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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

PEDRO FONSECA TENORIO

VIDA INTELECTUAL E FELICIDADE (ΕΥΔΑΙΜΟΝΊΑ)

RIO DE JANEIRO
2018
Pedro Fonseca Tenorio

Vida Intelectual e Felicidade (εὐδαιμονία)

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de


Pós-Graduação em Filosofia, Instituto de Filosofia
e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de
Janeiro, como requisito parcial à obtenção do grau
de Doutor em Filosofia.

Orientador: Fernando Augusto da Rocha Rodrigues

Rio de Janeiro
2018
CIP - Catalogação na Publicação

T289v Tenorio, Pedro Fonseca


Vida intelectual e felicidade (eudaimonía) /
Pedro Fonseca Tenorio. -- Rio de Janeiro, 2018.
228 f.

Orientador: Fernando Augusto da Rocha


Rodrigues. Tese (doutorado) - Universidade
Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia
e Ciências Sociais, Programa de Pós-Graduação em
Filosofia, 2018.

1. felicidade. 2. intelecto. 3. alma . 4.


sabedoria. I. Rodrigues, Fernando Augusto da Rocha,
orient. II. Título.

Elaborado pelo Sistema de Geração Automática da UFRJ com os


dados fornecidos pelo(a) autor(a).
Agradeço especialmente ao meu professor Fernando Augusto da Rocha Rodrigues pela
generosidade, paciência e amizade com as quais me orientou durante o doutorado.

Agradeço à UFRJ e ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UFRJ, aos


professores e aos funcionários.

Agradeço à Sônia e à Dina.

Agradeço à CAPES pela bolsa com a qual fui contemplado durante todo o período de
estudos do doutorado e pela bolsa PDSE, graças à qual pude fazer o estágio de pesquisa na
Itália.

Ringrazio il professor Enrico Berti per l'accoglienza, disponibilità e per i consigli che
mi ha fornito riguardo la tesi.

Ringrazio il caro professor Luigi Salvioni per la generosità e l’amicizia con che mia ha
ricevuto per studiare il greco.

Ringrazio all’Università degli Studi di Padova.

Ringrazio il Collegio Don Mazza, don Flavio, don Lucca ed i miei carissimi amici, che
mi hanno ospitato con il cuore aperto durante il mio periodo a Padova.

Agradeço aos amigos e aos colegas com os quais conversei, trocando em miúdos, sobre
os conteúdos desta tese.

Agradeço à Lavínia, querida amiga e bravissima insegnate di italiano.

E, principalmente, agradeço à minha mãe e aos meus irmãos.


“Considerate la vostra semenza:
fatti non foste a viver come bruti,
ma per seguir virtute e canoscenza”
(Dante Alighieri, La Divina Commedia,
Inferno XXVI, vv. 118-120.)
Resumo

TENORIO, Pedro Fonseca. Vida intelectual e Felicidade (εὐδαιμονία). Rio de Janeiro, 2018.
Tese (Doutorado em Filosofia) – Programa de Pós-Graduação em Filosofia, Universidade
Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2018.

Esta tese tem como objetivo esclarecer o conceito de felicidade, εὐδαιμονία, como
exposto em Ethica Nicomachea, através da análise mais aprofundada dos elementos
constitutivos da alma humana, focalizando, sobretudo, na descrição da função do intelecto,
νοῦς, em sua essência e nas atividades nas quais ele se atualiza, como aparece em De Anima.
Esta análise oferecerá ao estudo do tema uma mais completa compreensão do que seja a
felicidade no sentido de ela ser uma atualização plena, perfeita e completa da natureza humana
na atividade da contemplação da verdade.
Definida por Aristóteles, em Ethica Nicomachea I.7, como uma atividade da alma de
acordo com a virtude perfeita, a felicidade é a finalidade do homem e o mais alto bem o qual
ele pode almejar em sua vida. Sendo a felicidade o bem no qual a substância humana se atualiza
plenamente, é necessário à compreensão deste conceito ter clara a definição dos elementos
constitutivos da estrutura do ser do homem, os quais, quando ativos na excelência de sua
atividade mais elevada, permitem ao ser humano aperfeiçoar plenamente seu ser. Na Ethica
Nicomachea, Aristóteles apresenta as características que definem o homem, distinguindo-o dos
outros seres vivos pela capacidade de ele viver uma vida ativa com a parte da alma que possui
o princípio racional, o λόγος. No tratado De Anima, é possível encontrar a análise
pormenorizada da alma humana na descrição do intelecto, a função anímica que define o ser
humano, e no modo como, a partir desta função, o homem pode adquirir as capacidades e
hábitos intelectuais que o permitem exercer a contemplação da verdade pela atividade de uma
ciência perfeita segundo a virtude da sabedoria, σοφία.
Após o estudo da função intelectual da alma humana e do modo em que ela se atualiza,
retorna-se ao tema da felicidade para, enfim, se apresentar uma compreensão mais completa do
que ela seja: uma atividade da alma, na qual a função intelectual humana, ao atualizar-se através
da atividade de contemplação da verdade pela ciência perfeita segundo a virtude da sabedoria,
alcança a plenitude de seu ser.
Palavras-chave: felicidade, intelecto, alma, sabedoria.
Abstract

TENORIO, Pedro Fonseca. Vida intelectual e Felicidade (εὐδαιμονία). Rio de Janeiro, 2018.
Tese (Doutorado em Filosofia) – Programa de Pós-Graduação em Filosofia, Universidade
Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2018.

This thesis aims at making clear the concept of happiness, εὐδαιμονία, as approached in
Ethica Nicomachea, by means of a deeper analysis of the constitutive elements of the human
soul, focusing specially on the description of the intellectual function, νοῦς, on its essence and
on the activities through which it actualizes itself, as described in De Anima. This analysis will
contribute to the overall study with a more complete understanding of what happiness is in the
sense of being a complete, full and perfect actualization of human’s nature in the activity of
contemplating the truth.
Defined by Aristotle, in Ethica Nicomachea I.7, as an activity of the soul according to
the perfect virtue, happiness is man’s final purpose and the higher good he can desire in life.
Being happiness the good in which man’s substance fully actualizes itself, it is necessary, in
order to understand this concept, to clarify what the constitutive elements of the structure of
man’s being are. These elements, when they are active in their most elevated activity, in the
execellence, allow man to accomplish his being. In Ethica Nicomachea, Aristotle presentes the
caracteristics which define man, distinguishing him from other living-beings thanks to his
capacity of living an active life with that part of the soul which has the rational principle, λόγος.
In the treatise De Anima, one may find a more thorough analysis of the human soul by the
describing the intellect (the animic function wich define human-being) and the way man,
relying on this very function, can acquire the capacities and the intellectual habities which allow
him to contemplate the truth by the activity of the perfect science according to the perfect virtue
of wisdom, σοφία.
After the study of the intellectual function of the human soul and the way it actualizes
itself, the topic of happiness is recovered in order to offer a more complete understanding of
what it is be explained: an activity of the soul in which the human intellectual funtion, when it
actualizes itself through the activity of contemplating the thruth by the most perfect science
according to the virtude of wisdom, reaches the plenitude of its being.
Keywords: happiness, intellect, soul, wisdom.
Sumário

1 Introdução ........................................................................................................................... 10
1.1 Introdução geral à questão e à pesquisa ............................................................................. 10
1.2 Desenvolvimento da apresentação da questão principal ................................................... 15
da pesquisa e de algumas dificuldades preliminares
1.3 A ordem da realidade e a ordenação das ciências ............................................................. 21
1.4 Esboço dos primeiros passos da investigação ................................................................... 24
1.5 A primeira definição de alma ............................................................................................ 26
1.5.1 Breve introdução ao livro De Anima II.1 ........................................................... 26
1.5.2 Os dois sentidos de alma ..................................................................................... 28
1.5.3 A finalidade do ser vivo e a sua função .............................................................. 30
1.6 Ethica Nicomachea – a vida humana ................................................................................ 32

2 Capítulo 1: A vida humana como vida intelectual ........................................................... 34


2.1 As possíveis atividades humanas ....................................................................................... 34
2.2 O argumento do ἔργον ....................................................................................................... 38
2.3 A função do homem e a vida humana ............................................................................... 42
2.4 De Anima – a definição de alma ........................................................................................ 45
2.4.1 A definição da alma intelectiva .......................................................................... 48
2.4.2 A função intelectiva ............................................................................................ 49
2.5 Metafísica Α – a sabedoria (σοφία) .................................................................................... 52
2.5.1 A σοφία em Metafísica Α.1 e 2 e o início da vida humana ................................. 54
2.6 As capacidades dianoéticas ............................................................................................... 59

3 Capítulo II: A estrutura finalística da vida humana ....................................................... 67


3.1 O melhor dos bens como finalidade na Ethica Nicomachea ............................................. 67
3.2 A necessidade segundo uma hipótese ................................................................................ 70
3.3 A organização do Tratado da Ethica Nicomachea ............................................................ 83
3.4 A Polêmica entorno da noção do bem último .................................................................... 87
3.4.1 A noção de final (τέλειον) e de autossuficiência (αὐτάρκεια),
e os tipos de bens ......................................................................................................... 92
3.4.2 Dois pontos ignorados pelos comentadores que fazem
evanescer a questão ...................................................................................................... 96
3.5 A noção de σοφία em Ethica Nicomachea ...................................................................... 100

4 Capítulo III: a função intelectual da alma: o intelecto, νοῦς ........................................ 114


4.1 Discernimento: segundo a sensação e o intelecto ............................................................ 118
4.1.1 De Anima III.2 e a noção de distinção (κρίσις) ................................................ 122
4.1.1.1 κρίνειν a partir da apreensão da forma e do
conhecimento do seu contrário ...................................................................... 124
4.1.1.2 κρίνειν a partir do meio-termo entre os contrários ............................. 126
4.1.1.3 κρίνειν a partir do sentido como λόγος ............................................... 129
4.2 Pensamento Discursivo, διάνοια, e pensamento, ὑπόληψις ............................................. 141
4.3 De Anima III.4-6: o νοῦς: sua natureza e atividade ......................................................... 144
4.3.1 1ª Parte: o νοῦς ele mesmo ............................................................................... 149
4.3.1.1 De Anima III.4: o νοῦς como intelecto em potência .......................... 149
4.3.1.1.1 Duas dificuldades iniciais ................................................... 149
4.3.1.1.2 O que deve ser investigado ................................................. 153
4.3.1.1.3 A qualidade de ser impassível, ἀπαθές ................................ 156
4.3.1.1.4 A qualidade de ser puro, não-misturado, ἀμιγῆς ................ 159
4.3.1.1.5 O intelecto não é misturado ao corpo e não
possui um órgão corpóreo .................................................................. 162
4.3.1.1.6 A diferença de impassibilidade do intelecto
em comparação com a percepção ...................................................... 165
4.3.1.2 De Anima III.4: aquisição do hábito intelectual ................................. 166
4.3.1.2.1 Os graus da potência intelectual .......................................... 167
4.3.1.3 O intelecto é capaz de pensar a si mesmo .......................................... 170
4.3.1.4 A potência ou o hábito, ἕξις, intelectual ............................................ 174
4.3.1.5 De Anima III.4, 429b 10-22: o objeto do intelecto ............................ 175
4.3.1.5.1 Os diferentes tipos de ente .................................................. 176
4.3.1.5.2 As distinções entre o ente e a essência ................................ 178
4.3.1.5.3 Os níveis de atividade do intelecto ...................................... 186
4.3.1.5.4 Um comentário à possível relação entre
ἐπαγωγή e νόησις e o princípio das ciências ...................................... 188
4.3.1.6 O intelecto agente ou o νοῦς ποιητικός .............................................. 193
4.3.2 2ª Parte: De Anima III.6: duas atividades do νοῦς ............................................ 197
4.3.2.1 Os modos de ser verdadeiro e falso do intelecto
apreensão, composição e separação .............................................................. 200
4.3.2.2 διαίρεσις, separação, e unidade do intelecto ..................................... 205
4.3.2.3 Os tipos de indivisíveis apreendidos pelo intelecto ........................... 209
4.3.3 O intelecto e as outras atividades intelectuais .................................................. 211

5 Conclusão: Ethica Nicomachea, De Anima e a integração


da filosofia de Aristóteles .................................................................................................... 218
5.1 A integração da filosofia aristotélica ............................................................................... 220

6 Referências ........................................................................................................................ 225


