob-
preenderam melhor o significado do constitucionalismo) chegaram com serve o leitor como estas palavras se adaptam bem ao momento brasilei-
suas constituições algo próximos desse ideal e outros dele muito se afas- ro e às equívocas discussões que se fazem em torno da natureza e objeti-
taram. As constituições que mais se aproximaram do constitucionalis- vos de nossa futura constituição.)
mo liberal clássico, como por exemplo as dos Estados Unidos da Amé- A despeito dessas distorções advindas de razões históricas, a consti-
rica e a da Suíça, produziram sociedades abertas e prósperas; e as que se tuição não pode ser considerada, como geralmente ocorre, 'uma cate-
afastaram do ideal (e que ainda não caíram no totalitarismo) geraram goria primordial do Direito que constitui a origem de todos os outros
sociedades nem abertas nem completamente fechadas, geralmente com direitos'. Como diz ainda Hayek, ''os pais da Constituição dos Estados
sérios problemas de identidade política, econômica e social, que se ca- Unidos provavelmente teriam ficado horrorizados caso se tivesse suge-
racterizaram pelo subdesenvolvimento e pelas freqüentes crises institu- rido que sua obra pretendia ser superior às normas gerais de conduta
cionais - é o caso do Brasil, por exemplo, com suas constituições de justa, tal como incorporadas no direito consuetudinário". A constitui-
1824, 1891, 1934, 1937, 1946, 1967 e 1969, todas rejeitadas. As nações ção existe para que o Direito seja mantido, sendo, portanto, uma supe-
com regime fechado, totalitário, resultaram de constituições que nada restrutura instituída sobre um sistema jurídico preexistente, para orga-
mais são que normas de organização de sistemas estatocráticos de go- nizar a aplicação do mesmo. (E, em especial no caso do Brasil, para
verno. Elas representam degenerações da doutrina original, não pos- limpar a estrutura jurídica das pseudoleis que têm sido geradas com o au-
suindo nada do sentido liberal do constitucionalismo, cujo fundamento xílio das constituições defeituosas e pretensiosas que tivemos até hoje.)
é a divisão e limitação dos poderes do governo, de modo que cada pes- Embora o direito constitucional não seja direito no mesmo sentido
soa possa viver sua própria vida com liberdade, tratando de seu próprio em que é classificado o conjunto das normas gerais de conduta justa
interesse como melhor lhe convier e fazendo com que sua aptidão, pa- (ou seja, as leis de verdade), é primordial que uma constituição defina
trimônio e operosidade produzam o mais que puderem em competição os atributos formais que uma lei deve possuir para ser válida. Essa defi-
com os de qualquer outra pessoa ou grupo de pessoas. nição, entretanto, não seria em si uma norma de conduta justa, uma lei,
Se a constituição da sociedade aberta é por definição um conjunto mas apenas uma certa 'norma de identificação' contida na constituição
de normas de organização, ela não pode ser confundida com uma lei, para servir de balizamento para o legislativo na elaboração de novas leis
no sentido estrito do Estado de Direito, pois não é uma norma de con- e para que os tribunais (na demarquia seria um 'tribunal constitu-
duta individual mas sim uma norma de organização de um sistema de cional') verifiquem, em eventuais conflitos, se os atos da assembléia le-
governo. Há, entretanto, muita confusão a respeito dessa importante gislativa possuem ou não as propriedades formais caracterizadoras da
diferença, pois muitos especialistas do chamado 'direito constitucional' verdadeira lei.
consideram a constituição a mais elevada espécie de 'lei' (chamam-na A inclusão dessa definição na constituição tem fundamento também
de Lei Magna), à qual dedicam uma reverência maior que a qualquer nas origens do constitucionalismo. O dispositivo da separação de pode-
outra parte do Direito. Essa confusão tem impedido, infelizmente, que res, intimamente ligado ao ideal político do Estado de Direito, foi a for-
países como o nosso tenham uma verdadeira constituição. F. A. Hayek ma que os fundadores do constitucionalismo imaginaram para estabele-
imputa essa confusão a razões históricas e explica em seu livro "Direi- cer um governo da lei em que somente seriam reconhecidas como leis
to, Legislação e Liberdade" (Editora Visão, 1985 - tradução patroci- aquelas normas emanadas do legislativo e que possuíssem os atributos
nada pelo Instituto Liberal) que "a razão por que se atribuem à consti- de serem 'normas gerais de conduta justa individual, iguais para todos e
tuição uma dignidade especial e um caráter fundamental é que, exata- aplicáveis a número indeterminado de casos futuros, abstraídos, por-
mente por exigir uma concordância formal, se fez necessário um esfor- tanto, de quaisquer circunstâncias específicas de tempo e de lugar e re-
ço especial para lhe conferir a autoridade e o respeito que o Direito há ferindo-se apenas a condições que possam ocorrer em qualquer lugar
muito desfrutava. Geralmente resultante de uma luta prolongada, sa- ou a qualquer tempo'. A constituição não é uma norma de conduta jus-
bia-se que tinha sido obtida a um alto custo num passado relativamente ta individual mas deve conter a definição do que é lei de verdade para
recente. Era vista como resultado de um acordo consciente que pusera que possa servir ao seu propósito de organizar um Governo da Lei com

218 219
autoridade para atender ao povo de uma maneira específica, objetivan-
do garantir o direito e a ordem, e para prover determinados outros ser-
viços, preservando a liberdade individual.
A estrita aplicação da doutrina da Separação de Poderes (inclusive com
um legislativo apartidário) e a explicitação dos atributos que todas as leis
devem possuir são dois dispositivos imprescindíveis para limitar os poderes
do governo, que jamais foram escritos nas constituições passadas.

VISÃO, 11-2-87
IV
TRIBUTAÇÃQ
E CONSTITUIÇAO

220
55. Quem deve pagar mais impostos?
Embora pouca gente recorde, existem duas filosofias tributárias dis-
tintas: a proporcional e a progressiva. A tributação proporcional ba-
seia-se no princípio da eqüidade, enquanto a progressiva só pode ser ar-
bitrária e discricionária, por mais que se tente argumentar em contrá-
rio. Apesar de só existir eqüidade fiscal na filosofia da proporcionalida-
de, quase ninguém questiona politicamente o progressivismo tributário
porque se vive sob a ilusão de que, sem transferir o grosso da carga de
impostos para as costas da gente rica, não seria possível manter os
'crescentes gastos públicos' tidos como imprescindíveis nos dias moder-
nos supostamente para atender às 'necessidades e carências sociais'. O
resultado dessa ilusão é o vertiginoso crescimento geral dos tributos e a
injusta punição dos mais bem-sucedidos através de despótica limitação
de seus rendimentos. Ao mesmo tempo, os gastos públicos disparam e a
máquina governamental se descontrola completamente.
Os governos usam o progressivismo como arma discricionária há
muito tempo. Quando a república de Florença caiu no século XV sob o
domínio da família Mediei, um dos instrumentos usados para ampliar
seus poderes despóticos foi o imposto progressivo. Usando o apelo de-
magógico às massas (como ainda se faz nos dias atuais), os nobres e os
maís ricos passaram a sofrer uma tributação especial que nada mais era
que um instrumento de destruição dos adversários com toda aparência
legal. Já no século XIX, foram os socialistas que primeiro advogaram
abertamente a tributação progressiva dos rendimentos em substituição
ao imposto proporcional. No Manifesto do Partido Comunista de
1848, Marx e Engels propuseram o "imposto fortemente progressivo"
como uma das medidas "para arrancar, pouco a pouco, todo o capital

223
à burguesia, a fim de centralizar todos os instrumentos de produção nas lecer-se uma outra regra, separada, aplicável somente àquela minoria
mãos do Estado". realmente mais carente.
Ninguém questiona que a~ pessoas devem c~ntribuir co~ _impostos Nenhuma regra válida, entretanto, poderá ser estabelecida sem levar
para que os governos tenham'-\ecur~os para ~eali~~r sua.~_Ieg~tlmas fun- em conta os efeitos da taxação indireta. Todos sabem - embora não
ções. Uma coisa, no entanto, é um s1stema tnbutano eqUitativo para le- exista estudo preciso sobre o assunto - que há a tendência de muitos
vantar as receitas necessárias; outra, é uma tributação usada para ~ re- impostos indiretos colocarem uma carga tributária maior nas rendas
distribuição de renda ou para oprimir certas classes de pes.soas. Os libe- menores. Este é o único argumento válido a favor da progressão nos im-
rais clássicos dos séculos XVIII e XIX falavam de uma tnbutação pro- postos individuais. A regra geral eqüitativa que se procura certamente
porcional e não de impostos progressivos. Ad~m Smith, po~ exemplo, admitiria um determinado nível de graduação para compensar os efei-
ao conceituar, em 1776, em The Wealth of Natwns, as prem1ssas ?a. ta- tos da taxação indireta. Essa leve progressão se aplicaria, entretanto,
xação sobre a renda privada dos indivíduos, escreveu que "os sud1tos apenas ao imposto individual sobre a renda como parte de uma estrutu-
de cada estado devem contribuir para apoiar o governo, tanto quanto ra fiscal de base taxativa essencialmente proporcional, e jamais poderia
possível em proporção às rendas que auferem sob a proteção do estado. ser estendida ao sistema tributário como um todo.
As despesas do governo referentes aos indivíduos de uma grande n~çã? A aplicação de uma regra geral que conduz à tributação geral igual-
são como os gastos comuns de administração referen~es aos condom~­ mente proporcional para todos (exceto àquela minoria efetivamente
nos ou inquilinos de uma grande propriedade, os. qua~s são todos obn- mais carente) faz com que a maioria dos cidadãos permaneça sempre
gados a contribuir em proporção aos seus respectivos n~teress~s na pro- atenta aos planos de ação e ao funcionamento, eficiência e expansão da
priedade. Na observância ou na negligência a .este conce1to re.s1dem, r~~­ máquina governamental. Essa vigilância se dará porque os cidadãos sa-
pectivamente, as chamadas igualdade ou des1gu~l~ade da tnbutação . berão que os orçamentos governamentais terão de ser obrigatoriamente
A idéia de que uma pessoa mais rica pagasse ma1s 1mpostos em propor- precedidos pela avaliação de uma porcentagem da renda nacional que o
ção à sua riqueza constituía a síntese da eqüidade. Isto quer d1zer, em governo propõe arrecadar na forma de impostos para cobrir as despe-
termos simples, que uma taxa única de xo/o sobre as rend~s de ,t~das as sas orçamentárias. Essa porcentagem será a taxa única de tributação
pessoas - pelo menos aquelas com rendas aci~a ?e um p1s~ mm1~o de proporcional. É difícil conceber um sistema de controle não só dos gas-
subsistência - teria como resultado que os mats ncos paganam mats na tos públicos mas também de toda a máquina estatal, por parte dos cida-
proporção que seus rendimentos fossem !llaiores. . . dãos, que seja mais eficaz e mais verdadeiramente democrático e justo
No sistema constitucional representatiVO de uma sociedade livre, o que este que se baseia numa taxa de tributação igual para todos.
que é necessário para resolver esse problema ?e eqüidade e. justi.ça no
sistema tributário, é uma regra balizadora na le1 que não adm1ta a I~P<?­ VISÃO, 30.10.85
sição, sobre uma minoria, de qualquer carga de imJ?os.tos que a mat?~la
decida aplicar. A maioria, simplesmente por ser ma10na, não podera J~­
mais ter condições de aplicar a uma minoria uma norma que não se apli-
que a ela mesma sem infringir um princíJ?io, m~to mais fun~amental
que o da própria democracia, que é ? da 1s~nom1a do ~erdade1ro Esta-
do de Direito. Se se pretende conseguu um s1stema de tnbutaçã~ q~e ~e­
ja razoável, é preciso que todos aceitem, como questão de pnnc1p1o,
que a maioria, que determina qual deve ser o valor to~~ da taxação, de-
ve também estar disposta a suportá-la em seu valor max1mo. E essa mes-
ma maioria poderá decidir suportar uma carga adicional para poder
conceder, sob a forma de tributação proporcionalmente menor, algum
alívio a uma minoria economicamente débil. O grande mérito da taxa-
ção proporcional é que ela fornece uma regr~ que permit~ chegar-se
mais facilmente a um acordo entre aqueles que trão pagar ma1s em valo-
res absolutos e entre aqueles que irão pagar menos em termos absolutos
e que, uma vez aceita a regra, não haverá maiores problemas ao estabe-

224 225
56. Os logros do imposto progressivo fiscado. É claro que, quanto mais pobre o país, menor será essa renda
máxima admissível. A triste constatação desse confisco é que, ao evitar-
O que é certo e o que é errado no âmbito da política tributária é algo se que os indivíduos possam tornar-se mais prósperos, se reduzem tam-
que praticamente não se discute nos dias presentes. Cada vez mais os bém as possibilidades de crescimento geral da riqueza no país.
políticos, os economistas, os juristas e os tecnocratas consideram que a Não há justiça verdadeira onde há discriminação e arbitrariedade. A
tributação e as finanças públicas são nada mais que uma questão técni- progressão jamais poderá ser considerada uma norma geral aplicável
ca de economia e de expediente legislativo. Eles então simplesmente tra- igualmente a todos, pois não há como demonstrar que é igual tributar
tam de inventar novos impostos e de aumentar os existentes a fim de em 200Jo a renda de uma pessoa e em 400Jo outra por ser sua receita
tentar equilibrar o sempre crescente e sempre deficitário orçamento go- maior. Além do mais, a progressão produz, sob o efeito da inflação,
vernamental. Para conseguir isso voltam-se de imediato para a intensi- um aumento de impostos maior que o aumento proporcional na renda
ficação do tributo progressivo. Deixam, no entanto, de considerar as do indivíduo resultante da desvalorização da moeda. O que se observa é
inumeráveis ilusões e falácias que decorrem do background ideológico uma espécie de 'promoção' nas alíquotas do imposto para as rendas
do progressivismo. mais altas, mesmo corrigindo-se os efeitos inflacionários; noutras pala-
A primeira e principal ilusão é a de que a carga de impostos que a so- vras: mantendo-se a renda igual em termos reais, a tendência é fazer os
ciedade deve tolerar vai atingir apenas as 'classes mais favorecidas' e rendimentos maiores subirem para as alíquotas mais altas. É um tipo de
não os demais cidadãos. Esse logro político, fundamentado na aplica- imposto extra gerado na tributação progressiva.
ção de pesadas taxas progressivas sobre as pessoas de maior rendimen- A progressividade desregula o mercado de trabalho. Torna variáveis
to, faz com que os cidadãos da classe média aceitem cargas gradual- e aleatórias as relações entre as remunerações líquidas de diferentes ti-
mente crescentes de impostos, muito mais pesadas que as que admiti- pos de trabalho. Assim, p. ex., se antes dos impostos um arquiteto rece-
riam se não estivessem influenciados por essa ilusão. Ficam chocados, be tanto pelo projeto de uma casa quanto um cirurgião por uma opera-
no entanto, quando descobrem que é sobre eles mesmos, indivíduos e ção, ou um vendedor recebe para vender dez carros tanto quanto um
famílias da classe média, que as alíquotas maiores da progressividade fotógrafo para fazer cinqüenta retratos, a mesma relação perduraria se
cada vez mais incidem. a taxação fosse proporcional. Mas, sendo progressiva, a relação pode
Os cidadãos acreditam, também, que, sem a alta progressividade variar bastante. A taxação progressiva provoca distorções, outrossim,
dos impostos, não seria possível manter os crescentes gastos públicos ao tornar a remuneração líquida por um serviço dependente de outras
supostamente imprescindíveis nos dias modernos. Deixando de lado, rendas do indivíduo durante o período fiscal considerado. Se, p. ex.,
neste artigo, quaisquer considerações sobre o absurdo desses 'crescen- dois advogados conduzirem um mesmo tipo de causa e cobrarem hono-
tes gastos públicos', é importante informar que qualquer exame isento rários iguais, é possível, se a taxação for progressiva, que um deles te-
mostrará que é pequena a contribuição da progressividade fiscal, nota- nha um ganho-após-impostos bem menor que o do outro, se ele tiver
damente a contribuição das taxas punitivas aplicadas às rendas maio- outras receitas em função de sua maior atividade.
res, para a receita tributária total. Não é difícil demonstrar que, se a A taxação progressiva também reduz a disposição das pessoas de
progressividade fosse aumentada a ponto de confiscar todas as rendas realizar esforços que representem prazo de maturação e altos riscos. É
acima de um certo nível, o aumento da receita tributária seria da ordem óbvia a discriminação da progressividade contra os empreendimentos
de apenas 1OJo. E é seguro que esse pequeno aumento da receita seria de alto risco que somente valem a pena se, em caso de sucesso, trouxe-
mais do que contrabalançado pela inibição da atividade econômica de- rem retornos suficientemente grandes para compensar os riscos de per-
corrente do desestímulo trazido às pessoas mais empreendedoras pelo da total. E é também difícil encontrar justiça nos casos, por exemplo,
excesso de tributos sobre seus proventos. do ato r, do pintor, do autor, do inventor ou do esportista profissional,
Mas como a falaciosa progressividade se apóia numa presumida que, ao colherem em poucos anos os frutos de talvez décadas de esfor-
'justiça social' que não considera nenhuma limitação, pois tem objetivo ço, vêem seu sucesso financeiro reduzido drasticamente pelo imposto
ideológico socialista, o teto da progressão será o confisco de todas as progressivo que não considera o período da semeadura mas apenas a
rendas acima de um certo valor. Esse valor-limite constitui o que aque- época da colheita. É curioso lembrar, neste ponto, que são justamente
les que defendem a progressividade fiscal denominam 'renda apropria- os intelectuais como os citados que muitas vezes disseminam idéias dis-
da', que seria, segundo eles, a única forma legítima e socialmente dese- cricionárias contra a livre iniciativa, defendendo apenas a parte da li-
jável de remuneração. Acima dessa 'renda apropriada' tudo seria con- berdade que lhes toca.

226 227
Todos esses efeitos danosos da progressividade fiscal sobre o incen- 57. A fobia escondida no pacote
tivo ao trabalho, os investimentos, as disponibilidades de poupanças
privadas, o mercado de trabalho e sobre os vários aspectos de eq.üi.dad.e Sempre que resolvem aumentar os impostos, os governos logo tra-
e justiça nas relações entre os homens mostram alguns logr~s e m)us.tt- tam de conquistar a imaginação popular pela idéia de que quem vai pa-
ças desse sistema. Se maior número de pessoas reconhecesse 1sso, mmta gar a conta são os 'mais favorecidos pela sociedade' e não o homem co-
gente passaria a rejeitar o progressivismo e exigiria um sistema propor- mum. A invocação de que é próprio da chamada 'justiça social' fazer
cional igual para todos e que só daria alívio àqueles realmente carentes. com que uma determinada minoria carregue cargas tributárias crescen-
tes tornou-se o argumento mais usado no debate destas medidas. Se-
VISÃO, 6-11-85 guindo esse hábito inveterado, o recém-proposto 'pacote econômico'
foi antecedido por freqüentes declarações invocatórias nesse sentido e
veio prenhe de medidas para atingir fundo as pessoas físicas e jurídicas
mais bem situadas na vida econômica brasileira. A reivindicação de
'justiça social' foi enfatizada ao clamarem que o grande peso do impos-
to de renda passaria a incidir "apenas" sobre uma minoria de indiví-
duos com rendimentos mensais acima de 30/40 SM e sobre menos de 4
mil empresas que apresentam lucro acima de 40 mil ORTNs; estas de-
verão também ser punidas apresentando duas declarações de renda por
ano. Não pretendo discutir aqui os pormenores das inúmeras proposi-
ções deste pacote. O que desejo agora é destacar a fobia em relação aos
indivíduos e às empresas que ganham mais e o quanto essa ojeriza serve
para criar obstáculos à realização do bem-estar comum.
A expressão 'justiça social' vem das noções do distributivismo e do
igualitarismo que sempre constituíram a essência do socialismo. Esta
ideologia inicialmente se caracterizava pela exigência de coletivização
dos meios de produção, porque este era o meio considerado indispensá-
vel para a realização de uma redistribuição supostamente justa da ri-
queza. Ao longo do tempo, os socialistas foram descobrindo que seria
possível efetivar essa redistribuição com menor resistência por meio de
uma tributação crescentemente progressiva que sempre poderia ser ar-
bitrariamente estabelecida pelo governo. Bastaria oferecer aparentes
benefícios aos trabalhadores e/ou realizar certos conluios partidários
para impor quaisquer medidas discricionárias. Sabendo que por esse
meio tributário o governo iria açambarcar cada vez maiores parcelas da
economia, os socialistas relegaram a explícita pregação estatizante dos
meios de produção fazendo da 'justiça social' sua principal bandeira.
Esta postura caracteriza uma nova ordem política que, em lugar de ser
regida por princípios de conduta individual justa do verdadeiro Estado
de Direito, é baseada no 'Direito do Estado', que atribui cada vez mais
uma obrigação justicialista a autoridades governamentais dotadas do
poder de ordenar às pessoas o que fazer em todos os passos da vida em
sociedade. A expressão 'justiça social' passou a ter o efeito desejado pe-
los socialistas porque foi sendo, pouco a pouco, aprovada por todos os
·movimentos político-partidários das democracias ocidentais, bem co-
mo pela maioria dos intelectuais e por amplo setor do clero cristão. Nos

228 229
países totalitários, milhões de pessoas, como diz Andrei Sakharov, tadas discricionariamente pelo fato de terem lucros acima de um deter-
"são vítimas de um terror que se esconde por trás da bandeira da justi- minado valor absoluto arbitrário, não só desestimulará o progresso em-
ça social". Mas até agora ninguém conseguiu descobrir na literatura presarial, e em muitos casos afetará com a elevação dos preços todos os
uma definição inteligível e muito menos uma dissecação racional do seu consumidores, mas também será um freio para o crescimento das em-
significado. presas menores. Portanto, sejam indivíduos ou sejam empresas, todos
A diferença entre os socialistas de ontem e os de agora é que, antes, os obstáculos que o governo impuser à ascensão de alguns constituirão,
eles advogavam com toda franqueza que o objetivo da tributação pro- mais cedo do que se supõe, obstáculos à ascensão de todos. Isto quer di-
gressiva era o de expropriar os ricos. Marx, por exemplo, no seu Mani- zer que, do ponto de vista da realização do bem-estar comum, mesmo
festo de 1848, propôs o "imposto fortemente progressivo" como uma num pequeno espaço de tempo, todos, inclusive os mais pobres, têm
das medidas de seu 'pacote' pelas quais "o proletariado utilizará sua mais a ganhar com um crescimento mais rápido baseado no livre merca-
supremacia política para arrancar, pouco a pouco, todo o capital à bur- do do que com qualquer outra forma de redistribuição de renda preten-
guesia, para centralizar todos os instrumentos de produção nas mãos dida pela tal justiça social.
do Estado". Agora, usam diferentes pretextos, como o do combate à
inflação, ao desemprego e ao déficit público. E apelando à 'justiça so- VISÃO, 11-12-85
cial' pedem aprovação de mais tributos discricionários para implemen-
tar infindáveis promessas de benefícios sociais que, mesmo que fossem
viáveis, não se justificariam nem moralmente nem sob o ângulo da ver-
dadeira justiça. E conseguem seu intento fazendo a maioria crer que
quem pagará o preço dessas promessas serão apenas uns poucos ricaços
e as grandes empresas.
As pessoas geralmente não percebem que os que proclamam a justi-
ça social distributivista são eles mesmos os causadores dos males econó-
micos que usam como pretexto para aumentar os impostos e controlar
mais a economia. No campo tecnocrático eles se autoclassificam como
keynesianos ou neokeynesianos ou estruturalistas, conforme a prefe-
rência de cada grupo. O lema da 'justiça social' é comum, embora às
vezes disfarçado. O resultado de sua política nos últimos quase cin-
qüenta anos tem sido o de uma persistente adoção do déficit orçamen-
tário pelos governos, o uso contumaz da inflação para cobrir esse défi-
cit e de uma também persistente onda de desemprego. Além de legar-
nos teoriàs económicas equivocadas e deixar-nos completamente desin-
teressados com relação à formação de capital para investimentos priva-
dos, o keynesianismo justicialista estimulou uma fé ilimitada no papel
preponderante do Estado na economia. Essa 'miragem' da justiça so-
cial se traduz no desapreço generalizado que se observa em relação às
pessoas mais prósperas e ao papel das empresas no processo de cresci-
mento económico.
Pode-se encarar a possibilidade de a qualquer momento melhorar a
posição dos mais pobres, dando-lhes o que se possa tirar dos mais ricos.
Mas, embora tal tentativa de nivelamento apressasse temporariamente
a redução das desigualdades, em breve isso contribuiria para tornar
mais vagaroso o avanço do conjunto e, no decorrer do tempo, isso faria
retardar a marcha de crescimento económico dos mais pobres. O mes-
mo acontece com as empresas. Fazendo com que as maiores sejam tra-

