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A paisagem como dimensão simbólica

do espaço: o mito e a obra de arte*


LEONARDO H. G. FÍGOLI**

Resumo: A paisagem é um modo de representação da natureza; é uma imagem cultural do


espaço geográfico. Como símbolo espacial de um imaginário, a paisagem aponta para um
sentido, mais que ao entorno. No caso estudado, as letras e as artes plásticas foram
essenciais na construção das representações do espaço regional e na elaboração das grandes
imagens míticas. Esse sistema de representações tem a paisagem como símbolo dominante
e constitui o fundamento de uma ideologia regional, bem como o da auto-imagem dos seus
habitantes. Neste trabalho, procuramos compreender o significado da moderna produção
artística de Alberto da Veiga Guignard. Focalizamos sua obra sobre a paisagem regional de
Minas Gerais não como simples “visão de mundo”, mas como universo plástico articulado
ao imaginário social, simultaneamente renovador e ordenador de valores míticos, porque a
autêntica obra de arte é aquela que consegue ressuscitar ou restaurar o mito.
Palavras-chave: arte e imaginário; paisagem, arte e identidade; identidade regional, paisa-
gem e simbolismo.

Introdução sar uma obra de arte exige, antes de mais nada,


escapar do falso problema que a reduz ora como
O tema deste trabalho é a paisagem como expressão do mundo psíquico do autor, ora como
uma das formas simbólicas do espaço, portan- manifestação do mundo social. Para ir além das
to, como uma forma cultural. Buscamos compre- interpretações biográficas ou contextualistas,
ender o lugar da paisagem em um contexto
centramos a atenção em três grandes questões:
cultural regional: a região de Minas Gerais.
o tema, o estilo e o regime da imagem da obra.
Atribuímos importante papel aos discursos figu-
Ao analisarmos a chamada “fase mineira” da
rativos, tais como a literatura e a pintura, que ao
produção artística de Guignard, propomos-nos
longo da história modelaram o imaginário social
a captar o imaginário expresso simbolicamente
sobre a paisagem regional. Na pintura, o gênero
na e pela obra de arte, como articuladora de
paisagístico local é de longa data, mas alcançou
valores míticos (Durand, 1993, p. 136).
a mais complexa elaboração com a pintura
modernista de Alberto da Veiga Guignard. Anali-
A paisagem: dimensão simbólica do
* Trabalho apresentado no XIII Ciclo de Estudos sobre o espaço
Imaginário, em outubro de 2004, em Recife (PE).Versões
preliminares foram apresentadas na XXIV Reunião da As- A paisagem pode ser definida como uma
sociação Brasileira de Antropologia (ABA), em Recife (PE),
em junho de 2004, e no seminário Cultura Contemporânea: área composta por associação de formas, ao
Imbricações e Hibridismos, na Unesp, em Araraquara, em mesmo tempo físicas e culturais. Ao contrário
outubro de 2004.
do olhar geográfico, que deixa escapar todo o
** Professor associado do Departamento de Sociologia e
Antropologia (SOA), da Universidade Federal de Minas
significado da paisagem humana ao reduzi-la a
Gerais (UFMG). forças naturais, a paisagem pode ser vista como

