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Gest. Prod., São Carlos, v. 21, n. 4, p.

691-706, 2014
http://dx.doi.org/10.1590/0104-530X845

O problema do fisicalismo/cognitivismo
na ergonomia e segurança do trabalho

The problem of physicalism/cognitivism


in ergonomics and work safety

Gilbert Cardoso Bouyer1

Resumo: Este estudo investigou os problemas causados pelo fisicalismo/cognitivismo na ergonomia e segurança do
trabalho. Fisicalismo é uma abordagem ontológica para a qual tudo é físico. O centro da discussão é que a metáfora
“trabalhador como máquina” não é meramente uma crença isolada nas práticas ergonômicas no Brasil. Ela é a base
da estrutura experiencial que envolve valores, interesses, objetivos, práticas e teorias. Isso é um sério problema
porque o fisicalismo/cognitivismo tornou-se causa de acidentes de trabalho e doenças ocupacionais.
Palavras-chave: Fisicalismo/cognitivismo. Ergonomia. Segurança do trabalho.

Abstract: This study investigated the problems caused by physicalism/cognitivism in ergonomics and work safety.
Physicalism is the ontological thesis that everything is physical. The key point of the discussion is that the “workers
as machines” metaphor is not merely an isolated belief in ergonomics practices in Brazil. Rather, it is a massive
experiential structuring that involves values, interests, goals, practices and theorizing. This is a serious problem,
because physicalism/cognitivism has already been implicated as a cause of work accidents and occupational diseases.
Keywords: Physicalism/cognitivism. Ergonomics. Work safety.

1 Introdução
O presente texto está baseado em nossa própria grandes empresas: o modelo-metáfora do sistema
experiência prática em empresas industriais como de tratamento físico de informações simbólicas,
pesquisadores e/ou consultores. O trabalho foi então formulado por Fodor (1981, 1994), e melhor explicado
observado pelo prisma das teorias e hipóteses dos por Smith (1999), quanto ao funcionamento da mente
autores também pesquisados (p. ex. Johnson (1987), e do cérebro como manipuladores de símbolos físicos.
Smith (1999) e Varela (1994)). Portanto, há um Não está explícito, no modelo de Fodor, que a
encontro, aqui, realizado por nós, entre autores de mente humana é análoga a um computador. Outros
ergonomia e segurança do trabalho, como Almeida autores perceberam isso por meio das afirmações
e Binder (2004, p. 1374-1375), com autores das de Fodor, e suas proposições, e ao examinar todo
denominadas Ciências Cognitivas Contemporâneas, o conteúdo da obra fodoriana (por completo). Os
como em Petitot et al. (1999). O estudo aponta conceitos aqui tratados, de cognitivismo/fisicalismo
uma hipótese de que a metáfora homem-máquina e outros estão plenamente presentes no modelo de
(paradigma) (JOHNSON, 1987) vigora também Fodor, mas sem que assim (p. ex. cognitivismo cf.
em parte da ergonomia e da segurança do trabalho Varela (1994)) ele os explicite.
vigentes. A hipótese aqui é aquela que se pauta no modelo
O objetivo deste estudo, teórico (e hipotético, de metáforas mentais (JOHNSON, 1987) que, no
caso em questão, foi adaptado para explicar algo que
calcado nas nossas experiências práticas e teóricas),
ainda ocorre no ambiente de produção de algumas
é fornecer uma narrativa de um grave problema, grandes indústrias e aglomerados industriais: o
verificado em boa parte da ergonomia e segurança operador sendo visto como máquina. Isso não é uma
do trabalho, praticadas não apenas no Brasil, mas metáfora como se conhece na língua portuguesa, mas
em destaque nos Estados Unidos (com seus check sim um verdadeiro modelo mental atuante por trás
lists), tanto em seu domínio epistemológico quanto das práticas de segurança do trabalho e ergonomia
ontológico: a existência de um modelo (ou paradigma), ou, nos termos de Kuhn (1977), um paradigma que
nocivo, sobre o funcionamento do homem em atividade aglomera as mentalidades e, em sentido inverso,
de trabalho, subjacente às práticas adotadas pelas fornece, a cada um, uma forma específica de agir.
1
Departamento de Engenharia de Produção – DEENP, Instituto de Ciências Exatas e Aplicadas – ICEA, Universidade Federal de
Ouro Preto – UFOP, Rua Trinta e Sete, 115, Loanda, CEP 35931-006, João Monlevade, MG, Brasil, e-mail: gilbertcb@uol.com.br
Recebido em 24/7/2013 — Aceito em 21/7/2014
Suporte Financeiro: Nenhum.
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Optamos por um estudo hipotético, redigido na [...] O caminhar é um dos exemplos de


forma de ensaio, teórico, sem dados empíricos; desempenho humano baseado em habilidades
visto que o objetivo era apontar, na produção, um (skillbased), no qual predomina o controle
novo caminho que a ciência aponta: o das metáforas automático, o que permite ao indivíduo realizar
mentais. Teve como base a teoria de Kuhn (1977) determinada sequência de operações sem precisar
sobre os paradigmas, localizando aqui dois paradigmas mobilizar a atenção para elas. Nesse acidente,
distintos: fodoriano (fisicalismo/cognitivismo) verificou-se que a omissão ocorreu durante
(FODOR, 1981, 1994; SMITH, 1999) × sistemas o deslocamento (caminhada) do acidentado
(dinâmicos) acoplados ao seu meio circundante e em para o local de origem da demanda e na
intensa interação com ele (VARELA; THOMPSON; proximidade desta, o que, pelas características
ROSCH, 1993). do funcionamento psíquico dos seres humanos
Outra hipótese utilizada é a hipótese das metáforas no trabalho, tende a mobilizar a atenção do
subjacentes à cognição e à ação (JOHNSON, 1987). trabalhador para a atividade que deverá realizar.
Por exemplo, apoiados na hipótese de que, governando E o fechamento da porta não tem relação com
as ações dos gestores de segurança do trabalho, seu objetivo principal, com maior capacidade de
existe a metáfora: “O operador tem que seguir capturar sua atenção [...]. (ALMEIDA; BINDER,
todas as normas como uma máquina: preciso e sem 2004, p. 1376, grifo nosso).
erros”. No livro de Johnson (1987) existem exemplos
metafóricos deste tipo. E o operador ainda foi declarado culpado pelo
Um exemplo típico e exemplificador da metáfora acidente que o matou.
homem-máquina na segurança do trabalho pode ser Em seu acoplamento sensório-motor com o
observado no caso de um assistente de obra (operador) ambiente, o trabalhador não elabora representação
da construção civil que morreu porque “não lembrou” mental, ele se move, ele age, guiado pela
de fechar a porta do elevador improvisado na obra. intencionalidade motora (PACHOUD, 1999;
Observemos - o caso do acidente em um elevador BARBARAS, 1999). Ele simplesmente caminha.
de obra de construção civil é relatado por Almeida e Não há uma reflexão, na tarefa (e nem tempo para
Binder (2004, p. 1374-1375), e ilustra bem a hipótese isso ante a elevada pressão temporal desta), como se
em pauta. Vejamos o que dizem os autores: o trabalhador estivesse a executar um algoritmo do
tipo: “1- eu vou abrir a porta; 2- agora eu vou sair;
[...] Trata-se de acidente ocorrido quando o 3-a gora eu vou fechar a porta”. Ele não elabora
acidentado, chamado para resolver um problema este tipo de representação mental, e o acidente foi
relacionado aos reparos em execução na caixa a prova indesejável disso. Ele simplesmente, em
d’água de um edifício, ao deixar o elevador que sua intencionalidade motora (PACHOUD, 1999;
o levara até o pavimento em que se localizava BARBARAS, 1999), age conforme o contexto. Ou
a caixa, não fechou a porta do elevador seja, em seu agir corporificado, que integra mente
(omissão). Ao ser aberta para dar acesso ao e corpo, ele caminha para fora quando a porta está
local de trabalho, a porta projetava-se para fora aberta. E só.
sobre uma plataforma na qual os trabalhadores Nesse caso do elevador da construção civil,
caminhavam até a caixa d’água. A abertura não deveria ser necessário que o trabalhador se
e o fechamento da porta eram manuais e o lembrasse de fechar a porta (ou representasse este
elevador não possuía dispositivo de bloqueio à ato). Um mecanismo, sensório-motor (que atingisse
movimentação caso a porta estivesse aberta. Ao o acoplamento sensório-motor entre trabalhador e
sair do elevador para a plataforma, o trabalhador ambiente), do tipo affordance, deveria ser empregado
não fechou a porta, caminhando em direção para bloquear o comportamento automático de sair
à caixa d’água. Nesse momento, o elevador sem fechar a porta. Uma affordance que guiasse a
começou a descer e a porta aberta chocou-se ação do trabalhador, todas as vezes que ele fosse
com a plataforma, derrubando-a. O trabalhador sair, atrelando o ato de sair ao ato de fechar a porta.
sofreu queda de 40 metros de altura e faleceu Isso porque, no caso em questão, a implementação
[...]. (ALMEIDA; BINDER, 2004, p. 1374-1375,
de uma porta automática talvez não fosse viável. O
grifo nosso).
uso da affordance seria, então, uma opção segura.
Mais adiante, os autores, ainda que sem fazerem A verificação da hipótese aqui apontada pode ser
alusão às teorias da metáfora-homem-máquina, realizada por qualquer pesquisador, munido, em sua
exemplificam corretamente esta hipótese, que ora empreitada, dos conhecimentos da Análise Ergonômica
estamos propondo, a qual pode ser verificada por do Trabalho (AET) basicamente apresentada também
qualquer sujeito de pesquisa que assim desejar. em Guérin et al. (2001); e, quanto ao estudo da
Nesse sentido, vejamos outras afirmações de grande cognição, apoiar-se também em Johnson (1987) e
importância dos autores: em todos os demais aqui citados.
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O comportamento dos gestores, que tem como Postula-se, neste estudo, que tal não ocorre. Ou
objetivo otimizar a conduta dos trabalhadores, está seja, o suposto comportamento seguro e produtivo,
embasado por uma metáfora (JOHNSON, 1987) que a integrar mente, corpo e ambiente numa totalidade
é construída por uma analogia entre o comportamento psicofisiológica, não é causado por um processamento
humano e o funcionamento de uma máquina – essa é a de informações simbólicas. Por isso, parte da segurança
hipótese do nosso estudo. Na ergonomia, a prescrição do trabalho no Brasil é fisicalista/cognitivista, pois
de posturas e o enquadramento da atividade cognitiva consiste basicamente no fornecimento de regras,
num modelo maquinal ainda estão presentes em normas e padrões aos trabalhadores, ao invés de
alguns autores (GRANDJEAN; KROEMER, 2005), fornecer dispositivos (até mesmo eletrônicos) de
a título de exemplo. segurança e prevenção de acidentes. Não adianta,
Portanto, o que se apresenta aqui é uma simbiose portanto, enviar os trabalhadores para a sala de
entre os longos anos de observação de atividades treinamentos com seus vídeos, datashows e etc.
de trabalho, uma extensa pesquisa bibliográfica porque somente informação não muda comportamento,
para alcançar a visibilidade de um contraponto: o atividade ou ação.
paradigma do fisicalismo/cognitivismo (fodoriano) O uso do corpo (gestos, posturas, modos operatórios
× o paradigma dos sistemas (dinâmicos) acoplados e cognição), em atividade, não é mediado pela
em seu mundo exterior, e guiados pela sensório- representação mental. Na realidade, o operador
motricidade (VARELA; THOMPSON; ROSCH, sente, percebe, move-se (sensório-motor) e pensa,
1993; PACHOUD, 1999). de forma interdependente – ele age acoplado ao seu
Isso nos leva a demarcar algumas questões às quais ambiente de trabalho (físico, cognitivo, psíquico e
o “paradigma fisicalista/cognitivista” não responde social) delineado pelo seu agir em sua corporeidade
de forma alinhada com o “paradigma dos sistemas (ação situada, incorporada) no contexto concreto de
(Dinâmicos) incorporados em seu meio circundante”. uma situação de trabalho específica. Ele não tem
Como é possível ainda prescrever posturas e modos como sair de si mesmo e de seu mundo (o “para
operatórios para os trabalhadores? O paradigma si” ligado ao mundo) para observar, a si mesmo, e
dos sistemas dinâmicos... apenas se aplica onde “representar” o melhor uso do corpo em atividade
exista liberdade/autonomia para as regulações e de trabalho ou as melhores decisões a tomar. A ação
autorregulações; e havendo a possibilidade de variar é guiada pela percepção, e esta é afetada pela ação,
o modo operatório. num circuito recorrente e de mútua especificação
Embora o modelo não seja explícito nem para os (THOMPSON, 2005).
seus adeptos, as abordagens de análise do trabalho O mesmo vale para a segurança do trabalho, quando
que recomendam, prescrevem e até padronizam ela concentra suas preocupações essencialmente no
“posturas corretas”; ou fixam os modos operatórios fornecimento de instruções sobre o uso e a importância
segundo padrões quantitativos e antropométricos dos EPIs (equipamentos de proteção individual),
pré-definidos – estão baseadas nele: o modelo na forma de treinamentos. Novamente, o modelo
fodoriano (de J. Fodor), fisicalista e cognitivista, de fisicalista/cognitivista está presente, ao pressupor
funcionamento do homem em atividade de trabalho. que o fornecimento de informações simbólicas aos
Numa vertente da ergonomia, essa limitação já é bem trabalhadores - ainda que relativas à prática - atinge
conhecida, em outros termos diferentes do fisicalismo/ suficientemente o objetivo inicial de mudar um suposto
cognitivismo. Na segurança do trabalho, o fisicalismo/ “comportamento de risco” para um “comportamento
cognitivismo aborda o trabalhador como um sistema seguro”. Um equívoco ontológico: informação não
de processamento simbólico de informações: aquele muda o comportamento do agente (sujeito da ação),
que é enviado para a sala de treinamento da empresa porque o conhecimento necessário à mudança de
para receber informações teóricas sobre saúde e comportamento não ocorre via transmissão de
segurança do trabalho. informação (PESCHL, 2006). Essa ideia é típica
Ou seja, pressupõem que o operador vai agir do cognitivismo. E ainda hegemônica em grande
de forma proposicional, reflexiva, elaborando parte das práticas de segurança e saúde ocupacional,
representações mentais simbólicas quanto ao melhor adotadas por empresas de diferentes setores de
uso do próprio corpo. Isso implicaria que ele somente atividade econômica; e verificada também na área
viria a seguir as posturas e gestos recomendados, de educação nos diferentes níveis (fundamental,
via uma planificação mental ou representação das médio e superior).
prescrições. Isso no cerne de um contexto produtivo A ergonomia francesa já se desvencilhou, há
geralmente pautado pelo ritmo acelerado da produção bastante tempo, dos pressupostos do fisicalismo/
e das prescrições quantitativas da tarefa (metas cognitivismo na análise, compreensão e transformação
a atingir e/ou superar, resultados, objetivos, etc.) do trabalho, como atestam as palavras dos autores
(GUÉRIN et al., 2001; HUBAULT, 2004; DEJOURS, a seguir. No entanto, por que, no Brasil, insistem
1997). em permanecer vivos a metáfora e o modelo dos
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trabalhadores como máquinas, ambos subjacentes de examinar os pacientes, construir um diagnóstico e