230 231
58. Memento importante para os constituintes. Em 1848, em seu Manifesto do Partido Comunista<t>, por exemplo,
Marx e Engels propuseram o "imposto fortemente progressivo" como
Ideologia do imposto progressivo* uma das medidas pelas quais o "proletariado utilizará sua supremacia
É aceito por todos que os cidadãos devem contribuir com impostos
política para arrancar, pouco a pouco, todo o capital à burguesia, para
centralizar todos os instrumentos de produção nas mãos do Estado".
para que os governos disponham de recursos financeiros para realizar
A essas proposições socialistas, os liberais de então reagiram, inclu-
suas funções. A idéia do imposto sobre a renda e outros proventos, por sive com firmezá, ao passo que, em 1848, em Paris, L. A. Thiers dizia:
exemplo, é bastante antiga, tendo inclusive sido discutida e advogada "La proportionnalité est un príncipe, mais la progression n'est qu'un
por muitos dos liberais clássicos dos séculos XVIII e XIX. odieux arbitraire", em Londres John Stuart Mill pintava a progressão
Estes homens, e,ntretanto, falavam de uma taxação 'proporcional' e como "a mildjorm ojrobbery". A argumentação desses liberais era de
não de impostos 'progressivos'. Eles também imaginavam a tributação que a prática da tributação progressiva logo se transformaria em ques-
como um meio 'eqüitativo' para levantar receitas governamentais ne-. tão puramente política pela impossibilidade de se definirem taxas de
cessárias e não como um artificio para a redistribuição de renda. Adam progressão que pudessem ser classificadas de eqüitativas; e que, em se
Smith, por exemplo, ao conceituar, em 1776, em seu The Wea/th of Na- tornando questão política, ela rapidamente tomaria contornos de de-
tions, as premissas referentes à taxação sobre a renda privada dos indi- magogia, pois os políticos passariam a prometer beneficios infindáveis
víduos, escreveu que "os súditos de cada estado devem contribuir para ao povo na suposição de que apenas uma pequena parcela de ricaços
apoiar o governo, tanto quanto possível em proporção a suas respecti- pagaria por eles.
vas capacidades; isto é, em proporção à renda que eles respectivamente A reação, entretanto, não foi suficiente, principalmente quando de-
auferem sob a proteção do estado. As despesas do governo referentes sabou sobre o mundo o democratismo ilimitado associado ao igualita-
aos indivíduos de uma grande nação são como os gastos comuns de ad- rismo. A argumentação dos liberais clássicos foi, porém, profética: os
ministração referentes aos condôminos ou inquilinos de uma grande órgãos legislativos democráticos e os executivos governamentais, fun-
propriedade, os quais são todos obrigados a contribuir em proporção cionando como se fossem uma só entidade<2>, passaram a ter crescente
aos seus respectivos interesses na propriedade. Na observância ou na poder legiferante para atender a exigências de interesses partidários,
negligência a este conceito residem, respectivamente, as chamadas' tornando os governos, com o intenso ritmo de estatização resultante,
igualdade ou desigualdade da tributação". cada vez mais poderosos e autárquicos. À medida que os gastos gover-
A eqüidade deste conceito está intrinsecamente ligada ao princípio namentais (facilitados também pelas grandes guerras deste século) pas-
da proporcionalidade. A idéi~ de que uma pessoa mais rica pagasse saram a crescer exponencialmente e os impostos proporcionais se torna-
mais impostos em proporção à sua riqueza constituía a síntese da eqüi- ram conseqüentemente mais pesados, os 'liberais' (que agora eram an-
dade. Isto quer dizer, em termos muito simples, que uma taxa única de tes de tudo 'democratas' e portanto se colocavam à mercê das 'vonta-
XOfo sobre as rendas de todas as pessoas - pelo menos aquelas com ren- des' das maiorias) esqueceram-se do princípio de que a lei deveria ser
das acima de um piso mínimo de subsistência - teria como resultado igual para todos e passaram a encontrar atrativos na idéia da taxação
que os mais ricos pagariam mais na proporção que seus rendimentos progressiva. E, para adotá-la, foram buscar novos argumentos que pu-
fossem maiores. dessem caracterizá-la como forma 'eqüitativa', e não 'igualitária' oure-
A taxação progressiva assumiu as suas atuais características de im- distributivista, e que lhe dessem respeitabilidade científica face às críti-
portância inicialmente insinuando-se na vida das nações democráticas cas anteriores de arbitrariedade.
do ocidente sob falsos pretextos que não o da redistribuição de renda- O argumento encontrado foi posto em termos de 'igualdade de sacri-
da mesma forma como surgiram muitas outras medidas similares de ficio' e se baseava num conceito teórico utilitarista que dizia haver uma
abuso da eqüidade legal.
Os que, no século XIX, primeiro advogaram uma taxação progressi-
va da renda em substituição à proporc;onal eram todos socialistas e seu (1)Ver "Anticomunismo marxista", H. Maksoud, publicado na VISÃO de 28-11-77 e
em "Idéias para a nação progredir com liberdade e empreendimento", Ed. Visão, São
objetivo, francamente exposto por eles, era o de expropriar os ricos. Paulo, 1978, página 55. ·

(2) Ver "Por que demarquia e não apenas democracia?", "in" "A Revolução que pre-
• Publicado originalmente na VISÃO de 4-9-78. cisa ser feita", H. Maksoud, Ed. Visão, São Paulo, 1980.

232 233
'utilidade marginal decrescente nos atos sucessivos de consumo', o que 59. Memento importante para os constituintes.
quer dizer, em palavras mais simples, que, à medida que as pessoas se
tornam mais ricas, elas só podem gastar dinheiro em coisas frívolas, As falácias do tributo progressivo*
uma vez que só se pode gastar até um certo tanto para atender às 'neces-
sidades básicas'. Essa pseudo-eqüidade utilitarista exigia, portanto, que A ilusão de que a carga de impostos que a sociedade precisa tolerar
o dinheiro que pudesse ser gasto 'frivolamente' deveria ser submetido a para atender às necessidades e carências coletivas poderia ser substan-
uma taxa de imposto maior que o dinheiro ganho e gasto 'seriamente' cialmente transferida para as costas da gente rica é a principal razão po-
em coisas básicas como alimento, moradia e vestuário. A taxação pro- lítica pela qual a taxação cresceu tanto e tão rapidamente e fez com que
gressiva se baseou, portanto, para esses 'liberais' que não queriam falar os povos aceitassem uma carga muito mais pesada que a que aceitariam
em distributivismo, no credo utilitarista simplista que rezava que um se não estivessem sob a influência dessa ilusão. A resultante dessa mito-
cruzeiro 'extra' é mais 'valioso' ou 'trará mais utilidade' a um homem logia política, entretanto, tem sido apenas a premiação da inveja dos
pobre que a um homem rico. que se consideràm menos favorecidos, pela imposição de severa e puni-
Embora seu efeito sobre muitos economistas ainda seja marcante, o tiva limitação nas rendas dos mais bem-sucedidos.
próprio tempo encarregou-se de mostrar o grande equívoco da teoria da Julgam muitos dos 'menos favorecidos', ou seus 'defensores', que a
'utilidade marginal'. Além de ignorar a questão da poupança, investi- progressividade está atingindo apenas uma classe de indivíduos milio-
mento, acumulação de capital e, portanto, crescimento econômico, a nários que eles imaginam serem os Matarazzo, os Rockefeller, os Onas-
lógica da argumentação dessa teoria desvia-se fatalmente da 'eqüidade' sis ou então os donos e executivos das grandes empresas. Ficarão, en-
inicialmente pretendida para o conceito 'equalitário' que vinha sendo tretanto, chocados quando descobrirem que, hoje, é sobre eles mesmos
mascarado; pois, enquanto existisse qualquer desigualdade de renda, os que a progressividade está também incidindo. Os 'ricaços' que são taxa-
gastos marginais nunca seriam iguais em utilidade e, portanto, seriam dos nas alíquotas mais elevadas são, na sua maioria, indivíduos e famí-
subseqüentemente necessárias novas taxas desiguais de impostos para lias da chamada classe média. São, provavelmente, o médico, o jorna-
atingir-se a pretensa 'igualdade de sacrifício'. lista, o artista preferido, o advogado, o dentista, o engenheiro, o editor
O crescimento desenfreado das taxas progressivas de imposto de do jornal, o gerente da loja, e talvez o próprio "menos favorecido" ou
renda neste século tornou difícil aos 'democratas liberais' e aos 'social- seu 'defensor'. Essa confusão de perspectiva sócio-econômica (que é
democratas' continuar defendendo a progressividade da taxação com causada por um bando de demagogos que andam soltos por aí, ajuda-
base nessa 'teoria' científica. Passaram então a aceitar abertamente o dos pelo resto da gente que não se importa em prestar atenção inteligen-
que vinham escondendo há tempos: que a única base possível para jus- te ao que realmente se passa à sua volta) conduz à l.:uriosa situação polí-
tificar a taxação progressiva arbitrária é a vontade de mudar a distribui- tica que começa com o feitiço da 'justiça social' de 'taxar mais os ricos'
ção da renda. E que, não podendo fundamentá-la em qualquer argu- e termina com uma 'rebelião da classe média', como a que está ocorren-
mento científico, a taxação progressiva só pode ser colocada franca- do atualmente nos Estados Unidos.
mente, como fizeram Marx e Engels em 1848, como um postulado polí- Muita gente pensa, também, que, sem a alta progressividade dos im-
tico-ideológico ou, em termos políticos modernos, como uma 'tentativa postos, isto é, sem taxar pesadamente os 'ricos', não seria possível man-
de impor à sociedade um padrão de distribuição de renda determinado ter os crescentes gastos públicos considerados imprescindíveis nos dias
por decisão majoritária, em repúdio à desigualdade'. modernos. Deixando de lado, por ora, quaisquer considerações sobre
Esse repúdio, entretanto, é, em verdade, uma miragem distributivis- esses 'crescentes gastos públicos', é importante informar que qualquer
ta chamada 'justiça social', que destruiu o conceito de 'norma de con- exame isento mostrará (para qualquer país) que é pequena a contribui-
duta justa idêntica para todos' da verdadeira lei, que somente a consti- ção da progressividade fiscal, principalmente a contribuição das altas
tuição de um regime político baseado no respeito à liberdade e à pro- taxas punitivas aplicadas às rendas maiores, para a receita tributária to-
priedade poderá fazer renascer. tal. Os dados disponíveis indicam, por exemplo, para o caso brasileiro,
que as pessoas físicas cujas classes de renda estão na alíquota máxima
VISÃO, 1-4-87 atual de 500Jo contribuem com seu imposto sobre a renda com apenas

* Este artigo foi publicado na VISÃO de 18-9-78 e faz parte de meu livro· 'Os Poderes do
Governo", Ed. Visão, São Paulo, 1984, página 167.

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cerca de 2,50Jo da receita tributária federal que corresponde a cerca de produz, sob o efeito da inflação, um aumento de impostos maior que?
0,3% da renda nacional. Se a classe de renda correspondente à alíquota aumento proporcional na receita do indivíduo resultante da desvalori-
máxima atual fosse desdobrada em outras faixas com alíquotas de im- zação da moeda. O que se observa é uma espécie de 'promoção' nas alí-
posto ainda mais elevadas, por exemplo, equivalentes a uma alíquota quotas do imposto, mesmo corrigindo-se os efeitos inflacionários; nou-
média de 75% (a tributação se apoderaria de todas as rendas líquidas tras palavras: mantendo-se a renda igual em termos reais, a tendência é
acima dos 100 mil cruzeiros por mês), a contribuição dos que estavam fazer a todos subir para as alíquotas mais altas. Assim, por exemplo,
no exemplo acima na alíquota mais alta passaria a cerca de 3,5% dare- mantendo uma renda líquida real equivalente a 62 mil cruzeiros, a valo-
ceita tributária federal. Isto quer dizer que, se a progressividade da ta- res de 1967, uma pessoa no Brasil terià essa renda 'promovida' da alí-
xação fosse aumentada a ponto de praticamente confiscar todas as ren- quota de 40% na declaração de 1968 para a alíquota de 480Jo na declara-
das acima de um certo nível, o aumento da receita tributária seria de ção de 1978. O imposto real aumentou. Este tipo de promoção, entre-
apenas 1OJo. Embora os dados a que se tem acesso não permitam preten- tanto, vigora apenas para as faixas de renda mais altas. Para as faixas
der nenhum grau de precisão nos cálculos efetuados, não há dúvida de mais baixas, a tendência é oposta. Tanto assim, que o limite de isenção
que a ordem de grandeza dos valores comparados mostra muito bem do imposto de renda tem crescido em termos reais.
que não seria a progressividade crescente da taxação que resolveria as A impossibilidade de se ter uma regra uniforme na taxação progres-
crescentes necessidades financeiras do setor público. Além do mais, é siva faz com que ela desregule completamente o mercado de trabalho,
provável também que mesmo esse pequeno benefício aparentemente tornando variáveis e aleatórias as relações entre as remunerações líqui-
trazido pelo aumento da receita tributária seria mais do que contraba- das referentes a diferentes tipos de trabalho. Assim, por exemplo, antes
lançado pela inibição de atividades econômicas decorrentes do desesti- dos impostos, se um arquiteto recebe tanto pelo planejamento de uma
mulo trazido às pessoas mais empreendedoras pelo aumento da taxação casa quanto um cirurgião por uma operação, ou um vendedor recebe
sobre seus proventos. para vender dez carros tanto quanto um fotógrafo para fazer cinqüenta
Mas como a justificativa da progressividade se apóia, no fundo, nu- retratos, a mesma relação perduraria se a taxação fosse proporcional.
ma presumida 'justiça social', que não considera nenhuma limitação, Mas, se ela for progressiva, a relação pode variar bastante. Quem lida
pois tem objetivo ideológico socialista (ou comunista, se preferem o ter- no mercado de trabalho sabe perfeitamente como essa situação dificul-
mo), o teto da progressão será o confisco de todas as rendas acima de ta tremendamente a política salarial, sendo inclusive, no fim, também
um certo valor e a liberação daquelas que estiverem abaixo desse limite. um foco de inflação.
Esse valor-limite constitui o que aqueles que defendem dogmaticamente A taxação progressiva altera, outrossim, substancialmente, esta re-
a progressividade fiscal denominam 'renda apropriada', que seria, para lação ao tornar a remuneração líquida por um serviço dependente de
eles, a única forma legítima e 'socialmente' d~sejável de remuneração. outras rendas do individuo durante o período fiscal considerado. Se,
Acima dessa 'renda apropriada' tudo seria confiscado. Para eles (socia- por exemplo, dois advogados conduzirem um mesmo tipo de causa e
listas ou comunistas, conscientes ou inconscientes), ninguém precisa ga- cobrarem honorários iguais é possível, se a taxação for progressiva, que
nhar acima dessa tal renda máxima. Na Rússia, é mais ou menos assim. um deles tenha um ganho-após-impostos bem menor que o do outro, se
É claro que, quanto mais pobre o país, menor seria essa renda máxima ele tiver outras receitas em função de sua maior atividade.
permissível. E a triste constatação é de que não pode haver dúvida algu- Dessa forma, a taxação progressiva transgride o princípio universal-
ma de que, ao evitar-se, principalmente nos países mais pobres, que os mente aceito de 'igual paga para igual trabalho'. Um homem que se es-
indivíduos possam tornar-se mais ricos, se reduzirão também o ritmo e forçou bastante, ou que é mais solicitado por alguma razão, pode, as-
as possibilidades de crescimento geral da riqueza. sim, receber uma recompensa muito menor, por qualquer esforço adi-
O fato, porém, é que não há justiça verdadeira onde há discrimina- cional, que outro que se manteve ocioso ou teve menos sorte. Isso tam-
ção e arbitrariedade. Toda ação, seja ela individual ou coletiva, para bém quer dizer que quanto mais valorizados forem os serviços de um
ser justa, tem que ser guiada ou balizada por normas gerais de conduta, homem, pelos consumidores dos mesmos, tanto menos vale a pena para
idênticas para todos e aplicáveis a um número desconhecido de casos esse homem empenhar-se em fazer mais.
futuros, como se propõe na demarquia. A progressão !amais poderá ser A taxação progressiva também só pode reduzir a disposição das pes-
considerada uma regra geral aplicável igualmente a todos, pois não há soas de envolver-se em esforços que representem longo prazo de investi-
como demonstrar que é igual taxar em 20% a renda de uma pessoa e em mento e altos riscos. É óbvia a discriminação da progressividade contra
40% outra pessoa por ser sua renda maior. Além do mais, a progressão os empreendimentos de alto risco que somente valem a pena se, em caso

236 237
de sucesso, trouxerem retornos suficientemente grandes para compen- lho doméstico pelo trabalho de escritor, se ele for quarenta vezes mais
sar os riscos de perda total. E é difícil encontrar justiça nos casos, por produtivo na escrita que no serviço doméstico". A taxação progressiva
exemplo, do ato r, do pintor, do autor, do inventor ou do esportista pode, pois, chegar às raias do absurdo quando uma pessoa que deseja
profissional, que, ao colherem em poucos anos os frutos de talvez déca- dedicar-se a atividades mais produtivas tenha que ganhar por hora al-
das de esforço, vêem seu sucesso financeiro reduzido drasticamente pe- gumas dezenas de vezes mais que outra, cujo tempo valha menos por
lo imposto progressivo que não considera o período da semeadura mas hora, para poder pagar pelos seus serviços.
apenas a época da colheita. É curioso lembrar, neste ponto, que são O problema da taxação progressiva, como se vê, é muito mais grave
justamente os intelectuais como esses citados que muitas vezes dissemi- do que possa parecer aos menos avisados. É provável que, se a maioria
nam idéias discricionárias contra a 'burguesia capitalista', defendendo das pessoas entendesse melhor como funciona esse sistema, muita gente
apenas a parte da liberdade que lhes tocaO> e fazendo vistas grossas ao passaria a rejeitá-lo e apoiaria um sistema proporcional que fosse igual
fato de estarem usufruindo ou tentando usufruir do pretenso 'mundo para todos - ou, pelo menos, para a maioria, pois não há razão por
capitalista' que querem destruir. que a maioria não possa, conscientemente, dar um alívio a uma minoria
Muitas das estórias que se ouvem nos tempos atuais sobre 'exaustão economicamente fraca, na forma de uma taxação proporcionalmente
das oportunidades de investimento' nos países mais avançados e sobre menor.
'espaços vazios' e 'falta de capital privado nacional' em países como o
Brasil são motivadas em boa parte também pela política fiscal estati- VISÃO, 15-4-87
zante que favorece um mercado de capitais centralizado e fechado.
Muitas iniciativas privadas provavelmente floresceriam se não prevale-
cesse hoje no espírito de muitos homens de responsabilidade um concei-
to similar ao expresso pelo economista americano A. H. Hansen em
1956, de que estamos atualmente "numa situação na qual o 'dólar mar-
ginal do imposto' poderá sem dúvida produzir uma utilidade social
muito maior que o 'dólar marginal do envelope de pagamento' ''.
A respeito do 'envelope de pagamento' e o estímulo ao trabalho, ve-
ja-se o caso da Inglaterra, em que, em 1976, o salário-desemprego era,
líquido, de 949 libras anuais, valor comparável ao salário de alguém
que, trabalhando, ganhasse 2.000 libras por ano mas que, com todos os
impostos e taxas, somente levaria para casa menos de 1.000 libras.
Todos esses efeitos danosos da progressividade fiscal sobre o incen-
tivo ao trabalho, sobre os investimentos, sobre as disponibilidades de
poupanças privadas, sobre o mercado de trabalho e sobre os vários as-
pectos de eqüidade e justiça nas relações entre os homens não são os
únicos, embora sejam os mais aparentes. Há, todavia, vários outros
efeitos não menos importantes, como por exemplo a restrição ou redu-
ção da divisão do trabalho ilustrada por um autor inglês, quando diz
que "um experiente escritor taxado em 19s 6d por cada libra (i. e., 97
1/2 por cento) precisa ganhar 200 libras para poder dispor de dinheiro
para pagar 5 libras para ter uns serviços feitos em sua casa. Ele poderá
decidir fazer ele mesmo o serviço doméstico ao invés de escrever. Só se-
rá lucrativo para ele estender a divisão do trabalho, trocando o traba-

(I) H. Maksoud, "Por toda a liberdade", na VISÃO de 7-2-77 e em "Coletânea de edito-


riais publicados de setembro de 1974 a março de 1977", Ed. Visão, São Paulo, 1977, pá-
gina 142.

