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UNIVERSIDADE SÃO JUDAS TADEU

“O FUNDAMENTO DA MORAL NO PENSAMENTO


DE ARTHUR SCHOPENHAUER”

Dissertação de Mestrado em Filosofia


apresentada à coordenação do curso de Pós-
Graduação Stricto Sensu da Universidade São
Judas Tadeu, como requisito para a obtenção
do título de Mestre, sob a orientação do
professor Dr. Mauricio Keinert.

SÃO PAULO
2010
Gutierrez, Leandro Cardoso
O fundamento da moral no pensamento de Arthur Schopenhauer / Leandro
Cardoso Gutierrez. - São Paulo, 2010.
xx f. ; 30 cm

Orientador: Mauricio Keinert


Dissertação (mestrado) – Universidade São Judas Tadeu, São
Paulo, 2010.

1. Schopenhauer, Arthur, 1788-1860. 2. Conduta. I. Keinert, Mauricio. II.


Universidade São Judas Tadeu, Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em
Filosofia. III. Título

Ficha catalográfica: Elizangela L. de Almeida Ribeiro - CRB 8/6878


DEDICATÓRIA

Dedico este pequeno estudo primeiramente aos meus pais e também a


Eliani, a primeira e a única, e aos professores e amigos Paulo Jonas de
Lima Piva, Mauricio Keinert e Plinio Junqueira Smith, com a
esperança de ter a honra de o mesmo estar a altura de todos eles.
Agradecimentos

Agradeço aos meus pais por sempre acreditarem em mime permanecerem ao meu lado
em todos os momentos, ruins e bons, de mais esse percurso, assim como também em toda
minha vida, demonstrando o que é um amor verdadeiro.

Em razão do acidente que sofri no dia 23/01/2010 que quase ceifou minha existência,
agradeço ao médico Dr.Marcos R. Gregorini por com excelência ter salvado minha vida e ter
se mostrado uma pessoa superior todo o tempo como também a toda a equipe médica que me
acompanhou e zelosamente cuidou de mim em minha recuperação na UTI e internação, em
especial ao enfermeiro Daniel.

Também em razão do acidente sofrido agradeço aos parentes que me ajudaram e


também a meus pais. Agradeço a minhas tias Terezinha Pereira Cardoso, Aparecida Cardoso
Santos,Bernadete Pereira Cardoso da Silva,todas mulheres de bondade inigualável. Meus tios
Joaquim Pereira Cardoso, Jorge Vicente da Silva. Meus primos Alexandre de Oliveira Santos,
Alexandra de Oliveira Santos, Márcia Rodrigues Cardoso de Souza, Marcelo Rodrigues
Cardoso, Adalberto Brito de Souza, Cecílio Giroto Junior, Heloisa Vicente Cardoso da Silva e
Adriana Vicente Cardoso da Silva. Todos me mostraram extrema lealdade, virtude
indispensável a qualquer pessoa como também a família maravilhosa que tenho.

Agradeço aos meus amigos Luciano Alves Pereira e Luis Alberto Alves Pereira pela
lealdade extrema e companheirismo.

Agradeço ao professor e amigo Alexandre Calegaro Moraes por me ajudar tanto em


2005 quando passava por um momento muito difícil.

Agradeço a meu amigo Cônego Antônio Hélio Augusto Ferreira, que dentro da fé que
possui, fé essa que não tenho e nunca terei, também se mostrou leal e me ajudou que de todas
as formas pôde.

Agradeço a minha amiga Silvia Regina Fratezi Martins pela ajuda indispensável para a
realização deste trabalho

Agradeço ao meu amigo Emerson Ferreira Rocha pelo auxilio durante as aulas e
também depois delas.

Também agradeço aos meus inimigos e traidores, alguns disfarçados de amigos, que
através de seus atos de extrema covardia, agressão e abandono em momentos difíceis,
ensinaram-me a força da sublimação do ódio que senti por eles, força essa que foi
indispensável para o término deste trabalho. Mas “o mundo dá voltas” e um dia os verei
deformados e mutilados arrastando-se pelo chão sangrando a ponto de se afogarem no próprio
sangue!

Agradeço a toda Universidade São Judas Tadeu pelos momentos felizes que me
proporcionou e em especial a coordenadoria de Pós Graduação nas pessoas de Simone, Daniel
e Selma que me ajudaram de maneira impar e atenderam muito bem minha família enquanto
estava internado.
Agradeço ao CAPES, na esperança de ter correspondido com um bom trabalho, pela
bolsa sem a qual jamais teria realizado este mestrado. Que ele continue existindo e realizando
sonhos e conseqüentemente tanta felicidade. Não foi só por mim.

Agradeço ao professor Plinio Junqueira Smith, grande intelectual e também a


professora Regina André Rebollo, também grande intelectual, pela maneira especial com a
qual me receberam e pelos ensinamentos preciosos que recebi deles.

Agradeço ao professor e orientador Mauricio Keinert, exemplo de ser humano, por ter
se mostrado não apenas um professor, mas um amigo, que me ajudou de todas as formas e
acreditou em mim e em minha capacidade jamais me abandonando, tratando-me como um
irmão. “Jamais te esquecerei Mauricio”!Carregarei comigo sua lembrança para onde eu for.

Agradeço de maneira especial ao professor Paulo Jonas de Lima Piva, por ter me
recebido na Universidade São Judas Tadeu de forma tão carinhosa, por ter acreditado em
mim, me encorajado nos momentos difíceis, ter me dado todas as dicas referentes ao mundo
acadêmico e ter se mostrado sempre um homem de extremo caráter e bondade, não só
comigo, mas com todos os alunos. Dificilmente encontrarei em minha vida, que como a de
todos é curta, outra pessoa que como ele seja tão grandiosa. Tudo isso faz dele um homem
superior. A homens como ele deveria pertencer o domínio da terra! Sem ele jamais teria
conseguido, jamais teria chegado até aqui. A ele devo praticamente tudo e enquanto eu viver
carregarei em meu peito essa gratidão e seu rosto jamais desaparecerá da minha memória.
Quem sabe um dia o acaso me dará a oportunidade extremamente feliz de agradecê-lo da
maneira que ele merece, já que essas simples palavras não podem fazer isso. Também espero
ter um dia a felicidade de poder ser considerado por ele um irmão, coisa que seria uma das
maiores honras da minha vida. A ele meu eterno “muito obrigado”.
Quantum of solace

Sou capaz da maior glória de todas que é você!


Sou capaz dos seus lábios, olhos e cabelos.
Sou capaz do seu rosto inteiro.
Do seu corpo inteiro.
Do seu gozo de viver feliz.

Em você, por maiores que sejam as batalhas,


Descanso como nunca,
Descubro o que sempre quis e sabia que queria.
Encontro as ternuras perdidas da minha vida,
E faço a lua e as estrelas parecerem mais bonitas do que são: eu as ouço.

Mudo de palavras e digo que tu és minha maior vitória.


Tu és o sonho que reclama vida por mérito de beleza sem fim.
Tu és a sombra onde descanso com frutos frios e calmantes.
Lugar onde ninguém pode chegar,
Minha maior quantidade de consolo.

“Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa


miséria”. (Machado de Assis, Memórias póstumas de Brás Cubas)
“Perfeição é a morte”. (Olavo Bilac, Tarde)
Resumo

O presente trabalho possui a finalidade de expor e investigar profundamente o


fundamento da moral do filosofo Arthur Schopenhauer, assim como também pontos
relevantes de toda sua filosofia, como, por exemplo, as questões da representação e da
metafísica da vontade, e também sua crítica a moral kantiana. Assim essa exposição não
conterá apenas o pensamento que se encontra em sua obra “Sobre o fundamento da moral”,
mas também o de sua obra capital “O mundo como vontade e representação”. Em relação a
sua obra “Sobre o fundamento da moral” pretendemos demonstrar a importância da
experiência e do sofrimento humano como meios de encontrar o primeiro princípio da moral,
isto é, o fundamento moral que para ele trata-se da compaixão, que consequentemente deve
estar ligada a ambas, segundo o próprio autor, não encontradas na fundamentação da moral
kantiana, e que possuem em todo o pensamento de Schopenhauer extrema relevância.Depois
da investigação do fundamento da moral apresentado pelo autor nos permitirá, através, da
explicação metafísica desse mesmo fundamento, penetrarmos na filosofia do autor em seus
pontos mais obscuros que nos levarão até uma tentativa de elucidação da questão proposta:
“compaixão e ilusão de individualidade não podem coexistir”, questão essa diretamente ligada
como já dissemos a sua filosofia e por isso mesmo de extrema importância.

Palavras- chave: 1. Fundamento da moral. 2. Schopenhauer. 3. Kant. 4. Ética.


5. Pessimismo. 6. Compaixão. 7. Vontade.
Abstract

This essay has as main goal deeply expose and investigate philosopher Arthur
Schopenhauer’s moral foundation, as well as relevant points of his whole philosophy, for
instance, representation and metaphysic willing issues, as also his kantiana moral criticism.
Therefore, this exposition will not just contain the thought found is his work “About moral
foundation”, but also from his capital work “the world as willingness and representation”.
According to his work “About moral foundation” we intend to show the importance of the
experience and human suffering as tools used to find the first moral principle, the moral
principle that for him is about compassion, that consequently might be connected to both not
found at Kantiana’s moral foundation according to the author, and that can be found
extremely relevance at the whole Schopenhauer thought.
After the moral foundation investigation showed by the author, it will be possible
through a metaphysics explanation from the same foundation, to get into the author's
philosophy darkest points that will lead us to an attempt to elucidate the question
posed: "illusion of compassion and individualism can not exist", an issue directly linked as we
have said his philosophy and therefore of the most importance.

Key word: 1. Foundation of morals. 2. Schopenhauer. 3. Kant. 4. Ethic. 5. Pessimism.


6. Compassion. 7. Will.
ÍNDICE
Introdução................................................................................................................... 1
1. Crítica de Schopenhauer a moral kantiana ......................................................... 12
1.2. Negando a metafísica do povo............................................................................ 21
1.3. Crítica à forma imperativa da moral kantiana................................................. 25
1.4. Crítica à admissão dos deveres a nós próprios.................................................. 34
1.5.Crítica ao fundamento da ética kantiana ........................................................... 39
1.6. Crítica à lei moral kantiana ............................................................................... 45
1.7. Crítica ao princípio máximo da ética kantiana e a suas formas derivadas...... 50
2. Da compaixão como único e verdadeiro fundamento da moral .......................... 67
2.1 A visão cética sobre a moral................................................................................ 72
2.2 Provando a existência da compaixão e demonstrando-a como único e
verdadeiro fundamento da moral............................................................................. 78
2.2.1 Das virtudes da justiça e da caridade .............................................................. 84
2.2.2 Da real existência da compaixão ...................................................................... 88
2.3 A Representação e a Vontade ............................................................................. 95
2.4 A Explicação metafísica da compaixão............................................................. 106
Conclusão ................................................................................................................ 115
1

Introdução

No ano de 1837, a Sociedade Real Dinamarquesa de Ciências de Copenhague,


propõe um concurso, no qual seus concorrentes deveriam apresentar uma investigação
sobre a seguinte questão:

“Tendo em vista que a idéia originária da moralidade ou de seu conceito


principal da lei moral suprema surge como uma necessidade que lhe é
própria, embora não seja de modo alguma lógica, não só na ciência que tem
por objetivo expor o conhecimento do ético, mas também na vida real, na
qual ela se apresenta em parte no juízo da consciência sobre nossas próprias
ações, em parte em nossos juízos morais, sobre o comportamento dos outros,
e tendo em vista, além disso, que vários conceitos morais principais, nascidos
daquela idéia e dela inseparáveis, como, por exemplo, o conceito de dever e o
da imputabilidade, fazem-se valer com a mesma necessidade e no mesmo
âmbito – e, ainda, que nos caminhos que segue a pesquisa filosófica de nosso
tempo parece muito importante investigar de novo este objeto – quer a
Sociedade que se reflita e se trate cuidadosamente da seguinte questão:
A fonte e o fundamento da filosofia moral devem ser buscados numa
idéia de moralidade contida na consciência imediata e em outras noções
fundamentais que dela derivam ou em outro princípio do
1
conhecimento?”

Arthur Schopenhauer propõe-se não só a responder a questão, mas, também, a


esclarecer todos os enigmas que envolvem a questão moral. Não poderia ter intuito
diferente, um filósofo que pensava ter a Filosofia a missão de decifrar o mundo e o seu
significado. Schopenhauer é adepto da filosofia kantiana na qual o mundo é fenômeno e
“coisa em si”, mas em seu pensamento não há a renúncia da busca pelo conhecimento
da “coisa em si”, considerado por Kant inatingível por ser algo transcendente. Assim, a
metafísica deve ser para Schopenhauer imanente e através da experiência não só pode
como deve desvendar aquilo que o mundo tem de oculto e que existe de maneira
impassível. Esse oculto, para ele, é a vontade. Tal era seu desejo ao escrever sua obra
prima: O Mundo como vontade e como representação. Nesse livro Schopenhauer

1
Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo:
2001. p.3
2

concentrou todas as suas forças e conhecimento. Para ele, os grandes mistérios do


mundo estavam ali esclarecidos. Schopenhauer tenta em toda a sua filosofia desvendar o
enigma do mundo, sua verdadeira essência, aquilo que ele realmente é sem nenhuma
alegoria ou religiosidade – a filosofia deve permanecer cosmologia e não teologia –, as
causas do sofrimento humano e, consequentemente, encontrar um significado para a
existência do homem, a sua finalidade; dar a ele uma meta a ser atingida que o levaria à
libertação da dor, a chamada “salvação”, já que para ele, o mundo é e sempre será um
sofrimento infinito. Assim compreende-se que não apenas decifrar o mundo, mas
também encontrar a redenção da humanidade é o seu interesse, o que faz de sua
metafísica, uma metafísica que culmina sem nenhuma dúvida na ética.
Tal pensamento extremamente pessimista, de que o homem é um ser sofredor
em meio a um inferno ilimitado que é o mundo e que o mesmo deve buscar o meio de
sua “salvação” também se alicerça em sua metafísica da vontade, fruto de sua busca
incansável pela verdade da vida como acima explicamos e tal busca só é possível pela
metafísica que, para o nosso autor, é a única capaz de responder perguntas como “Qual
o motivo do sofrimento?”, “Qual o sentido da vida?”, “O que é o mundo?”. Sem a
metafísica jamais essas perguntas poderiam ser esclarecidas por completo. Assim, o
filósofo que realmente estiver comprometimento com a verdade, jamais poderá
esquecer-se da metafísica ao questionar qualquer coisa. Surge assim o primeiro
problema apontado para a consecução da investigação e seu estudo sobre o tema, pois,
segundo nosso pensador, a Sociedade Real Dinamarquesa de Ciências de Copenhague
exige que o ensaio apresente o fundamento da ética por si só, sem o apoio de nenhum
sistema filosófico, ou seja, sem nenhuma metafísica, o que para Schopenhauer é algo
quase impossível de se fazer dada a importância que, como vimos, ele atribui a
metafísica.2
Mas, mesmo assim, como veremos, a metafísica será de grande importância para
Schopenhauer tentar desvendar, depois de apresentá-lo, a essência daquele que seria o
único fundamento da moral realmente válido. Em seu ensaio intitulado Sobre o
fundamento da moral, que será o centro das nossas investigações e com a qual
concorreu ao prêmio oferecido pela Sociedade Real Dinamarquesa de Ciências de

2
“Acrescentando-se que a Sociedade Real exige que o fundamento da ética seja exposto separadamente e por si só,
numa monografia curta, fora, portanto de sua conexão com o sistema de qualquer filosofia que seja, quer dizer, da
metafísica propriamente dita, isso deve não só dificultar a sua realização, mas até torná-la incompleta”- Schopenhauer,
A.Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes: São Paulo 2001. P7
3

Copenhague, Schopenhauer apresenta toda a sua investigação sobre o tema. Esse ensaio
foi publicado posteriormente, mais precisamente em 1841, juntamente com outro ensaio
intitulado Sobre a Liberdade da Vontade (1839) sob o título de Os Dois Problemas
Fundamentais da Ética, o último, diferentemente do primeiro, foi premiado pela
Sociedade Norueguesa de Ciências de Dronthein que promoveu o concurso. Desde o
inicio até o fim do ensaio Sobre o fundamento da moral, percebe-se sua intenção, não
apenas de responder a questão proposta e decifrar os mistérios da moral, mas também,
de atacar ferozmente alguns pensadores de sua época, os “sofistas” de seu tempo, como
Fichte, Schelling e, principalmente Hegel, o que o faz “ter-se identificado com
Sócrates”3 na luta contra os sofistas que não possuíam nenhum comprometimento com a
verdade. E também de demonstrar que, com exceção das palavras de Rousseau, tudo
aquilo que até então havia sido dito sobre a moral em toda a história da filosofia não era
suficiente para apresentar algo realmente satisfatório em relação à questão moral.
O ensaio de Schopenhauer sobre a moral possui em si quase todo seu
pensamento. Impossível seria entendê-lo sem conhecer suas outras obras e também
algumas características principais de sua filosofia, na qual, a moral e a vida ética, como
já vimos, possuem extrema importância. Sobre essa importância comenta David E.
Cartwright: em seu texto: “A filosofia de Schopenhauer foi motivada desde o seu inicio
até o seu final por preocupações morais” 4, apesar de ele ser mais conhecido por seu
profundo pessimismo vindo de sua metafísica da vontade.
No pensamento de Schopenhauer a moral em sentido estrito refere-se às ações
éticas, a compaixão e outra na ética em sentido amplo que nada mais é do que a negação
da vontade e esta por sua vez leva em consideração a metafísica da vontade e
representação apesar de em um primeiro momento parecerem coisas totalmente
diferentes, a primeira, de alguma forma conduz a segunda.
O exame dos textos necessários para a compreensão da fundamentação moral de
Schopenhauer será feito no segundo capítulo desse trabalho de forma pormenorizada5.
Assim, nessa parte introdutória de nossa dissertação, estamos apenas apresentando a
forma com a qual Schopenhauer trata do assunto em exame e também de que maneira o

3
Roger, Alain In: Schopenhauer, A.Sobre o fundamento da moral trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes,
São Paulo 2001: p.. 15
4
Cartwright, E. David. “Schopenhauer`s Narrower Sense of Morality”. In: The Cambridge Companion to
Schopenhauer. (Edited by Christopher Janaway). Cambridge: Cambridge University Press, 1999.p. 252
5
Nos referimos a obra capital do autor O mundo como vontade e como representação, onde é apresentado os dois lado do
mundo, fenômeno e “coisa em si” e também a doutrina da salvação através da negação da vontade.
4

apresentaremos. Passemos então adiante, e nos empenhemos em conhecer os pontos


principais de seu ensaio sobre o fundamento da moral e como ele será por nós
apresentado e investigado. Schopenhauer inicia seu trabalho examinando
primeiramente a própria questão proposta pela Sociedade Real Dinamarquesa de
Ciências de Copenhague e traça a forma com a qual tal questão deve e vai ser estudada
por ele. Primeiramente, como já citamos, a ausência da metafísica será o primeiro
problema a ser resolvido pelo pensador. Sem a metafísica a explicação do fenômeno
ético irá se restringir apenas ao campo psicológico como o próprio autor afirma6, mas
mesmo assim, como já mencionado, indo além do que foi proposto pela Sociedade Real
Dinamarquesa de Ciências de Copenhague, ao final do seu ensaio, como veremos ao
final do segundo capítulo desse trabalho, ele retoma a metafísica e com ela tentará
encontrar a origem do seu fundamento da moral que dará as bases para a interpretação
da questão proposta por nós e que será apresentada mais adiante ainda nessa introdução.
Juntamente com a ausência da metafísica, ainda será apontado por Schopenhauer
outro problema a ser superado por ele e que também existiria pela forma com a qual a
Sociedade Real Dinamarquesa de Ciências de Copenhague apresenta a questão a ser
solucionada: “Além disso, a pesquisa teórica do fundamento da moral subjaz a peculiar
desvantagem de poder ser tomada pelo minar do próprio fundamento, que poderia
acarretar o desmoronamento do todo edifício”7. Assim, o filósofo que tentar responder à
questão proposta deve se esforçar ao máximo para que nada que venha do exterior possa
penetrar-lhe a alma no momento em que se debruçar sobre a questão e estar atento em
suas observações, pois, em um tema como esse, é difícil manter-se distante da
“investida febril das santas convicções do coração” 8.
Dessa forma, com a ausência da metafísica, Schopenhauer terá de partir dos
próprios fatos, da experiência interna ou externa dos homens e neles tentar encontrar a
solução para a questão proposta: “Em contrapartida, com a separação, posta nessa tarefa
como necessária, entre a ética e a metafísica, nada mais resta senão o procedimento
analítico, que parte dos fatos, quer da experiência externa, quer da consciência” 9.

6
Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo:
2001.p.8-9
7
Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo:
2001. p..6
8
Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo:
2001. p..6
9
Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo:
2001. p.8
5

Assim, tomando o máximo de cuidado para não se influenciar por nada que possa viciar

a visão da verdadeira essência da moral, como acima vimos, Schopenhauer apresentará


aquilo que ele considera o verdadeiro fundamento da moral: a compaixão. Somente ela,
segundo o autor, pode dar origem a um ato que realmente não possua nenhuma forma de
interesse egoísta, característica essa que, como veremos, define a verdadeira ação
genuinamente moral. Mas antes de chegar até a apresentação desse fundamento,
Schopenhauer dedicará metade de seu trabalho a uma crítica exaustiva daquela que seria
a última e mais bem sucedida, apesar de em sua visão estar errada, tentativa de explicar
e fundamentar a moral antes dele: a fundamentação moral kantiana contida no livro
Fundamentação da metafísica dos costumes.
Para Schopenhauer, Kant foi o primeiro filósofo a dar uma concepção realmente
procedente à moral. Kant afirma que o ato verdadeiramente moral é aquele que não
possui nenhum interesse pessoal seja ele qual for. O genuíno ato moral não possui em
nenhum momento egoísmo e tal afirmação encontra-se no livro de Kant acima citado.
Para Schopenhauer esse, juntamente com a separação entre moral e Eudemonismo10,
que na realidade é apenas aparente na moral kantiana, seria o grande mérito de toda
filosofia moral de Kant. Mas essa mesma concepção da moral, a única procedente até
então, encontrar-se-ia totalmente destituída de uma fundamentação filosófica sólida.
Kant teria encontrado o verdadeiro conceito da moral, mas se perdido completamente
em raciocínios improcedentes e vazios quando passou a tentar fundamentá-lo. E é
exatamente sobre essa fundamentação, considerada por Schopenhauer improcedente,
obscura e totalmente sem sentido, que recairá sua crítica dura e muitas vezes sarcástica.
Mas também não podemos deixar de citar que a crítica de Schopenhauer à moral
kantiana possui argumentos de sua própria filosofia onde a razão é mero instrumento da
vontade, e como tal, não poderia ser livre a ponto de criar uma moral como Kant
pretendia11, ou seja, uma moral baseada em uma razão prática. Aliás, importante
ressaltar que, como veremos no primeiro capítulo desse trabalho, Schopenhauer irá
afirmar em O mundo como vontade e como representação, que a chamada “razão

10
Estudaremos no primeiro capítulo de maneira mais profunda a crítica de Schopenhauer ao eudemonismo e
entenderemos porque o mesmo, segundo o autor, não pode estar em nenhum momento ligado ao ato moral genuíno.
11
Esse ponto é de extrema importância não só para a compreensão da crítica de Schopenhauer a moral kantiana, mas
também para a compreensão de toda a filosofia Schopenhaueriana. Estudaremos essa questão, que pode ser encontrada
no quarto livro de O mundo como vontade e como representação, no segundo capítulo desse trabalho e exporemos como a
razão, objetivação da vontade está a serviço dela.
6

prática”, quando o assunto é a ética, poderia apenas levar o homem ao Eudemonismo e


o melhor exemplo dessa afirmação seriam os pensamentos e regras sobre a vida dos
estóicos, mas deixemos esse ponto para ser explicado no momento oportuno.
Voltando à critica à moral kantiana, eis as palavras de Schopenhauer que,
desdenhando quase tudo aquilo que havia sido dito sobre a moral até Kant, afirma a
necessidade de criticar a moral daquele do qual se considerava sucessor filosófico:
“Kant deu a essa ciência uma fundamentação que tinha reais vantagens diante das
anteriores e, em parte, porque é a última mais significativa que aconteceu na ética”12.
Mas esse não é o único motivo que faz com que Schopenhauer tenha de criticar a moral
13
kantiana. Como ele mesmo diz “Os contrários se esclarecem” e a sua fundamentação
14
da moral “Nos pontos essenciais, opõe-se diametralmente à de Kant” . Dificilmente
não se entenderá quando chegarmos ao segundo capítulo desse trabalho onde a
fundamentação da moral de Schopenhauer for apresentada, o quanto ela realmente, em
seus pontos essenciais, é totalmente oposta a moral de Kant e, por isso mesmo, a
necessidade de mostrá-la destituída de fundamento. Segundo David E. Cartwright
Schopenhauer “Em vez de criticar Kant com a intenção de corrigir ou melhorar as
perspectivas Kantianas em uma visão filosófica teórica de Kant, Schopenhauer almeja
demolir a ética de Kant, para poder abrir terreno à formação e erguimento de sua própria
fundamentação moral”15. Assim, seguindo o “conselho” do autor, antes de examinarmos
a sua fundamentação da moral logo no primeiro capítulo, nós o dedicaremos ao estudo
da crítica feita por ele à moral kantiana cuja essência se encontra no livro
Fundamentação da metafísica dos costumes. Para Schopenhauer essa obra contém o
fundamento da ética kantiana. É nela que estão os pontos essenciais de seu pensamento
moral que serão desenvolvidos de forma mais detalhada na Crítica da razão prática. E
também é nela que se encontra um grande problema da ética: “Há mais de meio século
ela repousa no confortável encosto que Kant ajeitou sob ela: O imperativo categórico da

12
Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo:
2001. P. 15
13
Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo:
2001. p.15
14
Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo:
2001. P..15
15
Cartwrigh, E. David. “Schopenhauer`s Narrower Sense of Morality”. In: The Cambridge Companion to
Schopenhauer. (Edited by Christopher Janaway). Cambridge: Cambridge University Press, 1999.p. 253
7

razão prática” 16 que também é chamado de “lei moral”. Aos lermos as observações
de Schopenhauer a esse respeito, notamos que o pensador não apenas discorda da ética
kantiana, mas vê em seu imperativo categórico um mal que precisa ser retirado da ética,
algo que atrapalha as investigações sobre a moral e abre espaço pra tantos outros
devaneios. Schopenhauer nos chama a atenção que o imperativo categórico foi usado de
maneira irrefletida por muitos escritores sem o necessário aprofundamento do seu
conteúdo. A partir dele criou-se uma “Prolixa e confusa teia de frases com a qual
entendem tornar ininteligíveis as mais claras e simples relações da vida – sem jamais se
perguntarem em tal feito se, porventura, uma ‘lei moral’ está realmente escrita na nossa
cabeça, peito ou coração como confortante código moral” 17.
Sem nenhum exame mais preciso a ética kantiana foi aceita por todos e tida
como base para as mais diversas criações de sistemas éticos que, por mais que se
esforçassem em ser originais, tinham como fundamento oculto o imperativo categórico
kantiano. Assim combater a ética kantiana não é apenas um meio de Schopenhauer
começar a explicar sua ética, como dissemos, mas também de purificar o pensamento
sobre a moralidade de um erro ainda não percebido. Sem nenhuma modéstia
Schopenhauer coloca-se como aquele que irá desfazer esse terrível engano e colocar a
ética mais uma vez em “Total perplexidade”18 na qual ela deve permanecer até que ele
demonstre o verdadeiro fundamento da ética que, de uma vez por todas, destruirá a ética
kantiana. Já o livro Crítica da razão prática, também de Kant e que também investiga a
questão moral, será avaliado apenas algumas vezes por Schopenhauer que terá o intuito
de usá-lo apenas para demonstrar ainda mais a inconsistência da moral kantiana contida
no já citado Fundamentação da metafísica dos costumes. A crítica de Schopenhauer à
moral kantiana recai como dito, em sua fundamentação que é o imperativo categórico.
A idéia kantiana de que o fundamento da moral seja uma lei, um dever, uma espécie de
regra que pode ser encontrada na mente humana sem necessitar de nenhum elemento
empírico, é o absurdo que Schopenhauer quer retirar da moral. Essas afirmações de
Kant sobre a moral a tornam para Schopenhauer abstratas e mesmo em sua fidelidade ao
autor da Crítica da razão pura, devem, como já dito, serem retiradas da moral. Assim, a

16
Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo:
2001. p.15-16

17
Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo:
2001. P.16
18
Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo:
2001. p.16
8

ausência de qualquer experiência faz com que a moral kantiana seja algo sem nenhum
sentido. Segundo Maria Lucia M. O. Cacciola, a experiência possui um papel
fundamental no pensamento de Schopenhauer. Como já visto é através da experiência
19
que Schopenhauer irá concluir a vontade como a “coisa em si” . A filosofia de
Schopenhauer parte sempre do sensível, do empírico, é através dele que a verdade, a
decifração do mundo pode ser alcançada. Tal método também se aplicaria a questão
moral que faz parte, evidentemente, desse mundo a ser decifrado, assim, tudo aquilo que
é considerado pelo autor como abstrato e que pretende fundamentar a ética deve ser
demolido. Maria Lúcia M. O. Cacciola comenta em seu livro Schopenhauer e a questão
do dogmatismo, que a fidelidade de Schopenhauer para com a filosofia kantiana e a
importância que a experiência possui para ele baseada nessa mesma fidelidade: “Sua
declaração de fidelidade a Kant está, pois, ligada ao que ele vê como sendo o cerne da
filosofia crítica: a recusa de toda e qualquer transcendência e a firme resolução de
manter-se no domínio da experiência, cuja totalidade é o mundo” 20.
Assim, a tentativa de Kant em apresentar uma moral que em nenhum momento
necessita de qualquer tipo de experiência, ou seja, está totalmente desligada de qualquer
elemento empírico para existir e, ainda mais que isso, só é verdadeira por nele não estar
fundamentada, excluindo assim, toda e qualquer ligação com o mundo objetivo, e isso
inclui os homens, é algo abstrato demais: ela não teria base sólida alguma para se apoiar
sendo apenas uma “petição de princípios”, palavras que pairam no ar, uma total
contradição com aquilo que o próprio Kant apresentou em sua obra prima A crítica da
razão pura. A única forma de imaginar um dever como guia da moral seria com o
auxílio da idéia de punição e recompensa que fazem do ato moral com base neles
praticado uma obrigação a um comando e não um ato espontâneo e genuíno, ou seja,
sem nenhum tipo de interesse egoísta por parte de quem o pratica. Tal visão da moral
possui suas raízes em uma lei divina, ou seja, na teologia tanto rejeitada por
Schopenhauer: “Cada dever é também necessariamente condicionado pelo castigo ou
pela recompensa e assim, para falar a linguagem de Kant, essencial e inevitavelmente
hipotético e jamais, como ele afirmou, categórico” 21.

19
No segundo capítulo de nosso trabalho estudaremos O mundo como vontade e como representação como já dissemos e
explicaremos o processo através do qual, através da experiência Schopenhauer conclui, a partir do nosso próprio corpo,
o “em si” como sendo a vontade.

20
Cacciola, Maria Lucia, Schopenhauer e a questão do dogmatismo, FAPESP, São Paulo, 1994. P. 171
21
Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo:
2001. p.26 - 27
9

Mais a frente, quando criticará de forma específica o fundamento da moral


kantiana, Schopenhauer dirá:
“Portanto ele não fundamenta – o que peço que se note bem – seu princípio
moral em qualquer fato da consciência que seja demonstrável, algo como
uma disposição interna. Menos ainda em qualquer relação objetiva das coisas
no mundo exterior. Não! Isto seria uma fundamentação empírica. Mas sim
conceitos puros “a priori”, quer dizer, conceitos que não têm nenhum
conteúdo da experiência externa ou interna, que são, portanto, puras cascas
sem caroço, é que devem ser o fundamento da moral “22.
Importante salientar que a moral de Schopenhauer tem como ponto de partida o
sofrimento humano que, como dissemos, é infinito nesse mundo. Uma moral como a de
Kant que, como veremos mais à frente, não considera primeiramente o homem em todas
as suas dores e aflições não merece, pelo menos de um filósofo como Schopenhauer que
possui um método onde a experiência é imprescindível nenhum espaço para qualquer
tipo de aprovação: a moral deve estar voltada ao homem e ao seu sofrimento. Eis mais
um traço marcante do pensamento moral schopenhaueriano que o fará tentar derrubar a
moral kantiana.
Como veremos no primeiro capítulo, onde apresentaremos a crítica de
Schopenhauer a moral de Kant de forma pormenorizada, essa “moral do dever”, longe
de ser capaz de fundamentar o ato genuinamente moral, ou seja, aquele praticado sem
nenhum interesse pessoal é, na realidade, como vimos acima na visão de Schopenhauer,
nada mais que puro egoísmo não podendo conter em si uma intenção destituída de
interesse pessoal. Assim, um dever que em nada se apóia, jamais poderia fundamentar a
moral de qualquer maneira. Frente a esse dever, a única coisa que Schopenhauer
consegue enxergar é a moral teológica onde se busca ser recompensado ou poupado de
algum castigo qualquer, que através dele, teria sido recolocada na Filosofia por Kant,
sendo esse seu verdadeiro intuito. Dessa forma, segundo Schopenhauer, Kant teria
entrado na mais profunda contradição ao tentar tornar a teologia aceitável para a
Filosofia, ou, pelo menos, se voltado a ela de maneira inconsciente, coisa que, ele
mesmo, já havia impossibilitado em sua Crítica da razão pura mais precisamente na
Dialética Transcendental.

22
Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo:
2001. p.35
10

Depois, no segundo capítulo, apresentaremos a fundamentação moral do próprio


Schopenhauer que, para sua melhor compreensão, deverá ser acompanhada com um
estudo dos dois principais pontos de toda a filosofia Schopenhaueriana: a vontade como
sendo a “coisa em si” da filosofia kantiana e também o mundo como representação
dessa vontade, ambos estudados exaustivamente pelo autor em sua obra capital: O
mundo como vontade e como representação. Interessante citar comentários do próprio
Schopenhauer e de um de seus comentadores sobre essas duas questões para a melhor
compreensão das mesmas nesse momento da nossa introdução, lembrando que esses
dois pontos serão examinados de maneira mais profunda no segundo capítulo deste
trabalho, como já explicado, o que faz das citações abaixo pequenas explicações, um
simples resumo daquilo que será apresentado mais a frente em sua completude.
“Sobre a vontade como sendo a “coisa em si” kantiana e sobre a representação
como fruto dessa vontade Schopenhauer afirma: “Essa COISA EM SI ( queremos
conservar a expressão kantiana como formula definitiva), que enquanto tal, jamais é
objeto, porque todo objeto é apenas seu fenômeno e não ela mesma, se pudesse ser
pensada objetivamente, teria de emprestar nome e conceito de um objeto, de algo dado
de certa forma objetivamente, por conseqüência , de um de seus fenômenos”23. José
Thomaz Brum confirma tal afirmação em seu livro O pessimismo e suas vontades:
“Essa força obscura vital é o aspecto do mundo que não pode ser reduzido à
representação, é o mundo como coisa em si, o mundo enquanto vontade”24.
Assim, neste segundo capítulo, com a interpretação que Schopenhauer dá ao
mundo, explicada de forma detalhada, e que acima foram apresentadas apenas de
maneira sucinta, e com o estudo pormenorizado do seu fundamento da moral,
apresentaremos aquela que é nossa interpretação sobre esse fundamento: a compaixão e
a “ilusão da individualidade”, que nada mais é do que fenômeno e por isso mesmo
ilusão, Véu de Maia, não podem coexistir.25 Na compaixão não existe espaço para a
individualidade, pois nela o agente do ato moral volta-se para a “coisa em si”. O ato
moral genuíno, isto é, aquele motivado pela compaixão exige que a individualidade
desapareça por completo. É nele que, como bem diz José Tomaz Brum, surge o

23
Schopenhauer, A.O mundo como vontade e como representação, trad. Jair Barboza, UNESP, 2005 São Paulo:p.169
24
Brum Thomaz José, O pessimismo e suas vontades, Rocco, Rio de Janeiro 1998. p.23
25
A idéia de individualidade como ilusão e do mundo como “Véu de Maia” serão melhor explicadas por nós no
segundo capítulo deste trabalho ao estudarmos o mundo como representação cuja explicação está contida nos livros I e
III de O mundo como vontade e como representação.
11

26
“Mistério da unidade dos seres” , única coisa capaz de explicar o fenômeno moral
genuíno. Apenas fora do fenômeno a ação genuinamente moral é possível e, por isso
mesmo, aos olhos daquele que permanece no fenômeno quase incompreensível.
Para chegarmos a essa conclusão é necessário um exame minucioso do terceiro
livro do ensaio Sobre o fundamento da moral, onde Schopenhauer apresentará a sua
explicação metafísica da compaixão, indo além do que foi proposto pela Sociedade Real
Dinamarquesa Ciências de Copenhague, com o intuito não só de completar sua análise
sobre o tema proposto, mas também, de decifrar o seu próprio fundamento da moral que
ele mesmo em alguns momentos define como algo misterioso.
Agora nos preparemos então para conhecermos aqueles que seriam, segundo
Schopenhauer, os grandes erros da moral kantiana, tão aceita por todos, e apontados
com tanto prazer por Schopenhauer, como ele mesmo nos diz em seu ensaio Sobre o
fundamento da moral:

“Confesso o prazer especial com que ponho mãos à obra agora para retirar da
moral seu amplo encosto – imperativo categórico – e declaro francamente
minha intenção de demonstrar que a Razão Prática e o imperativo categórico
de Kant são suposições injustificadas, infundadas e inventadas para provar
que também a ética de Kant carece de um fundamento sólido. Com isso, a
moral é de novo entregue à sua total perplexidade, na qual deve permanecer
antes que eu me ponha a expor o princípio moral verdadeiro da natureza
humana, fundado em nossa essência e indubitavelmente eficaz”27.