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expressão humana intencional, formada por incorpora a paisagem como suporte da narrativa
muitas camadas de significação (Lobato Corrêa e da composição das cenas, como ilustram as
e Rosendahl, 1998, p. 9 e passim). igrejas mineiras (Sampaio, 1977, p. 9). É à som-
A paisagem é muito mais que o simples bra do naturalismo rousseauniano que a pintura
espaço exterior ao homem. Desde o Renasci- de paisagens afirma-se como gênero pictórico,
mento, foi entendida como criação racionalmente em oposição à artificialidade da civilização
ordenada, ligada a uma maneira de harmonizar moderna, registro do surgimento de uma nova
o mundo (Lobato Corrêa e Rosendahl, 1998). percepção do espaço que não está desvinculada
Mais que um território que a natureza apresenta da expressão de sentimentos nacionalistas.
ao observador, é produto de uma maneira de A região, no século seguinte, passa por
ver o espaço externo, um cenário que supõe um profundas mudanças. Após o florescimento das
espectador, um olhar particular sobre o mundo cidades do ciclo do ouro e do diamante, sobrevi-
externo. Em suma, a paisagem é um relato, um eram a pobreza e a estagnação. Uma nova voca-
desenho, uma representação. Território recor- ção econômica centrada nas atividades rurais
tado por uma “janela”, apreciado desde um modifica a relação do homem com o entorno, e
ponto de vista singular, freqüentemente esse com ela o nascimento de novas cidades. Sob a
ponto de vista é artístico, envolvendo uma série influência da Academia Imperial de Belas Artes,
de técnicas particulares desenvolvidas para a arte mineira produz as primeiras pinturas de
representá-lo e transformá-lo em imagem cultu- paisagens consideradas como gênero indepen-
ral pela atribuição de um significado. dente. Alguns artistas abandonam as cenas
A paisagem é, portanto, um signo (dizível) acadêmicas para mergulhar nas paisagens lo-
integrante de um imaginário social (geralmente cais, que ganham em veracidade ao serem
regional) que aponta para um sentido (indizível), conectadas às narrativas da Inconfidência,
mais que ao objeto sensível que lhe serve de constituindo o fundo das lutas pela independência
referência: paese feito paisagem. No horizonte (Sampaio, 1977, p. 9).
de alguns imaginários sociais, a paisagem tem O século XX é de intensa renovação nas
feito do entorno exterior e visível a chave para artes. Novas linguagens e tendências artísticas
a compreensão do sentido da vida humana se espalham, no começo do século, na Europa e
(Fígoli, 2006, p. 439). No caso em estudo, a nos Estados Unidos. Enquanto isso, Minas per-
paisagem de Minas Gerais tem constituído a manecia completamente alheia a esses movi-
pedra angular de um longo e complexo sistema mentos. Nas primeiras décadas, firmam-se os
simbólico ou ideologia regional, na qual se assen- nomes de alguns artistas paisagistas. Em 1918,
ta a auto-imagem de seus habitantes. Ricamente chega a Belo Horizonte o fluminense Aníbal
burilada a “pena e pincel”, por extensa e obsessi- Pinto Mattos, que inicia um significativo movi-
va atividade discursiva imagético-figurativa, a mento cultural, com a criação da Sociedade
paisagem mineira constitui uma das grandes Mineira de Belas Artes e do Salão de Belas
imagens míticas do imaginário regionalista. Artes. Dizia-se que Mattos era um apaixonado
intérprete da natureza de Minas: “a terra mineira
surge de suas telas transfigurada e idealizada
Um mitema: a pintura paisagística pela sua paleta de pintor poeta” (Sampaio, 1977,
É consenso entre os historiadores que a p. 18).
origem dos mitos da “mineiridade” remonta ao É sintomático que a Semana de Arte Mo-
século XVIII. Se a singularidade topográfica derna, de 1922, não tenha repercutido imedia-
mineira foi, de início, considerada estranha para tamente na arte mineira.1 Longe de manterem
os padrões literários europeus vigentes, aos a estreita relação e a mútua influência que expe-
poucos foi incorporada à literatura, evidência da
1. Os jovens escritores e poetas de Belo Horizonte e Catagua-
constituição de uma nova sensibilidade sobre o ses, desde o início, sintonizaram as idéias revolucionárias e
entorno (Sampaio, 1977, p. 9). demolidoras do modernismo, procurando a saída do estágio
parnasiano e simbolista. Sobre a estreita relação que o grupo
A visão romântica da natureza do século da ‘alegre e paradoxal’ revista Verde, de Cataguases, manti-
XVIII se faz sentir na pintura do período, que nha com o movimento modernista, assim se refere Mário

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rimentavam os poetas modernistas paulistas e gem urbana moderna de Minas e marco da