às práticas ergonômicas, em especial nos serviços fornecer um tipo específico de tratamento. A metáfora
de consultoria, que focam, sobretudo, os aspectos “corpo como máquina” não se trata de uma crença
ambientais e da carga física de trabalho, em detrimento isolada do médico, mas uma estrutura experiencial
das dimensões cognitiva e psíquica da atividade? que envolvia seus valores, metas, práticas e processos
mentais de percepção da realidade, compreensão
Da concepção de homem como sistema de
da situação (no caso, dos pacientes em consulta) e
tratamento de informação, popular nos princípios
elaboração de um tipo de tratamento a ser prescrito
da ergonomia, nós passamos progressivamente
(JOHNSON, 1987).
às concepções do tipo construtivista. (LEPLAT;
O médico descrito por Mark Johnson tinha
MONTMOLLIN, 2004, p. 56, tradução nossa).
como motor dos seus valores, crenças, expectativas,
Dos pressupostos fisicalistas/cognitivistas, ainda percepções, entendimento e compreensão da situação,
subjacentes às práticas superficiais da ergonomia e modelagem do problema e planificação da ação uma
segurança do trabalho, podem emergir problemas metáfora do corpo como máquina, o que impactava
(ou permanecer intocáveis) tais como adoecimentos diretamente na sua prática profissional. Conforme
e acidentes no trabalho. descrito pelo autor, ele tendia a “enxergar” o corpo
do paciente como: a) um conjunto de partes distintas
2 Compreendendo o problema de e interconectadas; b) uma unidade funcional que
executa vários objetivos; c) movido por uma fonte
pesquisa pelo caso Hans Selye de energia que o coloca em operação (JOHNSON,
Aqui estamos tratando de hipóteses. É possível uma 1987). A doença, então, assemelha-se a um mau
hipótese que afirme que o fisicalismo/cognitivismo funcionamento de uma das partes ou conexões, e se
está subjacente nos sistemas de gestão em segurança manifesta em um ponto específico, bem definido,
e saúde no trabalho (e seus gestores)? Reflitamos de uma das “peças” do corpo ou na interligação
melhor com o caso Selye (JOHNSON, 1987, p. entre algumas delas. Na metáfora do corpo como
127-138): a afirmação de que há uma similaridade máquina, um diagnóstico consiste em localizar a parte
do caso Selye com o fisicalismo/cognitivismo nas específica, da “máquina”, que esteja “com defeito”,
ciências do trabalho também é hipotética. ou seja, com mau funcionamento. O tratamento será
O caso a seguir ilustra, na verdade, um paradigma de bastante específico de acordo com a especificidade e a
pesquisa (das metáforas mentais), como nas palavras localização precisa da parte (peça) defeituosa ou suas
de Kuhn (1977). Um caso análogo ao problema conexões e pode demandar a sua substituição, reparo,
discutido neste artigo é descrito por Johnson (1987, p. alteração. Essa visão causal do problema implica
127-138). Subjacente à ação do médico Selye, existe prever o “estrago” que uma parte com problema
um conjunto de pressupostos ou, nas palavras do autor, pode causar em outra. Finalmente, as partes em
um modelo mental ou uma metáfora, que condicionam funcionamento como uma unidade não são dotadas
a sua compreensão da situação e sua forma de agir. de autoadaptação por si próprias (JOHNSON, 1987).
Isso ocorre, segundo nossa hipótese, não apenas no Conforme já apontado, o entendimento, a
caso do médico, mas também, hipoteticamente, nos compreensão de Selye, e sua prática médica eram
sistemas de produção dotados das áreas de ergonomia e estruturados pela metáfora “corpo como máquina”,
segurança do trabalho. E com os gestores das empresas, que viria a determinar sua percepção da situação,
responsáveis por gerir a ergonomia e a segurança diagnóstico, tratamento e outras práticas relacionadas
do trabalho, o modelo subjacente às práticas destes à sua atividade de médico.
gestores é uma metáfora do tipo: “corpo e mente A metáfora vai definir o que virá a ser percebido
como sistemas de processamento de informações ou não, na ação do médico. Em outras palavras, o
simbólicas e elaboração de representações mentais”. controle cognitivo da ação (AMALBERTI, 1996,
Em princípio, a metáfora dominante no universo 2004; HOC, 2004), suas delimitações e alcances são
cognitivo do médico era a seguinte: “corpo como dados pelo “modelo mental” ou metáfora. O caso
máquina” (JOHNSON, 1987, p. 136). Com o decorrer de Selye exemplificou bem isso. Ou seja, como em
do tempo, Selye transforma seu modelo mental em sua mente predomina a metáfora homem-máquina
uma nova concepção dos seus pacientes, quando (modelo mental), ele deixa escapar tudo o mais que
passa a ter como pressuposto de seu pensamento não seja similar a um mecanismo operando pelas leis
compreensão e ação a metáfora: “corpo como um da física – não percebe nada que escape ao modelo.
organismo (sistema) homeostático”, ou seja, sistema Em outras palavras, ele encaixa o que atende ao
dinâmico. seu modelo mental homem-máquina, e como está
A primeira metáfora do corpo como máquina demonstrado, isso reflete em quase todos os seus atos
fora adquirida por Selye na Escola de Medicina. Ela e ações práticas (JOHNSON, 1987). Ele vai tender a
orientou sua prática profissional, em especial na forma descartar alguns aspectos no diagnóstico e considerar
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outros como sendo mais relevantes em função desta As percepções, discriminações, valores, crenças
metáfora ontologicamente arraigada no universo e práticas do Dr. Selye se alteram sob o prisma da
mental, enquanto uma estrutura não proposicional, metáfora do organismo homeostático. Uma síndrome,
pré-reflexiva e calcada na experiência sensório- por exemplo, passa a ser percebida como resposta
motora até no nível dos padrões recorrentes dessa global adaptativa do organismo a um agente estressor.
atividade sensório-motora do córtex. Isso acontece A metáfora-máquina não permitia um entendimento,
com diferentes agentes em diferentes atividades de uma compreensão e nem inferências deste tipo. Ela
trabalho: existe um modelo tácito, implícito, do tipo não possibilitava ao médico perceber a resposta
que é geralmente rotulado de “modelo mental”, o qual adaptativa global do organismo a um estressor. “Sem
transforma a ação e lhe confere um curso específico a metáfora da homeostase, não havia motivação para
no acoplamento do sujeito ao seu ambiente social de esta linha de questionamento.” (JOHNSON, 1987,
oscilações e obstáculos (sistema dinâmico). p. 133). E mais adiante conclui o caso do médico
No exemplo da atividade médica fornecido Selye, de modo elucidativo para os objetivos aqui
por Johnson (1987), o autor afirma que desde a propostos, ao afirmar que:
faculdade de medicina até os primeiros anos de
[...] um programa inteiro de pesquisa não seria
experiência profissional, esta metáfora do corpo
possível sem a mudança [...] nas estruturas
como máquina determinou a percepção (“a visão”)
metafóricas dominantes da experiência. Para
de uma dada doença como estando acompanhada de
sintetizar, minha análise do projeto Selye lança
um conjunto específico e único de sintomas dotados
luz no modo como estruturas metafóricas
de características particulares essenciais, atreladas
subjacentes possuem implicações que geram
a uma parte bem específica do “corpo-máquina”.
padrões definitivos de inferência, percepção e
Isso implicava a desconsideração da compreensão
ação. (JOHNSON, 1987, p. 136).
do organismo humano como um sistema dinâmico e
homeostático. Logo, o tratamento também tendia a ser E segue dizendo que aquilo que é possível
orientado por esta lógica de percepção “maquinal”, compreender sob influência de uma metáfora - extensão
buscando o emprego de substâncias especificamente de esquemas incorporados e imagéticos - não é possível
voltadas para a ação em uma parte isolada, específica, compreender sob influência de outra metáfora ou de
da “máquina”- corpo. outro conjunto de pressupostos ou modelos mentais.
A ideia de que poderia existir uma reação não Segundo o autor, a análise do caso do médico Selye
específica, uma doença mais global e genérica, ou demonstra que um vasto domínio de nossa experiência,
um stress, não ocupava qualquer espaço no modelo compreensão, raciocínio e prática são metaforicamente
mental do médico, o qual determinava sua percepção e estruturados. As metáforas, e os esquemas a elas
sua ação na atividade de trabalho. Consequentemente, associados, são a base dos sistemas de percepção,
sintomas que mereceriam atenção do profissional, inferências, compreensão e construção de sentido
devido ao seu caráter não específico, ficavam então para diferentes situações, os quais, segundo Johnson
despercebidos no “filtro” da metáfora do “corpo- (1987), não se traduzem em manipulação proposicional
máquina” (JOHNSON, 1987). (baseada em proposições) de representações mentais.
Transitando para outro conjunto de pressupostos-
base da percepção e da ação, ou outra metáfora, a 3 Analogia do Caso Selye com
do corpo como um “organismo homeostático”, o
corpo-máquina cede espaço para o organismo dotado
o fisicalismo/cognitivismo na
de homeostase, com a manutenção e a regulação do ergonomia e segurança do trabalho
estado por meio de processos que não se resumem a A hipótese, aqui, é simples: Há uma similaridade do
uma explicação mecanicista de um conjunto de partes Caso Selye com o fisicalismo/cognitivismo presente
em interação física umas com as outras. em parte da ergonomia e segurança do trabalho. Em
Sob a influência da nova metáfora “corpo como alguns casos, na prática dos consultores em ergonomia,
organismo homeostático”, as respostas do corpo e segurança do trabalho, verifica-se algo análogo
passam a ser vistas como afetadas por uma série de à metáfora-máquina do caso Selye de Johnson. O
funções e uma síndrome de resposta como tendo trabalhador é visto como sistema de processamento
ligação com uma função global do organismo como de informação, numa modelagem equivocada do real
um todo. do trabalho, a qual gera mais prescrições, inclusive de
O problema passa então a ser visto como uma modos operatórios e formas de uso do corpo (como
resposta adaptativa global do organismo como um posturas) e, na segurança do trabalho, prescrição
todo. O ponto de vista estritamente lógico-dedutivo da de normas e regras que não ganham sentido nas
metáfora máquina cede terreno a padrões inferenciais situações reais, e permeiam também os treinamentos
modificados pela nova metáfora da homeostase teóricos e baseados na ideia de um processamento
(JOHNSON, 1987). simbólico de informações descontextualizadas: estes
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consistem no fornecimento de informações, regras, listados separadamente, a partir do pensamento de