238 239
60. Memento importante para os constituintes. sou-se a sustentar a legitimidade e a ter como 'lei' tudo aquilo que fosse
determinado por algum poder governamental, não importando se as
Balizamento do sistema tributário para disposições dessas 'leis' fossem discricionárias, discriminatórias, injus-
controlar o governo * tas, enfim. Dessa forma, passou-se a aceitar como bom o sofisma de
que o Estado de Direito continuava prevalecendo sempre que quaisquer
Pouca gente ousa questionar a filosofia da taxação progressiva por- disposições legais fossem dalguma forma aprovadas por uma maioria.
que pensa que se trata de algo justo e decente. O que no máximo se dis- Esse é, em verdade, o mais terrível golpe que se aplicou na justiça, pois
cute são os valores das taxas gradativas a serem aplicadas, os objetivos é princípio fundamental do Estado de Direito que a lei de verdade preci-
pretendidos e outros pormenores sem importância. No entanto, a histó- sa ter certas propriedades formais, dentre elas a de que deve ser igual
ria mostra insofismavelmente que, sob pretextos os mais variados, a ta- para todos.
xação progressiva começa levemente, medra nos espíritos, toma o cor- O que a maioria, na democracia, precisa aprender é que, para ser
po produtivo da sociedade e, como se fosse um câncer, o consome. Por justa, ela deve ser guiada em suas ações por princípios iguais para todos
isso, é preciso ter-se, na constituição, uma regra balizadora para um sis- e aplicáveis em número indeterminado de casos futuros, ou seja, por
tema tributário eqüitativo e justo. normas abstratas de conduta justa. O que é aplicável para a ação indivi-
Um relato extraordinário sobre discussões a respeito da tributação dual é também verdade para a ação coletiva, exceto que uma maioria
progressiva, transcrito por F. A. Hayek de trabalhos do historiador e (que é uma entidade coletiva sem qualquer identidade fixa) é menos
estadista florentino Francesco Guicciardini (1483-1540), mostra mui- passível de considerar o significado duradouro de suas decisões e, por-
to bem o verdadeiro sentido político discricionário desse sistema de ta- tanto, necessita mais de princípios balizadores. Quando, como ocorre
xação: no século XV, a república de Florença, que por duzentos anos no caso da progressividade, o 'princípio' adotado nada mais é que um
gozou de um regime de liberdade tal como não se tinha conhecimento convite à discriminação e, o que é pior, um convite para que a maioria
desde os velhos tempos de Atenas e Roma, caiu sob o domínio da famí- discrimine contra uma dada minoria, o pretenso princípio de justiça
lia Mediei, que adquiriu, por apelo demagógico às massas, crescentes transforma-se no pretexto para a pura arbitrariedade.
poderes despóticos. Um dos instrumentos usados para este fim foi a ta- O que é necessário para resolver esse problema de eqüidade e justiça
xação progressiva. Os nobres e os mais ricos, que já vinham sendo su- é uma regra balizadora que - embora deixe aberta a possibilidade de a
jeitos à opressão pelos assedas dos governantes, passaram a receber maioria taxar-se mais a si mesma para aliviar uma minoria economica-
uma taxação especial, que, embora nunca assim admitido pelos Mediei, mente mais fraca - não admita a imposição, sobre uma minoria, de
se constituía num instrumento de destruição com toda a aparência le- qualquer carga que a maioria considere correto aplicar. A maioria, sim-
gal, porque estes déspotas sempre reservaram para si mesmos o poder plesmente por ser maioria, não poderá jamais ter condições de aplicar a
de derrubar arbitrariamente qualquer um que eles quisessem. Guicciar- uma minoria uma norma que não se aplique a ela mesma sem infringir
dini escreveu por volta de 1538 que os que advogavam a taxação pro- um princípio muito mais fundamental que o da própria democracia (de-
gressiva eram para de "suscitatori dei popolo, dissipatori della libertà e cisão pela maioria), que é o princípio do verdadeiro Estado de Direito,
di buoni governi delle repubbliche". Para ele, o principal perigo da onde a lei é uma norma geral de conduta justa igual para todos. Se se
progressividade "jaz na própria natureza da coisa, que no princípio co- pretende ter um sistema de taxação que seja razoável, é preciso que to-
meça pequenina, mas se o homem não toma muito cuidado ela se mul- dos aceitem, como questão de princípio, que a maioria, que determina
tiplica rapidamente e atinge logo um ponto que ninguém teria sequer qual deve ser o valor total da taxação, deve também estar disposta a su-
imaginado". portá-la em seu valor máximo. E essa mesma maioria poderá decidir su-
Esse relato poderia muito bem servir aos dias de hoje nas chamadas portar uma carga adicional para poder conceder, sob a forma de taxa-
democracias ocidentais. Sob os títulos de 'justiça social', de 'redistri- ção proporcionalmente menor, algum alívio a uma minoria economica-
buição de renda' e com outros slogans de fácil apelo popular, os ideais mente débil. O grande mérito da taxação proporcional é que ela fornece
originais do Estado de Direito foram abandonados e substituídos por uma regra que permite chegar-se mais facilmente a um acordo entre
uma crescente deturpação do antigo e verdadeiro conceito de lei. Pas- aqueles que irão pagar mais em valores absolutos e entre aqueles que
irão pagar menos em termos absolutos e que, uma vez aceita a regra,
* Baseado no artigo "Democracia, taxação e demarquia", publicado na VISÃO de não haverá maiores problemas ao estabelecer-se uma outra regra, sepa-
2-10-78 e no livro "Os Poderes do Governo", Ed. Visão, São Paulo, 1984. rada, aplicá~el somente àquela minoria mais carente.

240 241
Nenhuma regra válida, entretanto, poderá ser estabelecida sem levar dos por uma avaliação daquela porcentagem da renda nacional que o
em conta os efeitos da taxação indireta. Todos sabem - embora não gover.no. se propõe arrecadar na forma de impostos, porcentagem que
exista qualquer estudo isento e suficientemente preciso sobre o assunto con~tit~I ~taxa padrão de tributação a ser imposta igualmente a todos.
- que há a tendência em muitos impostos indiretos de colocar uma car- E difíc~l conceber um sist~ma de controle não só dos gastos públicos
ga proporcionalmente maior nas rendas menores. Este é o único argu- ~as t~mbem _de toda a máquma estatal, por parte dos cidadãos, que se-
mento válido a favor da idéia da progressão nos impostos individuais, Ja mais saudavel e que possua características mais verdadeiramente de-
especificamente no imposto sobre a renda. A regra geral eqüitativa que m?c!áticas e justas do que este. Mas que só será praticável se a consti-
se procura certamente admitiria um determinado nível de graduação, tmçao estabelecer uma efetiva separação de poderes e um balizamento
digamos, no imposto sobre a renda, por uma boa razão, qual seja, a de como es~e: do sistema tributário. Assim, cada membro do Legislativ~
compensar os efeitos da taxação indireta. Essa progressividade se apli- que participa da elaboração da norma geral de tributação; cada elemen-
caria, entretanto, apenas a certos impostos individuais como parte de to do Executivo que prepara e executa os programas de ação governa-
uma dada estrutura fiscal, de base taxativa fundamentalmente propor- mental; cada representante de parcela do povo, da situação e da oposi-
cional, e não poderia ser estendida sob nenhuma justificativa ao siste- ção, q_ue aprova, deba~e e fiscaliz~ esses planos; cada um deles sabe que
ma fiscal como um todo. A questão é saber se é possível estabelecer não so eles mas t~mbe~ seus eleitores terão de contribuir, para cada
uma regra geral que seja aceita e que efetivamente evite as tentações gast~, cada no~o mvestimento, cada novo benefício social, ou para 0
inerentes ao sistema de taxação progressiva que tendem a levá-lo para o crescimento ou mchaço da máquina administrativa, com base numa ta-
arbítrio. xa de tributação praticamente igual para todos. O bolso de cada um se-
Tal regra geral poderia ser a que determinasse uma limitação para a rá, pela primeira vez, um poderoso elemento de controle democrático
taxação máxima direta, estabelecendo uma relação entre esta e a carga dos gastos governamentais.
total de impostos. F. A. Hayek sugere que seria possível adotar como
taxa máxima admissível para tributação direta o valor da porcentagem VISÃO, 22-4-87
da renda nacional que o governo capta na forma de impostos. Assim, se
o governo arrecada 250/o da renda nacional na forma de impostos dire-
tos e indiretos, 250/o seria o valor da taxa máxima de tributação das ren-
das individuais. Esta porcentagem seria também uma espécie de taxa
padrão de taxação direta de rendas; que seria reduzida das rendas mais
altas para as mais baixas na mesma proporção em que essas rendas fos-
sem, em média, taxadas indiretamente. O resultado seria, primeiro,
uma taxação direta algo progressiva em função da variação da taxação
indireta e limitada pela máxima admissível; e, segundo, uma taxação
total (somatório dos tributos diretos e indiretos) levemente progressiva,
ou seja, quase proporcional, porém também tendo como limite máximo
a taxa padrão acrescida da taxação indireta correspondente.
A adoção de uma regra fixa de taxação, preestabelecida como nor-
ma geral de conduta igualmente aplicável a todos, além de reduzir o ar-
bítrio e a discricionariedade da taxação progressiva, traz uma impor-
tante conseqüência diretamente relacionada com a limitação do poder
coercitivo do governo e com o controle da máquina governamental pe-
los cidadãos. A aplicação de uma regra geral que conduz à tributação
quase igualmente proporcional para todos (exceto para aquela minoria
mais carente já mencionada) faz com que a maioria dos cidadãos per-
maneça sempre atenta aos planos de ação e às características de funcio-
namento, eficiência e expansão da máquina governamental, pois estes
dependerão de orçamentos que terão de ser obrigatoriamente precedi-

242
243
v
AÇÃO
EMPREENDEDORIAL
61. O hibridismo inibe o empreendedor
O grande estoque de empreendedores é uma das características que
distinguem os países desenvolvidos dos subdesenvolvidos. A não ser
aquelas pessoas já completamente obnubiladas pelas idéias coletivistas
do socialismo, todas parecem estar de acordo com a proposição de que
"sem a ação empreendedorial não há progresso econômico e o desen-
volvimento não se dá''. Mas isso não quer dizer que os países subdesen-
volvidos não tenham empreendedores. Todos os países possuem, pelo
menos, homens com capacidade empreendedorial latente que assumi-
riam o papel de verdadeiros empreendedores se encontrassem as condi-
ções político-institucionais mínimas favoráveis para isso. A verdade é,
no entanto, que a diferença entre o país desenvolvido e o subdesenvol-
vido se explica, em grande parte, pela atuação de empreendedores indi-
viduais que surgiram aos borbotões nas nações hoje mais ricas e mais li-
vres, graças às características político-filosóficas que existiram durante
tempo bastante em seus sistemas de governo. O fato importante para
nós brasileiros é que, se continuarmos carentes de incentivo empreende-
dorial em face do hibridismo de nosso sistema político, todos nossos
'planos de desenvolvimento' continuarão sendo nada mais que magnífi-
cos projetos de desperdício de recursos financeiros e humanos.
Há intelectuais e tecnocratas que gostam de afirmar que não apare-
cem mais, hoje, homens empreendedores do mesmo gênero que os que
existiam antigamente. Esse conceito, porém, não é verdadeiro. Essas
pessoas confundem o verdadeiro empreendedor com o executivo em-
presarial, com o financista ou com o inventor e supõem que a ação em-
preendedorial seja algo que possa ser deliberadamente introduzida e
'calculada' no planejamento de um processo de produção. Acontece,

247
no entanto, que, ao invés, a ação empreendedorial é algo primordial à 'natureza injusta dos modelos econômicos vigentes'. Esses problemas são
própria idéia do processo de produção, aguardando uma possível im- chamados de 'má distribuição da riqueza', de 'desordem do mercado', de
plementação. A ação empreendedorial não é, pois, um ingrediente que 'capitalismo selvagem', de 'favorecimentos às classes mais abastadas',
possa ser apanhado e usado num processo de tomada de decisão; é, ao etc., e se afirma que eles só podem ser resolvidos através do distributivis-
contrário, algo em que a decisão em si se encontra embutida e sem o mo igualitarista e do coletivismo, ou seja, da aplicação da 'justiça social',
que a própria decisão seria impensável. Um traço característico do in- que tem no socialismo seu sistema de ação governamental.
sight empreendedorial é justamente o fato de seu possuidor não estar A facilidade com que se faz a intervenção do governo nos negócios
cônscio de que possui este insight. Daí decorre o fato de que o empreen- privados e o uso abusivo do adjetivo 'social' são eficazes instrumentos
dedor (o entrepreneur), pelo seu próprio modo de ser, não é um indiví- de demagogia e logro político que provocam sérias inibições à descober-
duo que condiciona sua ação empreendedorial ao fácil aplauso popular ta de oportunidades de mudança socialmente úteis e desejáveis. Haverá
ou a qualquer tipo de realce 'político' à sua imagem mas sim à busca do sempre nesse ambiente estatocrático socializante uma simulação de in-
ganho pessoal, da satisfação do próprio interesse. Não se deve confun- teresse público, de altruísmo, de nacionalismo, de desprendimento e de
dir isso com o personalismo ou o egocentrismo. Aliás, é justamente nes- comiseração que faz com que o insight empreendedorial, latente em
sa ação espontânea de procura de satisfação do próprio interesse que se inúmeras pessoas, deixe de vir à tona. Muitos indivíduos nessas condi-
descobrem as oportunidades mais socialmente desejáveis e significati- ções sofrerão sérios traumas antes de se arriscarem em algum empreen-
vas de mudanças, que no final das contas beneficiam muito mais gente dimento. Suas agonias não se devem, porém, às indecisões sobre se de-
além dos próprios empreendedores. É assim que, na ação visando seu vem ou não usar suas visões empreendedoriais; elas advêm de suas inse-
próprio interesse, o empreendedor "põe em marcha coisas novas" e ge- guranças sobre o que realmente conseguem 'enxergar' no tumulto anár-
ra progresso à comunidade que não existiria em sua ausência. quico dos regimes híbridos.
Mas então o que produz aquela idéia de que não mais existem em- Mas, mesmo assim, existem empreendedores nesses regimes. A des-
preendedores como os de outrora? A resposta está em boa parte no hi- peito dos controles, regulamentos e intervenções, há, ainda, algumas
bridismo dos sistemas político-econômicos vigentes. Praticamente to- vezes nos sistemas híbridos, incentivos minguados porém suficientes
dos os povos deixaram-se conduzir por uma ideologia espúria, de modo '
para que surjam verdadeiros homens empreendedores. Mas a regra e a
,
que hoje suas economias não seguem um padrão nem de puro socialis- inibição da atividade empreendedorial. E muitas vezes, até, a tendência
mo nem da ordem de mercado. Esses sistemas 'mistos' correspondem a de sufocar e destruir o trabalho do empreendedor. E isso é muito mau
economias que eram para ser de mercado mas que foram atravancadas para todos, pois onde não surgem os empreendedores não há progres-
pela intervenção estatal, em maior ou menor escala, dependendo do so; e, sem progresso, o que predomina é a estagnação, o declínio cultu-
país. Neles, o que predomina é a falsa idéia de que se funcionasse um ral e a persistência da pobreza generalizada como a que observamos no
mercado livre haveria estruturas de preços indesejáveis, condições ina- Brasil, graças ao nosso hibridismo político-econômico. Se aqui fôsse-
dequadas de trabalho e outras situações econômicas insatisfatórias para mos capazes de emular constitucionalmente as condições favoráveis ao
a população. Para 'corrigir' o mercado os governos aplicam um tipo contínuo florescimento da atividade empreendedorial, onde pudessem
ambíguo de justiça - arbitrária e discricionária - marotamente deno- ocorrer espontaneamente a iniciativa individual e a cooperação volun-
minado 'justiça social'. A conseqüência é o Estado intervindo em todas tária em todos os setores da vida em sociedade, então certamente deixa-
as ações do homem. Daí resultam os crescentes déficits orçamentários ríamos de ser um país potencialmente rico, porém subdesenvolvido,
geradores de terrível imposto inflacionário, os procedimentos de con- que só viveu até agora na instabilidade política, acumulando população
trole de preços, dos salários e do mercado de capitais, e os inumeráveis pobre e só tapando furos na área económica, para sermos uma nação
regulamentos e decretos tratando de crescentes tributos e recolhimentos de homens livres e prósperos que marcharia de verdade para uma idade
'sociais' e previdenciários de questões habitacionais, de relações traba- mais adulta da civilização.
lhistas, de zoneamentos urbanos, de utilização de recursos naturais, de
reforma agrária, de intervenção na estrutura monetária, no comércio, VISÃO, 2-10-85
na indústria, na agricultura, etc. Subjacente a todos esses controles,
muitas vezes impostos por servidores públicos bem-intencionados, de-
senvolve-se a pregação doutrinária de que todos os problemas atuais des-
ses paises com regimes híbridos (onde se inclui o Brasil) têm origem na

248 249
62. Quem são esses empreendedores? blemas da comunidade e dos carentes. Embora eles possam ser pessoas
dotadas de temperamento especial, suas mentes e personalidades são
Existe um papel no processo contemporâneo de desenvolvimento certamente sadias e maduras para serem capazes de perscrutar o futuro
que, numa sociedade livre, só pode ser cumprido por um tipo especial incerto; compreender a natureza humana; saber avaliar a integridade, o
de 'fazedor de coisas' que é o empreendedor. Mesmo num ambiente co- talento e os conhecimentos nas pessoas; assumir riscos razoáveis; ante-
mo o nosso em que se desconfia do indivíduo iniciador de novos negó- cipar e provocar mudanças; coordenar e reunir fatos disparatados e
cios, uma proposição sobre a qual as pessoas de espírito aberto parecem conflitantes numa única e clara decisão; perceber que muitas vezes não
estar de acordo é a de que "sem empreendedores não há progresso". sabem, e talvez não possam saber, mas que, não obstante, devem agir;
Mas quem são esses empreendedores? Como se pode estimular seu sur- e conseguir sobreviver às preocupações e às pressões da solidão e da
gimento? No Brasil é sempre útil e atual repisar sobre estas questões. incerteza.
Pouco se sabe realmente a respeito dos empreendedores. Eles não O empreendedor não se define a partir de um currículo escolar, não
são eficazes disseminadores de idéias nem suficientemente introspecti- se identifica por um diploma, não possui qualquer marca na testa, e a
vos para conseguir explicar o que os faz vibrar. Aqueles que conseguem produção desse tipo de homem não está nos objetivos declarados de ne-
fazer extravasar algum insight geralmente não encontram condições pa- nhum ministério. Ele se distingue, simplesmente, pela capacidade de
ra registrar ordenadamente suas atitudes empreendedoriais ou, então, inovar e de, como escreveu Schumpeter, "pôr em marcha coisas
decidem que seus complexos 'mecanismos' interiores são muito indivi- novas". Analisando os processos de mudança económica, este econo-
duais e, pois, intransferíveis. Grande parte do que tem sido escrito so- mista-político introduziu a distinção, hoje clássica, entre 'resposta
bre alguns empreendedores, empresários famosos e sobre como certos adaptativa' e 'resposta criadora' para classificar as formas de reação da
negócios foram criados é bastante deficiente, não só devido à precarie- sociedade a alterações de situação. Pelo menos três características defi-
dade das informações mas também pela motivação ideológica no senti- nem a 'resposta criadora'. Em primeiro lugar, ela não pode ser prevista
do de agredir e menosprezar esse tipo de pessoa. de acordo com critérios ordinários, a partir de dados preexistentes. Em
Nas últimas muitas décadas, os intelectuais em geral têm descrito e segundo, introduz mudanças definitivas, ou seja, "cria situações que
pintado a figura individualista do empreendedor como ridícula, abjeta nenhuma ponte pode unir àquelas que teriam existido em sua
e exploradora. Muitos chegam a teorizar condições psíquicas muito es- ausência". Em terceiro, relaciona-se: a) com a qualidade do pessoal
tranhas para estes indivíduos, atribuindo-lhes desvios 'freudianos' e até disponível na sociedade; b) com a qualidade do pessoal disponível em
a 'esquizofrenia' e a 'paranóia' como características de suas personali- cada setor, quando comparado com os demais; c.) com as decisõer
dades. Isto se deve ao fato de que os intelectuais só vêem com clareza o ações e esquemas individuais de comportamento. "De acordo com
direito de propriedade e o valor da liberdade individual quando aplica- isto", escreveu Schumpeter, "um estudo da resposta criadora nos ne-
dos à produção de jornais, livros, filmes, músicas, novelas e trabalhos gócios é co-exteilsivo com o estudo da ação empreendedorial", pois os
de arte. Eles sabem do fundo de suas entranhas como são essenciais pa- mecanismos de mudança económica num regime de liberdade se funda-
ra o trabalho intelectual a criação, a inovação e a propriedade indivi- mentam no empreendedor.
duais. Mas eles não conseguem ver num sentido mais amplo nem a indi- O empreendedor, no entanto, não se confunde com o executivo em-
vidualidade criadora, imaginativa e inovadora e nem o princípio da presarial, nem com o especialista, nem com o inventor, nem com oca-
propriedade individual que se aplica não só a eles mas também a outros pitalista. Para produzir a mudança não bastam a habilidade na condu-
setores da sociedade onde se incluem os empreendedores. Eles deixam ção de um negócio segundo certas regras, a disponibilidade de um novo
de ver que estas pessoas 'fazedoras de coisas' também se entregam com- conhecimento, a destreza na aplicação de determinadas técnicas e a
pletamente, inclusive com toda a alma, a suas ações de criação ou ino- posse de capital, isoladamente ou em conjunto. A mudança depende da
vação no mundo dos negócios. capacidade empreendedorial que somente o empreendedor possui. Sem
O fato de os empreendedores não serem normalmente paradigmas o empreendedor, portanto, todos os outros fatores são insuficientes pa-
de comiseração imaginativa como são muitos intelectuais, nem dotados ra gerar a mudança. Sem mudança, não tem sentido pretender o cresci-
da meticulosidade de um administrador profissional ou da macroeco- mento económico.
nomancia de um tecnocrata, e nem serem campeões de simpatia, ou não Hã lugar para o empreendedor num país como o Brasil? O que se
se preocuparem muito pela disputa de torneios de popularidade, não os pode responder neste decisivo momento nacional é que há um papel que
faz, automaticamente, menos 'gente' ou menos interessados pelos pro- somente o empreendedor, o entrepreneur, pode cumprir. Mas não

250 251
adianta só falar na importância da iniciativa privada, nem falar em 63. A liberdade de iniciativa na Constituição
combater a pobreza, nem falar de melhor distribuição da riqueza, nem
falar em desestatização, nem falar em desinflação, nem falar em desbu- Assisti no último dia 9 de outubro a um programa de televisão em
rocratização, nem falar em mais empregos, nem falar em prioridades que foi entrevistado o Dr. Afonso Arinos, insigne coordenador da co-
'sociais', etc. Se o empreendedor - grande ou pequeno, da cidade ou missão nomeada pelo Presidente da República para elaborar uma pro-
do campo- não se sentir estimulado a 'pôr em marcha coisas novas' posta de constituição. Lá pelas tantas lhe perguntaram como via o Art.
- o que só fará num regime político e econômico aberto bem definido 160, que se refere à 'ordem econômica e social', e que na atual consti-
baseado na liberdade individual e no respeito à propriedade -, todas tuição está assim: "Art. 160. A ordem econômica e social tem por fim
essas falas de nada valerão, porque não ocorrerão mudanças definitivas realizar o desenvolvimento nacional e a justiça social, com base nos se-
e portanto não haverá desenvolvimento de verdade. guintes princípios: I -liberdade de iniciativa; II- valorização do tra-
balho como condição da dignidade humana; III - função social da
VISÃO, 9-10-85 propriedade;''... Respondeu que uma das coisas que iria propor seria
retirar o destaque de primeiro lugar à liberdade de iniciativa. Sem en-
trar em considerações sobre o mérito da atual redação desse Artigo
(que, para mim, além de ser ambíguo, é socialisteiro principalmente
quando fala em 'justiça social' e em 'função social da propriedade'), a
idéia de menosprezar o conceito de livre iniciativa, num país onde o que
mais se necessita é de mais estímulo para a iniciativa de novos empreen-
dimentos, me chocou profundamente (pois imaginava que se estava es-
boçando uma constituição baseada na liberdade individual e não na es-
tatização dos meios de produção) e me fez reproduzir aqui o artigo
'Sem empresas não há empregos' que publiquei há dois anos:
"Nestes tempos de recessão fala-se muito em desemprego mas não
se dá a devida importância à empresa, que é a única instituição que gera
e mantém o emprego numa sociedade livre. O desemprego é tratado por
todos como uma peste que desaba sobre a economia. As campanhas po-
líticas e os movimentos sindicais se baseiam em grande parte na preocu-
pação do desemprego. Muito se escreve e inúmeras teorias são monta-
das em torno da questão do emprego. O desemprego generalizado é
realmente um mal danoso: produz traumas terríveis na vida dos empre-
gados e causa prejuízos irreparáveis nos afazeres dos empregadores.
Mas o desemprego é apenas o sintoma de um mal maior. Esse mal
maior é a fraca atividade dos negócios existentes e o não surgimento de
novas empresas.
"A falta de compreensão sobre o que causou a Grande Depressão
dos anos 30 (com uma década de recessão e desemprego) fez com que os
economistas em geral (e seus patronos políticos) adotassem religiosa-
mente a Teoria Geral do Emprego, do Juro e do Dinheiro, de Keynes,
abandonando os ensinamentos dos economistas clássicos que mostra-
vam que o mercado era um mecanismo que, quanto mais livre, mais efi-
ciente seria para fazer com que o mui complexo e descentralizado pro-
cesso de produção de bens e serviços refletisse com precisão as preferên-
cias dos trabalhadores e dos consumidores. A partir daí, desenvolveu-se
uma crença inabalável não só na capacidade como também na obriga-

