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Introdução à Reforma Educacional Brasileira

José Paranaguá de Santana


Consultor em Desenvolvimento de RH
Organização Pan-Americana da Saúde
Representação do Brasil

Maria Auxiliadora Córdova Christófaro


Professora da Escola de Enfermagem
Universidade Federal de Minas Gerais

A emergência ou a intensificação de processos de reforma do sistema educacional, nas


últimas décadas, é comum a muitos países. É possível que se trate de mais uma das facetas do
fenômeno da globalização econômica e social que invade todas as dimensões e setores de
organização das sociedades nacionais, em transição para uma aldeia global, como sugere a
metáfora de MacLuhan. Mesmo reconhecendo a importância e a interferência desse processo nas
reformas realizadas e naquelas em andamento, um aspecto, mais específico, será tomado como
ponto de partida para o estudo dessa questão. Seguramente, não é por mera coincidência que
todas essas reformas estão justificadas e centralizadas na idéia do compromisso da educação ou,
mais particularmente, da escola com o mundo do trabalho. A disseminação e a relevância
conferidas à preparação para o trabalho - como finalidade precípua e nobre da escola - associada
ao desenvolvimento, aprofundamento e consolidação do conhecimento, leva-nos a supor um
surpreendente consenso em relação aos princípios norteadores da educação escolar.
Para além dessa coesão em torno do papel da escola cabe considerar, também, o
denominador comum que dá sentido e significado a esse papel: o conceito de competência como
orientação doutrinária e operacional dessa finalidade. Esse enfoque pode ser constatado
facilmente pela consulta a publicações de agências internacionais de cooperação ou de
organismos governamentais ([1], [2]) em diversos países.
O Brasil enquadrou-se bem nesse figurino ao propor e concretizar sua última reforma
educacional. Entretanto, à exemplo do que vem ocorrendo em outros países, esse consenso ou
quase unanimidade é tão somente uma hipótese de primeira hora. A história das reformas e
políticas educacionais, a formulação de leis de diretrizes e bases para a educação e a busca de
formas e alternativas para implementar seus propósitos, revela um processo recorrente de
polêmicas e lutas pelo poder na condução das políticas públicas de educação, onde alternam-se
freqüentemente grupos de vencidos e vencedores. Também desta vez não foi diferente, e a
polêmica foi exacerbada. Em um primeiro momento o alvo foi a nova Constituição, aprovada em
1988 (ver Título VIII, Capítulo III, Constituição da República Federativa do Brasil). Na construção
da nova LDB, por sinal aprovada somente oito anos após a aprovação da carta constitucional,
distintas propostas foram apresentadas e debatidas. Nelas, a expressão de diferentes concepções
de sociedade, de educação e de escola. Seguindo a tradição, o processo social que engendrou a
última reforma educacional brasileira trouxe à baila essas diferentes concepções. Nessa ótica, a
reforma educacional que está consignada nos diplomas legais, como de resto sua implementação,
tem como pano de fundo a disceptação, o embate, a dificuldade de definições, principalmente
quando se estabelecem prioridades e alocação de recursos. E o ponto axial que perpassou quase