Também devemos salientar que o que apresentaremos em seguida é a crítica de


Schopenhauer a moral kantiana e não uma investigação profunda sobre a mesma.
Estudaremos assim, a interpretação de Schopenhauer sobre a moral kantiana tão
somente, citando e explicando a moral kantiana em seus pontos necessários para o
melhor entendimento de tal crítica.

26
Brum Thomaz José, O pessimismo e suas vontades, Rocco, Rio de Janeiro: 1998. p.47

27
Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo:
2001. p. 16
12

1. Crítica de Schopenhauer a moral kantiana

É no segundo livro do ensaio Sobre o fundamento da moral que Schopenhauer


inicia sua crítica ao fundamento da moral kantiana. Como vimos na introdução deste
trabalho, Schopenhauer considera a concepção kantiana do ato moral a melhor até então
formulada, isto é, a concepção de que o único ato moral verdadeiro é aquele que se
apresenta totalmente destituído de todo e qualquer interesse pessoal por parte de quem o
pratica. Mas essa seria a única contribuição verdadeiramente substancial dada por Kant
a ética, já que o mesmo soube, segundo Schopenhauer, conceituá-la de forma ímpar, ao
mesmo tempo em que não soube fundamentá-la. Portanto, a crítica que recai sobre a
moral kantiana não está baseada em seu conceito e sim em sua fundamentação e
também, como não poderia deixar de ser, na própria filosofia de Schopenhauer que de
modo algum poderia aceitar uma razão prática capaz de estabelecer padrões morais de
conduta. Nessa parte da crítica que oferece uma “visão geral” sobre o assunto,
destacam-se três pontos interessantes que não podem ser deixados sem exame. O
primeiro deles são os motivos pelos quais Schopenhauer escolhe a Fundamentação da
metafísica dos costumes para realizar sua crítica à moral kantiana, o segundo é a sua
análise do Eudemonismo que, apenas aparentemente, Kant teria retirado da moral, e o
terceiro diz respeito a visão que nosso autor tem de que Kant quis, ao conceber a sua
moralidade, dar-lhe bases teológicas, mesmo que ocultas, de maneira consciente ou não,
que, como veremos pormenorizadamente, Schopenhauer recusa com veemência, assim
como recusa qualquer forma de visão teológica do mundo. Dessa forma, antes de
entrarmos na primeira parte da crítica à moral kantiana, que se refere a sua forma
imperativa, na qual Schopenhauer encontrará vários pontos que irão minar a moral
kantiana no seu modo de pensar, estudaremos esses pontos relevantes e como eles são
essenciais para a compreensão de todo o restante da crítica que recai sobre a moral de
Kant através de duras e irônicas palavras do nosso pensador.
Já na introdução encontramos alguns dos motivos pelos quais Schopenhauer
quer dedicar-se a crítica da moral kantiana a partir da Fundamentação da metafísica dos
costumes. Para ele a sua crítica conduziria o leitor mais facilmente a sua própria
fundamentação moral já que a de Kant é totalmente oposta a sua. Além de que a
tentativa de Kant em sua obra sobre a moral teria sido a mais bem sucedida até então.
Também é importante lembrar que, segundo Schopenhauer, a Fundamentação da
13

metafísica dos costumes contém todas as bases para a moral kantiana além de que a
mesma apresentou a única definição procedente sobre o que realmente é um ato moral
genuíno falando-se em Filosofia. No que se segue Schopenhauer ainda afirmará, com as
próprias palavras de Kant, que a Fundamentação da metafísica dos costumes é a busca
do princípio primeiro da moralidade e que, como tal, deve ser separada das
investigações acerca da moralidade. Nela reside a base, o fundamento preciso, daquilo
que seria a ética kantiana. Outra justificativa não filosófica refere-se ao próprio Kant:
“Além disso, ela tem ainda a vantagem significativa de ser a mais antiga de suas obras
sobre a moral, quatro anos apenas mais nova que a Crítica da razão pura, sendo assim
do tempo em que, embora ele já estivesse com sessenta e um anos, a influência
28
prejudicial da sua idade sobre seu espírito ainda não era perceptível” . Vemos que
Schopenhauer está preocupado com a própria capacidade intelectual de Kant, tamanha é
sua aversão à fundamentação da moral kantiana, já em relação à Crítica da razão
prática, Schopenhauer será menos complacente e dirá que nela já é possível notar, como
também na segunda edição da Crítica da razão prática os efeitos da idade responsáveis
pela deturpação de sua obra imortal, a Crítica da razão pura, o que também teria
acontecido com nas “Primeiras razões metafísicas da doutrina da virtude”, peça lateral
a “doutrina do direito”. Ainda salientando o pensador dirá que a Crítica da razão
prática, contém essencialmente aquilo que está estabelecido na Fundamentação da
metafísica dos costumes, o que fará com que Schopenhauer analise essas obras, em seus
29
próprios dizeres, de “modo secundário e acessório” . Apesar dessas colocações do
autor, ao estudarmos a sua crítica à moral kantiana, veremos o quanto a Crítica da razão
pura será de extrema importância, pelo menos em alguns de seus pontos, para que todo
seu pensamento crítico possa, não só ser entendido, mas também analisado.
O segundo ponto a ser ressaltado por nós nessa introdução à critica da moral de
Kant é a questão do Eudemonismo que em nenhum momento pode fundamentar
qualquer moral segundo Schopenhauer. Tal crítica ao Eudemonismo se deve ao fato de
que ele é um meio de atingir a felicidade, o bem viver ou, ao menos, a idéia de viver
com menos sofrimento possível. O ato moral deve estar sempre destituído de qualquer
vantagem que possa surgir depois de praticado a quem o pratica. Aquele que “age

28
Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo:
2001. p. 21
29
Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo:
2001. P. 22
14

moralmente” tendo em vista alcançar qualquer tipo de benefício na verdade não age
moralmente e é exatamente isso que acontece com a moral Eudemonista: age-se visando
um fim, ou seja, a ação moral, a virtude, é apenas um meio de se atingir algo almejado
anteriormente a ela. Agir moralmente não significa necessariamente que aquele que
assim age será feliz com essa ação. Na maioria das vezes, o oposto é o que encontramos
na moralidade quando, por exemplo, agimos de determinada maneira por considerar
essa maneira a correta a ser seguida ainda que ela vá contra tudo o que queremos e que
nos fará feliz30. Schopenhauer vê na moral kantiana essa mesma afirmação de
incompatibilidade entre moral e Eudemonismo, pois a mesma aponta essa necessidade e
pretende ser destituída de egoísmo. Sobre essa separação irrecusável entre moral e
Eudemonismo nosso autor comenta: “O grande mérito de Kant na ética foi tê-la
purificado de todo Eudemonismo. A ética dos antigos era eudemonista, e a dos
modernos, na maioria das vezes, uma doutrina da salvação”.31 Quando Schopenhauer
fala em “ética dos antigos” ele está se referendo, em especial, aos cínicos e estóicos que,
para ele, possuíam uma forma diferente, especial de Eudemonismo.32
No inicio do referido capítulo de O mundo como vontade e como representação
Schopenhauer dirá que depois de ter efetuado todas as considerações pertinentes a razão
como faculdade de conhecimento e sobre os resultados e também sobre os fenômenos
que dela surgem, resta-lhe ainda falar da razão prática: “Após as considerações sobre a
razão enquanto faculdade especial e exclusiva do homem, e sobre aqueles fenômenos e
realizações próprios da natureza humana, falta ainda falara da razão na medida em que
conduz a ação das pessoas, portanto, podendo nesse aspecto ser denominada
PRÁTICA”.33 Schopenhauer refere-se aqui ao uso da razão como meio de encontrar o
melhor meio de viver, isto é, como meio de encontrar o caminho que apresenta-se com
menos obstáculos possíveis, ou a forma de viver que nos conduz a uma vida sem
sofrimentos ou com menos sofrimentos possíveis É nesse ponto de sua obra capital que
aparecerá suas reflexões sobre a moral Eudemonista “dos antigos”. Para Schopenhauer

30
Sobre essa questão também devemos dizer que agir moralmente não implica sempre em irmos contra a nossa
felicidade ou interesses, mas sim que o ato moral verdadeiro não deve se preocupar com eles. Dessa forma nem todo ato
moral genuíno nos fará infelizes ou irá contra algo que desejamos.
31
Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo:
2001. P. 19
32
Tal investigação a esse assunto encontra-se no livro O mundo como vontade e como representação, mais precisamente em seu
livro primeiro no capítulo dezesseis ao qual Schopenhauer nos remete caso queiramos nos aprofundar um pouco mais no assunto.
Assim, estudemos essa parte da obra do filósofo.
33
Schopenhauer, A.O mundo como vontade e como representação, trad. Jair Barboza, UNESP, São Paulo: p.138 - 139
15

o homem diferentemente dos animais possui a presença de conceitos abstratos em sua


consciência. Os animais possuem apenas o contato intuitivo e imediato enquanto que
nós, homens, conhecimento abstrato: “O homem, ao contrário, em virtude do
conhecimento in abstracto abrange, ao lado do presente efetivo e próximo, ainda o
passado inteiro e futuro, junto com o vasto reino das possibilidades”, Abrangemos, ao
lado do presente efetivo e próximo, ainda passado inteiro e o futuro junto com o vasto
reino das possibilidades. Divisamos livremente a vida em todos os lados, a vida
distante, além do presente e da realidade efetiva “34. Interessante lembrarmos de
Parerga e Paralipomena, onde a vida inteiramente vivida no presente pelos animais é
fruto de “inveja” para o autor: “O animal é presente corporificado, a tranqüilidade
visível de que assim se investe, muitas vezes envergonham nosso estado,
frequentemente intranquilo e insatisfeito à causa de pensamentos e preocupações”35. Na
citação de Schopenhauer expostas acima, ele quer nos mostrar que o homem tem a
possibilidade, diferentemente do animal, de, através dos conceitos abstratos, realizar
uma ação utilizando-se da razão, fazendo dela prática. É através dela que podemos ter,
dentro do possível, domínio sobre nossas vidas. Podemos nos lembrar do passado, viver
o presente e lançar olhos ao futuro que sempre contém em si uma infinidade de
possibilidades, grande parte delas, imaginadas por nós mesmos em nossos temores,
ansiedades e desejos. A partir do momento, que depois de todas essas reflexões
advindas dos conceitos abstratos sobre nossas vidas, agimos guiados pela razão ela se
tornará prática. Na razão prática nossas ações não são guiadas pelo momento, ela tem
em vista, por exemplo, o futuro incerto que carrega nossos desejos e temores e contra ou
a favor deles pode nos ajudar. Esses conceitos abstratos que nós humanos possuímos ao
mesmo tempo em que pode nos ajudar, nos atormentam com as mais diferentes
expectativas que podem variar de simples temores até o medo da morte.
Nunca a razão por si só poderá produzir um ato, por exemplo, bom ou mau, ela
será apenas um meio de por em prática a bondade ou a maldade. A razão em si mesma
não é boa nem má, apenas pode se aliar “A razão se encontra unida à grande maldade
quanto à grande bondade, que o seu auxilio confere grande eficácia seja a esta primeira
ou à segunda, que ela esta igualmente preparada e disponível para executar

34
Schopenhauer, A.O mundo como vontade e como representação, trad. Jair Barboza, UNESP, 2005 São Paulo:p.139
35
Schopenhauer, A. Parerga e paralipomena, In: “OSPENSADORES” Trad. Wolfgang Leo Mar, Nova Cultural, São Paulo:
1997 p. 282
16

36
metodicamente e de maneira conseqüente tanto os propósitos nobres quanto os vis” .
Mas esse tema será apresentado em local apropriado quando nos dirigirmos à critica da
moral kantiana propriamente dita, agora voltemos ao Eudemonismo, também existente
graças a essa razão. Para Schopenhauer o ponto mais alto que o homem pode atingir
através do simples uso da razão é a sabedoria estóica que não possui em nenhum
momento uma ciência ou regras para a virtude, ou seja, ela contém apenas: “Um
conjunto de preceitos, de regras, para viver segundo a razão afastando-se o quanto mais
37
de problemas e sofrimentos” . Diante de perguntas como “O que devo fazer para
impedir que tal mal me aconteça?” ou “Como devo agir para ter mais tranqüilidade em
minha vida?”, a razão aparece como meio para se alcançar as respostas desejadas. Dessa
forma a ética estóica difere completamente dos sistemas morais como, por exemplo, os
de Kant, do Cristianismo dos Vedas entre outros que ele cita. A finalidade dessa ética é
como já afirmamos a felicidade ou pelo menos o bem viver dentro do possível. É
possível notar assim nos estóicos, e também nos cínicos citados em Sobre o fundamento
da moral como também possuidores de uma ética Eudemonista, uma forma de
pessimismo em relação a existência. Ambos querem fazer com que a razão os eleve
acima dos males mais diversos que a vida pode oferecer em seu decurso; a vida possui
mais possibilidades ruins que boas. Assim a melhor maneira de viver é submetendo a
vida à razão que nos trará uma existência, senão feliz, pelo menos com um número
menor de tormentos. Schopenhauer irá concluir sua exposição dizendo: “A ética estóica,
tomada no seu conjunto, é de fato uma tentativa bastante apreciável e digna de atenção
para usar a grande prerrogativa do homem, a razão, em favor de um fim importante e
salutar, a saber, elevá-lo por sobre os sofrimentos e dores aos quais cada vida está
exposta”38. Schopenhauer também criou a sua Eudemonologia em Aforismos para a
sabedoria de vida, texto que faz parte de Parerga e Paralipomena, onde também tenta
construir uma doutrina de bem viver não só para os filósofos, mas para todos aqueles
que possuem a capacidade de pelo menos tentar submeter sua vida a razão, onde
conclui, entre tantas outras coisas que a vida não existe para ser gozada, mas para ser
vencida e superada assim como também que “Quem quiser obter um balanço da própria
vida em termos eudemonológicos, deve fazer a conta não segundo os prazeres dos quais

36
Schopenhauer, A.O mundo como vontade e como representação, trad. Jair Barboza, UNESP, 2005 São Paulo: p.141
37
Schopenhauer, A.O mundo como vontade e como representação, trad. Jair Barboza, UNESP, 2005 São Paulo: p.146
38
Schopenhauer, A.O mundo como vontade e como representação, trad. Jair Barboza, UNESP, 2005 São Paulo: p.146
17

conseguiu escapar” 39. Com as explicações acima fica claro perceber o motivo que faz
do Eudemonismo uma fonte imprópria para qualquer fundamentação da moral, o porquê
Schopenhauer e também Kant o recusam.
Agora, depois de analisarmos esses dois primeiros pontos importantes dessa
introdução à critica da moral kantiana, vamos estudar a recusa da moral teológica por
parte de Schopenhauer que é claramente mais óbvia. Tal estudo é importante, em nossa
visão, pois Schopenhauer nessa introdução faz um comentário bem interessante a
respeito da moral kantiana, mais precisamente sobre a obra Critica da razão prática,
onde, segundo Schopenhauer se reconhece cada vez mais a teologia moral “Como sendo
aquilo que Kant quis” 40.
Devemos entender assim a crítica que o mesmo faz a toda e qualquer moral
teológica, que para ele não pode fundamentar a moral, pois a mesma já estaria viciada
desde o seu surgimento com o interesse pessoal por parte de quem pratica o ato moral
nela fundamentada. Schopenhauer vê na moral teológica o simples interesse pessoal.
Ela é uma moral que se baseia apenas em seguir a vontade de um Deus, também
podendo ser vista como uma lei, que, de alguma forma, premia aqueles que a observam,
enquanto pune aqueles que não a observam. Sendo assim, aquele que pratica um ato
moral com base na crença religiosa, estaria praticando-o tendo em vista apenas as
vantagens que o mesmo lhe traria ou a tentativa de escapar da ira divina que sobre ele
recairia pela inobservância de sua lei. Assim, na moral teológica, o que de fato existe é
apenas o total interesse pessoal. A pessoa para a qual é dirigida a ação não possui de
fato importância para aquele que desenvolve o ato moral, ela seria apenas um meio para
alcançar a graça divina por observância de sua lei ou fugir de sua punição. Tal ato seria
fruto de puro egoísmo. Ainda seguindo a concepção de Kant sobre o ato moral genuíno,
de que o ato moral deve estar destituído de interesse pessoal por parte de quem o pratica
Schopenhauer não consegue aprovar a moral teológica, pois, nela o que de fato existe é
o desejo de ser recompensado ou a tentativa de fugir da ira divina, além de que a pessoa
para a qual é feito o ato moral não possui nenhuma importância, ela é penas uma meio
de se atingir os dois objetivos acima explicados, isso faz com que a moral teológica se
apresente como uma moral na realidade falsa, viciada, onde o que realmente existe é o

39
Schopenhauer, A. Aforismos para a sabedoria de vida, trad. Jair Barboza, Martins fontes, são Paulo: 2006 p. 141
40
Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo:
2001. p. 22
18

interesse por parte de quem pratica qualquer ato nela baseada. Não é a própria pessoa
que por compaixão, fundamento da moral de Schopenhauer, como já visto, que por sua
própria consciência decide praticar o ato e sim seu desejo de recompensa que diz:
”ajude”,seu medo de ser punido que diz: “estenda a mão a seu irmão” Como tal ato
poderia ser moralmente genuíno? Diante do que foi dito apenas o interesse, o egoísmo
surge como fonte desse ato baseado na teologia.
Schopenhauer também afirma que a moral teológica é a moral dominante no
mundo. A maioria dos atos morais realizados possui nela o seu fundamento, e a maioria
dos filósofos dela tentou escapar sem nenhum sucesso. Eis um dos pontos principais
sobre o qual se apóia a crítica a fundamentação moral kantiana feita por Schopenhauer.
Segundo ele, o próprio Kant em seu livro Crítica da razão pura, teria destruído
totalmente o que chama de “teologia especulativa”, com a demonstração de que a
existência de Deus jamais poderia ser confirmada. Vejamos o que o próprio Kant diz a
respeito em sua Crítica da razão pura:
Ora, afirmo que todas as tentativas de um uso meramente especulativo da
razão na Teologia são totalmente infecundas e, pela sua natureza íntima,
nulas e vãs; que, porém, os princípios do seu uso natural de modo algum
levam a uma Teologia. 41
Sem essa teologia especulativa, a “certeza” de uma moral teológica seria
impossível. Mesmo assim, o próprio Kant não teria conseguido escapar da teologia para
fundamentar sua moral, o que a tornaria completamente sem sentido por carecer de um
fundamento filosófico autêntico. Kant teria partido da própria ética para atingir Deus,
fazendo o contrário do que até então havia sido feito, quando se partia de Deus para se
encontrar uma ética. Essa conclusão é atingida por Schopenhauer a partir da observação
do caráter imperativo da ética kantiana, cuja crítica estudaremos mais a frente. O fato de
a moral kantiana estar baseada em um dever, dá a nosso pensador o material necessário
para ver nela a teologia, encontrar nela a primeira grande contradição que não poderia
conter, ou seja, a teologia que como vimos de nenhuma maneira pode fundamentar o
genuíno ato moral.
A crítica de Schopenhauer a Kant, porém, não para apenas frente à questão
teológica, ela estende-se a outros pontos de extrema importância que nosso filósofo
investiga e corrige de forma dura e muita vezes até irônica; para ele muitos argumentos

41
Kant I. Crítica da razão pura, In: OSPENSADORES” trad. Valerio Rohden e Udo Moosburger, Nova Cultural, são
Paulo: 1996 p. 390
19

apresentados lhe parecerem simplesmente absurdos e sem nenhum sentido, e todo o


tempo percebe-se a insistência em demonstrar não só a total falta de fundamentação do
conceito dado por Kant à sua moral, como também sua incoerência. Vejamos o
pensamento de Schopenhauer a respeito:
Porém, desde que Kant destruiu o fundamento da “teologia especulativa”, até
então tido por firmemente válido, e em seguida quis que ela, que tinha sido
até ai o suporte de toda a ética, fosse inversamente sustentada pela ética para
conferir-lhe uma existência apenas ideal -, pensa-se menos do que nunca
numa fundamentação da ética por meio da teologia, pois não mais se sabe
qual das duas é a carga e qual o apoio, caindo-se por fim num “circulus
vitiosus.42
Segundo o que Schopenhauer diz acima, Kant teria tido a intenção de inverter o
que até então existia em relação à teologia. Deus que até então havia sido a base da
ética, depois de ter sido retirado do pensamento humano por Kant em sua Crítica da
razão pura, passou a ser sustentado pela ética pela própria vontade de Kant em sua
fundamentação da moral.
Mas, como já foi dito, o pensamento de Kant sobre a moral possui seu mérito ao
apresentar aquele que seria o único conceito realmente aceitável da moral. Além do que,
segundo Schopenhauer, a moral kantiana fez surgir nos intelectuais de sua época um
maior interesse pela moral, juntamente com o conhecimento do Budismo e Bramanismo
que chegavam à Europa. Diante do aparecimento dessas novas visões de moral e de
mundo, os velhos fundamentos da moral haviam desaparecido e necessária era uma
nova fundamentação moral como o próprio Schopenhauer afirma:
Como conseqüência, os fundamentos antigos da ética apodreceram, apesar de
ter ficado a confiança de que ela mesma nunca pode afundar. Daí surge a
convicção de que se tem de lhe dar outros apoios que não mais os até hoje
existentes, adequando-os aos conhecimentos avançados da época. Sem
dúvida, é a compreensão dessa necessidade cada vez mais sensível que
motivou a sociedade Real para a presente e significativa pergunta do
concurso.43
Como nota-se nas palavras acima, Schopenhauer apresenta sua época como
sendo carente de um conceito que realmente pudesse fundamentar a moral. Uma época

42
Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo:
2001. p. 11-12
43
Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo:
2001. p. 12
20

que graças a evoluções culturais das mais diversas, como o conhecimento do Budismo,
do Bramanismo, percebeu de uma só vez, que todos os fundamentos da moral até então
apresentados haviam falhado. Tal fracasso não se deveria apenas à destruição da moral
com bases teológicas, mas também, à moral Eudemonista, que Schopenhauer chama de
“moral dos antigos”, gregos de modo geral, e que também se encontra presente entre os
Cínicos e Estóicos. Como já apresentado, nessa moral, o que existe é a pretensão de
apresentar virtude e felicidade como idênticas, a prática da virtude seria uma forma de
se atingir a felicidade. Podemos concluir que Schopenhauer resumia tudo o que havia
sido apresentado por fundamento da moral até então como fundamentos eudemonistas
ou teológicos, que não teriam no ato moral um fim em si mesmo, mas sim um meio de
se atingir algo. No Eudemonismo o fim a ser atingido através da virtude seria a própria
felicidade, não se preocupando com outras pessoas, e na moral teológica, que seria a
moral dominante nos filósofos modernos, a salvação ou qualquer outra coisa que
estivesse relacionada com o divino e suas vontades ou leis. Salvação ou felicidade
seriam assim o fim de todo ato moral que se constituiria dessa forma de pleno interesse
egoísta.
Depois dessa introdução que apresentou os aspectos gerais da crítica de
Schopenhauer à moral kantiana, passemos a estudar os aspectos mais específicos dessa
crítica nos quais podemos encontrar seus fundamentos.
21

1.2 Negando a metafísica do povo

Schopenhauer é profundamente ateu e para entendermos melhor a sua crítica à


moral kantiana, precisamos compreender os motivos de seu profundo ateísmo, o que ele
pensa a respeito das religiões e da crença em deus ou em deuses e, ainda, qual o motivo
que faz com que essas crenças não possam em nenhum momento serem verdadeiras e
até que ponto ele as respeita.
É como metafísica do povo que Schopenhauer denomina a religião e a crença em
deus em geral. Para ele as religiões, apesar de falsas, são compreensíveis, pois surgem
como tentativas de explicar a existência de alguma maneira. O homem menos capaz
intelectualmente ao se deparar com a existência e todos os seus mistérios, ao ter o
espanto metafísico que sobre todos os homens recai, necessita de uma explicação
convincente ou pelo menos confortante para a sua vida. Assim a religião possui seu grau
de relevância ao ser uma tentativa de interpretação do mundo, vista pelo erudito como
uma alegoria da vida criada para tentar interpretar o mundo ou para se conseguir alguma
consolação. Nesse ponto o pensamento de Schopenhauer se aproxima ou se iguala ao
pensamento de David Hume que em suas obras História natural da religião e Diálogos
sobre a religião natural trata do assunto vendo a religião como uma tentativa de
explicação do mundo, uma alegoria do mundo, e também como um meio de os homens
diminuírem seus infortúnios pelo menos psicologicamente. Os homens atormentados
pelos horrores da vida precisam de um mito consolador e assim criam um deus com o
qual podem contar ou que lhes ofereça a salvação ou a diminuição de suas dores. Assim
o ser divino tem sua origem na angústia, na dor, na preocupação dos homens que
precisam de algum tipo de solução, ainda que impalpável, para suas necessidades.
Ainda, não esqueçamos que para Schopenhauer O “em si” é a vontade cega que faz do
homem um ser destinado ao sofrimento por sua insatisfação ininterrupta, somado isso a
outras dores do mundo o homem precisa de um consolo e por isso cria um deus, um ser
com o qual “pode” contar, ao qual “pode” pedir paz, reverenciar, pedir ajuda; um ser ou
seres que regem o mundo e o têm sob seu poder. Imaginar tal ser ou tais seres traz ao
homem um conforto momentâneo ou até mesmo um conforto que ele pode carregar por
toda a vida; a fraqueza dos seres humanos e sua impotência diante dos infortúnios do
mundo faz com que eles necessitem dessa presença mágica, presença essa que é criada,
assim como também todos os efeitos provenientes dela. Dessa forma deus nada mais é
22

do que uma criação do próprio homem em sua egoísta e incessante vontade que domina
a razão. Isso se segue a um povo inteiro, que como o povo judeu se intitula o povo
escolhido de deus e até em guerras pede a ajuda desse mesmo deus movimentando a
esperança de toda uma nação. É assim que se resume o Teísmo Para Schopenhauer,
como uma criação humana frente as suas necessidades na procura de algum tipo de
salvação ou uma tentativa de interpretar a vida e o mundo. Assim que se entende o
Teísmo e alguns dos motivos pelos quais nosso pensador não acredita e nem poderia
acreditar nele. Agora vejamos outro motivo que faz de Schopenhauer um ateu, esse
motivo é o velho e conhecido problema do mal, também apresentado David Hume em
seu livro Diálogos sobre a religião natural, para Hume e Schopenhauer como nós
poderíamos acreditar que um deus perfeito, bondoso, misericordioso, onipotente,
onisciente é criador desse mundo se no mesmo existe tanta dor, horrores dos mais
diversos, ou seja, tanto sofrimento, se seus filhos, isto é, os homens e os animais, tanto
sofrem e se os raríssimos momentos de paz dos quais desfruta a humanidade são tão
curtos e extremamente frágeis? O sofrimento do mundo jamais poderia coexistir com a
idéia de um deus perfeito e misericordioso. Em nenhum momento poderíamos ver esse
mundo como a obra de um deus todo poderoso, e, pior ainda, misericordioso, tal
pensamento só pode ser fruto de uma mente não só egoísta, como também de uma
mente totalmente desprovida de um autêntico raciocínio filosófico coerente. O mundo
caso seja obra de algum ser superior a ele, esse ser só pode ser uma espécie de demônio
que se diverte com a dor dos homens. Longe de esse mundo ser o melhor dos mundos
possíveis, ele é o pior dos mundos possíveis, contendo a pior das vidas possíveis. Nosso
autor expressa esse pensamento por várias vezes em sua obra, mas é em Parerga e
Paralipomena que podemos encontrá-lo de maneira mais explícita, eis uma passagem:
“Se o sentido mais próximo e imediato de nossa vida não é o sofrimento, nossa
existência é o maior contra senso do mundo”.44 Percebemos que Schopenhauer em
nenhum momento admite que a vida possa ser alguma coisa a mais do que sofrimento
ou necessidade, tal visão extremamente pessimista não se deve apenas a sua metafísica
da vontade, mas também a simples observação do mundo e da vida das pessoas. O
sofrimento humano possui um papel extremamente importante no pensamento de
Schopenhauer ele será mais uma vez usado para negar a existência de deus dessa vez

44
Schopenhauer, A. Parerga e paralipomena, In: “OS PENSADORES”, Trad. Wolfgang Leo Mar, Nova Cultural, São Paulo:
1997 p. 277
23

em sua visão Panteísta. Para ele a crença de que um ser onipotente, onisciente e
misericordioso tenha criado um mundo cheio de sofrimento ainda pode, mesmo sendo
absurda, ser pensada já que poderia ser apresentada como porquê desse sofrimento a
imperscrutabilidade de sua vontade, mas “pensar que deus, o próprio deus criador é o
infinitamente atormentado, ou seja, que deus é o próprio mundo sendo a própria criação,
e somente nesse pequeno mundo, o que morre uma vez em cada segundo, isto por atos
livres, o que constitui um absurdo. Mais fácil seria identificar esse mesmo mundo com o
próprio demônio do que com um deus”45. Dessa maneira jamais um deus seja ele qual
for poderia se transformar nesse mundo tão terrível e condenar-se por própria vontade a
um sofrimento sem fim, tal pensamento seria um absurdo para o qual, diferentemente do
Teísmo, não cabe nenhuma desculpa. Ainda que Teístas possam dizer que na terra
existe certa ordem, ou uma estrutura própria, que apenas poderia ser proveniente de um
deus qualquer, ou seja, que basta olhar para uma possível ordenação do mundo para
constatar a existência de um deus, Schopenhauer não dará a mínima atenção para esse
argumento, pois não só para ele, mas também para David Hume basta um olhar mais
atento para o mundo, basta olhar mais de perto para o mundo e ver que o que de fato
existe nele é a desordem brutal e ininterrupta, longe de qualquer ordem ou estrutura bem
idealizada o mundo e os seres que nele habitam são desordenados e jamais poderiam ser
vistos como criação de um deus com todas as qualidades que já mencionamos.Entre os
seres o que existe é a guerra inacabável, o desejo infinitamente insatisfeito, o sofrimento
diante do qual somos impotentes. O mundo é ruim, as pessoas em sua maioria são ruins,
basta olhar para a história e veremos as mais cruéis histórias de traições, guerras, tudo
movido pelo egoísmo humano e por sua maldade, na terra são a tristeza a amargura que
existem e que sempre saem triunfante, os momentos de paz são como pequenos
intervalos entre um momento de dor e outro, dessa forma a visão de que o mundo, por
sua ordenação, só pode ser a criação de um deus é totalmente equivocada não
procedendo de maneira alguma. Longe de todos esses males serem causados apenas
pelos próprios homens, eles também existem por si mesmos e são elas as doenças, os
acidentes, o homem nunca sabe o que o espera, pode ser qualquer coisa, desde a loucura
até a morte ou a agressão fatal de outro homem: “Pois o mundo constitui o inferno, e os

45
Schopenhauer, A. Parerga e paralipomena, In: ”OSPENSADORES”, Trad. Wolfgang Leo Mar, Nova Cultural, Os
Pensadores, São Paulo: 1997 p
24

46
homens formam em parte os atormentados e noutra, os demônios” .Assim a religião
deus ou os deuses estão completamente descartados. Aquilo que para David Hume é
argumento para se suspender o juízo e levantar a possibilidade de deus não existir, para
Schopenhauer é o suficiente para negar a sua existência.
Como já dissemos, a metafísica do povo surge pelo espanto que o homem sente
frente aos mistérios da existência e também pela necessidade de uma salvação por causa
da terrível e incessante vontade que conduz sua vida, Também a religião não se resume
apenas no Teísmo. Ela possui outra forma totalmente diferente que é o Budismo e o
Hinduísmo, religiões nas quais o pensador se inspira para criar seu próprio pensamento.
No Budismo a figura central é o Buda, ou seja, o príncipe Sidarta Gautama que
abandonou tudo, inclusive sua vida de riquezas, por compaixão da humanidade presa no
sofrimento da vida para dar-lhe o caminho que conduz a salvação, depois de seis anos
Sidarta atinge a iluminação, torna-se o Buda, sendo a partir de então aquele que
despertou para a verdade universal ensinando que a vida é sofrimento do começo ao
fim, e passa a guiar seus discípulos. Schopenhauer concorda plenamente com as quatro
verdades de Buda que guiam o homem a iluminação ou até a santidade, são elas a
existência, a origem, a cessação e o caminho da cessação do sofrimento. O próprio
Schopenhauer defenderá essa visão de mundo em seu pensamento e também a exemplo
da religião Budista irá propor ao homem um meio de libertação do sofrimento, de
salvação através da negação da vontade, algo bem próximo do ascetismo de Gautama.

46
Schopenhauer, A. Parerga e paralipomena, In”OS PENSADORES” Trad. Wolfgang Leo Mar, Nova Cultural, São Paulo:
1997 p. 285
25

1.3 Crítica à forma imperativa da moral kantiana

O imperativo categórico é a base do pensamento kantiano sobre a moral, alicerce


do edifício ético formulado por Kant, mas antes de estudarmos a crítica que
Schopenhauer faz a ele, vamos estudar a gênese do mesmo.Ela se inicia com a idéia de
Dever. É bom ressaltar que a crítica de Schopenhauer à moral kantiana possui dois
momentos um deles diz respeito a forma imperativa que possui, o outro a seu
formalismo.
O ato moral para Kant é aquele que não possui nenhum tipo de interesse pessoal.
No inicio de seu livro Fundamentação da metafísica dos costumes, ele dirá: “Neste
mundo, e até também fora dele, nada é possível pensar que possa ser considerado como
bom sem limitação a não ser uma só coisa: uma boa vontade”47.Para Kant essa “boa
vontade” deve ser boa por si mesma, não estar contaminada por nenhum interesse
humano, como por exemplo, ainda que a atitude possa parecer boa em um primeiro
momento, como a do caridoso que ajuda muitas outras pessoas, mas que foi motivado
pelo desejo de sentir-se bem ao ver as pessoas felizes, essa atitude não poderá ser
considerada moral pois, apesar de estar de acordo com o dever, não foi motivada por
ele. Se uma pessoa pratica uma ação apenas porque ela quer praticá-la, essa ação não
possui valor moral algum. O único modo como Kant compreende a possibilidade de um
ato moral genuíno é com a existência de um dever responsável pela motivação do ato
moral:
“Para desenvolver porém, o conceito de boa vontade altamente
estimável em si mesma e sem qualquer intenção ulterior, conceito que reside
já no bom senso natural e que mais precisa de ser esclarecido do que
ensinado, este conceito que está sempre no cume da apreciação de todo o
valor das nossas ações e que constitui a condição de todo o resto, vamos
encarar o conceito de Dever que contém em si o de boa vontade.48
Bom ressaltar que Kant possui em sua fundamentação o intuito de, como ele
mesmo diz, buscar a fixação do princípio supremo da moralidade. Kant não está
interessado em construir uma moral ou definir o que seja certo ou errado.