mineiros nas décadas de 1920 e 1930,2 os pinto- arquitetura moderna nacional. A construção da
res mineiros se mantêm fiéis à concepção da Pampulha propicia, com a presença de Candido
arte que visava mais à reprodução naturalista, à Portinari, a idéia de criar uma escola de arte
documentação, do que à interpretação livre da nos moldes modernos e que, por sugestão dos
natureza; apegados à ordem antiga, à força da modernistas, ficará a cargo do pintor Alberto da
tradição, preferiam pintar suas telas com ima- Veiga Guignard.
gens dos panoramas coloniais.
Arrefecida a efervescência dos anos 20, a O estilo: acadêmicos e modernos
arte moderna começa, na década seguinte, a
sedimentar-se no Brasil. Em Minas, grandes Aceita a proposta de Kubitschek, Guignard
vocações literárias modernistas serão importante deixa o Rio de Janeiro e vem a Belo Horizonte
expressão da mineiridade,3 o que contribui para em 1944 para implantar um curso de pintura e
uma nova forma de olhar o espaço regional. Na desenho. Sem ser modernista radical, promove
pintura, a paisagem é o gênero pictórico que a abertura das artes plásticas locais para a
melhor se integra ao espírito das classes que contemporaneidade. Nesse mesmo ano, tem
consomem arte. No período, os artistas volta- lugar a I Exposição de Arte Moderna em Belo
vam-se para as cidades coloniais do ciclo do Horizonte, organizada pela prefeitura no intuito
ouro e, na sua busca de fixar as raízes locais, de promover as novas tendências pictóricas,
descobriam os povoados e as matas, as monta- reunindo obras dos mais importantes artistas
nhas, os rios e os homens habitantes desses modernos do país, as quais apresentam um novo
mundos perdidos (Sampaio, 1977, p. 20). olhar sobre o território, as tradições e sua gente,
Na década de 1940, inicia-se uma grande para o campo artístico local em plena eferves-
mudança no campo artístico, a reboque das que cência.
se faziam sentir no terreno político e econômico. Essas expressões plásticas modernas não
Sendo prefeito Juscelino Kubitschek, Belo Hori- foram rapidamente compreendidas. O momento
zonte será objeto de grande mudança arqui- era de certa tensão e de ecletismo.5 Nesse com-
tetônica, com a implantação do conjunto urbanís- plexo ambiente intelectual e artístico,6 a Escola
tico da Pampulha, concebido por Oscar Nie- de Guignard desenvolve-se em franca rivalidade
meyer e Roberto Burle Marx,4 primeira paisa- com a de Aníbal Mattos, que tinha aglutinado as
figuras mais destacadas do academicismo,
de Andrade (1929): “Não é possível a gente conceber a
formação de um espírito sem influências, fruto unicamente conjunto, a Igreja de São Francisco, é a primeira obra moder-
de Cataguases. Existe influência de tal escritor paulista sobre na em que a paisagem minera, ao repetir a forma de suas
os moços de Cataguases, como existe influência dos moços montanhas, é explicitamente abordada (Sampaio, 1977,
de Cataguases sobre esse escritor paulista. É maior que p. 21).
imaginam, muito maior”.
5. Em meio à tradição, herdada da antiga Ouro Preto, e a
2. Como no século XIX Minas tinha recebido um grupo de modernidade, imposta por sua própria condição de cidade
viajantes estrangeiros, que documentou a Minas do período, planejada, a nova capital carece, desde sua inauguração, de
em 1924 um importante grupo de viajantes ilustres veio uma imagem. Sua face eclética, ainda que de remanência
conhecer ou revisitar as sociedades históricas. O grupo for- oitocentista, tem uma aura moderna, e a busca de uma iden-
mado por Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Tarsila do tidade com o moderno é o que dará a tônica do desenvol-
Amaral, entre outros, empreende a redescoberta do Brasil, vimento da cidade (Sampaio, 1977, p.17).
dando inicio à reavaliação da arte do século XVIII em Minas,
redescoberta que alimentará não só os poemas de Mário, 6. Os principais expoentes do núcleo modernista, que
Oswald e Cendrars, como os desenhos que Tarsila fez para tiveram ativa participação na vida intelectual mineira, eram:
registrar a viagem e as pinturas que posteriormente produziu. Carlos Drummond de Andrade, Emílio Moura, Pedro Nava,
Se os artistas plásticos mineiros não se beneficiaram direta- Martins de Almeida e João Alphonsus. Vanda Klabin, em
mente da visita, os escritores tiveram a oportunidade de artigo publicado a respeito do ambiente cultural na época,
estreitar o relacionamento com eles (Sampaio, 1977, p. 19). comenta o seguinte: “O ambiente cultural mineiro já
revelava, desde a década de 20, uma série de inquietações em
3. Como Emílio Moura e Abgar Renault, Carlos Drummond torno da renovação artística, com o surgimento de uma
de Andrade lança, em 1930, seu primeiro livro, Alguma geração de intelectuais que seriam os novos agentes da
poesia. cultura. Estas novas formulações apontam para novas
4. Utilizando-se essencialmente da vegetação própria da maneiras de ver e agir, que começam lentamente a entrar
região, a paisagem nova integra formas naturais, arquitetura em ebulição na ainda muito restrita e provinciana capital
e a paisagem circundante. A obra mais representativa do mineira” (apud Zílio, 1983, p. 41).

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tornando-se um dos maiores focos de resistência assim como ao longo da própria história da arte
ao avanço das tendências modernistas. a evolução da paisagem marca as várias fases
Em Minas, desde os anos 20, era intenso o da nossa concepção da natureza, em Guignard,
confronto entre os modernos e os conserva- há um aprofundamento gradual do tema. Consi-
dores. Se, no âmbito da literatura, o movimento derando apenas as paisagens brasileiras pinta-
modernista não encontrou sérias resistências das por Guignard, podem ser apontadas três
para penetrar no ambiente cultural mineiro, no fases em sua produção: a tropical (1936-40),
terreno das artes plásticas o confronto com as representada pelas pinturas sobre o Jardim
estruturas acadêmicas vai se dar tardiamente e Botânico do Rio de Janeiro (Figura 1); Itatiaia
se caracterizará por um tom de acirrada polê- (1940-42), quando o artista se interessa mais
mica que levará à formação de duas facções pela paisagem natural e os espaços amplos
opostas, as quais se agruparam contra e a favor (Figura 2), e, por último, a paisagem mineira
das atividades do grupo Guignard (Zílio, 1983, (1944-1962) (Figuras 3, 4 e 5) (Morais, 1979, p.
p. 43). O confronto transcende a mera rivali- 80 e ss.). Na fase tropical, tratou o Jardim
dade. Com a presença de Guignard, trava-se Botânico do Rio de Janeiro realisticamente nos
uma clara luta político-ideológica no campo vários trabalhos que realizou e também buscou
artístico, que toma a forma específica do embate simbolizar a paisagem tropical brasileira; nas
entre modelos pedagógicos e estéticos: aos pinturas da serra de Itatiaia, Guignard tem a
clichês, aos modelos ideais, às formas rígidas precisão de um topógrafo, resultado de uma
de ensino do academicismo, a nova escola vai observação demorada. Mas é em Minas Gerais
contrapor o “liberalismo didático”, o método que vai realizar a obra paisagística mais
modernista do ensino livre; às formas percepti- significativa de sua carreira, aquela que a crítica
vas próprias do academicismo, que valorizava a considera representativa de sua maturidade
pintura figurativa do real, o modernismo de artística.
Guignard privilegiará a interpretação da realidade É consenso entre os críticos que sua melhor
(Barbosa de Oliveira, 2002). O mestre procurava expressão artística é essa recriação da geografia
intensificar a sensibilidade artística dos alunos e e do espírito da Minas colonial, de Ouro Preto,
aguçar também a visão crítica da relação passa- Sabará, Diamantina e Mariana. Na fase mineira,
do–presente, abrindo a possibilidade de novos o pintor criou uma arte rica e densamente carre-
caminhos para relacionar o tradicional ao moder- gada dos valores espirituais de Minas Gerais
no, não para a cópia do passado, mas para trans- fixados nas cenas, nos retratos, na via-sacra,
cender o conflito (Andrés Ribeiro e Silva, 1997, na cabeça de Cristo, nas naturezas-mortas, mas
p. 194). Guignard dá o exemplo aos seus alunos, especialmente nas paisagens, o tema mais
revolucionando as antigas percepções das paisa- significativo e mais amplamente trabalhado pelo
gens mineiras. artista (Sampaio, 1977, p. 27).8