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todas as reformas anteriores, não deixou de estar presente nesse processo: o direito de todos à
escola e o dever do sistema educacional atender a todos com qualidade.
A situação educacional constitui o foco das atenções quando se discute a possibilidade do
Brasil vir a ser uma nação com melhor integração social, maior renda e estabilidade política. Por
ela passaria o equacionamento de todas as demais questões, pois muitos advogam que as
diferenças educacionais encontram-se na base de todas as demais iniquidades que acometem a
sociedade brasileira, além de tratar-se da política social que mais rapidamente apresenta
resultados a curto ou médio prazos. O desafio atual é a desigualdade de acesso à educação de
qualidade. O ensino fundamental ampliou-se, registrando-se cobertura de 95% e taxa bruta de
escolarização em torno de 120%, em relação à população de 7-14 anos. O aspecto crítico, no
entanto, é a retenção de crianças nos primeiros anos da escola, que se expressa em evasão ou,
posteriormente, em grandes limitações de acesso a níveis educacionais mais elevados. No nível
médio a cobertura ainda é baixa (com apenas 6 vagas disponíveis para cada 10 jovens na faixa de
15-17 anos de idade), apesar do esforço que vem sendo feito (há dez anos essa relação era de 4
para 10). Na educação técnica e superior, embora haja limitações e diferenciação de acesso ao
ensino de qualidade, os maiores problemas relacionam-se ao desajuste entre a oferta educacional
e as expectativas dos diferentes públicos que buscam esses níveis de ensino, para não falar na
baixa sintonia com as demandas do mercado de trabalho. Atualmente, há seis vagas na
universidade para cada 10 egressos do ensino médio. Entretanto, há somente uma vaga para
cada dez jovens entre 19 e 24 anos de idade (o Brasil apresenta uma das menores taxas de
escolarização superior na América Latina). Outros aspectos a considerar relacionam-se a
indagações quanto ao conteúdo e propósito dos cursos (que não estariam formando os técnicos e
profissionais que a sociedade necessita), sua proliferação desordenada (com "diplomados"
ocupando postos de trabalho de nível médio), seus custos elevados (as universidades públicas
custariam caro para o governo e as privadas ainda mais para seus alunos), seu sistema de
ingresso (o vestibular no sistema público perpetuaria a exclusão de estudantes pobres que não
frequentaram boas escolas secundárias, geralmente privadas), sua distribuição regional
(investimentos públicos concentrados nas áreas mais desenvolvidas).
O resgate da dívida social acumulada (o analfabetismo ainda é significativo), a universalização
do ensino fundamental público e gratuito e a ampliação do acesso ao ensino superior (persistem
os gargalos na passagem de um grau de ensino para outro) continuam sendo grandes questões
que colocam a escola brasileira na berlinda e arguem o projeto político-econômico da sociedade
como um todo. Mas o postulado de que a escola é o espaço de seleção para o desenvolvimento
de competências profissionais volta a ocupar posição de relevância nesse processo. A
reestruturação do trabalho, na atual ordem social, política e econômica mundial trouxe no seu bojo
novos mecanismos de inserção, de acompanhamento e de avaliação dos trabalhadores - suas
capacidades e conhecimentos. A centralidade no desenvolvimento de competências profissionais
pela educação escolar, já consagrada em outros países (EUA, Inglaterra e França, por exemplo)
foi transplantada do espaço da produção e ganhou lugar na formação técnica profissional,
estendendo-se, em alguns casos, para a educação escolar em geral. Como postulado e princípio
está consubstanciada na lei. Como ação educacional concreta que pressupõe uma educação
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básica de qualidade associada à equidade, na forma explicitada no Parecer CNE/CEB N° 16/99, é
um longo caminho, em especial, porque as diferentes concepções e propostas para a educação
não são apenas "projetos de ocasião", estão presentes nos movimentos, organizações e
instituições da sociedade.
As preocupações embutidas no processo reformista da educação incluem outros aspectos,
além das questões centrais acima aventadas, relativas a seus propósitos e resultados. A pauta de
discussões e as operações em curso na reforma educacional brasileira incluem o conceito de
escola e suas expressões concretas, como forma de organização, de gestão e financiamento.
O sistema educacional brasileiro apresenta uma conformação complexa, onde destacam-se
aspectos de segmentação dos graus ou níveis de ensino, as responsabilidades das diferentes
esferas de governo, os papeis atribuídos ou esperados do poder público e da iniciativa privada.
Tudo isso tem a ver com o entendimento prevalecente no imaginário social sobre o que são a
"escola primária", o "ginásio", o "colégio" e a "universidade". São termos cujo significado vem-se
moldando ao longo da história e que, inclusive, transfiguram-se em diferentes nomenclaturas em
distintas fases do processo de reforma. A configuração desse sistema, definida pela nova LDB
apresenta inovações importantes, muitas das quais, passados mais de quatro anos da aprovação
da lei, ainda não foram implantadas.
Os temas da gestão e do financiamento da educação nacional constituem objeto de acirrada
polêmica desde muito tempo, não existindo ainda razoável consenso que permita a construção de
políticas claras e duradouras em torno de questões relevantes como o modelo de expansão do
aparato escolar, a participação do poder público e da iniciativa privada no correspondente
investimento em infra-estrutura e a distribuição regional desses novos serviços.
Um resumo da situação educacional no País, levando em conta alguns dados relativos à
escolaridade e desempenho do ensino fundamental, técnico e superior, encontra-se no texto
"Brasil: Sinopse Propedêutica para o Curso de Especialização em Políticas de Recursos Humanos
para a Gestão do SUS". Uma pesquisa mais detalhada sobre o tema pode ser feita a partir das
seguintes fontes:

• A Reestruturação das Políticas Federais para o Ensino Fundamental: Descentralização e


Novos Mecanismos de Gestão

• Ensino Superior no Brasil: Crescimento e Alternativas

No que concerne à área da saúde, vale destacar a importância da confluência entre os


processos de reforma educacional e sanitária, que tem se expressado no trâmite e aprovação de
novos regulamentos, tanto no caso da formação técnica como da formação universitária. A
multiplicidade de categorias profissionais e as dificuldades do ajuste de seu perfil às novas
demandas do sistema de saúde são fatores que justificam a morosidade na aprovação dessas
normas e, certamente, que dificultarão sua aplicação. Contudo, é preciso identificar as
oportunidades favoráveis e tirar o melhor proveito dessa situação histórica em que se encontram

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as duas reformas setoriais. Os dois exemplos a seguir apresentados ilustram cabalmente essa
proposição.
Com respeito às demandas por novos profissionais, além dos aspectos gerais do crescimento
do mercado de trabalho em saúde, é importante ressaltar a perspectiva conformada pelas
definições da política pública de saúde, que anuncia a ampliação acelerada do número de equipes
de saúde da família. Além da importância dessa estratégia no contexto do SUS, há que considerar
a adoção de esquemas assistenciais que estão sendo adotados pelo setor privado, incorporando
processos assemelhados à saúde da família, em termos de recursos humanos e tecnologia. De
modo geral, não parece haver carência de cursos ou de vagas para graduação na área de saúde.
Contudo, há generalizado e forte convencimento sobre a dissociação entre essa formação e as
exigências dos serviços, particularmente com relação aos profissionais "adequados" para atuar
nas equipes de saúde da família. Para dar mais consistência técnica ao treinamento inicial dessas
equipes, vêm sendo constituídos os Pólos de Formação em Saúde da Família, numa articulação
entre setor formador e o SUS que visa, em médio prazo, contribuir para as mudanças e ajustes
curriculares indispensáveis no âmbito da formação desses profissionais, buscando alternativas
tanto para a graduação como especialização. Dentre outras medidas para garantir a
sustentabilidade dessa proposta, o Ministério da Saúde está ultimando tratativas junto ao Banco
Mundial para o desenvolvimento de um projeto de financiamento e cooperação técnica.
No tocante à demanda por formação de nível técnico e auxiliar em funções específicas de
saúde, calcula-se que cerca de 225 mil dos trabalhadores exercem funções para as quais não
estão devidamente preparados e certificados, atuando na assistência de enfermagem nas redes
hospitalar e ambulatorial. Ante esse quadro, o Ministério da Saúde está desenvolvendo um amplo
projeto de financiamento e cooperação técnica que visa reduzir o déficit nacional de pessoal
auxiliar qualificado em enfermagem, diminuir o risco de práticas inadequadas e contribuir para a
regularizar a empregabilidade do pessoal auxiliar de enfermagem. O custo do projeto alcança a
considerável cifra de US$ 370 milhões, sendo US$ 185 milhões financiados pelo Banco
Interamericano de Desenvolvimento (BID) e a outra parte como contrapartida do Governo
brasileiro.
Nos dois casos acima, delineiam-se, a partir de iniciativas do setor saúde, políticas
governamentais de formação de recursos humanos de saúde que, evidentemente, dependem de
operadores institucionais situados no setor educação. Operadores dotados de vontade política
própria, que trilharam sua própria história e pretendem construir seu próprio futuro. Somente a
articulação entre os atores situados nesses dois setores pode garantir a efetividade de tais
políticas.
O conhecimento sobre as características do processo de reforma da educação em curso no
Brasil, a compreensão de seus antecedentes e a avaliação de suas tendências são elementos
importantes para a formulação e operação de políticas de recursos humanos de saúde. Desse
modo, os especialistas e gerentes de recursos humanos do SUS devem aproximar-se desse
campo de saber para bem cumprir suas funções.

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