252 253
ção dos governos de resolver todos os problemas sociais e principal- mercado livre não haverá crescimento econômico real nem perspectivas
mente os do desemprego. Os economistas clássicos tinham certeza de de progresso pessoal para os cidadãos. Em países com regimes político-
que na Administração Pública era imprescindível respeitar a regra fun- econômicos híbridos como o nosso, são minguados os incentivos para
damental do orçamento equilibrado para conter a tendência dos gover- que surjam empreendedores em quantidade suficiente em relação às
nos democráticos no sentido de financiar, por meio do aumento da base nossas necessidades. A regra é o estatismo, com a conseqüente inibição
monetária, os déficits orçamentários e de fazer crescer descontrolada- da atividade empreendedorial, havendo até mesmo, muitas vezes, a ten-
mente os seus gastos para tentar cumprir os programas e as promessas dência de sufocar e destruir o trabalho do novo empreendedor e do em-
partidárias. presário estabelecido. Isso é obviamente muito mau para todos, pois
"A teoria keynesiana substituiu o conceito clássico pela idéia de onde não surgem os empreendedores não há novas empresas; e onde
que, embora a economia fosse inerentemente instável, suas flutuações não há empresas não há emprego. O desemprego não é causado por ra-
poderiam ser atenuadas pela geração de um desequilíbrio no orçamento zões esotéricas de 'injustiça social', como se apregoa diariamente por
governamental, de modo a criar déficits na recessão e superávits na in- aí. O desemprego é causado pela fraqueza dos negócios, geralmente es-
flação. A partir desta simples idéia, os seguidores de Keynes passaram a tropiados pela excessiva intervenção estatal, e pelo não surgimento de
acreditar que havia sido inventado um método infalível de conduzir a novas empresas devido ao inadequado clima político-institucional em
economia de modo a estabilizar a produção e a eliminar as flutuações relação à liberdade de iniciativa.''
no nível de emprego, pela ação do Estado na economia. Passaram a
crer que, num caso de recessão e desemprego, por exemplo, bastaria VISÃO, 23-10-85
que o governo aumentasse a demanda gastando mais, para que os tra-
balhadores previamente desempregados, que seriam contratados para
produzir o que o governo comprasse, gastassem a maior parte de seus
salários em mercadorias, o que estimularia outro turno de aumento da
demanda. Este processo se repetiria automaticamente e, em conseqüên-
cia, o aumento total da demanda global seria um múltiplo do incremen-
to nos gastos do governo.
"O resultado da avalancha keynesiana nos últimos quase cinqüenta
anos tem sido o de uma persistente preferência pelo déficit orçamentá-
rio dos governos com a conseqüência de um permanente regime de in-
flação e de uma também persistente onda de desemprego. Os governos
em geral escolhem o déficit orçamentário porque sabem que este cami-
nho lhes dá condição de gastar sem ter de aumentar os impostos, en-
quanto os superávits somente podem ser acumulados ou cortando os
gastos ou aumentando os impostos, e estas são medidas de caráter im-
popular e, portanto, não do gosto dos políticos e dos burocratas. Além
de legar-nos uma teoria equivocada sobre as causas do desemprego, e
deixar-nos completamente desinteressados com relação à poupança e
ao processo de formação de capital, o keynesianismo estimulou uma fé
ilimitada no ativismo governamental. Essa estatolatria se traduz no de-
sapreço generalizado que se observa atualmente em relação ao papel
dos homens empreendedores e das empresas privadas no processo de
crescimento econômico.
"Quem acredita numa sociedade livre, porém, não duvida da impor-
tância da empresa privada na geração e manutenção de mais e melhores
oportunidades de trabalho. E sabe que sem o surgimento de novos em-
preendimentos e sem o fortalecimento das empresas existentes num

254 255
64. Defesa da liberdade na homenagem a cundária as .atividades-fir:z, para satisfazer, em alguns casos, a um tipo
Eugênio Gudin, Homem de Visão de 1974 de empreguzsmo que mms se assemelha a uma nova classe de previdên-
cia social.
No dia 12 de julho próximo Eugênio Gudin comemora 100 anos de Essa mesma convicção não nos empana a inteligência a ponto de não
idade. A matéria de capa desta edição da VISÃO fala de sua vida e seu reconhecermos que, por meio do Estado, também é possível alcançar
trabalho. Há quase doze anos, no jantar realizado no Hotel Glória, no melhores níveis de desenvolvimento. E que existem - e todos nós sabe-
Rio de Janeiro, em 12 de dezembro de 1974, tive o prazer de entregar- mos - várias empresas estatais muito bem geridas e que vêm há anos
lhe o Troféu Bandeirante por ter sido escolhido por nossa revista como cumprindo fielmente seus objetivos estatutários.
Homem de Visão de 1974. O artigo que segue é, na íntegra, o discurso _Nossa opinião é de que há maiores vantagens no sistema privado.
que fiz em sua homenagem nessa noite. A atualidade das idéias nele Nao vemos, porém, possibilidades de coexistência das iniciativas esta-
contidas torna válida a sua transcrição para comemorarmos agora o tais e p~rticulares nos mesmos setores de atividade, a não ser em casos
e~entuazs e q~ando, comprovadamente, a própria iniciativa privada na-
centenário desse grande lutador pela liberdade de iniciativa.
czonal se desznteresse ou não esteja ainda habilitada. Se uma corre ris-
Convictos de que a criatividade e a capacidade dos homens empreen-
cos .e pode ir à extinção se não for bem conduzida, e a outra, quando
dedores são as molas mestras que melhor sustentam um processo de de-
muzto, te'!' ape~a~ de trocar de nome quando vai mal, tal competição é
senvolvimento e mais permitem a sua aceleração; convencidos, tam-
desfavoravel e InJUSta para uma das partes e inviável e desinteressante
bém, de que quanto mais oportunidades, garantias e status se lhes de- para o país.
rem, para seu desempenho, melhores resultados serão alcançados; e
Parodiando Patrick Henry, em seu discurso defendendo a tese dare-
ainda mais: certos de que em ambiente de liberdade de iniciativa mais se
sistênc~a armada ~os ingleses, na convenção de Virgínia, também pode-
manifestam o poder criador e a capacidade de empreender do homem,
m~s dzzer qu_e diferentes homens vêem a mesma coisa sob diferentes
vimos, também, defendendo com ardor a iniciativa privada como o ins- przsmas. Asszm, esperamos não estar desrespeitando os que discordam
trumento adequado para o modelo brasileiro de d(!senvolvimento. de nosso pensamento se, expressando opiniões com que não concor-
Esta convicção, há anos, nos tem levado a aproveitar os recursos e
da"!, ? f_aze'}lOS livremente e sem reservas. Não é hora para fazermos
as ocasiões que se nos oferecem - e agora as revistas de que dispomos cerzmoma. E hora de opção clara, cristalina. Se escolhermos o caminho
- para manifestações em favor da livre empresa. Essas manifestações
d~ livre empre~a, devem?s dar aos home!ls empreendedores as oportu-
amiúdam-se à medida que a tecnocracia, sem correr os mesmos riscos e
n~~a~es .e o c~zma favoravel de que preczsam para, com sua intuição e
dispondo dos recursos financeiros em última análise provenientes dos dzlzgencza, crzar novas empresas e, conseqüentemente, mais riquezas e
impostos que gravam os empreendimentos da livre iniciativa, se lança à empregos. Sem garantias, sem as claras regras do jogo, o empreende-
concorrência com a empresa privada. Esta concorrência termina sem- dor, um homem que só pode correr riscos que estão nas suas cogitações
pre com a substituição da atividade privada pela ação governamental,
e com probabilidades em limites controláveis, desaparece, ou deixa de
do dinamismo privado pelo poder público, como forma de evitar um aparecer, para dar lugar ao jogador, que corre qualquer risco, depen-
confronto de eficiências muito penoso para a burocracia estatal. E, por dendo, somente, do fator sorte.
esta razão, este país, que por uma revolução evitou os riscos de uma so- Temos a certeza de que melhor homenagem não poderíamos prestar
vietização proposta por uma ideologia militante, renova os riscos de ao professor Eugênio Gudin do que apresentar, nesta reunião esta de-
uma estatização de características talvez similares, pela via de um prag- fesa da iniciativa privada, e de que o tempo que roubamos d~sta cele-
matismo pouco consciente. bração, para essa defesa, não o desmerece, mas, pelo contrário, o exal-
Tal concorrência aparentemente não resulta de uma orientação ex- ta, por ser também, hoje como em toda a sua vida, um denodado de-
plícita e intencional do governo que, ao contrário, pelo menos nos últi- fensor, e com maiores méritos, da empresa particular.
mos planos nacionais de desenvolvimento, se manifesta claramente a
favor da iniciativa privada. VISÃO, 2-7-86
É conseqüência, entretanto, da multiplicação de empresas do Esta-
do, que muitas vezes são criadas com o fito de agilizar a obtenção de
objetivos válidos, mas que, freqüentemente, por desvios gerenciais, vão
assumindo a execução de atividades-meio, colocando em posição se-

256
257
VI
SINDICATOS,
SALÁRIOS,
-
HABITAÇAO 65. O despotismo sindical
Neste fim de 1985 é preciso mais uma vez alertar contra o grave peri-
E DÍVIDA EXTERNA go do sindicalismo monopolista e imune à lei que continua crescendo
em nosso país. A fantástica máquina pseudoprogressista de propagan-
da, dominada pela nova classe de intelectuais dos tempos modernos,
apresenta os sindicatos como singelas organizações tão-somente preo-
cupadas com a melhoria do padrão de vida dos que se encontram eco-
nomicamente em piores condições. A verdade, no entanto, é outra. O
poder sindicalista transformou-se na mais poderosa força de pressão
política, física e econômica que se desenvolveu nas sociedades ociden-
tais desde o início da era industrial; e tem servido apenas para desman-
telar o mercado e desservir os próprios trabalhadores. Os únicos benefi-
ciários deste movimento coercitivo sindical têm sido os dirigentes sindi-
cais e certos políticos e causídicos aproveitadores, para quem a dissen-
são entre empregadores e empregados é a mais rendosa situação. O pe-
rigo deste sindicalismo está em imaginar-se que a chamada 'liberdade
sindical' é uma via de mão única e deve vir acompanhada de: privilégios
jurídicos; monopólio da força de trabalho; poder grevista ilimitado; e
desprezo à liberdade individual.
As associações voluntárias de trabalhadores transformaram-se nos
sindicatos coercivos de hoje porque os assalariados passàram a aceitar a
idéia coletivista (baseada na Utopia socialista) de que, como indiví-
duos, suas chances de progresso seriam muito pequenas numa socieda-
de livre e competitiva, por lhes faltarem os dons necessários para conse-
guir dar-se bem na vida por conta própria. Concordando tacitamente
com essa falácia, eles passaram a fazer parte, mesmo sem participar di-
retamente, de movimentos sindicais cujos membros, por definição, são

261
pessoas que foram catequizadas no sentido de que são incapazes de fa- obediência cega a suas deliberações ou obrigar à sindicalização. Do
zer uso da própria liberdade individual e também de que seu interesse mesmo modo, o fato de ser considerado legítimo que os sindicatos tra-
tem de conseguir salários mais elevados é também interpretado por es-
material depende da negação dessa liberdade.
Para justificar a pressão sindical são comuns os enunciados que in- sas pessoas como se lhes fosse permitido fazer tudo que lhes pareça ne-
sistem que os níveis salariais no mundo atual devem ser determinados cessário para atingir seus objetivos, como é o caso do uso ilimitado da
mais por considerações de 'eqüidade', 'justiça' e 'mérito' que pelas for- força bruta da greve. Aos trabalhadores, no entanto, são pedidas imu-
ças cibernéticas da oferta e da demanda do mercado. É por essa razão nidades apenas na medida em que se vinculem a grupos grevistas; como
que certos textos de economia enfatizam que, na ausência de reivindica- indivíduos não se reivindica para eles nenhuma salvaguarda a suas esfe-
ção coletiva, uma parte da remuneração do trabalho pode ser transferi- ras de ação privada e não são, em especial, imunes às pressões abusivas
da para remunerar outros fatores de produção; e que, pela atuação co- do poder coercitivo sindical, como acontece quando decidem trabalhar,
letiva, o trabalho adquirirá uma parte da remuneração normal de al- a despeito de supostas decisões majoritárias em contrário do sindicato.
gum outro fator de produção, graças ao maior 'poder de barganha' que As ações coercitivas somente são levadas à prática pelos sindicatos e
a ação combinada traz ao fator trabalho. Outra consideração freqüente pelos grevistas, ou porque a autoridade deixa de fazer cumprir a lei, ou
em prol da ação sindical coerciva é a de que se trata de 'movimentos re- porque a própria legislação, discricionária, isenta os trabalhadores da
presentativos' da maioria 'menos favorecida' e que portanto esse poder responsabilidade por atos efetuados em conjunto, eximindo-os da obe-
majoritário se enquadraria no espírito da democracia. diência às normas gerais de conduta justa aplicáveis às demais pessoas e
Essa pregação, usando a pobreza relativa e a idéia de uma 'injusta associações. O que o poder ilimitado sindical tem produzido de mal pa-
espoliação das massas indefesas', levou ao fortalecimento de um sindi- ra a sociedade como um todo e em especial para os próprios trabalha-
calismo espúrio e pleno de prerrogativas. Oposto a:o verdadeiro Estado dores soaria absurdo e formidável demais para ser acreditado pela opi-
de Direito. Os métodos de coerção e de coação utilizados pelos sindica- nião pública, há tanto tempo colocada sob a ilusão da chamada 'justiça
tos não são tolerados em nenhuma outra atividade numa sociedade li- social' e paralisada pelo mito da 'desvantagem reivindicatória' dos as-
vre. Nenhuma pessoa possui os privilégios e as imunidades em face das salariados. O fato, porém, é que esses danos já estão comprovados e
leis que possuem os líderes sindicais. Uma forma absurda de privilégio não é possível continuar aceitando esse despotismo sindical que só be-
dado a dirigentes sindicais no Brasil, p. ex., é a do parágrafo 3? do Art. neficia uns poucos e que usa uma arma de guerra- a greve- como su-
543 da CLT (Decreto-lei n? 5.452, de 1-5-1943), que prevê a estabilida- cedâneo da ordem jurídica e da força coordenadora espontânea do
de de empregado, a partir do momento do registro de sua candidatura a mercado. Numa sociedade livre não há como substituir o mercado na
cargo de direção ou representação sindical, inclusive como suplente, até determinação dos preços, sejam eles preços dos salários, mercadorias,
um ano após o final do mandato. E ninguém exige tanto poder quanto bens e serviços. E a única forma de colocar os sindicatos e seus mem-
estes líderes que não só querem ter o controle monopolista sobre todo o bros no devido lugar sem ferir o princípio da liberdade de associação é
mercado de trabalho mas também pretendem unificar o mecanismo de subordiná-los às mesmas normas gerais do Direito a que todas as de-
paralisação grevista da produção. Aí estão, em nosso país, a CUT mais entidades e pessoas estão submetidas. Não atentar para isso equi-
(Central Única dos Trabalhadores) e a CONCLAT (Coordenação Na- vale a pedir uma ditadura sindical tão despótica e antidemocrática
cional da Classe Trabalhadora) que lutam para centralizar todo o poder quanto as dos regimes totalitários mais fechados.
sindical nas mãos de uns poucos líderes, de modo a possibilitar o com- VISÃO, 25-12-85
pleto domínio de toda a força nacional de trabalho com apenas algu-
mas manipulações da cúpula.
Quando esses caudilhos dizem que os trabalhadores têm o direito de
formªr livremente seus sindicatos, eles querem apenas que os sindicatos
tenham o direito de existir e agir independentemente da vontade dos
próprios trabalhadores individuais. E o fato inegável de que os sindica-
tos possam ter como um objetivo normal o de induzir os assalariados a
filiar-se a eles tem sido interpretado por esses ditadores como uma con-
dição em que os sindicatos tenham o direito de fazer qualquer coisa que
considerem necessária para lograr essa finalidade, inclusive forçar a

262 263
66. Os perigos do sindicalismo Nas análises sociológicas sobre seu papel, os sindicatos são vistos
tão-somente como simples organizações preocupadas com a melhoria
à margem do direito dos padrões de vida dos que se encontram em pior- situação. São co-
muns os enunciados que insistem que os níveis salariais no mundo atual
Venho há muitos anos alertando para os males ao progresso nacio- devem ser determinados muito mais por considerações 'sociais' de eqüi-
nal que decorrem das intervenções violentas no mercado. O recente pa- dade e 'justiça social' que pela oferta e demanda do mercado. Nos tex-
cote da inflação zero, que tabelou/congelou os preços (inclusive salá- tos típicos de economia, sugere-se que, na ausência de reivindicação co-
rios), constitui uma dessas violências, por parte do governo. Mas quan- letiva, uma parte da remuneração do trabalho é, ou pode ser, transferi-
do se discute sobre as interferências no mercado, nem sempre se lembra da para remunerar outros fatores de produção; e que, pela atuação co-
da coerção sindical monopolizante que é a mais poderosa força de pres- letiva, o trabalho adquirirá uma parte da remuneração normal de al-
são que se desenvolveu nas sociedades ocidentais desde o começo da era' gum outro fator de produção, graças ao maior 'poder de barganha' que
industrial. a ação combinada traz ao fator trabalho. Esse 'poder de barganha', en-
Há muito tempo escrevo sobre os perigos e a inutilidade do sindica- tretanto, só faz sentido aos apologistas do chamado 'sindicalismo livre'
lismo que desrespeita a liberdade do indivíduo. O texto que segue, por se o sindicato dispuser do poder soberano e monopolista da greve. Po-
exemplo, é de artigos por mim publicados na VISÃO em novembro de der que será sempre usado, como arma escondida debaixo da mesa do
1978(*). Os homens de governo de oito anos atrás não se interessaram jogo, não só para as 'negociações' salariais mas também para conseguir
em aprofundar-se no exame do problema. Os que estavam na oposição, toda uma série de reivindicações conflitantes e contraditórias, como
e hoje são governo, foram sempre contrários às idéias contidas nesses 'não-interferências nas manifestações coletivas', 'nenhum
artigos. Agora que um mais forte movimento grevista começa a se es- desemprego', 'estabilidade assegurada', 'maiores auxílios previdenciá-
tender, a ação governamental não equivale aos conceitos dos discursos rios', 'casa própria para todos', 'mais investimentos', 'baixa nos pre-
da oposição de ontem. Hoje, a repressão se faz supostamente 'por uma ços' e, como não podia deixar de ser, 'redução dos lucros'. O que o po-
boa causa': a defesa do pacote. Não há mais como duvidar, no entanto, der descontrolado da força sindical monopolista tem produzido de mal
de que o tabelamento/congelamento, erradamente imposto ao país sob para o mercado e, acima de tudo, para os próprios trabalhadores soaria
o pretexto de combater a inflação, torna todos os 'preços decretados' como absurdo e formidável demais para ser acreditado por uma opinião
dos produtos, salários, aluguéis, etc. cada vez mais incompatíveis com pública há tanto tempo colocada sob a ilusão da chamada 'justiça social'
os verdadeiros preços do mercado, gerando não só o desabastecimento e paralisada pelo mito da 'desvantagem reivindicatória' do trabalho.
e a desorganização da economia mas um crescente inconformismo sala- Estamos há tanto tempo sendo impregnados por certas idéias a res-
rial; que facilita e torna, apenas aparentemente, menos grave a ação peito da tal 'justiça social' que já quase não conseguimos notar o absur-
monopolista sindical. De outro lado, não se pode deixar de lembrar que do, a violência e, principalmente, a futilidade contidos no mais impor-
a doutrina coletivista e estatizante, inerente ao sindicalismo sem peias tante fenômeno da vida pública moderna que é a ascensão crescente das
que se inflama no Brasil, não é contrária à intervenção governamental massas, via manipulação sindicalista, ao total poderio social. Aliás,
na economia pois, ao contrário, pede mais controle e estatização e me- aqueles que vêem os perigos, e sabem da inutilidade do sindicalismo
nos liberdade para as empresas, desde que os sindicatos sejam dispensa- desregrado, ou se calam para não perder o filão político, ou se fazem
dos de respeitar a liberdade individual e a propriedade privada, e sejam confusos e não enxergam alternativa, ou então não têm coragem de en-
imunes às normas do direito. frentar a eventual ira dos que exploram ideologicamente esse filão. O
Para quem quiser comparar, ao longo do tempo e na situação pre- que ocorre, sem que em geral o notemos com preocupação, é o esforço
sente, o comportamento dos sindicatos, dos governantes e de pessoas no sentido da dominação completa da vida pública pelas massas, em to-
que tratam deste tema, vale a pena ler e pensar sobre os textos que se- dos os âmbitos - político, intelectual, moral, econômico e religioso.
guem, pertencentes aos artigos "Sindicalismo, mercado e as regras do Como as massas, por definição, conforme escreveu José Ortega y Gas-
jogo,, e "Perigos e inutilidade do sindicalismo sem lei,, que publiquei set em sua obra "A Rebelião das Massas", "não devem nem podem di-
pela primeira vez em 13-11-78 e 27-11-78, respectivamente. rigir sua própria existência e muito menos dirigir a sociedade em
geral", o que se passa hoje com as nações é nada menos que uma gra-
(*) Ver também ''A Revolução que Precisa Ser Feita", 1980; "Os poderes do Governo", víssima crise, onde os fatos de real destaque são os movimentos sindi-
1984; "Demarquia", 1979; de H. Maksoud, Editora Visão Ltda. cais dirigidos por uns poucos que mobilizam forças políticas, físicas e

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econômicas tão poderosas que equivalem a ditaduras tão fechadas Estado de Direito. Nos tempos em que predominaram esses princípios,
quanto qualquer regime totalitário. a democracia e a liberdade individual conviviam como se fossem sinôni-
Os sindicatos surgiram após o progresso da 'era industrial' porque mos, sob o espírito dominante de que a vida em comum estaria sempre
os trabalhadores passaram a aceitar a idéia de alguns intelectuais de subordinada à lei. (A democracia nunca foi mais que um método políti-
que, como individuas, suas chances seriam quase nulas numa sociedade co de tomada de decisão. A liberdade individual, entretanto, represen-
livre e competitiva, por lhes faltarem, diziam os intelectuais, os dons tava uma postura ideológica que caracterizava filosoficamente os regi-
necessários para conseguir dar-se bem na vida por conta própria. Acei- mes que utilizavam o método democrático para suas decisões, confor-
tando essa idéia eles instintivamente passaram a ser parte de massas me já descrevi anteriormente, p. ex. em: "Por que demarquia e não
coesas e cada vez mais fortes até se tornarem virtualmente invencíveis apenas democracia", in "A Revolução que Precisa Ser Feita", 1980.)
em determinadas condições na tecnologicamente interdependente eco- Hoje, entretanto, assistimos ao triunfo de uma situação (que Ortega
nomia moderna. Os sindicatos são, hoje, o grupo dominante da socie- y Gasset chamou, em 1929, de "hiperdemocracia") em que a massa
dade. Seus valores e modos de pensar e agir caracterizam o ambiente atua como força bruta direta, sem lei e sem principias, dirigida por
político atual da mesma forma como os valores e o pensamento burguês quem "não quer dar razões e nem quer ter razão" mas tão-somente
determinaram a cultura política no século XIX. Mas, ao contrário da quer impor suas aspirações e seus desejos pela ilimitada e ilimitável
burguesia do século XIX, que entendeu e valorizou a liberdade indivi- ação coercitiva da greve ou de sua constante ameaça. É o que chamam,
dual üá que seus membros eram conscientes de que podiam fazer bom paradoxalmente, de 'liberdade sindical', que se caracteriza, entretanto,
uso dela), a massa do século XX, representada pelo sindicato trabalhi:- pela ausência de liberdade individual, pela coerção, pela coação, pelo
ta não possui essa compreensão e apreço, pois seus membros, por deft- monopólio do poder e pelo desprezo à lei.
ni~ão, são pessoas que foram profundamente conscientizadas de que É um momento de incertezas. A perplexidade predomina porque por
são incapazes de fazer uso da liberdade individual e também de que seu muito tempo nos estão ensinando noções e infundindo mitos sobre a
interesse material depende da negação dessa liberdade. 'longa e amarga luta dos trabalhadores' pela justiça econômica. ~s len-
Os melhores caldos de cultura para fermentação desses movimentos das mais persistentes são aquelas sobre a opressão e o empobrecimento
de força, contrários à liberdade individual, ao amplo direito à proprie- dos trabalhadores no século passado, antes de eles se organizarem em
dade e ao mercado espontâneo de trabalho, são as épocas eleitorais ou sindicatos para ganhar a chamada 'igualdade de poder de negociação'.
de instabilidade político-eleitoral e, principalmente, as fases inflacioná- Essas lendas se baseiam em antigas interpretações (contestadas há déca-
rias da vida econômica nacional. (No momento atual, a inflação dissi- das por pesquisas baseadas em evidências históricas, porém ainda em
mulada é uma dessas situações.) Uma das colocações mais freqüentes voga popular) de que a industrialização deprimiu ao invés de elevar os
para justificar a ação sindical ilimitada é a de que se trata de movimen- padrões gerais de vida dos povos.
tos 'representativos' da maioria 'menos favorecida' do povo e que, por- Essa 'igualdade' de poder de barganha foi conseguida e o que se vê
tanto, se enquadra perfeitamente no espírito de uma reclamada 'demo- nos encontros de 'negociação' é que um dos lados ou já está com ore-
cracia'. O que se observa, entretanto, normalmente, são decisões de de- vólver apontado (com a greve deflagrada) ou está com a arma, pronta
flagração grevista de apenas uns poucos lideres ou de uma minoria in- para engatilhar, debaixo da mesa.
significante que dificilmente poderia ser considerada representativa de A longa pregação usando a pobreza relativa e a 'injustiça da espolia-
uma maioria esclarecida. Acontece, também, que o conceito original (e o ção das massas menos favorecidas' não só conduziu ao fortalecimento
único verdadeiro) da democracia continha uma generosa dose de entu- de um sindicalismo espúrio mas também deu asas ao racionalismo cons-
siasmo pela liberdade individual, pela qual os sindicatos não se interes- trutivista dos economistas, cientistas sociais e políticos que só conse-
sam, e de respeito pelo verdadeiro Estado de Direito, que para os sindica- guem ver na ação direta do Estado os instrumentos para realização dos
tos simplesmente inexiste quando assim decide a 'maioria' sindicalizada. ideais coletivistas contemporâneos, comumente denominados 'justiça
Quando adotava aqueles princípios fundados na liberdade, o indiví- social'. Isto significa, na prática, que os interesses da mão-de-obra or-
duo obrigava-se a manter uma severa disciplina sobre si próprio. Os li- ganizada serão supostamente protegidos a qualquer custo, e os direitos
mites de sua liberdade faziam fronteira com a liberdade do outro indiví- do individuo e a propriedade particular serão sacrificados, enquanto o
duo. A responsabilidade imperava por respeito às normas universais de poder do Estado será realçado em todos os aspectos, exceto naqueles
conduta justa, isto é, à lei de verdade. As minorias podiam, assim, viver que possam interferir com o trabalhismo sindicalizado.
e fazer coisas, sob o amparo do princípio da liberdade individual e do Assim, toda uma filosofia social relacionada com o problema da po-