7. Acertadamente, tem sido apontado que praticamente todos


A obra de Guignard: as paisagens os principais “temas” tratados por Guignard estão indicados
imaginantes numa tela denominada Os noivos (1937). São eles o retrato,
a paisagem, as flores e o sagrado. Apenas a natureza-morta
Os principais temas pictóricos tratados por estaria ausente neste “arquiquadro”, síntese de tantos ele-
mentos, sendo o principal deles a convergência da cultura
Guignard ao longo de sua obra foram: os retratos, das elites e a do povo comum. Essa convergência haverá de
as naturezas-mortas, as flores, o sagrado e as se dar inúmeras vezes ao longo de seu percurso de artista e
atingirá seu mais alto e complexo grau nas “paisagens
paisagens. A convergência de inúmeros elemen- imaginantes” (Coelho Frota, 1997, p. 57).
tos em suas telas tem sido apontada como 8. Diz Ferreira Gullar: “Sua fixação em Minas Gerais, con-
característica de sua pintura, convergência que correndo para a fixação de uma temática em sua obra, deu a
essa mesma obra uma qualidade adicional às qualidades pro-
alcança o mais alto e complexo grau nas paisa- priamente estéticas: a identificação com um mundo cultural
gens que Guignard pintou na maturidade e que característico, com uma realidade regional que, invertendo-
denominou imaginantes.7 se os termos da relação, continua agora com o suporte da
linguagem que a revelou pictoricamente. A pintura de
Sem dúvida, a natureza tem sido o elemento Guignard e a paisagem mineira são hoje uma coisa só,
predominante em toda sua obra pictórica. Mas, completando-se” (grifo nosso, apud Sampaio, 1977, p. 24).

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Figura 1 – Jardim Botânico, 1938

Figura 4 – Fantasia de Minas, 1955

Figura 2 – Paisagem de Itatia, 1940

Figura 5 – Paisagem imaginante, 1961

De início, as paisagens mineiras se carac-


terizavam pelo realismo ou pela veracidade
topográfica – o que se via na tela podia ser com-
provado no modelo (Figuras 1 e 2). Nos últimos
anos, manifesta-se uma vontade de despojamen-
to, com evidente intenção construtiva, e até de
Figura 3 – Paisagem imaginária, 1952 livre fantasia. A paisagem perde a materialidade,