normas, etc., segundo uma equivocada crença de que Jerry Fodor (1981, 1994), por Smith (1999, p. 83-110).
seja isso o substrato concreto de um denominado • Fisicalismo. Em Jerry Fodor (1981, 1994),
“comportamento seguro”. tem-se um modelo mental, subjacente às práticas
Para melhor compreender a forma como esses e modos de compreensão da realidade, sintetizado
consultores externos, em geral, enxergam a atividade por Smith (1999), que conseguiu caracterizar,
de trabalho, faz-se necessário adentrar nas noções conceitualmente, esse modelo (fisicalista) de J.
centrais do fisicalismo/cognitivismo, localizadas no
Fodor (1981, 1994): o fisicalismo afirma que
modelo fisicalista de Jerry Fodor (1981, 1994); no
cognitivismo e na noção de representação mental. toda explicação científica é válida apenas se for
baseada nas leis da física, e segundo o modo de
elaboração do conhecimento realizado por esta
4 O modelo fisicalista de Jerry Fodor
ciência. A mente humana seria, então, similar
na ergonomia e segurança do a um computador, que, em suas estruturas
trabalho maquinais, manipula fisicamente símbolos. Esse
Os quatro conceitos abaixo descritos estão presentes é um dos principais pilares do pensamento de
no modelo de Fodor (1981, 1994), mas não de forma J. Fodor (SMITH, 1999, p. 102-103).
explícita. Em Fodor (1994), é nítida a similaridade do • Causalismo. O causalismo de Fodor afirma que o
seu modelo de mente/cérebro com o processamento conteúdo intencional e o significado linguístico se
físico de símbolos em um computador. Tais conceitos
resumem a informações simbólicas. O significado
podem ser mais bem compreendidos em Smith (1999).
Logo, não está explícito, no modelo de Fodor, que linguístico é causado pela transmissão física
a mente humana é similar a um computador. Outros de símbolos, no sentido puramente técnico de
pesquisadores (por exemplo, aqui Smith (1999)), numa uma estrutura física, transmitida por um fluxo
crítica amadurecida sobre a obra de Fodor por inteiro, causal. A sintaxe causaria, então, a semântica
construíram esta crítica ao modelo cérebro-máquina (SMITH, 1999, p. 102-103).
(homem-máquina) fodoriano, a qual está inserida, no • Computacionalismo. O computacionalismo
campo das Ciências Cognitivas Contemporâneas, no defende que o pensamento humano é uma
termo: cognitivismo (VARELA, 1994). espécie de computação, no sentido técnico do
O cognitivismo está presente em toda a obra de J. termo na ciência da computação. Ou seja, um
Fodor e permitiu aos seus críticos identificarem alguns processo definido na forma de algoritmo, a se
termos-chave, tais como fisicalismo, causalismo,
processar num computador digital, é idêntico ao
computacionalismo e formalismo sintático, os
funcionamento de uma rede neural no cérebro
quais não estão explícitos no modelo de Fodor
mas caracterizam-no, modelo no qual também não (SMITH, 1999, p. 102-103).
surge explícita a similaridade do cérebro com um • Formalismo sintático. Em Fodor, o formalismo
computador, como dito anteriormente, embora esta seja sintático significa que as propriedades do
a tônica do pensamento de Fodor. Esses conceitos são pensamento são puramente formais, sintáticas
constructos das Ciências Cognitivas Contemporâneas e na forma de processamento físico de símbolos,
(VARELA, 1994). no cérebro, tal qual nos computadores (SMITH,
O modelo de homem como um sistema de 1999, p. 102-103).
tratamento de informação foi bem formulado por A característica central desse modelo fodoriano é
Jerry Fodor (1981, 1994), conforme suas noções a negligência da relação entre cognição e atividade
(bem próximas umas das outras...) de fisicalismo, motora e sensório-motora (THOMPSON, 2005;
causalismo, computacionalismo e formalismo sintático. PACHOUD, 1999), e o papel do corpo na cognição – já
Tais conceitos não surgem explicitamente em Fodor, e incontestáveis nas ciências cognitivas da atualidade
não são os únicos, mas foram sintetizados e explicados (PETITOT et al., 1999; THOMPSON, 2005).
por Smith (1999, p. 102-103), para quem, em seu Na concepção dos sistemas homem-máquina, na
conjunto, os quatro constituem um modelo fisicalista/ ergonomia voltada para a IHC (interação humano-
cognitivista de funcionamento da cognição humana. computador), isso implica decisões arriscadas, desde
Trata-se de uma metáfora – modelo mental ou o projeto até sua gestão, as quais negligenciam o
paradigma – do tipo: “a mente/cérebro humana opera papel da sensório-motricidade na atividade cognitiva
de forma similar a um computador”. Isso não está de trabalho diante destes sistemas (THOMPSON,
explícito na obra de Fodor, mas surge em conceitos 2005; PACHOUD, 1999). Os modos operatórios
pinçados em sua obra por outros autores mais críticos. são construídos conforme a construção da ação
Esse modelo fodoriano baseia-se nos conceitos a na atividade de trabalho (AMALBERTI, 1996),
seguir (SMITH, 1999, p. 102-103), localizados e integrando diferentes aspectos concretos da situação.
O problema do fisicalismo/cognitivismo na ergonomia... 697