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1 Introdução

1.1 Introdução geral à questão e à pesquisa

O texto que se segue é a introdução ao estudo que pretendo realizar como tese de
doutorado, na qual pretendo aprofundar as questões que trabalhei durante o meu mestrado, cujo
objetivo era basicamente descobrir no que consistia a εὐδαιμονία segundo a definição
apresentada por Aristóteles em Ethica Nicomachea I.7, passagem 1098a 16-18, de uma
atividade da alma de acordo com a virtude perfeita. Na dissertação, expus os traços, as
habilidades e as capacidades humanas que interessavam à ética, em sua ordenação à realização
da felicidade. O trabalho concentrou-se sobretudo em esclarecer o modo em que as capacidades
intelectuais são adquiridas e em que condições elas podem ser atualizadas para que seja possível
ao homem alcançar a sua finalidade. No entanto, ao final do trabalho, percebi que descrever o
modo como as potências eram adquiridas e se atualizavam não era suficiente para responder à
pergunta: como a atividade de um capacidade adquirida poderia levar o homem à perfeição de
sua forma? Como a atividade virtuosa de um hábito intelectual pode ser o meio pelo qual a
natureza humana virá à sua plena atualidade? Se um hábito ou uma capacidade adquirida
pressupõem o exercício ou o aprendizado para a sua aquisição, que capacidade anterior seria
esta que permite ao homem adquirí-los?
Com a atenção convergida à descrição de elementos particulares à ética, o trabalho
restringiu-se a um aspecto específico do estudo da vida humana e acabou por não tratar dos
princípios do ser humano que a esta vida dão suporte e possibilitam que o homem se torne capaz
de alcançar a felicidade. Para que isto fosse realizado e aquelas perguntas fossem respondidas,
seria necessário retroceder a uma investigação mais fundamental que explorasse as
caracterísitcas de ser que permitem que a vida humana seja desenvolvida plenamente tal qual
fora exposta na ética, isto é, como uma vida de contemplação da verdade. Isto significa dizer
que a amplitude de estudo deveria ser de tal ordem que abarcasse as bases sobre as quais
estavam apoiados o ser do objeto de estudo da ética, o homem, permitindo o descobrimento dos
fundamentos que antes não estavam expostos, mas somente pressupostos, no estudo sobre a
πρᾶξις humana. Aristóteles realizou em parte estes estudos já na Ethica Nicomachea, mas os
realizou de forma incompleta e com um tratamento vago dos temas relativos à alma e à
aquisição de hábitos intelectuais. Evidentemente, o foco de Aristóteles era antes o de estudar o
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modo de agir humano, a sua prática, e não descrever, segundo uma perpectiva metafísica, a
estrutura anímica que permitia ao homem agir e alcançar a felicidade.
O estudo do que é a vida humana completa e o meio para se descobrir de que forma
pode o ser do homem se desenvolver plenamente deve, no entanto, se iniciar pela ética, porque,
sendo ela o estudo dedicado ao âmbito próprio de desenvolvimento da vida humana, serve como
ponto inicial natural de uma pesquisa referente à vida humana e, ao apresentar o panorama geral
das possibilidades de ação e realização do homem, se coloca como estudo que fornece o
parâmentro da atividade específica de atualização plena de qualquer princípio ontológico da
substância humana. A finalidade última do homem é para ele, ao mesmo tempo, o seu princípio
organizador vital, em direção ao qual sua vida se estrutura, tanto segundo a realidade da
existência natural e prática quanto segundo seus traços ontológicos fundamentais e, para aquele
que sobre a vida humana irá se debruçar em uma investigação filosófica, ela é como o cume e
conclusão da ética, o ponto de referência do qual se deve partir e ao qual se deve retornar numa
pesquisa completa sobre a vida humana. A própria ética e seus objetos possuem, além da
importância instrínsica que o seu estudo apresenta, o papel de vestíbulo ao estudo dos aspectos
mais gerais e originários relativos ao homem, dos elementos imateriais e essênciais de seu ser.
Esta particular proposta metodológica pode ser validada pelos dois seguintes aspectos.
A finalidade última do homem pode ser identificada como ponto de partida da investigação
ontológica do ser humano na medida em que o estudo da filosofia prática tem como escopo o
modo atualizado e concreto deste ente na realização inteira de suas possibilidades. Os princípios
ontológicos fundamentais deste ente são definidos, por sua vez, somente em uma ciência mais
basal que se volta para os principios da ética, segundo a ordem da realidade e da natureza. Estes
princípios ontológicos não podem ser acessados imediatamente, mas apenas através de um
trabalho reflexivo a partir daquilo que é mais acessível e evidente para nós homens. O estudo
do homem em sua atualização plena, alcançada na realização de sua finalidade última tal qual
descrita pela ética, é um dos possíveis intróitos à pesquisa ontológica do ser do homem.
O segundo aspecto revela que a finalidade humana, tomada como o objetivo no qual
virá a se completar a vida deste ente, é o ponto de retorno e conclusão verificativa da pesquisa
ontológica do ser do homem. Nela é que a ciência prática da ética se torna como que o ponto
de chegada do retorno que o estudo do ser do homem efetua em direção ao âmbito da realidade
no qual se concretiza o objeto de sua ciência. O primeiro movimento ascencional que levou à
descoberta dos princípios primeiros que ordenam a vida humana deve retornar à realidade
concreta para reencontrar os modos de atualização possíveis nos quais o ser do homem pode
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atualmente se realizar no âmbito mais prático e concreto da ética, verificando assim a


procedência de cada uma das definições encontradas na pesquisa ontológica.
Portanto, ao se pretender esclarecer em uma pesquisa as principais questões da ética, é
preciso que se tenha como ponto de referência a finalidade humana, ou seja, a felicidade
entendida como a atividade bem realizada da contemplação da verdade. Ainda que não se
submetam todos os passos da investigação ao seu jugo, esta noção nos serve como um farol
iluminador, indicando o caminho de chegada ao conhecimento da verdade da questão.
Dessa maneira, a motivação da pesquisa, partindo de um questionamento bem específico
sobre a atividade de realização humana perfeita, colocou-me, para a descoberta de sua resposta,
diante de um caminho muito mais amplo do que o estudo particular da ética, estendendo-se até
a definição da natureza humana e das suas características mais específicas. A busca pela
definição do que fosse a natureza do ser humano não foi simplesmente um retroceder
automático a um âmbito de estudo mais vasto que abarcasse sobre seus princípios também a
realidade da ação humana, numa colheita de causas que fossem aparecendo conforme avançasse
a investigação. As dificuldades de compreensão do que seja o processo que conduz o homem à
sua perfeição e as dúvidas sobre a relação entre a natureza humana e as atividades intelectuais
que a realizam plenamente deveriam ser resumidas em uma única questão de maneira a
organizar a pesquisa. A questão fundamental foi formulada da seguinte formma: sabendo que
a εὐδαιμονία fora identificada como a atividade bem realizada da alma segundo a virtude da
sabedoria, σοφία, a perfeição da atividade intelectual humana, alcançada por um dedicado
processo de aprendizado, cuja atualização configura o ápice da realização completa da essência
do ser humano, como algo que não pertence ao homem desde sua geração pode ser o caminho
pelo qual ele terá sua essência plenamente realizada? A dificuldade está, portanto, em se
compreender de que maneira a capacidade adquirida do intelecto, νοῦς, e da ciência, ἐπιστήμη,
isto é, os hábitos intelectuais, podem dar origem à perfeita atualização da essência humana. A
questão pertence, por um lado, ao ponto mais relevante da ética e, por outro lado, à investigação
mais elementar da natureza humana. Ela faz a ligação entre investigação da plena realização
concreta da vida humana e do estudo dos princípios mais básicos do ser do homem. Ela é como
o eixo monumental de uma montanha, cortando-a pelo centro, desde a cumeada até seu sopé,
no qual ela se ergue e se sustenta.
Assim sendo, o que pretendo desenvolver nesta tese de doutorado é a identificação das
causas da atividade da perfeita virtude da contemplação da verdade através do instrumental
conceitual que fora desenvolvido por Aristóteles principalmente no tratado da Ethica
Nicomachea e de De Anima, juntamente com o auxílio de outras obras aristotélicas, tais como
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os Analíticos, Tópicos e Metafísica, abordando o tema pela perspectiva de análise ontológica e


estrututal da vida humana. Em De Anima, fora empreendida uma investigação dos elementos
estruturais mais básicos do ser dos seres vivos em torno do conceito de alma, desenvolvendo
um verdadeiro estudo da substância humana. Estes conceitos, hauridos por uma ciência, foram
subsumidos na Ethica Nicomachea como descobertas já feitas, como conhecimentos já
adquiridos e prontos para serem aproveitados em uma investigação subsequente que deles
fizesse uso para que se pudesse avançar no conhecimento da realidade. A adequada apreensão
da verdade destes conceitos básicos à investigação da ciência da ação humana é a exigência que
se faz a uma compreensão mais completa e aprofundada da ética e de como o homem realiza a
sua finalidade última.
Para a realização da investigação e a consequente resposta àquela pergunta fundamental,
proponho a abordagem de três etapas em três capítulos: 1) a vida humana; 2) a estrutura
finalística da vida humana e a sua realização na finalidade mais desejável para o homem: a
atividade segundo a virtude da sabedoria; 3) a definição do intelecto como capacidade da alma
e o pensamento discursivo.
Na primeira etapa, tratarei de expor o que seja a vida humana e como ela pode vir a se
realizar plenamente, qual é o seu início, quais são as atividades que o homem pode e deve
praticar enquanto ser humano e como estas atividades se articulam em torno do intelecto. Para
isso, tomarei a Ethica Nicomachea como fonte da exposição de todas as possiblidades de ação
humanas e como a vida do homem pode se realizar plenamente. Iniciarei o estudo tomando a
explicação de Aristóteles da primeira definição de εὐδαιμονία, felicidade, no livro I da Ethica
Nicomachea e as definições de capacidade intelectuais constante no livro VI, acrescentando,
quando necessário, a exposição do que seja a sabedoria, a ciência, a técnica e o intelecto, na
Metafísica e nos Analíticos. Este estudo nos colocará na condição de podermos analisar a
primeira definição de alma de De Anima II.1, para compreender como a vida humana está
ordenada pelas funções que a alma desempenha. A função intelectual é a que permite que as
atividades de conhecimento e ação pratica possam ocorrer, mas ocorrem segundo uma
finalidade última e se estruturam em busca do fim mais desejável para o homem. Isto nos leva
ao segundo tema.
Toda a vida humana se estrutura em vista do fim último, mais desejável e completo. As
ações humanas são variadas e são realizadas com o intuito de alcançar um fim específico. Mas
a vida humana compreende uma série de atividades que se ordenam e se convergem para que o
último fim da cadeia de fins possíveis possa ser realizado. Podemos ver, em cada uma das ações,
um raciocínio e uma decisão que estabelecem o modo correto de se agir numa dada situação
14

com uma finalidade em vista. A sabedoria e a contemplaçã da verdade, para a vida humana,
são este fim, que necessitam da realização de outras atividades para que ela se realize. A virtude
da sabedoria vem definida em Ethica Nicomachea VI como perfeição da realização de duas
capacidades intelectuais, do intelecto, νοῦς, e da ciência, ἐπιστήμη, e em Ethica Nicomachea
X.7-8, é exposto o que seja atividade da qual ela é virtude: a contemplação da verdade. Para a
sua compreensão é preciso saber corretamente o que seja o νοῦς e como ele, ao entrar em
atividade junto com a atividade da ciência de maneira perfeita permite que o homem alcance o
seu fim. Esta questão, que é a questão fundamental da pesquisa, nos leva ao terceiro tema do
terceiro capítulo.
Na última etapa da investigação, serão estudados os trechos de De Anima III.4-6, nos
quais as propriedades da natureza da alma intelectual são definidas bem como o modo em que
ela entra em atividade. Com isso, poderá ser compreendido como as capacidades ou hábitos
intelectuais são originados e de que forma eles se sustentam no intelecto ao mesmo tempo em
que são o seu aperfeiçoamento em direção à finalidade última do homem. O homem é definido
pelo intelecto, uma parte da alma pela qual ele conhece e pensa. A primeira atividade que o
intelecto realiza é a apreensão de formas indivisíveis, com as quais, em seguida, ele pode
compor em proposições juízos verdadeiros ou falsos sobre algo da realidade. A partir destes
juízos, são desenvolvidas no intelecto as capacidades, os hábitos, da ciência e da ténica, os
quais, caso sejam realizados de maneira perfeita, alcançam a virtude da sabedoria e da
prudência. Cada uma destas capacidades está voltada para um âmbito da realidade, a ciência
para aquilo que não pode ser de outra maneira, conhecendo-os e contemplando-os, e a técnica
para o que pode sempre se alterar, produzindo-os e interagindo com eles. Portanto, esta parte
da alma se desenvolve em intelecto prático, voltado para os objetos contingentes envolvidos na
atividade prática humana, e em intelecto contemplativo, cuja função é o conhecimentos dos
entes reais. O intelecto contemplativo, no entanto, só alcança a sua plenitude, levando o homem
a realizar-se plenamente e à felicidade, ao conhecer o que há de mais elevado e nobre na
realidade, conhecendo com a demonstração científica coroada pelos primeiros princípios, de
maneira virtuosa, ou seja, na sabedoria. A atividade da sabedoria é a atividade contemplativa,
na qual o intelecto está ativo em perfeição.
Os detalhes do desenvolvimento das atividades do intelecto são expostos apenas
parcialmente em Ethica Nicomachea, enquanto que em De Anima se pode compreender este
assunto com muito mais detalhes.
Para a presente pesquisa, tendo em vista a dimensão norteadora da finalidade humana
como contemplação da verdade, a atenção estará voltada principalmente para a potência
15

humana de conhecer os princípios da realidade, seja no nível de um âmbito específico de


objetos, seja no nível de conhecimento dos primeiros princípios, a qual, como capacidade de
realização do fim último do homem, ordena todas as demais. Aristóteles em Sobre a parte dos
Animais I.1, 639b 30 – 640a 6, nos diz:

Mas o modo de raciocínio e da necessidade são diferentes na ciência


natural das ciências teóricas, das quais falamos em outro lugar. Pois, nas
últimas, o ponto de partida é o que é; na primeira, é aquilo que será. Pois é
aquilo que será – saúde, digamos, ou um homem – que, devido a seu ser de
tal e tal características, necessita da pre-existência ou da produção prévia
deste ou daqule antecedente; e não este ou aquele antecedente que, por existir
ou ter sido gerado, faz necessário que a saúde ou um homem sejam ou venham
a ser na existência.1

Esta afirmação vem reforçar tanto a adequação do método que pretendo seguir na
pesquisa quanto a ordenação final do estudo. Somente uma investigação que considere o
homem como um todo, na completude de seu ser poderá alcançar a verdade da questão exposta.