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o desenho ágil e a pincelada livre dão lugar a de conceber a paisagem, a invenção abriu novas
uma representação pictórica que se situa a meio perspectivas, permitindo o exercício da reescri-
termo entre a figuração do real e a expressão tura da montanha e da história de Minas, perma-
do imaginário. São suas Fantasias de Minas necendo a paisagem como ponto principal de
Gerais (Figuras 3, 4, e 5). Essas “fantasias”, referência da arte mineira das últimas décadas.
de atmosfera onírica e luminosa, surgem como Com efeito, a morte de Guignard, em 1962
síntese dessa paisagem com a qual Guignard (Figura 6), não marcou o fim de uma era. Muitos
conviveu tanto tempo, a ponto de fundir num de seus alunos o substituíram, mantendo vivos
único espaço várias cidades e a cultura regional, seus ensinamentos. Muitos artistas permanecem
de fazer convergir nesses espaços fundidos os fiéis à paisagem de Minas segundo a linguagem
extremos da cultura local, do refinamento das e os esquemas mais ou menos próximos de
elites às manifestações populares. A verticali- Guignard.10
dade da composição permite a superposição, no
tempo e no espaço, de situações e eventos, da
topografia e da arquitetura já tornada memória,
acentuando desse modo o caráter fantasioso da
proposta (Sampaio, 1977, p. 25).9
É erro acreditar que a arte tem na natureza
o seu protótipo. Paul Klee já dizia que “a arte
não reproduz o visível, ela o torna visível”. Para
a arte, a natureza não passa de matéria sem
forma intrínseca. Ao contrário, a nossa idéia da
natureza conforma-se à arte, pois foi moldada
por grandes artistas (apud Tavares, 1998).
Assim, a paisagem mineira foi objeto de múltiplas
interpretações pictóricas ao longo do tempo: do
realismo das mais antigas que, com intenção de
documentar a originalidade do território,
cunharam um discurso visual próximo ao da
Figura 6 _ Auto-retrato, 1961
narrativa histórica, às leituras mais simbólicas,
cuja expressão mais acabada se encontra em
Análise simbólica das paisagens imaginá-
Guignard e seus discípulos. Suas interpretações
rias de Guignard
pictóricas se afastaram cada vez mais da
realidade topográfica que representavam, para O sentido de uma obra, literária ou pictó-
dar lugar à representação imaginária da paisa- rica, segundo Durand (1993), não se pode reduzir
gem local, fantasias muito reveladoras da natu- às estruturas psicológicas de seu autor, à sua
reza mineira que, em certo sentido, hoje consti- biografia, como ensaiaram alguns psicanalistas,
tuem a paisagem do imaginário social. Enquanto
muitos artistas permanecem fiéis à antiga forma 10. A década de 1950 marca o início de uma nova etapa
econômica para Minas Gerais e, conseqüentemente, tam-
bém para o mundo das artes e das letras. Em Juiz de Fora, o
9. Diz também Frederico Morais: “a paisagem em Guignard Núcleo Antônio Parreiras desempenha o mesmo papel re-
é mais do que tema. É personagem. Ela é” (Morais, 1974, p. novador que teve a escola Guignard em Belo Horizonte.
24). Marília Andrés Ribeiro e Fernando P. Silva (1997), em Dele participaram artistas como Inimá de Paula, Edson
alentada e cuidadosa avaliação das artes plásticas neste últi- Motta, Nívea Bracher, Roberto Gil, Roberto Vieira e Carlos
mo século em Belo Horizonte, sintetizam bem o significado Bracher, todos interessados em manipular os elementos da
da presença de Guignard em Minas Gerais: “O liberalismo paisagem. A efervescência artística continua nos anos 60 e
didático é acentuado nessa primeira fase de atuação de conta entre seus principais impulsores os irmãos Bracher.
Guignard. A paisagem, o desenho, a linguagem lírica e as Ouro Preto, por seu lado, retoma nos anos 60 seu prestígio
cores livres compõem um discurso mineiro. Apaixonado de centro cultural, que teve em Estevão Souza um sucessor
pelas montanhas e pelas cidades históricas, numa leitura de Guignard, um continuador da obra paisagística do seu
lírica do universo barroco, o artista recria a paisagem colo- mestre. Em outras cidades mineiras, vão se formando gru-
nial com igrejas e casarios que dançam em meio ao espaço pos de artistas, com uma produção que se faz hoje relevante
pictórico” (p. 194, grifo nosso). (Sampaio, 1977, p. 30).

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nem exclusivamente aos dados sociais e fundo dos demais discursos paisagísticos regio-
históricos, como defende alguma sociologia da nais, pictóricos ou não, é inegável que nos
arte, nem mesmo ao sistema mecânico de formas defrontamos com um verdadeiro mitema, no
– disposição sintática de um discurso que não sentido que Lévi-Strauss dá a esse termo (Lévi-
diz nada –, como quer certo estruturalismo. Strauss, 1968, p. 186 e ss.), um tema recorrente
Ao rejeitar as alternativas reducionistas que que atravessa o imaginário regional ao longo do
tornam a obra de arte um mero epifenômeno, tempo e de suas várias manifestações estéticas.
acessório cujo sentido se busca num ser psíquico, Se a paisagem mineira, a psicologia de seus
social ou existencial mais profundo, se faz homens e sua cultura foram intensamente figu-
necessário dar a primazia à própria obra, a sua radas pela literatura e pela pintura de várias gera-
singularidade criadora, por cima de todas as ções, o mitema alcança, na obra de Guignard,
formalizações. Evitaremos, então, partir de sua mais complexa e livre expressão visual,
qualquer ordem de estruturas preestabelecidas verdadeira síntese imagética dos inúmeros
alheias à obra, pois entendemos que é ela que olhares que contribuíram para a construção
cria estruturas e formas, sejam harmônicas ou desse imaginário regional desde os tempos colo-
contrárias e conflituosas (Garagalza, 1990, p. niais.
134). São as imagens da paisagem, de seus
Tratar-se-á de compreender a articulação homens e de sua cultura, sobrecarregadas pelos
da obra de arte com o imaginário, não como sim- investimentos figurativos de capas imaginárias
ples “visão de mundo”, mas como universo que de muitas gerações que ele sintetiza em suas
ordena e articula valores de origem mítica, paisagens imaginantes. A paisagem mineira,
pois a autêntica obra de arte, segundo ensina na suas Fantasias de Minas, constitui uma
Durand (1993), é aquela que consegue ressus- temática tão onipresente na obra madura de
citar ou restaurar o mito. Assim, o conheci- Guignard que toma valor de arquétipo, porque o
mento de uma obra requer seguir as tensões que se epifaniza na suas imagens poéticas e
estruturais que a constituem. Toda obra de arte, quase oníricas não é um discurso conceitual
especificamente a pintura, apresenta, segun- qualquer sobre a região, visão de mundo, mas
do Durand, dupla cara: é criação original, singu- uma temática que evolui para um modelo
lar (schopfung), mas também, antagonicamen- imaginário, para o arquétipo (Durand, 1993, p.
te, se situa numa rede significativa e estrutural 145-146). Efetivamente, a paisagem, descrita e
já existente (gestaltung), o que suscita a com- inventada por sua pintura, tornou-se a paisagem
preensão, a interpretação, a familiaridade (1993, regional por excelência. O objeto, revelado,
p.129-130). Portanto, só se entende a obra por construído e inventado pela atividade pictórica,
meio de uma rede de estruturas heterogêneas, acabou por transformar-se, pela sua visão
díspares e por vezes antagônicas que só ela poética e lírica do espaço, no suporte figurativo
unifica com a sua unicidade. A tensão estrutural de todo um regionalismo que se encontrava em
é a essência da obra. O conhecimento adequado vias de transformação.11
dela radica, assim, na compreensão da tensão Se história e ideologia não são suficientes
entre a originalidade criativa e a posição ocupa- para constituir uma obra pictórica, permitem
da numa rede de significação. compreender melhor seu acento temático. A
Numa primeira aproximação, é preciso obra de Guignard é muito mais. Se não podemos
resistir à tentação biográfica, de atribuir à vida reduzi-la às coordenadas sociais e culturais, do
trágica, boêmia e solitária de Guignard, por meio e momento que a viram nascer, sua obra
exemplo, o sentido de sua pintura. Quando
atentamos para a temática mais característica 11. Junto da forte renovação modernista experimentada
pela pintura local, a literatura mineira viu aparecer, por
e longamente explorada de sua obra, a paisagem exemplo, o melhor da obra de Guimarães Rosa: Grande
mineira, não há dúvida de que estamos diante sertão: veredas (1956), expressão exemplar na construção
de uma temática herdada. O tema, de recorrên- de um regionalismo transfigurado que, tomando o sertão,
espaço exterior, como sua matéria, converteu-o em espaço
cia obsessiva, é evidentemente o mais complexo interior: “o sertão é dentro da gente”, dizia Guimarães Rosa
de sua produção artística. Colocada contra o (Franco Carvalhal, 2001).