Portanto, não são construídos por um processamento enquanto elementos físicos descontínuos, e apenas de
físico de símbolos externos que se possa prescrever. seus atributos físicos, os quais não possuem sentido
O cognitivismo de Fodor (1981), subjacente a qualquer. Como o sentido poderia ser gerado por algo
vários modelos de ergonomia e saúde ocupacional, que não o possui? Como a dimensão sócio-histórica
oferece riscos para a eficiência da atividade, para pode ser descartada do sentido gerado?
a saúde dos trabalhadores e para a segurança do O cognitivismo é uma abordagem dualista, no
trabalho. A premissa é simples. Muitos programas sentido cartesiano, em que a cognição seria um
e sistemas (de gestão) de segurança e saúde dos fenômeno abstrato (VARELA, 1994, p. 78-83),
trabalhadores se apoiam no pressuposto de que o desvinculado da interação concreta, mediada
fornecimento de informações simbólicas (input) aos pelo corpo e suas estruturas sensório-motoras, do
operadores - como conhecimento descontextualizado, operador com o ambiente social e histórico-cultural.
prescrito na tarefa – causaria (enquanto o causalismo Ela ocorreria de forma passiva e estática, sem a
anteriormente explicado) um comportamento (output) participação do caráter ativo e intencional do “agir” do
eficaz e supostamente seguro no trabalho: o pressuposto agente sobre o seu meio. Daí surge a noção controversa
fisicalista/cognitivista. Levar o trabalhador para de “representação mental”, ou simplesmente
a sala de aula, por si só, não resolve o problema, “representação” (SMITH, 1999; VARELA, 1994,
ainda que os consultores pensem o contrário. Isso p. 78-83; VARELA; THOMPSON; ROSCH, 1993, p.
pode ser verificado desde as placas de sinalização 134-140), como o produto da manipulação simbólica
(na área de produção); os treinamentos teóricos em cognitivista. Seus sinônimos rudimentares seriam:
sala de aula onde somente se transmite informação espelhamento; cópia; correspondência; captação;
(não conhecimento); passando pelas ditas normas transmissão; mapa. Na ergonomia e na segurança
de segurança que, muitas vezes, entram em conflito do trabalho, pressupõe-se um modelo de sujeito
com a produtividade e a qualidade; afinal, tem-se cognitivo que tem capacidade absoluta de compreender,
que produzir muito, e rápido, e com qualidade e, de forma completa e independente de si próprio
finalmente, com segurança: como conciliar tudo (saberes, desenvolvimento cognitivo, etc.), todos os
isso (HUBAULT, 2004)? Certamente não será fenômenos da produção: isso corresponderia a uma
observando placas ou normas ou instruções verbais representação mental de toda e qualquer situação,
que têm sua eficácia aniquilada pela pressão temporal. incluindo os aspectos que o próprio sujeito não
Desconsidera-se a inserção corporificada, no tecido teria como perceber ontologicamente. Portanto,
social da atividade, numa história de trabalho e numa trata-se de um equívoco. O sujeito não pode sair de
tradição (GADAMER, 2004). seu acoplamento com o ambiente de trabalho para
observar e interpretar todos os seus gestos, atos e
5 O cognitivismo e o ações, tal qual na elaboração de uma representação
mental (VARELA; THOMPSON; ROSCH, 1993).
representacionalismo nas ciências Sujeito e mundo estão acoplados e a percepção apoia-se
do trabalho neste acoplamento indissolúvel (arco intencional
O termo “cognitivismo” (VARELA; THOMPSON; segundo Thompson (2005)) negligenciado na noção
ROSCH, 1993, p. 40-57; VARELA, 1994, p. 78-83) de representação mental (VARELA, 1994).
é o que melhor sintetiza todos os “ismos”, de Jerry Ou seja, a mente espelharia, em seu interior, o
Fodor, anteriormente citados (fisicalismo; causalismo; mundo tal qual ele realmente é (em si), e o perceberia
computacionalismo; formalismo sintático). Estes em seu caráter essencial, puro, fidedigno, como
termos foram bem explicados e detalhados por Smith algo dado, pronto e acabado, externamente situado
(1999, p. 84-110). O cognitivismo tornou-se um no sujeito e independente dele. Um aniquilamento
paradigma forte em meados da década de setenta, do caráter existencial do mundo (THOMPSON,
mas um modelo ontologicamente incorreto quanto 2005), que, na verdade, existe para um sujeito
às hipóteses sobre as ações da cognição e da própria que nele habita, age, atua, move-se, etc. O mundo
mente – se comparado com as ciências cognitivas seria, então, representado de forma idêntica por
contemporâneas. Ou seja, o cognitivismo afirma que a diferentes sujeitos, independentemente de suas
mente funciona com base em representações internas estruturas sensório-motoras, e das especificidades
que corresponderiam fielmente ao mundo exterior. do acoplamento sensório-motor com o ambiente
Similar a um sistema de tratamento de informação, via de atuação (THOMPSON, 2005). Tal abordagem,
manipulação física de símbolos a partir de regras de representacionalista (ROY, 1999), falha por não
caráter sintático. Por essa computação física simbólica, conseguir explicar as diferentes formas de perceber a
enquanto uma causa, seria gerada a cognição - que realidade, verificadas em sujeitos dotados de histórias
dota a experiência de sentido - o que soa absurdo, distintas, e experiências singulares, além das falhas
visto que a hipótese cognitivista implica que o de intercompreensão. Isso é comum no caso dos
sentido seria gerado pela manipulação de símbolos, acidentes de trabalho. O representacionalismo não
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consegue explicar as distinções, de “espelhamento”, cognitivismo/fisicalismo, apontam que a compreensão


no “mapa mental”, atreladas a experiências e histórias dos problemas de segurança do trabalho situa-se na
socioculturais distintas. Ou moduladas pelo curso da interdependência entre cognição e ação. Tais conceitos
ação, na relação direta ação-cognição-ação... sequer são conhecidos na maioria das empresas
Ou seja, a noção de representação mental nega essa em que ainda predomina a insistência em tentar
espessura do ser – sua camada pré-objetiva construída causar (causalismo) mudança de comportamento
por história, cultura, sociabilidade, experiências e (output) pela transmissão de informação (input) na
vivências num dado mundo, que jamais pode ser o forma de treinamentos, cartilhas, folhetins, avisos,
mesmo para todos os sujeitos, haja vista as múltiplas advertências ou pela prescrição de condutas, modos
distinções dessa espessura ontológica. O “ver como” operatórios, posturas, procedimentos sem alcançar uma
depende desse acoplamento do tipo “ser-no-mundo” compreensão profunda do problema da segurança do
ou “Dasein”, para usar uma expressão clássica da trabalho e a construção de conhecimento (PESCHL,
fenomenologia alemã de Heidegger (2005). A ideia da 2006) necessário.
representação, cognitivista, supõe que o “ver como” Ao invés da compreensão do conhecimento como
é universal, único e idêntico para todos os sujeitos. construção social, e incorporado, ainda se mostra
E que em nada se relaciona com sua existência hegemônica a noção de transmissão de informações
fenomenal. Mas, “[...] o ser vivente não é nada externas. A construção é social, partilhada e autônoma,
como um corpo físico, um fragmento de um grande ao passo que a transmissão é idealista, externalista,
objeto, governado por leis da física ou da química.” objetivista e heterônoma (VARELA; THOMPSON;
(BARBARAS, 1999, p. 537-538, tradução nossa). ROSCH, 1993, p. 139).
Hoje, sabe-se que o comportamento não é causado Por que ainda se insiste em atribuir ao pensamento
por representação mental. Cognição é ação: a cognição proposicional (no sentido de “proposição objetivista”
tem como fundamento as funções sensório-motoras (JOHNSON, 1987, p. 28-29)) do trabalhador, como
do acoplamento incorporado entre agente e mundo representação mental, a responsabilidade isolada pela
(THOMPSON, 2005; PACHOUD, 1999). Tal conservação de sua saúde no trabalho? Um trabalhador
paradigma ainda não foi assimilado, no Brasil, nem
não possui a plena consciência dos mecanismos pelos
pela ergonomia (em sua maioria) e nem pela segurança
quais o seu corpo e a sua mente são colocados em
do trabalho (em sua totalidade).
risco numa situação de trabalho. Isso seria possível
apenas se a mente trabalhasse como um computador
6 Caracterizando o fisicalismo/ no formato de uma representação mental externalista.
cognitivismo em ergonomia, Por isso, conforme nossas observações de
segurança e saúde no trabalho campo – ao longo dos anos, e também, de aprofundados
O conhecimento necessário para a segurança do estudos teóricos (p. ex. Johnson (1987), Petitot et al.
trabalho, para a saúde dos trabalhadores, não pode (1999)) – observou-se que, operando nos sistemas
ser formatado como um conjunto de informações de produção está a metáfora-máquina, como um
simbólicas. O conhecimento se constrói na ação, num verdadeiro paradigma que, no sentido de Kuhn (1977),
processo ativo sobre o ambiente da produção e não por funciona como um suporte para as mentalidades e
“transmissão” (PESCHL, 2006) – conhecimento este encontra-se subjacente à prática dos atores sociais
que o autor designa como uma profunda compreensão em seus papéis na empresa.
situada e contextualizada do fenômeno observado. Verificamos que diversos outros autores (p. ex.
Essa compreensão profunda é uma construção, que Assunção (2003)) também assim o demonstram, em
ocorre vinculada à ação concreta dos operadores, seus trabalhos, que não são eficazes as práticas de
em seu acoplamento sensório-motor (THOMPSON, ergonomia e segurança do trabalho que prescrevem
2005) com seu ambiente de trabalho. procedimentos seguros na forma de informações,
No caso do conhecimento necessário para a saúde modos operatórios ou posturas, sem concessão de
dos trabalhadores, em especial pelas vias da ergonomia autonomia suficiente para regulação (GUÉRIN et al.,
e da análise ergonômica do trabalho, há a necessidade 2001) e variação dos modos de execução da
de compreensão e geração de saberes, aprofundados, tarefa – como exemplificado também pelo trecho
sobre a atividade de trabalho (PIZO; MENEGON, do artigo, de dois autores, anteriormente transcrito
2010). Um tipo de conhecimento como o descrito e explicado (ALMEIDA; BINDER, 2004), em que
por Peschl (2006), construtivista. o operador deveria processar mentalmente o ato,
Conceitos importantes para a segurança do maquinal, de fechar a porta do precário elevador da
trabalho, como os de “compromisso cognitivo” construção civil – e ainda com tantas tarefas físicas
(AMALBERTI, 1996) e “controle cognitivo e cognitivas, que ocupam espaço na denominada
da situação” (AMALBERTI, 2004), que não “memória de trabalhado” sobrecarregando-a, numa
são abrangidos pelo escopo epistemológico do pressão temporal exorbitante. Nestas condições,
O problema do fisicalismo/cognitivismo na ergonomia... 699