1.2 Desenvolvimento da apresentação da questão principal da pesquisa e de


algumas dificuldades preliminares

O exercício bem realizado da virtude da σοφία, a sabedoria, a contemplação da verdade,


foi o reconhecido por Aristóteles como a finalidade última do homem ao final da Ethica
Nicomachea, mais precisamente no livro X, capítulo 7, como a conclusão de toda a investigação
do tratado. Junto a esta conclusão foram confirmados em seguida uma série de caractectísticas
e de pré-requisitos preenchidos pelo exercício virtuoso da σοφία e pela vida contemplativa, que
coadunam o reconhecimento de serem os dois elementos componentes da felicidade.
O reconhecimento feito por Aristóteles de que a vida contemplativa é a felicidade se dá
por conta de duas caracterísitcas. Primeiro, porque a atividade contemplativa é a melhor
atividade de todas, uma vez que o intelecto2, o νοῦς, é a melhor coisa que existe no ser humano
e é aquilo que tem como objeto os melhores dentre os objetos cognoscíveis. Em segundo lugar,
porque a atividade contemplativa é a mais contínua de todas as atividades humanas. Some-se a

1
ARISTÓTELES; On the Parts of Animals, traduzido por William Ogle.
2
O texto grego apresenta o termo νοῦς como aquilo que de melhor existe em nós. Este é um ponto muito importante
na argumentação aristotélica que pretendo discutir um pouco mais à frente, pois, de acordo com a argumentação
de Ethica Nicomachea I.6, 1098a 3 e Metafísica Θ. 2-5, é o λόγος o elemento que nos dirige e o qual é a causa da
possiblidade de o homem se voltar os objetos cognoscíveis. É impotante precisarmos este ligeira mudança dos
termos utilizados.
16

isso a auto-suficiência da atividade contemplativa e o fato de parecer ser ela a única atividade
amada por si mesma, ou seja, a única que é querida por si mesma sem que o seja em função de
nenhuma outra coisa além dela mesma.
A atividade da contemplação da verdade é algo exercido conforme a virtude, com a mais
alta delas, e por isso deverá ser praticada por aquilo que de melhor existe no ser humano.
Aristóteles não define neste passo, com toda a certeza, que elemento seja este que julgamos ser
o nosso dirigente e guia natural, tornando a seu cargo todas as coisas nobres e divinas3, cuja
atividade perfeitamente virtuosa compõe a felicidade, se ele é o νοῦς ou algum outro elemento,
e se este elemento é divino ou se é o que temos de mais divino em nós. Qualquer que seja a
resposta a esta dúvida, qual seja a essência deste elemento, é certo que a sua atividade, pela
mais perfeita virtude, é a perfeita felicidade.
Nos capítulos do livro VI da Ethica Nicomachea, Aristóteles defininiu as capacidades
dianoéticas, ou seja, as cinco capacidades intelectuais possíveis de serem adquiridas pelo
homem ao longo de sua vida. As cinco virtudes se referem à parte da alma que tem o princípio
racional segundo o sentido de possuí-lo e de exercer o pensamento, como foi apresentado no
livro I, capítulo 7, no momento em que se procurava o tipo de vida própria ao ser humano,
identificada como sendo “a vida ativa do elemento que tem um princípio racional; desta, uma
parte tem tal princípio no sentido de ser-lhe obediente, e a outra no sentido de possuí-lo e de
exercer o pensamento.”4 (tradução nossa). Pela escolha deliberada, o homem inicia o exercício
de uma série de ações correspondentes a uma capacidade intelectual, ainda que realizadas de
maneira tosca e sem o devido domínio da ação no início do aprendizado, que, com o tempo,
farão com que tal capacidade passe a pertencer ao próprio homem que as praticou como uma
qualidade, pela qual poder-se-à dizer ser tal homem um possuidor de tal e tal virtude.
São as virtudes éticas, por este ponto, muito distintas das virtudes dianoéticas, pois
dizem respeito à parte racional da alma pela obediência que prestam ao princípio racional. As
virtudes éticas são o modo virtuoso do homem domar as paixões de sua alma, fazendo com que
os impulsos naturais sejam submetidos à sua razão por obediência ao que lhe é superior. O que
irá compor a virtude prática já existe no homem por natureza, basta-lhe domá-las pelas rédeas
da vontade e da razão, enquanto que as virtudes racionais precisam ser adquiridas por grande
esforço e exercício sobre objetos que não pertencem ao homem, mas os quais podem ser

3
Cf. Ethica Nicomachea X.7, 1177a 13-17.
4
ARISTÓTELES; Ethica Nicomachea I.3, 1098a 3-7: λείπεται δὴ πρακτική τις τοῦ λόγον ἔχοντος· τούτου δὲ τὸ μὲν
ὡς ἐπιπειθὲς λόγῳ, τὸ δ' ὡς ἔχον καὶ διανοούμενον.
17

apreendidos pela capacidade básica do homem de conhecer as formas de cada coisa, nas quais
se fundam as capacidades racionais5.
Uma primeira dificuldade que, para que tenhamos clareza quanto a natureza do homem
e de sua felicidade, precisamos que sua dissolição seja produzida, se levanta quanto aquilo que
Aristóteles considera ser o princípio racional distintivo do ser humano. Tal dificuldade parte do
uso de termos distintos, certa volta usa-se o termo λόγος, outra vez, usa-se o termo νοῦς, em
certos trechos importantíssimos da argumentação sobre a natureza humana e sua atualização no
modo próprio de vida do homem em diferentes partes da obra de Aristóteles. O uso dos termos
e a necessidade em identificá-los corretamente não é um mero preciosismo filológico, cuja
importância, se não for regida por uma vontade de compreensão verdadeira do texto, acrescida
do devido equilíbrio na dosagem de exigência de precisão e guiada pelo visão do problema em
questão, degringola em uma pesquisa estéril e sem relevância, mas implica sobremaneira a
descoberta dos traços ontológicos fundamentais do homem, de sua vida e, portanto, de sua
felicidade, todos requeridos para que saibamos a verdade do caso da vida feliz.
Na passagem do livro I da Ethica Nicomachea citada acima, o princípio racional é
textualmente identificado pelo termo grego λόγος. Se também levarmos em consideração as
explicações presentes no livro Metafísica Θ, capítulo 2, o termo λόγος indica uma capacidade
natural ao ser humano pela qual são feitas, em um primeiro momento, as apreensões das formas
essenciais de cada objeto individual, servindo, esta capacidade básica e distintiva, de
fundamento para as demais capacidades racionais da alma6 e alçando o homem a um ser vivo
diferente dos demais. O λόγος, natural ao ser humano desde a sua geração, se desenvolve nas
outras capacidades ou virtudes intelectuais pelo tipo de essência fundante de uma determinada
ciência de um certo tipo de objeto (como nos mostra a passgem de Metafísica Θ.2) ou se
desenvolve nas cinco virtudes dianoéticas pelo condição ontológica do tipo de ente para o qual
se volta tal virtude, uns são entes necessários outros são entes contingentes (como nos mostra
a Ethica Nicomachea VI).
Por outro lado, no livro X, capítulo 7, da Ethica Nicomachea, Aristóteles se utiliza de
outro termo para indicar o princípio racional presente na parte racional da alma. O elemento
presente na alma humana, cuja atividade realizada da melhor maneira possível segundo a
virtude que lhe é própria configura a felicidade, é o νοῦς, e não mais o λόγος, como fora levado
adiante nos livros anteriores da ética e na referida passagem de Metafísica Θ.2. Além disso, o
νοῦς é identificado como sendo uma das cinco virtudes dianoéticas do livro VI da ética além de

5
ARISTÓTELES; Metafísica Θ.2, 1046b 6-10.
6
ARISTÓTELES; Metafísca Θ. 2 1046b 4 -10.
18

compor junto com a ἐπιστήμη a mais alta das virtudes, a σοφία, a capaz da contemplação da
verdade. Temos, neste impasse, a possibilidade de existirem dois caminhos que não se
encontram, cada um deles indo em diferentes direções: um considera o νοῦς como um elemento
presente na alma humana desde a geração de um indivíduo; e o outro considera o νοῦς como
uma capacidade adquirida depois de várias etapas de aprendizado, ensino e prática intelectual,
cuja atualização só é alcançada mediante a decisão deliberada. De acordo com a passagem do
livro X da ética 1177a 13 – 17, o νοῦς é a capacidade racional mais básica da alma, o elemento
racional pelo qual o homem se distingue dos outros animais, e, se tomarmos as dúvidas
levantadas por Aristóteles, o elemento cujo valor de nobreza mais elevado se deve pela nobreza
dos seus objetos, os melhores dentre os cognoscíveis. Este último posicionamento referido não
se aproxima totalmente das características pertencentes ao νοῦς da maneira como foram
apresentadas no capítulo VI da Ehtica Nicomachea, nas passagens de 1140b 31 a 1141a 8, como
uma capacidade da alma cuja potência é a apreensão dos primeiros princípios e cuja atividade
não é tão completa quanto a da virtude da σοφία. Ainda que as duas se voltem para os primeiros
princípios da realidade, somente à σοφία pertence a qualidade essencial da capacidade de
demonstrativa do conhecimento adquirido, tal qual a virtude da ἐπιστήμη própria do
conhecimento científico.
A virtude dianoética da σοφία é aquela que reúne a qualidade intelectual do νοῦς de
apreensão dos primeiros princípios da realidade e a capacidade da ἐπιστήμη de dedução e
demonstração a partir dos princípios descobertos, seja de novos atributos derivados dos
princípios dos objetos investigados, seja da demonstração de uma verdade descoberta. Estas
três virtudes e mais as duas outras da φρόνησις e da τέχνη não estam presentes na alma humana
desde a geração de um indivíduo, mas somente pelo processo de aquisição através do exercício
repetido de uma atividade ou do aprendizado, feito pelo ensino ou por conta própria, as virtudes
dianoéticas passam a ser qualidades do homem. A aquisição de uma potência segue o mesmo
princípio de geração ontológica do que não existe, pelo qual uma atualidade existente e real
deve preceder à potência correspondente, ainda que a atividade geradora seja realizada de
maneira imperfeita e incompleta de início, para que as virtudes sejam conquistadas.
O primeiro passo de Aristóteles para a conclusão do livro X foi dado no argumento do
ἔργον no livro I, no qual evidenciou a diferença essencial entre o ser humano e os demais
animais pela presença do princípio racional na parte racional da alma do homem, cujas
faculdades sensitivas o diferenciavam como animal dos vegetais. Ter este princípio racional
tem dois significados: um deles, pelo qual dizemos que o tem por a ele obedeçermos e o termos
como nosso senhor; o outro exprime a posse no sentido forte do termo de possuí-lo e de tê-lo,
19