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apresenta-se como expressão de um momento Sem abandonar a idéia de que a pintura é


de grande tensão no campo da arte, protago- do plano da imitação, do redobramento realista,
nizado pelo academicismo conservador e pela o artista deu as costas ao real, como fez Cézanne
renovação modernista.12 – a quem toma por modelo em suas paisa-
Só se entende uma obra, diz Durand, gens sobre a serra do Itatiaia –, para dar-lhe
através de uma rede de estruturas heterogê- uma nova visibilidade, uma visibilidade espe-
neas, díspares e por vezes antagônicas que cífica. Guignard simplesmente substituiu o
só ela unifica com a sua unicidade. A famosa mundo visível pelo universo esquizóide de sua
compreensão é a tomada de consciência do pintura. Nele, mais que fantasia há uma total
conflito, das disjunções explicativas no seio do desconsideração pela realidade: a perspectiva
ato criador. Quando se reduzem as contradições, e a proporção, o absurdo das figuras e situações,
não se “compreende”; entretanto, há compreen- o alheamento total aparecem como autênticas
são quando se situam e admitem essas contradi- transgressões desse mundo que toma por refe-
ções no universo que suportam com a sua tensão rência. Mas a sensação de irrealidade, como se
antagônica. Assim considerada, a pintura paisa- sabe, é um dos elementos específicos da moder-
gística arquetipal de Guignard apresenta-se como nidade (Zílio, 1983, p. 11).
configuração única de um paradoxo, aquele que Mais ainda, na tensão estrutural que cons-
abriga a intensa contradição entre passado e trói entre temática social x estilo singular, sua
presente que ele presencia e vivencia sob a linguagem colorista e decorativa é poderosa-
forma da acirrada luta política que travam mente reforçada pelo regime diurno da imagem
conservadores e modernos, embate entre os (Durand, 1989). Pela irradiação de uma lumi-
mundos da tradição e da modernidade, que no nosidade que dói nos olhos, mas empresta à
terreno artístico confronta, em matéria de sensi- pintura uma vida maior – como o próprio
bilidade estética, ortodoxos e heterodoxos: a Guignard chega a declarar –, sua pintura desenha
tradição classicista, de um lado, e a heresia um espaço aberto e provoca um efeito de trans-
modernista, de outro. Certamente, a temática porte em que o olhar do espectador é levado a
paisagística tão presente em sua obra, que subir. Nas paisagens expressionistas pintadas na
acompanha as questões de seu tempo e região, fase Itatiaia, o painel é tomado de matéria
é sem dúvida parte da herança artística local, abstrata, céu e nuvens, céu tingido de azul, céus
mas a forma original de representar essa paisa- nublados, límpidos, de azuis frios, contra hori-
gem, concebida por Guignard, estabelece uma zontes profundos que criam grandes ilusões de
tensão estrutural entre a temática da paisagem espaço. Na fase mineira mais avançada, a tela
mineira, por um lado, e o estilo pictórico moder- vai esfriando, a pincelada flui, há casas cinzentas
nista, por outro. Este último, em síntese própria riscadas de terra, tons sujos, tons frios, céu vasto,
e meticulosa das correntes expressionista, aberto, que ocupa grande parte da tela, céu
cubista e surrealista, experimenta, remodela, pesado de densa matéria vaporosa, nada de azul,
recria, inventa e fantasia as imagens arquetípi- tudo cinza, com toques de roxo, de vermelho, e
cas da tradição cultural, a paisagem montanhosa, de verde sujo, produzindo o colorido exato de
o casario colonial das cidades do ouro e do um espaço desmaterializante, marcado por mon-
diamante, enfim, o cenário do passado mítico tanhas emergentes, balões e igrejas, oferecendo
dos heróis nacionais. Em suma, com imaginação uma concepção aérea da paisagem mineira. Os
e novo estilo pictórico, altera profundamente, elementos, como casas, igrejas, palmeiras, fábri-
porém não abole a ordem tradicional. cas, têm quaisquer tamanhos, emergindo da
12. Essa tensão toma a forma de uma luta propriamente
neblina sem compromisso com a perspectiva
estética entre as tendências do academicismo conservador, (Coelho Frota, 1997).
de um lado, e a renovação modernista, de outro, confronto De acordo com o esquematismo transcen-
vivenciado nos grandes centros produtores no Brasil desde
os anos 20, como São Paulo e Rio de Janeiro, e que se dental de Durand, as imagens do regime diurno
reproduz tardiamente em Belo Horizonte nos anos 40, luta estão dirigidas pela dominante postural, pelos
propriamente artística da qual Guignard foi protagonista
principal, como produtor e também diretor de uma escola
grandes esquemas ascencional e distinguidor
criada com esse fim. (diairético), e representados, entre outros, pelos