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breza relativa se baseia numa cega e dogmática crendice na eficácia de 67. O controle dos salários
um sistema de fixação salarial (os famigeradas decretos e leis salariais)
pelo Estado e/ou pela ameaça grevista dos sindicatos. Por isso, não se • Nestes últimos dez anos escrevi muita coisa sobre as chamadas 'polí-
consegue mais atentar para certas verdades que alguns poucos homens ticas salariais'. Quem quiser, pode consultar, por exemplo, os cinco úl-
estudiosos e politicamente independentes têm procurado transmitir- timos livros meus: "Idéias" (1978), "Demarquia" (1979), "A Revolu-
nos. Um desses é W. H. Hutt(l), que vem tentando mostrar enfatica- ção que Precisa Ser Feita" (1980), "Ensaios Sobre a Liberdade" (1981)
mente, desde 1930, que os sindicatos, desde o início da era industrial, e "Os Poderes do Governo" (1984). Aqui estão reproduzidos trechos
lançando mão de crescente poder de paralisação grevista, têm buscado de dois artigos publicados na VISÃO em 1980 e em 1983, que são de
obter vantagens particulares para seus membros por métodos que, no grande atualidade.
final das contas: 1) têm prejudicado os trabalhadores em outras ocupa- • Tenho sempre procurado demonstrar que o controle de salários, da
ções, sindicalizadas ou não, e os trabalhadores não-sindicalizados nas mesma forma que o controle de preços, é uma violação despótica do
mesmas ocupações,· 2) têm reduzido os níveis gerais médios dos salá- mercado, através de ingerência governamental perniciosa e desnecessá-
rios; 3) têm prejudicado os investidores que, quando investiram (quan- ria. Da mesma forma que o controle de preços, a 'política salarial', pa-
do decidiram manter, substituir ou aumentar os recursos usados em ra ser eficaz, também exige que, progressivamente, seu escopo seja au-
suas atividades), deixaram eventualmente de levar em consideração as mentado, levando o país, gradualmente, para o controle total, pelo go-
possibilidades de greves,· 4) têm prejudicado os consumidores; 5) têm verno, dos preços dos fatores de produção das quantidades a serem
produzido uma distribuição de rendas muito mais desigual e errática produzidas e da determinação de quem deve produzir o quê. Isto é,
que a que seria determinada no mercado livre; 6) têm criado pobreza criando jeitosamente um Estado totalitário.
evitável; 7) têm provocado pioras nas relações industriais e desestímulo • E, para mostrar como só servem para perturbar a vida econômica e
ao esforço individual; 8) têm provocado muito menor grau de seguran- como são perecfveis essas 'políticas salariais', basta rememorar as prin-
ça e mais baixo nfvel de oportunidades de emprego que os que se teriam cipais 'leis' produzidas em pouco mais de seis anos: a Lei 6. 708, de 30-
com o mercado sem restrições; e 9) têm sido responsáveis pelo expe- 10-79, foi logo alterada pela Lei 6.886, de 10-12-80, e depois modifica-
diente político da inflação, usado pelos governos para manter o pleno da pelo Decreto-lei 2.012, de 25-1-83, que por sua vez foi substituído
emprego ao mesmo tempo em que (também por razões políticas) pelo Decreto-lei 2.045, de 13-7-83, que o Congresso rechaçou, sendo lo-
aquiescem com a coerção grevista sindical para forçar a subida salarial. go substituído pelo Decreto-lei 2.064, de 19-10-83, que não foi bem-
Por mais incríveis que possam soar essas conclusões, elas permiti- aceito pelos políticos, resultando no Decreto-lei 2. 065, de 26-10-83. Um
rão, pelo menos, questionar o que se pensa ser tabu; e, queira Deus, fa- ano depois, surgiu a Lei 7.238, de 29-10-84, alterada pela Lei 7.450, de
rão os homens responsáveis pensar no que aparenta ser impensável por 23-12-85 (o 'pacotão tributário de dezembro'), e agora pelos Decretos-
parecer 'politicamente impossível'. leis 2.283 e 2.284, de 27-2-86 e 10-3-86, respectivamente.
Não é possível continuar com a cegueira, deixando de enxergar que
numa sociedade aberta não há sucedâneo para o mercado na determi-
nação de todos os preços, sejam eles preços do trabalho, de qualquer VISÃO, 4 de agosto de 1980
natureza, preços dos serviços dos patrimónios privados, preços dos lu-
cros dos empresários e dos empreendedores, ou preços das mercadorias Parece que a idéia do achatamento salarial da classe média teve iní-
e matérias-primas. Não é possível continuar aceitando nem o controle cio quando chegou aos ouvidos de uns ministros que a 'política salarial'
governamental e nem, a qualquer transe, uma arma de guerra - agre- criada pela Lei 6.708, de 30-10-79 (que instituiu a correção semestral
ve - como substituto da disciplina social e das pressões coordenadoras automática e o vago conceito de produtividade), estava provocando
espontâneas do mercado competitivo. traumáticos aumentos nas folhas das empresas. A receita prescrita para
resolver o problema foi simples porém patética: 'é só reduzir as folhas
VISÃO, 24-9-86 salariais pelo achatamento das remunerações mais elevadas'. E esse
achatamento seria realizado por uma espécie de reciclagem do pessoal
de alto nível.
A recomendação de punir as pessoas com maior salário 'pega bem'
(1) W. H. Hutt, "The Theory oj Co/lective Bargaining, 1930-1975", Londres, 1975.
politicamente. O maquiavelismo está em fazer-se crer que somente os

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'mais favorecidos' vão ter que pagar enquanto que a 'maioria' se consi- compatível com o Estado de Direito, logo desabam contra-argumentos
derará sã e salva, julgando que se trata de mais um ato de 'justiça so- dos positivistas e intervencionistas dizendo que só os povos mais evolui-
cial' e não de uma ignóbil injustiça. Ouviram-se umas poucas vozes dis- dos culturalmente e com sindicatos fortes podem dar-se ao luxo de não
crepantes criticando o caráter demagógico, diversionário e tecnicamen- dispor de políticas de correção automática dos salários. Nessa contra-
te absurdo dessa idéia de reciclagem profissional para baixar a folha de argumentação, insistem os seus autores que os níveis salariais no mun-
pagamentos das empresas privadas. O que não se disse é que, se uma do moderno devem ser estabelecidos muito mais oor considerações de
folha de pagamentos pesa em demasia, se ela está distorcida e, inclusi- 'eqüidade' e 'justiça social' que pelas forças invisíveis da oferta e
ve, se os níveis salariais mais altos de certas empresas se puseram even- procura.
tualmente fora do mercado, tudo isso se deve exclusivamente à excessi- O que distinguiu o ser humano dos outros animais foi um processo
va ingerência do Estado e dos sindicatos na vida econômica das empre- de evolução que se completou com a domesticação do selvagem muito
sas. Além do controle dos preços de venda de seus produtos pelo gover- antes de se ter qualquer registro histórico sobre a humanidade. Durante
no, as empresas se vêem cada vez mais encurraladas por 'políticas sala- o último meio por cento do tempo de existência do Homo sapiens,
riais' que simplesmente não deveriam existir! ocorreu uma rápida e acelerada evolução cultural, que hoje reconhece-
A política salarial (que tem caráter governamental e genealogia sin- mos como o surgimento da civilização. O que tornou possível o pro-
dical) não deveria existir porque os assalariados sem dúvida estariam gresso da civilização e permitiu à humanidade conhecer a sociedade
melhor sem ela. Não só estariam melhor os assalariados de mais alto ní- aberta foi a substituição gradual de uma ordem hierárquica tribal, ba-
vel de remuneração, mas todos os assalariados. Estariam melhor não só seada em 'decretos' arbitrários, por uma ordem espontânea, baseada
porque haveria mais oportunidades de trabalho e menos desemprego ,em um repertório de normas abstratas de conduta justa. Estas normas
mas também porque os níveis salariais seriam em geral mais elevados e passaram a ser o balizamento da sociedade, indicando aos homens a
mais dignos, justos e compatíveis com as qualificações de cada um. O forma certa e a errada de ação em diferentes circunstâncias. O jogo re-
controle ou a imposição salarial por meio de 'políticas' ou pela coação gulamentado do mercado passou a substituir as ordens arbitrárias do
sindical só conduzem ao nivelamento, por baixo, dos homens e à perda Chefe, que correspondem às pseudoleis de hoje. A grande vantagem
de crescentes margens de sua liberdade. que a humanidade conseguiu com essa mudança foi a de tornar possível
que certas informações, espalhadas entre milhares e milhares de pessoas
que não se conhecem e não possuem objetivos em comum, possam ser
VISÃO, 2 de maio de 1983 transmitidas por um sistema auto-regulador (cibernético), sob a forma
de sinais denominados preços.
A Lei 6.708/79 foi alterada pela Lei 6.886, de 10-12-80, e depois mo- O salário é um desses sinais do mercado. A pretensão de substituir
dificada pelo Decreto-lei 2.012, de 25-1-83. Logo após, começou nova esses sinais espontâneos por uma 'política salarial' estará sempre fada-
discussão em torno da chamada 'política salarial'. Para parte dos deba- da ao insucesso. Basta prestar um pouco de atenção para verificar que
tedores, a Lei 6. 708/79 foi uma 'conquista social' dos trabalhadores de as nações que mais se abriram ao livre jogo do mercado, desde há mais
menor renda e não deveria ter sido mudada pelo Decreto-lei 2.012. Ou- de dois séculos, são hoje as que possuem as populações mais evoluídas,
tro grupo, entretanto, aponta a natureza discricionária da 6. 708/79, livres e prósperas do universo. Nelas se encontram as mais amplas e as
que levou ao achatamento dos salários de toda a classe média. Os que melhores oportunidades de trabalho, bem como os mais altos padrões
defendem a alteração mostram que o caráter redistributivista da Lei salariais que se conhecem.
6. 708 só trouxe prejuízos para as empresas e para os trabalhadores, Por possuir a mesma natureza que qualquer tipo de controle de pre-
produzindo desemprego e rotatividade. Mas há também aqueles que ços, o controle salarial também exige que seu escopo seja continuame~­
apenas enfatizam que, se em lugar dum 'decreto-lei' fosse uma 'lei' ini- te aumentado na tentativa de fazê-lo funcionar custe o que custar. A
ciada e votada pelo Congresso, tudo estaria perfeito. (Nessa época medida que a política salarial não vai dando certo, o controle vai
quem jazia essa critica eram os tecnocratas da Oposição, os mesmos ampliando-se sobre as demais atividades das empresas e sobre os preços
que agora usam o 'decreto-lei' para impor o plano da inflação zero e de outros fatores de produção, levando o país gradualmente para o con-
desenterram absurdosjuridicos- como a Lei 1.521151 e a Lei Delega- trole estatal de todas as atividades econômicas por meio de sucessivos
da 4162- para implantar uma ditadura económica.) 'pacotes'. As empresas fic3lll impedidas de contratar e dispensar em
Quando se faz qualquer aceno à idéia de que uma 'lei salarial' é in- função do mercado; as quantidades a serem produzidas e a designação

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de quem pode ou deve produzir tal ou qual produto passam a ser deter- 68. Uma visão crítica da questão habitacional
minadas pelo governo. E os ganhos salariais passam a ser comandados
por razões de necessidades e méritos, o que corresponde a um nivela- As dificuldades da vida social ficam mais agudas e somente se tor-
mento por baixo dos trabalhadores, constituindo-se, portanto, em obs- nam mais evidentes nos períodos de maior adversidade. Enquanto as
táculo ao direito do cidadão de competir por melhores salários no mer- coisas caminham sem transtornos muito graves, nem as pessoas de me-
cado, em função de sua aptidão, esforço e sorte. lhor preparo intelectual e nem mesmo as de maior responsabilidade se
As lições da experiência mostram que qualquer política ou lei sala- ~ispõem a conhecer as raízes político-filosóficas das questões que, con-
rial é uma violação do mercado através de ingerência governamental tmuam~nte, em maior ou menor grau, mais perturbam nossa paz, bem-
maligna e desnecessária na vida dos cidadãos. E que jamais trará os re- estar e hberdade. Os problemas crónicos da economia (como por exem-
sultados pretendidos. Embora pareça ser mesmo verdade que o homem plo a pobreza generalizada, a baixa produção de alimentos, a ineficiên-
é o animal mais infenso às lições da experiência, continuo acreditando cia no abastecimento, a inflação e as deficiências no setor habitacional)
que vale a pena seguir insistindo que a melhor e mais justa política sala- são tidos como situações-de-fato decorrentes de determinadas 'políticas
rial é a política impessoal produzida pela cibernética do mercado. As ca- de governo' (que uns e outros julgam que deveriam ser simplesmente
misas-de-força das chamadas 'leis salariais' jamais melhorarão perma- aperfeiçoadas desta ou daquela forma) e poucos percebem que eles na-
nentemente os preços de venda do trabalho. da mais são que efeitos do excessivo ativismo intervencionista governa-
mental. Nesta edição de VISÃO destacamos a crise no campo da habita-
VISÃO, 26-3-86 ção. Que sempre existiu na vida brasileira mas que agora, com o tabela-
mento/congelamento dos preços e salários introduzido pelo 'pacote da
inflação zero', se apresenta nua e crua e muito mais aguda. Por isso, é
boa a hora de trazer à tona alguns bons conceitos sobre habitação e pla-
nejamento urbano extraídos do livro "Os Fundamentos da Liberdade"
de F. A. Hayek, lançado em versão brasileira em 1983 pela Editora Vi-
são Ltda. O que se destaca dramaticamente dessa leitura é que o contro-
le dos preços dos aluguéis (pela revogação da lei da oferta e demanda
d~,mercado) inev~tavelmente perpetua a escassez de habitações. O que,
abas, tende tambem a acontecer com todos os demais bens e serviços,
sempre que o governo estropia o mercado, como ocorre neste dramáti-
co momento da vida nacional.

A civilização é inseparável da vida urbana. Quase tudo que distingue


a sociedade civilizada das comunidades selvagens primitivas está inti-
mamente ligado às grandes aglomerações humanas que chamamos de
'cidades'. Contudo, as vantagens da vida urbana, especialmente os
enorm,es aumentos da produtividade possibilitados por sua indústria,
qu~ da a uma. pequena parte da população remanescente no campo os
mews para ailmentar todos os demais, são obtidas a um custo conside-
r~vel. A. vida urbana, embora mais produtiva que a vida rural, é tom-
bem mutto mais cara. A renda mínima para uma vida decente na cidade
é muito mais elevada do que a necessária no campo. Um nível de pobre-
za que ainda seria suportável no campo não só é quase intolerável na ci-
dade como .gera si!"ais exteriores de miséria chocantes para qualquer
pessoa. Asstm, a ctdade, que produz quase tudo que confere à civiliza-
ção seu valor e que propiciou os meios para o progresso das ciências e
das artes, bem como do conforto material, é ao mesmo tempo respon-

272 273
sável pelas manchas mais negras da civilização, onde se destaca a ques- mar-se a pedir permissão e a procurar orientação para todas suas prin-
tão da habitação, que nos interessa aqui agora. cipais decisões. Podem chegar ao ponto de considerar normal que o ca-
A iniciativa de reduzir o custo da habitação para os segmentos mais pital que financia sua casa lhes seja cedido gratuitamente e por outrem
pobres da população das cidades é aceita como característica perma- e que o bem-estar económico individual dependa do partido no poder,
nente do Estado Previdenciário que infesta o mundo atual. (O Estado o qual, então, procurará empregar seu controle sobre a habitação para
Previdenciário é aquele em que o governo detém a propriedade e/ou o favorecer os que o apóiam. (Verifique o leitor a situação a que chegou,
controle dos resultados da produção.) Muitas das medidas objetivando por razões de 'benevolência' governamental, o nosso BNH, com um
esse fim, porém, têm contribuído muito mais para agravar o problema imenso rombo deficitário que ninguém ainda conseguiu estimar mas
da habitação que para atenuá-/o ou resolvê-lo. que todos nós vamos ter que pagar mais cedo ou mais tarde.)
O controle dos aluguéis é uma dessas medidas que, na história dos Outra medida que visa a facilitar o acesso à habitação para certos
governos, sempre foram introduzidas como um recurso para fazer fren- segmentos da população é a que chamaremos aqui de 'Sistema Público
te a uma emergência passageira e nunca como norma definitiva. Todos da Casa Própria'. Poucos imaginam que, a menos que tal iniciativa seja
sabemos, porém, que, de uma forma ou de outra, o controle dos alu- cuidadosamente limitada em dimensão e método, provavelmente pro-
guéis se tornou uma regra-permanente e contribuiu muito mais que duzirá resultados muito semelhantes aos do controle dos aluguéis. O
qualquer outro fator, exceto a inflação, para tornar mais grave o pro- primeiro ponto a ser destacado é que qualquer grupo de pessoas que o
blema da habitação e para restringir a liberdade e o progresso. governo pretenda auxiliar com habitações pertencentes ao Estado só se-
A fixação dos aluguéis abaixo do preço de mercado inevitavelmente rá beneficiado se os órgãos oficiais cederem todas as novas residências
perpetua a escassez de habitações. A demanda continua superando a de que esse grupo precisa. Se o governo oferecer apenas uma parte das
oferta e, se a autoridade realmente exigir obediência aos tetos (isto é, residências necessárias, na realidade isto não constituiria um acréscimo,
impedindo qualquer tipo de 'aluguel por fora'), ela precisará, mais ce- mas apenas uma substituição de parte da oferta do setor privado. Em
do ou mais tarde, criar um mecanismo para alocar moradias. A mobili- segundo lugar, as moradias mais baratas fornecidas pelo governo terão
dade restringe-se bastante e, com o tempo, a distribuição das pessoas de ser estritamente limitadas à classe que se pretende auxiliar. Para
por bairros e por tipos de residência deixa de corresponder às suas ne- atender, entretanto, meramente à busca de imóveis de preços mais bai-
cessidades e desejos. Interrompe-se, também, a rotatividade normal, xos, o governo terá de fornecer número de residências consideravel-
pela qual uma família, no período de maior capacidade de rendimento mente maior do que a própria demanda da classe poderia comportar.
de seu chefe, ocupa espaço maior do que um casal muito jovem ou de Em terceiro lugar, esta limitação do 'Sistema Público da Casa Própria'
aposentados. Como nessas circunstâncias não se pode obrigar os inqui- às famílias mais pobres geralmente só será viável se o governo não pro-
linos a um constante rodízio, estes se agarram àquilo que têm e as pro- curar oferecer residências que sejam ao mesmo tempo mais baratas e
priedades alugadas são encaradas como bens inalienáveis da família, substancialmente melhores do que aquelas que as pessoas possuíam an-
que são transmitidos de uma geração a outra, independentemente da tes; caso contrário, os beneficiários desse sistema ficariam melhor aro-
necessidade. Os que herdam uma residêt.cia alugada estarão em melhor modados do que indivíduos de nível económico superior; e a pressão
situação que uma proporção cada vez maior da população que não con- destes últimos para também serem contemplados pelo sistema se torna-
segue moradia, ou só pode obtê-/a mediante sacrifícios de variada ria irresistível, processo que se repetiria e progressivamente envolveria
natureza. número cada vez maior de indivíduos.
Os proprietários, por sua vez, perdem o interesse em investir na ma- Conseqüentemente, qualquer mudança mais ampla nas condições
nutenção dos edifícios além das quantias que a lei lhes permite reaver habitacionais pela intervenção do governo só será possível se todo o sis-
dos inquilinos para tal fim. A deterioração dos prédios se dá rapida- tema habitacional de uma cidade for considerado um serviço público,
mente pela falta de manutenção e daí surgem verdadeiros bairros dete- financiado por fundos públicos. Entretanto, isto não significa apenas
riorados, de inviável recuperação por longo tempo, que eventualmente que as pessoas em geral serão obrigadas a gastar mais em habitação do
podem transformar-se em cortiços. que pretendem, mas também que sua liberdade pessoal estará gravemen-
A mais grave conseqüência do controle dos aluguéis é, entretanto, a te ameaçada. Não é difícil imaginar até que ponto a autoridade pública
perda de liberdade de grandes segmentos da população, como já acon- poderá interferir na vida do indivíduo se a obtenção de um apartamento
teceu em países mais evoluídos que o nosso. Sujeitas a medidas arbitrá- ou casa passasse a depender de decisão da burocracia governamental.
rias das autoridades na sua vida diária, essas populações podem acostu- A tentativa de transformar a habitação em serviço público vem