47
Kant I. Fundamentação da metafísica dos costumes, trad. Paulo Quintela, Edições 70, Lisboa Portugal: 2008 p. 21
48
Kant I. Fundamentação da metafísica dos costumes, trad. Paulo Quintela, Edições70, Lisboa Portugal: 2008 p. 26
26

Para Schopenhauer o primeiro erro de Kant se encontra na forma com a qual ele
apresenta a moral:
“Tanto a filosofia natural como a filosofia moral, podem cada uma
ter sua parte empírica, porque aquela que tem de determinar as leis da
natureza como objeto da experiência, esta porem as da vontade do homem
enquanto ela é afetada pela natureza; quer dizer, as primeiras como leis
segundo as quais tudo acontece, as segundas como leis segundo as quais
tudo deve acontecer,, mas ponderando também as condições sob as
quais muitas vezes não acontece o que devia acontecer” 49
Diante dessa definição Schopenhauer dirá: “Isto já é uma petição de princípio
decisiva. Quem nos diz que há leis as quais nossas ações devem submeter-se? Que vos
50
diz que deve acontecer o que nunca acontece?”. O que vos dá o direito de antecipá-lo
e logo impor uma ética na forma legislo - imperativa como a única para nós possível”51.
além dessa definição ser uma petição de princípio ela contém a suposição inaceitável
por parte de Schopenhauer de que existem leis morais puras em nossa mente, coisa que
durante toda a Fundamentação da metafísica dos costumes, segundo Schopenhauer, não
foi provado por Kant ou demonstrado de nenhuma maneira. A condição pura de leis
morais em nossa mente é afirmada pelo próprio Kant logo no inicio da Segunda Seção
da Fundamentação da metafísica dos costumes: “Do facto de até agora havermos tirado
o nosso conhecimento de dever do uso vulgar da nossa razão prática não se deve de
forma alguma concluir que tenhamos tratado como um conceito empírico”52.
Schopenhauer dirá, a respeito dessa forma pura da moral kantiana:
Em Kant o princípio ético apresenta-se como algo totalmente independente
da experiência e do seu ensinamento, como algo transcendental ou
metafísico. Ele reconhece que o modo de agir humano tem um significado
que ultrapassa toda a possibilidade de experiência e, por isso mesmo, a ponte
própria para levar é o chamado mundo inteligível, “mundum noumenon”, o
mundo das coisas em si.53

49
Kant I. Fundamentação da metafísica dos costumes, trad. Paulo Quintela, Edições 70, Lisboa Portugal: 2008 p. 14
50
Schopenhauer, A. fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo: 2001.
p.23
51
Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo:
2001. P. 23
52
Kant I. Fundamentação da metafísica dos costumes, trad. Paulo Quintela, Edições70, Lisboa Portugal: 2008 p. 41
53
Kant I. Fundamentação da metafísica dos costumes, trad. Paulo Quintela, Edições70, Lisboa Portugal: 2008 p. 20
27

Assim o princípio da moralidade em nada é motivado por algo empírico, o


mesmo é metafísico e de alguma forma espontâneo. Icilio Vecchiotti comenta a
interpretação de Schopenhauer sobre a moral kantiana:
Quase todos os críticos defenderam que o imperativo kantiano se apresenta
como um facto imediato de consciência. Mas essa opinião vai contra o
pensamento de Kant. O imperativo é introduzido na Fundamentação da
metafísica dos costumes por um processo totalmente a priori, através de um
raciocínio subtil.54
Assim, a lei moral é apresentada por Kant como algo totalmente a priori, que em
nenhum momento necessita do empírico para existir e ainda mais além, é genuinamente
moral em parte por ser assim. Depois de Schopenhauer lançar os questionamentos
apresentados acima, ele irá apresentar aquilo que ele pensa estar realmente por detrás da
moral kantiana.
Depois de tais questionamentos, Schopenhauer continuará fiel a Kant, quando o
mesmo afirma em sua Crítica da razão pura, que a única forma de adquirir
conhecimentos é através da experiência, coisa que Schopenhauer mais a frente dirá que
Kant se esqueceu em sua Fundamentação da metafísica dos costumes. Schopenhauer
continuará defendendo a experiência como fonte única de conhecimento, e argumenta
que o filósofo deve estudar aquilo que de fato acontece no mundo ou entre os homens
para depois chegar a uma conclusão, seja ela qual for. Schopenhauer irá se valer da
experiência para encontrar o seu fundamento da moral, atento a fatos, a ações humanas,
sempre citando exemplos, Schopenhauer encontrará, por detrás de toda boa ação a
compaixão que para ele é a única coisa capaz de explicar e fundamentar a moral, em
nenhum momento Schopenhauer se esquece da experiência para formular sua tese,
Sendo assim, descobrimos um dos motivos que o faz criticar tanto a moral kantiana:
Kant teria, sem nenhuma preocupação com as experiências morais humanas, definido, e
estabelecido (ou até mesmo criado) a existência da lei moral a ser seguida, o que
constituiria um equívoco, para não dizer um absurdo que vai contra sua própria obra.
No pensamento de Schopenhauer o conceito de “lei” tem sua origem nas
instituições civis criadas pelo homem e também, em um sentido alegórico, no
conhecimento da natureza onde os fatos apreendidos “a posteriori”, que se mantêm
constantes, são também chamados pelos homens de “leis da natureza”. Nos homens, já

54
Vecchiotti, I. Schopenhauer. Rio de Janeiro: Edições 70, 1986 p. 57
28

que são eles parte da natureza, tal “lei” também existe e se encontra na motivação das
ações humanas, ou seja, na lei de motivação. Cada ação só pode acontecer depois de
uma devida causa, mas em nenhum momento tal ação pode ser vista como originária de
uma suposta lei moral pré-existente na mente humana, mas tão somente como um efeito
que se encerra em si mesmo. Fora esse exemplo de “lei natural” apresentado por
Schopenhauer, não haveria motivos para se acreditar na existência de uma lei moral
que, independentemente de regulamentação estatal ou religiosa pudesse existir “a
priori” na mente dos homens e lhe mostrar claramente o que deve ou não ser feito. Mas
tal foi a tentativa de Kant com sua moral imperativa, que possui em si uma necessidade
absoluta. Juntamente com a afirmação dessa necessidade absoluta. Schopenhauer
reconhece uma “petição de princípio”,: Kant afirma que tal “lei moral” nos dá um
“dever” a ser seguido. Com esse conceito de “dever” presente à “lei moral”, surge não
só a contradição absoluta da moral, kantiana como também o ponto mais fraco em sua
fundamentação. Primeiramente, uma moral que ordena não pode esperar que a atitude
daqueles que a seguem seja realmente genuína; não existiria um “agir moral” de forma
espontânea, realmente desejada, e sim uma ação moral guiada por uma ordem a ser
seguida. Em segundo lugar, Schopenhauer reconhece no “tu deves”, expressão utilizada
por Kant, juntamente com os conceitos de mandamento e lei, nada mais do que a antiga
moral teológica que, em nenhum momento, poderia fundamentar a moral genuína que
como tal se caracterizaria por seu total desinteresse pessoal. Em relação à questão do
“Dever” apresentada por Kant, Schopenhauer explica que não existe nenhuma outra
origem para a introdução de conceitos como lei, prescrição ou Dever, a não ser no
decálogo mosaico, a própria ortografia de Kant no tu deves [du sollt], revelaria, até de
maneira ingênua, essa origem inaceitável que teria de ser da retirada da filosofia. Tais
conceitos como lei, mandamento e dever teriam sua origem na moral teológica e,
portanto permaneceriam estranhos a Filosofia55, Kant estaria simplesmente fazendo uma
afirmação sem nenhuma argumentação ou raciocínio.
Com essas palavras Schopenhauer afirma não só que a moral teológica é algo
que não deve ser levada em consideração pela filosofia como também que a moral
kantiana em sua fundamentação, já se encontra viciada e em contradição com seu
próprio conceito. Além disso, o “tu deves”, presente na obra de Kant ou em qualquer

55
Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo:
2001. P. 25
29

outra teoria sobre a moral, perde todo seu significado fora da teologia. Uma moral que
ordena, impele ou exige só pode ser, no ponto de vista de Schopenhauer, ligada à
religião, pois inerente a si existe sempre o pressuposto de castigo ou recompensa. Sobre
isso Schopenhauer esclarece:
Se tais condições – castigo e recompensa – forem abstraídas, o conceito de
dever fica vazio de sentido. Por isso o dever absoluto é simplesmente uma
“contradictio in adjecto”. É simplesmente impossível pensar uma voz que
comanda, venha ela de dentro ou de fora, a não ser ameaçando ou
prometendo. Mas assim, a obediência em relação à ela mesma, que, de
acordo com as circunstâncias, pode ser esperta ou tola, será sempre, todavia,
em proveito próprio e portanto sem valor moral.56
O Dever da moral kantiana começa agora a aparecer como algo vazio, que não
possui em si nada sólido que o sustente, mas o que estaria então tentando Kant revelar
com ele se o mesmo é apenas algo vazio? Ora, se inerentes ao Dever, estão o castigo e a
recompensa posteriores, obviamente que o próprio conceito de Dever e seja mais o que
vier depois dele nada poder pode fornecer de concreto, dessa maneira, mesmo tendo
tentado fugir da teologia ela permanece na teoria moral de Kant, e não apenas ela, mas
também o Eudemonismo como se verá a seguir. O Dever na moral kantiana revela
assim a teologia que seria pelo que entendemos, a sua própria sustentação.
Schopenhauer, mesmo criticando em seu ensaio apenas a Fundamentação da
metafísica dos costumes, obra de Kant que, como vimos, apresenta a sua fundamentação
da moral, não deixa de examinar a Crítica da razão prática, na qual encontra aquela que
seria a prova da contradição kantiana que aparece indiscutivelmente na teoria do
“Soberano Bem”. Para Schopenhauer o “Soberano Bem”, fruto da observância moral,
nada mais é do que a recompensa pela observância da lei moral que se constitui na
unificação da virtude e felicidade, que nada mais seria do que o Eudemonismo retirado
da moral pelo próprio Kant através do seu conceito de ato moral genuíno Assim, a
moral kantiana apresentar-se-ia com uma dupla contradição levando em consideração
todo o seu pensamento sobre a moral: após conceituar o ato moral genuíno como sendo
aquele que está totalmente destituído de interesse pessoal, Kant tenta fundamentá-lo
através de um imperativo categórico que possui em seu íntimo nada mais que a moral
teológica, e, conseqüentemente, egoísta. Depois disso, na Crítica da razão prática, o

56
Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo:
2001. p. 27
30

“Soberano Bem” faz renascer o Eudemonismo que também nada mais é do que
interesse pessoal. Schopenhauer comenta:
Assim é que se vinga a admissão do dever incondicionado e absoluto, que
oculta uma contradição. Por outro lado, o dever condicionado não pode ser
certamente um conceito ético fundamental, porque tudo o que acontece
visando uma recompensa ou castigo é necessariamente uma ação egoísta e,
sendo assim, sem puro valor moral.57
Mas a crítica de Schopenhauer a forma imperativa da moral kantiana não
termina nessas afirmações que já seriam suficientes para entendê-la como contraditória
dentro do pensamento do autor. O “tu deves” possui em si mais uma peculiaridade que
o impediria de ser fonte de uma moral genuína, peculiaridade que recai sobre a própria
vontade do indivíduo que o obedece. O ato moral não deve ser apenas desinteressado,
mas também fruto de uma vontade genuína, deve ser espontâneo, deve acontecer por
pura vontade e não por obediência de quem pratica uma lei seja ela qual for. Qualquer
ato moral que surja tendo uma fonte como a do “tu deves”, não existiria por si mesmo,
e sim, por obediência ou comprometimento de se seguir um preceito ou lei. Dentro
dessa conclusão, a vontade humana no ato moral simplesmente desapareceria por
completo, o que faria com que a fundamentação moral do pensamento de Kant fosse
destruída de uma só vez. Schopenhauer apresenta assim a moral kantiana como carente
de tudo quilo que ela tentou apresentar:
Como todo deve está simplesmente ligado a uma condição, do mesmo modo
todo dever. Pois ambos os conceitos têm um parentesco próximo e são quase
idênticos. A única diferença poderia ser a de que o deve em geral pode
repousar sobre a mera coerção, e o dever, pelo contrário, pressupõe o
compromisso, quer dizer, a aceitação do dever – esta tem lugar entre senhor e
servidor, superior e subordinado, governo e súditos. Mesmo porque ninguém
aceita um dever gratuitamente, e cada dever dá um direito. O escravo não tem
deveres porque não têm direitos, mas existe para eles um deve que repousa na
mera coerção.58
Assim, aquilo que até então era a estrutura sólida para fundamentar qualquer ato
moral se transforma em um mero jogo de palavras profundamente contraditório e não
merecedor de ser considerado sequer como pensamento filosófico. Schopenhauer ainda

57
Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo:
2001. p. 28
58
Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo:
2001. p. 28
31

faz afirmações provenientes de suas conclusões a respeito da moral kantiana que


pretendem demonstrar o real interesse de Kant na sua formulação dos fundamentos da
moral. Ele afirma que o pensador “emprestou” da moral teológica o seu fundamento,
criando uma teologia às avessas que surge da moral, e que, conseqüentemente à sua
aceitação, levaria seu seguidor obrigatoriamente a um deus qualquer, isto é, aceitar a
moral kantiana como procedente significa aceitar consequentemente a teologia. Eis que
nesse ponto de sua dissertação, surge uma “acusação” dura de Schopenhauer ao afirmar
que os “pressupostos teológicos ocultos” na moral kantiana podem ter sido lá colocados
de forma proposital ou por incapacidade intelectual de Kant de raciocinar plenamente.
Schopenhauer comenta essa “incapacidade intelectual” de Kant logo no inicio de sua
dissertação, como já vimos, quando justifica a necessidade de criticar a Fundamentação
da metafísica dos costumes, vejamos o que ele diz:
Além disso, ela – Fundamentação da Metafísica dos Costumes - tem ainda a
vantagem significativa de ser a mais antiga de suas obras sobre a moral,
quatro anos apenas mais nova que a Crítica da Razão Pura, sendo assim do
tempo em que, embora ele já estivesse com sessenta e um anos, a influência
da idade sobre seu espírito ainda não era perceptível.59
Notamos nas palavras acima que Schopenhauer desconfia da própria capacidade
de Kant como pensador e indica a “idade avançada” de Kant como responsável pelos
absurdos ditos a respeito da moral em sua fundamentação. Mas essa ainda é a conclusão
mais “leve” sobre o pensamento moral kantiano, Schopenhauer aponta ainda no inicio
de sua dissertação um raciocínio, onde mostra aquele que seria o verdadeiro intuito de
Kant na construção de sua moral e que, caso tal apontamento seja procedente, faria de
Kant, segundo os próprios dizeres de Schopenhauer, um pensador que de maneira
proposital manteve a teologia em sua moral, coisa totalmente contrária a sua própria
filosofia. Schopenhauer irá afirmar ainda sobre a Fundamentação da metafísica dos
costumes, mas com apoio na Crítica da razão prática, que construir uma teologia moral
era o intuito de Kant desde o princípio. Vejamos as palavras do pensador referentes à
Crítica da razão prática:
Porém deve-se particularmente mencionar a Crítica da Razão Prática para o
seguinte: em primeiro lugar, a exposição de alto mérito em relação às demais,
e, por certo, composta anteriormente, a exposição das relações entre
liberdade e necessidade (pp. 169-79 da quarta edição), a qual concorda,

59
Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo:
2001. p. 21
32

contudo com a primeira com a que ele dá na Crítica da razão pura (pp. 560-
86); e, em segundo lugar, a teologia moral que cada vez mais se
reconhece como sendo aquilo que Kant quis.60
Talvez tal intuito de Kant já pudesse ser presumido, levando em consideração a
crítica de Schopenhauer a moral kantiana, quando no Prefácio à Crítica da razão pura,
Kant fala sobre sua própria filosofia e também sobre aquilo que seria sua “missão”,
apesar de Schopenhauer não tocar nessa parte da obra de Kant em sua crítica, pensamos
ser interessante colocá-la aqui:
Só mediante essa crítica podem ser cortados pela raiz o materialismo, o
fatalismo, o ateísmo, a incredulidade dos livres-pensadores, o fanatismo e a
superstição, que podem tornar-se prejudiciais em geral, e por fim também ao
idealismo e o ceticismo, que são mais perigosos para as escolas e
dificilmente passam para o público.61
Assim, no pensamento de Schopenhauer, Kant não encontrou nenhuma moral,
não quis descobrir o princípio primeiro da moralidade, mas sim, quis construir uma com
bases teológicas. Poderíamos dizer que Schopenhauer pensa ter sido a vontade de
“manter a possibilidade da teologia viva” por meio da moral, o verdadeiro interesse de
Kant ao escrever sua fundamentação moral. Em nenhum momento Kant teria buscado a
verdade sobre a ética, e sim, um meio de, através da filosofia, manter a teologia ainda
possível. Essa é a conclusão que chegamos depois das palavras de Schopenhauer, que
afirma que Kant quis construir uma teologia as avessas. Nosso pensador quis dizer com
isso que Kant através da moral levaria o homem a crença em deus, já que sem algum
deus sua moral não faria sentido. Percebe-se aqui o esforço de Schopenhauer em
destruir qualquer porta para a moral teológica cristã na moral de Kant. Se Schopenhauer
realmente está com a razão ou não, é algo que não nos cabe responder, mas sua
interpretação da moral kantiana é realmente essa.
Tal suposição, ainda que não explícita, pode ser encontrada facilmente na crítica
de Schopenhauer à fundamentação moral kantiana e não pode ser descartada, já que,
como acima vimos nas próprias palavras de Kant, o ceticismo e o ateísmo seriam males
que, através de sua Crítica da razão pura, ele se propunha a combater. Mas já que

60
Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo:
2001. p. 21 - 22
61
Kant I. Crítica da razão pura, In “OS PENSADORES”trad. Valerio Rohden e Udo Moosburger, Nova Cultural, São
Paulo: 1996 p. 47
33

Schopenhauer cita a Crítica da razão prática vamos até ela, investigar esses pontos
obscuros dessa crítica.
Esses trechos podem parecer inapropriados por não tratarem de forma exclusiva
da Fundamentação metafísica dos costumes, livro sobre o qual Schopenhauer se
debruça para elaborar sua crítica à moral kantiana, mas eles mostram que a tentativa
kantiana de manter a religião aceitável não se encontra apenas em seu pensamento
moral, mas também em toda sua obra. Muitos partilham do pensamento de
Schopenhauer sobre os pressupostos teológicos ocultos na obra de Kant, como por
exemplo, Michel Onfray, mas, interessante notar, que ninguém cita nosso pensador
como aquele que fez essa afirmação tão claramente. Schopenhauer ainda diz antes de
terminar sua crítica ao imperativo categórico:
Dito de forma abstrata, o procedimento de Kant é o de ter dado como
resultado aquilo que teria de ser o princípio ou o pressuposto (a teologia) e de
ter tomado como pressuposto aquilo que teria de ter sido derivado como
resultado (o mandamento). Porém, depois que ele virou a coisa de ponta
cabeça, ninguém, nem mesmo ele, a reconheceu como sendo aquilo que era, a
velha e bem conhecida moral teológica. 62
Assim, não teria Kant despertado totalmente do seu sono dogmático. A moral
kantiana nessa primeira crítica aparece como, consciente ou inconscientemente, o que
pode ria ser chamado de erro, um meio de atingir a teologia, aquilo que seria o fim
aparece como princípio, da crença em um deus qualquer surgem mandamentos,
preceitos a serem seguidos, em qualquer crença religiosa o mandamento surge depois
dela, o que Schopenhauer nos diz é que Kant construiu algo invertido, é isso que ele
quer dizer quando acima citamos, “virou de ponta cabeça”.
Mas a crítica moral kantiana continua e agora veremos mais pontos específicos
dela que nos levarão a compreensão de onde Schopenhauer quer chegar ao
examinarmos a sua fundamentação da moral.

62
Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo:
2001. p. 30/
34

1.4 Crítica à admissão dos deveres a nós próprios

Outro ponto interessante da Fundamentação da metafísica dos costumes, diz


respeito aos deveres que teríamos em relação a nós mesmos, ao qual Schopenhauer
também não poupa críticas. Kant afirma que o “tu deves” também existe para o homem
em relação a si mesmo. Assim, não em relação apenas ao mundo e às outras pessoas o
homem possui um dever a cumprir, mas também a si mesmo, existe uma atitude correta
a ser seguida. Tal suposta atitude também será alvo das críticas de Schopenhauer que
continuam duras e irônicas.
Schopenhauer dir-nos-á que só existem dois deveres em relação a nós próprios:
deveres de direito ou deveres de amor.63 Ele afirmará que deveres de direito são para
nós impossíveis de serem realizados, pois sempre fazemos conosco aquilo que
queremos. Jamais alguém poderia afirmar que um homem comete uma injustiça contra
si mesmo, no máximo, tal pessoa que cometeria uma “injustiça” contra si mesmo,
estaria equivocada em relação ao efeito benéfico que o ato praticado lhe traria, o que,
quando descoberto, seria desfeito ou seria ponto de partida para uma reparação.
Já nos deveres de amor a contradição seria ainda mais evidente já que o “amar a
si mesmo” seria algo mais que evidente em todos os seres humanos. Schopenhauer cita
a passagem do evangelho no qual tal verdade seria explicitamente indicada:
A impossibilidade de ferir a obrigação do amor-próprio já vem pressuposta
no mais alto mandamento da moral cristã – “Ama teu próximo como a ti
mesmo” (Mateus 22,39) -, segundo o qual o amor que cada um nutre por si
mesmo é tomado previamente como o máximo e a condição de qualquer
outro é complementado, de nenhum modo, pelo ‘ama a ti mesmo como a teu
próximo”, pelo que cada um sentiria que seria obrigado a muito pouco.64
Nessa regra moral, vemos que o amor a si mesmo é considerado o maior de
todos e ela nos pede que amemos os outros com o mesmo amor, com a mesma
intensidade que nós amamos a nós mesmos, pois, o amor que voltamos para nós
mesmos não é de nenhuma forma um dever, e sim, algo espontâneo. Ainda sobre os
“deveres” que temos para com nós mesmos, Schopenhauer nos dirá: “O que se

63
Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo:
2001. p. 31
64
Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo:
2001. p. 31
35

apresenta de costume como dever em relação a nós próprios é, antes de tudo, um


arrazoamento contra o suicídio, fortemente preso a preconceitos e extraído de razões as
65
mais superficiais.” Esclareçamos sobre o que foi dito acima, pois no pensamento de
Schopenhauer o homem é sempre egoísta, com exceção do momento no qual sente a
compaixão ou nega a vontade, assim pensar apenas em si mesmo ou naquilo que é
melhor para si mesmo lhe é algo natural e não há como isso não acontecer, assim as tais
regras de amor ou dever para consigo mesmo não necessitariam existir em nenhum
momento, já que isso seria algo natural do homem, já em relação ao suicídio, a crítica
de Schopenhauer que, mesmo não sendo um defensor do suicídio, terá elementos um
pouco mais polêmicos de seu pensamento, ele dirá que ele é uma compensação para o
homem que, diferentemente do animal, pode “viver” passado e futuro juntamente com o
presente graças a razão, como já vimos, coisa que aumentaria ainda mais seu
sofrimento. No animal o passado e o futuro não existem, assim como a racionalidade
também não. O animal não experimenta o sofrimento de prever uma situação desastrosa
ou simplesmente ruim, às vezes inevitável, ou de se remoer em sofrimento por um fato
acontecido no passado e que ainda lhe atinge com dor, como acontece nos seres
humanos. Para Schopenhauer os motivos que fazem com que um homem não cometa
suicídio devem ser motivos muito mais profundos do que aqueles apresentados por
Kant. Esses motivos podem ser encontrados em O Mundo como vontade e como
representação. Nesse livro o suicídio é apresentado por Schopenhauer como um ato
vão, sem sentido, pois exterminaria apenas o indivíduo enquanto toda a espécie
permaneceria no sofrimento da vida, a essência de tudo, sempre uma, a vontade,
continuaria a existir assim como a dor. Longe de ser um ato de negação da vida, que
Schopenhauer defende como a mais alta meta da vida, talvez sua única meta, o suicídio
é um ato de afirmação equivocada da vida, fruto do apego aos prazeres terrenos que
tantos nos escravizam ou a própria vida. Como veremos no segundo capítulo deste
trabalho, Schopenhauer é um pessimista e vê na vontade, como dito na introdução, o
“em si” kantiano e também a responsável pela a existência de tudo o que existe.
Libertar-se dessa vontade seria a “missão” do homem e o único meio de acabar com
todo o sofrimento da existência até o aniquilamento total. Suicidar-se seria algo bem

65
Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo:
2001. P. 32
36

distante desse pensamento. Vejamos o que ele nos fala no quarto livro de O Mundo
como vontade e como representação sobre o assunto:
Nada mais difere tão amplamente da negação da Vontade de vida, exposta
suficientemente nos limites do nosso modo de consideração, e que constitui o
único ato de liberdade da Vontade a entrar em cena no feno individual, na
efetividade, portanto é como Asmus a define, a mudança transcendental do
que a efetiva supressão do fenômeno individual, na efetividade, pelo
SUICÍDIO. Este, longe de ser negação da Vontade, é um acontecimento que
vigorosamente a afirma66.
Mas, depois de fazermos essa observação sobre a visão de Schopenhauer sobre o
suicídio que, como veremos na conclusão deste trabalho, será de extrema importância
para a compreensão da moral de Schopenhauer no tocante à liberdade e,
conseqüentemente, à sua fundamentação da moral, voltemos à sua crítica à Kant e
também à suas ironias sobre o mesmo. Vejamos o que Schopenhauer diz sobre a
questão do suicídio em Kant:
Também as razões contra o suicídio que Kant, nas pp. 53 e 67, não desdenha
de alegar, posso apenas, de modo escrupuloso, intitular de mesquinharias que
nem ao menos merecem uma resposta. Temos de rir quando pensamos que
tais reflexões teriam de arrancar o punhal das mãos da Catão, de Cleópatra,
de Cocio Nerva (Tacitus, Anais 6, 26) ou de Arria de Paetos (Plínio,
Epístolas 3, 16)67.
Como vimos o suicídio não é algo moralmente reprovável no pensamento de
Schopenhauer, ele apenas é algo estúpido sem nenhum efeito. Para Schopenhauer o
suicídio pode até mesmo ser visto como a oportunidade concedida pela natureza ao
homem que não resiste aos seus sofrimentos.
Eis abaixo os comentários de Kant a respeito do suicídio em sua Fundamentação
da metafísica dos costumes:
Uma pessoa, que por uma série de desgraças, chegou ao desespero e sente
tédio da vida, mas está ainda bastante em posse da razão para poder perguntar
a si mesma se não será talvez contrário ao dever para consigo mesma atentar
contra a própria vida. E procura agora saber se a máxima de sua ação se
poderia tornar em lei universal da natureza. A sua máxima, porém é a
seguinte: Por amor de mim mesmo, admito como princípio que, se a vida,

66
Schopenhauer, A.O mundo como vontade e como representação, trad. Jair Barboza, UNESP, 2005 São Paulo: p.504
67
Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo:
2001. p. 32
37

prolongar-se, me ameaça mais com desgraças do que me promete alegrias,


devo encurtá-la. Mas pergunta-se agora se esse princípio do amor a si mesmo
se pode tornar em lei universal da natureza. Vê- se em breve que uma
natureza, cuja lei fosse destruir a vida em virtude do mesmo sentimento cujo
objetivo é suscitar a sua conservação, se contradiria a si mesma e portanto
não existiria como natureza. Por conseguinte, aquela máxima não poderia de
forma alguma dar-se como lei universal da natureza, e, portanto é
absolutamente contrária ao princípio supremo de todo dever68.
Mais à frente Kant ainda falará sobre o suicídio:
Segundo o conceito de dever necessário para consigo mesmo, o homem que
anda pensando em suicidar-se perguntará a si mesmo se a sua acção pode
estar de acordo com a idéia de humanidade como fim em si mesma
necessário para consigo mesmo, o homem que anda pensando em suicidar-se
perguntará a si mesmo se a sua ação pode estar de acordo com a idéia da
humanidade como um fim em si mesma. Se, para escapar a uma situação
penosa, se destrói a si mesmo, serve-se ele de uma pessoa como de um
simples meio para conservar até o fim da vida uma situação suportável. Mas o
homem não é uma coisa; não é portanto um objeto que possa ser utilizado
simplesmente como um meio, mas pelo contrário deve ser considerado
sempre em todas as suas ações como um fim em si mesmo. Portanto, não
posso dispor do homem na minha pessoa para mutilar, ou degradar ou
matar.69
Esses dois comentários de Kant fazem parte da Segunda Seção do livro
Fundamentação da metafísica dos costumes, na qual são apresentadas a “máximas”
deduzidas do princípio da moral kantiana que é o imperativo categórico segundo o
próprio Kant, e que também será alvo das mais severas críticas por parte de
Schopenhauer. Uma das máximas é a seguinte: “age apenas segundo uma máxima tal
qual que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne uma lei universal”70
Importante notar que Schopenhauer sequer deseja tecer algum comentário crítico
sobre essas duas passagens sobre o suicídio em Kant, por considerá-las absurdas demais
para tal. Na realidade, essas observações de Kant sobre o suicídio se encontram
apoiadas também no imperativo categórico, agora, como vimos acima, apresentado
através de uma de suas máximas derivadas.

68
Kant I. Fundamentação da metafísica dos costumes, trad. Paulo Quintela, Edições70, Lisboa Portugal: 2008 p. 62-63
69
Kant I. Fundamentação da metafísica dos costumes, trad. Paulo Quintela, Edições70, Lisboa Portugal: 2008 p. 73
70
Kant I. Fundamentação da metafísica dos costumes, trad. Paulo Quintela, Edições70 Lisboa Portugal: p.62
38

Ainda existe um último aspecto dos deveres em relação a nós mesmos a ser
criticado por Schopenhauer, para ele, esses deveres seriam na realidade, em sua maioria,
apenas regras de bem viver ou de prudência. Não é por dever que um homem se
resguarda de praticar algo que lhe seria nocivo para sua própria vida. Apesar de
Schopenhauer não afirmar tal posicionamento, entendemos que o que ele quer dizer é
que essas prescrições nada mais são do que formas de “bem viver” ligadas, por
exemplo, à higiene, quando cita os casos de bestialidade e onanismo. Tais preocupações
nada teriam de moral, com exceção, entre os casos que ele cita a pederastia que, por
envolver a corrupção de um jovem seria algo a ser pensado no âmbito moral.
Dessa forma, vemos que Schopenhauer mais uma vez tenta acabar com a noção
de dever encontrada em Kant. Até mesmo esses supostos deveres do homem para
consigo mesmo, nada mais seriam do que regras para se alcançar uma vida mais feliz,
ou no mínimo, uma vida sem problemas. Também aqui, notamos que nosso autor volta
a afirmar, mesmo que de maneira indireta, a dupla contradição, já apresentada no item
anterior, que estaria escondida na moral kantiana: a moral teológica e o Eudemonismo,
ambos incompatíveis que a concepção de moral apresentada pelo próprio Kant. Mesmo
tendo Kant afirmado que não se trata disso quando, por exemplo, ele diz: “Quando, por
exemplo, dizemos: ‘Não deves fazer promessas enganadoras’, - admitimos que a
necessidade dessa abstenção não é somente o conselho para evitar qualquer outro mal,
como se disséssemos: ‘Não deves fazer promessas mentirosas, para não perderes o
crédito quando se descobrir o teu procedimento”71

71
Kant I. Fundamentação da metafísica dos costumes, trad. Paulo Quintela, Edições70, Lisboa Portugal: 2008 p.59
39

1.5. Crítica ao fundamento da ética kantiana

Nesse item de seu ensaio, Schopenhauer irá criticar a forma com a qual Kant
conclui a existência do dever e, conseqüentemente, do imperativo categórico e da lei
moral. Podemos dizer que esse é o ponto mais importante da crítica de Schopenhauer a
Kant, pois nele é apresentada de forma pormenorizada a grande contradição que
Schopenhauer aponta como o erro de toda moral kantiana.
Ter feito a distinção em “a priori” e o “a posteriori” foi seu grande feito; seu
erro foi ter tentado levar essa “formula” até a moral, deixando-a sem sentido e vazia.
Vejamos o que Schopenhauer diz:
Com a distinção entre “a priori” e o a “posteriori” no conhecimento humano,
ele fez a descoberta mais surpreendente e mais coroada de êxito de que pode
gabar-se a metafísica. Por que se admirar com o fato de que ele procure então
aplicar esse método por toda a parte?72
Schopenhauer verá na Fundamentação metafísica dos costumes, a tentativa, por
parte de Kant, de apresentar uma moral cognoscível “a priori”, rejeitando assim tudo
aquilo que seja empírico. A suposta lei moral kantiana seria previamente admitida sem
nenhuma justificativa, dedução ou prova. Sem nenhuma experiência, qualquer que
fosse. Longe, então, de utilizar-se do empirismo para encontrar sua moral, Kant o rejeita
completamente, afirmando que o mesmo jamais poderia fundamentar a questão moral.
Tal moral deveria ser conhecida em si mesma e não avaliada nas ações desenvolvidas a
partir dela.
Importante ressaltar que, com esse desprezo pelo empirismo, não só a
experiência externa como também a interna seria deixada de lado por Kant.
Schopenhauer afirmará isso claramente:
Ele rejeita a experiência externa ainda mais decididamente que a interna, pois
recusa toda fundamentação empírica da moral. Portanto ele não fundamenta –
o que peço que se note bem – seu princípio moral em qualquer fato de
consciência que seja demonstrável, algo como uma disposição interna.
Menos ainda em qualquer relação objetiva das coisas no mundo exterior.
Não! Isso seria uma fundamentação empírica.73

72
Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo:
2001. p. 34
73
Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo:
2001. p. 35
40

Vejamos as palavras de Kant sobre sua própria moral:


Ora, a lei moral, na sua pureza e autenticidade (e é exatamente isto que mais
importa na prática), não se deve buscar em nenhuma outra parte senão na
filosofia pura, e esta (Metafísica) tem que vir portanto em primeiro lugar, e
sem ela não pode haver em parte alguma uma Filosofia moral; e aquela que
mistura os princípios puros com os empíricos não merece mesmo o nome de
filosofia (pois esta distingui-se do conhecimento racional comum exatamente
por expor em ciência à parte aquilo que este conhecimento só concebe
misturado); merece ainda muito menos o nome de Filosofia moral, porque,
exatamente por este amálgama de princípios, vem prejudicar até a pureza dos
costumes e age contra a sua própria finalidade.74
Com isso, Schopenhauer dirá que a ética kantiana se apóia em conceitos
totalmente abstratos, conceitos que não se sustentam em nada, mas que seriam capazes
de constituírem uma lei capaz de guiar todos os seres humanos em seus atos. Mas não
apenas dos seres humanos ela seria o guia, como também, nos próprios dizeres de Kant,
de todo ser racional definindo a moral como um comando da razão de maneira
metafísica.
Kant apresentaria, segundo Schopenhauer, uma razão pura, também produtora
da moral, que existe independentemente do próprio homem, uma razão pura que
existiria por si mesma. A moral se dirigiria não apenas ao homem, mas também para
todos os seres racionais. Schopenhauer, em seu raciocínio, levantará a seguinte questão
em nós: que outros seres racionais são esses que não os homens? Schopenhauer dirá que
impossível é pensar a razão existindo por si mesma, impossível seria vê-la sem o
homem:
Do mesmo modo que conhecemos a inteligência como sendo, em geral,
apenas uma propriedade dos seres animais e, por isso mesmo, nunca estamos
justificados a pensá-la como existente independentemente da natureza
animal, assim também conhecemos a razão somente como propriedade da
espécie humana e não estamos autorizados a pensá-la como existindo fora
dela e formando um gênero “ser racional” que seja diferenciado de sua única
espécie “ser humano” e, ainda menos, a estabelecer leis para tais seres
racionais em abstrato.75
Nesse ponto surge para Schopenhauer, mais um grande absurdo na filosofia
moral kantiana que ele irá ironizar com as seguintes palavras:

74
Kant I. Fundamentação da metafísica dos costumes, trad. Paulo Quintela, Edições, Lisboa Portugal: 2008 p.59
75
Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo:
2001. p. 37
41

Falar de seres racionais fora do homem não é diferente de se querer falar de


seres pesados fora dos corpos. Não se pode evitar a suspeita de que Kant
teria aí pensado um pouco nos queridos anjinhos ou que tivesse contado com
a sua ajuda para a persuasão do leitor.76
Mesmo que de maneira não explícita, fica-nos claro que Schopenhauer afirma
mais uma vez a existência inequívoca da teologia na moral kantiana. Ao ironizar Kant
falando em “anjinhos”, não apenas está levantando uma simples suspeita, mas sim, mais
uma vez uma “acusação”: existência de religiosidade nos escritos de Kant. Ele deixa
isso claro no parágrafo seguinte dizendo:
Em todo o caso, aí se encontra uma pressuposição silenciosa da “anima
rationalis”, que difere totalmente da “anima sensitiva” e da “anima
vegetativa” e que permanece após a morte e que, então, nada mais é do que
simplesmente “rationalis”77
Schopenhauer dirá, depois dessa conclusão que o que se pressupõe estar por
detrás da moral kantiana, tanto na Fundamentação metafísica dos costumes quanto na
Crítica da razão prática, nada mais é do que a razão como sendo a essência imortal do
homem, ou seja, a existência de um “eu” individual e imortal, coisa que, segundo
Schopenhauer, o próprio Kant já havia rejeitado como possibilidade de se conhecer em
sua Crítica da razão pura, aliás, como já citado no inicio desse capítulo. Assim, além
da afirmação da impossibilidade da existência de uma razão criadora de leis morais,
razão que existiria por si mesma, independentemente de qualquer experiência,
Schopenhauer aponta o erro da teologia, que já estudamos contida de forma inequívoca
na moral kantiana.
Em relação à razão, Schopenhauer nos dirá que ela não é a formadora do homem
e jamais poderá ser a fonte do fenômeno, ela pertence ao fenômeno, está condicionada
ao fenômeno, ou seja, ao homem e, fora dele, jamais poderia existir. No pensamento de
Schopenhauer a razão nada mais é do que instrumento da vontade o que impossibilitaria
tal afirmação de Kant. O erro de Kant foi tentar levar até a moral conhecimentos “a
priori”; conhecimentos esses que apenas poderiam nos dar os meios de se conhecer o
mundo, e “legislar” apenas as experiências que nos chegam, mas jamais, estabelecer
padrões de condutas morais existentes por si mesmos. Desprezar a experiência foi o erro

76
Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo:
2001. p. 37
77
Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo:
2001. p. 37
42

de Kant e, por causa desse erro, sua moral permanece praticamente incompreensível e
sem nenhuma sustentação.
Segundo Schopenhauer, Kant se esqueceu que o “em si” das coisas em sua
própria teoria, permanece incognoscível e a contradição do fundamento da lei moral
kantiana está em apresentar essa suposta lei como não pertencente ao fenômeno.
Longe de agir por amor, compaixão, respeito, justiça ou caridade, o homem que
age de forma genuinamente moral, segundo Kant, age por dever. Não há compaixão,
amor ou qualquer outro sentimento, apenas o dever de agir. Assim A moral kantiana é
apenas formal, sem nenhum conteúdo O homem indiferente, insensível, que não se
emociona frente a qualquer situação de sofrimento do homem e age comandado por esse
dever, age mais moralmente do que aquele que, movido por extrema compaixão, salva
outro ser humano de uma situação desastrosa. Schopenhauer afirmará que apenas uma
moral de escravos seria capaz de fazer isso: mover um homem indiferente a uma ação
moral. O medo, mais uma vez, aparece como sendo o responsável pela atitude desse
homem já que não há nenhuma intenção de fazer o bem. Schopenhauer, colocando-se
diretamente contra a moral kantiana, dirá que a intenção de fazer o bem é o único
critério de avaliação de uma ação moral.
Nietzsche também comentará em sua obra Aurora esse pensamento de
Schopenhauer sobre a moral kantiana:
É visto como bom tudo o que, de algum modo, corresponde a esse impulso
formador de corpo e membros, e a seus impulsos auxiliares, esta é a corrente
moral fundamental de nosso tempo; empatia individual e sentimento social aí
se conjugam. (Kant ainda está fora desse movimento: ele ensina
expressamente que devemos ser insensíveis ao sofrimento alheio, para que
nossa beneficência tenha valor moral – o que Schopenhauer, muito irritado,
como se pode compreender, chama de insipidez kantiana.78
Assim, a verdadeira sustentação da moral kantiana que permanece todo o tempo
oculta em sua obra é a teologia. Sem ela seria impossível imaginar a moral kantiana
provida de sentido.
A crítica ainda continua sobre o Dever de Kant. Schopenhauer dirá que um
Dever acontecerá necessariamente, ao passo que o próprio Kant afirma que a atitude que
deveria ser praticada em respeito a esse dever, nem sempre acontece. Jamais um dever,

78
Nietzsche F. Aurora, trad. Paulo César de Souza, Companhia das Letras, são Paulo, 204 p.102
43

uma necessidade absoluta poderia deixar de ser cumprida, segundo Schopenhauer, é a


noção de uma necessidade absoluta que irá aparecer nas palavras de Kant para a
definição de Dever: “Dever é a necessidade de uma ação por respeito à lei”. 79 Tal
respeito a essa lei seria inevitável e não fruto de uma escolha por parte do homem. Kant
também afirmará:
Pois que aquilo que deve ser moralmente bom não basta que seja conforme à
lei moral, mas tem também que cumprir-se por amor dessa mesma lei; caso
contrário, aquela conformidade será apenas muito contingente e incerta,
porque o princípio imoral produzirá na verdade de vez em quando ações
conformes à lei moral, mas mais vezes ainda ações contrárias a essa lei.80
A contradição dessas afirmações fica ainda mais clara para Schopenhauer,
quando Kant diz que não existe nenhum exemplo na experiência que seja
suficientemente seguro para apontar uma atitude cuja disposição se deu por respeito ao
Dever. Assim onde estaria a necessidade de tal ação, ou melhor, como atribuir a ela
necessidade? Em razão dessa observação, Schopenhauer dirá:
Já que é justo interpretar um autor sempre pelo mais favorável, digamos que
o que ele quer dizer é que uma ação conforme ao dever é necessária e
objetivamente, mas subjetivamente casual. No entanto não é tão fácil pensar
tal coisa quanto dizê-la: onde está pois o objeto dessa necessidade objetiva,
cujo resultado muitas vezes e talvez nunca se dê na realidade objetiva? Com
toda a justeza de interpretação, não posso deixar de dizer que a expressão da
definição ‘necessidade de uma ação’ não é outra coisa uma perífrase
artificiosamente escondida, bem torcida, da palavra deve.81 .
Como já feito várias vezes por Schopenhauer, aqui, mais uma vez, aparece uma
fundamentação da moral baseada na teologia ou que pelo menos abre espaço para o
ressurgimento da teologia. Pode parecer, ao leitor desatento, que Schopenhauer está
sendo extremamente repetitivo, mas o que entendemos é que ele está fazendo em sua
crítica à moral kantiana é mostrar que em todos os pontos dessa moral encontra-se um
vazio, isto é, formalidade, que só pode ser preenchido pela teologia que, por sua vez,
não pode fundamentar a ética de nenhuma maneira. Como dissemos anteriormente,

79
Kant I. Fundamentação da metafísica dos costumes, trad. Paulo Quintela, Edições, Lisboa Portugal: 2008 p.31
80
Kant I. Fundamentação da metafísica dos costumes, trad. Paulo Quintela, Edições, Lisboa Portugal: 2008 p.16
81
Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo:
2001. p.41 - 42
44

Schopenhauer vê em Kant a intenção de recolocar a teologia na filosofia ocultando-a


através de conceitos que em si mesmos nada valem:
Esta intenção torna-se mais familiar para nós quando notamos que a palavra
respeito é empregada na mesma definição, onde se queria dizer obediência. A
saber, na nota da p. 16 está dito: ‘Respeito significa apenas a subsunção de
minha vontade sob uma lei. Esta determinação imediata pela lei, e a
consciência dela, chama-se respeito’. Em que língua? O que está dito aqui
quer dizer, em alemão, obediência, então isto teria de servir a alguma
intenção, e esta não é manifestamente outra senão a de ocultar a proveniência
da forma imperativa e do conceito de dever a partir da moral teológica. Como
vimos anteriormente, a expressão necessidade de uma ação, que tomou lugar
do deve, de modo bem torcido e desajeitado, só foi escolhida porque o deve é
precisamente a linguagem do Decágolo. A definição acima – ‘o dever é a
necessidade de uma ação por respeito diante de uma lei’ – diria portanto
numa linguagem sem rodeios e descoberta, isto é, sem máscara: o dever
significa uma ação que deve acontecer por obediência em relação a uma lei.
Este é o nó da questão82.
Fica claro nas palavras acima que Schopenhauer, durante toda a sua crítica à
moral kantiana, a analisa profundamente e através de suas contradições e falta de
sentido chega à conclusão do real intuito de Kant em toda a sua fundamentação moral
que é a teologia. Até mesmo, como foi visto na citação acima, certas palavras foram
colocadas de forma proposital no texto por Kant, para atingir esse fim.

82
Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo:
2001. p.42
45

1.6 Crítica à lei moral kantiana

“E agora a lei, está última pedra de toque da ética kantiana! Qual seu conteúdo?
83
E onde está escrita? Esta é a questão principal”. Essas são as perguntas que
Schopenhauer irá lançar sobre a chamada lei moral que Kant apresenta em sua
fundamentação. Antes de examiná-la, Schopenhauer pensa ser de suma importância
saber diferenciar o que seja princípio e fundamento da ética.
O princípio da ética segundo Schopenhauer é uma expressão que melhor
conceitua o agir ético. Podemos usar como exemplo, uma velha conceituação do agir
moral bem conhecida pela maioria das pessoas: “Faça o bem sem olhar a quem”. Tal
conceituação diz respeito ao agir propriamente dito, ou seja, ela expressa uma ação de
forma genérica que representa um valor moral a ser seguido, no caso, fazer o bem a
todas as pessoas independentemente de serem essas pessoas boas ou más, conhecidas ou
merecedoras de receberem o bem. Também pode haver uma conceituação do princípio
ético baseada em uma forma imperativa, em uma lei que estabelece padrões de conduta
a serem seguidos.
Diferentemente, a fundamentação da ética, não é uma expressão que conceitua o
agir ético como vimos, e sim, que o fundamenta. A fundamentação da ética expõe os
motivos pelos quais determinadas atitudes éticas devem ou não ser seguidas. Segundo
Schopenhauer, tal diferenciação é extremamente importante, já que Kant teria unido
ambas:
Quando retornamos à nossa questão acima: qual o teor da lei em cujo
cumprimento consiste, de acordo com Kant, o dever e em que ela se funda?
Descobriremos que também Kant ligou estreitamente o princípio da moral
com o seu fundamento de um modo bastante artificial.84
Para Schopenhauer até mesmo Kant sentiu a dificuldade em unir o fundamento
da moral com seu princípio. Propor uma proposição sintética “a priori” em relação à
moral, ou seja, leis morais que determinem o comportamento do homem no mundo
objetivo sem nenhuma sustentação empírica é a tarefa que o próprio Kant se impõe.

83
Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo:
2001. p.43
84
Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo:
2001. p.45
46

Schopenhauer dirá que a solução desse problema foi “alcançada” através da


tentativa de estabelecer, em relação à moral, a universalidade dessa mesma moral. A
universalidade da lei moral seria seu conteúdo e Kant teria chegado até a seguinte
proposição: “Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer
que ela se torne uma lei universal”. 85 Essa seria a proposição que fundamentaria toda a
sua moral, o que demonstraria o imperativo categórico, e também um equívoco
grosseiro no modo de pensar de Schopenhauer. Segundo ele, uma proposição como essa
só poderia ser encontrada através do pensamento do homem que, depois de iniciar sua
vida e tomar contato com o mundo exterior, analisa a convivência humana, os
problemas dos quais é vítima e as circunstâncias nas quais vive e chega até essa
conclusão. Jamais tal proposição, poderia estar de forma inata na mente do homem,
pois, ela requer experiência.
Para Kant, essa proposição, segundo Schopenhauer, apenas surge no homem de
modo imperativo e a ela não cabe nenhum questionamento em relação a sua origem, o
que, para Schopenhauer, é um total absurdo. Na visão de nosso pensador, a moral tem
de ser empírica já que para o homem apenas aquilo que é empírico pode determinar uma
atitude do ser humano.
Pois a moral tem a ver com a ação efetiva do ser humano e não com castelos
de cartas apriorísticos, de cujos resultados nenhum homem faria caso em
meio ao ímpeto da vida e cuja ação, por isso mesmo, seria tão eficaz contra a
tempestade das paixões quanto a de uma injeção para o incêndio.86
Nesse ponto da crítica à moral kantiana, é impossível não notar a presença da
própria filosofia de Schopenhauer. Até aqui, vimos uma crítica baseada, quase que
exclusivamente, ou pelo menos na pretensão de Schopenhauer, apenas no próprio
pensamento de Kant. Com exceção da importância do empirismo ressaltada no inicio
desse trabalho, a fundamentação kantiana da moral, foi a base utilizada por
Schopenhauer, para sua própria crítica. Agora, vemos a sua própria idéia sobre o mundo
e os homens aparecer de forma explícita como quando antes estava “oculta”, como que
estabelecendo o inicio de uma ligação entre a primeira parte de sua dissertação e a
segunda, na qual ele exporá o seu fundamento da moral. Assim, surgem as próprias
convicções de Schopenhauer como fonte de questionamento e crítica à Kant.

85
Kant I. Fundamentação da metafísica dos costumes, trad. Paulo Quintela, Edições, Lisboa Portugal: 2008 p.62
86
Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo:
2001. p.52
47

Para Schopenhauer, apenas conceitos abstratos, da forma com a qual Kant os


apresenta fundamentando a moral, não seriam capazes de deter o homem em suas
paixões, egoísmo e maldade.
Aquilo que para Kant é incognoscível, o “em si”, para Schopenhauer pode ser
conhecido e é a vontade. A vontade formadora de tudo, inclusive dos homens, e que dá
a eles não só o desejo incessante, mas também a noção de individualidade no mundo
fenomênico responsável pelo egoísmo. Assim, o homem sempre se encontra dominado,
escravizado por seus desejos e por ele faz absolutamente tudo. Dessa forma, em um
mundo egoísta, no qual a vontade particular sempre se sobrepõe à vontade de todos e,
conseqüentemente, o interesse pessoal é o maior de todos os impulsos para as ações
humanas, como, conceitos abstratos, poderiam ter alguma força para deter esses
impulsos e determinar uma moral não só desinteressada como também universal? Dessa
vez, é a afirmação de Schopenhauer de que o homem é a objetivação da vontade, que
aparece oculta para criticar a real efetividade da moral kantiana. Assim, mais um erro de
Kant, é a junção de princípio moral com seu fundamento e também a sua total ineficácia
frente aos desejos humanos:
Por isso, a falta de conteúdo é o segundo erro da fundamentação kantiana da
moralidade. Isto não foi notado até aqui, porque o acima claramente exposto
fundamento próprio da moral kantiana só se tornou provavelmente claro por
completo para poucos entre os que o celebraram e propagaram. O segundo
erro é portanto a falta total de realidade e por isso de efetividade possível.87
Schopenhauer ainda dirá logo abaixo, de maneira bem simples, não deixando
dúvida sobre sua crítica: “Paira no ar como uma teia de aranha de conceitos, os mais
sutis e vazios de conteúdo, não se baseia em nada e não pode por isso nada suportar e
nada mover”88.
Fica claro aqui, como apresentado na introdução desse trabalho, o ponto sobre o
qual recai toda a crítica de Schopenhauer à moral kantiana, mais do que em qualquer
outro momento. Para Schopenhauer a moral kantiana é simplesmente vazia, constituída
de conceitos abstratos que, em nenhum momento, podem sustentá-la. Por detrás de
todos esses conceitos, o que realmente existe é a teologia, que seria a única coisa capaz
de dar sustentação a todo o edifício da moral kantiana.

87
Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo
2001: p.52
88
Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo
2001: p.52
48

Ainda, em sua crítica ao fundamento da ética kantiana, Schopenhauer irá propor


a análise desse fundamento e a teologia ainda aparecerá. Em relação ao fundamento da
razão prática, Schopenhauer dirá:
Acharemos então que ela procede de uma doutrina que Kant contradisse
profundamente, mas que, no entanto, encontrava-se, mesmo que
inconscientemente para ele, como reminiscência de um modo de pensar
precedente, no fundamento de sua admissão de uma razão prática com seu
imperativo e sua autonomia. É a psicologia racional, de acordo com a qual o
homem compõe-se de duas substâncias heterogêneas, o corpo material e a
alma imaterial.89
Schopenhauer apresentará um breve histórico das idéias sobre a existência
material e salientará o ponto em que, a moral kantiana, no seu modo de ver, se apóia. A
diferenciação entre a alma e corpo, faria da alma o princípio do homem e, por si mesma,
ela seria cognoscente, não dependendo em nada do corpo. Essa alma conheceria então,
nos dizeres de Schopenhauer, conceitos universais, abstratos, inatos e assim por diante.
Quando a alma atua juntamente com seu corpo, o que acontece é uma atividade
impura, viciosa e não representante da grandiosidade dessa alma. Assim, aquilo que de
fato é puro e verdadeiro no homem está, tão somente, ligado à vontade e à razão dessa
alma enquanto ela não “interage” com o corpo.
Assim, em total “coincidência” com essa visão transcendente da existência do
homem, aparece a razão pura de Kant que, sem nenhuma experiência, seja ela qual for,
é capaz de trazer em si uma lei moral que dite antes mesmo de qualquer fato acontecer
no mundo objetivo, o que se deve ou não fazer. E ainda, mais que isso, jamais tais atos
morais poderiam estar ligados com o mundo objetivo.
A vontade determinada, pois, por um conhecimento condicionado
sensivelmente era a mais inferior e, muitas vezes, má, pois o seu querer era
dirigido pelas excitações sensoriais; ao passo que aquele outro era um querer
dirigido tão-só pela razão pura pertencente tão-só è alma imaterial.90
Depois dessas exposições claras feitas por nosso filósofo, ele afirmará ser essa a
fonte do fundamento da moral no pensamento de Kant:
De uma reminiscência não claramente consciente de tal concepção proveio,
finalmente, a doutrina kantiana da autonomia da vontade, que, tomada, como
voz da razão pura prática, é legisladora para todo ser enquanto racional e

89
Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo:
2001. p.63
90
Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo:
2001. p.65
49

conhece meramente razões formais de determinação, em oposição às


materiais, que, como tal, determinam apenas a faculdade de desejar inferior
que age contra a superior.91
Vemos a crítica de Schopenhauer ao fundamento da moral kantiana, como sendo
a parte mais importante de toda a crítica. Nela fica extremamente claro como
Schopenhauer chegou à conclusão de que Kant tentou reintroduzir a teologia na
filosofia conscientemente ou não. Ainda temos como adiante se verá a importância que
Schopenhauer dá para a avaliação dos atos dos homens, que podem ser vistos e
avaliados, para o encontro daquela que o autor apresentará como sendo a verdadeira
fundamentação da moral. Dessa forma, podemos entender os motivos pelos quais
Schopenhauer considerou ser de suma importância a avaliação da Fundamentação da
metafísica dos costumes, pois os erros nela contidos mostram, ainda que de maneira
incompleta, o verdadeiro caminho a seguir para encontrar-se a verdadeira
fundamentação da moral dentro do pensamento de Schopenhauer.

91
Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo:
2001. p.66
50

1.7 Crítica ao princípio máximo da ética kantiana e as suas


formas derivadas

Depois de investigar e avaliar o fundamento da moral kantiana, Schopenhauer


irá criticar, ainda de maneira mais dura, a máxima derivada da moral kantiana que se
encontra como Schopenhauer mostrou, ligada a seu próprio fundamento: “Dirijo-me
agora àquele princípio máximo da moral que repousa sobre esse fundamento, estando-
lhe estreitamente ligado e mesmo confundindo-se com ele”92.
Apesar de, como visto na citação acima e também no item anterior, o princípio
da moral kantiana se confundir com seu próprio fundamento, nesse momento de sua
crítica, Schopenhauer irá avaliá-lo como se tal não ocorresse:
Mas retenhamos apenas o fato de que aquela regra fundamental, estabelecida
por Kant, não é ainda o próprio princípio moral, mas apenas uma regra
heurística para ele, isto é, uma indicação de onde deva ser procurado.93
O princípio da moral kantiana que Schopenhauer analisa é: “Age apenas
segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne uma lei
universal”.94
Assim, tendo essa máxima apenas como princípio da moral kantiana,
Schopenhauer irá avaliá-la em si mesma e descobrir nela mais uma contradição no
pensamento de Kant. Tal máxima, segundo Schopenhauer, encontrar-se-ia já viciada
pelo interesse pessoal, ou seja, pelo egoísmo, coisa totalmente contrária à conceituação
de genuíno ato moral feita por Kant, onde verdadeiro ato moral é aquele destituído de
todo e qualquer interesse pessoal.
A avaliação dessa máxima por Schopenhauer irá apontar para a palavra que traz
em si toda a contradição que é a palavra “querer” já que o querer-poder é o eixo em
torno do qual giram as ordens dadas. Para Schopenhauer a elucidação dessa máxima
está em descobrir o que o homem pode ou não querer:
É claro que eu preciso de novo de um regulativo para determinar, no aspecto
mencionado, o que eu possa querer, e só por meio desse é que eu teria a
chave para a ordem dada, como se fosse um comando lacrado.95

92
Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo:
2001. p.67
93
Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo:
2001. p.68
94
Kant I. Fundamentação da metafísica dos costumes, trad. Paulo Quintela, Edições, Lisboa Portugal: 2008 p.62
51

Esse querer presente na máxima de Kant está, segundo nosso pensador, em


apenas um lugar: em nosso egoísmo que sempre aparece em primeiro lugar em qualquer
ato da vontade humana. Impossível imaginar, para Schopenhauer um querer que não
encontre no egoísmo sua principal fonte. Para ele, a maioria dos atos humanos é
praticada tendo em vista aquilo que os homens desejam para si mesmos; mesmo certas
atitudes que aparentam ter um intuito moral, podem ter, em seu íntimo, uma meta a ser
alcançada que diz respeito apenas ao egoísmo do homem. Assim, muitas vezes, ajudar o
semelhante, pode ser apenas um meio de atingir aquilo que se deseja apenas para si
mesmo. “A indicação contida na regra máxima de Kant para se encontrar o princípio
moral propriamente dito repousa, aliás, na pressuposição tácita de que só posso querer
aquilo com que me dou melhor”96
Assim, o homem ao estabelecer tal regra máxima, coloca-se, em relação a ela,
tanto de forma ativa como também de forma passiva. A “bondade” propriamente dita,
não existe de fato, como, segundo o próprio Schopenhauer, Kant afirmará em sua obra.
Para Schopenhauer, o homem é o animal que mais sofre no mundo, pois ele é
aquele que, diferentemente dos irracionais, possui a plena consciência de si mesmo e,
além disso, pode se lembrar do passado, podendo sofrer com lembranças ruins que nele
se encontrem, e também sofrer frente ao futuro, que sempre se apresenta em sua mente
como incerto e cheio de possibilidades ruins. Assim, o homem tem plena consciência de
tudo aquilo que pode lhe acontecer e a moral, pode, de forma antecipada, livrá-lo de
atitudes que lhe causam sofrimento através do estabelecimento de padrões de conduta
que lhe resguardam sua integridade em todos os aspectos. Essa é a forma que, segundo
Schopenhauer, o homem cria alguns padrões morais, já se colocando como vítima de
alguma atitude que lhe traria sofrimento se contra ele fosse praticada.
Assim, estabelecendo regras de conduta que fazem de certos atos reprováveis, o
homem já está se defendendo antecipadamente ou, de maneira genérica, está tentando se
defender de qualquer coisa que no futuro possa lhe causar mal. Na realidade, o que
existe não é a genuína vontade de fazer o bem, de exercer aquilo que é certo, mas, sim,
praticar algo que, pelo menos hipoteticamente, lhe resguardará de um efeito ruim, caso

95
Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo:
p.68
96
Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo:
2001. p.68 - 69
52

ele praticasse um ato diferente. No fundo o que existe é apenas o egoísmo, o interesse
pessoal, o desejo de não ser afetado. Podemos exemplificar tal pensamento com um dos
mandamentos: “Não matarás” (Êxodo 20:13). Nele estaria contido, não o interesse
genuíno de respeitar a vida do semelhante, e sim, o desejo de não ser morto por
ninguém.
Esse mesmo raciocínio pode ser levado até atos ainda mais genéricos, como por
exemplo, a caridade. Qual o homem que não gostaria de, em um momento de agonia ou
dificuldade de qualquer forma, receber a ajuda de alguém? Assim, ajudar os
necessitados, famintos e empobrecidos e, mais do que isso, qualificar tais atitudes como
“boas” em si mesmas, é algo que surge do egoísmo, da “previsão” de que tais situações
de total falta de dignidade podem um dia recair sobre o próprio homem que delas se
defende. Nessa defesa, o que na realidade existe é a defesa, de forma antecipada, da
própria vida e de seus interesses.
Esse “querer” kantiano, teria então, nas afirmações de Schopenhauer, sua fonte
em nada mais do que no egoísmo humano. E, como já dissemos, o próprio Kant
afirmará isso:
Ele não pode deixar de acrescentar esta conclusão indispensável à ordem em
que consiste o princípio máximo da moral de Kant. Todavia, ele não o faz
logo que ela é estabelecida, pois isto poderia chocar, mas o faz mantendo
uma distância respeitável e no recôndito do texto, para que não salte aos
olhos que aqui, apesar de sublimes instituições “a priori”, é o egoísmo que se
senta na cadeira do juiz e que faz pender a balança; e, depois de ter optado
pelo ponto de vista do lado eventualmente passivo, o faz valer pelo lado
ativo97.
Dessa forma, entende-se claramente, segundo a crítica de Schopenhauer que, da
mesma forma como Kant tentou criar uma teologia às avessas, ou seja, afirmando-a
através da moral, ele também se valeu de princípios morais que, na realidade, estão
fundamentados apenas no egoísmo, e tentou transformá-los em leis inatas na mente
homem. A veracidade de tal afirmação ficará ainda mais clara para Schopenhauer pelas
próprias palavras de Kant que nosso pensador irá transcrever em seu texto com suas
próprias palavras: “Que eu não poderia querer uma máxima universal para mentir,
porque então não se acreditaria mais em mim ou seria pago na mesma moeda”98. Ainda:

97
Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo:
2001. p.69
98
Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo:
2001. p.69
53

“A universalidade de uma lei em que cada um, se lhe aprouvesse, poderia prometer com
a intenção de não cumprir tornaria impossível a promessa e a finalidade que com ela se
poderia ter, pois ninguém acreditaria”99. O próprio Kant deixará em suas palavras o
raciocínio de Schopenhauer mais compreensível:
Pois uma vontade que decidisse tal coisa pôr-se-ia em contradição consigo
mesma; podem com efeito descobrir-se muitos casos em que a pessoa em
questão precise do amor e da compaixão dos outros e em que ela graças a tal
lei natural nascida da sua própria vontade, roubaria a si mesma toda a
esperança de auxílio que para si deseja.100
Diante dessas palavras de Kant, Schopenhauer afirma, sem ter nenhuma dúvida,
que a máxima da moral kantiana possui como base apenas o egoísmo e pressupõe a
reciprocidade, ou seja, o relacionamento entre as pessoas que, para ser o melhor
possível, necessita de uma regra. Essa reciprocidade seria viável, segundo
Schopenhauer, como uma regra para se estabelecer em nível estatal, mas jamais moral.
O “agir moralmente” nada mais é do que um meio de melhor conviver com as pessoas e
também de evitar empecilhos que poderiam surgir como efeitos de atitudes
explicitamente egoístas. O homem age conforme uma atitude que pudesse ser adotada
por toda a humanidade, já visando sua satisfação e não um bem em si mesmo. Se não
mente, é porque não quer correr o risco de ser desacreditado no futuro; se não faz falsas
promessas, é porque não quer ser vítima de uma possível falsa promessa que alguém a
ele poderá fazer. Assim, como Schopenhauer já disse o egoísmo diante dessa máxima
moral kantiana, é o juiz que decide o que se deve aceitar como uma regra passível de ser
aceita universalmente ou não. Eis as palavras de Schopenhauer que deixam nossa
explicação ainda mais clara:
O princípio ‘Age sempre de acordo com a máxima cuja universalidade como
lei tu possas querer ao mesmo tempo’ é a única condição sob a qual uma
vontade nunca pode estar em contradição consigo mesma’ – assim a
verdadeira interpretação da palavra contradição é a de que, se uma vontade
tivesse sancionado a máxima da injustiça e da falta de caridade, ela a

99
Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo:
2001. p.69
100
KANT I. Fundamentação da metafísica dos costumes, trad. Paulo Quintela, Edições, Lisboa Portugal: 2008 p.65
54

revogaria, mais tarde, ao tornar-se eventualmente parte passiva e, com isso,


contradizer-se-ia.101
Para Schopenhauer fica claro que o suposto imperativo categórico, na realidade
é um imperativo hipotético que surge do egoísmo que, previdente, coloca-se como parte
passiva de qualquer situação ruim e, através dessa abstração, estabelece regras a serem
seguidas para lhe auxiliar caso, em algum momento, essas situações possam vir a
acontecer e lhe afetar. Dessa forma, o desejo da justiça, caridade, amor, respeito e tantas
outras virtudes, são na verdade o desejo de viver em um mundo onde aquele que sofre é
sempre amparado e defendido para que o homem, em seus interesses pessoais se sinta
mais seguro.
Agora, diferentemente de uma pessoa egoísta que, ao sentir-se insegura diante
das incertezas do futuro que lhe fazem querer uma lei moral universal, que pregue a
caridade e a justiça, uma pessoa que se sente segura por confiar em suas forças físicas
ou intelectuais a ponto de imaginar não precisar da caridade e da justiça para bem viver,
iria encontrar em seu querer uma regra que dissesse exatamente o oposto. A injustiça e o
total individualismo seriam o seu desejo e deveriam ser as “leis” a serem seguidas
universalmente. Ficaria assim demonstrado que a falta de um fundamento seguro para
essa máxima kantiana a torna hipotética e também ineficaz para, de fato, trazer uma lei
moral que conduzisse os homens a uma universalidade caridosa e justa.
Portanto, à falta de uma fundamentação real do princípio supremo da moral
de Kant, exposta no parágrafo precedente, junta-se, contra a afirmação
expressa de Kant, a oculta natureza hipotética do mesmo, graças à qual ele se
baseia no puro egoísmo, como sendo o intérprete oculto da ordem dada
nele.102
Nessa passagem da crítica de Schopenhauer à moral kantiana, será proveitoso
lembrarmo-nos de Nietzsche, que em seu livro Genealogia da moral, afirmará que os
valores morais nada mais são do que a criação do ressentimento daquele que os cria. O
fraco ofendido pelo forte, em sua insegurança e fraqueza, cria valores morais que fazem
da atitude sofrida uma atitude reprovável e digna de ser combatida por aqueles que de
fato seriam os “bons homens”. Assim, da mesma forma que Schopenhauer nos fala
acima, Nietzsche apresentará uma visão que afirma ser a moral criação do ressentimento

101
Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo:
2001. p.70 - 71

102
Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo:
2001. p.72
55

do fraco, tendo em vista o egoísmo humano em todos os setores da vida. Na realidade, o


que existe não é a bondade e sim o interesse que, para melhor se satisfazer, cria normas
que o impeçam de ser atingido, o que lhe proporcionaria mais chances de êxito. Ainda,
como intuito dessa valoração de atitudes, também existiria a intenção de impedir o
desenvolvimento dos fortes, apresentando-os como pessoas más, cujo agir deve ser
impedido de alguma forma, até mesmo com a crueldade extrema. Nietzsche diz:
Quanta reverência aos inimigos não tem um homem nobre! – e tal reverência
é já uma ponte para o amor... Ele reclama para si seu inimigo como uma
distinção, ele não suporta inimigo que não aquele no qual nada existe a
desprezar, e muito a venerar! Em contrapartida, imaginemos “o inimigo” tal
como concebe o homem do ressentimento – e precisamente nisso está seu
feito, sua criação: ele concebeu o “inimigo mau”, “o mau”, e isto como
conceito básico, a partir do qual também elabora, como imagem equivalente,
um “bom” – ele mesmo!...103
Também, segundo Nietzsche, uma das maiores construções morais contra os
fortes seria a religião, na qual, tudo aquilo que é contra as atitudes dos fortes, é elevada
às alturas como sendo o agir correto. Evidentemente que nosso intuito não é traçar um
paralelo entre o pensamento de Schopenhauer e Nietzsche e muito menos apresentar o
pensamento do segundo como crítica à moral kantiana, mas impossível não tocar no
nome de Nietzsche, quando, nesse ponto da crítica à moral kantiana, nos lembramos que
Schopenhauer afirma ser a teologia, o grande pano de fundo da moral kantiana que,
oculta pela própria vontade de Kant, seria a única capaz de dar sustentação a seu
pensamento de uma moral apenas formal.
Assim essa máxima da moral kantiana não apenas é totalmente ineficaz, pois
jamais ela estaria realmente fundada, por ter em si o querer do homem, em uma
intenção genuinamente desinteressada capaz de suprimir o egoísmo, pelo contrário, ela
é puro egoísmo disfarçado. Schopenhauer ainda afirmará mais, pois, para ele, o egoísmo
é um gigante dentro do homem. Ele vem primeiro em todas as ações humanas, sendo
assim, como se poderia diferenciar, em uma suposta lei a ser seguida onde um dos
princípios de Kant seria: Age somente segundo a máxima que possas ao mesmo tempo
querer que valha universalmente para todo ser racional “104. uma atitude genuinamente
moral de uma atitude egoísta caso essa referida lei realmente existisse? Para

103
Nietzsche F. Genealogia da moral, trad. Paulo césar de Souza, companhia Das Letras, são Paulo: 1999. P. 31
104
Kant I. Fundamentação da metafísica dos costumes, trad. Paulo Quintela, Edições, Lisboa Portugal: 2008 p.71
56

Schopenhauer, como fica bem claro em todo texto, tais pensamentos de Kant são
absurdos profundos demais para sequer serem levados a sério.
Mas a crítica continua, e, dessa vez, ela alcançará as outras formas derivadas do
princípio máximo da ética kantiana
Nessa parte da crítica, Schopenhauer apresentará aquele que seria o princípio da
moral kantiana: “Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como
na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca
simplesmente como meio”105.
Em primeiro lugar Schopenhauer dirá que a afirmação de Kant “O homem e,
duma maneira geral, todo o ser racional, existe como fim em si mesmo, não só como
meio para uso arbitrário desta ou daquela vontade” 106. é uma grande contradição:
Mas preciso dizer diretamente que ‘existir como fim em si mesmo’ é um não-
pensamento, uma ‘contradictio in adjecto’. Ser fim significa: ser querido.
Todo fim só o é em relação a uma vontade, cujo fim é, como já foi dito, o seu
motivo direto. Só nesta relação é que o conceito de fim tem um sentido e o
perde logo que este lhe é tirado. Esta relação que lhe é essencial excluiu
porém necessariamente todo o ‘em-si’. ‘Fim-em-si’ é a mesma coisa que
‘amigo em si – inimigo em si – inimigo em si – norte e leste em si – acima ou
abaixo em si’ etc. no fundo, porém, passa-se com o ‘fim-em-si’ o mesmo que
com o ‘deve absoluto.107
Mais uma vez, Schopenhauer afirmará com convicção que o que de fato existe
por detrás dessas afirmações é a teologia. Apesar de essa parte da crítica ser
extremamente complexa, entendemos que Schopenhauer quer dizer que o homem
apenas poderia ser um fim em “si mesmo” se existisse uma vontade que assim o
quisesse, e, no caso apresentado, essa vontade apenas poderia ser a vontade de um Deus.
Assim como o imperativo categórico, o fim em si mesmo nada mais é do que mais uma
casca sem caroço, algo que por si só jamais poderia se sustentar. Schopenhauer ainda
continuará dizendo a esse respeito:
A coisa não se passa melhor com o ‘valor absoluto’ que deve pertencer ao
suposto porém impensável ‘fim-em-si’. Tenho pois de rotulá-lo, sem
misericórdia, como contradictio ‘in adjecto’. Todo valor é uma grandeza
comparativa e, até mesmo, apresenta-se necessariamente em dupla relação:
pois primeiro é relativo já que é para alguém, e, segundo, é comparativo pois