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arquétipos da luz e do ar. A conquista da posição gregação da representação do conjunto; a


vertical no homem, lembra Durand, possibilita a terceira, no geometrismo que se expressa na
faculdade de separar, de discernir a distância importância que adquire a simetria, a plani-
pela vista. Regime marcado pela distinção e ficação e a lógica formal: o espaço e o assenta-
pela análise, utiliza-se da “antítese” como retó- mento geométrico são sobrevalorizados, agigan-
rica fundamental que estabelece uma interpre- tados. A quarta, por fim, é representada pelo
tação dualista baseada no jogo de figuras e de modo de pensar que funciona por “antítese”: todo
imagens antagônicas (Garagalza, 1990, p. 74). o sentido do regime diurno do imaginário está
Não é difícil reconhecer essa estrutura da ima- pensado contra o semantismo das trevas, da
gem nas paisagens fantasiadas de Guignard: a animalidade, da queda, contra chronos, o tempo
composição fortemente vertical, inundada de luz mortal.
e ar em atmosfera carregada de nuvens, cujo A dinâmica esquizomorfa do imaginário não
caráter ascencional está simbolizado pelos parece estranha à obra pictórica que analisamos:
esguios coqueiros, os destacados campanários o retrocesso autístico e a desagregação, postos
barrocos e, principalmente, os balões coloridos de manifesto na explícita desmaterialização
de São João, eleva o olhar do espectador. A produzida pela desconsideração transgressora
linguagem antitética de sua retórica pictórica do real, bem como a sobrevalorização do espa-
manifesta-se na oposição dominante da compo- ço, expressa pela monumentalidade montanhosa
sição, a que se constitui entre a figura e o fundo e o agigantamento do espaço, são indicadores
da pintura, jogo de contraponto que travam o claros do geometrismo da estrutura. Além disso,
casario colonial, medieval, o assentamento o pensar antitético que orienta todo o sentido da
humano miniaturizado, de um lado, e o vasto composição pictórica, do diurno contra o tempo
cenário natural das cadeias montanhosas recor- mortal do passado ameaçador e tenebroso, é
tadas num agigantado espaço que domina a tela, representado, na obra de Guignard, pela arqui-
de outro. tetura colonial miniaturizada em face da cegante
A imaginação diurna adota a atitude heróica claridade do espaço agigantado e colorido que
da luta contra a “tentação” e exagera o aspecto busca dominá-lo. O regime diurno da imagem
maléfico de chronos. A ameaça da temporali- valoriza a elevação e a altura porque são formas
dade e, portanto, da morte é afrontada por esse hiperbólicas, hipérbole generalizada: o alto, o
regime com a atitude distinguidora, que extrai e grande, o veloz adquirem sempre valorizações
separa os aspectos positivos e os projeta num positivas, desvalorizando, em conseqüência, o
além atemporal (Garagalza, 1990, p. 74). Diante pequeno e o estático.
do monstro devorador, das trevas, que simbo- A estrutura antitética central que organiza
lizam o Tempo, o artista contrapõe os símbolos as “paisagens imaginantes” guignardianas,
luminosos; diante da ameaça da queda, o esque- resultado da polaridade que institui o desenho,
ma ascencional. A temporalidade combatida nada mais é que a tradição e a modernidade,
pelos símbolos luminosos, reforçados pelo representadas pelo antagonismo que travam a
esquema vertical e ascencional das paisagens, temática social da paisagem, ancorada no
não deixa dúvida de que se trata do peso do passado mítico regional, e a destacada singula-
passado colonial, representado pelo casario e ridade do estilo pictórico moderno de Guignard.
pelas igrejas barrocas gulliverizados, miniatu- Essa estrutura antitética nuclear recebe ainda o
rizados – inequívoca representação arquetípica reforço de outras polarizações que acentuam a
do regime noturno –, tudo sufocado por imenso tensão e o sentido do regime diurno da imagem,
espaço iluminado e atemporal. como a que resulta do caráter estático da
Sobre a dinâmica própria do regime diurno paisagem natural e da arquitetura, diante do ritmo
da imagem, Gilbert Durand fala de quatro e do movimento dos balões coloridos que
estruturas esquizomorfas. A primeira consiste cruzam todo o céu. A polaridade, objetiva e visual,
no retrocesso autístico, manifesto na perda de entre as formas estáticas e dinâmicas de
“contato” com a realidade; a segunda, prolonga- elementos pictóricos é robustecida pela antítese
mento lógico da anterior, manifesta-se na desa- cromática que suportam as cores frias da natu-