274 275
constituindo-se no principal obstáculo ao aperfeiçoamento geral das
condições do setor da construção civil habitacional, por anular as for- 69. Os poderes malignos do FMI
ças que produzem uma baixa gradual no custo da construção. A sus- Nova.mente aí está o FMI sendo citado como elemento de mau agou-
pensão do mecanismo concorrencial do mercado e a tendência à escle- ro nos discursos sobre a dívida externa brasileira. Agora são os profes-
rose de qualquer iniciativa centralmente dirigida estão fadadas a impe- sores-que-nos-governam, apoiados por um coro de políticos e outros
dir a consecução de um objetivo desejável e tecnicamente viável, que é o intelectuais, que pressagiam a recessão e a redução do crescimento eco-
da redução substancial e progressiva dos custos, pela qual é possível nómico se o Brasil buscar o endosso do Fundo Monetário Internacional
atender a toda a demanda de habitações. para seus pleitos junto aos bancos privados credores. Dado que somos
Como todo tipo de assistência a uma parcela da população realmen-
te carente, a habitação subsidiada pelo Estado não é uma medida irre- ainda como uma tribo, muito vulneráveis a crendices (principalmente
conciliável com um sistema de governo baseado na liberdade. É preci- quando disseminadas pelos cabeças da tribo), esse presságio virá a ca-
so, entretanto, ressaltar que o problema da habitação não é um proble- lhar para se apontar mais um bode expiatório para os males internos
ma independente, não podendo, portanto, ser resolvido isoladamente que em verdade são, atualmente, decorrentes só do famigerado Plano
~ruzado. Na era tribal de evolução da humanidade, os caciques e os pa-
como costumeiramente se pretende: ele se insere na questão geral da po-
breza e só pode ser solucionado por um aumento geral dos rendimen- Jes apelavam para a ameaça das tribos vizinhas a fim de desviar a aten-
tos. Essa solução, entretanto, será retardada se subsidiarmos pessoas ção da~ dificuldades locais. Mas, no caso presente, o temor de poderes
fantásticos do FMI, supostamente contrários ao crescimento económi-
para que deixem os lugares onde sua produtividade ainda é maior do
co, não passa de um apelo à superstição fundada na ignorância do que
que o custo de vida e se fixem em lugares onde ela será inferior, ou se
foi e do que é hoje essa entidade. E, quanto ao modo de pensar dos
impedirmos a migração daquelas que acreditam que, indo para a cida-
me~bros .da tecnocracia que nos governa e da que governa o FMI, é
de, podem melhorar suas perspectivas de vida, ainda que se sujeitando
preciso d1zer-se que não há divergência flagrante. Freqüentaram os
a condições que nos pareçam deploráveis.
'mesmos' bancos universitários e/ou leram os mesmos livros. Pensam
Quase todas as chamadas 'políticas habitacionais', e outras medidas
parecido. A linguagem de todos é o mesmo economês macroeconômico
correlatas no campo do planejamento urbano, controle do uso do solo
keynesianista.
e códigos de obras, embora concebidas para aliviar as necessidades de
Vejamos resumidamente como começou o FMI. Bem antes do fim
determinados setores da população, na verdade tendem a subsidiar o
?a segunda guerra mundial, alguns funcionários dos governos aliados
surgimento de estruturas urbanas excessivamente desenvolvidas e con-
Já estudavam os problemas monetários, comerciais e de reconstrução
centradas que nada mais serão que metrópoles fundamentalmente
do pós-guerra. Destacaram-se John Maynard Keynes em Londres
antieconômicas.
Harry White em Washington e L. Rasminsky em Ottawa. Da históric~
reunião internacional em julho de 1944, em Bretton Woods, New En-
Este artigo fala principalmente do problema da habitação, mas sua
gland, resultaram três resoluções básicas: 1. Criação de um sistema mo-
abrangência no campo das idéias é muito maior. Espero que o leitor
netário internacional que teria: a) um código de conduta monetária pa-
medite, com espírito crítico, sobre cada frase e parágrafo dele. E que
ra promover uma razoável estabilidade entre as moedas, para manter a
procure verificar como os conceitos emitidos pelo grande filósofo polí-
or~e~ nas relaçõ,es. cambiais e para evitar a depreciação cambial; e b) as
tico se enquadram perfeitamente na experiência brasileira ao longo dos
fac1hdades de cred1to para financiar os déficits temporários nos balan-
anos e, em especial, no atual momento de grande adversidade. Período
ç~s ~e pagamentos dos países-membros a fim de ajudá-los a respeitar o
difícil que poderia ter sido evitado se nos dispuséssemos a conhecer as
cod1go de .conduta monet~~ia. 2. Criação de uma instituição para aju-
causas reais das dificuldades que mais afligem nossa vida social; e se,
dar os beligerantes a mob1hzar os recursos necessários para reparar os
em conseqüência, tratássemos de conter o poder intervencionista do
danos de guerra. 3. Estabelecimento de um código de conduta comer-
governo.
c~al, gerido por uma entidade dedicada à redução de tarifas alfandegá-
VISÃO, 8-10-86 nas e de outros obstáculos ao comércio internacional. Destas três pro-
postas foram postos em marcha, em março de 1946 (em Savannah
Georgia), o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Interna:
cional de Reconstr~.IÇão e Desenvolvimento (Bancó Mundial), ambos
com sede em Washmgton; o Acordo Geral de Tarifas e Comércio (Ge-

276 277
neral Agreement on Tariffs and Trade - GATT), com sede em Gene- daí o mundo caiu num regime de taxas de câmbio flutuantes, cada vez
bra, entrou em vigor em 1?-1-1948. Desde o começo o Brasil teve parte mais instáveis, que refletia as exigências, em geral divergentes, que des-
ativa nas três entidades. de há muito vinham tomando corpo, das políticas econômicas inflacio-
Os planos de reconstrução monetária formalizados em Bretton nárias dos diferentes países. Os economistas, tomados pelo keynesianis-
Woods foram bastante influenciados pela má memória das condições mo, exigiam um campo de ação mais amplo para a expansão monetária
de verdadeira anarquia monetária dos anos 30, quando passou a preva- (inflação) a título de 'políticas de pleno emprego' ou de 'políticas distri-
lecer a visão de Keynes de que o padrão-ouro das moedas era uma 'relí- butivistas', por exemplo.
quia barbaresca'. Os Estados Unidos suspenderam em 1933 a converti- O FMI entrou oficialmente na onda adaptando seus estatutos e seu
bilidade do dólar em ouro, mantendo-a apenas (na relação de USS 35 modo de operação a um mundo sem preconceitos contra a desbragada
por onça, valor fixado no Gold Reserve Act de jan/34) para os bancos inflação monetária realizada pelos governos. O que era para ser um
centrais e autoridades monetárias estrangeiras. Quando o FMI come- FMI de Bretton Woods, baseado num princípio de austeridade, integri-
çou a operar, em 1946, o valor do ouro- ao qual as paridades monetá- dade e disciplina monetárias, foi-se transformando numa entidade mais
rias eram amarradas e no qual eram baseados os cálculos das reservas flexível, mais permissiva e menos disciplinadora. A confusão passou a
cambiais e das cotas dos países-membros - era ainda aquele de USS 35 ser tamanha no ambiente monetário mundial (devido a algo parecido
por onça, baixo, estabelecido doze anos antes. (Esse período incluía os com o que tem ocorrido no Brasil, que chamo de monetarismo keyne-
anos de inflação reprimida da segunda guerra mundial.) O valor de USS siano-estruturalista) que não é absurdo dizer que muitos tecnocratas,
35 era um símbolo da inviolabilidade do dólar, mas o novo sistema mo- principalmente do Terceiro Mundo, pretendem ver o FMI não como
netário internacional foi lançado com reservas e cotas inadequadas pa- um guardião da integridade das moedas dos países mas sim como uma
ra atender às necessidades de uma economia mundial em rápida expan- agência de desenvolvimento ou uma espécie de banco central suprana-
são e com preços de mercadorias bem mais elevados que os de antes da' cional que operasse para atender às necessidades cambiais dos Tesouros
guerra. Insuficientes, por esse motivo, os recursos do FMI para atender nacionais, sem nenhum vínculo de responsabilidade recíproca. Pode-se
às demandas dos países-membros, passou a haver necessidade de suple- afirmar que hoje já é mais ou menos assim. Embora permaneçam cer-
mentá-los com reservas monetárias de diferentes países, que já eram tos artigos do Estatuto original que visavam a manter um código de
quase inteiramente compostas de dólares dos Estados Unidos. De qual- conduta monetária, a verdade é que nunca foram invocadas condições
quer modo, enquanto durou o lastreamento parcial do dólar internacio- severas contra os países que deterioram suas moedas.
nal ao ouro, o FMI mostrou, no período de 1946 a 1971, em termos mun- A linguagem dos projetos que buscam o 'monitoramento' do FMI é,
diais, 25 anos de reconstrução e significativo crescimento econômico com pois, a linguagem do desenvolvimentismo keynesianista. Bastante flui-
razoável estabilidade nas relações cambiais e nos preços domésticos. da e baseada em intenções de políticas econômicas que visam a determi-
É claro que os vários países já vinham, desde os anos 30, sendo en- nados alvos econométricos, só aceitos como referência pelos que acre-
golfados pelo culto inflacionário do keynesianismo e os Estados Unidos ditam na miragem da planificação centralizada. Nada mais são que
não escaparam dessa terrível onda. O abandono generalizado da obri- uma espécie de jogo de adivinhação que se poderia chamar de macroe-
gação dos governos de amarrar suas moedas a lastros, tais como o ou- conomancia. Basta que os projetos sejam escritos em economês corren-
ro, tornou ilimitado o potencial de expansão monetária. A posição do- te e que haja uma aparente coerência na apresentação dos programas a
minante do dólar como moeda de reserva dos países fez com que os Es- serem implementados que não há como o FMI não aprovar essas 'car-
tados Unidos afrouxassem a disciplina monetária doméstica e passas- tas de intenção'. Se as 'políticas econômicas' tiverem de ser reajusta-
sem a operar com déficits nos seus balanços de pagamentos. O dólar das, basta indicar em boa linguagem macroeconômica os novos alvos
deixou de ser uma moeda escassa para tornar-se cada vez mais abun- estatísticos. E assim por diante. Nada mais longe daquilo que era para
dante, tanto nas reservas dos diferentes países como no vasto mercado ser o FMI na sua idealização - o guardião da moralidade monetária.
mundial do Eurodólar. Hoje deve haver cerca de 1 trilhão de dólares Portanto, dizer-se que 'ir ao FMI' é o mesmo que aceitar a recessão·
mantidos, por pura questão de confiança, fora dos Estados Unidos. ou transformar o país numa simples 'plataforma de exportação' é
Até 1971, um dos fatores que mantinham essa confiança era a sua con- afastar-se da realidade. Se o Fundo não nos serve para forçar o governo
vertibilidade ao ouro, ainda que simbólica, pois restrita aos bancos cen- a dar-nos um dinheiro honesto, uma coisa parece certa: ele serve para
trais e autoridades monetárias. Mas, em agosto de 1971, mesmo essa dar 'as costas quentes' que os executivos dos bancos credores querem
convertibilidade parcial foi suspensa pelo governo dos EUA. A partir ter para assumir as responsabilidades de prover novos empréstimos, au-

278 279
mentar carências, reduzir spreads, etc. Esses executivos não são nem
proprietários dos bancos nem donos dos dinheiros que emprestam. E o
FMI, se não é o que era para ser, não deixa de ser uma espécie de avalis-
ta internacional de efeito 'moral' e burocrático. Em termos puramente
pragmáticos, não lançar mão desse fato para negociar as melhores con-
dições para a dívida externa brasileira é pura falta de visão clara das
coisas, se não for uma simples questão de demagogia e de ideologia pa-
ra desviar a atenção de outros problemas internos mais fundamentais.
VII
VISÃO, 25-3-87

-
INFLAÇAO
E PREÇOS
NO BRASIL

280
Inflação e preços no Brasil
O propósito desta seção é facilitar o acesso a dados sobre inflação e
preços, antes e depois do plano cruzado. E conceituar inflação, que,
muitas vezes, por ignorância ou má-fé, é confundida com uma das suas
conseqüências, a alta generalizada dos preços. Os dados, retirados de
diversas fontes, algumas somente divulgadas em publicações especiali-
zadas ou de acesso restrito, são apresentados em gráficos e tabelas ori-
ginais, preparados pelo autor para serem utilizados em palestras sobre a
situação política e econômica do país, proferidas para diversas platéias
durante 1986 e parte de 1987, tanto no Brasíl como no exterior.

Inflação- Ocorre inflação em uma economia quando a quantidade de


dinheiro aumenta mais do que a produção. Com mais unidades de di-
nheiro por unidades de produção, a moeda se desvaloriza e os preços
em geral dos bens e dos serviços sobem. Mas a alta generalizada dos
preços não se constitui na inflação propriamente dita. Ela é apenas uma
das decorrências do aumento da quantidade de dinheiro, a mais conspí-
cua talvez, mas não a única. E ela pode não acontecer, mesmo havendo
a desvalorização do poder aquisitivo do dinheiro, quando há tabela-
mento ou congelamento de preços, caracterizando uma inflação que os
economistas costumam chamar de 'inflação reprimida', mas que me-
lhor será denominá-la 'inflação dissimulada', pois, se a expansão mo-
netária continua, subsiste a inflação, escondida pela força bruta do
controle de preços. Como mo:,trou a malfadada experiência do plano
cruzado, a inflação dissimulada - ou reprimida, ou represada, ou sub-
jacente - é muito mais daninha do que a inflação aberta ou franca.
Em resumo, inflação é expansão da quantidade de dinheiro acima
do crescimento do produto, sendo a alta geral dos preços uma conse-
qüência, obseivável quando os preços podem mover-se livremente. Mas

283
a subida dos preços não é regular e uniforme, isto é, não se dá como se MI: papel-moeda em poder do público, mais depósitos à vista
fosse o nível de água num tanque. Ela é irregular, variável no tempo e no Banco do Brasil, nos bancos comerciais e em outras institui-
no espaço e de preço para preço. É por isso que, mesmo num regime in- ções (caixas econômicas e BNCC).
dexado, ocorrem perdas para aqueles cujos rendimentos não sobem no M2: igual ao MI acrescido dos depósitos a prazo.
mesmo ritmo que o da perda do poder aquisitivo da unidade monetária: M3: igual ao M2 aumentado dos depósitos de poupança.
nenhum sistema de indexação é perfeito, e pelas suas frestas e defasa- M4: igual ao M3 mais os títulos públicos federais (ORTNs,
gens introduz-se sempre o 'imposto inflacionário'. O mais trágico male- OTNs, LTNs, LBCs) em poder do público, ou, em outras pala-
fício, no entanto, não percebido geralmente pelas pessoas, se traduz nas vras, fora da caiteira do Bacen.
distorções que a inflação introduz insidiosamente em todo o processo Mais recentemente, o Banco Central divulgou um agregado ainda
econômico, com o dinheiro (que é apenas uma espécie de commodity mais amplo que o M4. É o meios de pagamento ampliado ou MA, que
que serve como meio de troca) sendo desvalorizado continuamente pelo além de todos os componentes do M4 acolhe também a dívida mobiliá-
aumento desbragado de sua quantidade. Essas distorções tornam pre- ria estadual e municipal, as letras de câmbio e as letras imobiliárias.
cárias as tomadas de decisão e cada vez mais inadequadas as alocações Mas seu uso é ainda incipiente e a série bastante curta.
de recursos no campo econômico.
Pior que a inflação aberta, porém, é a tentativa de curá-la pelo lado A Fig. I ilustra, de modo simplificado (não se faz diferença entre pa-
errado. Não se cura uma infecção tratando de seus sintomas. Não é, pel-moeda em circulação e em poder do público, por exemplo), as defi-
pois, através dos preços que se controla a inflação. No mercado livre, nições dos agregados monetários, utilizando valores do final de feverei-
quando há inflação (expansão monetária), o termômetro dos preços ro de I986 (o plano cruzado, ou da inflação zero, como também se cha-
reage dando indicações de que o dinheiro vem sendo desvalorizado pelo mou, foi decretado em 28-2-86). A representação utiliza círculos, cujos
excesso de oferta monetária. Mas, ainda assim, os aumentos generaliza- diâmetros são proporcionais ao valor dos respectivos agregados.
dos dos preços não são uma medida direta da inflação. Para quantificá- Definidos os agregados, resta a questão: qual deles avalia melhor a
la diretamente é preciso medir a expansão monetária. A mensuração quantidade de dinheiro? Dentro do conceito de que dinheiro é moeda e
dos aumentos da quantidade de dinheiro não é tão óbvia para as pes- crédito, todos os agregados representam mais liquidez ou menos, de-
soas comuns quanto os índices de preços, principalmente porque estes pendendo da manipulação governamental que, até agora, possui não só
aumentos não são divulgados sistematicamente como deveriam ser e o monopólio imperial do dinheiro mas também o dos índices todos rela-
também porque nos tempos atuais existem muitas formas de cionados com o valor do dinheiro. (Há uns anos atrás, até mais ou me-
'dinheiros', além da moeda normal de curso legal que todos conhecem. nos I985, quando o termômetro dos preços funcionava com certa liber-
Aliás, quando se fala em 'dinheiros', ·está-se referindo não só à moeda dade, os índices oficiais de preços subiam de uma forma tal que muitos
corrente em circulação mas também aos lançamentos contábeis, aos economistas afirmavam que a melhor representação da expansão mo-
créditos. netária em comparação com a escalada dos preços talvez fosse algo in-
No Brasil, atualmente, definem-se como agregados monetários aba- termediário entre o M3 e o M4, abrangendo a totalidade dos depósitos
se monetária (BM) e quatro variantes de meios de pagamento (MI a à vista, a prazo e de poupança, e uma fração dos títulos federais.) É
M4). A conceituação é a seguinte: preciso, porém, não perder de vista que as séries do M2, M3 e M4 en-
BM: papel-moeda em poder do público, mais caixa das auto- volvem também acréscimos devidos a correção monetária, além dos ju-
ridades monetárias e do Banco do Brasil, dos bancos comer- ros. É bom lembrar também que as séries do M2, M3 e M4 são relativa-
ciais e de outras instituições - caixas econômicas e Banco Na- mente recentes e por isso o agregado mais utilizado em estudos é o MI
cional de Crédito Cooperativo-, mais depósitos compulsórios (que também é o mais simples), cuja série histórica, bem como a da ba-
das instituições financeiras junto ao Banco Central (ou seja, se monetária, é mais longa.
BM é o papel-moeda em circulação* mais depósitos compulsó- Da exposição dos conceitos de base monetária e meios de pagamen-
rios no Bacen). tos, está claro que há um único responsável pela fabricação da inflação:
o Governo. É dele o monopólio da emissão de papel-moeda e dos títu-
* Subtraindo do papel-moeda emitido a moeda em caixa-forte no Bacen chega-se ao los públicos, de onde decorrem todos os acréscimos dos meios de paga-
papel-moeda em circulação. Subtraindo desse último os caixas das autoridades monetá- mento. É ele o dono da Casa da Moeda; é quem dá ordens para que a
rias, do Banco do Brasil, dos bancos comerciais e de outras instituições (caixas econômi-
cas e BNCC) chega-se finalmente ao papel-moeda em poder do público. gráfica dessa fábrica imprima papéis desenhados, coloridos e numera-

284 285
dos a que se dá curso legal sob a denominação de dinheiro. É ele que fi-
xa as reservas obrigatórias das instituições financeiras no Banco Cen-
tral (uma po~centagem hoje próxima a cinqüenta por cento dos depósi-
tos à vista). E ainda ele que emite e recompra títulos federais, determi-
nando com isso, artificialmente, a taxa de 'juros' e, em decorrência,
afetando a remuneração dos depósitos a prazo e de poupança. Portan-
to, sem sombra de dúvida, é o Governo, e só ele, que cria inflação. No
Brasil, ou em qualquer outro país. Isso assim será enquanto o monopó-
lio do dinheiro estiver nas mãos dos governos ou enquanto não se con-
seguir um dispositivo constitucional suficientemente forte e eficaz que
proíba o Governo de fabricar dinheiro em excesso às necessidades do
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mercado.
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lnflamento do dinheiro- Após essa digressão sucinta e preambular
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o sobre dinheiro e as formas de medi-lo, pode-se agora verificar como o
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"' Governo inflacionou os meios de pagamento nos últimos anos, antes e
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Of- depois da edição do plano da inflação zero. Na Fig. 2, estão simboliza-
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dos, graficamente, a base e o M1 no final do mês de fevereiro, nos últi-


<! mos quatro anos, inclusive no de 1987. Do início de março de 1986 (na
(9

a: vigência do plano cruzado, portanto) até o final de fevereiro de 1987, a


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base monetária foi expandida em mais 218,80Jo e o meio de pagamento,
(/) no conceito M1, em mais 219,1%. Nos dois períodos correspondentes
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imediatamente anteriores, a base inflou-se 242% (mar/85 a fev/86) e
w 302,5% (mar/84 a fev/85). Os respectivos aumentos do M1 foram de
<! 314,3% e 203,7%. Em conclusão, a criação de dinheiro anterior ao cru-
ii:
'i"!w zado e a posterior possuem a mesma- e dilatada- magnitude.
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Mas, para falar rigorosamente em medição da inflação, é convenien-
::;;; te expurgar da expansão do dinheiro o crescimento do produto econô-
w
(/) mico do país. Isso é feito por meio simbólico através das fig. 3, 4 e 5,
~
que contrastam o inchamento da BM (base monetária), do M1 e do M4
com o crescimento do Produto Interno Bruto (PIB). O período conside-
rado se estende de fevereiro de 1979 até o mesmo mês de 1987. No início
do período, tanto o PIB como as grandezas monetárias são representa-
dos por uma esfera. Oito anos depois, no final do período, a base mo-
netária tinha sido expandida para 782 esferas, o M1, para 765, e o M4,
8 para 1.239. O PIB havia crescido somente cerca de 37%, sendo simboli-
a:
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....... o zado por uma esfera mais um terço de outra.
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As fig. 3, 4 e 5 permitem afirmar que nos últimos oito anos o produ-
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.ã to econômico do Brasil cresceu cerca de 37%, enquanto a quantidade
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de dinheiro sofria um inchaço da ordem de 100.000% (ou mil vezes). O
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o i) que é equivalente a dizer que a inflação no período foi de aproximada-
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O: (L u o <(W u mente 730 vezes (1.000 dividido por 1,37) ou, em termos percentuais,
73.000%. Ou ainda, em outras palavras: no período, a quantidade de
dinheiro aumentou 730 vezes mais do que o crescimento da produção
de bens e serviços no país.

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Da mesma forma que a Fig. 2, os gráficos 3, 4 e 5 também com-
preendem subperíodos anteriores e posterior ao 'pacote da inflação ze-
ro' de 28 de fevereiro de 1986. E a conclusão quanto ao inflacionamen-
to monetário pré e pós-cruzado é a mesma (como não poderia deixar de
ser): a criação de dinheiro não lastreado em produção (ou nas necessi-
dades do mercado) é igualmente elevada antes e depois da edição do
plano cruzado.
Na Fig. 6, amplia-se a informação sobre agregados monetários for-
necida pelos três desenhos antecedentes, utilizando a mesma 'simbolo-
gia dos balões' dos dois primeiros gráficos. A ampliação se dá pela in-
clusão do M2 e do M3 e pela explicitação das relações entre os diversos
meios de pagamento e a base monetária. Da análise dessas relações,
percebe-se que, com o plano cruzado, o Governo aproveitou-se da in-
tensa 'remonetização' (entenda-se emissão de dinheiro sem lastro) para
recomprar com papel desvalorizado grande parte de sua dívida pública.
Nessa a.;:ão, os tecnocratas brasileiros seguiam não só suas próprias teo-
rias monetaristas keynesiano-estruturalistas mas também a recomenda-
ção de alguns de seus colegas professores dos Estados Unidos e de ou-
tros países. Um professor do Massachusetts Institute of Technology,
Rüdiger Dornbusch, por exemplo, conhecido idólatra da 'guitarra des-
travada' e do controle de preços, aconselhou seus colegas professores
em cargos de mando no Governo brasileiro a inflacionar o mais possí-
vel e a comprar, com os recursos dessa inflação, o máximo da dívida
pública.
O resultado dessa política fraudulenta de diminuição da dívida se re-
flete na queda da razão M4/BM após o cruzado. Em fevereiro de 1986,
o M4 correspondia a 18,75 vezes a base monetária. No final de dezem-
bro de 1986, a relação tinha caído para 8,35 e, em fevereiro do ano em
curso, como mostra a Fig. 6, já tinha subi,io um pouco, para 10,89,
continuando a subida posteriormente com o regresso da chamada 'ci-
randa financeira', que foi tão criticada pelos 'pais e padrinhos do cru-
zado', logo após o 28 de fevereiro de 1986. Mais recentemente, portan-
to, esgotada a possibilidade de continuar recomprando a dívida com di-
nheiro desvalorizado, o Governo voltou a emitir títulos em termos lí-
quidos, tendo a fração M4/BM atingido em maio de 1987 o valor de
14,8 vezes, cociente já bem próximo ao de fevereiro de 1986.
A Fig. 7, apesar de utilizar simbologia diversa, pode ser considerada
como extensão e detalhamento da Fig. 4. Extensão, na medida em que
o período abrangido é maior, indo do final de 1973 até fevereiro de
1987. Detalhamento, pois são fornecidas estimativas de crescimento do
PIB para pontos intermediários e não apenas para o término do perío- :2':2':2':2'
teo:::uaaJ

do. A figura mostra que, em treze anos e dois meses, o M1, representa- ~-~~-~~­
do por livros, foi expandido 3.957 vezes. Enquanto isso, o PIB, simbo- ~~~~~
lizado por uma peça de carne, cresceu apenas 1,92 vez, denotando uma

292 293
inflação de 2.060 vezes (3.957 divididos por I ,92) ou mais de 200.000%.
A Fig. 7 pode ser vista, outrossim, na perspectiva da lei da oferta e
-~.!li--------------------- · - - - - - - - da demanda. O crescimento da oferta é representado pelo aumento do
~i ~ PIB (ou do tamanho da peça de carne), enquanto o aumento da deman-
-- ~ ~ da é mostrado pelo aumento da quantidade de dinheiro, ou seja, pelo
acréscimo de livros na prateleira. No período de dezembro de I973 a fe-
-~ vereiro de I986, por exemplo, a demanda cresceu 1.240 vezes

--~-~.=-i----------------------
(123.874%), enquanto a oferta total de produtos cresceu só I,78 vez, ou
~ii: li
seja, 78%. Este desenho, 'a inflação nas prateleiras', mostra como tem
I sido desvairada a política monetária em nosso país e, simbolicamente,
~t ~ mostra que os aumentos de preços dos produdos nas 'prateleiras' dos
negócios nada têm a ver com a oferta e procura dos próprios produtos,
-~ii:-----------------
~-~ ~ ~ mas tão-somente com a absurda oferta (expansão) monetária pelo Go-
----~~----------~ .f verno. (Ver o artigo à pág. 83).
Aumentando o horizonte de tempo, chega-se a números ainda mais
~ii: .
l~ ~ fantásticos. Nos trinta e cinco anos entre I952 e I986, em números arre-
dondados, o MI aumentou 5,4 milhões de vezes (a base monetária, 3,6
milhões), enquanto o PIB foi multiplicado por dez. Um triste recorde:
uma inflação, ininterrupta, de mais de 500.000 vezes ou 50.000.0000Jo.
No mesmo período nos Estados Unidos, o MI aumentou cerca de seis
vezes.