como conseguir lembrar de fechar a porta de um programas de saúde ocupacional e segurança no


elevador ao sair? trabalho ainda insistem em oferecer informações
Um operador não tem como refletir e explicar, abstratas, simbólicas, descontextualizadas, sobre
no exato momento da ação – na situação real - o posturas, movimentos, modos saudáveis de se
“porquê” de mudar a postura, o modo operatório, trabalhar? Certo é que eles se baseiam nos pressupostos
o comportamento, as decisões contextualizadas e do cognitivismo/fisicalismo, ora explicados, segundo
situadas e, principalmente, a própria ação (como os quais a transmissão de informação simbólica é
crê o cognitivismo). No entanto, ele experimenta, e suficiente para causar (causalismo) “comportamento
sente, o momento de mudar o modo de execução do adequado / seguro”, mediante a elaboração de
trabalho, ou de agir de determinada forma singular, algoritmos, mapas e representações mentais.
ainda que não saiba explicar as suas razões e motivos Subjacente a essas recomendações arriscadas para
em uma dada situação específica. Ele simplesmente a saúde do trabalhador, encontra-se a premissa de que
está incorporado em seu mundo de ação-cognição ele, na execução da tarefa, teria o seu comportamento
(THOMPSON, 2005). Isso ocorre porque a ação “posturalmente correto”, “operatoriamente correto”
guia o comportamento e, para preservar saúde e ou “seguro” causado (no sentido de causalidade física
evitar acidentes, não basta fornecer informações, e do fisicalismo e do causalismo) por uma representação
sim criar dispositivos concretos de auxílio cognitivo mental do mundo exterior (tido como independente
e apoio à ação no trabalho. À ergonomia permanece do sujeito agente do conhecimento e da atividade).
a função de preservar e economizar a cognição, e não Ora, este tipo de representação mental não ocorre,
de sobrecarregá-la. principalmente quando se considera o conceito de
Portanto, não se mostra eficaz, do ponto de vista atividade de trabalho e as severas exigências da
da ergonomia e da segurança do trabalho, fornecer tarefa no contexto produtivo contemporâneo, pautado
informações e prescrições sobre o “modo ótimo de por metas. A tarefa contemporânea é repleta de: a)
uso do corpo” no trabalho. O “uso de si por si mesmo” constrangimentos; b) exigências, conflitantes entre
(SCHWARTZ, 1996) em atividade não é mediado
si (tempo × segurança; quantidade × qualidade...)
pela representação mental, mas sim pela atividade
(HUBAULT, 2004); c) necessidade de gestão de si
sensório-motora moduladora da inter-relação entre
mesmo e desses objetivos muitas vezes conflitantes;
ação, percepção e cognição (THOMPSON, 2005).
d) ditames severos de resultados e metas a atingir
O trabalhador não pode, como um computador,
ou superar; e) gestão dos riscos (AMALBERTI,
num ritmo de produção intenso e acelerado, pautado
1996, 2004).
por metas da tarefa, elaborar representações mentais
Haveria aí espaço para um pensamento reflexivo
sobre qual postura adotar, qual forma segura de agir,
ou proposicional, abstrato, sobre como usar o corpo
etc. O sujeito simplesmente age, percebe e pensa de
forma interdependente, acoplado em seu mundo de em atividade, diante de um cenário em que o próprio
ação, incorporado nele, sem a clareza proposicional sujeito não dispõe de uma representação clara sobre
de uma representação interna, idealista, a respeito do si mesmo em ação? Não.
ambiente e das circunstâncias muito específicas da O que compete à ergonomia e segurança do
situação. Afinal, o operador não tem como abandonar trabalho é criar mecanismos, dispositivos, interfaces
o acoplamento ao seu mundo singular e específico e instrumentos de apoio à ação, e não simplesmente
de ação para ver o mundo “em si” e a si mesmo fornecer informações.
independente da sua ação incorporada de sujeito O trabalhador não elabora representação mental.
inserido/acoplado ao mundo. Ou seja, a visibilidade Ele vivencia (DILTHEY, 2002), experimenta e
do mundo e do sujeito, de forma pura e independente age. Habita seu mundo do trabalho e nele põe em
(Descartes...) não é possível porque o sujeito não tem movimento a espessura do seu ser, com seus esquemas
como “sair de si mesmo e do mundo de atuação” incorporados, sua “inteligência da prática” ou astuciosa
para contemplá-los. (DEJOURS, 1997). Não cabe à ergonomia prescrever
À ergonomia e à segurança do trabalho cabe criar algo que supõe a elaboração de uma representação
recursos que, sem a necessidade de uma representação mental que não tem como ocorrer, e que supostamente
mental por parte do trabalhador, lhe permitam agir de causaria um comportamento “seguro” ou “saudável”
acordo com a demanda da situação e do seu organismo. no trabalho. O comportamento não é causado pela
Ele simplesmente age sem ter consciência plena, e representação do trabalhador, mas é determinado,
um pensamento proposicional, sobre as razões e em parte, pelos ditames da tarefa e pelo contexto
motivos disso. da ação situada na situação de trabalho. Prescrever
Nesse sentido, permanece um mistério sobre por postura e modos operatórios, na esperança de causar
que ainda prevalecem os modelos de ergonomia e como efeito um comportamento esperado, é supor
segurança do trabalho (principalmente nesta última) um modelo equivocado de ser humano em atividade
calcados no cognitivismo/fisicalismo. Por que vários de trabalho, como máquina ou computador, e negar a
700 Bouyer Gest. Prod., São Carlos, v. 21, n. 4, p. 691-706, 2014

clássica distinção entre trabalho prescrito e trabalho A tarefa e o posto de trabalho já deveriam ser
real da ergonomia; ou corpo × mente de Descartes. seguros antes mesmo de seu uso pelo trabalhador,
É possível prescrever o melhor modo de uso do e deveriam conduzir a ação e os comportamentos
corpo, segundo a crença de que ele seja mediado por para modos seguros, saudáveis e confortáveis de se
uma representação mental? Não. Insistamos no fato trabalhar, sem nenhuma necessidade de que o próprio
de que o uso do corpo e da mente, em situação de sujeito tenha que “processar”, proposicionalmente,
trabalho, pautada pelas determinações e exigências ou reunir informações soltas, numa representação
conflitantes da tarefa (tempo, quantidade, qualidade, sobre estes graves problemas durante a execução
resultados e metas), não é previamente planejado frenética do trabalho real.
por uma representação mental. O uso do corpo pelo Os atos, ações e comportamentos seriam como
trabalhador, em uma situação de trabalho, é uma que conduzidos, pelo projeto ergonômico da tarefa
resposta sensório-motora, espontânea, pré-reflexiva e e do posto de trabalho, de forma não proposicional,
não proposicional, do sujeito, em sua totalidade, a um a um direcionamento que, em sua própria forma de
sistema complexo de fatores interdependentes – desde interação atuante e incorporada com o ambiente e o
os aspectos físicos e ambientais do posto de trabalho, meio social, preservassem a vida, a saúde, o bem-estar
passando pelos aspectos sociais da organização do e o conforto, por meio de modos de agir ou de “fazer o
trabalho, pelos determinismos da tarefa e pelo estado uso de si por si mesmo” (SCHWARTZ, 1996) guiados
interno do organismo (GUÉRIN et al., 2001, p. 65-67), por dispositivos de apoio. Estes devem emergir no
em sua totalidade fisiológica, cognitiva e psíquica. curso da própria ação em atividade de trabalho, numa
Prescrever a postura, os modos operatórios, certa situação, num modo de “Dasein” (HEIDEGGER,
e padronizá-los; ou transmitir informações em 2005) ou presença, em que o uso dos instrumentos,
treinamentos, palestras, cursos, sobre o uso “ótimo” as condutas, as ações e comportamentos seguem um
do corpo e o comportamento seguro: como sentar-se fluxo incorporado - Transparency em Varela (1999,
de forma correta na cadeira, ou sobre onde colocar os p. 298) ou Umsicht (HEIDEGGER, 2005, p. 232 e
pés, ou como carregar um objeto pesado, etc., podem p. 314 (N18)) - que reduz as probabilidades de erros,
ser úteis até certo ponto, mas não são suficientes falhas, incidentes, acidentes ou adoecimentos causados
para neutralizar os fatores que determinam um pelo trabalho, quando pensados desde o projeto do
adoecimento relacionado ao trabalho ou um acidente. A sistema de produção.
informação simbólica transmitida não adquire sentido Ou seja, poupar o trabalhador da responsabilidade
na atividade, visto que em situação de trabalho - ritmo, de ter que planejar mentalmente cada gesto, como se a
temporalidade, metas, ação voltada para o alcance das sua mente funcionasse como um computador a elaborar
prescrições da tarefa, condições materiais de trabalho representações mentais simbólicas, abstratas, que
determinadas - a consciência do corpo próprio, e a supostamente causariam o modo seguro e saudável do
intencionalidade se fixam em atos voltados para o uso de seu próprio corpo e de sua própria mente. Evitar
alcance de metas, resultados estipulados pela tarefa, que ele mesmo tenha que processar formalmente,
cumprimento de ritmos e tempos impostos, garantia de num sentido representacionalista, computacionalista,
qualidade prescrita nos padrões e, ainda, a necessidade fisicalista, cognitivista e proposicional, esse uso de seu
de conservar o estado interno do organismo de forma corpo, e de sua mente, em atividade. Essa lucidez, essa
a se manter vivo e em condições de saúde mínimas clareza, ou transparência para si mesmo do seu próprio
para o trabalho. Portanto, fornecer “informações ser na atividade; essa suposta “representacionalidade”
saudáveis” guarda uma crença análoga à de que um do modo de ser, de agir, de usar a si mesmo, não
remédio faria um efeito melhor no organismo de um podem envolver, a todo o momento da situação, um
farmacêutico por ele possuir as informações simbólicas processamento físico de informação numa reflexão
sobre a farmacodinâmica do medicamento em seu premeditada e proposicional, como cognição sobre
corpo, em comparação com o efeito no organismo o mundo externo (externalista), verbal, reflexiva ou
de um leigo no assunto, do mesmo remédio. declarativa, quanto ao modo seguro e saudável de
O que se mostra necessário, para a saúde usar o corpo e agir na atividade.
ocupacional e a segurança no trabalho, é a criação de Ontologicamente, no “real do trabalho” (DEJOURS,
espaços de autonomia, de regulação (GUÉRIN et al., 1997, 2008), o operador exerce uma espécie de ação
2001) e fornecimento de margens de manobra para incorporada no trabalho, sem que essa forma de
a realização da tarefa, que permitam ao trabalhador engajamento corporificado (acoplamento) ao ambiente
fazer uso de seu corpo, e da mente, de modo já da atividade lhe seja acessível como uma representação
implicitamente seguro desde o projeto do posto de mental ou acessível ao plano da consciência nas fases
trabalho e da própria tarefa. Um grande problema da tarefa pautadas pela sobrecarga de trabalho nas
aqui é o projeto dos sistemas de produção nos quais suas componentes física, cognitiva e psíquica da
se projeta de tudo, menos a tarefa. carga de trabalho.
O problema do fisicalismo/cognitivismo na ergonomia... 701