tornando-nos senhor do restante da alma. A finalidade última do homem deve ser a atividade
virtuosa deste princípio racional da alma, que o distingue como espécie única, e que, uma vez
em atividade, irá configurar uma vida de racionalidade, na qual, em sentido mais fraco, uma
parte das atividades se submetem à razão e desenvolve as virtudes éticas e, em sentido forte,
ela o possui e adquire as cinco virtudes dianoéticas. Dentre as virtudes que Aristóteles nos
apresenta no livro VI da Ethica Nicomachea, a σοφία, a sabedoria, em atividade é aquela que
plenamente torna o homem feliz, pois, segundo a definição de εὐδαιμονία, felicidade, como a
atividade da alma de acordo com a virtude perfeita é a sua atividade que configura a felicidade.
Da pergunta inicial que Aristóteles se faz quanto a existência de um fim último ao ser
humano que organizaria toda a sua vida, desejado por si mesmo e nunca em razão de outro fim,
até a conclusão de que a felicidade humana é a atualização perfeita da σοφία, um grande arco
de realidade é aberto por sobre o qual esta conclusão é alcançada. Mas sob a argumentação de
toda a Ethica Nicomachea que fez descobrir a finalidade última do homem jaz, como solo
preparado, muito da filosofia aristotélica que não foi explicitamente tratada durante a
investigação da ética. Uma delas, é a noção de que o princípio racional faz do homem um ser
distinto dos outros seres vivos, que se distinguem dos outros entes materiais por possuirem
alma. Este elemento distintivo humano foi apresentado no argumento do ἔργον de maneira
rápida sem que a questão fosse desenvolvida em pormenores por pertencer à discussões que
servem de base à ética, como, por exemplo, o tratado sobre a alma, o De Anima. Até mesmo o
método de definição da finalidade humana feito pela identificação da diferença específica a
partir do gênero dos seres vivos através de uma escala cujo início é a vida vegetativa comum
às plantas, depois a vida de percepção própria aos animais até o ponto de uma vida intelectual
da qual somente o homem dentre os seres vivos participa, se utiliza dos conceitos referentes às
partes e funções da alma que somente se encontram minuciosamente discutidos neste mesmo
tratado sobre a alma. Mas especialmente a definição de felicidade é composta da noção de alma,
cuja atividade, especificamente a da σοφία, praticada de maneira perfeita é a finalidade do
homem. Portanto, por conta de vários trechos da argumentação aristotélica na ética remeterem
às investigações referentes à alma, seria necessário que fossemos colher em De Anima aquilo
que nos é exigido para a compreensão completa da Ethica Nicomachea. Recorrer aos trabalhos
sobre a alma não é apenas um recurso retórico para o sucesso da comunicação, mas segue a
exigência própria da pergunta sobre o objeto determinado da filosofia prática da ética.
No entanto, uma série de outras questões mais complexas e fundamentais poderá
motivar ainda a nossa ida às investigações sobre a alma, para que, após esclarecimentos
devidos, possamos retornar à ética. Sobretudo o tratado De Anima, em toda a sua investigação,
20

poderá nos dizer o modo preciso com que a finalidade do homem, a atividade perfeita da virtude
da σοφία, está estruturada, desde a essência do ser humano pelo seu τὸ τί ἦν εἶναι7
(compreendido aqui segundo o sentido de essência da substância, possível de ser traduzido, ao
pé da letra, como o-que-era-ser). Será por este caminho que se poderá descobrir como a
atividade perfeita de uma capacidade adquirida pelo aprendizado e pelo ensino se configura
como a atualização da essência humana, daquilo que é o princípio do homem a ele concedido
desde a sua geração por seus progenitores e, ao mesmo tempo, a finalidade da sua vida.
Seguindo estas pistas da investigação, se poderá saber como, sendo a σοφία uma capacidade
humana de contemplação dos princípios da realidade, daquilo que é imaterial, e cujo exercício
contemplativo é o seu assemelhamento ao objeto contemplado, ou seja, a sua atividade é
exercida naquilo que é imaterial, pode ser a sua atividade bem realizada na virtude a perfeição
do homem, um ser material, sujeito à mudança, que pertence ao mundo físico, ao mundo
sublunar. Por este trajeto de indagação, se nos tornará claro a forma com que o homem alcança
a plenitude do seu ser ao tornar-se semelhante na contemplação àquilo que o transcende e o
principia como ente da realidade.
Esta pergunta fundamental abarca um amplo horizonte de questionamento e, por isso,
nos abre a possibilidade de percorrermos um grande universo investigativo que poderá nos
responder pelo caminho da pesquisa a uma série de questões cujas respostas são necessárias
para o verdadeiro conhecimento do que seja a felicidade humana segundo os estudos de
Aristóteles.
Outra dificuldade que deverá ser resolvida é a ordenação entre as partes da alma que,
por um lado, parecem ser estruturadas de maneira distinta da apresentada na ética, como, por
exemplo, a parte intelectiva em De Anima, ser reconhecida como νοῦς e não ser identificada
explicitamente em Ethica Nicomachea de forma alguma, e, por outro lado, o papel que as outras
partes da alma, a vegetativa e a sensitiva, desempenham para a realização da função da parte
intelectiva. O νοῦς, mesmo como princípio racional, como capacidade adquirida, ou como parte
da alma humana, necessita de imagens para poder exercer sua atividade intelectual. Portanto,
mesmo uma parte humana distintiva necessita das outras partes para realizar completamente a

7
Toda a discussão sobre esta expressão τὸ τί ἦν εἶναι é muito vasta e profunda. Se fosse eu aqui, neste trabalho,
esmiuçar toda a sua riqueza e dificuldade, me desviaria por demais do objeto da pesquisa, estendendo para além
do proposto o que pretendo dizer sobre a alma humana. Um comentário, no entanto, é necessário ser feito.
Considerando a variedade de possibilidade das traduções, que buscariam fazer com que, em língua vernácula, a
expressão grega fosse apreendida adequadamente, indico apenas que, conforme a tradução que apresentei, não
tenho muitas pretensões de dar o assunto como encerrado e definido. Me vali um termo que, neste trabalho, cabe
e responde melhor àquilo que já consegui descobrir durante a pesquisa. Ademais, o termo essência não comportaria
grandes controvérsias e, ao mesmo tempo, já está inserido na tradição de leitura, de comentários e de interpretações
da obra de Aristóteles, principalmente os livros Metafísica Ζ e De Anima.
21

essência de seu ser. Estas e mais outras questões só poderão ser respondidas apenas através de
uma pesquisa de De Anima.

1.3 A ordem da realidade e a ordenação das ciências

No livro Ε da Metafísica, Aristóteles faz a distinção entre as ciências logo após


apresentar aquela que seria a investigação do ente enquanto ente, ou seja, a filosofia primeira,
que se encarregaria de buscar as características que os seres apresentam ao serem abordados
enquanto seres. Quando se pode dizer que algo é, a metafísica poderá questionar quais são os
traços que permitem com que deste sujeito se diga que ele é. O âmbito no qual se dão estas
investigações é o mais alto dentre os supremos gêneros do ser, dentro do qual se especificam
os outros âmbitos a partir da configuração substancial de cada um. A essência de cada um dos
entes de um determinado gênero de ser é tomada como já existente e como o ponto inicial da
investigação, o qual servirá como uma premissa da qual se derivarão as características e
propriedades dos objetos investigados. Por uma passagem em Metafísica Ι.6, que nos diz que o
objeto constitui a medida de uma ciência e esta é por ele mensurada e não o contrário, pois
“toda a ciência é cognoscível, enquanto nem todo cognoscível é ciência”8 (tradução nossa),
vemos que é a partir dos objetos que se fundam as ciências que os estudam.
A distinção entre as ciências presente no livro Metafísica Ε começa com a avaliação do
gênero de ser que possui o princípio de movimento em si mesmo. A substância que pode
provocar ou sofrer uma alteração a partir de si mesmo deve necessariamente ser composta pela
forma e por um elemento que lhe confira a possibilidade para tal movimento, ou seja, este
princípio deve ser a matéria. A composição dos objetos do estudioso desta disciplina, a Física,
é, portanto, de substâncias cujas formas são não-separadas da matéria, das substâncias que
podem se alterar por conta do ser potencial da matéria, ainda que o foco do estudo seja de fato
na qualidade da forma, uma vez que é esta que conserva a essência do ser e a finalidade do ente
físico em seu devir. A física será uma ciência teórica, cujos objetos de estudo serão aqueles que
têm em si o princípio de mudança. As ciências prática ou produtiva também tratam dos seres
que possuem princípios de alteração, como a produção artística ou os modos de ação dos
indivíduos. Aristóteles firma a distinção entre elas e a física no fato de que são os objetos da
pesquisa da última que possuem a potência em si mesmos para alterarem-se, enquanto que nas

8
ARISTÓTELES; Metafísica 1057a 10-11.
22

outras duas, o princípio se encontra ou no agente que produz o produto artístico ou naquele que
pratica as ações, virtuosas ou viciosas. Uma frase resume e define a discussão, concebendo à
Física o estudo do gênero de ser que tem potência para se mover e da substância entendida
como a forma, prioritariamente considerada como inseparável da matéria. A matemática é uma
ciência que tem como objeto entes não separáveis da matéria, que, no entanto, são dela
abstraídos e estudados em seus aspectos formais. A filosofia primeira estuda apenas os entes
segundo seu aspecto formal, entes que não recorrem à matéria para ter a sua existência.
O estudo da alma se enquadra como uma parte específica dos estudos físicos. Os seres
vivos têm neles mesmos um princípio de movimento que os fazem agentes de alteração, com a
diferença de que neles a alteração ocorre pela vida que neles existe. O exemplo simples das
plantas que crescem não somente para uma direção, mas para vários lados e em direções
opostas, mostra que a vida não é uma simples mudança nas qualidades do ente, engendradas
pela interação de corpos simples, em cujo encontro a potência de cada um reage à potência do
outro. O modo específico, direcionado e ordenado a uma finalidade determinada de
desenvolvimento testemunha que há uma organização vital, cujo modo mais simples é o da
nutrição, do crescimento e do decaimento. Uma árvore não cresce ao mesmo tempo nas seis
direções básicas, para cima, para baixo, para a direita, para a esquerda, para frente e para trás.
A copa da árvore cresce para cima, as suas raízes para baixo, seu tronco se espessa e cresce
acompanhando a parte superior e a inferior do vegetal. Os entes físicos, como o fogo, tem a
potência ativa para provocar uma alteração em outro ente que tenha, por sua vez, um princípio
correspondente passivo, fazendo com que ele queime ou ganhe calor. A alteração ocorre
necessariamente, quando nada externo no ambiente exerça interferência e atrapalhe a interação
entre as potências. Nestes casos, o princípio da ação é a φύσις, natureza, enquanto que com os
seres vivos é a ψυχή, a alma, ou a própria vida, em seus diversos modos de existência, como
vegetal, animal ou humana.
A Física e qualquer outra ciência que se volte para as substâncias materiais conduzirão
seus estudos pela matéria-prima das percepções sensíveis que temos dos objetos materiais, das
quais deverão ser extraídos abstratamente os princípios e as causas das realidades concretas.
Este processo abstrativo, Aristóteles descreveu muito bem no início do tratado da Física,
fazendo-se referir á dificuldade que encontramos para termos conhecimento daquilo que é
cognoscível por natureza, mas ao qual nós temos acesso apenas de maneira refrataria, bem
distante e misturado a diversos outros aspectos da realidade. O método adequado a estes casos
é partir do que é mais complexo e derivado como efeito, mas que nos é mais apropriado à
percepção, até o que é simples e distinto por natureza, os princípios e as causas primeiras. Nossa
23

natureza humana apenas tem acesso ao que é cognoscível a nós e que, apenas com o esforço de
investigação, podemos chegar ao que é cognoscível por natureza. Ao longo de uma série de
impressões sensíveis semelhantes, conseguimos ter uma experiência de um aspecto específico
da realidade. Dando continuidade a estas experiências, podemos chegar ao ponto em que
finalmente somos capazes, através de uma intuição, de percebermos o que há de comum e
dominante naquilo que apenas era, para nós, um apanhado de sensações, de imagens e de dados
na memória, e sabermos quais são as causas e os princípios da realidade.
Nos Tópicos9, há a comparação entre dois modos de se proceder uma investigação
científica: por um lado, existe o método dedutivo ou demonstrativo, no qual se parte de causas
e princípios como premissas maiores de um silogismo e alcança-se os efeitos ou as conclusões
de uma demonstração. Este modo somente pode ser utilizado quando já são conhecidas as
primeiras premissas e as definições fundamentais, que servem como princípios da
demonstração. Quando apenas conhecemos os dados efetivos, decorrentes dos primeiros
princípios e concretizados na realidade material, devemos lançar mão da dialética, através da
qual várias opiniões sobre a realidade são confrontadas entre si para termos aquilo o que deste
confronto sobreviver como o mais pertinente e verossímil dentre o que foi confrontado. A
ascensão que se faz desta maneira, poderá depois caminhar em direção a outras demonstrações
posteriores, levando a novas descobertas.
No caso do estudo do tratado De Anima, Aristóteles ainda não conta com uma definição
precisa do que seja a alma. O tratado pode ser dividido em duas grandes partes: a primeira ocupa
todo o primeiro livro, utilizando-se do método dialético na discussão das teses de vários
filósofos predecessores a Aristóteles. A segunda parte compreende os dois livros seguidos, cujo
conteúdo é o raciocínio que o filósofo empreende tendo em mãos o que conseguiu aproveitar
do primeiro livro.
Uma segunda divisão poderia ainda ser feita, agora quanto ao conteúdo dos dois últimos
livros. Logo no primeiro capítulo, Aristóteles faz uma dedução da definição de alma, dedução
demonstrativa, a partir do que ele já tem assegurado teoricamente sobre a substância e os seus
atributos essenciais, principalmente com os binômios forma/matéria e ato/potência. A definição
de alma é assim a conclusão da demonstração que procede de premissas que ele conseguiu
estabelecer junto a estudos anteriores e à discussão presente no livro primeiro. No segundo
capítulo, Aristóteles tenta reiniciar a discussão e recomeça o raciocínio com o escopo na
definição de alma pelo modo adequado às discussões da física, ou seja, parte do que é mais