Preços - Revisto o conceito de inflação, enfoca-se a seguir a subida


dos preços no Brasil. Mais para a frente será abordada a relação entre
preços e inflação. Em matéria de indicadores, dar-se-á preferência ao
Índice Geral de Preços- Disponibilidade Interna (IGP-DI), da Funda-
ção Getúlio Vargas. É um dos mais criteriosamente levantados e, além
disso, um dos que possuem série histórica mais longa. Ele é calculado,
sem descontinuidade, desde janeiro de I944, permitindo estabelecer va-
riações anuais a partir de I945.
Com o IGP-DI não se pode, pois, estudar a variação de preços no
país em épocas anteriores a I945. Porém, com o auxílio de números es-
timados pelo economista Cláudio Luiz da Silva Haddad para o deflator
do PIB na primeira metade do século XX, é possível aproximar a varia-
ção anual dos preços no Brasil de I909 a I944. Essa aproximação mais
as variações anuais do índice da FGV estão dispostas na Fig. 8, ofere-
cendo uma visão panorâmica da escalada dos preços no Brasil no século
atual.
Analisando o gráfico, percebe-se que até I933 alternavam-se perío-
dos com variações anuais positivas e negativas, isto é, altas e baixas de
preços. Interessante notar que 1933 é exatamente o ano em que os Esta-
dos Unidos suspenderam a conversibilidade do dólar em ouro. Com i~­
so, o dólar, bem como outras moedas atreladas a ele, deixaram de ter
um lastro real, abrindo caminho para os governos inflacionarem à von-

294 295
tade. No período 1909-1933, que abrange grande parte da República
Velha (1889-1930) e parte da República Nova (1930-1937), a subida
máxima foi de 30,1 OJo, em 1923, e a queda mais pronunciada, de menos
18,1%, em 1926.
De 1934 para a frente, as taxas de variação anual dos preços foram
sempre positivas. Ou seja, eles nunca deixaram de aumentar, como se
vê pela Fig. 9. Alguns mínimos locais: 1,6% em 1936 (estimativa de
Haddad); 2,7% em 1947 Uá com o índice da FGV); 7,0% em 1957; e
15,5% em 1973. Alguns máximos locais: 20,6% em 1944 (Haddad);
22,6% em 1946 (I GP-DI); 91,9% em 1964 (ano da queda do Governo
Goulart); e 235,1% em 1985 (por enquanto, o máximo dos máximos).
Em resumo, combinando as estimativas de Haddad e os índices da
FGV, nos cinqüenta e dois anos do período 1934-1985 os preços mul-
tiplicaram-se por aproximadamente 3,9 milhões de vezes!

Preços "versus" inflação - Até agora, a inflação (expansão do di-


nheiro sem contrapartida em produção) e a elevação generalizada dos
preços (uma das suas conseqüências) foram tratadas isoladamente.
Mas, como há uma relação causal entre os fenômenos, cabe considerá-
los em conjunto.
O tema é um dos mais explorados pelos economistas. Sem descam-
bar para o monetarismo ingênuo - que afirma que o inflacionamento
gera instantaneamente aumento igual nos preços-, levantamentos rea-
lizados em diversos países e em diversas épocas apontam para uma mes-
ma conclusão. Qual seja: desde que se dê tempo suficiente para que a
inflação se reflita nos preços e que a medição da quantidade de dinheiro
abranja as principais formas de meios de pagamento à disposição da
economia, a expansão dos preços acompanha o inflamento do dinheiro.
A Fig. 10 demonstra que o Brasil não é uma exceção à regra acima
enunciada. Nela, uma das curvas apresenta a expansão inflacionária,
medida IJelo aumento do estoque do M3 descontado do crescimento do
PIB. A segunda registra os incrementos do IGP-01, de modo cumulati-
vo. O período de tempo compreende os treze anos entre 1973 e 1985, ex-
tremos inclusos. Para facilitar a comparação entre as duas curvas, fo-
ram feitas mudanças de escala, de maneira que os valores médios de
ambas no período correspondam a 100.
Assim, se as curvas se superpuserem, isso significará que os aumen-
tos de preços estão se acumulando de forma análoga ao inchaço infla-
cionário. Na Fig. 10, as duas curvas praticamente se confundem, garan-
tindo que, desde a época em que se começou a calcular o M3 até 1985,
os preços - com alguma defasagem, evidentemente - têm relação com
a inflação. O gráfico pára em 1985, porque 1986 foi um ano em que,
apesar de se inflacionar, e muito, o congelamento e tabelamentos inibi-
ram a livre movimentação dos preços.

296 297
FICiURA 9
o.ooo.ooof l i ~ 1 I
1
I I -l 1
INFLACÃO E PRECOS
EVOLUCÃO DO ÍNDICEl Br~sil, 1973 a 1985"
GERAL DE PRECOS I
1 .ooo.ooo~- : (IGP-01 I I I I I I
A escalada dos
preços resulta
do inflamento dos
100.000 meios de pagamento.

I Média 1973-85 TfXJ


I ---+- ----+-+-----1--- - 1 - - + ---+-~-
10.000----+-+-r,

1 I
(Até 1.944, aproximado pelo deflator
implícito estimado pelo economista !
+-+---fCiá._ud-iot-Lui_zd-a+S-ilv_aHt-,
ad_d_a+d) -f--~. . . . ......., . ...........j.... ~ Quantidade
1
~e dinheiro por
10 unidade de t--+-++--+--+---J--1
Iproduto
(M3/PIB)

1~~~~+-T-+-~~~~~
Ü!T-,_-r-r-+-4~~~+-4-~-L~
73 74 75 76 77 78 79 80 81 82 83 84 85

298 299
Preços represados - Com a Fig. 11, passa-se à análise da relação en-
tre preços e inflação no período que compreende o ano anterior ao da FIGURA 11
decretação do plano cruzado. O gráfico registra a evolução da base mo-
netária e do M1, bem como do IGP-DI, da Fundação Getúlio Vargas.
Para tornar comparáveis as curvas que representam as grandezas, todas
foram levadas ao índice 100 em janeiro de 1985.
1
.,H-I II1_1
1.400 VARIAÇOES DA QUANTIDADE DE--1---+----j
.I I DINHEIRO (M1 e BM) E DO I I
I 11TTlTI I I
O fato mais notável contido na Fig. 11 é a grande intensificação na
emissão de dinheiro no segundo semestre de 1985, atestado pelo empi-
I 1 1 INDICE GERAL DE PRECOS (IGP-DI)
1.300---r---tANTES E APÓS O CONGELAMENTO f - - -
namento das curvas do M1 e da BM principalmente a partir de outubro. 1
(Índice 100 para as três
Em termos numéricos, a base cresceu 1550Jo e o M1, 1530Jo nos últimos I 1

1
:

I grandezas em janeiro de 1~)


seis meses daquele ano, constituindo-se ambos os percentuais em recor- 1.200 I

des da história monetária brasileira. Na verdade, os professores do cru-


zado engendraram o que chamaram de uma 'hiperinflação' para justifi- 1.1ll I I
car a violência do choque heterodoxo que desde há muito pretendiam
impor à nação. I I
I

I
Mal começou o IOP-DI a reagir à expansão monetária intensificada 1.(XX)I-I----i--1-~---J ANTES DO t-+-+-+-+-+~
do final de 1985 (dez/1985, 13,20Jo; jan/1986, 17,80Jo; fev., 150Jo), os
professores do Governo aplicaram o golpe heterodoxo de quebrar o ter- rol I I CONGELAMENTO
mômetro dos preços, passando a fazê-los artificiais pelo tabelamento
e/ou congelamento. O resultado nos meses subseqüentes é mostrado na
I I (M1, BM E IGP-01)-+--+-+----1
i I I I I
Fig. 12. Nesse período de destruição do mecanismo de preços do merca- ~~~~T4-+~~-+~·~~~+-~~
do, ocorreram desabastecimento, racionamento, mercado paralelo, de- I I I
sorganização completa do processo de produção, desaparecimento de I i
700~~~~rT~~~-+~+-~-+~~~
I
produtos e euforia, na suposição de que estaria acontecendo, afinal, o I _I ' I I '
M1 cresceu 5 vezes
milagre da "redistribuição dos pães" e uma "ampliação do mercado BM cresceu 4 vezes
interno", etc., etc. 6CX) PIB cresceu 1,1 vez
Enquanto isso, o que se passava nos laboratórios dos pais do cruza- de janeiro 85 a fevereiro 86
do? A Fig. 13, na qual, além do IGP-DI, se incluem também o papel- I Tabelamento/
moeda, a base e o M1, dá a resposta. Inflacionava-se intensamente, co- : 1--1-+-+--+-+ i'+-+-H-~4~-+~-+~-+rjonge/amentol--
mo testemunha a quase-verticalidade das curvas do
dinheiro.
O descongelamento aconteceu a partir de dezembro de 1986, pois 1[ I I~ I v
não era mais possível ao Governo manter a situação em que se meteu, ' I I I I i

r· ~' ~ : I l~Jil, --t-!--+r~


não só fabricando dinheiro desbragadamente durante o congelamento
(o que os professores do cruzado chamavam de remonetização da eco-
nomia- um absurdo sem sentido), mas também pelo início de funcio- :, -
~ais[+
I . '
namento do "gatilho" (outra invenção dos pais do cruzado). Os pre-
h:
ços, sem a intervenção policialesca governamental, passaram a reagir
1 1 :

em função da bflação que vinha sendo intensamente produzida desde 100 . . - I : I ! MONETÁRIA I I
1985, resultando, até junho de 1987, no gráfico exibido pela Fig. 14. O . 1. 1. 1. 1. 1. 1. 1. 1. 1. 1. 1. 1. 1. I 1. I I I
aumento dos preços a partir de dezembro do ano passado reflete tão- ~~~<(~~558~~6~~~~~~~~8~
) ~ )J<( oz -~~<(~--<(~
somente desvalorizações da moeda produzidas anteriormente. Embora
a forma da curva posterior a dezembro de 1986 pudesse ser diferente '------1985 1986 I
sem certas artificialidades (como, por exemplo, o tal 'gatilho'), ela na-

300 301
FIGURA 12
1,500 I ITI I I I I I 1 IJ I I I I I I

I
1.400
VARIACÕES DA QUANTIDADE O~
I I DIN.HEIRO (M1 E BM) E DO I
I
ÍNDICE GER~L DE PREÇOS (IGP-01)
I ANTES E APOS O CONGELAMENTO

I (Índice 100 para as três


grandezas em janeiro de 1985)
I
i
1.200 -1
I
1.100
I I
I

I
1,COO
OS PRECOS
OFICIAIS APÓS
I
I

O CONGELAMENTO , I

r~
(IGP-01)
I I I

I !
I I
I

l
i

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i
!
I
700
_I M1 cresceu 5 vezes I
BM cresceu 4 vezes I
PIB cresceu 1,1 vez ! i
de janeiro 85 a fevereiro 86 I
!
I
I 1 I
I I ', Tabelamento/ I
500 M1 Congelamento I