Os componentes mais complexos da atividade de ou por negligência, omissão e irresponsabilidade


trabalho, que necessitam de compreensão aprofundada do trabalhador. Tendem ainda a atribuir a culpa
e, em grande parte, são essencialmente qualitativos, dos acidentes às próprias vítimas (tratadas como
como os aspectos psíquicos e psicossociais da atividade, dispositivos automáticos de processamento de
são praticamente descartados ou negligenciados nos informações simbólicas). Ou seja, a culpa inteira,
estudos fisicalistas/cognitivistas em ergonomia e na visão fisicalista/cognitivista, reinante nas
segurança do trabalho. Descartam o sujeito de suas organizações em geral, recai sobre o trabalhador
análises. Tanto têm de fáceis quanto de perigosos e seu comportamento, que se acredita poderem
para a saúde e a segurança dos trabalhadores. ser modificados apenas por transmissão passiva
O fisicalismo/cognitivismo, em ergonomia e de informações descontextualizadas tais como
segurança do trabalho, está presente quase de forma treinamentos teóricos, palestras, diálogos de segurança,
hegemônica, nas empresas. Simplesmente porque uso de panfletos, placas, manuais, folhetins, etc.;
ele propõe apenas apanhados superficiais, de custo como se o próprio sujeito fosse uma máquina no
mais baixo, em menor espaço de tempo, e que não meio das demais e não um sujeito, agente atuante, em
demandam esforços mais substanciais - nem de interação com seu meio circundante, estruturalmente
conhecimento, análise, compreensão e transformação acoplado ao ambiente.
eficaz das situações de trabalho. Ainda predominam, no Desconhece-se e se negligencia os conceitos de
cenário produtivo contemporâneo, em especial, porque ação, de compromisso cognitivo (AMALBERTI,
possuem um baixo custo de aplicação. Verifica-se 1996, 2004) e até mesmo de subjetividade – em
grande número de empresas de consultoria que os seu sentido mais profundo e que envolve aspectos
empregam, a serviço de empresas maiores, por um psicossociais, cognitivos e psíquicos (CLOT, 2004;
preço atrativo, de modo a atender, precariamente, ao DEJOURS, 1997).
que exigem as leis e normas vigentes, ainda também Na abordagem fisicalista/cognitivista da segurança
essencialmente prescritivas, objetivistas e superficiais. do trabalho, o acidentado é culpado porque não seguiu
São abordagens que geralmente medem apenas as a regra, ou descumpriu a norma, não obedeceu ao
dimensões físicas do posto de trabalho, ou do corpo prescrito, ou faltou conhecimento e treinamento por
do trabalhador como objeto, sem sequer reconhecer falta de adesão ao conhecimento e ao treinamento
a presença de um sujeito dotado de interioridade, de teóricos fornecidos pela empresa. Um ponto de vista
subjetividade, de vida psíquica, que age, e não apenas emblemático da noção de representação mental no
se comporta ou executa atos maquinais, visto que, cognitivismo (VARELA, 1994), ou seja, o indivíduo
conforme Hubault (2004, p. 118-123), o agir excede “causou” o acidente porque não “representou” o
o fazer no trabalho. problema de forma adequada em sua mente; não
Em segurança do trabalho, as práticas, ainda que elaborou o “mapa mental” correto; não assimilou a
implicitamente apoiadas sobre os pressupostos do informação fornecida no treinamento abstrato, formal,
fisicalismo/cognitivismo, vão se concentrar apenas em ou no curso repleto de informações simbólicas; não
fornecer capacete, protetores de ouvido, botina, óculos cumpriu a instrução, a norma, o procedimento, a regra,
e outros equipamentos de proteção individual - os o programa, a prescrição formalmente registrada em
ditos “EPIs” - junto com os “treinamentos para a documentos da empresa, supostamente disponíveis
saúde e a segurança no trabalho”, baseados apenas ao indivíduo para a completa “assimilação” de seu
em transmissão simbólica de informações abstratas, conteúdo simbólico, proposicional, informacional.
como se a mente do trabalhador fosse um mecanismo A falha estaria então, toda, no comportamento
de tratamento automático de informação. Mais individual do “sujeito-máquina”, cuja mente
uma vez, faz-se necessário reforçar o que já se seria similar a um computador que efetuou um
encontra consolidado epistemologicamente nas “processamento mental” (representação) equivocado,
ciências cognitivas, e acessível, ontologicamente, por não cumprir a regra simbólica, o encadeamento
para verificação científica por diferentes conjuntos de de símbolos e informações, o programa de saúde e
métodos e técnicas que se escolha utilizar: transmissão segurança, a tarefa, a norma, a prescrição, a instrução,
de informação, por si só, não causa comportamento a legislação, o dispositivo informacional – o algoritmo.
seguro, não muda ação, não gera, não produz e não Logo, a vítima, no cognitivismo, sempre é culpada
constrói conhecimento (PESCHL, 2006; SCHÖN, porque sua mente não “computou” adequadamente
2000; VARELA, 1994; VARELA; THOMPSON; o algoritmo de segurança da empresa.
ROSCH, 1993). E a organização do trabalho? E as condições de
A perigosa abordagem fisicalista/cognitivista da trabalho? E o modo degradado de funcionamento
segurança do trabalho baseia-se na pressuposição de muitos sistemas e equipamentos? E as falhas
de que os acidentes ocorrem apenas por falhas de de concepção e de projeto? E a gestão e o controle
treinamento, de conhecimento, de uso inadequado - ou cognitivo dos riscos pelos operadores? E as exigências
ausência de uso - de equipamentos de proteção; temporais da tarefa? E os constrangimentos da tarefa? E
702 Bouyer Gest. Prod., São Carlos, v. 21, n. 4, p. 691-706, 2014