105
Kant I. Fundamentação da metafísica dos costumes, trad. Paulo Quintela, Edições, Lisboa Portugal: 2008 p.73
106
Kant I. Fundamentação da metafísica dos costumes, trad. Paulo Quintela, Edições, Lisboa Portugal: 2008 p.71
107
Kant I. Fundamentação da metafísica dos costumes, trad. Paulo Quintela, Edições, Lisboa Portugal: 2008 p.75 - 76
57

está em comparação com alguma outra coisa, de acordo com a qual é


avaliado. Retirado destas duas relações, o conceito de valor perde todo o
sentido e o significado.108
A crítica ficará ainda mais interessante depois que o homem não pode ter
nenhum dever para qualquer ser que não seja simplesmente o homem Depois,
Schopenhauer ainda nos transcreverá outra passagem de Kant que, em suas próprias
palavras lhe causará uma enorme repulsa e desprezo, nas quais afirma que Kant diz que
a compaixão para com os animais é meramente para exercitar-se.
Schopenhauer comentará:
Acho, junto com toda a Ásia não islamizada (ou seja, não judaicizada), tais
frases revoltantes e abjetas. Mostra-se, ao mesmo tempo, como esta moral
filosófica que é, como foi acima exposto, uma teologia travestida dependente
totalmente da moral bíblica.109
Uma moral que vê apenas “os seres racionais” como merecedores de
preocupação moral e os irracionais apenas como meios, é, para Schopenhauer, uma
moral de párias. Nada a justificaria senão, como já dito, a teologia que desconhece a
unidade dos seres através de sua essência única que é a vontade ou que coloca o homem
como a “grande e principal criação” de um deus qualquer. Nesse momento, também
aparece o próprio pensamento de Schopenhauer como sendo o crítico da moral kantiana.
Schopenhauer dirá:
Que vergonha desta moral de párias, ‘schandálas’ e ‘mletschas’, que
desconhece a essência eterna que existe em tudo o que tem vida e reluz com
inesgotável significação em todos os olhos que vêem à luz do dia.110
Uma moral que vê apenas “os seres racionais” como merecedores de
preocupação moral e os irracionais apenas como um meio é para Schopenhauer uma
moral de párias. Nada justificaria senão, como já dito, a teologia que desconhece a
unidade dos seres através de sua essência única que é a vontade ou que coloca o homem
como “a grande e principal criação” de um deus qualquer Nesse momento, mais uma
vez de forma explícita aparece o pensamento de Schopenhauer como a motivação para
sua crítica à moral kantiana: Mas apesar da crítica de Schopenhauer, essa segunda
máxima derivada da moral kantiana, traz, a seu ver, uma importante visão sobre as

108
Kant I. Fundamentação da metafísica dos costumes, trad. Paulo Quintela, Edições, Lisboa Portugal: 2008 p.76
109
Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo:
2001. p.77
110
Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo:
2001. p.77
58

atitudes egoístas dos homens que usam outros homens como meios para atingirem seus
intentos. Para Schopenhauer a cordialidade é uma invenção humana para esconder os
intentos dos homens. Por causa do egoísmo humano, sempre um homem irá olhar para
outro e imediatamente buscar nele um meio para satisfazer um desejo. Schopenhauer
vai ainda mais longe:
Por ocasião de cada novo conhecimento é, na maioria das vezes, nosso
primeiro pensamento se essa pessoa poderia tornar-se-nos útil para algo; se
ela não o pode, então é para muitos, logo que estes estiverem disto
convencidos, propriamente nada111.
Portanto, na linguagem de Kant, segundo as palavras de Schopenhauer uma
linguagem errada, muitas pessoas usam outras como um meio não as respeitando como
pessoas. Mas longe de ser esse linguajar de Kant apenas um equívoco, ele é algo
pensado com um propósito que, como Schopenhauer já disse, é o propósito de trazer à
filosofia a teologia.
Ainda Schopenhauer criticará mais duas outras formas derivadas dessa máxima
kantiana: Schopenhauer comentará: “De modo bem artificial e por um grande desvio,
diz-se com isso: ‘não respeites apenas a ti mesmo, mas também aos outros”. 112
Mesmo, apesar de Kant ter dado de uma maneira errada um fundamento da ética
nessa segunda forma derivada de sua máxima, Schopenhauer vê nesse “fundamento”,
como acima foi dito, uma idéia que pode ser aproveitada para o seu próprio fundamento
da ética:
Quão perto ou longe está alguém de pensar em considerar alguém como fim,
ao invés de costumeiramente como meio, resulta de medida da grande
diferença entre os caracteres. O por que isto também acontece em última
instância será por certo o verdadeiro fundamento da ética, para o qual apenas
caminho nas próximas partes do texto.113
Assim, na afirmação de Kant de que o homem deve ser tratado como fim e não
como meio, mesmo que apresentada de maneira errada fornece a Schopenhauer, assim
como a conceituação de Kant de que o ato moral verdadeiro é destituído de qualquer
interesse pessoal por parte de quem o pratica, o caminho para encontrar o seu
fundamento da moral a ser tratado na segunda parte de seu trabalho. Interessante notar

111
Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo:
2001. p.78 - 79
112
Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo:
2001. p.80
113
Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo:
2001. p.80
59

que, mesmo criticando negativamente Kant, Schopenhauer continua se valendo, de


determinada maneira, de seu pensamento para a construção, não só do seu fundamento
moral, mas também, como veremos à frente, de todo o seu sistema filosófico.
Estudando a crítica de Schopenhauer a Kant, temos a impressão de que nosso
pensador não quer derrubar seu mestre, mas sim, corrigi-lo. Dentro do pensamento de
Kant, apresentando por Schopenhauer como já bem vimos como confuso e, até mesmo,
como uma tentativa de recolocar a moral teológica na filosofia, encontram-se as bases
daquilo que Schopenhauer apresentará como seu fundamento moral. De certa maneira,
Schopenhauer reconhece ainda mais esse fato com as seguintes palavras:
Kant indicou, portanto, na sua segunda fórmula o egoísmo e seu oposto por
um sinal extremamente característico, cujo efeito principal melhor destaquei
e pus às claras por meio de uma explicação ao ter que, de resto, infelizmente,
deixar que apenas pouco do fundamento e sua moral possa ser válido.114
Assim, reconhece o discípulo, não só o mérito do mestre, mas também sua
influência que lhe dará, mesmo de maneira incompleta, a fonte para o seu próprio
pensamento.
Depois da análise dessa que seria a segunda forma derivada da máxima kantiana
da moral, Schopenhauer irá apresentar sua crítica para outras duas que, ao que parece,
apresentam-se para Schopenhauer de maneira ainda mais difícil de ser compreendida
como também ainda mais confusa.
A primeira delas que será avaliada por Schopenhauer é a seguinte: “A vontade
de todo ser racional concebida como vontade legisladora universal”115 Segundo
Schopenhauer, essa derivação, que ele chama de fórmula, apresenta para sua existência
a autonomia da vontade, sem a qual ele não poderia existir. Assim, o imperativo
categórico, possui uma diferenciação de todos os atos morais não desinteressados, pois
nele, o querer por dever não possui nenhum objeto específico, nenhum motivo, como
veremos a seguir, nada o impulsiona. Schopenhauer comentará outra passagem: “Por
causa da idéia da legislação universal, ele não se funda em nenhum interesse” 116
A segunda passagem à qual Schopenhauer se refere acima é a seguinte:
Pois quando pensamos uma tal vontade, se bem que uma vontade
subordinada a leis possa estar ligada a estas leis por meio de um interesse,
não é no entanto possível que a vontade, que é ela mesma legisladora

114
Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo:
2001. p.80
115
Kant I. Fundamentação da metafísica dos costumes, trad. Paulo Quintela, Edições, Lisboa Portuga: 2008 p.76
116
Kant I. Fundamentação da metafísica dos costumes, trad. Paulo Quintela, Edições, Lisboa Portugal: 2008 p.78
60

suprema, dependa, enquanto tal, de um interesse qualquer; pois que uma tal
vontade dependente precisaria ainda de uma outra lei que limitasse o
interesse do seu amor-próprio à condição de uma validade como lei
universal.117
Schopenhauer iniciará sua crítica a essa fórmula moral de Kant, com as
seguintes palavras que, para uma perfeita compreensão do que nosso pensador irá
apresentar, em seguida, como sendo seu fundamento da moral e, conseqüentemente, o
motivo primordial de sua crítica a Kant, devem ser lidas atentamente:
Agora peço, porém, que se reflita sobre o que isto quer propriamente dizer:
de fato, nada menos do que uma vontade sem motivo, portanto, um efeito sem
causa. Interesse e motivo são conceitos intercabíveis: interesse não quer dizer
‘quod mea interest’? [qual é o meu motivo?] E isto não é tudo aquilo que
estimula e move minha vontade?118
Aquilo que apresentamos na introdução desse trabalho, ainda que de forma
exaustiva tenha aparecido até aqui, agora surge de uma maneira bem explícita: a moral
kantiana com seu imperativo categórico é nada mais que uma “casca sem caroço”, sua
formalidade, o respeito a uma lei, não pode ser aceita por schopenhauer de nenhuma
maneira. Impossível imaginar, para Schopenhauer, uma vontade sem motivo, uma
vontade que, no seu modo de ver, surge na moral kantiana simplesmente do nada e a
nada se direciona. Vejamos o que ele diz a frente: “O que é conseqüentemente um
interesse, a não ser a atuação de um motivo sobre a vontade? Onde, portanto um motivo
move a vontade, aí ele tem um interesse”. 119
Já que no imperativo categórico existe uma vontade de agir por dever é claro
que, para Schopenhauer como bem vimos acima, existe um interesse, pois sem ele,
nenhuma vontade existe, e se existe um interesse não há ato moral genuíno no
imperativo categórico como Kant propunha. Pode-se notar que diante dessa crítica, a
“teologia de Kant”, para Schopenhauer, fica ainda mais evidente. Seguindo o raciocínio
dele, encontram-se por detrás dessa fórmula, mais uma vez a teologia, como sendo
aquilo que irá sustentar a moral kantiana que, em si mesma, é completamente vazia,
uma simples ação por respeito a uma lei. Essa suposta autonomia da vontade, na
verdade, seria apenas o receio ou a esperança da recompensa vinda de um ser criador,

117
Kant. I. Fundamentação da metafísica dos costumes, trad. Paulo Quintela, Edições, Lisboa Portugal 2008 p.78
118
Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo:
2001. p.81
119
Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo:
2001. p.81
61

no caso de Kant, pela análise de Schopenhauer, Deus. Essa afirmação de Kant parece ter
deixado Schopenhauer bem incomodado, tanto que ele escreve sobre ela o que se segue:
Para contradizer tal admissão monstruosa seria preciso apenas reconduzí-la
ao seu sentido próprio, que estava oculto pelo jogo com a palavra interesse.
Enquanto isso, festeja Kant o triunfo de sua autonomia da vontade na
implantação de uma utopia moral, sob o nome de ‘reino dos fins’, que é
habitada por puros seres racionais ‘in abstracto’ que, todos juntos,
continuamente querem, sem querer qualquer coisa que seja (isto é, sem
interesse); querem apenas uma coisa: que todos queiram sempre de acordo
com uma máxima (quer dizer, autonomia). 120
Em sua obra capital, Schopenhauer também se expressa em relação ao vazio
citado tanta vezes por ele nessa crítica:
Porém o que aqui será mencionado encontra em grande parte o seu lugar em
outro contexto, a saber, no apêndice desse livro em que se contesta a
existência da chamada razão prática de Kant que ele (certamente por
comodidade) expõe como fonte imediata de todas as virtudes e sede de um
DEVER absoluto ( ou seja, caído do céu)121
Assim apresenta-se o mundo da moral kantiana para Schopenhauer: um mundo
onde todos querem sem nada querer. Talvez a maior utopia já tentada por um filósofo.
Um mundo que só a teologia pode dar algum sentido. Mas como dissemos acima, esse
ponto da dissertação revela-nos algo ainda mais interessante: a própria filosofia de
Schopenhauer como fonte para sua crítica a moral kantiana. Se antes ela apareceu de
maneira menos evidente, aqui, ainda que não de forma explícita, o sistema da filosofia
de Schopenhauer apresenta-se de maneira límpida e a vontade, que Schopenhauer
apresenta como sendo o “em si” kantiano, é a responsável por isso. Assim, a crítica não
se dá apenas com base nas contradições do pensamento kantiano, mas também, com
base nas próprias convicções do sistema filosófico de Schopenhauer.
Para Schopenhauer, longe de ser libertadora, a vontade é a grande aprisionadora
do ser humano. Sempre ela será responsável pela escravidão sofrida pelo homem e
também sempre estará voltada para um objeto que irá lhe satisfazer de alguma forma.
Toda vontade possui algum motivo. O homem somente é livre quando, através da razão,
negar a vontade. Vejamos o que Schopenhauer fala em sua obra prima sobre a vontade:
“Salvação verdadeira redenção da vida e do sofrimento é impensável sem a
completa negação da vontade? Até então cada um não passa dessa vontade

120
Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo:
2001. p.81 – 82
121
Schopenhauer, A.O mundo como vontade e como representação, trad. Jair Barboza, UNESP, 2005 São Paulo:p.139
62

cujo fenômeno é uma existência efêmera, um esforço sempre nulo e


continuamente malogrado, o mundo tal qual exposto cheio de sofrimento, ao
qual todos pertencem irrevogavelmente de maneira igual”122
Diante do parágrafo acima, podemos entender que jamais Schopenhauer poderia
ver realmente algum fundamento na moral kantiana tendo um pensamento como o seu.
Uma “vontade universal legisladora” não possui espaço algum no pensamento de
Schopenhauer. Isso fica claro, quando ele afirma que tudo que move a vontade é um
interesse.
Mas voltemos à crítica a essa vontade universal legisladora de Kant que é
responsável por dar ao homem aquilo que seria, dentro da moral kantiana, o maior de
todos os valores do homem: a dignidade humana. Kant dirá, segundo Schopenhauer,
que a dignidade humana é “um valor sublime e incomparável”. Em relação a isso
Schopenhauer apresentará mais uma vez, em sua crítica, a “casca sem caroço” de Kant:
Mas além desse pequeno e inocente reino dos fins, que se pode deixar em paz
como inofensivo, Kant dirige sua autonomia da vontade a uma outra coisa de
conseqüências mais graves, a saber, ao conceito de dignidade do homem.
Esta repousa, aliás, apenas sobre a autonomia dele e consiste em que a lei que
deve seguir lhe seja dada por si mesmo. 123
Schopenhauer, fará como fez das outras vezes que vimos, analisará esse conceito
e, segundo suas palavras, encontrará mais uma contradição gritante em Kant. Para
Schopenhauer, todo valor só existe em comparação a outra coisa, sendo assim
totalmente relativo. A relatividade em relação a outra coisa é a essência desse mesmo
valor e sem ela nada pode constituir-se como sendo valoroso. Assim, dentro do
pensamento de Schopenhauer, como propor um valor absoluto, incomparável e
incondicionado? Mais uma vez vemos na interpretação de Schopenhauer o total vazio
da moral kantiana que em nada se apóia.
É interessante percebermos que Schopenhauer encontra as contradições da moral
kantiana com as expressões usadas por Kant para apresentá-la. Tudo aquilo que Kant
diz em sua fundamentação da moral, a leva para um vazio, dentro do qual, não existe
nenhuma sustentação. A total falta de ligação com qualquer objeto torna a moral
kantiana sem sentido para Schopenhauer que dirá:
Um valor absoluto incomparável, incondicionado, tal como deve ser a
dignidade, é, por isso, como muitas coisas na filosofia, uma tarefa posta por

122
Schopenhauer, A.O mundo como vontade e como representação, trad. Jair Barboza, Unesp,2005 São Paulo:p.503
123
Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo:
2001. p.82
63

palavras para um pensamento que não se pode sequer pensar, tão pouco
quanto se pode pensar o maior número ou o maior espaço.124
Assim, simplificando o pensamento de Schopenhauer em relação a esse ponto de
sua crítica a Kant, podemos apresentar a seguinte pergunta que irá esclarecer ainda mais
o pensamento exposto: a dignidade do homem é o maior de todos os valores em relação
a quê? Essa pergunta não encontra resposta, para Schopenhauer, na moral kantiana,
portanto, ela só pode levar o leitor ao vazio impensável tratando-se de filosofia.
Schopenhauer dirá:
Esta é uma explicação que, por seu sublime tom, impõe-se de tal modo que
não deixa facilmente alguém, que está mais abaixo, aproximar-se para
investigá-la mais de perto, descobrindo então que também ela é apenas uma
hipérbole oca, em cujo interior aninha-se a ‘contradictio in adjecto’.125
Schopenhauer ainda irá criticar a forma com a qual Kant irá concluir sua
apresentação. Assim colocaremos as palavras de Kant sobre o tema na íntegra para
podermos melhor entender o final dessa crítica. Kant dirá:
Ora, como uma razão pura, sem outros móbiles, venham eles donde vierem,
posa por si mesma ser prática, isto é, como o simples princípio universal de
todas as suas máximas como leis (que seria certamente a forma de uma razão
pura prática), sem matéria alguma (objeto) da vontade em que de antemão
pudesse tomar-se qualquer interesse, possa por si mesmo fornecer um móbil e
produzir um interesse que pudesse chamar-se puramente moral; ou, por
outras palavras: como uma razão pura possa ser prática – explicar isto, eis o
de que toda razão humana é absolutamente incapaz; e todo esforço e todo
trabalho que se empreguem para buscar a explicação disto serão perdidos.126
Talvez, essa passagem de Kant seja a prova final, para Schopenhauer, do
absurdo moral kantiano. Aquilo que é afirmado por Kant de maneira tão vigorosa e que
atraiu tantos intelectuais para a sua apreciação é explicado e afirmado, mas, no final,
não pode de maneira nenhuma ser compreendido. Como entender então o imperativo
categórico de Kant? Como entender e poder defender algo que em nada se apóia e cuja
própria razão não pode alcançar de nenhuma maneira? Algo que existe em nossa mente
de maneira inata, que move nossas ações e coordenando nossas vontades sem necessitar

124
Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo;
2001. p.83
125
Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo:
2001. p.82 - 83
126
Kant I. Fundamentação da metafísica dos costumes, trad. Paulo Quintela, Edições, Lisboa Portugal: 2008 p.118
64

de nenhuma experiência só pode existir em nós de uma maneira: foi colocada em nós
por Deus.
Assim, como vimos em toda essa crítica de Schopenhauer à moral kantiana, a
teologia é a grande vilã que Kant tentou de todas as formas esconder em seu
fundamento da moral. Com certeza, no pensamento de Schopenhauer, basta colocarmos
um deus legislador por detrás do imperativo categórico e veremos a moral kantiana
começar, como que, por encanto, a fazer sentido de um momento para o outro. Aquilo
que a razão em nenhum momento pode encontrar, não está oculto por, de fato, ser algo
misterioso ou inalcançável, mas fim, por não ter em sua explicação aquilo que lhe é
essencial: a vontade de um Deus. Schopenhauer se expressa bem em relação a isso em
suas palavras abaixo:
Seria então para se pensar que, se algo cuja existência é afirmada não pode ao
menos ser compreendido de acordo com sua possibilidade, teria de ser
faticamente provado em sua realidade: só que o imperativo categórico da
razão prática não é estabelecido expressamente como um fato de consciência
ou, de resto, fundado na experiência. Ao contrário fomos suficientemente
advertidos que não é para buscá-lo em tais caminhos antropológicos e
empíricos.127
Schopenhauer não poupa ironias: “Quando se resume tudo isso, pode-se
realmente suspeitar que Kant zomba de seu leitor”128. Ainda que fosse possível acreditar
que Kant não estivesse escondendo nenhum Deus por detrás de seu pensamento, tal
afirmação continuaria sem nenhum sentido, permanecendo uma mera crença sem
nenhum fundamento aceitável:
Temos portanto de permanecer na convicção de que aquilo que nem é
compreendido como sendo possível nem provado como sendo real não tem
qualquer confirmação de sua existência. Se porém, apenas tentamos
apreendê-lo meramente com a fantasia, representando-nos assim um homem
em cuja mente falasse um puro imperativo categórico, um deve absoluto,
como se possuído por um demônio que conseguisse dirigir suas ações contra
as tendências e os desejos, não avistaríamos, então, com isso, uma imagem
verdadeira da natureza humana ou dos processos de nosso íntimo, mas antes

127
Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo:
2001. p.84
128
Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo
2001. p.85
65

reconheceríamos um substituto artificial da moral teológica, à qual ela se


relacionaria como uma perna de pau a uma de verdade.129
Nas palavras de Schopenhauer, vemos sem nenhuma dúvida o que acima foi
dito: sem a teologia a moral kantiana não faz nenhum sentido e, mesmo com ela, é
apenas uma “perna de pau” que nenhum mérito alcança quando o objetivo é
fundamentar a moral que ele mesmo conceituou tão bem.
Com essa idéia acima, concluímos que enquanto a moral de Kant
só é realmente genuína por afastar-se do mundo objetivo, a moral de Schopenhauer, por
sua vez, será somente genuína por nele apoiar-se. A vontade que é o “em si” para
Schopenhauer, não é capaz de, em nenhum momento, estabelecer um padrão moral,
dela, somente o egoísmo pode existir.
Findando sua crítica à moral kantiana ele concluirá:
Nosso resultado é pois que a ética kantiana, tanto quanto todas as anteriores,
dispensa todo fundamento seguro. Ela é, no fundo, como mostrei pela prova
estabelecida logo no início da sua forma imperativa, apenas uma inversão da
moral teológica e um disfarce dela em formas bem abstratas e aparentemente
encontradas ‘a priori’.130

Podemos agora apresentar aquilo que Schopenhauer concluiu em sua crítica à


moral de Kant. Primeiramente digamos, que por detrás de todos os seus conceitos,
existe a teologia, sem a qual, ela não faz o mínimo sentido. Kant teria tido essa intenção
ao formular sua moral. Sem a teologia a moral kantiana nada significa, e, a cada
tentativa de tornar esses conceitos aceitáveis, maior é a contradição.
Em segundo lugar, podemos ainda dizer que, as tentativas de Kant em tornar sua
moral aceitável, fizeram com que ela entrasse em contradição com o próprio conceito de
genuíno ato moral apresentado por Kant no qual o verdadeiro ato moral é aquele
praticado sem nenhum interesse. Esse seria o caso apresentado, como já visto, por
Schopenhauer em relação ao Soberano Bem. Interesse e teologia totalmente ligados, em
uma dupla contradição oculta por um apriorismo sem nenhum sentido.
Ainda, não podemos deixar de citar que, segundo essa crítica, Kant teria deixado
de lado a importância da experiência na fundamentação da sua moral, atitude

129
Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo:
2001. p.89
130
Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo:
2001. p.85
66

extremamente contraditória com sua própria filosofia que afirma a necessidade da


experiência para a obtenção de conhecimento.
Também temos de destacar a afirmação de Schopenhauer de que a moral
kantina, com exceção de seu perfeito conceito, apresenta uma fundamentação nociva
que precisava ser de toda forma corrigida em nome da verdade.
Mas a crítica à moral kantiana ainda possui seus mistérios. É preciso entendê-la
como peça fundamental para a compreensão da fundamentação moral do próprio
Schopenhauer. Isso será apresentado no próximo capítulo. Mas antes dele iniciar-se,
gostaríamos de colocar a últimas palavras de Schopenhauer sobre a moral kantiana e,
também, sobre seu próprio autor. Com uma ironia interessante, elas nos dão a entender
que ele não apenas quer mostrar os erros de Kant, mas também os erros da própria
teologia que, além de ser totalmente estranha à filosofia depois da obra do próprio Kant,
não passa de crença sem nenhum sentido, movida apenas pela ignorância do homem em
seus desejos mais secretos e inconfessáveis:
Se me fosse permitida, no final desta árida investigação, cansativa até para o
leitor, uma frívola e brincalhona analogia para alegrar, compararia Kant,
naquela automistificação, com um homem que, num baile de máscara, corteja
toda a noite uma beldade mascarada, na ilusão de ter feito uma conquista. Até
que, no final, ela tira a máscara e se dá a conhecer como sua mulher.131

131
Schopenhauer, A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo:
2001. p.86
67

2. Da compaixão como único e verdadeiro fundamento da


moral

No primeiro capítulo vimos que Schopenhauer rejeita o fundamento da moral


apresentado por Kant, assim como também rejeita o fundamento da moral com bases
teológicas ou Eudemonistas. Sendo assim, qual seria o verdadeiro fundamento da
moral? Onde deveríamos buscá-lo? O fundamento da moral para Schopenhauer é
apenas um: a compaixão. E, respondendo à segunda questão, a busca do verdadeiro
fundamento da moral deve ser feita em apenas um lugar: na experiência, ou seja, na
observação da vida, dos seres humanos e de suas atitudes. Elas revelam a existência da
compaixão e também a mostram como único fundamento da moral, é ela que de forma
exclusiva e desinteressada é capaz de deter os fortes impulsos do egoísmo humano e dar
aos homens a repreensão da consciência. Apenas ela é capaz de ser encontrada em
qualquer homem, desde o mais tosco até o mais intelectual, exigindo sempre pouca ou
nenhuma reflexão, e impondo-se imediatamente frente à realidade dos fatos.132
Perceberemos ao estudarmos o fundamento da moral de Schopenhauer o quanto
ele se afasta em seus fundamentos e definições da moral kantiana. A compaixão não se
funda em um dever, ela é algo espontâneo e inato em todo o homem em qualquer parte
do planeta. Também podemos dizer que a compaixão encontra-se afastada, no extremo
oposto do “em-si”, diferentemente da fundamentação moral kantiana; que esse mesmo
fundamento não é um valor em si mesmo, mas sim, um valor em relação ao sofrimento
do homem e que ele só pode existir se for precedido pela experiência que mostra esse
mesmo sofrimento e faz com que o homem o compreenda. Também a compaixão,
diferentemente do imperativo categórico de Kant, estende-se aos irracionais, ou seja,
aos animais. Com esses apontamentos em relação às diferenças existentes entre o
fundamento da moral de Kant e o fundamento da moral de Schopenhauer, nota-se a
importância que a crítica à moral kantiana possui para poder-se entender a moral da
compaixão defendida por Schopenhauer.
Inicialmente, Schopenhauer irá apontar a dificuldade de encontrar a genuína
motivação para o fundamento da moral apenas de maneira empírica. Em seu modo de
pensar, ainda que existam atos aparentemente morais de maneira genuína que são

132
Schopenhauer A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo:
2001. p.108
68

aqueles que não possuem nenhum tipo de interesse, seria realmente muito difícil haver
certeza de que esses atos seriam realmente desinteressados, pois, mesmo que
aparentemente verdadeiros, os mesmos podem ocultar interesses pessoais que se
utilizam de outras pessoas para atingir um intento puramente egoísta. Para
Schopenhauer, o homem, em seu egoísmo, que é a grande motivação antimoral, pode
muito bem se valer de uma aparência de generosidade, amor, justiça ou benevolência,
para atingir seus intentos, conseguir realizar seus desejos ou até mesmo de forma
previdente, tentando evitar um mal futuro. Nesses casos, as pessoas, frente ao egoísmo
seriam apenas um meio de se atingir um fim, que nada possui de desinteressado. Assim,
no pensamento de Schopenhauer, apenas a aparência de bondade ou justiça não prova
definitivamente a existência do verdadeiro fundamento da moral. Com base apenas
nessa aparência não é possível afirmar que a compaixão realmente esteja por detrás
dela. Nós, por mais que avaliemos bem as atitudes humanas, não podemos ter acesso ao
que realmente as impulsionou, à intenção que moveu o homem nesse ato aparentemente
moral. Mas ainda que nesse mundo o egoísmo seja a regra que move a esmagadora
maioria das ações humanas, ainda que a maldade, o simples prazer de fazer o mal a
alguém e vê-lo sofrer sem nada ganhar, também exista em grande número de pessoas,
ainda que a guerra de todos contra todos seja uma constante e a paz pareça ser apenas
um sonho do qual a desesperança é a senhora, Schopenhauer afirmará sem vacilar em
nenhum momento que pessoas verdadeiramente boas, ou seja, compassivas, ainda que
em número reduzido, realmente existem. Existem pessoas que “Fazem e renunciam sem
ter outro intuito em seu coração que o de ajudar a outrem cuja necessidade eles
vêem”133.
Schopenhauer ainda afirmará que se a possível inexistência de atos realmente
desinteressados, ou seja, de atos genuinamente morais for um fato, continuar a estudar a
moral nada mais é do que um absurdo. Para nosso pensador, seguindo a conceituação
moral apresentada por Kant, os atos desinteressados são o pressuposto para a própria
existência de uma preocupação com a moral. Não há que se falar em moral se não se
acreditar que realmente existam tais atos.
Mas se alguém persiste em negar a ocorrência de tais ações, então a moral
segundo esse alguém seria uma ciência sem objeto real, igual à astrologia e à
alquimia, e seria tempo perdido discutir mais sobre seu fundamento. Eu

133
Schopenhauer A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo:
2001. .p.130
69

pararia de falar com ele e continuaria falando com aqueles que admitem a
realidade do fato134
Assim, esse ato moral totalmente desinteressado é o único capaz de fundamentar
a moral. Nele não existe o interesse pessoal e o único interesse existente é o de ajudar o
semelhante sem nada ganhar em troca, o que move a ação é o desejo de ver o bem do
outro tão somente. “A ausência de toda motivação egoísta é, portanto, o critério de uma
135
ação dotada de valor moral”. Esse desinteresse não está apenas ligado a qualquer
vantagem, mas, também, ao que Schopenhauer irá chamar de “aplauso da consciência”.
Algumas pessoas podem fazer o bem sem esperar dinheiro, posição ou reconhecimento
com essa atitude, mas, muitas vezes, o que ela realmente quer é sentir-se bem consigo
mesma, coloca-se através de sua consciência acima do outros, reconhecer-se melhor do
que aqueles que não praticam tal atitude. Nesse caso existe um gozo íntimo e não
observável, e os atos morais também estão viciados, pois, ainda que não exista algo a
ser ganho no sentido material ou social, existe o interesse de um contentamento interno
que move a ação. Tal ato não poderia ser genuinamente moral, pois, mesmo que de uma
forma subjetiva que só traz vantagens diante dos olhos daquele que pratica tal ato, o
interesse existe e o mesmo não pode ter participação em uma moral genuína.
Essas explicações dadas por Schopenhauer como bem podemos observar estão
alicerçadas sobre a concepção moral de Kant no qual o único ato moral genuíno é
aquele que não possui nenhuma forma de interesse pessoal. O que Schopenhauer faz
nada mais é do que tentar ajustar todas as atitudes humanas dentro desse conceito e
assim filtrá-las, para, não só encontrar a atitude genuinamente moral, mas também de
tentar descobrir qual a motivação dessas atitudes. Como dissemos, Schopenhauer afirma
que buscar o fundamento da moral apenas na experiência é difícil, pois mesmo uma
atitude aparentemente desinteressada, pode existir um interesse pessoal, mas mesmo
assim, será avaliando as atitudes humanas de maneira minuciosa e descobrindo nelas a
compaixão como fonte inequívoca da ação, que o nosso pensador irá encontrá-la como o
seu fundamento da moral.
Temos então de considerar as ações assim estabelecidas e fatidicamente
dadas às quais se atribui valor moral como sendo fenômeno que estão diante
de nós para serem explicados e, de acordo com isso, para investigarmos o que

134
Schopenhauer A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo:
2001. p.130
135
Schopenhauer A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo:
2001. .p.131
70

é que pode mover os homens a ações deste tipo. Tal investigação, se der bom
resultado, tem de trazer necessariamente para a luz do dia a genuína
motivação moral por meio da qual o nosso problema seria resolvido já que
toda a ética tem de repousar sobre ela.136
Depois de fazer essas observações Schopenhauer irá apresentar em seu ensaio
aquela que seria a única motivação verdadeira para o fundamento da moral. Toda a
moral deve nela se basear e fora dela não seria possível encontrar nada que realmente
pudesse ser considerado como destituído de interesse pessoal. Para Schopenhauer, a
única motivação verdadeiramente moral que é capaz de ser o fundamento da moral, é a
compaixão.
Como Schopenhauer bem diz em seu texto, ele não quer apenas sugerir a
compaixão como motivação da moral ou construir um sistema moral, esses não são os
intuitos de nosso pensador, mas sim, demonstrar que ela é a única motivação que pode
fazer nascer no homem uma ação desinteressada e boa, através dos fatos, que como
vimos serão avaliados minuciosamente, para provar a sua existência. Schopenhauer,
mais uma vez, diz ser a compaixão uma realidade irrecusável diferentemente do
imperativo categórico.
Para encontrar essa prova da compaixão como única motivação genuína do ato
moral, do fundamento da moral, Schopenhauer apresentará como necessárias algumas
premissas sobre as ações humanas que, para ele, são indispensáveis para a compreensão
do seu pensamento. E através delas, analisando várias atitudes humanas através de
exemplos históricos ou próximos de nossas vidas em nosso dia a dia, chegará ao que ele
considera a prova da existência da compaixão. Depois disso ele apresentará o que
considera as duas virtudes fundamentais que derivam da compaixão e criam toda a
estrutura moral do mundo.
Mas antes de apresentar o seu fundamento da moral, Schopenhauer dedicará
algumas páginas da segunda parte da sua dissertação na demonstração de que a visão
cética sobre a moral, ou seja, a idéia de que não existem atos desinteressados por parte
de quem quer que seja é equivocada. Importante apresentar suas considerações a
respeito desse tema mesmo que sucintamente, pois as mesmas serão de extrema
importância para a compreensão daquilo que, como fonte da atitude moral genuína
Schopenhauer chamará de grande mistério, não poderia ser visto de forma diferente

136
Schopenhauer A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo:
2001. P. 131
71

para Schopenhauer, algo que vai contra o egoísmo do homem levando-o a prática de
boas atitudes. Se como veremos, a verdadeira essência do homem é a vontade cega
sempre insatisfeita, o egoísmo é a regra da qual ninguém é capaz de escapar em um
primeiro momento Dessa forma, a compaixão será algo que merecerá uma explicação
que ultrapasse a nossa experiência, e nesse momento Schopenhauer irá recorrer à
metafísica para tentar encontrar a explicação desse grande mistério que mesmo sendo
improvável acontece frequentemente e do qual não podemos duvidar, apesar de a
dúvida nos fornecer a desconfiança necessária para encontrarmos o verdadeiro
fundamento da moral e não nos deixarmos levar pela primeira atitude aparentemente
moral que na realidade não é desinteressada possuindo algo egoísta a ser atingido por
parte de quem pratica tais atos, vejamos assim a crítica e analise da visão cética sobre a
moral de Schopenhauer.
72