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400
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I i l1 IGP-DI
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100
I I I I I I I I I I I I I I I I I I
100~"~=-n_;;~~~~,j_~
z~~~~z~o~~>~z~~~~z~o~~>~
~~~~~~~~~ô~o~~~~~~~~~Ô~o
'------1985---__._---1986---1 1985 1986-----'

302
303
da mais é que uma espécie de 'acerto de contas', dentro da lei da oferta
e demanda, levando em conta a excessiva oferta monetária desde 1985 e
ao longo do congelamento de 1986, ou, noutras palavras, a excessiva
;.~emanda representada pelo aumento desbragado da quantidade de di-
FIGURA 14 nheiro no mercado. A Fig. 15 exibe a evolução do Ml, BM e papel-
1,500 I I TILT I I I I I I I I _li I I
moeda até junho do ano em curso. A Fig. 16, por sua vez, mostra o
avanço desde jan. de 1985 até junho de 1987 de todos os agregados mo-
1,400
I YARIACOES DA QUANTIDADE DE
LDINHEIRO (M1 E BM) E DO I I
I
netários (M2, M3 e M4 até maio de 1987), comparando-os com a varia-

't
ÍNDICE GER~L DE PREÇOS (IGP-DI) I
ção do Índice Geral de Preços - Disponibilidade Interna (IGP-DI).
ANTES E APOS O CONGELAMENTO I
I
1,3Xl -t-t--t A causa da inflação- A Fig. 17 refere-se à pergunta: por que o Go-
(Índice 100 para as três I
I•
1,200
grandezas em janeiro de 1985) I verno inflaciona? A resposta é clara: para gastar acima do que arreca-
da. A análise do gráfico, o qual representa os fatores condicionantes da
I I i
I ~ base monetária na época pós-cruzado, justifica a afirmativa.
1.100 Do início de março de 1986 até o final de junho de 1987, a base mo-
OS PRECOS , netária passou de 51,5 bilhões de cruzados para 170 bilhões. Um au-
1,00)
I I i
OFICIAIS APÓS :
I
mento de 118,5 bilhões ou, em porcentagem, 230,1 OJo. Na Fig. 17, o au-
I mento da base está colocado à esquerda, junto a outras origens de re-
o
I

I I
CONGELAMENTO i ! I
cursos. É importante notar que, dessas outras origens, em princípio
I I (IIG~-DI) I
I
não-inflacionárias, duas das mais significativas- depósitos vinculados
i I ao Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimo e empréstimos com-
pulsórios- têm caráter efêmero, pelo menos em parte. A maior fração
' l dos depósitos vinculados ao SBPE é voluntária, decorrência da parali-
I I I I I II I
i
700 I
sação dos financiamentos à habitação, e, portanto, temporária. Os em-
! M1 cresceu 5 vezesJ
I
BM cresceu 4 vezes
PIB cresceu 1,1 vez
i
I
i
! I
v' préstimos compulsórios terão de ser devolvidos um dia. Então, quando
de janeiro 85 a fevereiro 86 I
I
'1--.~~-
i
I I
I I

I
I
,- essas duas fontes se contraírem ou desaparecerem, precisarão ser subs-
tituídas provavelmente por mais emissão de papel-moeda, ou seja, mais
I
1/
1
I I I i Tabelamento!
Congelamento I I inflação.

\
500

400
I I ~).-:;..,~~.::;-·>-o:;-..
N~ ::.t I Do lado das aplicações sobressaem-se: fundos e programas, 111 ,4
bilhões de cruzados destinados quase que exclusivamente para socorro
aos bancos comerciais estaduais, depauperados após o ano eleitoral de
.rtl~!ol
I
I i ' I 1986; suprimentos ao Banco do Brasil, 135 bilhões canalizados sobretu-
i ! : I
~
;
I i
do para o crédito agrícola subsidiado. Ambos os destinos estão ligados,
de modo mais direto ou menos, ao déficit público, que em 1985 foi da
: " i' I I i ordem de 8% do PIB, em 1986, de cerca de 3% (valor preliminar) e no
200
~W> ~~p_~ BASE~M~N~T~RIA i
!
I
I
I
i
ano em curso talvez volte a atingir o nível de dois anos atrás.
Em suma, e de maneira irretorquível, o Governo inflaciona para po-
100 I I
I I I I I I I I I I I I I I I IT 1 I
der gastar acima do que recolhe em tributos e levanta com emprésti-
mos. Daí o fato de muitos considerarem a inflação como uma forma
patolégica de tributação, visão que não deixa de espelhar alguma ver-
dade. A Fig. 16 resume de forma dramática o que aconteceu de 1985 até
junho de 1987, na qual se mostra o aumento pelo governo da quantida-
de de papel-moeda e a variação do índice de preços. A ilusão do plano
cruzado está claramente mostrada nesse gráfico: no período de março a

304 305
lffi
FIGURA 15 FIGURA 16
2.!XXJ 2

1.90o
I J~s~ 1
JoiN~J~R~1.
MEIOS DE PAGAMENTO~
1
1.90t
.!XXJ - ·· r·t-- ·

I I
I/ I
1.800J-

I
1.700
I
PAPEL-MOEDA EM CIRCULACÃO
E ÍNDICE GERAL
· DE PREÇOS ANTES
I
1
li' i
1 ·800

1 700
·
.. .. .
I
BASE MONETÁRIA, --
I I MEIOS DE PAGAMENTO
1 , ' E ÍNDICE GERAL
I

l1
I
1
I E DEPOIS DO I /
I DE PRECOS ANTES
1

JL
1.600 PLANO DA INFLACÃO f·
1.J I I IJ ZERO l ~ lll v i I 1/1\
1.600
I
[ E DEPOIS DO -11
PLANO DA INFLAÇÃO
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I I_ I .1 I _I I I I
~ I
1.J (lndJce 100 para todas as
grandezas em janeiro de 1986)

I i
I I I UI ~ ~~ ~ ~
I grandezas em janeiro de 1985) 1

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1.3Xl
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1.200
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I

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~~~~~~-~~ozo,~~~~--~~oz 0 ~
'----1986 1!186-----'--'--'---''--'--'

306 307
FIGURA 17 dezembro de 1986, a força bruta e a artificialidade da medição dos pre-
ços deu ao povo a impressão de que, devido ao achatamento pela força
dos preços, se tinha conseguido acabar com a inflação- já que se espa-
Cz$ bilhões
FATORES CONDICIONANTES lha erradamente que "a inflação é o aumento dos preços". Mas, em
DA BASE MONETÁRIA verdade, a inflação (o aumento da quantidade de dinheiro em circula-
MARÇO DE 1986 A JUNHO DE 1987 ção provocado pelo governo) continuava celeremente, provocando uma
contínua (mas quase secreta) desvalorização do poder aquisitivo da
ORIGENS APLICAÇÕES
321, 2 - moeda. Quando a força bruta desacorçoou, os preços dos bens e servi-
300
PAPEL-MOEDA
EMITIDO
~t
·,.; ços passaram a representar o verdadeiro valor da moeda, que tinha sido
intensamente desvalorizada durante todo o congelamento. E a ilusão
Cz$ 74,9 BILHÕES
23,3%
acabou-se. Mas as seqüelas dessa terrível fraude levarão muito tempo
para desaparecerem.
!1
SUPRIMENTOS AO
;§ BANCO DO BRASIL
~ Cz$ 135,0 BILHÕES 0 Entretanto, o pior de tudo ainda estava por vir: em meados de ju-
42,0%
RESERVAS :2 nho, mostrando que não aprenderam a lição, os professores de econo-
BANCÁRIAS ai
Cz$ 43,6 BILHÕES
13,6% ~ mia que governam o Brasil impuseram um novo tabelamento/congela-
200
" mento à economia. No meio da ressaca, mais uma dose de cachaça para
estropiar de vez o mercado que esses economistas tanto detestam. Mais
DEPÕSITOS VINCULADOS
uma nova ilusão para somar-se à ilusão já murcha do cruzado.
AO SISTEMA BRASILEIRO
DE POUPANÇA
Fechando essa seção, que pretendeu discutir a conceituação de infla-
E EMPRESTIMO
Cz$ 100,1 BILHÕES
OPERAÇÕES COM
FUNDOS E
ção e condensar dados sobre essa moléstia político-econômica no Bra-
31,2% PROGRAMAS
Cz$ 111.4 BILHÕES ® sil, são apresentadas três tabelas, das quais foram retirados quase todos
34,7%
os elementos estatísticos colocados sob forma gráfica nas dez figuras
100 precedentes. A Tabela 1 compila valores da base monetária e dos meios
RECURSOS PRÓPRIOS
de pagamento de 1973 a 1984, anualmente, e de janeiro de 1985 a junho
®
DO BACEN
CzS 68,3 BILHÕES DEFICIT DO TESOURO
de 1987, mensalmente. Ela também oferece a série dos depósitos a pra-
21,2% Cd 32,6 BILHÕES
10,1%
® zo (M2-M1), depósitos de poupança (M3-M2) e títulos federais fora da
SETOR EXTERNO
carteira do Bacen (M4-M3). A Tabela 2 discrimina a evolução anual do
EMPRÉSTIMOS
COMPULSÓRIOS
Cz$ 28,1 BILHÕES
8,8%
0 Produto Interno Bruto brasileiro no período 1970-86. Finalmente, a
® Czl 34,3 BILHÕES ASSISTENCIA FINANCEIRA DE Tabela 3 resume a subida do Índice Geral de Preços- Disponibilidade
10,7% LIQUIDEZ Cz$ 14,0 BILHÕES 4,4% ~
Interna, da Fundação Getúlio Vargas, com o mesmo detalhe da Tabela 1.
~
( J jlOUTRAS
Cz$ 0,1 BILHÁO

I +[
Conceitos
1 - Oepósttos vtnculados ao Sistema Brasileiro de 5 - Operações com fundos e programas - sobretu-
Poupança e Empréstimo ISBPEl -depósitos compul- do para cobnr dispêndios realizados com o saneamen·
sónos e voluntános no Banco Central feitos pelas 1ns to dos bancos comerCiais estaduais.
tituições de crédito 1mobtlláno.
2 - Recursos própriOS do Banco Central I Bacen) - 6- Déficit do Tesouro -- diferença de ca1xa entre re-
englobam valores transfendos das reservas bancárias ceitas fiscais e despesas governamentaiS da admmls-
e de outras contas não espectficadas. traç~o direta.
3 - Emprés\!mos compulsórios -- extraídos dos con-
sumtdores de combustíveis e compradores de auto- 7 - Setor externo - refere-se a resultados caf"l1biais,
móveis Iempréstimos sobre este último item foram ex- amortização da divida externa e Juros.
tmtos em JUnho de 1987).

4 - Suprimentos ao Banco do Brasil - para fornecer 8 - Assistência financeira de liqu1dez - emprésti-


recursos ao crédtto rural e à aquisição de produtos mos concedidos ao setor bancário para cobm carên
agrícolas pelo Governo. cias momentâneas de liquidez.

308 309
TABELA 1
AGREGADOS MONETARIOS CCzt MILHÕES)
Meios de pagamento
Papel-moeda Base monetária M2 M3 M4
Final M1
de Perlodo 12·M11 % 1M 3-M2) % IM4-M31 %
Valor % Valor % Valor % Valor Valor % Valor o/o

DEZ. 73 19 29 94 120 26 134 14


DEZ. 74 31,6 38 31,0 126 34,0 159 33 26,9 188 40,3 29 107,1
25
35 40,0 50 31,6 179 42,1 235 4 56 69,7 290 54,3 55 89,7 373 80
DEZ. 75
81 62,0 247 38,0 321 3t 74 32,1 428 47,6 107 84,5 574 55,1 146 82,5
DEZ. 76 51 45.7
71 39,2 134 65.4 341 38,1 475 4L 134 81,1 653 52,6 178 66,4 857 49,3 204 39,7
DEZ. 77
45,1 197 47,0 484 41,9 710 49 226 68,7 9ll9 53,0 289 62.4 1.313 53,2 314 53,9
DEZ 78 103
187 81.6 368 86,8 835 72,5 1.246 75, 411 81,9 1.769 77,1 523 81,0 2.162 64.7 393 25,2
OEL 79
326 74,3 581 57,9 1.423 70,4 2.063 65,[ 640 55,7 3.047 72,2 984 88,1 3.667 69,6 620 57,8
OEZ. 80
77,0 970 67,0 2.660 86,9 4.221 104,6 1.561 143,9 6.705 120,1 2.434 152,4 8.874 142,0 2.169 249,8
DEZ 81 577
92,7 1.944 100,4 4.649 74,8 7.972 88,9 3.323 112,9 13.691 104,2 5.719 130,2 18.559 109,1 4.868 124,4
DEZ. 92 1.112
ll4,0 3.495 79,8 9.177 97,4 18.806 135,9 I 9529 189,8 36959 170,0 18.153 217,4 46.484 150,5 9.525 95,7
DEZ. 83 2.046
DEZ. 84 7.151 249,5 12.725 264,1 27.698 201,8 66.954 256,0 39.256 307,7 129.464 250,3 62.510 244,4 182.547 292,7 53.083 457,3

JAN. 85 6.482 -9,4 13.268 4,3 24.940 -10,0 70.964 6,0 46.024 17,2 141.871 9,6 70.907 13,4 204.015 11,8 62.144 17,1
7.152 10,3 15.069 13,6 28.129 12,8 78.956 11.3 50.827 10,4 160.224 12,9 81.268 14,6 228.430 12,0 68.206 9,8
FEV. 85
MAR.85 7.452 4,2 14.427 -4,3 30.984 10,2 88.064 11,5 57.070 12,3 1lll.B73 10,4 88.809 9,3 255.473 11,8 78.600 15,2
7.901 6,0 14.602 1,2 34.324 10,7 96.178 8,2 61.854 8,4 197.043 11,4 100.865 13,6 290.800 13,8 93.757 19,3
ABR. 85
8901 12,7 16.532 13,2 37206 8,4 106.934 11,2 ' 69.726 12,7 216.904 10,1 109.970 9,0 329.131 13,2 112.227 19,7
MAl. 85
10.430 17,2 17.829 7,8 44.267 19,0 124.951 16,8 80.684 15,1 246.069 13,4 121.118 10,1 375.015 1'3,9 128.946 14,9
JUN 85
JUL 85 11.630 11,5 19.626 10,1 49.102 10,9 137.137 9,8 88.035 9,1 265.890 8,1 128.753 6,3 417776 11,4 151.886 17,8
AGO. 85 13.381 15,1 22.377 14,0 56.029 14,1 154.194 12,4 98.165 11,5 288.730 8,6 134.536 4,5 459.781 10,1 171.051 12,6
SET 85 15160 13,3 25763 15,1 65.014 16,0 169.235 9,8 104.221 6,2 321.048 11,1 151.813 12,8 507.209 10,3 186.161 8,8
OUT. 85 15.811 4,3 26.817 4,1 67.505 3,8 183.854 8,6 116.349 11,6 352.382 9,8 168.528 11,0 568.704 12,1 216.322 16,2
NOV. 85 20.310 28,5 32.106 19,7 83.918 24,3 208.439 124.521 7,0 394.118 11,8 185.679 10,2 629.242 10,6 235.124 8,7
DEZ. 85 28.110 38,4 45.468 41,6 111.976 33,4 261.140 149.164 19,8 478.777 21,5 217.637 17,2 737.268 17,2 258.491 9,9

JAN. 86 26.611 -5,3 45.941 1,0 102.136 -8,8 271.198 3,9! 169.062 13,3 536.337 12,0 265.139 21,8 829.635 12,5 293.298 13,5
FEY 86 29.212 9,8 51.535 12,2 116.536 14,1 322.460 18,9 205.924 21,8 634300 18,3 311.840 17,6 966.077 16,4 331.777 13,1
MAA.86 37.291 27,7 70.029 35,8 209.827 80,1 414.507 28,5; 204.680 -,6 715.072 12,7 300.565 -3,6 1.085.202 12,3 370.130 11,6
ABA 86 43.651 17,1 84782 35,3 250.611 19,4 446.279 8,1 197 668 -3,4 731.866 2,3 283.587 -5,6 l09ll.269 1,2 366.403 -1,0
MAL 86 48.501 11,1 109.024 15,0 288 499 15,1 481.996 7,51 193.497 -2,1 765.018 4,5 283022 -,2 1.133.064 3,2 368.046 ,4
JUN. 86 53.251 9,8 120.553 10,6 334.222 15,8 530.746 196.524 1,6 819.410 7,1 288.664 2,0 1.174.293 3,6 354.883 -3,6
JUL 86 55.721 4,6 137.558 14,1 333.548 -,2 542.689 209.141 6,4 837.577 2,2 284.888 2,2 1.182.216 ,I 344.639 -2,9
AGD. 86 60.581 8,7 145798 6,0 356.228 6,8 &95.589 239.361 '14,4 895.568 6,9 299.980 1.7 1.244.428 5,3 348.860 1.2
SET. 86 63.452 4,7 149.852 2,8 376.433 5,7 642.824 7,~ 266.391 11,3 955.109 6,6 312285 4,1 1.313.278 5,5 358.169 2.7
OUT. 86 68.802 8,4 157.605 5,2 462 017 6,8 711.065 10,6', 309.048 16,0 1.026.895 7,5 315.630 1,1 1.364.398 3,9 337.703 -5,7
NOV. 86 76.967 11,9 112.456 9,4 422.381 5,1 759.718 6,8 337.337 9,2 1.077.022 4,9 317.284 ,5 1396.397 2,3 319395 -5,4
DEZ 86 92.610 20,3 178.895 3,7 452.145 7,0 804.915 5,9 352.770 4,6 1.134.756 5,4 329.841 4,0 1.493.975 7,0 359.219 12,5

JAN. 87 71.340 -16,5 172.444 -3,6 347.161 -23,2 757887 -5,8 410.726 16,4 1.127.234 -,7 369.347 12,0 1.544.940 3,4 417.706 16,3
FEV. 87 86620 12,0 164,309 -4,7 371.915 7,1 817.724 7,9 445.809 8,5 1.279.178 13,5 461.454 24,9 1.789.713 15,B 510.535 22,2
MAR.87 83750 -3,3 169.213 3,0 412 452 10,9 837.746 2.~ 425.264 -4,6 1.414.841 10,6 577.195 25,1 1.999.650 11,7 584.709 14,5
ABA. 87 89.986 7,4 187023 10,5 363.352 -11,9 833.083 -,6\ 469.731 10,4 1.519.215 7,4 686.132 18,9 2.229.240 11,5 710.025 21,4
MAL 87 94.006 4,5 184.563 -1,3 361.960 -,4 879.585 5,6 i 517.625 10,2 1.743.756 14,8 864.171 25,9 2731.139 22,5 987.383 39,1
JUN. 87 104.116 10,8 170.057 -7,9 476.126 31,5
Fonte dos Dados Brutas: Banco Central do Brasil I

310 311
-
w
N
TABELA 2

PRODUTO INTERNO BRUTO DO BRASIL


Índice do
Em mil cruzados produto real
Anos Base Variação
Preços Preços
correntes de1980 1980 anual
1970 194.389 5.503.306 43,5 -
1971 260.393 6.124.629 48,5 11,3
348.605 6.862.647 54,3 12,1
1972
1973 487.151 7.822.045 61,9 14,0
1974 713.524 8.529.158 67,5 9,0
1975 1.005.048 8.973.527 71,0 5,2
1976 1.626.349 9.852.036 77,9 9,8
1977 2.487.465 10.306.214 81,5 4,6
1978 3.620.927 10.802.974 85,5 I 4,8
1979 6.041.457 11.581.868 91,6 7,2
12.639.293 12.639.293 100,0 9,1
1980
1981 24.737.492 12.215.877 96,7 - 3,3
1982 48.147.762 12.328.263 97,5 0,9
1983 118.194.847 12.016.358 95,1 2,5
1984 387.967.701 12.701.290 100,5 5,7
1985 1.406.077.084 13.750.417 108,8 8,3
1986* 3.687.473.148 14.876.576 117,7 8,2
Fonte: Fundação Getúlio Vargas
1' Estimativa preliminar.

TABELA 3

INDICE GERAL DE PREÇOS - DISPONIBIUDADE INTERNA


Variação Variação Variação Variação
Mês e ano IGP-DI anual (dez. mensal Mês e ano IGP-DI anual (dez. mensal
a dez.)% % a dez.)% %
Dez. 73 0,029 15,5 1,1 Out. 85 53,78 9,0
Dez. 74 0,039 34,5 2,2 Nov. 85 61,81 15,0
Dez. 75 0,050 29,4 2,2 Dez. 85 69,97 235,1 13,2
Dez. 76 0,073 46,3 2,3 Jan. 86 82,42 - 17,8
Dez. 77 o, 101 38,8 2,1 Fev. 86 94,77 - 15,0
Dez. 78 0,143 40,8 1,5 Mar. 86 100,00 - 5,5
Dez. 79 0,253 77,2 7,3 Abr. 86 99,42 - -0,58
i Dez.SO 0,532 110,2 5,9 Mai. 86 99,74 0,32
Dez. 81 1,038 95,2 3,8 Jun. 86 100,26 - 0,53
Dez.82 2,074 99,7 6,1 Jul. 86 100,90 0,63
Dez.83 6,449 211,0 7,6 Ago.86 102,24 - 1,33
Dez. 84 20,88 223,8 10,5 Set. 86 103,36 1,09
Jan.85 23,52 12,6 Out. 86 104,79 - 1,4
Fev. 85 25,91 - 10,2 Nov.86 107,36 - 2,5
Mar. 85 29,20 - 12,7 Dez. 86 115,48 65,0 7,6
Abr. 85 31,31 - 7,2 Jan.87 129,38 - 12,0
Mai. 85 33,75 - 7,8 Fev. 87 147,63 14,1
Jun. 85 36,39 - 7,8 Mar.87 169,77 - 15,0
Jul. 85 39,64 - 8,9 Abr. 87 203,86 - 20,1
Ago.85 45,19 - 14,0 Mai. 87 260,09 - 27,6
Set. 85 49,31 - 9,1 Jun. 87 327,38 - 25,9
Fonte: Fundsçllc Getúlio Vsrgas

'---
Índice de Assuntos
Os números correspondem ao da página em que o assunto é
abordado pela primeira vez dentro de cada um dos artigos ou do
ensaio que compõem esta obra.

,... ação empreendedorial, 31, 45, 226, 247, 251, 253, 256

INDICE Acordo Geral de Tarifas e Comércio, ver GATT


agentes econômicos, 38, 48, 148, 151
agregados monetários, ver base monetária e meios de pagamento
DE Alemanha, inflação de 1923 na, 17
alimentos, produção brasileira de, 211
ASSUNTOS aluguéis, controle de, 273
antropomorfismo, 30, 169, 182
Assembléia Governamental, 135
Assembléia Legislativa, 134
atavismo tribal, 159
atividades-fim, 123, 257
atividades-meio, 123, 256

Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento (Banco


Mundial), 277
Banco Nacional da Habitação (BNH), 275
base monetária, 17, 31, 35, 43, 49, 59, 68, 73, 254, 284
"bola-de-neve", 70
burguesia, 2ó6

"cadeias", 70
capitalismo, 17, 23, 120, 130, 159
'capitalismo selvagem', 148
'cataláctica', 172
'catalaxia', 172
CEPAL, 16
Central Única dos Trabalhadores, ver CUT
'Choque Heterodoxo', ver Plano Cruzado
cidades, 273

317
cientistas sociais, 99 demarquia, 117, 126, 129, 135, 236
'ciranda financeira', 50, 65, 292 demarquia, assembléia legislativa na, 117
civilização, 13, 147, 159, 176, 184, 271 demarquia, corporação governamental na, 117
Código de Hamurabi, 148 demarquia, judiciário na, 117
coletivismo, 164, 215 demarquia, tribunal constitucional na, 117, 219
coletivismo tribal, 159 demência, 165
comércio exterior, 95 democracia, 133, 157, 164, 189, 200, 215, 241, 262, 266
Comissão Econômica para a América Latina e Caribe, ver CEP AL desapropriação, 77
comunismo, 15, 144, 155, 191, 236 desemprego, 19, 31, 230, 253, 270
CONCLAT, 262 desenvolvimento econômico, 16, 64, 247
congelamento, 13, 17, 20, 25, 30, 34, 38, 43, 52, 59, 67, 73, 77, 'desestatização' da economia, 123
80, 83, 88, 92, 95, 100, 102, 108, 142, 148, 151, 155, 264, 283 despesas governamentais, 48, 64
constitucionalismo representativo, 169, 188, 198, 217, 224 dinheiro, quantidade de, 110
constituição, 129, 133, 177, 185, 190, 197, 200, 203, 206, 209, direita, 155, 184
213, 240, 253 Direito, 105, 126, 141, 149, 151, 178, 218
constituição, conceito de, 186, 217 Direito Administrativo, 180, 203
constituição da Suíça; 218 Direito Constitucional, 180, 203
constituição do Massachusetts, 217 Direito Penal, 180, 203
constituição dos EUA, 197, 217 Direito Privado, 76, 180, 203
constituições brasileiras, 201, 206, 218 Direito Processual, 180, 203
constituinte, 197, 200, 205, 206 Direito Público, 180, 203
constituinte a partidária, 197, 200, 206 direitos humanos, 211
constituinte partidária, 200, 206 dívida externa, 277
'contrato social', 99, 214 dólar, 278, 295
Coordenação Nacional da Classe Trabalhadora, ver CONCLAT
'cosmos', 171 economia, 171
cultura, 159, 184 economia de mercado, ver mercado
custos, 103 econominas, 38, 88, 98, 105
CUT, 262 'economistas heterodoxos', 16
crescimento econômico, 89 empreendedor, 247, 250, 254, 256
emprego, 253
déficit governamental, 18, 27, 38, 44, 48, 57, 67, 74, 80, 108, empresas, 253
123, 169, 226, 230, 254, 305 empresas estatais, 123, 256
deflator do PIB, 295 empresas privadas, 123, 256
demagogia, 168, 233, 235 empresários, 90

318 319
energia humana, 175 Índice Geral de Preços- Disponibilidade Interna, ver IGP-DI
esquerda, 155, 184 inflação, 13, 17, 20, 25, 30, 34, 38, 43, 48, 52, 57, 59, 63, 67,
esquerdismo, 155 72, 80, 83, 88, 92, 95, 100, 192, 105, 110, 129, 141, 151, 170,
Estado, 168, 178, 182, 213 230, 254, 264, 274, 278, 283
'Estado Benfeitor', ver 'Estado Previdenciário' 'inflação inerciai', 52, 73
Estado de Direito, 13, 70, 76, 97, 117, 124, 126, 129, 134, 141, informação, sociedade de, 120
145, 149, 152, 158, 159, 176, 178, 183, 185, 188, 192, 201, 203, infraleis, 179
207, 217, 224, 229, 240, 262, 266 iniciativa privada (ver também liberdade individual), 256
'Estado do Bem-Estar Social', ver 'Estado Previdenciário' insanidade, 165
'Estado Previdenciário', 148, 156, 274 intelectuais, 120, 132, 250
Estatuto da Terra, 211 intervenção governamental, 19, 38, 52, 63, 129, 138, 141, 145,
estruturalismo, 16, 98, 230 148, 151, 155, 170, 171, 192, 248, 256, 264, 269, 273
Executivo, 118, 134, 198, 207 investimentos, 65, 142
expansão monetária, ver inflação
extorsão, 76 jogo, 173
jornalistas, 101
fascismo, 144, 192 Judiciário, 117, 135, 142, 198, 207
'fazedores' (ver também empreendedor), 138 juros, 24, 95, 287
Federação, 216 'justiça social', 14, 53, 119, 132, 136, 146, 156, 160, 168, 173,
FMI, 277 182, 203, 226, 229, 234, 235. 240, 248, 253, 263, 265, 270
Fundo Monetário Internacional, ver FMI
furto, 76 keynesianismo, 17, 36, 38, 93, 98, 105, 110, 230, 253, 277
keynesianismo-estruturalista, 84, 93
GATT, 278
Gold Reserve Act, 278
lawyer's law, 181
Governo (ver também Estado), 148, 213, 285
legislação, 126
Grande Depressão, 18, 39, 108, 253
Legislativo, 118, 135, 152, 178, 185, 197, 202, 207
greve, 261, 264
lei, 76, 117, 127, 152, 178, 182, 185, 188, 202, 203, 207, 234, 240
habitação, 273 leite, 22, 53, 56
hiperdemocracia, 267 liberalismo clássico, 120, 126, 133, 145, 152
hortifrutigranjeiros, 20 liberdade de iniciativa (ver também liberdade individual), 253, 256
'liberdade econômica', 146
idéias político-filosóficas, 136 liberdade individual, 15, 58, 72, 77, 97, 122, 123, 126, 129, 132,
IGP-01, 27, 36,42, 47, 49, 59, 67, 108, 295 136, 141, 145, 159, 164, i68, 176, 178, 183, 188, 191, 197, 201,
Impostos, ver tributação 206, 209, 213, 217, 234, 252, 253, 261, 264, 275

320 321
'liberdade política', 146 'Pacote (ou Plano) da Inflação Zero', ver Plano Cruzado
linguagem política (ver também semântica, confusão), 182 pacto social, 95, 99
livre iniciativa (ver também liberdade individual), 253, 256 padrão-ouro, 278
paraleis, 179
macroeconomia, 19, 93 parlamentarismo, 187, 206
maioria, 139, 199, 241 Partido Comt~nista Brasileiro, 157
Manifesto do Partido Comunista, 178, 223, 230, 233 Partido Comunista Espanhol, 157
'mão invisível', 39 partidos políticos, 118, 134, 189, 197, 200, 216
marxismo, 146, 156, 192 'pensador', 138
meios de comunicação, 120 PIB, 27, 33, 36, 40, 44, 48, 59, 64, 67, 84, 96, 109, 287
meios de pagamento, 26, 33, 35, 40, 43, 49, 52, 59, 67, 73, 84, "pichardismo", 70
110, 284 planejamento urbano, 273
mercado, 14, 20, 33, 34, 53, 56, 69, 74, 80, 83, 88, 93, 96, 98, Plano Cruzado, 17, 25, 30, 34, 59, 65, 67, 72, 80, 83, 88, 92, 95,
103, 105, 111, 124, 129, 138, 142, 145, 148, 151, 161, 171, 192, 100, 102, 108, 141, 145, 151, 155, 178, 209, 264, 270, 273, 277,283
206, 211' 248, 253, 263, 269, 273, 284 pobreza, 276
mercado de capitais, 63 poder, 145
.método científico, 99 'poder econômico', 148
minoria, 199, 241 'poder político', 148
'modelo heterodoxo', 15 5 político partidarista, 89
moeda, monopólio estatal da emissão de, 112, 130, 285 positivismo jurídico, 105, 142, 162, 168, 178, 183, 186, 189, 202,203
monetarismo, 17, 84, 98 poupança, 64
monetarismo keynesiano-estruturalista, 16, 25, 36, 40, 68, 72, 82, preços, 13, 17, 20, 25, 30, 34, 38, 43, 48, 52, 56, 59, 63, 67, 80,
111, 156,175,279,292 83, 88, 92, 95, 102, 141, 145, 149, 151, 271, 283
'monetização', 27 preços, controle de (ver também congelamento e tabelamento),
monopólio, 14, 125 14, 20, 32, 38, 52, 56, 69, 74, 83, 95, 100, 148, 162, 170, 173,
269, 283
nazismo, 144, 192
preços, controle global de, 53, 69
neokeynesianismo, 16, 111, 137, 230
preços, controle seletivo de, 38, 53
neomarxismo, 16
preços, índices de (ver também IGP-DI), 20, 285
"obsessão coletivista", 165 preços relativos, 34, 43
open market, 65 presidencialismo, 206
opinião pública, 139, 151 Produto Interno Bruto, ver PIB
ordem de mercado, ver mercado professores, 16, 80, 98, 102, 105, 292
ordem espontânea, 30, 161, 171, 271 professores de Economia, 132
ordem não-espontânea, 171 progressista, 184

322 323
progresso, 16, 96, 143, 145, 159, 175 191, 206, 209, 229, 236, 248, 261
progresso social, 165 socialismo fabiano, 156
propriedade privada, 15, 23, 58, 76, 141, 176, 178, 206, 209, socialismo marxista, 156
216, 234, 250, 264 sociedade, 168, 182
pseudoleis, 35, 77, 102, 105, 134, 142, 146, 153, 155, 169, 178, sociedade aberta, 160
186, 203, 215, 219, 241, 271 Sociedade Fabiana, 156
sociedade madura, 164
racionalismo cartesiano, ver racionalismo construtivista sociedade tribal, 160
racionalismo construtivista, 30, 98, 143, 151, 161, 171, 267 solo urbano', 'lei do uso do, 211
racionalismo evolucionário, 30, 98, 143, 171 subdesenvolvimento, 169, 191, 247
reacionário, 184 subsídios, 28, 45, 53, 56, 74, 305
receitas governamentais, 48
recessão, 279 tabelamento, 20, 25, 30, 34,42, 43, 52, 59, 67, 73, 78, 80, 83,
redistribuição da renda, 15, 89, 173, 192, 232 89, 95, 102, 108, 142, 148, 151, 155, 173, 264, 283
'reforma agrária', 209 taxação, ver ~ributação
regime político-econômico híbrido, 150, 247 'taxis', 171
regulamentação, 124 televisão, 56
'remonetização', 73, 292 teoria quantitativa da moeda, 84, 297
resposta adaptativa, 251 títulos públicos, 27, 44, 292
resposta criadora, 251 tombamento, 76
Revolução Industrial, 120, 159 totalitarismo, 141, 152
riqueza, 145 tributação, 50, 125, 129, 169,215,223,226,229,232,235,240,305
roubo, 76 tributação indireta, 225, 242
tributação progressiva, 129, 211, 223, 226, 229, 232, 235, 240
salários, controie de, 24, 52, 148, 162, 263, 264, 269 tributação proporcional, 129, 223, 227, 232, 237, 241
salários, política de (ver também salários, controle de), 269 tributação sobre a renda, 242
semântica, confusão, 20, 28, 30, 182, 192
separação de poderes, 119, 127, 129, 134, 142, 145, 176, 178, utilidade marginal, 234
187, 201, 205, 207, 216, 217 Utopia, 132
serviço público, 124, 275
''ia democrática' para o socialismo, 157
sindicalismo (ver também sindicalismo monopolista e sindicatos), 46
vida, direito à, 210
sindicalismo monopolista, 161, 261, 264
vontade geral, 151
sindicatos, 168, 261, 264, 270
vontade popular, 151
'sintonia fina', 44, 110
socialismo, 15, 23, 80, 121, 132, 138, 144, 155, 161, 184, 189, Zwangswirtschajt, 24

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