o impedimento e as restrições impostas às modificações atual, descarta e não consegue enxergar nem
dos modos operatórios? E as dificuldades de regulação, compreender. Ao se adentrar mais fundo no
de autonomia, de margem de manobra para adequar problema, encontrar-se-ão questões também tão
a ação e o comportamento às demandas da situação? importantes, mas que estão mais afastadas ainda,
E os compromissos cognitivos (AMALBERTI, 1996) dada a impossibilidade de compreensão pela
elaborados para conciliar objetivos conflitantes da segurança do trabalho fisicalista, e pela ergonomia
tarefa, do trabalho prescrito, da organização do de viés fisicalista/cognitivista: subjetividade;
trabalho, tais como produzir em grande quantidade, intersubjetividade; compreensão; intercompreensão;
mas também com qualidade, com segurança, com comunicação e trabalho; aprendizagem e trabalho;
eficiência, e de forma rápida, num ritmo intenso, cognição e trabalho.
(HUBAULT, 2004) numa temporalidade restrita... A abordagem fisicalista/cognitivista, em segurança
Onde são feitas essas análises? Nos estudos baseados do trabalho, e em ergonomia, apoia-se na racionalidade
no fisicalismo/cognitivismo? instrumental, normativa e tecnicista do trabalho
Impossível, pois estes últimos se concentram apenas prescrito; e na facilidade de estipular punições,
no capacete, na botina, no uniforme, no ruído, na penalizações, sanções, sem avaliação aprofundada
temperatura, nas NRs quantitativas e obrigatórias, nos das causas, razões e motivos de comportamentos,
registros simbólicos de dimensões antropométricas e ações e finalmente acidentes, ou quase acidentes. E a
biomecânicas, nos manuais, normas e regulamentos. O lógica de funcionamento do fisicalismo/cognitivismo,
fisicalismo/cognitivismo, em ergonomia e segurança nos modos pífios de aplicação prática aí propostos,
do trabalho, restringe os estudos do trabalho a apenas permite isentar de responsabilidade a empresa, os
isso. Apenas para atender o caráter formal. gestores e a organização do trabalho.
Logo, a dimensão social, e ou subjetiva, do Esse entendimento, por ignorar os problemas mais
problema, por não pertencer ao domínio das leis da complexos, que não cabem apenas nas leis da física
física, como pertencem a temperatura, o ruído, as ou nas ideias do senso comum, serve de suporte
métricas do posto, etc., é descartada dos apanhados para a geração de riscos e incidentes apoiados nos
fisicalistas superficiais. “manuais de ergonomia e segurança”. Subjacente
Como anteriormente dito, sérios problemas de a eles, ainda que não se tenha consciência, está a
saúde e segurança ocupacionais estão relacionados metáfora do homem-máquina (JOHNSON, 1987),
a questões que fogem do domínio das leis da física e que acaba servindo de instrumento para culpabilizar,
das ciências da natureza, como no exemplo ilustrativo penalizar e punir a própria vítima, apontando como
aqui relatado, no qual o trabalhador morreu por um “causa” do problema apenas um “comportamento
lapso de memória (não fechou a porta do elevador e, inadequado”; por desviar-se do trabalho prescrito,
portanto, morreu ao não funcionar como máquina): das informações fornecidas pela empresa. Uma
máquina tem esquecimento? nítida aplicação do causalismo e do fisicalismo/
O modelo cognitivista/fisicalista encontra cognitivismo.
dificuldades para lidar com fatos, tais como segurança Negligencia-se o fato, incontestável, de que
do trabalho e saúde ocupacional, de forma ampla. Se nenhuma organização do trabalho funciona baseada
não pertencem ao campo da física, da segurança do apenas no trabalho prescrito, mas sim com base no
trabalho fisicalista e da ergonomia também fisicalista, trabalho real, com seus componentes já bem descritos
não conseguem resolver, nem sequer colocar o pela ergonomia da atividade, como as habilidades, a
problema a ser resolvido em termos claros. Por engenhosidade e o zelo que os operadores colocam
exemplo, não conseguem lidar com as questões em prática para fazer a produção funcionar de acordo
anteriormente discutidas, como as da organização com os ditames da tarefa, de tempo, qualidade,
do trabalho – não apenas em suas dimensões físicas, produtividade e segurança (GUÉRIN et al., 2001;
mas em suas dimensões sociais – dos compromissos HUBAULT, 2004; DEJOURS, 1997).
cognitivos (AMALBERTI, 1996, 2004); do saber Por que predomina o viés fisicalista/cognitivista
tácito; da métis e da inteligência da prática e astuciosa; em ergonomia e segurança do trabalho? Por que é
da gestão de objetivos conflitantes da tarefa; das barato, não demanda esforço de inteligência, mascara
formas de regulação das situações incertas, dinâmicas os problemas reais mais profundos e atende às
e complexas; das dificuldades encontradas para mudar exigências da legislação vigente.
os modos operatórios e para realizar regulações, Para bem longe das possibilidades de
estratégias e mecanismos de controle da situação compreensão do fisicalismo/cognitivismo, a proposta
de trabalho. aqui é avançar rumo às ciências cognitivas, que
Isso para citar apenas as questões mais básicas têm muito a contribuir com a ergonomia (LEPLAT;
que o fisicalismo/cognitivismo, subjacente às MONTMOLLIN, 2004, p. 56). Estes autores afirmam
práticas concretas de ergonomia e de segurança que as ciências cognitivas fornecem conhecimentos
do trabalho hegemônicas no cenário empresarial para a ergonomia e estabelecem uma cooperação
O problema do fisicalismo/cognitivismo na ergonomia... 703

interdisciplinar importante para soluções práticas. 7 A melhor prescrição é: não


Nesse sentido, “Não há limite nos conhecimentos prescrever limites às demandas
das disciplinas, que podem ser recrutados para
a interpretação de uma atividade de trabalho.” sensório-motoras da atividade
(DANIELLOU, 2004, p. 187). Por isso, a análise São abundantes os trabalhos que, embora não
ergonômica do trabalho (AET) permitiu à ergonomia saibam conscientemente disso, estão fazendo uma
evoluir enquanto ciência (PIZO; MENEGON, confrontação ao fisicalismo/cognitivismo. Citaremos
2010), por englobar a interdisciplinaridade no apenas alguns, na literatura cientifica de 1) ergonomia;
estudo do homem em atividade de trabalho 2) segurança do trabalho; 3) saúde ocupacional; e 4)
colocada como elemento central das análises. A saúde coletiva, em especial nos renomados periódicos
AET busca encarar, e não reduzir, a totalidade que publicam trabalhos dessas áreas. São estudos
física, cognitiva, psíquica e social, psicofísica, científicos de elevada estirpe teórico-metodológica
do homem em atividade de trabalho. De uma e empírica, que já demonstram exaustivamente
forma ampla, integradora de diferentes disciplinas, que, em se tratando de análise do trabalho, deve-se
ou seja, “interdisciplinarmente”, num espírito considerar a totalidade biológica, física, cognitiva e
interdisciplinar (PACAUD, 1970), com foco na psíquica do sujeito da atividade, numa abordagem
produção de conhecimento aprofundado, sobre o interdisciplinar e arraigada nos princípios de construção
homem em atividade de trabalho, em beneficio da de conhecimento científico, no sentido proposto
sua saúde e da sua segurança. por Pizo e Menegon (2010), sem reduzir a análise
A prática da ergonomia pelo ergonomista, depois apenas aos aspectos físicos e aparentes do posto de
de toda a evolução teórica, prática e epistemológica trabalho, e do corpo ali inserido em suas dimensões
da ergonomia, não pode jamais desconsiderar a antropométricas e biomecânicas. Ou seja, estudos que
dimensão subjetiva da atividade. Ou, melhor dizendo, já demonstraram a fertilidade científica e tecnológica
nas palavras de Daniellou (2006), essa prática de dos modelos de análise da AET, antagônicos ao
analisar e compreender o trabalho “por dentro”, viés do fisicalismo/cognitivismo. Esses estudos têm
no sentido de melhor consideração das dimensões legitimado, demonstrado e validado abordagens
subjetivas, abre caminho para um enriquecimento realmente eficazes do ponto de vista dos objetivos
dos modelos da atividade do ergonomista. Num concretos da ergonomia, e da segurança do trabalho,
estudo recente, os pesquisadores utilizaram-se dos de compreender o trabalho para transformá-lo. Apenas
métodos de autoconfrontação bem conhecidos em para citar alguns poucos: Martins Júnior et al. (2011),
AET, num nível bem aprofundado, rumo a uma Fernandes, Assunção e Carvalho (2010a, b), Simonelli
compreensão do que denominam de “atividade e Camarotto (2011), Vasconcelos et al. (2008), Guedes,
produtiva diacrônica” – (“activité productive Lima e Assunção (2005), Carvalho, Vidal e Carvalho
diachronique”) – uma atividade criativa que não se (2005), Diniz, Assunção e Lima (2005), Assunção
explicita completamente no curso da ação. Ela não se (2003) e Abrahão (2000).
enquadra numa prescrição e não pode ser predefinida Nenhum desses estudos, apenas para citar alguns,
de antemão, abrigando um espaço de subjetividade se restringe a avaliar apenas os aspectos físicos e
importante de ser apreendido pela análise do trabalho ambientais do posto de trabalho, em detrimento da
(BATIONO-TILLON; FOLCHER; RABARDEL, ação e da racionalidade das condutas atreladas às
2010). inter-relações entre as noções de: i) organização do
Portanto, em ergonomia, com a prática da AET, trabalho; ii) trabalho prescrito (tarefa); iii) trabalho
encontra-se um viés realmente científico, de geração real (atividade de trabalho). O complexo tecido
de conhecimento (PIZO; MENEGON, 2010) em social, que geralmente é descartado pelos estudos
contraponto ao viés fictício e reducionista do fisicalistas/cognitivistas, o qual abarca essas noções
fisicalismo/cognitivismo – que ainda prevalece centrais da ergonomia, surge apuradamente como um
em algumas abordagens de “ergonomia fisicalista”, suporte imprescindível à construção dos modelos de
puramente calcadas nos aspectos físicos do posto pesquisa utilizados por estes autores - desde a análise
de trabalho ou do corpo humano. Em uma, temos da demanda até a implementação da ação ergonômica
uma práxis científica (AET); em outras, observa-se em alguns deles.
uma prática anticientífica e até mesmo mística Em nenhum deles, o sujeito da pesquisa é abordado
(fisicalismo/cognitivismo). No que concerne à tendo como pressuposto um modelo equivocado
segurança do trabalho, o fisicalismo/cognitivismo fisicalista/cognitivista, do funcionamento de seu corpo
está nas práticas superficiais de estudos centrados e de sua mente em atividade de trabalho. Não há uma
no comportamento individual e nos aspectos físicos metáfora do tipo “homem-máquina”, subjacente às
e ambientais de locais, equipamentos, de forma análises rigorosas do trabalho empregadas nesses
isolada do sujeito da atividade, e de sua experiência estudos. Em nenhuma dessas pesquisas a abordagem
subjetiva do trabalho. reduz o ser humano a uma máquina que executa
704 Bouyer Gest. Prod., São Carlos, v. 21, n. 4, p. 691-706, 2014