2.1 A visão cética sobre a moral

De maneira geral, no pensamento de Schopenhauer, a visão cética sobre a moral


defende que toda a moralidade nada mais é do que uma tentativa de se “domesticar” o
homem. Diante do egoísmo das pessoas, seria preciso criar normas de conduta para que
todo o mundo não terminasse em ruínas na luta entre os homens por seus interesses
pessoais. Dessa forma, a moral não possuiria nenhum fundamento natural, nada inerente
ao homem lhe mostraria o correto a fazer frente às mais diversas situações que diante
dele apresentar-se-iam exigindo uma atitude moral. Organizar a sociedade deixando-a
em paz, seria objetivo dessa moral que os céticos afirmam ser pura criação do homem.
O poder do Estado em um primeiro momento cria leis referentes à sua organização e
com elas tenta combater através de preceitos que são seus de forma exclusiva, as
tendências egoístas e malvadas do homem. Mas o poder estatal não poderia alcançar
todo e qualquer ato, existiriam transgressões que além de difícil descoberta seriam
também difíceis de serem punidas de alguma forma. Dessa maneira a moral teológica e
a moral dos “bons costumes” seriam a complementação das regras estatais estabelecidas
para a tranquila existência do Estado; complementação que iria até onde o poder do
Estado não pode chegar, tanto porque a lei pode no máximo coagir à justiça, a
observância de suas regras, mas nunca um padrão moral que delas escapasse. Para
Schopenhauer, essa complementação caracteriza a moral dos céticos, que ele não
esclarece quem são mencionando apenas os Pirrônicos sem dar maiores explicações a
respeito do tema e sobre esses pensadores. Apesar de não concordar com tal
posicionamento, Schopenhauer o respeita e pretende criticá-lo com cautela, não apenas
por ver nele alguma procedência, mas também por reconhecer nele como será estudado,
grande responsabilidade pela paz que, mesmo sendo pequena, existiria no mundo. Eis
algumas palavras de Schopenhauer sobre a opinião dos céticos:
Também, em época mais recente, pensadores notáveis foram partidários
dessa opinião. Ela precisa, pois de um exame cuidadoso, apesar de ser bem
mais confortável pô-la de lado com um olhar de soslaio inquisitorial, dirigido
para a consciência daquele em que tal pensamento pode surgir.137
Assim mesmo não concordando com o pensamento cético, schopenhauer o
respeita, pois, como visto acima, nem tudo aquilo que parece ser genuinamente moral o

137
Schopenhauer A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo:
2001. p.109
73

é. O ceticismo aparece para ele como uma espécie de guia, que, em um primeiro
momento, tira a ilusão do homem sobre a bondade humana: “Encontrar-nos-íamos num
grande e juvenil erro se acreditássemos que todas as ações justas e legais do ser humano
fossem de origem moral”138. Assim essa dúvida inicial é importante, pois tira nossas
ilusões a respeito do homem e nos conduz ao conhecimento da verdadeira moralidade
que apesar de ser difícil de identificar existe sem nenhuma dúvida,a investigação
minuciosa das atitudes humanas exigiria essa dúvida ainda mais para um pensador que
vê o egoísmo e a maldade como regras das atitudes humanas.Já salientamos que para
Schopenhauer existem atos que se revestem de uma aparência moral genuína, mas que
na realidade não passam de puro interesse e tais atos são a maioria. Sobre isso ele
comenta:
Na verdade, a legalidade geral exercida no trato humano e afirmada em
máximas firmes como rochas repousa principalmente sobre dois tipos de
necessidade externa: em primeiro lugar, sobre a ordem legal, por meio da
qual o poder público protege o direito de cada um e, em segundo lugar, sobre
a conhecida necessidade do bom nome e da honestidade civil para a
subsistência no mundo, por meio da qual os passos de cada um ficam sob a
fiscalização da opinião pública, que, inexoravelmente severa, não perdoa
nunca nenhum passo em falso neste ponto e guarda rancor do culpado até a
morte, como uma mácula insolúvel.139
Nessa explicação Schopenhauer deixa claro o que ele considera de maneira geral
a maioria dos atos humanos que, num primeiro momento pareceriam genuínos, como
atos egoístas, atos que visam apenas a necessidade dos homens em relação à
sobrevivência entre os demais. Na maioria das vezes o egoísmo é a fonte de um ato
aparentemente moral. O próprio Estado e os costumes nada mais são do que uma
espécie de controle sobre o egoísmo humano, controle esse surgido, não pela bondade,
mas sim pelo interesse pessoal, do egoísmo que pretende através deles se defender. Mas
mesmo sendo eles apenas uma espécie de controle, o pouco que temos de paz deve-se
quase que exclusivamente a eles: “Estes são, portanto, os guardiões da legalidade
pública, e quem vive com os olhos bem abertos concordará que, de longe, deve-se
140
agradecer só a eles a maior parte da integridade nas relações humanas” Dessa forma

138
Schopenhauer A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo:
2001. p.109
139
Schopenhauer A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo:
2001. .p.110
140
Schopenhauer A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo:
2001. p. 113
74

esses atos aparentemente morais não são nada mais que egoísmo, primeiramente aqueles
que os praticam se resguardam da lei e depois da opinião pública tão severa ou ainda
mais severa do que a própria lei
Vemos assim que Schopenhauer concorda quase que integralmente com a
posição cética sobre a moral. Vejamos o que ele mesmo diz sobre o Estado:
O Estado, esta obra-prima do egoísmo racional óbvio, do egoísmo de todos
somado, deu, para a proteção do direito de todos, uma força que ultrapassa
infinitamente a potência de cada um e que o força a respeitar o direito de
todos os outros. Por isso, o egoísmo ilimitado de quase todos, a maldade de
muitos e a crueldade de alguns não podem sobressair; a coerção subjugou a
todos141
Tal posicionamento de Schopenhauer é comentado por José Thomaz Brum:
O Estado, segundo a filosofia de Schopenhauer, criou a ‘legislação’ para
proteger a vítima da injustiça’. O Estado não é ‘um meio de nos elevar à
moralidade’; ele nasceu do egoísmo metódico, de um egoísmo que visa ‘as
conseqüências funestas do egoísmo’. A imagem que Schopenhauer utiliza é a
da ‘focinheira’. O Estado vigia para que o animal feroz (o homem) não
ultrapasse os limites de um egoísmo restrito à autoconservação.142
É preciso olhar para o Estado e ver o que, na realidade, acontece por detrás dele.
Brum comenta acima a seguinte passagem de Schopenhauer: “É preciso ver os milhares
que se acotovelam uns aos outros num transitar pacífico, diante de nossos olhos, como
se fossem tigres e lobos cujas mandíbulas estivessem seguras por forte focinheira”. 143
Dessa forma o Estado nada mais é do que a soma dos egoísmos racionalizados, a razão
como instrumento da vontade cega, trabalha a seu favor criando o Estado como
prevenção para as injustiças, o que se quer através dele não é punir, mas sim evitar que
o mal aconteça, se ele deixasse de existir o que veríamos seria a terrível imagem do
homem entregue ao seu próprio egoísmo e, não conhecendo nenhum limite, praticando
todo tipo de injustiça ou maldade. Vivendo a ilusão do Véu de Maia, a ilusão da
individuação dos seres, o homem afirmaria sua vontade individual em relação aos
demais e o caos reinaria indestrutível. Como bem afirma Renato César Cardoso: “Ecos
hobbesianos surgem então por todos os lados. Homo homini lupus. A vontade é loba da

141
Schopenhauer A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo:
2001. p.118
142
Brum Thomaz José, O pessimismo e suas vontades, Rocco, Rio de Janeiro 1998. p. 44
143
Schopenhauer A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo:
2001. p.118
75

vontade...A guerra de todos contra todos é a regra”144. Esse é o posicionamento claro


também de Hobbes que antecede Schopenhauer. Em seu livro Do cidadão Hobbes
afirma:
Tendo assim estabelecido os alicerces para o assunto ao qual me propus,
demonstro primeiramente que o estado dos homens sem a sociedade civil (ao
qual podemos corretamente chamar de Estado de Natureza), nada mais é que
uma guerra de todos contra todos, e nesta guerra, todos os homens tem
direitos iguais sobre todas as coisas; e em sequência, que todos os homens
assim entendem esta condição odiosa (até porque a natureza os compele a
isto) desejam livrar-se desta miséria145.
A, em seu livro posterior O leviatã, Hobbes continuará afirmando a mesma idéia
dizendo: “O FIM ÚLTIMO, causa final e desígnios dos homens (que amam
naturalmente a liberdade e o domínio sobre os outros), ao introduzir aquela restrição
sobre si mesmos sob a qual os vemos viver no Estado”. 146. Dessa forma a visão de que
no chamado Estado de Natureza o homem é bom a paz existiria por completo é um
grande equívoco não só para Hobbes, mas como também para Schopenhauer.
Assim Schopenhauer apresenta como principal motivação antimoral o egoísmo:
“A motivação principal e fundamental, tanto no homem como no animal, é o egoísmo,
quer dizer, o ímpeto para a existência e o bem estar”147. Ele esclarece sendo mais
explicativo:
O egoísmo, de acordo com sua natureza, é sem limites: o homem quer
conservar a sua existência incondicionalmente , a quer incondicionalmente
livre da dor à qual também pertence toda a penúria e privação, quer a maior
soma possível de bem-estar, quer todo gozo de que é capaz e procura, ainda,
desenvolver em si, outras aptidões de gozo. Tudo o que se opõe ao esforço de
seu egoísmo excita sua má vontade, ira e ódio; procurará aniquilá-lo como
inimigo148
Mas também existem outras motivações antimorais que Schopenhauer cita, entre
elas está a alegria maligna. Na alegria maligna a maldade é o desejo principal, ver a
desgraça e o sofrimento do outro é o objetivo, isto é, nesse tipo de atitude o fim a ser

144
Cardoso César Renato, A idéia de justiça em Schopenhauer, Argumentum, Belo Horizonte, 2008: p. 137 – 138.
145
Hobbes T.Do cidadão, Martins fontes, São Paulo:2002 p. 41
146
Hobbes T. Leviatã, In :” OS PENSADORES”trad. João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva, Nova
Cultural, São Paulo: 1997 p.
147
Schopenhauer A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo:
2001. p.120
148
Schopenhauer A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo:
2001. p.121
76

alcançado é o próprio sofrimento de quem sofre a ação, diferentemente de quem, por


exemplo, mata para roubar que tem como fim de sua atitude o roubo.
O egoísmo pode levar a todas as formas de crimes e delitos, mas os prejuízos
e as dores causadas a outrem são para si um mero meio e não um fim, aí
entrando de modo apenas acidental. Em contrapartida, para a maldade e a
crueldade o sofrimento e a dor de outrem são fins em si; alcançá-los é o que
dá prazer149
Importante ressaltar que em Schopenhauer egoísmo e maldade não se
confundem. No egoísmo a maldade praticada é apenas um meio para se atingir algum
fim, já na maldade o “fazer o outro sofrer” é o próprio fim a ser buscado. Mas apesar de
tudo o que foi dito Schopenhauer acredita que exista, de fato, uma ação moralmente
genuína. Percebemos que o pensador acredita ser de extrema importância o pensamento
cético sobre a moral, pelo menos no campo da prática, e mesmo, naqueles que possuem
suas atitudes morais pautadas por essa visão, como em todo ser humano, pode-se
encontrar aquilo que ele irá caracterizar como uma atitude moral genuína. Atitude que
poderia passar despercebida pela própria pessoa que a põe em prática. O limite que
definiria uma ação moral genuína de uma que existe apenas como contenção da
violência ou manutenção da paz social seria extremamente tênue, e somente um exame
profundo das ações humanas poderia nos revelar qual ação é apenas uma convenção
social e qual é um ato moral genuíno: “Mas também é certo que há ações feitas por
caridade desinteressada e por justiça espontânea. Referindo-me apenas à experiência e
não aos fatos da consciência, são provas dessas últimas ações os casos isolados, mas
indubitáveis em que, não havendo nem o perigo da perseguição legal nem também da
descoberta e de qualquer suspeita, foi, não obstante, dado pelo pobre ao rico o que lhe
pertencia”.150
Eis acima uma das maneiras de se identificar o ato genuinamente moral, quando
não há nenhum obstáculo para a injustiça e a mesma não é praticada, como, por
exemplo, o homem pobre que encontra uma maleta cheia de dinheiro e sabendo que
mesmo que fique com ela jamais será apanhado ou descoberto, necessitando dessa
soma, a devolve para seu dono, deixando a injustiça de lado. Sendo assim,
Schopenhauer dirá:

149
Schopenhauer A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo:
2001. p.126
150
Schopenhauer A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo:
2001. p.114
77

O conjunto desses escrúpulos céticos não é por certo suficiente para negar a
existência de toda moralidade genuína, mas o é para moderar nossa
expectativa sobre a disposição moral do ser humano e, assim, sobre o
fundamento natural da ética, pois muito daquilo que lhe é atribuído resulta de
outros motivos, e a observação sobre a corrupção moral do mundo prova, à
suficiência, que a motivação para o bem não pode ser tão poderosa, sobretudo
porque ela muitas vezes não se efetiva onde os motivos opostos não são
fortes, muito embora a diferença individual entre os caracteres afirme aqui
sua plena validade.151
Para nosso pensador, a moralidade pode existir sempre, mesmo se o Estado
desaparecesse e o homem ficasse entregue ao seu egoísmo e ainda que a maioria ou
quase todos os homens a ele se entregassem agindo de acordo com suas ordens,
existiriam aqueles que não se deixariam levar por ele e manteriam a justiça e a caridade
pautando suas ações. Agora, analisados e vencidos os argumentos céticos contra a
moral, Schopenhauer iniciará sua investigação que visa encontrar o único e verdadeiro
fundamento da moral. Analisando as atitudes humanas de maneira pormenorizada: esse
será o seu caminhado que percorreremos no próximo item:
Proponho, em contrapartida, como finalidade para a ética, a de esclarecer,
explicar e reconduzir á sua razão última os modos muito diferentes de agir
dos homens no aspecto moral. Por isso, resta apenas para a descoberta do
fundamento da ética o caminho empírico, a saber, o de investigar se há em
geral ações às quais temos de atribuir autêntico valor moral – que seriam as
ações de justiça espontânea, pura caridade e generosidade afetiva. Estas
devem ser pois consideradas como um fenômeno dado que temos de explicar
corretamente, ou seja, reconduzir às verdadeiras razões, tendo para isso
indicado, em cada caso, o impulso próprio que move o homem a ações desse
tipo, especificamente diferentes de todas as outras. Esta motivação, junto
com a receptividade para ela, será a razão última da moralidade, e o seu
conhecimento, o fundamento da moral. Este é o caminho modesto que indico
para a ética.152

151
Schopenhauer A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo:
2001. p.117
152
Schopenhauer A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo:
2001. p.119
78

2.2 Provando a existência da compaixão e demonstrando-a como único


e verdadeiro fundamento da moral

Depois de estudar a visão cética, contestá-la e afirmar que a ação moral é apenas
aquela praticada sem nenhum tipo de interesse pessoal, sem egoísmo, Schopenhauer
apresentará aquele que é o seu fundamento da moral: a compaixão. Inicialmente ele
apresentará algumas premissas essenciais, sem as quais seria impossível153 compreender
seu pensamento. Eis uma dessas premissas: toda ação deve acontecer por um motivo.154
As nove premissas são apresentadas por Schopenhauer para entendermos o
caminho que ele percorrerá para chegar até a compaixão como o fundamento da moral.
Nas duas últimas premissas, Schopenhauer diz que o egoísmo e o verdadeiro valor
moral não podem coexistir excluindo-se um ao outro, e que todo ato moral só pode
existir em relação à outra pessoa, portanto, deveres com relação a nós mesmos jamais
poderão existir como pretendia Kant. Depois de afirmar que egoísmo e moral genuína
não podem coexistir, Schopenhauer diz que apenas os atos que são voltados para o bem
estar de outro é que realmente podem ser avaliados como sendo morais ou não. Diante
dessas premissas, entendemos de forma definitiva o motivo pelo qual Schopenhauer
tanto criticou a fundamentação da moral kantiana. Nada poderia ser mais distante das
explicações dadas por Schopenhauer às atitudes humanas, do que as fórmulas
apriorísticas da moral kantiana que segundo ele nada podem sustentar e que, muito
menos, podem ser encontradas no homem.

153
Tais premissas são colocadas aqui na integra para melhor compreensão do raciocínio do autor: 1°. Nenhuma ação
pode acontecer sem motivo suficiente, assim como uma pedra não pode mover-se sem um choque ou impulso
suficiente; 2°. ainda menos uma ação para a qual se apresenta, para o caráter do agente, um motivo suficiente pode não
se efetuar se um contramotivo mais forte não tornar necessária sua cessação; 3°. o que move principalmente a vontade é
o bem estar ou o mal estar, tomados no sentido mais amplo da palavra, como também inversamente bem-estar e mal-
estar significam ‘de acordo ou contra uma vontade’. Portanto todo motivo tem de se referir ao bem estar e ao mal-estar;
4°. consequentemente, toda ação refere-se a um ser suscetível de bem-estar ou mal-estar como seu fim último; 5°. este
ser é: ou o próprio agente, ou outro ser, que, portanto, participa da ação passivamente, pois ela acontece para seu dano
ou para seu proveito e alegria; 6°. toda ação cujo fim último é o bem-estar e o mal-estar do próprio agente é uma ação
egoísta; 7°. tudo o que aqui foi dito das ações vale igualmente para as omissões de tais ações, para as quais existem
motivos e contramotivos; 8°. em conseqüência das explicações dadas nos parágrafos precedentes, egoísmo e valor moral
simplesmente excluem-se um ao outro. Se uma ação tiver um fim egoísta como um motivo, então ela não pode ter
nenhum valor moral. Deva uma ação ter valor moral, então um fim egoísta não pode ser seu motivo imediato ou
mediato, próximo ou longínquo; 9°. de acordo com a eliminação total dos pretensos deveres para com nós mesmos,
efetuada no parágrafo 5, a significação moral de uma ação só pode estar na sua relação com outros. Só com referência a
estes é que ela pode ter valor moral ou ser condenável moralmente e, assim, ser uma ação de justiça e caridade, como
também o oposto de ambas. Schopenhauer A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola,
Martins fontes, São Paulo 2001. p. 132-133
154
Schopenhauer A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo:
2001. p.132
79

Ainda, com base nas premissas dadas, Schopenhauer afirmará que toda a ação
ou omissão tem como base o bem-estar ou o mal-estar. Esse bem-estar ou mal-estar
podem estar relacionados tanto com o próprio agente como também com outra pessoa.
As ações ou omissões que visam o bem-estar com relação a si mesmo podem acontecer
visando várias coisas, como já vimos: reconhecimento social esperança de recompensa
nesse ou em outro mundo (moral teológica), o temor de castigos de um ser
transcendente e criador, recompensas materiais e emocionais que se referem ao já
apresentado “aplauso da consciência” e assim por diante.
Schopenhauer concluirá que a única ação que realmente é desinteressada e pode
ser considerada valorosa moralmente é a ação que visa de forma exclusiva, o bem-estar
de outra pessoa que participa da ação de forma passiva. Schopenhauer dirá:
Portanto, a parte ativa no seu agir ou omitir só tem diante dos olhos o bem-
estar ou o mal-estar de um outro e nada almeja a não ser que aquele outro
permaneça são e salvo ou receba ajuda, assistência e alívio. Somente esta
finalidade imprime numa ação o selo do valor moral, que, portanto, repousa
exclusivamente no fato de que a ação aconteça para proveito e contentamento
de um outro155
A ação que visa diretamente o outro deve assim estar diretamente ligada ao bem-
estar ou mal-estar do outro, é neles que essa ação ou omissão encontrará o seu intuito de
forma exclusiva. Assim com essa conclusão, surgirá o problema da motivação da ação
moral: o que pode fazer com que o outro seja, por completo, a minha preocupação no
agir ou no omitir de alguma maneira? Como outro alguém pode se tornar para o homem
a única motivação do seu modo de agir, ou seja, ser o próprio e exclusivo fim da ação?
Para Schopenhauer existe uma única maneira de o outro se tornar a preocupação
exclusiva de alguém. Aquele que dirige suas ações ou omissões diretamente a alguém,
tendo nesse alguém o próprio fim de suas atitudes, deve querer o bem-estar do outro
como se fosse o seu próprio e sentir o mal-estar desse mesmo como se ele fosse seu
próprio. Assim, com esses sentimentos o homem se identifica com a própria pessoa para
a qual seus atos são dirigidos. Nesse processo o egoísmo que é para Schopenhauer a
grande motivação antimoral, desaparece pelo menos no momento em que a ação ocorre,
e o homem se volta para outro homem como se esse fosse ele mesmo. A diferença entre
as pessoas desaparece até o ponto necessário para que a ação destituída de interesse

155
Schopenhauer A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo:
2001. .p.134 – 135
80

pessoal possa surgir naquele que age. Esse processo acontece, segundo Schopenhauer,
de maneira menos rara do que pensamos e ele é o processo da compaixão.
Schopenhauer defende que a compaixão é o único processo que faz com que homem
participe de forma imediata no sofrimento de outro homem. Schopenhauer afirma:
Esta compaixão sozinha é a base efetiva de toda a justiça livre e de toda a
caridade genuína. Somente quando uma ação dela surgiu é que tem valor
moral, e toda a ação que se produz por quaisquer outros motivos não tem
nenhum. 156
Segundo Schopenhauer o processo da compaixão é o único capaz de explicar as
atitudes desinteressadas do homem em relação a outrem. Mesmo assim esse processo
permanece um mistério, em seus próprios dizeres, “o grande mistério da ética”. É
apenas através dele que o eu e o não-eu tornam-se, até certo ponto que não é absoluto, a
mesma coisa. Apenas a metafísica seria capaz de tentar lançar luz a esse enigma e
esclarecê-lo de alguma forma, coisa que, segundo o próprio Schopenhauer afirma, não é
o propósito da Sociedade Real Dinamarquesa de Ciências de Copenhague, mas que
mesmo assim, nosso filósofo tentará esclarecer ao final de seu ensaio como veremos.
Da compaixão surge tudo aquilo que visa o bem estar do próximo, Schopenhauer
divide em duas as derivações dessa compaixão: virtude da justiça e virtude da caridade.
Mas antes de analisar essas duas derivações, Schopenhauer apresentará duas
observações a respeito do tema. Ele dirá que existem três motivações fundamentais nas
ações humanas. A primeira delas é o egoísmo, que visa o seu próprio bem e é ilimitado.
A segunda é a maldade que deseja o mal alheio e pode chegar até a mais profunda
crueldade. A terceira é a compaixão, que quer o bem-estar alheio. A maldade também é
desinteressada, visa o outro como fim, mas ao contrário da compaixão, ela quer o mal-
estar do outro e não seu bem-estar. Essas três motivações coexistem no mundo, mas não
podem coexistir no mesmo individuo no mesmo momento.
Assim, todas as ações humanas surgem dessas três motivações e apenas pela
terceira motivação pode surgir o ato genuinamente moral. A prova “a posteriori” disso
será apresentada por Schopenhauer quando o mesmo diz que o sofrimento, que nada
mais é do que o mal-estar do outro, é a única forma de fazer o homem participar de
maneira ativa da vida do outro. Apenas sentimos o outro quando o outro sofre, ao

156
Schopenhauer A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo:
2001. p. 136
81

contrário, a felicidade alheia não nos chama a atenção. É apenas a necessidade do outro
que faz a barreira da individualidade e, portanto, do egoísmo cair pelo menos até o
ponto necessário para que o homem possa se identificar com o outro. Schopenhauer
falará a respeito disso:
Portanto o positivo, o que manifesta por si mesmo, é a dor. Contentamento e
prazer são o negativo, a mera supressão da dor. É nisto, em primeiro lugar,
que se baseia o fato de que só o sofrimento, a falta, o perigo e o desamparo
do outro despertam diretamente nossa participação.157
A felicidade alheia causa apenas a indiferença, não faz o homem participar dela.
O único caso em que a felicidade do outro causa uma participação efetiva dela, é
quando o outro está ligado ao homem por algum tipo de laço, por exemplo, pelos laços
sociais ou familiares. Participamos da felicidade de um filho, pai, amigo, e assim por
diante. Jamais participaremos da felicidade de um estranho. Importante notar que
Schopenhauer já trará aqui, traços de seu pensamento contido em O mundo como
vontade e como representação, onde a dor é o agente positivo, enquanto o bem-estar é o
negativo para a ação.
Schopenhauer afirmará em sua obra capital que a dor é o que nos impulsiona
para a ação, para a “conquista” de nossos objetivos, enquanto o contentamento, o bem-
estar, nos faz ficar parados sem nada produzir. Assim, quando a pessoa se compadece
de outra, ela se torna, pelo menos em parte, aquela pessoa e sente a dor da mesma, esse
impulso positivo a faz agir, da mesma forma como quando ela sofre age, enquanto, da
mesma forma em que quando satisfeita ela simplesmente não age, ela também
procederá em relação ao outro que nada necessita. Schopenhauer afirmará: “A visão
daquele que é feliz e sente prazer pode até mesmo excitar muito ligeiramente nossa
inveja, já que existe em todo homem a disposição para ela e já que ela encontrou seu
lugar de destaque entre as potências antimorais” 158
Mas agora, vale ressaltar um ponto importante sobre a questão da compaixão.
Quando Schopenhauer afirma que a pessoa que se compadece, de alguma forma por
outra pessoa, passa por uma espécie de identificação com ela, ele não está querendo
dizer que aquele que se compadece tem a ilusão de ser, por algum momento, a pessoa
que sofre qualquer tipo de mal-estar. Schopenhauer afirmará que aquele que se

157
Schopenhauer A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo:
2001. p.139
158
Schopenhauer A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo:
2001. p.139
82

compadece sente a dor no outro e tem a plena consciência de que ele não é o outro.
Aquele que se compadece sabe que a dor não está em sua pessoa, mas sim na outra e
isso a incomoda. Assim, na compaixão, existe a plena certeza de que aquele mal do qual
o outro sofre não está em quem se compadece. Portanto a compaixão não pode ter seu
motivo encontrado apenas de maneira psicológica, apenas a metafísica poderá tentar
esclarecê-lo.
Esse fenômeno para Schopenhauer é tão real e forte, que é capaz de fazer com
que nós nos esqueçamos de nós mesmos. Ainda que estejamos extremamente felizes e
com nossos desejos realizados em sua totalidade, ao sermos invadidos pelo sentimento
de compaixão, somos levados a esquecer quase que totalmente nossa ventura, e nos
voltarmos para aquele que sofre imediatamente. Ainda, quanto maior for nossa sensação
de bem estar, maior será também a força que a compaixão exercerá sobre nós: “E
mesmo, quanto mais feliz for nosso estado e, pois, quanto mais contrasta a nossa
consciência com a situação do outro, tanto mais sensíveis seremos para a
compaixão”159Tal é o poder dessa compaixão que, como o próprio Schopenhauer diz,
permanece como um mistério no homem. Schopenhauer também afirmará que essa
compaixão é algo próprio do ser humano e não repousa sobre nenhum pressuposto.
Vejamos o que ele diz a respeito para uma melhor compreensão daquilo que ele chama
de compaixão:
Porém esta mesma compaixão é um fato inegável da consciência humana, é-
lhe essencialmente própria e não repousa sobre qualquer pressuposto,
conceitos, religiões, dogmas, mitos, educação e cultura, mas é originária e
imediata e, estando na própria natureza humana, faz-se valer em todas as
relações e mostra-se em todos os povos e tempos. Por isso é que se apela para
ela confiantemente em toda a parte como sendo algo presente
necessariamente em todo homem, e em nenhum lugar ela é atribuída a
‘deuses estranhos’. Pelo contrário, chama-se de inumano aquele que dela
parece carecer. Do mesmo modo que ‘humanidade’ é muitas vezes usada
como sinônimo de compaixão.160
Assim fica claro que essa compaixão é algo que está no próprio homem, nos
dizeres de Schopenhauer acima, em sua própria natureza, inerente ao homem de todos

159
Schopenhauer A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo:
2001. p.140
160
Schopenhauer A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo:
2001. p.141 - 142
83

os tempos e lugares encontra-se a compaixão. Nada pode ser considerado como fonte da
compaixão a não ser o próprio homem. A educação, a religião, a crença em algum deus,
não são responsáveis por esse fenômeno em nenhum instante. Assim, um ateu, uma
pessoa totalmente destituída de educação e que não faz parte de nenhuma cultura mais
estruturada terá compaixão e, como conclusão, pensamos ser inútil, dentro daquilo que
Schopenhauer afirma sobre ela, tentar tirá-la do homem de qualquer maneira que seja.
Ainda vale ressaltar diante do exposto, que essa compaixão não é algo raciocinado e sim
espontâneo, em nenhum momento no qual a compaixão se apresenta no homem houve
qualquer raciocínio que a ela antecedeu mostrando-a como aquilo que deve ser sentido
ou seguido.
Mas antes de examinarmos esses dois pontos da moral de Schopenhauer,
devemos apresentar uma questão de extrema relevância para a moral da compaixão que
ele defende: Se a compaixão é algo inato, inerente ao homem, não podendo assim ser
ensinada a ninguém, o que faz com que existam pessoas compassivas ao mesmo tempo
em que existam pessoais cruéis? Para essa questão Schopenhauer não apresenta
nenhuma resposta. Segundo o autor a maldade e a bondade não fazem parte das nossas
escolhas. Diante do que foi apresentado acima e do que será apresentado a seguir no
estudo das virtudes da justiça e caridade, a compaixão deveria existir em todos, mas não
é assim que acontece. Schopenhauer então dirá sobre esse ponto: “A maldade é tão inata
ao maldoso como que dente venenoso ou a glândula venenosa da serpente. Também
como ela, ele não pode mudar”. 161 Portanto, se não há como o homem se desvencilhar
da compaixão quando ela surge, também não há como deixar de ser maldoso quando há
maldade em nós.
Avaliamos esse ponto da dissertação de Schopenhauer e concluímos que ele,
mesmo não sendo apresentado dessa forma pelo autor, é o segundo mistério de sua
moral, já que sobre ele não é apresentado sequer uma tentativa de explicação metafísica.
Assim, a moral possui seu campo “restringido”, pois seu estudo pode apenas tentar
explicar o fenômeno da ação moral, mas jamais poderá tentar, de alguma forma criar um
meio de fazer com que as pessoas se tornem boas ou, pelo menos, percam seus ímpetos
malignos. Sobre isso Schopenhauer comenta:
Ora, a realidade e a experiência, que sempre se opuseram vitoriosamente às
promessas de uma ética que quer melhorar os homens moralmente e fala de

161
Schopenhauer A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo:
2001. .p.190
84

progresso na virtude, provaram com isso que a virtude é inata e não resulta de
pregação.162
A maldade e bondade inatas são o outro grande mistério da moral de
Schopenhauer que como bem podemos perceber, assim como a moral kantiana, não
pretende mudar o homem, mas sim apenas analisá-lo e alcançar as conclusões
necessárias para.

2.2.1 Das virtudes da justiça e da caridade

A primeira das virtudes provenientes da compaixão, segundo Schopenhauer, é a


virtude da justiça. E é interessante o pensamento de Schopenhauer sobre como somos
levados a senti-la em nós, pois, para ele, em um primeiro momento somos levados à
compaixão através de nosso próprio egoísmo. Como já vimos, todos os homens são, no
pensamento de Schopenhauer, inclinados à injustiça e à violência das mais variadas
formas através de nossos desejos que são provenientes da vontade incessante que nos
forma. Assim, tudo aquilo que pode ser um obstáculo aos nossos apetites sempre
famintos e insaciáveis é algo a ser derrubado e ultrapassado sempre. Na luta pela
saciedade, nossos interesses podem causar o sofrimento de outrem que parece ser um
obstáculo a nós, e quando algo é ferido por nós em nossa violência tomamos, através da
experiência, consciência da existência do outro e, consequentemente, da dor que o
mesmo sofre. Assim, aquele que até então era um desconhecido torna-se semelhante a
nós e a compaixão surgirá de forma espontânea contra a injustiça que nós mesmos
cometemos contra outras pessoas: “Ela me grita ‘pare’! e se coloca como arma
defensiva diante do outro, protegendo-o da ofensa a que, não fora isso, meu egoísmo ou
minha maldade me teriam impelido”. 163
Dessa forma se daria o primeiro grau de compaixão no homem; diante de sua
própria maldade ou egoísmo ela aparece e segura as rédeas do ser humano enlouquecido
por seus desejos. Essa virtude de justiça, porém, não aparece apenas em momentos de
ação egoísta. Depois de um primeiro ato de um homem que venha a ferir o bem-estar de
outro, ele estará apto para, pelo resto de sua vida, resguardar a justiça em relação às
outras pessoas em todos os sentidos. Schopenhauer afirma sobre isso:
162
Schopenhauer A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo:
2001. p.193
163
Schopenhauer A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo:
2001. p.142
85

Todavia, não é de nenhum modo preciso que, em cada caso único, a


compaixão seja efetivamente despertada, pois muitas vezes ela chegaria
muito tarde, mas em cada alma nobre a máxima ‘neminem laede’ origina-se
do conhecimento, alcançado de uma vez por todas, do sofrimento que toda
ação injusta traz necessariamente aos outros e que é aguçado através do
sentimento do padecer injusto, isto é, da prepotência alheia.164
Tal sentimento de justiça, vindo da compaixão seria o responsável por pessoas,
mesmo em situações propícias para a realização de tais atos, não furtarem os bens de
seu semelhante, assim como de não roubar, seduzir a mulher do seu vizinho, ou
maltratar as pessoas diretamente de qualquer forma. Importante também dizer que essa
justiça, também impediria o homem de aplicar a outros sofrimentos não só físicos ou
patrimoniais, mas também morais. Antes de humilharmos alguém, de lhe infligirmos
sofrimentos emocionais de toda ordem, essa “voz” da consciência, como Schopenhauer
bem exemplificou, nos gritará para pararmos.
Não há temor de ser pego em uma prática desonesta, de ser preso ou então de
receber a reprovação da sociedade e consequentemente, ser banido dela, a pessoa está à
sós consigo mesma e é a sua consciência apenas, o tribunal que de forma instantânea lhe
dirá o que deve ou não ser feito. Mas é bom salientarmos que essa consciência passa a
atuar em favor da compaixão depois de uma experiência, ela não é, em nenhum
momento, inata no sentido de não precisar de nenhuma forma empírica de
conhecimento, bem pelo contrário, se baseia nos acontecimentos do mundo objetivo
totalmente.
Também é importante ressaltar que a razão exerce um papel fundamental em
relação à compaixão, pois, depois de uma vez sentida, a reflexão racional sobre ela faz
com que o homem crie suas máximas em relação à justiça que podem ser “não matarás”,
“não causar dano ao patrimônio de ninguém”, “não humilhar ninguém”, ou seja, não
causar nenhum tipo de sofrimento a outrem de nenhuma maneira. Tudo isso, surgido,
como Schopenhauer afirma, de uma vez por todas depois da primeira experiência com a
compaixão vivida. Assim, essa razão criadora de princípios, é a responsável por manter
o homem agindo na moralidade, já que a compaixão nem sempre surgirá, por ser ela
espontânea e não surgir sempre no homem.