9
Cf. Aristóteles, Tópicos I.1, 100a 25- 100b 23.
24

evidente para nós homens, seguindo pela dissolução das dificuldades em direção às causas e
aos princípios dos seres vivos, à sua alma. Alguns comentadores buscam ver na segunda etapa
do raciocínio uma prova da demonstração apresentada no primeiro capítulo. Se quisermos
considerar que o método mais adequado às investigações físicas é aquele que Aristóteles seguiu
nos livros dois e três, podemos concordar que isto seja mesmo a prova da demonstração a priori
apresentada no primeiro capítulo, que, ainda que seja correta e precisa, não dispõe da
consistência própria da investigação posterior. Há, no entanto, já nesta primeira definição a
qualidade que a generalidade da apresentação dispõe. A definição de alma apresentada contém,
de maneira breve e geral, muitos aspectos que serão confirmados posteriormente ao longo do
tratado, adiantando muitas conclusões que somente poderão ser assumidas com certeza ao fim
da pesquisa. O aspecto mais importante é o da noção de alma como a essência do ser-vivo, a
qual deverá ser atualizada em direção à finalidade última da existência deste ente. A isto
Aristóteles nomeia com a expressão τὸ τὶ ἦν εἶναι, que pode ser traduzida ao pé da letra por o
que era ser ou simplesmente por essência, ou seja, ela indica a forma essencial do ente como o
princípio e finalidade do ente que tem vida. Por ora, tomarei esta expressão grega no sentido de
essência, a princípio sem qualquer comprometimento mais forte. Nesste ponto do livro, é
utilizado um exemplo mediante uma analogia sobre a noção de função, ou tarefa própria para a
realização, para aludir àquilo que a atividade essencial do ser vivo.

1.4 Esboço dos primeiros passos da investigação

Logo no início de De Anima II.1, Arisóteles desenvolve a primeira definição de alma a


partir dos resultados das discussões de De Anima I, utilizando-se também de algumas noções
sobre a substância resgatadas de outros tratados, como a Metafísica Ζ. Dentro desta primeira
definição, uma distinção é feita pelo filósofo entre dois modos de atualização da alma do ser
vivo: uma é atualidade como ciência e a outra como o inquirir. Isto significa que a forma da
substância do ser vivo tem uma primeira atualização, a qual confere a existência real deste ente
determinado. E há também o segundo tipo de atualização, com a qual a atividade da
contemplação, do θεωρεῖν, é comparada por sua qualidade de atividade virtuosa e completa, a
qual, é também o tipo de atividade própria ao ser humano. Com isso, esta primeira definição
nos mostra uma dupla atualização da forma ou da alma do ser vivo em dois tipos ou em uma
atualização formal e uma atividade. A atualização do segundo tipo não ocorre de maneiro única,
mas segue toda a diversidade das diferentes partes da alma e dos tipos derivados de
25

desenvolvimento de cada uma, como o que ocorre na parte intelectiva na diferença entre o
intelecto prático e o contemplativo.
Esta definição de alma coloca em evidência algo que não poderá ser negligenciado
durante a pesquisa, tanto por conta da metodologia de investigação a ser nela aplicada, quanto
pelo modo como devemos abordar a alma humana. Em Metafísica Γ, fica claro que o ser tem
diversos sentidos, e Aristóteles os nomeia em Metafísica Δ.7 como o ser acidental, per se, ato
e potência e verdadeiro e falso. No caso da definição de alma e por todo o restante do tratado
de De Anima, Aristóteles se utiliza principalmente de dois sentidos de ser, o sentido per se e o
do ato e da potência, para explicar uma mesma realidade abordada em momentos e
circunstâncias distintas, para as quais um sentido de ser guarda um aspecto mais relevante, seja
para o raciocínio, seja para a própria realidade da coisa, sem que o uso de um sentido de ser
exclua o uso do outro, mas nem por isso sem que comporte a esperada clareza e distinção de
tratamento dispensado a um tópico de tal complexidade. Pois toda a questão envolvida nesta
primeira definição através da distinção entre a alma como ciência e como contemplar, ou seja,
a forma da substância como potência e como completude, estabelece dois apectos distintos da
mesma realidade expressos com acentos diferentes. A forma é a atualidade de uma substância
cujo sentido de ser per se não pode exprimir toda a complexidade de um ser vivo sem que se
encorra em sobreposições de conceitos idênticos usados para explicar esta mesma realidade,
deixando de lado aspectos de diferenças fundamentais e de tal meneira sutis que somente podem
ser contemplados pela explicação feita através de outros sentidos de ser, como o do ato e da
potência.
A εὐδαιμονία, o princípio organizador da vida humana, não é apenas uma atualização
da forma do ser humano, mas é sobretudo uma atividade, em cujo exercício sua finalidade está
sempre presente. Aristóteles, ao reiterar que a finalidade humana é uma atividade, implica
sobremaneira a disposição do indivíduo em se empenhar nesta ação, iniciada após uma processo
reflexivo de deliberação culminante em uma resolução de se agir de determinada maneira.
Quando a decisão está tomada e a atividade se inicia, todo o ser do indivíduo está voltado para
a realização desta atividade atual, que, quando é a atividade própria da felicidade e é bem
realizada, completa em perfeição o ser deste mesmo homem. O caráter de atualidade da
perfeição da forma em uma atividade não poderia ser totalmente expresso somente pelo
conceito de forma segundo o sentido per se. Aristóteles recorre, assim, ao uso dos sentidos de
ser do ato e da potência para dar conta da complexidade da alma de um ser vivo.
26

A seguir apresentarei os esboços da investigação sobre a alma, dividindo o trecho em


três partes, nas quais mostro os traços ontológicos tratados por Aristóteles logo no início de De
Anima II.1.

1.5 A primeira definição de alma

1.5.1 Breve introdução ao livro De Anima II.1

O primeiro capítulo do segundo livro de De Anima possui duas partes: a primeira vai de
412a 3 até 412b 9; a segunda se inicia em 412b 10 e vai até 413a 10. A primeira parte trata de
alcançar a definição geral de alma a partir da dedução de alguns preceitos que Aristóteles já
tinha sobre a substância. A segunda procura desenvolver e explicar o que havia sido exposto
nesta primeira parte, com a introdução do exemplo da substância artificial e da noção de função,
em grego, ἔργον, de um determinado ente.
A frase que inicia o raciocínio evoca a noção de que a substância está compreendida
entre os gêneros do ser. Uma diferença, no entanto, faz a substância ser um tipo privilegiado
entre eles, servindo como o substrato do qual todos os outros partem e para o qual se voltam
como base de referência e origem de ser. O tratado das Categorias nos mostra muito claramente
a relação existente entre a categoria da substância e as restantes, que, através dos modos de
predicação, são mostradas como as categorias do ser se relacionam entre si e com aquilo que
lhes dá sustentação na realidade. São quatro os tipos10 de predicação compostos com as
expressões καθ' ὑποκειμένου, ou dito do subjacente, e ἐν ὑποκειμένῳ, ou presente no subjacente.
Algumas coisas são 1) predicadas do subjacente e não estão presentes no subjacente. Isto ocorre
com a substância segunda, que responde pela predicação do gênero do ser referido, como
quando dizemos ‘homem’ de um homem individual. Ainda que seja predicado do sujeito, ele
não pode estar nele presente, pois constitui o próprio indivíduo de quem se fala. Há o caso em
que a categoria 2) não é predicada do subjacente, mas está presente nele. O conhecimento da
gramática está na mente de algum sujeito, mas o conhecimento gramatical é também o
subjacente do qual se faz referência, não podendo ser predicado de outro. Outras coisas são 3)
predicadas do subjacente e estão presentes no subjacente, como o conhecimento de gramática,
que é predicado de ‘gramática’ e está presente na mente do sujeito que tem tal conhecimento.

10
Cf. Aristóteles, Categorias I.1, 1a 20- 1b 9.
27

Por fim, há o caso daqueles que 4) não são predicados do subjacente e nem estão presentes no
subjacente, como é o caso das substâncias, bases de toda a predicação e origem do ser. O que
subjaz em todos os modos de predicação não pode participar ele mesmo das categorias que dele
são predicadas, já que não é possível uma regressão ao infinito como se existisse sempre algo
anterior que sirva como sujeito da predicação do sujeito posterior, e assim ao regresso por toda
a vida. A predicação deve parar no subjacente e dele receber a condição de categoria de ser
próprias às outras categorias e, sem a qual noçao, não poderiam ter a sua existência11. Algo que
costuma gerar controvérsias é o fato de o termo subjacente ou ὑποκείμενον se referir, em
algumas obras, à substância como composto, em outras, à matéria e ainda em outras a algum
elemento material. Nestas passagens das Categorias, subjacente é usado para indicar a
substância composta do ente individual. Mas na passagem seguinte a 412a 6 em De Anima, o
termo se refere à matéria. Mais à frente veremos que a matéria será assumida como o subjacente
da substância composta.
A primeira frase da passagem de De Anima II.1, 412a 6 nos remete, ao mesmo tempo,
ao livro Metafísica Ζ.1, o qual nos ensina que a substância é o gênero de ser que responde pela
essência do ente, por sua determinação essencial. Aristóteles faz questão de enfatizar esta
realidade para diferenciar a definição da substância da definição dos acidentes, cuja natureza
os obriga a incidir sobre a substância, uma vez que não retêm verdadeiramente o ser de cada
ente. Os acidentes são as outras categorias de ser que caem no caso categorial cuja existência
os faz serem predicados do subjacente ou do sujeito e/ou devem estar presentes também nele
para que tenham existência real. Uma definição substancial ou essencial é composta apenas de
seus elementos formal e material, sem nada extrínseco aos dois para compô-la. Quando a
definição é a de um acidente é necessário se referir a algo extrínseco a ele, o sujeito, para
compô-la, como no exemplo de adunco, em cuja definição de ser da curvatura de um nariz há
necessariamente a referência ao sujeito ‘nariz’. A definição deve ser a expressão do que a causa
realmente é e isto não pode ser feito pelo acidente, que sempre deve ser referido o sujeito que
qualifica. De forma semelhante, a forma, para os seres do mundo sublunar, ou seja, os seres
materiais, não possui a completude de ser sem a sua matéria, que faz o papel de seu substrato.
Assim, a definição de um ente deve conter tanto o elemento formal quanto o material,
compondo uma definição completa de determinado ser.
Feito isto, Aristóteles apresenta os três sentidos de substância ou οὐσία muito discutidos
ao longo de Metafísica Ζ: como matéria, ὕλη; como forma, εἶδος; como o composto de ambas.