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Fígoli, LEONARDO H. G. A paisagem como dimensão simbólica do espaço:...

reza, do céu e das montanhas, dominantes no ção do paradoxo [...], não há mais verdadeira
painel, e as cores quentes das construções e estrutura que a que constrói, ou seja, que reúne
dos balões que integram a paisagem humana, numa obra única e viva, conflituosa, paradoxal,
de maneira que a cor, ao mesmo tempo, ordena formas e materiais díspares. (Durand, 1993,
p. 70)
e rompe o equilíbrio que finge realizar (Baudinet,
1976, p. 10). Pode-se assinalar, ainda, um último
Desaparece assim a possibilidade de uma
antagonismo estilístico entre o desenho de apa-
hipotética novidade absoluta, como criação ex-
rência primitiva, ingênuo, até infantil, e o traço
nihilo: a autêntica obra de arte é sempre
elaborado que recusa a imitação da forma visível
recriação, recorrência, ressurreição do mito.
para transcendê-la. Esse dualismo reforça o
antagonismo nuclear entre o tema e o estilo, que
organiza toda a composição.
A análise estrutural em profundidade revela Abstract: The landscape is a way of nature represen-
a dialética entre a estrutura do tema, a paisagem, tation; is a cultural image of a geographic environment.
As spatial symbol of a social imaginary, the landscape
e a estrutura dos regímenes profundos da ima- points out to a meaning, more than to the environment
gem, apoiados pelo estilo pictórico. Poder-se-ia itself. In the case studied, the literature and plastic arts,
dizer que as estruturas estéticas – tema x estilo have been essential to build the representations of regional
/ figura x fundo –, bem como as polarizações space and for the elaboration of the greatest mythical
images. This representation system has the landscape as
cromáticas se opõem às estruturas morais e dominant symbol and constitutes the basis of a regional
conceituais – passado x presente / tradição x ideology as much as the self-image of its inhabitants. In
modernidade –, resultantes da configuração de this paper, we try to for understand the meaning of the
séries antagônicas. A vontade moralizadora do modern artistic production of Alberto da Veiga Guignard.
tema, representado pela visão modernista, fica We focalize his Minas Gerais regional landscape painting,
not as a simple “cosmovision” but as a plastic universe
desmentida pelo deleite perante o mundo que articulated with the social imaginary, been simultaneously
representa, espécie de consentimento à imagem a renovator and an organizer of mythical values, because
nuclear: o passado mítico e tradicional da paisa- the genuine work of art is the one that revive or restore
gem mineira (Durand, 1993, p.144). the myth.
O dualismo ético que anima a obra pictórica, Key-words: art and imaginary; landscape, art and identity;
expresso pela fórmula “tradição e modernidade”, regional identity, landscape and simbolism.
fica contestado: o que era crítica converte-se
em aceitação. A paisagem colonial, tema conser-
vador dos discursos regionais, elemento simbó- Referências
lico fundamental do mito da mineiridade, apre-
ANDRADE, Mario. In: Diário Nacional de São
senta-se como objeto obsessivo de uma sensibi-
Paulo. 9/4/1929.
lidade moderna que, em sua dualidade, pretende
ANDRÉS RIBEIRO, Marília e SILVA, Fernando P.
ser crítica do academicismo, da velha percepção,
da. Um século de história das artes plásticas em
mas, paradoxalmente, a intenção renovadora dá Belo Horizonte. Belo Horizonte: Fundação João
lugar ao convite conciliatório da dualidade, ao Pinheiro, C/Arte, 1997.
reencontro entre tradição e modernidade, consti-
BAUDINET, Marie-José. Invisibilidad de la pintura.
tuindo assim um grande oxímoro pictórico Revue d´Esthétique, n. 1.1976-C.N.R.S. Versión
(Durand, 1993, p.144). castellana: la práctica de la pintura. Barcelona: Gus-
tavo Gilli, 1976.
Uma obra humana não propõe um sistema de
BARBOSA DE OLIVEIRA, Frederico C. Lutas no
imbricação de classes ou relações unívocas:
campo artístico em Minas (1944-1962): Guignard
quando tomo consciência da disjunção das
e o modernismo. Belo Horizonte, 2002. Monografia
formas e de seus materiais [...], quando tomo
(Graduação em Ciências Sociais) – UFMG.
consciência da obra enquanto configuração
única do díspar, então sim compreendo essa BENDER, B. Landscape: politics and perspectives.
obra, me aproximo mais a sua poética singular Oxford: Berg, 1995.
e a assimilo. A compreensão – o entendeu COELHO FROTA, Lélia. Guignard: arte e vida. Rio
Weber com profundidade – passa pela aceita- de Janeiro: Campos Gerais, 1997.

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