movimentos, gestos e comportamentos sob uma dos resultados prescritos na tarefa (GUÉRIN et al.,
ótica puramente biomecânica e/ou antropométrica. 2001), tem levado a graves problemas de segurança
Verifica-se, em todas as pesquisas anteriormente no trabalho e saúde ocupacional.
citadas, a inclusão da descrição subjetiva do trabalho, Quando o modelo fisicalista/cognitivista está
por exemplo, na correlação das componentes cognitivas subjacente à abordagem dos sistemas homem-máquina,
das cargas de trabalho com: a) as condições materiais como em Grandjean e Kroemer, (2005), a atividade
concretas da organização do trabalho e da tarefa e cognitiva de controle de uma situação (AMALBERTI,
b) a atividade de trabalho em seu caráter mediador, 2004) tende a ser vista como puramente abstrata,
integrador e central nas pesquisas em questão. Os representacionalista, e independente das funções do
resultados - 1) práticos - de melhorias geradas corpo. Mais grave ainda está o fato de descartar-se,
especialmente no que concerne ao objetivo de aí, o caráter mediador e integrador da atividade de
implementação da ação ergonômica e transformação trabalho e seus aspectos sociais (GUÉRIN et al.,
social da organização do trabalho, passando inclusive, 2001). Adotar esse apanhado reducionista e parcial da
em alguns casos, por estabelecimento de parâmetros interação homem-máquina sintetizado num “manual...”
para acordos coletivos envolvendo sindicatos de pode gerar graves problemas para o desempenho da
trabalhadores (DINIZ; ASSUNÇÃO; LIMA, 2005); própria atividade e, também, problemas ergonômicos,
2) teóricos; e 3) de contribuição epistemológica como abordado. O ponto de vista cognitivista/
para os campos interdisciplinares abarcados nessas fisicalista dos ditos “manuais...” representa um
pesquisas - podem ser verificados pelos demais perigo se aplicado em especial na área de segurança
pesquisadores, haja vista o caráter científico das do trabalho, para a qual diversos autores, em um
análises verdadeiramente ergonômicas. A análise ponto de vista realmente científico, e antagônico ao
ergonômica do trabalho está associada, também, desses “manuais de ergonomia” computacionalistas,
à geração de conhecimento científico (PIZO; têm buscado, com grande sucesso, apontar um
MENEGON, 2010). caminho que não negligencie os aspectos sociais e
Ao tratar e colocar para “funcionar” o homem cognitivos da atividade de trabalho, importantes para
como máquina e sua mente como um computador, a segurança tanto das instalações industriais quanto
o resultado acaba por limitar o espaço, a autonomia dos trabalhadores (MARTINS JÚNIOR et al., 2011;
e as possibilidades de regulação. Isso dificulta, CARVALHO; VIDAL; CARVALHO, 2005).
também, o próprio controle cognitivo da situação
(AMALBERTI, 1996, 2004), da situação de trabalho 8 Considerações finais
pelo agente e pode ser danoso para a segurança do Os problemas no desempenho da atividade cognitiva
trabalho (AMALBERTI, 1996, 2004). Em outras dizem respeito ao fato de que a cognição não ocorre de
palavras, ao reduzir as margens de manobra dessas forma independente das funções sensoriais e motoras
funções, compromete-se a realização das outras do corpo em atividade. A autonomia – o espaço para
funções mais abstratas, envolvidas nas tomadas de mudar a forma de realizar a tarefa –, as margens de
decisão, e na percepção das situações de risco, de manobra e de regulação e as possibilidades de variação
uma forma mais global, de modo a construir um curso dos modos operatórios são geralmente dificultadas,
adequado para a ação (THEUREAU, 2004). Isso tem ou mesmo impedidas, devido aos pressupostos do
severas implicações no desempenho da atividade de fisicalismo/cognitivismo subjacentes aos sistemas de
trabalho e suas relações com a segurança do trabalho, gestão em saúde ocupacional, segurança do trabalho
a saúde ocupacional e a conservação do conforto e e ergonomia.
do bem estar no trabalho. Ou seja, o não reconhecimento do indissociável
Quanto aos aspectos e funções psicológicas do complexo formado pela tríade ação-cognição-situação,
trabalho, a negligência da relação entre cognição tende a comprometer: a) o desempenho da atividade;
e acoplamento sensório-motor, e a prevalência do b) a saúde física e mental dos trabalhadores; c) a
fisicalismo nas análises do “fator humano” (DEJOURS, segurança do trabalho e das instalações; d) as demandas
1997), têm acarretado no comprometimento dos subjetivas e intersubjetivas do sujeito e do coletivo.
espaços necessários para o exercício da subjetividade, Em síntese, os atos e movimentos do corpo,
no sentido, também, de atividade subjetivante, e dotados de uma iniciativa própria do indivíduo
não apenas dos componentes afetivos. A exclusão, de, ativamente, explorar o seu mundo circundante,
nos estudos fisicalistas, da intersubjetividade e da são a base da existência concreta do acoplamento
intercompreensão, pautadas, dentre diversos conceitos, sensório-motor e, consequentemente, o fundamento
por: a) zelo; b) inteligência da prática ou astuciosa de todo fenômeno cognitivo, por mais abstrato e
(DEJOURS, 2008); c) saber-fazer armazenado no sofisticado que aparente ser. Observa-se que os
corpo; d) experiências e percepções irredutíveis a atos no trabalho estão arraigados em esquemas
uma descrição puramente objetiva do trabalho, e corporais e pautados pela motricidade corporal,
necessárias para a conservação de si e para a obtenção os quais participam da construção da cognição,
O problema do fisicalismo/cognitivismo na ergonomia... 705

em seus aspectos pré-reflexivos, pré-objetivos e assim, como Selye conseguiu transformar/superar


não proposicionais (THOMPSON, 2005). É esse sua metáfora maquinal, seria interessante que os
acoplamento que molda as funções cognitivas, visto agentes responsáveis pela ergonomia e pela segurança
que cognição e ação incorporadas são indissociáveis promovam o mesmo em seus campos de atuação.
e amalgamadas por ele.
A concretização da hipótese do homem-máquina Referências
na ergonomia, e na segurança do trabalho, começa ABRAHÃO, J. I. Reestruturação produtiva e variabilidade
a ganhar vida pelos fatos aqui narrados, e pelas do trabalho: uma abordagem da ergonomia. Psicologia:
proposições propostas. Teoria e Pesquisa, v. 16, n. 1, p. 49-54, 2000. http://
Faz-se necessária uma mudança de paradigma; dx.doi.org/10.1590/S0102-37722000000100007
daquele fisicalista/cognitivista atual para o paradigma ALMEIDA, I. M.; BINDER, M. C. P. Armadilhas cognitivas:
dos sistemas acoplados em seu domínio de atuação, o caso das omissões na gênese dos acidentes de trabalho.
recorrente com o ambiente circundante (VARELA; Cadernos de Saúde Pública, v. 20, n. 5, p. 1373-
THOMPSON; ROSCH, 1993). É necessário, pelas 1378, 2004. PMid:15486681. http://dx.doi.org/10.1590/
razões expostas neste texto, oferecer treinamento S0102-311X2004000500032
teórico e prático, permitindo aos trabalhadores e AMALBERTI, R. La conduite de systèmes à risques.
seus gestores mudarem o seu modelo mental. Não se Paris: Presses Universitaires de France, 1996.
pode generalizar, mas – eis a nossa hipótese - de uma AMALBERTI, R. De la gestion des erreurs à la gestion
forma ou de outra, encontramos casos na ergonomia des risques. In: FALZON, P. Ergonomie. Paris: Presses
Universitaires de France, 2004. p. 285-300.
e na segurança do trabalho que ainda se pautam na
ASSUNÇÃO, A. A. Uma contribuição ao debate sobre as
metáfora homem-máquina (paradigma fisicalista/
relações saúde e trabalho. Ciência & Saúde Coletiva,
cognitivista): a) padronização e prescrição de modos v. 8, n. 4, p. 1005-1018, 2003. http://dx.doi.org/10.1590/
operatórios e, em alguns casos, até de posturas; b) S1413-81232003000400022
transmissão de informação, num desconhecimento BARBARAS, R. The movement of the living as the
de que a cognição tem um limite e que não pode originary foundation of perceptual intentionality. In:
“processar” um volume de informação maior que PETITOT, J. et al. Naturalizing phenomenology: issues
sua capacidade; c) entendimento do operador como in contemporary phenomenology and cognitive science.
computador fisicamente processador de símbolos Stanford: Stanford University Press, 1999. p. 525-538.
que elabora representações mentais o tempo todo, BATIONO-TILLON, A.; FOLCHER, V.; RABARDEL,
sobre qual postura adotar, qual modo operatório P. Les artefacts transitionnels: une proposition pour
seguir e qual comportamento é seguro ou não; d) étudier la diachronie des activités narratives. Activités,
restrição das margens de manobra e das opções v. 7, n. 2, p. 63-83, 2010.
de regulação; e) imposição de constrangimentos à CARVALHO, P. V. R.; VIDAL, M. C. R.; CARVALHO,
E. F. Análise de microincidentes na operação de usinas
livre atividade (autônoma); f) restrição do acesso às
nucleares: estudo de caso sobre o uso de procedimentos
fontes de informação necessárias para as tomadas
em organizações que lidam com tecnologias perigosas.
de decisão; g) restrição às demandas sensoriais da Gestão & Produção, v. 12, n. 2, p. 219-237, 2005.
atividade cognitiva, e demandas motoras, como http://dx.doi.org/10.1590/S0104-530X2005000200007
o constrangimento da atividade de percepção, CLOT, Y. La fonction psychologique du travail. Paris:
impostas desde o projeto e concepção dos sistemas Presses Universitaires de France, 2004.
de trabalho e dos dispositivos do tipo IHC (interação DANIELLOU, F. Questões epistemológicas levantadas pela
humano-computador); fragmentação dos coletivos ergonomia de projeto. In: DANIELLOU, F. (Coord.).
de trabalho e exigência de metas individuais, em A ergonomia em busca de seus princípios: debates
curto espaço de tempo (pressão temporal) e sem epistemológicos. São Paulo: Edgard Blucher, 2004.
condições materiais suficientes. Esses termos, quando p. 181-198.
transformados na prática, no sentido de melhorar a DANIELLOU, F. Entre expérimentation réglée et expérience
segurança e os aspectos ergonômicos do trabalho, vécue: les dimensions subjectives de l’activité de
implicam que estas duas disciplinas (segurança do l’ergonome en intervention. Activités, v. 3, n. 1,
trabalho e ergonomia) forneçam ao presente debate p. 5-18, 2006.
DEJOURS, C. O fator humano. Rio de Janeiro: FGV, 1997.
a contribuição do paradigma da cognição situada,
DEJOURS, C. Avaliação do trabalho submetida à prova
para que seja possível a aplicabilidade prática por
do real: crítica aos fundamentos da avaliação. São
parte dos gestores da empresa. Paulo: Edgard Blücher, 2008.
Quanto a isso, estamos falando legitimamente de DILTHEY, W. Psicologia e compreensão. Lisboa:
paradigmas no sentido de Kuhn (1977): no trajeto de Edições 70, 2002.
evolução das disciplinas, elas tendem a abandonar DINIZ, E. P. H.; ASSUNÇÃO, A. A.; LIMA, F. P. A.
(romper com; = ruptura conforme Kuhn) o paradigma Prevenção de acidentes: o reconhecimento das estratégias
mecanicista/fisicalista, para adotar o paradigma dos operatórias dos motociclistas profissionais como base
sistemas acoplados em seu meio circundante. E para a negociação de acordo coletivo. Ciência & Saúde
706 Bouyer Gest. Prod., São Carlos, v. 21, n. 4, p. 691-706, 2014

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