164
Schopenhauer A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo:
2001. p.145
86

Esse ponto é de extrema importância para a compreensão do pensamento de


Schopenhauer sobre a compaixão. A compaixão é a fonte primeira e também única da
ação moralmente genuína, com ela surgem a justiça e a caridade. Mas mesmo assim ela
não é uma constante no homem, Dessa forma é a razão que, analisando o que foi vivido
pelo homem ao sentir a compaixão pela primeira vez, cria regras de conduta e diz ao
homem o que deve ser ou não feito diante de uma situação na qual a compaixão não
aparece. Manter-se na moral para com os outros não é apenas algo fruto da compaixão,
mas também da razão que, “lembrando-se” da compaixão vivida em certa ocasião,
compaixão essa que é espontânea e que de nada depende, cria, por intermédio dessa
lembrança regras genéricas e as segue por uma forte determinação. Assim, o agir moral
também surge do autodomínio do próprio homem depois que ele toma conhecimento da
existência do outro através do seu sofrimento. Sem essa experiência de conhecer o
outro, não haveria a compaixão. Talvez essa seja a maior diferença entre a moral
kantiana e a moral da compaixão de Schopenhauer.
Sem princípios fortemente tomados, seríamos irrevogavelmente abandonados
às motivações antimorais, quando elas fossem estimuladas através de
impressões externas, até transformarem-se em afetos. O que permite manter e
seguir os princípios, a despeito dos motivos que agem em sentido contrário a
eles, é o autodomínio.165
Essa virtude da justiça não é apenas responsável pelos atos justos, mas também
por tentar evitar os atos injustos. Quando alguém se coloca contra uma atitude que
considera injusta é por meio da compaixão e, consequentemente, da virtude de justiça
que surge essa ação que visa impedir uma atitude reprovável.
Importante notar que a compaixão não depende de nenhuma instituição, do
Estado ou da religiosidade. A compaixão precede todos eles. Todas as tentativas de
fundamentar a compaixão com base em qualquer elemento que não seja o próprio ser
humano será improcedente. Através dela Schopenhauer explica, por exemplo, o
surgimento do próprio Direito:
Os conceitos injusto e justo, significando o mesmo que dano e ausência de
dano, ao qual também pertence o impedir o dano, são manifestamente
independentes de toda a religião positiva e a precedem. Há portanto um puro

165
Schopenhauer A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo:
2001. p.144
87

direito ético ou direito natural, isto é, uma doutrina do direito, independente


de todo regulamento positivo. 166
Também importante ressaltar que o justo e o injusto estão relacionados sempre
com uma atitude à outra pessoa e podem diferenciar em graus: mais ou menos injusto
ou mais ou menos justo. Schopenhauer explica:
O tamanho da injustiça de minha ação é igual ao tamanho do mal que com
ela infligi a outrem, dividida pelo tamanho da vantagem que consegui com
ela; e o tamanho da justiça de minha ação é igual ao tamanho da vantagem
que me traria o dano de outrem dividido pelo tamanho do prejuízo que ele
sofreria com ela. 167
Em relação à virtude da justiça o essencial foi explicado, agora temos de nos
debruçar sobre a virtude da caridade, também surgida da compaixão. Para
Schopenhauer a caridade, ainda que não reconhecida por filósofos antigos, sempre
existiu:
A caridade existiu prática e fatidicamente em todos os tempos. Mas foi
trazida à baila teoricamente e estabelecida como a maior de todas,
estendendo-se mesmo aos inimigos, em primeiro lugar pelo cristianismo,
cujo maior mérito consiste nisso, embora só em relação à Europa.168
Na virtude da caridade o processo de compaixão se produz de modo diferente da
virtude da justiça, pois enquanto nessa última o homem luta para não causar dano a
outrem ou impede um ato injusto, na virtude da caridade o homem é levado a ajudar
alguém. Livremente o homem se encarrega de estender sua mão a outro que sofre e tirar
ou pelo menos tentar tirá-lo de qualquer situação que lhe traga risco ou então amenizar
seu sofrimento de alguma forma. Essa participação no sofrimento do outro é direta, até
mesmo podendo ser conceituada como instintiva e visa sempre unicamente o bem
alheio.
Lembrando sempre, que tal atitude deve estar destituída de interesse pessoal,
pois até na caridade pode existir algum interesse. Aquele que ajuda com o intuito de
elevar-se perante os outros ao ajudar a pessoa que sofre não está sendo caridoso em sua
ação, nem mesmo aquele que faz a caridade com a intenção de ganhar grandes méritos
no “céu”, ou seja, ser salvo não está sendo caridoso. A atitude deve sempre, tanto na

166
Schopenhauer A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo:
2001. p.148
167
Schopenhauer A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo:
2001. p.150
168
Schopenhauer A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo:
2001. p.159
88

virtude de justiça como na virtude de caridade ter como fim o outro, aquele que sofre ou
aquele que quer se livrar de um mal qualquer. Essa dor que o outro sente é a motivação
da caridade, é por sua causa que o homem age. Ele não sente essa dor, sabe que não é
sua, mas de alguma forma ela se torna sua e por isso a felicidade ou o bem estar do
outro lhe é tão importante e também o fim a que essa atitude se destina.
Aqui se abre um pequeno atalho para a explicação metafísica que em breve
veremos. Schopenhauer não vê de maneira fácil a explicação para esse fenômeno. Em
relação a ele, diz:
Isto pressupõe, porém, que eu tenha me identificado com o outro numa certa
medida e, consequentemente, que a barreira entre o eu e o não-eu tenha sido,
por um momento, suprimida. Só então a situação do outro, sua precisão, sua
necessidade e seu sofrimento tornar-se-ão meus.169
Assim termina a explicação de Schopenhauer sobre a compaixão e de suas duas
virtudes que são o fundamento de todas as outras virtudes verdadeiras. Mas ainda é
preciso mostrar a base para todas essas reflexões que é apenas uma: provar a existência
da compaixão.

2.2.2 Da real existência da compaixão

Como Schopenhauer pretende provar a existência da compaixão? A resposta a


essa pergunta só pode ser uma: com base na experiência. Dessa forma, analisando
vários fatos cotidianos e históricos, nosso pensador irá tentar demonstrar que tais fatos,
os genuinamente morais, só podem ter origem na compaixão, nada mais poderia ser
responsável pela existência dos mesmos:
A verdade agora expressa de que a compaixão á a única motivação não
egoísta e a única genuinamente moral é, de um modo estranho e quase
incompreensível, paradoxal. Quero por isso tentar mudar as convicções do
leitor, demonstrando que ela é confirmada pela experiência e pelas
expressões do sentimento geral humano.170
Através de exemplos simples Schopenhauer irá demonstrar que apenas a
compaixão pode fundamentar um ato genuinamente moral. Por exemplo: se alguém
deixa de matar outrem por não querer ser preso, por não querer ter má fama, por seguir
um imperativo categórico tal ato não teria realmente um valor moral. Somente aquele

169
Schopenhauer A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo:
2001. p.163
170
Schopenhauer A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo:
2001. p.165
89

que deixa de matar outrem, pois pensa nele e toma suas dores por maior que seja o ódio
que contra ele existe, está de fato, sendo moralmente genuíno.
Em relação ao exemplo dado acima, tomamos a liberdade de transcrever aqui
uma história apresentada por Montaigne em seu livro Ensaios que se encaixa
perfeitamente nessa descrição de uma genuína atitude moral:
O Imperador Conrado III, assediando o duque da Baviera, não consentiria em
deixar sair da cidade senão as mulheres dos fidalgos que ali se encontravam.
Comprometera-se a respeitar-lhes a honra, mas à condição de saírem a pé e
levando apenas, com elas, o que pudessem carregar; e recusara-se a atenuar
tais condições, por mais humilhantes que fossem as satisfações oferecidas
pelo inimigo. Atentando unicamente para ditames do coração, lembraram-se
as mulheres de levar às costas os maridos, os filhos e o próprio duque.
Impressionou-se o Imperador a tal ponto com essa prova de coragem que
chegou a chorar de emoção. O ódio mortal que votara ao duque, cuja
desgraça desejava, tornou-se menos violento e a partir desse momento ele o
tratou, e aos seus, com humanidade.171
Tal história encaixa-se perfeitamente no pensamento de Schopenhauer.
Interessante notar como as mulheres citadas apelaram para o “coração” do imperador
Conrado oferecendo-lhe um espetáculo que despertaria nele o perdão, o que de fato
aconteceu. Diante dessa história ou de alguma outra parecida, a pergunta de
Schopenhauer seria a seguinte: Que outro sentimento poderia despertar essa atitude no
imperador que não a compaixão? Como poderiam as mulheres sabiamente usaram essa
estratégia que apela para o coração, ou seja, para a compaixão, se ela não existisse, se
ela fosse apenas fruto de uma educação ou algo reservado apenas para uma parcela dos
homens do planeta? Assim a compaixão é algo real, que de fato existe e no coração de
todos: ninguém está isento dela e quando está não é, como o próprio Schopenhauer
afirmou e voltara a afirmar em seguida, digno de ser considerado humano.
Outra prova não só de que a compaixão é a única fonte do ato moral, mas como
também real é o sentimento que toma o homem diante de um fato terrível provocado
pela crueldade que é o oposto da compaixão: “Podemos desculpar qualquer outro delito,
mas não a crueldade” e o motivo disso é que ela é o extremo oposto da compaixão.
Assim não apenas examinando os fatos do cotidiano, mas também a si mesmo,
Schopenhauer conclui a existência da compaixão.

171
Montaigne M. Os ensaios, In: “OSPENSADORES” trad. Sergio Milliet, Nova Cultural, Os Pensadores, São Paulo:
1996 p. 33 – 34
90

Nada segundo Schopenhauer pode nos deixar tão estarrecidos quanto a


crueldade. Nada é mais desumano do que uma atitude cruel. Note-se bem a palavra
“desumano”, indicaria que a compaixão é algo inerente à realidade humana, parte
integrante do homem em todos os lugares. A compaixão não necessita ser ensinada, ela
é pressuposto da vida humana não dependendo da vontade de quem a sente. Mas
deixemos ainda mais explicito esse pensamento. Schopenhauer cita uma história na qual
uma mãe havia torturado e depois assassinado seus próprios filhos:
Quando tomamos conhecimento de um ato muito cruel – como, por exemplo,
o que agora mesmo os jornais noticiaram de uma mãe que assassinou o filho
de quinze anos derramando-lhe óleo fervente na garganta e o filho mais novo,
enterrando-o vivo; ou o que nos foi comunicado da Argélia: que, depois de
uma briga e uma luta casuais entre um espanhol e um argelino, este, sendo
mais forte, arrancou o maxilar inferior daquele e o levou como troféu,
deixando o espanhol vivo - , então, seríamos tomados de horror e
exclamaríamos: “Como é possível fazer algo desse tipo?” Qual seria o
sentido desta pergunta.172
O sentido seria apenas um: a falta de compaixão de tais pessoas. Como alguém
poderia ser tão desprovido de compaixão a ponto de cometer algo desse tipo? Nesse
momento, ao deparar-se com tal noticia ou ver tal fato acontecer, o homem não pensa
como alguém pode ser, por exemplo, tão desprovido de fé, tão alheio ao imperativo
categórico ou não se preocupar em ser, por exemplo, preso ou rejeitado pela sociedade.
Nesse momento é a desumanidade, a crueldade que nos assusta, que nos faz lembrar da
compaixão uma vez sentida e que nos remete às nossas experiências pessoais com ela
não nos deixando aceitar tamanha malvadez. Caso a compaixão não existisse, jamais
sentiríamos tamanho repúdio ou até mesmo ira contra alguém que cometesse atos desse
tipo.
Também devemos lembrar que a compaixão se estende não apenas ao homem,
mas também a todos os seres vivos. A compaixão não possui limites, assim, um homem
pode senti-la em relação a um cachorro que sofre ou poderá sofrer qualquer tipo de
incidente e tal exemplo é citado por Schopenhauer:

172
Schopenhauer A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo:
2001. p.167
91

A compaixão para com os animais liga-se tão estreitamente com a bondade


do caráter que se pode afirmar, confiantemente, que quem é cruel com os
animais não pode ser uma boa pessoa173
Aqui há mais uma diferença entra a moral kantiana e a moral de Schopenhauer.
Em Kant a moral se volta apenas para os seres racionais (homens), em Schopenhauer a
moral que não se volta para os animais, na realidade, não pode ser vista como genuína.
A ausência de compaixão para com os animais, aos olhos do autor, só pode ser vista
como algo repulsivo, fruto do judaísmo:
A suposta ausência de direito dos animais, a ilusão de que nossas ações em
relação a eles sejam sem significação moral, ou, como se diz na linguagem
moral, que não há qualquer direito em relação aos animais, é diretamente
uma crueza e uma barbárie revoltantes do Ocidente, cuja está no judaísmo. 174
Com essa verdadeira defesa dos animais já é possível começar a identificar as
bases para a compaixão e sua possível explicação metafísica no pensamento do filósofo.
Schopenhauer já disse que na compaixão o homem é tomado por algo que lhe faz
participar do sofrimento do outro. Mesmo sabendo que ele não é aquele que sofre, o
compassivo sente de alguma forma a dor do outro e identificando-se com ele age com
justiça ou caridade. Mas frente a isso poderíamos nos perguntar como um homem pode
se identificar com um animal. Mesmo existindo um sofrimento qualquer no animal qual
a semelhança, ou melhor, o que faz com que o homem identifique-se com o animal? As
respostas a essa pergunta encontrar-se-ão inevitavelmente na metafísica. É preciso
dirigir-se à essência da vida e nela encontrar o motivo pelo qual o animal pode ser visto
como merecedor de compaixão:
Tem-se de estar cego em todos os sentidos ou cloroformizado pelo “foetur
judaicos” para não reconhecer que o essencial e o principal é o mesmo no
animal e no homem, e aquilo que os distingue não está no primário, no
princípio, no arcaico, no ser íntimo, no âmago de ambos os fenômenos, que,
como tal, tanto num como noutro, é a vontade do indivíduo, mas somente no
secundário, no intelecto, no grau da força do conhecimento, que no homem,
através da faculdade acrescentada de conhecimento abstrato, chamada de
razão, é incomparavelmente mais alto, mas verificado apenas graças a um
maior desenvolvimento cerebral, portanto graças a diferença somática de

173
Schopenhauer A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo:
2001. p.179
174
Schopenhauer A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo:
2001. p.175
92

apenas uma parte, o cérebro, e especificamente em relação à sua


quantidade.175
Assim não há nenhuma diferença essencial entre o homem (racional) e o animal
(irracional), pois ambos são constituídos com base na mesma fonte: a vontade. De
alguma maneira é possível entender isso e o fruto desse entendimento é a compaixão
que se manifesta espontaneamente frente ao sofrimento de um irracional. O homem não
possui um lugar de destaque frente a outros seres que com ele vive sobre a terra, tal
visão só pode ser fruto do equívoco das religiões que insistem em negar a igualdade
entre os seres dando ao homem um lugar de destaque.
Também temos de comentar que a compaixão para com os irracionais acontece
da mesma forma com a qual ela acontece para com os homens. Não é necessário
esforçar-se para compadecer-se dos irracionais. Da mesma forma que nos
compadecemos frente ao sofrimento de um homem, isso também acontece frente ao
sofrimento de um irracional. Schopenhauer cita uma história protagonizada por um
homem chamado Wilhelm Harris como exemplo:
Em sua viagem, publicada em Bombaim em 1838, conta ele que, depois de
haver matado seu primeiro elefante, que era fêmea, e procurado o animal
morto na manhã seguinte, todos os outros elefantes tinham fugido do lugar,
só o filhote do animal morto tinha passado a noite ao lado da mãe morta;
esquecendo todo o medo, este veio então de encontro ao caçador, com a mais
viva e clara demonstração de sua dor inconsolável, e enlaçou-o com a sua
pequena tromba para pedir socorro176
Não é necessário dizer que o iniciante caçador desistiu de se tornar um
experiente caçador depois disso. Segundo as palavras de Schopenhauer o mesmo
homem diante de tal cena sentiu um terrível remorso e jamais voltou a caçar.
Resumindo: a compaixão que se volta para um homem é a mesma que se volta para um
animal (irracional) com toda a certeza. É interessante notarmos que a compaixão que
existe para com os irracionais é uma espécie de ponte que nos leva ao verdadeiro
conhecimento do mundo, ao entendermos e visualizarmos a existência da compaixão
pelos irracionais, nossos preconceitos em relação a eles caem, nos vemos perdidos em
uma espécie de ilusão aumentada pelo infeliz moralismo judaico-cristão que tanto

175
Schopenhauer A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo:
2001. p.177
176
Schopenhauer A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo:
2001. p.180
93

engana e cria valores que apenas podem estar baseados para a diminuição dos animais
frente ao homem em uma coisa: no egoísmo.
De certa forma, todos nós sabemos que os animais são dignos de compaixão e de
que ela surge em nós quando vemos esses nossos irmãos, os irracionais, sofrerem. Mas
o egoísmo humano nos faz apelar para a criação de sistemas morais ou religiosos que
tentam de todas as formas rebaixar os animais para mais tranquilamente nos
aproveitarmos deles. Assim, o homem não enxerga o irracional como um ser totalmente
diferente dele, mas sim, quer que o mesmo o seja para dele poder se aproveitar.
Vejamos as palavras de Schopenhauer nesse momento importantíssimo de sua
dissertação:
Então os filósofos, inquietados por sua consciência intelectual, tiveram de
procurar apoiar a psicologia racional por meio da empírica e, por isso,
esforçar-se por abrir entre o homem e o animal um abismo monstruoso, uma
distância incomensurável, para apresentá-los, a despeito de toda evidência,
como diferenciados já no fundamento.177
Nessas palavras de Schopenhauer acima, vê-se claramente que a compaixão é
algo tão verdadeiro, que os homens se propuseram devido ao seu egoísmo, tentar retirá-
la de si mesmos através de construções de sistemas filosóficos que de alguma forma
rebaixassem os animais. Depois, eles, com a consciência “tranquila”, poderiam tornar a
ver os animais como inferiores e assim se aproveitarem deles como bem quisessem.
Impressionante a força que a compaixão exerce no homem e como ela é capaz de
produzir tamanhos efeitos nele das mais diversas formas. Negar a compaixão é negar a
si mesmo e consequentemente a verdade de que em todos os seres possuem uma mesma
identidade da qual não se pode fugir. O grande problema é que aceitar essa realidade
seria algo totalmente diferente do que aquilo que foi proposto pela moral judaico-
cristão, como por exemplo, a vida após a morte, a superioridade dos racionais, punição,
castigo e assim por diante.
Entenderemos melhor quando analisarmos a metafísica de Schopenhauer, mas já
podemos adiantar para melhor explicarmos a compaixão, que ela se volta para todos os
seres, pois ela está relacionada com a essência primeira que forma todos esses seres. No
mundo dos fenômenos que só conhecemos através da experiência e da causalidade
inata, não há possibilidade de encontramos uma explicação para ela. Podemos apenas
através do empirismo conhecer a sua existência, mas não no que ela se funda. Se

177
Schopenhauer A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo:
2001. p.175
94

realmente nos debruçarmos sobre os motivos que fazem com que a compaixão exista,
toda a moralidade Ocidental e os valores, os mais diversos, desabarão por completo. Tal
posicionamento é complexo e sobre ele Icilio Vecchiotti comenta:
Um dos motivos característicos da polemica de Schopenhauer, nesta como
nas outras obras, é a extensão do principio da caridade aos animais, contra
um costume que tem na sua origem a instrumentalização do animal e na
recusa de qualquer direito que, segundo ele, seria próprio do judaísmo:
também o cristianismo herdou, em algumas de suas formas – de acordo com
o nosso filósofo – essa característica da mentalidade judaica178
Assim, a compaixão que se estende aos animais é algo polemico, pois revela um
mundo que foi ignorado por séculos devido à cultura Ocidental alicerçada infelizmente,
segundo o autor, no judaísmo. Em outras religiões, as mais antigas da humanidade e
também mais conscientes da verdade do mundo, tal distinção não existe e os racionais e
irracionais diferem apenas na forma com a qual existem no mundo, mas não em
essência.
Depois de estudarmos a compaixão como o único e verdadeiro fundamento da
moral, basta agora tentarmos entender qual o motivo que faz com que Schopenhauer a
veja como um grande mistério. Sobre ela nosso pensador comenta:
Este processo é, eu repito, misterioso, pois é algo de que a razão não pode dar
conta diretamente e cujos fundamentos não podem ser descobertos pelo
caminho da experiência. E, no entanto, é algo cotidiano. Todos o vivenciaram
muitas vezes em si mesmos, e até mesmo os mais duros de coração e egoístas
ele não foi estranho. Ele surge todos os dias, diante de nossos olhos, no
singular, no pequeno, em toda a parte onde, por um impulso direto, um
homem ajuda outro sem reflexão e o socorre e, às vezes, até mesmo coloca
sua vida em evidente perigo por alguém que ele vê pela primeira vez, sem
pensar mais, logo que vê a grande necessidade e o perigo do outro179
Nas palavras acima vemos dois obstáculos para a compreensão da compaixão. O
primeiro deles refere-se à nossa razão que não teria como encontrar o seu fundamento.
E o segundo ao próprio ser humano que, em sua esmagadora maioria é egoísta. Mas
porque o homem é egoísta? Por que a nossa razão não possui capacidade de, através do
empirismo, encontrar o fundamento da moral? Percebemos que as questões agora são
outras e necessário será respondê-las para encontrarmos a fundamentação da própria

178
Vecchiotti, Schopenhauer. Rio de Janeiro, edições 70, rio de Janeiro,1986: p. 57
179
Schopenhauer A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo:
2001. p.163
95

compaixão, na qual descobriremos que a mesma se manifesta como negação da ilusão


da individualidade dos seres, ou seja, como negação da vontade, o ponto máximo de
toda a ética de Schopenhauer e a própria finalidade de todo o pensamento de
Schopenhauer. Sendo assim analisemos agora rapidamente os dois lados que o mundo
possui, para Schopenhauer.
Mas antes de estudarmos o mundo como representação e como vontade, seria
importante fazermos algumas observações sobre tudo o que foi dito até aqui.
Primeiramente devemos concluir que o sofrimento humano possui uma importância
enorme em todo o pensamento de Schopenhauer. É ao seu redor que seu pensamento
gira e é nele que seu pensamento encontra a sua primordial motivação. A compaixão
dessa forma não poderia deixar de ter um papel importantíssimo no mundo, pois é a
compaixão responsável, como vimos, pelas virtudes da caridade e justiça, isto é, a
compaixão á a grande responsável por tudo aquilo que existe de “bom” no mundo, sem
ela não existiria nada que pudesse ser considerado bom e aquilo que é bom só o é, pois
interfere diretamente no sofrimento humano diminuindo-o ou acabando com ele.
Mesmo a negação da vontade que é o ápice da ética Schopenhaueriana não é capaz de
gerar atitudes boas em relação a outras pessoas, ou seja, justiça e caridade, dessa forma,
no mundo, aquilo que é bom só o é por estar motivado pela compaixão. Nenhum outro
meio é possível que não a compaixão, é apenas através dela que a chamada bondade e
tudo aquilo que venha a amenizar o sofrimento humano pode existir, agora vamos
entender como o mundo funciona segundo Schopenhauer e consequentemente entender
ainda mais a compaixão e sua motivação.

2.3 A Representação e a Vontade

Segundo Schopenhauer o grande mérito de Kant é a distinção entre o fenômeno


e a “coisa em si”.180 No fenômeno ele reconhecerá a ilusão e na “coisa em si” a vontade,
o fenômeno é o Véu de Maia do qual o homem deve se libertar. Tal pensamento já se
encontraria na doutrina dos Vedas e dos Puranas não sendo, na interpretação de
Schopenhauer de originalidade kantiana; o mundo no qual vivemos nada mais é do que
ilusão e deve ser encarado como um sonho inconsistente e inessencial.

180
Schopenhauer A. Crítica da Filosofia Kantiana, In: “OS PENSADORES”trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola,
Nova Cultural, Os Pensadores, São Paulo, 1997 p. 120
96

Schopenhauer é um grande admirador de Kant como já sabemos, dizendo-se até


mesmo seu sucessor quando em seu pensamento assim como Kant estabelece o mundo
como fenômeno e “coisa em si”, representação e vontade respectivamente. Para ele
Kant teria sido umas das mais brilhantes mentes que o mundo já conheceu. Toda essa
admiração se deve ao fato de Kant ter escrito sua obra prima a Crítica da razão pura, e
desenvolver nela a grande descoberta da metafísica que daria a Schopenhauer parte da
solução frente ao grande enigma do mundo: a Estética Transcendental.
A Estética Transcendental é segundo Kant, o meio pelo qual as sensações se
tornam percepções. Todo o “material” que chega até o ser humano seria dado por duas
simples formas: espaço e tempo. Assim, espaço e tempo não são coisas percebidas, mas
sim formas de perceber. Dentro desse sistema, Kant afirma que o “em si” do universo
jamais poderia ser conhecido. Aprendemos e tomamos contato com o mundo através de
uma maneira já determinada por princípios a priori de nossa razão. A Estética
Transcendental, responsável por transformar sensação em percepção, juntamente com a
Analítica Transcendental, responsável por fazer das percepções conhecimento, são uma
espécie de “filtro”, que coordena nosso saber e fazem-nos ver e entender o fenômeno,
mas não a causa desse fenômeno que permanecerá para sempre um grande enigma.
Assim tudo o que vemos, sentimos, aprendemos, entendemos está relacionado ao
fenômeno. O mundo é o fenômeno do qual jamais conheceríamos a causa.
Diferentemente de Hume, Locke e outros pensadores que defendiam as
sensações como únicas causadoras de nosso conhecimento, Kant afirmará que apesar de
todos nossos conhecimentos realmente virem das sensações, a razão jamais possuiria
um papel passivo diante delas. O próprio homem possui inerente a si mesmo, o meio
pelo qual o conhecimento surgirá nele.
Schopenhauer vê nessas afirmações kantianas a sabedoria que até então ninguém
havia encontrado, e fará dela uma das suas principais fontes de pensamento. Unindo a
Estética Transcendental ao Budismo e hinduísmo, por exemplo, dos quais nunca se
afastará, Schopenhauer afirmará que o mundo nada mais é do que mera representação,
simples fenômeno e fará dele uma total ilusão. Mais uma vez, valendo-se das alegorias
Budistas e Hinduístas, nosso pensador verá no mundo a ilusão da qual poucos se
desvencilharam. O mundo é o já citado “Véu de Maia” que a todos engana e o véu
rasgado pelo Gênio, faz com que sua causa, a vontade, apareça.
Diante dessa conclusão a idéia de individualidade se acaba, pois ela não existe, é
apenas mais um fenômeno, ou como prefere Schopenhauer, uma ilusão criada pela
97

vontade para melhor se objetivar. Eis as palavras iniciais de Schopenhauer no primeiro


livro de O mundo como vontade e como representação:
“O mundo é minha representação.” – Esta é uma verdade que vale em relação
a cada ser que vive e conhece, embora apenas o homem possa trazê-la à
consciência refletida e abstrata e de fato o faz. Então nele aparece a
clarividência filosófica. Torna-se claro e certo que não conhece sol algum e
terra alguma, mas sempre apenas um olho que vê um sol, uma mão que toca
uma terra.181
A existência do mundo dependeria do homem. Poderiamos resumir dizendo que
para Schopenhauer não existe mundo sem homem. O fenômeno aparece apenas com o
relacionamento entre ambos. Eis o esclarecimento de Schopenhauer sobre esse assunto:
Verdade alguma é, portanto, mais certa, mais independente de todas as outras
e menos necessitada de uma prova do que esta: o que existe para o
conhecimento, portanto o mundo inteiro, é tão somente objeto em relação ao
sujeito nenhuma verdade é, portanto mais certa, mais absoluta, mais evidente
do que esta: tudo o que existe, existe para o pensamento, isto é, o universo
inteiro apenas é objeto em relação ao sujeito, intuição de quem intui, numa
palavra, representação.182
Como dito acima para Schopenhauer esse foi o grande mérito de Kant, o de ter
separado o “em si” do fenômeno. Sobre essa visão de Schopenhauer da Estética
Transcendental kantiana, José Thomaz Brum irá comentar:
Em relação à vontade, que é em si e sem razão suficiente, o individuo é
“fenômeno”, uma aparição do intelecto sob forma de individuação. Os
indivíduos, “fenômenos passageiros”, nascem e morrem. Mas a natureza, que
se interessa apenas pela conservação da espécie, é “indiferente” a esse
processo. No “fluxo perpetuo da matéria” que constitui a vida, o individuo é
alguma coisa de irreal. Devemos nos dar conta de que Schopenhauer,
radicalizando o idealismo transcendental kantiano, concebe o mundo
fenomênico como um sonho do intelecto humano183

Thomaz Brum usa a expressão “radicalizando”, já que ao que tudo indica tempo
e espaço assim como o próprio mundo não eram apenas ilusões, miragens, como
Schopenhauer afirmava, Essa interpretação polêmica de Schopenhauer da filosofia
kantiana será essencial para a formulação de sua própria filosofia. O mundo para
Schopenhauer, como visto acima, nada mais é do que uma miragem que existe apenas

181
Schopenhauer A. O mundo como vontade e representação, trad. Jair Barboza, UNESP, são Paulo: 2005 p. 43
182
Schopenhauer A. O mundo como vontade e representação, trad. Jair Barboza, UNESP, são Paulo: 2005 p. 43
183
Brum Thomaz José O pessimismo e suas vontades, Rocco, Rio de Janeiro: 1998 p. 34.
98

para o intelecto humano, o mundo está em nós, em nossa forma de conhecer e não existe
em si mesmo, sem sujeitos para conhecer o mundo o mesmo não existiria. Podemos ver
essa “visão radical” sobre a Estética Transcendental de Kant, quando Schopenhauer em
O Mundo como vontade e como representação, cita uma passagem sem mencionar onde
a encontrou e que teria semelhança com outras passagens facilmente encontradas nos
livros sagrados dos Vedas ou Puranas. Eis o texto:
Trata-se de maya, o véu da ilusão, que envolve os olhos dos mortais,
deixando-lhes ver um mundo do qual não se pode falar que é nem que não é,
pois assemelhasse ao sonho, ou ao reflexo do sol sobre a areia tomado a
distância pelo andarilho como água, ou ao pedaço de corda no chão que ele
toma como uma serpente.184
Mais adiante ele continua: “Sóis e planetas sem olhos para os verem, sem uma
inteligência para os conhecer, são palavras que se podem pronunciar, mas que
representam qualquer coisa tão inteligível como “bocado de ferro madeira”.
A questão é que Schopenhauer toma como ponto de partida para o conhecimento
essa noção de representação que necessita da interação imediata entre os homens e os
objetos para poder existir.185
A noção de conhecimento em Schopenhauer, assim, está ligada à noção de
representação que pressupõe de alguma maneira o envolvimento simultâneo de sujeito e
objeto e que nos faz chegar a uma conclusão curiosa: ao pensarmos no sujeito estamos
pensando imediatamente no objeto e ao pensarmos no objeto estamos pensando
imediatamente no sujeito. Seria impossível pensar em apenas um, ou seja, só no sujeito
ou só no objeto. Sobre isso, Jair Barboza afirmará: “Estamos diante de um amálgama
teórico que nenhum corte, nenhum raciocínio lógico consegue. Onde começa o sujeito
termina o objeto; e onde começa o objeto termina o sujeito”. 186
A representação não revela sua essência o que a faz permanecer uma espécie de
enigma, uma ilusão propriamente dita, algo enganoso, mas em todo o processo de
conhecimento o sujeito é ativo e não passivo, pois possui a priori três formas puras de

184
Schopenhauer A. O mundo como vontade ecomo representação, trad. Jair Barboza, UNESP, são Paulo: 2005 p. 49
185
Para Zair Barboza isso se confirma na frase inicial de o mundo como vontade e como representação “O mundo é minha
representação”, Nela Schopenhauer estaria querendo desviar-se de duas formas tradicionais, mas diferentes de entender o
conhecimento que seriam o idealismo e o realismo, no segundo o ponto de partida é o objeto e no primeiro o ponto de partida é o
homem nessa o homem origina o objeto e naquela o objeto origina o homem. Schopenhauer discorda de tais teorias e estaria
pretendendo combatê-las.
186
Barboza Jair: a decifração do enigma do mundo, Editora Moderna, São Paulo: 1977 p. 29.
99

conhecimento, formas inatas, que são o tempo, o espaço e a causalidade que juntas
formam o chamado princípio de razão que figura como tema da tese de doutorado do
pensador. Mas o começo do conhecimento se dá com o corpo humano, de nada
adiantaria uma cabeça sem corpo para sentir, olhos para ver, ouvidos para ouvir e assim
por diante, sem corpo não haveria conhecimento algum, tudo seria estranho e sem
nenhuma certeza, assim entendemos que as simples sensações em si nada são não
podem nos dar nenhum tipo de conhecimento, é nossa razão ativa que trabalha essas
sensações e nos dá o mundo, ou seja, faz surgir a representação, sem as formas inatas do
conhecimento tais sensações seriam inúteis. O mundo inteiro então é apenas intelectual,
existe na cabeça das pessoas e não em si mesmo, se todo esse processo de conhecimento
fosse de um momento para outro retirado de todos os seres humanos e também dos
irracionais o mundo desapareceria.
Mas se por um lado o mundo é representação, por outro ele é vontade e a
vontade é o “em si” do mundo tido por Kant como transcendente e consequentemente
inatingível.
Mas em um mundo cuja essência é uma vontade irracional e incontrolável só
pode reinar a dor sem fim. Schopenhauer é um pessimista, talvez o primeiro grande
pessimista da história da filosofia.
Seu pessimismo, não é apenas o desabafo de alguém decepcionado com a vida
por não conseguir alcançar seus objetivos ou por ter sido vítima de alguma tragédia
pessoal, mas sim, um pensamento alicerçado em uma coerência profunda que vai desde
a idéia de representação e vontade que começamos a analisar e, ao contrário do que
dizem, não é apenas fruto de uma época difícil, mas de uma análise minuciosa não só da
história e do homem, mas também da vida em todas as suas formas. Com certeza é esse
o motivo que faz de Schopenhauer um filósofo que, na maioria das vezes, é esquecido
ou rejeitado. Schopenhauer nos frustra em cada uma de suas palavras, com ele
retornamos à realidade da vida de maneira radical. Schopenhauer apresenta um mundo
sempre indiferente ao nosso desejo, ele não nos ajuda, não nos dá nenhuma palavra de
alento. O próprio Schopenhauer irá nos dizer de uma maneira lógica o motivo do
desprezo que sofreria dizendo:
Na maioria das vezes, entretanto, fechamos os olhos para o conhecimento
amargo como um remédio, de que o sofrimento é essencial à vida e, por
100

conseqüência, não penetra em nós do exterior, mas cada pessoa porta em seu
interior a sua fonte inesgotável 187.
Mas que fonte seria essa que faz da vida um sofrimento sem fim? Essa questão é
simples de ser respondida: a vontade. A vontade é a grande fonte de sofrimento de todos
os seres e é ela que faz o mundo ser o inferno que é voltando todos contra todos em um
egoísmo sem fim e fazendo de todos eternos insatisfeitos. Todos trazidos ao mundo,
“tirados” do nada, tendo como essência a vontade sem fim que a tudo e todos chicoteia
sem piedade através de desejos ilimitados. A vontade una torna-se uma multiplicidade
de indivíduos na representação apenas e cada individuo é um sofredor corroído pela
insatisfação e pelos ataques de outros sofredores como ele. Tal é a tragédia da vida em
Schopenhauer, o espetáculo de horror encontrado em cada ser que perdido nesse inferno
se digladia contra tudo e contra todos. E enquanto o retorno à inconsciência, ou seja, a
morte, não vier, só há uma saída para tanta dor: a negação da própria vontade, pois
somos não só criação dessa vontade como também a própria vontade objetivada em
fenômenos dos mais variados. Assim, a essência intima de tudo o que existe é essa
mesma vontade, não há diferença substancial em nada. Homens, animais, vegetais e
assim por diante, são uma única coisa. Ainda essa vontade é cega e nunca deixa de ser
vontade. Não existe nenhum “objetivo maior” no mundo, nenhuma regra ou lei superior
que o dirige. Tudo é e será eternamente um caos no qual o sofrimento é a única “regra”
a ser observada por todos aqueles que realmente desejam conhecer de fato a verdade.
Negar o sofrimento do mundo seria negar a própria vida e ela, a vida, é o grande
problema a ser resolvido por isso nos surge a negação da vontade como única saída, ou
seja, a negação da própria vida, a negação de si mesmo. Ainda que a maioria ou todos
os nossos desejos fossem satisfeitos restaria ainda assim a dor, isto é, o tédio viria até
nós e mais uma vez nos faria sofrer. Depois de um desejo satisfeito o tédio aparece e
domina o homem até que outro desejo apareça e o lance no sofrimento outra vez, dessa
forma, sem paz alguma, como já dito, o homem possui dentro de si a fonte inesgotável
da sua dor que jamais cessa ou lhe dá uma trégua qualquer. Sempre o desejo
inesgotável, a vontade arrasadora nos domina fazendo da vida frustração, tédio, desejo
sem trégua, ou seja, um sofrimento que não possui fim, que é o grande senhor da vida e
de tudo e de todos. O que podemos entender sobre a vida na filosofia de Schopenhauer é
que toda a vida é sofrimento, é dor sem limite já que essa mesma vida é vontade sem