11
Cf. Aristóteles, Categorias I.1, 1a 24 – 25.
28

A matéria por si mesmo não é algo determinado, nem mesmo algo particular, mas é o elemento
potencial para que algo venha a ser. A forma, ou o formato, é já algo determinado e, de fato, é
a atualidade do ser de algo particular que concebe a forma, a atualidade e a realidade concreta
de um ente determinado. Os conceitos de potência e ato, ou δύναμις e ἐνέργεια, foram muito
discutidos no livro Θ da Metafísica, sendo desenvolvidos a partir do conceito básico de δύναμις
como um princípio de mudança em outro ou em si mesmo enquanto outro. Aristóteles já havia
dito desde Metafísica Ζ que os conceitos de forma e matéria seriam expressos também pelo
binômio ato/potência, correspondentemente, segundo o modo de ser da potência e do ato. As
dificuldades do livro Θ são constantes, ainda mais quando da especificação do conceito básico
de potência como um conceito ontológico, que daria sequência às teses de Ζ, completando os
estudos referentes às substâncias sensíveis. Mesmo não sendo claras e diretas as definições do
que seja o ser em ato e o ser em potência no texto de Θ, a tese se encaixa perfeitamente bem ao
contexto da substância e da necessidade do desenvolvimento progressivo do ente em direção,
desde sua potência inicial, ao ato completo e perfeito de sua atualização completa. Todo e
qualquer ser particular e individual, cuja definição deve ser expressa pelo composto de matéria
e forma, não é pleno desde a sua geração, mas deve alcançar o seu ápice de plenitude ontológica
quando tiver todo o seu ser potencial atualizado completamente, quando estiver em plenitude o
seu ser. O composto de matéria e forma, o terceiro sentido de substância apresentado e acatado
por Aristóteles no início de De Anima II.1 é, então, a determinação formal atual de uma matéria,
que tem a potência de ser algo particular, concretizado atualmente em um ser particular e
determinado. A diferença entre a matéria e a forma é complementar uma a outra no ser
substancial de cada ente determinado, cabendo à matéria ser a potência e à forma, a atualidade.

1.5.2 Os dois sentidos de alma

Aristóteles, no entanto, faz uma segunda distinção quanto ao modo de ser do ato na
substância do ser vivo. Traduz-se por ato, atualidade e atualização, os termos gregos ἐνέργεια
e ἐντελέχεια, termos distintos que podem ser traduzidos em português por palavras que derivam
do termo ato. Ainda que esta noção use os termos ἐνέργεια e ἐντελέχεια para designar a realidade
atual de um ente, há uma ligeira distinção em seus aspectos, segundo a qual termo ἐνέργεια
indica em muitos casos a atividade ou a atualidade de uma potência no exercício completo e
pleno de quem a pratica, na qual a finalidade de uma atividade é alcançada no exercício mesmo
desta atividade. Neste caso, ela se distancia do significado de κίνησις, movimento, pois é a
29

atividade completa em seu ser e a finalidade de uma potência, enquanto que o movimento se
completa somente quando alcança sua finalidade posta para além de si mesmo. O termo
ἐντελέχεια, por sua vez, costuma indicar o estado de perfeição ontológica dado pela forma, tanto
como princípio quanto como finalidade, que já está indicado na essência de um ente, ainda que
não esteja em plena atividade atual de sua potência e que será alcançado quando atingir a
perfeição de seu ser.
Aristóteles usa o termo ἐντελέχεια quando se refere ao elemento atual do composto de
matéria e forma, assinalando que este termo tem dois sentidos: um dos sentidos é o de ἐντελέχεια
como ciência, ἐπιστήμη, e o outro como o inquirir, contemplar, θεωρεῖν. A passagem aproveita
para fazer a distinção entre estes dois modos de atualidade segundo os sentidos amplamente
relacionados em Metafísica Θ e na Ethica Nicomachea do primeiro tipo de atualidade da forma
como a ciência, ἐπιστήμη, como uma potência, δύναμις, e como uma disposição, uma ἕξις, e,
como referente à condição de segunda atualidade da forma, a contemplação, o θεωρεῖν. Tanto
em Θ quanto na Ethica Nicomachea uma potência e uma disposição são aquisições feitas pelo
sujeito após muito exercício ou por um longo hábito sedimentado, que como que se transforma
em uma segunda natureza do homem. A forma de uma substância não é produto de qualquer
uma destas duas maneiras de aquisição, mas faz parte do sujeito desde a sua geração. O que
esta comparação procura mostrar é a característica que a alma do ser vivo possui em dois
momentos distintos de seu modo de existência e de vida. Para salvaguardar a atualidade da alma
mesmo quando o ser vivo está dormindo ou inativo ou sem exercer nenhuma atividade além
das vitais ou qualquer atualidade correspondente às potências da alma, Aristóteles faz essa
comparação com os modos da ciência e do inquirir, evidenciando os estágios da atualidade da
forma e do exercício ativo desta forma, através das potências, das funções ou partes da alma.
Devido aos traços ontológicos da necessidade de atualidade da forma da substância do
ser vivo e da possibilidade de repouso e inatividade das funções da alma, faz-se necessário a
distinção de dois níveis de atualidade do ser vivo. O primeiro nível ou tipo de alma é o mais
básico do ato formal de conformação da matéria à substância desde a geração do ente, sendo
este equivalente à capacidade da potência da ἐπιστήμη de pertencer a susbtância sem que esteja
em atividade. O segundo nível ou tipo é a atualização das capacidades da alma, cujo exercício
mais completo e perfeito e, por isso, tomado como ponto de referência na comparação, é o da
atividade de inquirir, θεωρεῖν. Esta distinção é a mais importante para todo o tratado de De
Anima e para o que reúne como finalidade a pesquisa sobre a alma e a vida humana: a plenitude
do ser do homem na ἐντελέχεια como atualidade do segundo tipo.
30

Tomar esta passagem como se referindo à condição da potência adquirida a partir de um


exercício, ensino ou hábito, pode ajudar a clarear o pensamento de Aristóteles, mas não resolve
a questão totalmente. Por um lado, temos a necessidade de uma atualidade ocorrer
anteriormente a qualquer aquisição de uma potência, o que não se verifica quanto ao caso da
forma de uma substância, que não é o exercício gerador de uma potência. Além disso, a forma
não é uma potência que possa se atualizar em alguma hora, pois ela é já atual, sempre atual,
uma vez que ela é o elemento determinante da matéria. Por outro lado, a comparação realmente
alude aos dois modos de atualização da forma: um como a atualidade determinativa da matéria
e compositiva de um particular, fazendo às vezes da ciência, ainda não em atuação; e como a
atualidade ativa em pleno exercício vital do ser vivo, ou seja, como a atualização da potência
da ciência no seu exercício próprio do inquirir.

1.5.3 A finalidade do ser vivo e a sua função

Estabelecida esta questão e a caracterização inicial da substância como composto de


forma e matéria, segundo o ato e a potência, Aristóteles passa à distinção tripla entre os tipos
de corpos sensíveis e depois à definição de alma do primeiro tipo. A primeira afirmação de que
“...há a opinião de que sobretudo os corpos são substância, entre os quais se encontram corpos
naturais, que são princípios dos demais”12 (tradução nossa), parte da comum impressão
sensível que os homem têm de perceber com muita facilidade os corpos como entes particulares.
As substâncias supra-sensíveis, não materiais, são apenas percebidas pelo raciocínio em um
processo posterior à percepção sensível. E os corpos naturais servem de base para a produção
dos corpos artificiais e são o seu princípio, como quando um carpinteiro utiliza o corpo natural
da madeira para produzir uma mesa, cuja forma foi acrescentada por sobre a forma original dos
materiais, numa relação que se poderia chamar de acidental. A existência do produto depende
ainda da condição do corpo da madeira, que, se estragar, faz o móvel apodrecer e vir a quebrar
e perder a sua forma. Além destes, restam ainda os corpos naturais distintos dos corpos naturais
vivos. As pedras são corpos naturais, mas o são de maneira diferente da de um vegetal, que
possui a vida no modo da nutrição, crescimento e decaimento, cuja forma mais básica de vida,
a vida vegetal, serve como o mínimo necessário para distinguir-se um ser vivo de um ser
somente natural e corpóreo que jaz sem vida sobre a terra.

12
ARISTÓTELES; De Anima II.1, 412a 11-13: οὐσίαι δὲ μάλιστ' εἶναι δοκοῦσι τὰ σώματα, καὶ τούτων τὰ φυσικά·
ταῦτα γὰρ τῶν ἄλλων ἀρχαί.
31

Depois disso, Aristóteles começa a definir o que seja a alma como forma de um corpo.
Tanto os corpos naturais são substâncias sensíveis no sentido pleno, compostos de matéria e
forma, quanto os corpos naturais que possuem vida também são substância em sentido pleno,
compostas de um corpo e de uma forma. Quando dizemos que um ser é um corpo vivo,
marcamos a diferença entre ele e os demais corpos naturais não pelo elemento material de suas
substâncias, mas pelo elemento formal que confere vida a cada um deles, a sua alma. No trecho
seguinte, Aristóteles afirma o tipo de predicação existente entre a alma e o corpo, no qual a
alma é um predicado do subjacente corpóreo, pelo que torna-se necessário, em sua definição, a
referência ao substrato do qual é predicada, sendo a alma a forma de um corpo, de seu susbtrato
corpóreo. Se dos três tipos de substância apresentados no começo como o composto de matéria
e forma, a matéria e a forma, a alma deve ser a forma de um composto junto da matéria, a
definição de Aristóteles descreve que a alma, necessariamente, é “substância como forma do
corpo natural que, em potência, tem vida”13 (tradução nossa). O corpo natural não compõe a
substância do ser vivo simplesmente, mas é o elemento que potencialmente tem vida, ou seja,
um corpo que recebeu um elemento formal que lhe conferiu vida, e cuja atualização é encargo
da forma ou da alma. Assim, o corpo vivo é a atualização de uma matéria em potência para ser
um ente vivo e a alma é a atualidade desta potência na vida.
Apresentada a definição de alma, Arisóteles passa a sua explicação mais detalhada de
maneira mais extensa, introduzindo duas noções na argumentação: a noção de τὸ τί ἦν εἶναι e a
de função. A explicação desta definição começa a partir de 412b 10 com o desenvolvimento da
noção de forma como a determinação essencial de um ser vivo ou, como adiantamos acima, a
essência de um ente, o seu τὸ τί ἦν εἶναι. Esta noção expressa, ao mesmo tempo e por conta de
ser o princípio e a finalidade de um ente determinado, também o modo de existência do ente
em seu desenvolvimento pleno, quando sua essência está em completa atualização, com a forma
ganhando toda a sua inteireza no seu ser. O termo função, ou ἔργον, é utilizado para indicar este
desenvolvimento pleno da forma, o que passa a ser, ao mesmo tempo, considerado a partir
destas passagens de De Anima como a alma do ser vivo em toda a sua atualidade. Aristóteles
lança mão de um exemplo para explicar com mais clareza a definição de alma como a atualidade
que permaneçe no ente como a sua essência e que lhe confere vida e existência no exercício
pleno da potência atualizado de sua substância. O machado, ainda que seja um corpo artificial
produzido pelo artífice, possui uma tarefa que o define e que se poderia chamar de sua alma, de
seu τὸ τί ἦν εἶναι e de sua função: o corte preciso e forte de uma madeira. Se ele é incapaz de

13
ARISTÓTELES; De Anima II.1, 412a 19-21: ἀναγκαῖον ἄρα τὴν ψυχὴν οὐσίαν εἶναι ὡς εἶδος σώματος φυσικοῦ
δυνάμει ζωὴν ἔχοντος.
32

realizar esta tarefa, não a fará nunca, perderá, assim, a sua alma, deixando de ser um machado
e sendo assim chamado apenas por ainda apresentar algumas semelhanças materiais com um
machado verdadeiro. A alma deste instrumento se atualiza plenamente, o seu ser e sua essência
estarão em atualidade plena, quando ele exercer a sua função essencial de corte violento e
preciso da lenha. Com este exemplo fica ressaltado o caráter de atualidade e de exercício atual
do ente como aquilo que constitui a sua alma e sua determinação essencial.
Em Metafísica Z.10, Aristóteles reafirma que a alma do animal é substância, isto é,
forma e essência de determinado corpo14 e que não pode ser definido o ser vivo sem se referir
à sua função. Anteriormente, fora dito que a alma do ser vivo é em sentido semelhante ao da
ciência como capacidade para um exercício posterior. Mas o pleno vicejar da alma é apenas
alcançado quando do exercício atual da alma, quando a essência do ser vivo está completamente
atualizada, quando sua função está sendo exercida totalmente. E isto somente ocorre na
atualização pelo exercício do segundo tipo de forma, como o inquirir de uma ciência. Para
compreendermos isto melhor, podemos recorrer a uma passagem da Ethica Nicomachea na qual
se busca definir o que seja a felicidade, a finalidade última do homem na sua realização
completa de sua essência em um exercício atual. Nesta passagem e na definição que dela
decorre do que seja a felicidade, vemos que a alma é a atualidade do ser do homem feita do
modo mais perfeito possível, quando ele se torna feliz. A função do homem e seu exercício
podem lançar luz na definição de alma como melhor exemplo do que o do machado e como
paradigma de atualização perfeita do τὸ τί ἦν εἶναι, da essência de um ser vivo, uma vez que o
homem é o que tem em maior grau os elementos componentes da alma de um ser vivo, ao
mesmo tempo em que colocamos um ente que possui os três tipos de alma que serão
apresentados ao longo de todo o tratado de De Anima.