187
Schopenhauer A. O mundo como vontade ecomo representação, trad. Jair Barboza, UNESP, são Paulo: 2005 p. 410
101

limite. Como se não bastasse a guerra que o indivíduo trava consigo mesmo, com sua
própria essência ainda existe a guerra que ele trava com os outros homens como ele,
perdidos no labirinto do egoísmo, cada um é um inimigo em potencial quando formada
a guerra de todos contra todos e se são “bons” o são pelo egoísmo e não pela bondade
mesma, o Estado, como já vimos, é a grande focinheira a administrar toda essa barbárie
que sem ele aconteceria.A vida nada mais é do que vontade que se alimenta de si
mesma.Sendo assim em qual conclusão chegamos? Depois de analisarmos todo esse
pensamento amargo e essa conclusão da vida ainda mais amarga?A conclusão somente
poderia ser uma: seria melhor que tudo o que existe não existisse; seria melhor que não
tivéssemos nascido que tivéssemos continuado no nada da inconsciência, ou melhor,
que ninguém tivesse nascido a inexistência no pensamento de Schopenhauer é preferível
a existência. Tanto é assim que o pensador afirma literalmente ser o ato da procriação
uma traição contra a própria raça, ninguém em sã consciência teria o desejo de ter
filhos, ou melhor, de aprisionar algum ser nesse mundo e vida de martírios inesgotáveis,
Assim a negação da vida sexual também aparece na Filosofia de Schopenhauer
como necessária e como meio de evitar ainda mais sofrimentos. Não poderia haver outra
conclusão sobre a procriação em um pensamento que vê o mundo de maneira tão
terrível. Seria possível dizer que Schopenhauer se compadece dos seres antes mesmo
que eles venham ao mundo. Na negação da vontade está a salvação dos seres antes
mesmo de eles terem nascido, só a negação da vida por completo é aquilo que levaria a
humanidade ao aniquilamento absoluto e finalmente à paz perpetua.
Em sua obra capital, O mundo como vontade e como representação, ele irá nos dizer
que aquilo que Kant definia como “em si” incognoscível, é a vontade. Tudo o que existe
é obra de uma vontade cega, eternamente insatisfeita que se alimenta de si mesma nas
mais variadas formas. Schopenhauer explica:
Coisa em si, entretanto, é apenas Vontade. Como tal não é absolutamente
representação, mas Toto genere diferente dela. É a partir daquela que se tem
todo objeto, fenômeno, visibilidade, objetividade. É o mais íntimo, o núcleo
de cada partícula, bem como do todo. Aparece em cada força da natureza que
faz efeito cegamente, na ação ponderada do ser humano: ambas diferem, isso
concerne tão somente ao grau da aparição, não à essência do que aparece.188

188
Schopenhauer A.O mundo como vontade e como representação, trad. Jair Barboza, UNESP, são Paulo: 2005 p. 168 - 169
102

Somos então não só criação dessa vontade como também a própria vontade
objetivada em fenômenos dos mais variados. Assim, a essência intima de tudo o que
existe é essa vontade, não há diferença substancial em nada. Homens, animais, vegetais
e assim por diante, são uma única coisa. Ainda essa vontade é cega e nunca deixa de ser
vontade. Não existe nenhum “objetivo maior” no mundo, nenhuma regra ou lei superior
que o dirige. Tudo é e será eternamente um caos no qual o sofrimento é a única “regra”
a ser observada por todos aqueles que realmente desejam conhecer de fato a verdade.
A cada desejo satisfeito, sobrevém-nos o tédio e depois dele mais uma vez uma
nova vontade que nos arrasta, irrevogavelmente, para um novo sofrimento. A vontade
não cessa. A vida seria um ciclo interminável de desejo, sofrimento, tédio e novos
desejos atormentadores que existem sem nenhuma razão de ser; de uma forma ou de
outra, a paz jamais seria possuída por nós. Essa vontade manifesta-se no mundo dos
fenômenos, mesmo sendo una, de diferentes formas. É ela que está em todo tipo de
vida, desde uma planta até o homem e assim, dividida e sendo vontade sempre
insatisfeita, causa a guerra de todos contra todos, o sofrimento inesgotável e a dor sem
fim. Eis a fonte do egoísmo e das motivações antimorais no homem.
Não existe nenhum Deus, nenhuma justiça, sobrevivência de consciência após a
morte, ou seja, não há nenhuma esperança de qualquer tipo de redenção que não seja o
nada e a negação de si mesmo. A negação da vontade, em todos os seus aspectos, é a
chave para encontrarmos esse nada salvador do qual o universo jamais deveria ter saído
se é que um dia esse nada existiu. Eis as palavras de Schopenhauer:
A salvação é algo completamente alheio à nossa pessoa, e aponta para uma
negação e supressão necessária à salvação dessa pessoa189
Com uma confessa admiração pelo Budismo, no qual vê a maior e mais perfeita
alegoria que já existiu sobre a vida, o universo e suas verdades, como também, a maior
e mais sábia religião que já existiu, sua negação da vontade encontra ainda mais vigor
em sua filosofia. A lenda de Sidarta Gautama, o príncipe que abandonou absolutamente
tudo, se tornou um asceta e se desvencilhou das ilusões do mundo e de todos os desejos,
alcançando assim a paz do Nirvana e tornando-se o Buda. É nessa alegoria perfeita que
traz em si as regras para nossa própria “salvação”. Tanto em relação à luta contra a
vontade como também, como já vimos, em relação à luta contra a ilusão criada pela
vontade que seriam o fenômeno da individualidade, tempo, espaço, etc. Poderíamos
dizer que o pensamento de Schopenhauer é quase que o próprio Budismo sendo

189
Schopenhauer A. O mundo como vontade e como representação, trad. Jair Barboza, UNESP, são Paulo: 2005 p. 414
103

afirmado de uma maneira laica, se é que tal afirmação seria possível. Não apenas pela
compaixão, mas também pela negação da vontade, podemos encontrar atos virtuosos
como os atos dos “santos”, por exemplo, que foram “santos” por negarem a vontade
mesmo que de forma inconsciente, a misericórdia, o perdão nada mais são do que
negação da vontade.
Em um mundo criado por uma vontade cega, irracional e não direcionada a nada,
o sofrimento é o grande imperador de todos os seres. O homem, objetivação mais
perfeita dessa vontade, teria a capacidade de se conhecer como sendo vontade, entender
seu “destino” eterno e trágico e, através de seu raciocínio, negar-se com o intuito de
acabar de vez com todo o sofrimento do mundo. Schopenhauer afirma:
Salvação verdadeira, redenção da vida e do sofrimento, é impensável sem a
completa negação da Vontade até então cada um não passa dessa Vontade,
cujo fenômeno é uma existência efêmera, um esforço sempre nulo e
continuamente malogrado, o mundo tal qual exposto, cheio de sofrimento, ao
qual todos pertencem irrevogavelmente de maneira igual190.
A vida assim, mais uma vez explicada, não é ruim por ter muitos problemas, ela
é ruim por ser o próprio problema. Mas apesar de Schopenhauer ter apresentado todo
esse pensamento como se o mesmo fosse totalmente original na filosofia, poderemos
encontrar em outros pensadores afirmações ou suposições bem parecidas com as dele.
Lembremo-nos dos Estoicos e Epicuristas, que, de uma forma menos radical, se é que
Schopenhauer pode ser visto como possuidor de algum radicalismo, também ofereceram
ao mundo um pensamento com regras de vida que exigem certa abstinência de desejos
ou que, pelo menos, tentam minimizá-los, fazendo o homem voltar-se apenas aos
desejos realmente úteis visando o não sofrimento. Que dizer então dos cínicos que se
abstinham de tudo, vivendo na mais profunda pobreza para se afastar dos males do
mundo? De uma maneira evidentemente diferente, mas nem por isso totalmente afastada
do pessimismo de Schopenhauer, tais pensamentos já apresentam desprezo ou
comedimento para com relação às vontades que o homem possui.
Mas é em David Hume que encontramos aquela que talvez possa ter sido uma
das maiores inspirações de Schopenhauer para a construção de todo seu sistema
filosófico. No livro Diálogos sobre a Religião Natural, Hume apresenta uma crítica
extremamente procedente em relação a todo tipo de crença em Deus. Talvez, pela
primeira vez na história da Filosofia, um pensador, e essa é nossa interpretação, afirma

190
Schopenhauer A. O mundo como vontade e como representação, trad. Jair Barboza, UNESP, são Paulo: 2005 p. 503
104

que a crença em Deus é algo destituído de razão e levanta a possibilidade da


inexistência desse mesmo Deus. Nesse texto simplesmente extraordinário podemos
encontrar as seguintes palavras:
Olhe para o Universo ao nosso redor. Que quantidade imensa de seres,
animados e organizados, sensíveis e ativos!Você admira essa prodigiosa
variedade e fecundidade. Observe, porém, mais de perto as existências
dotadas de vida, que são os únicos seres dignos de consideração. Como são
hostis e destrutivas uma para com as outras!Quão incapazes todas elas, de
prover à sua própria felicidade! Como são odiosas e desprezíveis aos olhos
do observador!Tudo isso não nos oferece senão a idéia de uma Natureza
cega, embebida de um grande princípio vivificador, que despeja de seu
regaço sua prole defeituosa e degenerada, sem qualquer discernimento ou
cuidado materno.191.
Se Hume tivesse afirmado que esse princípio vivificador ao qual se refere fosse a
vontade e não tivesse feito distinção entre “criaturas” e “criador”, que no caso seria esse
princípio vivificador, poderíamos ver nas palavras acima o melhor de todos os resumos
do pensamento Schopenhaueriano. Também não é difícil encontrar a fonte do ateísmo
de Schopenhauer nessas palavras, que, coloca o sofrimento do mundo, como o maior
argumento contra a existência de um Deus bondoso e que nos criou para a felicidade
eterna ou, até mesmo, passageira em uma vida finita.
Como apresentado a dor do mundo, o sofrimento dos seres e o caos do universo,
de alguma forma, já haviam sido mostrados por outros filósofos, mas nunca, tiveram
uma compreensão tão apurada, uma analise tão detalhada e uma aceitação tão profunda
como em Schopenhauer. Nunca houve uma acusação tão grave e detalhada contra a
vida; nunca a idéia da existência de um Deus foi mostrada de forma tão absurda e no
extremo da incoerência. Podemos dizer que Schopenhauer foi o filósofo que aplicou o
mais duro “golpe” em todo e qualquer tipo de otimismo que, para ele, nada mais poderia
ser do que uma piada de mal gosto.
Nosso filósofo simplesmente mergulha nessa visão pessimista da vida e a
estende a tudo e a todos. Todos sofrem! Não é apenas o homem o centro das atenções de
Schopenhauer. Não é raro vermos exemplos que mostrariam que o mundo é
essencialmente. O homem é a objetivação da vontade que mais sofre, pois é capaz de
conhecer pelo intelecto sua condição miserável e ainda se preocupar com todas as dores
que podem acontecer voltando seus olhos para o futuro incerto, ou então, sofrer pelo
191
Hume D. Diálogos sobre a religião natural, , Martins fontes, São Paulo,1992: p158 -159
105

passado, com traumas, vergonhas e lembranças ruins. Já os animais não possuem essa
consciência de si mesmos, vivendo apenas o presente, mas nem por isso, deixando de
sofrer.
Mas sendo o homem racional, ele também pode pensar e entender, como já
dissemos, a si mesmo e a sua situação de penúria interminável. Assim, através de seu
conhecimento é alcançada libertação da vontade, libertação essa que deve se estender a
tudo e a todos como o próprio filósofo nos diz: “O conhecimento, ao contrário, fornece
a possibilidade de supressão do querer, de redenção pela liberdade, de superação e
aniquilamento do mundo”. Schopenhauer não quer apenas o fim da dor de um
indivíduo, ele quer o fim do mundo, pois enquanto existir vida existirá a dor.
O Gênio, aquele que venceu o mundo, nada mais é do que aquele que vê por trás
das aparências do fenômeno, que vê através da grande ilusão da vida o “em si”, causa e
algoz de todo tipo de representação instável e caótica; é aquele que vê a vontade e nada
mais. Ele é capaz de vencer a si mesmo, ou seja, vencer a vontade até mesmo em seu
maior nível: a vontade de reproduzir-se. Ter filhos: o Gênio jamais cometeria esse crime
horroroso:
Afastando-se da vida por completo, suprimindo toda vontade em completo
ascetismo, alcançaria a paz, aquilo que, como vimos, foi chamado de Nirvana, em forma
alegórica pelos Budistas e Hinduístas. Tal luta de certo não é fácil, mas para nosso
pensador não impossível, somos como na alegoria de Bhagavad Gîtâ, Arjuna
desanimado na frente de batalha ao ver que deveria guerrear com seus próprios parentes,
mas mesmo que essa luta seja dolorosa, ela é, simplesmente, o único meio redenção.
Assim os “lamentos” de nosso autor sobre o mundo em nenhum momento
podem ser encarados como um protesto ou luta por um mundo melhor, pois o mundo é e
sempre será sofrimento, a única coisa que nos resta é negar a vontade e acabar com o
próprio mundo, com a vida vencendo assim o sofrimento. Quando Schopenhauer
denuncia os abusos cometidos contra os homens ou animais, sua intenção não é
despertar os homens para novas atitudes contrárias a esses abusos, mas sim lhes abrir os
olhos para a verdade do mundo e para seu sofrimento infinito, a saída é apenas uma:
acabar com a vida, pois ela é o problema a ser resolvido.
Mas como Schopenhauer descobriu o “em – si”, ou seja, a vontade?:
Esquecendo-se da representação e de tudo que lhe pertence, o homem faz parte do
mundo, ele é mundo, possui um corpo, então o enigma do mundo encontra-se nele. Por
fazermos parte do mundo é que podemos decifrá-lo, encontrar a sua essência verdadeira.
106

Experimentamos a realidade do mundo cotidianamente, a realidade do mundo é a nossa


realidade, investigando nós mesmos encontraremos a verdade, o nosso íntimo possui a
resposta, já a representação, simples Véu de Maia, nada pode nos dizer, mas somos
parte dessa mesma representação, temos dentro de nós o “em-si”, ou melhor, somos o
“em-si”. A verdade do mundo não submetida a representação está em nós. É por esse
modo que ele decifra o enigma, não partindo de fora, mas de dentro, distante das formas
de conhecer onde está o “em-si”, isto é, a vontade. Nosso corpo, não como
representação, mas como objetivação da vontade. Ele é única coisa que temos além da
representação, o conhecemos como representação e de forma imediata como vontade, se
nos perguntássemos: ‘O que somos?”A resposta é imediata: vontade. Todas as coisas
são vontade, por analogia chega-se a essa conclusão, não há motivo para não serem.
Essa vontade está além do fenômeno e é impassível, eterna. Schopenhauer estende a
tudo essa verdade. Tudo é apenas uma coisa: vontade objetivada e o homem é a mais
perfeita objetivação dessa vontade que não pode ser confundida com vontade humana
que nada mais é do que uma simples parcela dessa vontade.

2.4 A Explicação metafísica da compaixão

Ao final de seu ensaio, Schopenhauer, como ele mesmo já havia dito,


apresentará mesmo sendo essa explicação desnecessária diante do que foi pedido, a
explicação metafísica do fenômeno da compaixão. É através dela que o autor tentará
entender como é possível a existência da compaixão, isto é, decifrar esse grande enigma
que se apresenta aos seus olhos e do qual como vimos resultam todas as virtudes
existentes no homem. Mais uma vez, ao inicio do suplemento, Schopenhauer defende
que a ética deve estar apoiada em algo demonstrável, segundo suas próprias palavras, ou
no mundo exterior ou na consciência, ao contrário de Kant, cuja moral repousa em um
simples conceito. Ainda aqui vemos a necessidade de criticar Kant para formular, ou
melhor, para explicar, o seu fundamento da moral. Schopenhauer afirma que a tarefa
exigida pela Sociedade Real Dinamarquesa já foi cumprida, ou seja, o fundamento da
ética já foi apresentado, como foi pedido em sua integralidade, ele é a compaixão, o que
será feito a partir daqui é a explicação metafísica desse mesmo fundamento, para
apresentar e provar a existência desse fundamento não seria necessária essa explicação
metafísica, mas como o próprio Schopenhauer afirma mesmo defendendo que o
fundamento da ética já foi apresentado: “Entretanto, vejo muito bem que o espírito
107

humano ainda não encontra aí o seu contentamento e repouso”.192Assim o que se segue


é a explicação da compaixão através da metafísica, para Schopenhauer, apesar de em
seu ensaio ter demonstrado a existência da compaixão e ela como único fonte de
qualquer ato genuinamente moral, ela, a própria compaixão continua sem nenhuma
explicação, como ele mesmo disse sobre ela, um grande mistério.Schopenhauer tentará
explicar nesse suplemento de onde surge a compaixão, o que ela é e como tal coisa pode
existir em um mundo onde o que reina, como vimos, é a perversidade e a crueldade,a
grande questão é: Como pode existir a compaixão? Como vimos a visão de mundo de
Schopenhauer não é a das mais agradáveis, o homem sendo um ser dominado e guiado
pelo egoísmo teria de ser na maioria da vezes ou sempre, ruim, mas como vimos o
fenômeno da compaixão acontece sempre e é mais habitual do que pensamos, surge
assim a questão: Como a compaixão é possível? Sobre essa questão o autor irá se
debruçar e tentar resolve-la. Para nosso filósofo a ética possui um tremendo valor
metafísico e para justificar isso ele cita vários casos onde pessoas prestes a morrer
preocupam-se com suas atitudes durante a vida, tendo como mais valorosas as atitudes
nas quais fizeram o bem a seu semelhante esquecendo-se de seus feitos honrosos e
grandiosos e, também, em qualquer momento, no qual uma recompensa por tais atos
derivados da compaixão surgisse ela seria negada, pois aquele que a nega os valores que
existem por detrás dela. Dessa forma a metafísica afirma-se mais uma vez como
necessária colocando-se inseparavelmente da ética. Mesmo assim Schopenhauer aponta
para as dificuldades de tal tarefa dizendo:
“Eu só vejo a saída de contentar-me com um esboço geral, de dar mais
indicações do que desenvolvimentos, de apontar o caminho que leve ao alto,
mas não trilhá-lo até o fim e, acima de tudo, de dizer apenas uma pequena
parte daquilo que eu, sob outras circunstâncias, aduziria aqui”193

Na realidade essa explicação metafísica está ligada diretamente ao pensamento


metafísico de Schopenhauer e a sua Filosofia em sua integralidade, por isso é necessário
apresentarmos as questões da representação e da vontade que serão de extrema
importância aqui onde o dito “mistério” da compaixão será desvendado.

192
Schopenhauer A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo:
2001. p.205
193
Schopenhauer A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo:
2001. p.163
108

Pelo menos onde será apresentado de maneira sucinta uma tentativa de


elucidação que deve ter obrigatoriamente o conhecimento da metafísica da vontade e da
representação.
Logo no inicio, do suplemento, Schopenhauer explica o procedimento
metafísico, o abandono da experiência, mas deixa bem claro que de nenhuma maneira
filiar-se- á aos sistemas metafísicos pós-kantianos chamados por ele de delírios e contos
de fadas194. Como ele mesmo diz a compaixão que até então foi apresentada como
elucidação torna-se o problema a resolver e explicá-la é outro grande problema, logo de
início Schopenhauer nos apresenta algumas características dessa compaixão que são de
grande importância para a sua compreensão. É a compaixão natural, indestrutível e inata
em todo homem195. Dessa forma já teríamos o ponto de partida para os questionamentos
concernentes a compaixão nessa última investigação: por que a compaixão é inata,
indestrutível e natural no homem?O que faz com que ela seja assim?Antes, porém
Schopenhauer irá explicar o que faz de um homem um homem bom ou um homem mau.
Em suas próprias palavras “Um homem que, em virtude de seu caráter, não gosta de ser
contrário aos desejos de outrem, mas de preferência lhe presta ajuda e assistência
quando pode,será chamado em consideração a isto, de um homem bom”196 Mais à frente
nosso pensador dirá que para um homem bom, como o acima mencionado, existe uma
distância pequena ou quase inexistente com o mundo, isto é, entre ele e o mundo
praticamente não há diferença, distância alguma.Que dizer então de alguém que dá a
vida por outrem?A conclusão, segundo Schopenhauer só pode ser uma: entre ele e o
outro não havia diferença, quando alguém faz o bem ele o faz, pois entre ele e o outro
não há diferença, de alguma maneira isso acontece. Diferentemente o homem chamado
de mau é aquele para o qual essa diferença, essa distância é enorme, entre ele e o outro
não há nenhuma ligação, para seus olhos a diferença entre ele e o outro é gigantesca e
isso o faz ser egoísta e quando não malvado, essa diferença para o homem cruel, ou
seja, para aquele que de maneira maligna se alegrar com o sofrimento alheio é ainda
maior e por isso mesmo é que surge as suas atitudes terríveis em relação ao
outro.Vemos assim, que bondade e maldade para Schopenhauer estão ligadas em suas
explicações com um princípio de identificação com o outro para quem a ação é dirigida.
194
Schopenhauer A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes: São Paulo:
2001. p.210
195
Schopenhauer A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes: São Paulo:
2001. p.212
196
Schopenhauer A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo:
2001. p.211
109

Será de extrema importância como veremos, termos estudado a metafísica da vontade e


também, como já dissemos, a representação, pois é nesses dois pontos principais do
pensamento de nosso autor que encontraremos a resposta para essa aproximação
responsável pela compaixão e pelos atos morais surgidos da compaixão, únicos que
podem ser considerados moralmente desinteressados.
Ainda para a pessoa extremamente generosa, Schopenhauer dirá sobre a
diferença entre os homens: “Em contrapartida, para o homem bom esta diferença não é
de nenhum modo tão grande, e, mesmo nas ações generosas, ela aparece como
suprimida, uma vez que se favorece o bem alheio às custas do próprio e que, portanto, o
eu alheio é equiparado ao próprio e, onde muitos outros há para se salvar, o próprio eu
lhes é totalmente sacrificado, desde que o indivíduo entregue sua vida por muitos”197.
Com as palavras acima fica claro que existe para aquele que faz o bem uma
espécie de identificação com a pessoa que recebe o bem, tanto que na maioria das vezes
o benfeitor cria para si mesmo um problema ao ajudar o outro ou até mesmo perece,
como já citado existem casos em que aquele que ajuda perde sua própria vida, um
membro e mesmo assim o faz de bom grado. Como seria possível isso se ela não se
identificasse com outro de alguma maneira já que para Schopenhauer o mundo é tão
terrivelmente cruel e em regra as pessoas egoístas? Assim começa de maneira sucinta a
aparição daquela que seria a explicação para a compaixão. Podemos já identificar que
sua mais importante característica é a identificação, de alguma maneira com aquele que
sofre. Enquanto para o egoísta pleno a distância e a diferença entre ele e os outros, é
enorme, para o caridoso essa distância e diferença parecem ser para Schopenhauer
muito pequena. Nosso pensador vai ainda mais longe dizendo que tal diferença é
praticamente inexistente em alguns casos.
Em alguns casos aquele que faz a caridade chega até mesmo a dar sua própria
vida em razão de outra ou de outras vidas, assim, a diferença, entre ela e as outras
pessoas, na realidade, parece não existir, o que há é uma identificação em casos como
esse, total, integral, no qual aquele que pratica a caridade entrega-se por completo para a
salvação de outrem. Em relação a essa questão Schopenhauer faz um pergunta
realmente interessante e que esclarece ainda mais o que será dito:

197
Schopenhauer A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo:
2001. p.213
110

“Pergunta-se agora se a apreensão da relação entre os próprios eu e o alheio,


que está no fundamento das ações do caráter bom, é errada e repousa num
engano ou se isso não acontece, pelo contrário, com a apreensão oposta, em
que se apóiam o egoísmo e a maldade”198
O que Schopenhauer pergunta é se no momento em que uma pessoa
considerada boa pratica uma caridade seja qual for, essa sua identificação é
equivocada, se na realidade não existe identificação alguma, ou se aquele que é
egoísta a age pensando apenas em si mesmo, em sua total diferenciação com os
outros é que está equivocado. Schopenhauer aqui já levanta a primeira
indicação do que será a explicação apresentada por ele para a compaixão.
Nosso pensador levanta, em nosso entender, a possibilidade de não existir uma
diferença de fato entre as pessoas. Mas se assim o fosse que motivo faz das
pessoas egoístas? Schopenhauer afirmará isso dizendo que empiricamente o
egoísmo é com rigor justificado, pois a experiência nos mostra isso
apresentando-nos o outro distante de nós, fazendo com que a diferença entre o
outro e nós seja plena, assim o egoísmo seria a opção mais óbvia a ser tomada,
já que a experiência demonstra a diferença entre nós e os outros. Mas ainda
assim Schopenhauer continuará: “Em contrapartida, seria de se notar, em
primeiro lugar, que o conhecimento que temos do nosso próprio eu não é, de
nenhum modo que se esgote e que seja claro até seu ultimo fundamento”199.
Segundo Schopenhauer conhecemos o nosso corpo não inteiramente a
partir da intuição que o nosso cérebro tem, a partir dos dados de nossos
sentidos. Assim essa intuição é muito pequena e de nenhuma maneira consegue
penetrar naquilo que nós realmente somos, seja lá o que somos não nos é
acessível de nenhuma maneira integralmente. Para nós nossa essência
permanece um mistério que pelas nossas sensações não nos é dado. Segundo
Schopenhauer o conhecimento que temos de nós mesmos é extremamente

198
Schopenhauer A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo:
2001. p.212
199
Schopenhauer A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo:
2001. p.212
111

superficial200 , sendo assim somos nós mesmos o enigma que se conhece apenas
como fenômeno.
Dessa forma, aquilo que realmente somos permanece totalmente
desconhecido, o que nos é entregue como conhecimento de nós mesmos é
extremamente pequeno e assim se justificaria o egoísmo sempre como vencedor
em todos os casos, pelo menos em um primeiro momento, pois nele somos
realmente diferentes um do outro totalmente. Mas isso como dissemos, se dá
através de um conhecimento superficial que não atingiria a nossa essência,
porque atos compassivos de generosidade e justiça continuam acontecendo. Se
mesmo tendo esse conhecimento superficial de nós mesmos que nos diz que
somos diferentes por completo dos outros, continuamos a ver atos de autêntica
moral, ou seja, atos de compaixão acontecendo o que é que isso significaria?
Significaria que talvez a nossa parte mais essencial, mais íntima, mais real, não
tenha essa diferença, pode ser que através de um conhecimento superficial de
nós mesmos essa parte na qual seriamos iguais a todos os outros fique
escondida, não revelada, mas atuando, isto é, fazendo diferença em nossa vida e
até mesmo regendo certos atos. Schopenhauer sobre isso dirá sobre essa parte
mais essencial d todos nós: “Resta apenas uma possibilidade de que ela seja em
todos a mesma e idêntica”201Assim é preciso que a identidade entre todos os
seres exista de alguma maneira para que a compaixão exista. Sem essa unidade
a generosidade, bondade etc., seriam de certa forma inviáveis, impossíveis.
Voltando para sua metafísica Schopenhauer dirá que toda a multiplicidade dos
seres repousa sobre o espaço e o tempo, somente por eles a individualização
dos seres é possível. Para Schopenhauer, espaço e tempo são apenas formas da
nossa própria faculdade de intuição, não pertencendo ao objeto propriamente
dito, não são pertencentes às coisas em si mesmas em seus dizeres, espaço e
tempo pertencem apenas ao fenômeno que é falso, Véu de Maia.

200
Schopenhauer A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo:
2001. p.213
201
Schopenhauer A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo:
2001.p.213
112

Assim começa a surgir a explicação da compaixão, se espaço e tempo são


apenas ideais, isso significa que eles não são pertencentes à “coisa em si”, ou
seja, não existem de fato, não possuem nenhuma ligação com a verdadeira
essência do mundo e se é através deles que surge a individualidade pois são
eles o “principium individuationis”202. Assim a individualidade como todo
fenômeno é uma mera ilusão, ela não existe por si mesma, de uma maneira
misteriosa somos todos a mesma coisa, a mesma essência e por isso nos
identificamos a ponto de esquecermos nossa ilusória individualidade, a
multiplicidade dos seres, e termos compaixão um do outro, deixando de lado o
egoísmo.
Na realidade nossa essência é uma, apenas uma coisa que no fenômeno
manifesta-se de diversas formas, formas essas que não podem ser a “coisa em
si” de nenhuma maneira, são apenas fenômenos e como tal devem ser
encarados. De alguma forma em algum momento a “coisa em si” sempre una
aparece e nesse momento o múltiplo desaparece e a compaixão surge. O
homem vê no outro a mesma essência que possui em si mesmo e o ajuda sem
nenhum tipo de interesse. Segundo Schopenhauer essa doutrina que afirma a
unidade dos seres não é algo novo e sim bem antigo, já estando presente nos
livros dos Vedas e Upanishads, até mesmo na escassa filosofia segundo
Schopenhauer, de Pitágoras ela está presente. Schopenhauer diz: “O espaço e
tempo são, porém estranhos à “coisa em-si”, quer dizer, à verdadeira essência
do mundo; a multiplicidade também o é necessariamente.” 203. Aqui o enigma já
está quase que totalmente resolvido, depois disso, Schopenhauer ainda afirmará
que o entendimento de que o eu e o não eu não são diferentes, não é o
entendimento errado, com isso ele afirma que a distinção entre os seres, ou seja,
a multiplicidade é que é a errada e, quando o homem age tendo em vista essa
multiplicidade, essa separação, ele age de maneira errada. A multiplicidade dos

202
Schopenhauer A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo:
2001. p.218
203
Schopenhauer A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo:
2001. p.218 - 219
113

seres é na verdade o erro a ser suprimido, é a ilusão, o Véu de Maia do qual o


homem deve se libertar. A compaixão, então, aparece como inicio dessa
libertação, pois ela tem em seu intimo essa essência, ou seja, todos os seres na
realidade são apenas uma mesma coisa, por isso a compaixão é possível.
Enquanto em um primeiro momento o homem é levado pelo egoísmo ilimitado,
em um segundo momento esse egoísmo é refreado pela realidade de que todos
os seres são a mesma coisa. A unidade dos seres é o motivo pelo qual existe a
moral, isto é, a compaixão seria, portanto a base metafísica da ética a unidade
de todos os seres, aquilo que faria despertar a compaixão e necessariamente a
cessação da ilusão da individualidade, a consciência de que sua essência
verdadeira encontra-se imediatamente no outro. Agir conforme a bondade
então é agir pela sabedoria, aquele que age através da bondade demonstra
conhecer essa verdade pelo menos naquele momento.
O mais interessante dessa explicação do fundamento da moral que seria
a unidade dos seres é que aquele que pratica o bem, que age justa ou
caridosamente não apenas está colocando-se no lugar do outro, não é uma mera
identificação psicológica com o outro de maneira nenhuma, como o autor bem
diz “O autor se reconhece a si próprio a sua essência verdadeira, imediatamente
no outro”, aquele que age compassivamente simplesmente é o outro, em sua
essência é o outro. Mas ainda que o homem generoso não seja um intelectual é
possível observar nele a compaixão fruto desse conhecimento profundo que até
mesmo alguns eruditos se esqueceram de ver.
Como vimos a individuação nada mais é do que mero fenômeno que
segundo Schopenhauer, surge entre espaço e tempo que são nossas faculdades
mentais de conhecimento, assim toda a individualidade é mera representação e
por assim dizer, ilusão tão somente. Sobre a compaixão como fruto desse
conhecimento Schopenhauer nos falará: “Minha essência interna verdadeira
existe tão imediatamente em cada ser vivo quanto ela só se anuncia para mim,
na minha autoconsciência”204 Isso seria a palavra em sânscrito “ta-twam-asi” que

204
Schopenhauer A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo:
2001. p.219
114

significa “isto é tu”, é exatamente desse conhecimento que surgem toda a


bondade, doçura e atos altruístas. Assim a conclusão a qual chegamos é que a
bondade só pode existir quando a representação cessa, quando a ilusão se
desfaz, na representação a bondade é impossível, pois nela, como já vimos,
reina a crueldade e a guerra de todos contra todos. A bondade nada mais é do
que dirigida para aquele conhecimento de que todos os seres são em essência a
mesma coisa, na realidade o que Schopenhauer quer dizer é que todos os seres
são a mesma coisa, na realidade a individuação como visto é apenas fenômeno,
mas o “em si” na realidade é a mesma coisa, assim, todos os seres, são na
realidade unos, são uma mesma coisa. No ato de generosidade, por exemplo, a
barreira criada pela representação a essa verdade é quebrada. Assim o grande
mistério da compaixão estaria resolvido, é a unidade existente entre os seres a
responsável pela compaixão e, consequentemente, por todo ato de
generosidade justiça e caridade. Schopenhauer afirma que o outro nada mais é
do que nós mesmos ao dizer: “mas quem, animado pelo “neikos”, penetrasse
hostilmente no eu odiado opositor e chegasse até seu íntimo mais profundo,
neste descobriria, para seu espanto, a si próprio “205. Mais uma vez a afirmação
de que o que acontece na compaixão não é apenas uma identificação
psicológica, não, é algo que transcende isso, o outro é o próprio agente da ação
generosa, todos nós somos apenas uma coisa tão somente, uma mesma essência
por uma ilusão dividida, individualizada, mas que em determinados momentos
apresenta-se como é, isto é, una.

205
Schopenhauer A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo:
2001. p.219
115

Conclusão

Vimos a moral kantiana desabar segundo Schopenhauer e depois a sua própria


moral surgir como única procedente. Estudamos a visão de mundo do autor, onde o
mesmo é representação e vontade. Falta-nos agora apresentarmos a justificação da
questão oferecida ao inicio deste trabalho.
Como vimos o mundo é representação e vontade, a representação é a ilusão, o
chamado “Véu de Maia”, nela tudo é ilusório, sua verdadeira essência, a vontade, não
está submetida a ela. Vimos também que fazemos parte desse esquema, sendo assim,
somos vontade, mas também somos nosso “eu” ilusório, ou seja, não existe
individualidade, tudo é apenas uma mesma coisa, a essência universal é a
vontade.Assim, já que tudo é vontade cega e incessante, o mundo é uma guerra total,
todos contra todos. Quem não se desvencilhou da ilusão da representação agirá sempre,
ou quase sempre, de maneira egoísta, sendo assim, necessária foi a explicação
metafísica do fenômeno da compaixão. Na representação não há espaço para a
“bondade”, é preciso que o Véu da ilusão rasgue-se e a verdadeira essência do universo
apareça. Assim a compaixão não poderia ter outra explicação, no momento em que ela
acontece a ilusão cessa, mesmo que temporariamente e a nossa verdadeira essência
aparece, “vivemos” a verdade de que somos apenas uma mesma coisa, a representação
naquele momento acaba, deixamos a ilusão e agimos conforme a verdade. Impossível
seria existir a compaixão se a ilusão continuasse. Schopenhauer deixa bem claro que na
compaixão não há apenas uma mera identificação com o outro, mas nos descobrimos no
outro, somos o outro. Sobre a compaixão nosso pensador dirá: “Isto pressupõe, porém,
que eu tenha me identificado com o outro numa certa medida e, consequentemente, que
a barreira entre o eu e o não – eu tenha sido, por um momento suprimida. Só então a
situação do outro, sua precisão, sua necessidade e seu sofrimento tornar –se – ão
meus”206 com ‘eu’ schopenhauer quer dizer fenômeno e consequentemente ilusão. Nada
pode ser tão claro quanto isso. Sidarta Gautama iniciou sua busca pela iluminação
depois de ter sentido compaixão, ela abre as portas para a negação e para o desejo de
vencer a ilusão, tanto que, segundo a lenda, a sua última tentação foi sua própria
imagem. Concluindo, no momento da compaixão a ilusão da individualidade não pode

206
Schopenhauer A. Sobre o fundamento da moral, trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola, Martins fontes, São Paulo:
2001. p.163
116

existir, ambas não podem coexistir. É por isso que alguns dão a própria vida por outros,
pois saberia de alguma maneira que aquele que socorre é ele mesmo, nesse momento
não vivem a representação. Pensamos ter esclarecido a questão por completo, mas
daremos mais exemplos dessa interpretação. Nietzsche que através do seu Zaratustra
defendeu o egoísmo foi um grande crítico da compaixão, por ser ela, em nossa
interpretação, em seu pensamento o inicio do fim da individualidade que ele tanto
tentou manter: Tanto a compaixão como a passagem que ela torna possível para a
negação da vontade, são, pois alvos da crítica de Nietzsche, que identifica ambas como
ideais cristãos “207. Não é difícil encontrar tais críticas em Nietzsche, escolhemos uma
que bem demonstra isso: “Piedade para todos” – seria dureza e tirania contra ti mesmo,
meu caro”.208
Mas mesmo assim vencer a compaixão seria para Schopenhauer impossível, pois
enquanto o homem existir, ela existirá e com ela a cessação mesmo que momentânea da
individualidade.

207
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208
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1998 – tradução de Oswaldo Giacóia Junior.

WILLIAMS, Bernard. Moral uma introdução à ética. São Paulo: Martins Fontes, 2005
– tradução de Remo Mannarino Filho.

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