1.6 Ethica Nicomachea – a vida humana

O homem tem como sua estrutara formal a composição da alma vegetativa, da alma
animal e daquela propriamente humana, a alma intelectiva, na qual se encontra o princípio
racional. Todas as partes compõem o ser humano como um todo, exercendo cada uma a sua
função para sustentar a vida primeiro com o alimento, pela apreensão dos objetos sensíveis que

14
Cf. Aristóteles, Metafísica Ζ.10, 1035b 14-16: ἐπεὶ δὲ ἡ τῶν ζῴων ψυχή (τοῦτο γὰρ οὐσία τοῦ ἐμψύχου) ἡ κατὰ
τὸν λόγον οὐσία καὶ τὸ εἶδος καὶ τὸ τί ἦν εἶναι τῷ τοιῷδε σώματι – uma vez que a alma do animal (pois isto é a
substância do animado), substância segundo a noção, é a forma e a essência deste corpo (tradução nossa).
33

se encontram pela natureza ao redor da alma sensitiva, através da capacidade de identificação


e localização da comida e, em seguida, a decisão de perseguí-la, e, por fim, completa-se com
a vida intelectual, de atividade exercida de acordo com a razão e da contemplação da verdade.
A ética é a ciência responsável pelo estudo das atividades oriundas dos atributos
ontológicos estruturais que se organizam para que o homem consiga desenvolver com as
capacidades naturais a ele legadas desde a sua geração numa vida de completa e perfeita
atualização de sua essência. As virtudes éticas são o modo perfeito de exercício sobre a parte
animal da alma, enquanto que as virtudes dianoéticas são a atividade da capacidades adquiridas
pela parte racional, propriamente humana da alma. Se quisermos ser mais precisos, os dois tipos
de virtudes são o aperfeiçoamento da alma humana como um todo, entre as quais as capacidades
adquiridas, que não são sobrepostas a ela como uma mera extensão de um utensílio do tipo de
uma ferramente usada para facilitar um determinado serviço. Se a definição da felicidade é
aquilo a que o homem está voltado desde sua origem, significa que ela é a plenitude do princípio
deste ser humano, para o qual concorrem todas as suas capacidades de sua alma.
A contemplação da verdade é a atividade de perfeição do ser humano. A virtude que
exerce esta capacidade tem como objeto os primeiros princípios da realidade, as formas
imaterias abstraídas da realidade sensível e até mesmo o motor imóvel. A atividade da
contemplação requer a apreensão, portanto, destes objetos pelo indivíduo e a devida
demonstração da essência destes princípios. O processo pelo qual a contemplação da verdade
pode ser alcançada é o do conhecimento por parte do ser humano dos objetos de contemplação.
O conhecimento, por sua vez, pode apenas ser alcançado pelo assemelhamento daquele que
conhece com o objeto conhecido. Ao conhecer os princípios da realidade, as formas imaterias
dos entes e, até onde possível, o motor imóvel, o homem torna-se semelhante, em certo sentido,
ao que ele conhece. Durante a contemplação a forma humana passa completamente de sua
potência material a sua forma atualizada em perfeição. No entanto, pelo fato de a natureza
humana ser composta de matéria e forma, a substância humana somente atualizaria a sua forma
no limite das possibilidades da matéria. O homem passa assim a ter um duplo caráter de ser
vivo. Um como um ente físico sujeito à mudança, às alterações materiais, ao deslocamento no
espaço e ao correr do tempo. O outro, como um ser que possui em si a capacidade de ascender
ao que é principial na natureza, ao que dá origem e vida aos seres, ao que inicia e finda as
mudanças, ao que organiza e ordena toda a realidade. O homem não pode ter acesso completo
ao que é divino enquanto homem, mas pode tê-lo enquanto dinivo. E o elemento que confere a
divindade ao homem, ou ao menos a uma parte dele, está expresso em toda a sua totalidade na
atividade da contemplação da verdade.
34

2 Capítulo 1: A vida humana como vida intelectual

2.1 As possíveis atividades humanas

Uma vez definida por Aristóteles, no tratado da Ethica Nicomachea, a εὐδαιμονία, a


felicidade, como atividade da alma de acordo com a virtude perfeita15 e, em seguida, tendo
sido especificada como uma atividade da σοφία, sabedoria, a mais perfeita das virtudes
humanas, alguém poderia levantar a pergunta pela razão de ser desta definição e por que causa
foi feita a sua identificação como a atividade bem realizada desta virtude dianoética específica
na finalidade última do homem. Poderíamos levantar a questão de por que a εὐδαιμονία é
definida desta forma e qual a razão de Aristóteles ter reconhecido a σοφία como a mais perfeita
virtude humana. As perguntas seriam, por certo, pelas causas destas definições. Após o primeiro
passo da pergunta quanto à realidade do objeto, seguimos para a pergunta pelas razões de tal
objeto. Para respondermos a estas perguntas, retomemos o caminho que Aristóteles iniciou pela
Ethica Nicomachea.
Ainda que apresentadas de maneira a não exaurir todos os significados possíveis de
cada um dos termos16, Aristóteles começa a Ethica Nicomachea com uma afirmação que
exprime todo o horizonte de possibilidades de atividades humanas, todas elas ordenadas em
função de um bem último ao qual todas tendem.

Πᾶσα τέχνη καὶ πᾶσα μέθοδος, ὁμοίως δὲ πρᾶξίς τε καὶ προαίρεσις, ἀγαθοῦ τινὸς
ἐφίεσθαι δοκεῖ17.

Toda técnica e também todo método e igualmente toda ação e também toda escolha
deliberada, tendem a um bem, como é dito por todos. (tradução nossa)

15
Cf. Aristóteles, Ethica Nicomachea I.6, 1098a 16-17.
16
Pretendo discutir o sentido de cada um destes termos utilizados por Aristóteles nesta passagem mais à frente.
No entanto, desde já, podemos dizer que é possível enxergarmos as capacidades humanas tanto de conhecimento
do universal e do particular presentes em cada uma das atividades aludidas por estes quatro termos, mesmo com
as explicações de Gauthier-Jolif, também referida por Zanatta, de que existem dois grupos de termos, um referido
por τέχνη e μέθοδος à τέχνη segundo o modo como Platão a considerava, e o outro, representado por πρᾶξις e por
προαίρεσις, se referindo já ao uso, por parte de Aristóteles, no qual existiria um domínio da ação externa e um da
interna, podemos dizer que é possível enxergarmos as capacidades humanas tanto de conhecimento do universal e
do particular presente em cada uma das atividades aludidas por estes quatro termos.
17
ARISTÓTELES; Ethica Nicomachea I.1, 1094a 1-2.
35

De um lado, através dos termos τέχνη, técnica, e μέθοδος, método, está presente a
capacidade técnica da produção de obras e o método pelo qual esta produção é realizada, sob
coordenação do procedimento adequado e do conhecimento daquilo que se irá produzir. Por
outro lado, estão a atividade realizada externamente da πρᾶξiς, ação prática, e a movimentação
no interior da alma nos cálculos para se decidir na προαίρεσις, numa escolha deliberada, a
melhor ação a ser realizada. Seja no âmbito da produção técnica e no procedimento nela
aplicada para a sua produção, seja no domínio da deliberação e da ação prática, o traço em
comum que todas estas modalidades de ação apresentam é o de todas tenderem a um certo bem.
No entanto, entre os fins existe uma diferença fundamental: alguns deles são atividades
e outros são produtos distintos das atividades que os produziram. E aqueles produtos que são
preferidos às atividades produtoras são superiores a elas18. Por conta da multiplicidade de
atividades humanas, múltiplas também são as finalidades. Quando, no entanto, as atividades
têm como base uma capacidade única, todas as ações estão subordinadas a esta arte superior,
cujo fim é o mais nobre de todos na cadeia de atividades, porque também os fins das atividades
subordinadas são perseguidos em razão dele.
Para ilustrar esta diferença, Aristóteles se utiliza do exemplo da cadeia de ordenação das
atividades e dos fins em uma guerra. O exemplo que encadeia cada uma das atividades que
compõem todo o quadro dos elementos necessários para se alcançar a vitória em uma guerra é
claro ao mostrar que, desde o mais simples dos artesãos produtores de aprestos para a montaria
em cavalos até o mais alto posto de general de um grande exército, todos estão coordenados
para a finalidade última da vitória na guerra, para a qual alguns fins são meios de ação. As
fivelas das celas utilizadas na hípica e produzidas por um artesão são a finalidade última da
atividade deste trabalhador ao mesmo tempo em que são o meio para a boa montaria. Esta, por
sua vez, é o meio utilizado para se atacar com sucesso o exército adversário. O modo com que
o exército irá atacar é determinado pelo general para que o adversário seja derrotado da melhor
forma possível, possibilitando a vitória da guerra. A cadeia de ação da guerra é ligada de tal
maneira para se alcançar o bem último da guerra, por certo não a morte de seus guerreiros, mas
a vitória de seu exército. De maneira semelhante, também para o bem humano, as atividades
estão interligadas de modo que uma sirva à outra como princípio e meio de uma atividade
superior.

18
Prorrogo também este ponto para uma discussão mais oportuna, pois o interesse neste momento do texto é outro.
De qualquer forma, já desenvolvi a explicação da diferença entre a atividade produzida, o seu produto e uma
atividade prática em minha dissertação de mestrado. Na primeira, a perfeição de sua atividade se encontra no
objeto produtido, fazendo deste supeior àquela. Na atividade prática, a sua perfeição permanece na própria
atividade.
36

O saber superior coordenativo de toda a cadeia de ações é apelidada por Aristóteles de


ariquitetônico19, pois estrutura como uma base organizadora todas as outras tarefas a serem
praticadas. Por isso, mais à frente, é a política a ciência a ser reconhecida como arquitetônica
em mais alto grau ao ser aquela que é capaz de organizar toda as outras ciências, as produções
e as atividades de uma cidade, desde o que um cidadão deve aprender e até que ponto deve fazê-
lo.
Como todas as atividades humanas, de todos os tipos, tendem a um bem e este bem é
um bem humano, desejado por nós, e que há, ao final desta cadeia de atividades, um fim último
desejado por si mesmo e que tudo o mais é desejado por conta dele, além de o nosso desejo não
ser vão nem inútil, não indo jamais ao infinito em uma sucessão de fins perseguidos escolhendo-
se sempre uma coisa por conta de outra, mas ao fim tem sempre algo escolhido por si mesmo e
não em função de outra coisa, é evidente, segundo Aristóteles, que este bem último é o bem
supremo, o sumo bem. Para a ciência supremamente arquitetônica nada mais seria de maior
interesse que descobrir que bem é este para o que o ser humano tende a fim de poder organizar
da melhor maneira as ações humanas voltadas para alcançar esta finalidade suprema. Da
maneira como os arqueiros, tendo um alvo bem claro a sua frente, podem se preparar, apontar
e disparar a flecha para acertar o alvo da melhor maneira possível.
De fato, para uma ciência que tem como objeto de estudo o ente cujo princípio de
movimento está no agente da ação e é a sua escolha deliberada, a προαίρεσις20, quando o objeto
da ação coincide com a sua escolha, nada mais justo do que precisar qual é o bem que este ente
deseja. Porém, este agente de ações não é qualquer ser-vivo, é o ser-humano, capaz de deliberar
sobre uma ação adequada para alcançar um determinado fim desejado por sua disposição de
alma. A escolha deliberada e o bem supremo estudados pela ciência da política são aqueles do
ser humano, são bens e ações humanas. Restaria, portanto, para se começar a estudar a política,
identificar não só que bem humano é este, mas também de que forma uma ação é humana. Pois,
o âmbito no qual a ética e a política se desenvolvem é aquele da vida humana e sobre a maneira
pela qual uma finalidade última organiza todas os fins e atividades subordinadas. As perguntas
que a política tentará responder, as bases sobre as quais tudo aquilo que se desenvolve dentro
do campo de estudo da ética, a maneira como o homem vive, os meios pelos quais ele decide
realizar uma ação e como ele a completa perfeitamente, já tem delimitado a amplitude de estudo
a vida humana. No modo de articulação desta vida humana com o fim último a ser alcançado
pelo homem, está feita uma relação entre princípio e fim de um determinado ente, na qual,

19
Cf. Aristóteles; Ethica Nicomachea I.1, 1094a 14.
20
Aristóteles; Metafísica Ε.1, 1025b 21-24.
37

segundo o que Aristóteles nos explica em Metafísica Θ.8, sendo o princípio um fim, uma
atividade essencial é como que a ordenação inicial de uma substância e a perfeição a que ela
tende: “καὶ ὅτι ἅπαν ἐπ’ἀρχὴν βαδίζει τὸ γιγνόμενον καὶ τέλος (ἀρχὴ γὰρ τὸ οὗ ἕνεκα, τοῦ τέλους
δὲ ἕνεκα ἡ γένεσις), τέλος δ’ ἡ ἐνέργεια, καὶ τούτου χάριν ἡ δύναμις λαμβάνεται.”21 – “Porque
tudo o que vem a ser procede a partir de um princípio e um fim (pois, a finalidade é princípio,
a geração é por causa do fim) a atividade é o fim e, é por causa disto, que a potência entra em
ação”. (tradução nossa).
A vida humana em um indivíduo é o vir-a-ser de um ente a partir e em direção a uma
finalidade. Quando o fim último é o que impulsiona e inicia o processo do vir-a-ser como meta
a ser alcançada é, ao mesmo tempo, o princípio que confere o impulso original de toda o
desenvolvimento subsequente da vida deste ente humano. A ciência da política e a ética, sendo
ambas ciências práticas, teriam de enfrentar todas as vicissitudes humanas, os modos de ação e
de produção praticadas para superá-las, as articulações entre bens produzidos e ações práticas,
meios e fins requeridos para o objetivo aspirado, ou seja, tudo aquilo que é vivido pelo homem
dentro deste espectro de uma vida ordenada essencialmente para o alcance de um bem supremo,
desejado por si mesmo e nunca em função de outro.
Aristóteles, ao propor descobrir qual era o bem supremo ao qual o homem tende, quis
descobrir uma parte daquilo que dá sustenção ontológica à vida humana e que emoldura todo e
qualquer atividada que um homem possa vir a praticar. Quando iniciou, logo no início do
tratado da Ethica Nicomachea, a busca pela definição de εὐδαιμονία, tinha como objetivo
esclarecer o fim ordenador de toda a realidade que iria estudar ao longo do resto do tratado.
Sendo a εὐδαιμονία a finalidade última do homem, ela era também o princípio que organizava
a vida na qual se desenrolam todas as atividades e ações cujo princípio motor está no ser
humano. A εὐδαμονία, neste sentido, é uma das causas de tudo aquilo para o qual se volta o
estudo da ética e da política.
No entanto, a εὐδαιμονία é uma das causas pelas quais a vida humana pode se organizar
de tal maneira para que ele alcançe o seu bem supremo. Na Ethica Nicomachea ela é o fim
último e a motivação principial para as atividades que são perseguidas numa vida humana.
Aristóteles, ao nos apresentar a definição de εὐδαιμονία como sendo a mais perfeita atividade
da alma humana, e que, antes desta atividade, muitas outras também ocorrem, sobretudo nos
outros níveis da alma, mostrou que o bem supremo humano é o ápice de desenvolvimento da
vida e da alma humana. No sentido do ser substancial, a εὐδαιμονία é a perfeição de uma

21
ARISTÓTELES; Metafísica Θ.8, 1050a 7-10.
38

substância, a causa final ao qual tende o ente que possui uma alma intelectiva capaz de praticar
a atividade da σοφία de maneira perfeita.
Portanto, o tratado da Ethica Nicomahea partiria deste princípio, desta causa primeira
da εὐδαιμονία, com vistas à qual os outros conceitos se desdobrarão como possibilidades da
vida humana ordenada a realizar este fim. Por outro lado, estabelecidas a causa final do ser
humano, poderíamos perguntar pela essência desta substância que é o homem, ou seja, qual é
definição deste ser que alcança a sua perfeição em uma atividade intelectual. Quando, logo no
início da pesquisa, Aristóteles propõe um outro caminho argumentativo para tentar definir o
que é a εὐδαιμονία, o bem supremo humano, recorre a princípios que não seriam trabalhos na
Ethica Nicomachea de maneira a exaurí-los em si mesmos enquanto princípios que sustentam
a da vida humana, mas ele os toma como base dos conceitos que deles derivam e que seriam
explicados e desenvolvidos como decorrência de suas propriedas. Esta argumentação é
conhecida como o argumento do ἔργον, na qual Aristóteles busca a diferença específica que
distingue o homem dos outros ser vivos. Tal diferença, neste contexto, seria uma atividade que
somente o homem poderia praticar e cuja realização perfeita é a sua finalidade, a qual tende o
homem por natureza.

2.2 O argumento do ἔργον

Afirmar simplesmente que a finalidade do homem é a felicidade é uma resposta vazia


que não esclarece muita coisa. Sendo ela a finalidade última do homem, devemos questionar
qual é a atividade, o agir, o trabalho próprio do homem que, bem feito, alcança sua finalidade.
Desta forma, descobriremos tanto o modo mais correto de agir do homem quanto o que é
exatamente a felicidade, sua finalidade, pois um é constitutivo do outro. Este é o caminho que
nos propõe Aristóteles em Ethica Nicomachea I.6: “Tal explicação (qual é o sumo bem do
homem) prontamente nos surgiria, se pudéssemos determinar a função do homem”22 (tradução
nossa). Segue-se a partir daqui por aquilo que comumente é chamado de argumento do ἔργον,
ou seja, o argumento da função ou do trabalho próprio do homem.
Os termos trabalho, função e obra são traduções do termo grego ἔργον. Este termo
resguarda uma relação estreita com os conceitos de fim e bem. Enquanto a palavra τέλος aparece
para expressar o fim aspirado por alguém, a expressão ἔργον é empregada de maneira que se

22
ARISTÓTELES; Ethica Nicomachea I.6, 1097b 24-25: τάχα δὴ γένοιτ' ἂν τοῦτ', εἰ ληφθείη τὸ ἔργον τοῦ
ἀνθρώπου.
39

possa abarcar os sentidos de finalidade considerando-se as operações a que almejam, por


exemplo, a arte de construir navios tem como ἔργον a produção de navios, a medicina tem a
produção da saúde, e assim por diante. Ao se perguntar pelo ἔργον, se questiona tanto o fim
almejado quanto a operação que o faz vir a ser. Portanto, o ἔργον é a obra que vem a ser a partir
ou de uma atividade ou de uma produção, necessitando de um substrato sobre o qual repouse e
do qual possa ser predicado. A atividade é uma operação cujo próprio desempenho é a sua
finalidade e a obra originada é o exercício da capacidade de um agente, do qual o ἔργον irá
tomar como seu substrato. A obra é, pois, uma atividade do agente, praticada por ele e de quem
dificilmente pode ser arrebatada. Quando se trata de uma operação que irá produzir algo distinto
do exercício produtivo dizemos que a obra está com mais propriedade no produto e não naquele
que o produziu.
Foi dito logo no início da Ethica Nicomachea que o fim último do homem é a
εὐδαιμονία, a felicidade. Resta-nos saber em que ela consiste. Podemos fazê-lo perguntando
pela operação que é capaz de fazê-la vir a ser. Como ela é o fim último do homem, devemos
perguntar se existe uma operação ou função própria do homem, a qual só ele pode realizar e é
capaz de alcança-la. Quando algo possui uma operação própria significa que faz parte de sua
essência uma operação cujo fim é a realização de sua forma. Isto quer dizer que o fim último
de cada coisa que tenha uma função própria é a perfeição de sua forma mediante uma atividade,
sendo a forma a sua primeira perfeição e a atividade que a consagrou, a segunda. Perguntar pela
atividade própria do homem é querer saber de uma atividade que se desempenhada faz a
perfeição da forma humana. Dos dois tipos de operação que temos, a atividade e a produção, é
apenas a atividade que se apresenta como melhor candidato a que é capaz de alcançar o fim
último do homem, isto é, a sua perfeição. A obra da atividade é a realização das capacidades do
agente e nele permanecem, enquanto que na produção, a obra consiste no produto feito. Como
queremos a perfeição do homem, seu fim último, de que não pode ser tirado com facilidade, a
εὐδαιμονία deve consistir em uma atividade.
Quando se possui um ἔργον, pode-se exercê-lo de modo melhor ou pior. Alcança-se
melhor uma finalidade de acordo com o desempenho da atividade que a visa. Aristóteles
justifica a afirmação, logo em seguida, ao dizer que “(...) em geral para todas as coisas que têm
uma função ou atividade, parece que o bem e o “bem feito” residem na função”23 (tradução
nossa), ou seja, no ἔργον. Isso quer dizer que o valor daquilo que possui uma função depende
da qualidade da correspondente função realizada.

23
ARISTÓTELES; Ethica Nicomachea I.6, 1097b 26-27.
40

Aristóteles nos dá como exemplo o flautista, o escultor e o pintor. Estes só são


considerados bons quando seus trabalhos ou suas funções são bem realizados. O valor de um
flautista, de um escultor ou de um pintor, resulta do valor do seu trabalho realizado, do
desempenho musical, da escultura ou da pintura feitos. O flautista é um bom flautista quando
toca bem flauta. Dentro deste raciocínio aconteceria, portanto, da mesma forma para o homem.
Ser um bom homem estaria determinado pela boa realização da função que lhe cabe, do trabalho
que só o homem pode realizar, definindo assim sua finalidade.
Para identificar qual é a função determinante do homem, Aristóteles lança mão de um
procedimento típico das ciências naturais, indicando o gênero e diferença específica. Neste tipo
de definição, exposta na Metafísica, a forma é definida de maneira que a causa final, o τέλος da
espécie seja o ponto referencial. Este modo de definição teleológico possibilita também definir
a espécie de modo concreto, ou seja, expressando a relação da forma com a matéria, sendo a
forma ordenadora das partes de acordo com uma completude constitutiva. Por exemplo: a
definição de casa é oferecer proteção ao homem, de modo que os materiais, tijolo, madeira,
sejam ordenados de uma determinada maneira para gerar esta proteção. Nos seres vivos, o τέλος,
a determinação formal mais abstrata, é a vida e a alma é a forma concreta que organiza e leva a
efeito esta vida. De um gênero de seres, cuja finalidade é a vida, podemos identificar diferentes
espécies de acordo com a ordenação de uma determinada forma realizada pela alma. É,
portanto, questionando os tipos de vida determinados por uma alma que Aristóteles irá descobrir
o tipo de vida que define o homem.
A vida faz o homem estar dentro do gênero dos seres vivos, diferenciando-o, por
exemplo, das pedras. Mas a vida é comum tanto aos animais quanto às plantas, não devendo
ser, portanto, a vida de nutrição e crescimento o que faz do homem aquilo que ele é. Também
não deve ser a vida de percepção, pois esta os animais também a possuem. Resta então a vida
ativa do elemento que tem um princípio racional. O elemento que possui o princípio racional é
a alma. Uma parte da alma tem este princípio no sentido de possuí-lo e de exercê-lo. A vida do
elemento que possui o princípio racional deve ser compreendida como atividade, pois esta
resguarda o sentido mais próprio do termo. Ora, o que é próprio do homem é a atividade da
alma de acordo com o princípio racional. Caso seja realmente isso que identifica o homem, que
sua função seja este tipo de vida, e, além disso, como afirmamos, o que faz algo ser bom ou
bem feito é a qualidade da função realizada por seu agente, então a felicidade do homem deve
41

ser uma atividade que seja bem feita. No livro I, capítulo 13, Aristóteles defina a felicidade
como “uma atividade da alma segundo a virtude perfeita”24 (tradução nossa).
Como podemos perceber, no argumento do ἔργον há um desdobramento na
argumentação a partir da função vegetativa da alma, que é compartilhada com os vegetais e os
animais, cuja atividade primordial é a nutrição e o crescimento do organismo. As plantas fazem
a fotossíntese no mesmo local onde se encontram, apenas recebendo a incidência de radiação
solar que lhes chega diretamente e absorvendo o gás carbônico do ambiente, transformando os
dois elementos junto com os nutrientes do solo em energia para o seu crescimento. Os homens
e os outros animais, no entanto, não esperam parados para receber aquilo de que farão seu
alimento, mas devem ir em busca dele com muito esmero e até lutar para ter o que comer quando
a fome lhes sobrevém.
Por isso, os animais devem ter a capacidade de perceber o alimento e aquilo que facilite
ou impeça o seu alcance. A função sensitiva ou perceptiva é o que possibilita, por sua atividade,
a percepção das coisas da realidade e a sensação daquilo que os rodeia e compõe o ambiente ao
redor. Aristóteles identifica que são cinco os sentidos dos quais os animais e o homem fazem
uso para apreender os dados sensíveis da realidade e pelos quais montam em sua mente a
imagem do mundo: o tato, o mais básico de todos e presente em todos os animais; o paladar; o
olfato; a audição; a visão. Os sentidos seguem uma ordem crescente de complexidade na qual
cada sentido superior ou acrescido ao anterior apreende aspectos distintos e mais refinados da
realidade. O tato é capaz de perceber a qualidade das superfícies com a qual seu portador entra
em contato, sendo capaz apenas de saber se o objeto é liso ou rugoso, rígido ou flexível, quente
ou frio, seco ou úmido. São qualidades simples, percebidos de forma imediata. Já a visão é
capaz de apreender tanto os sensíveis comuns, ou seja, as formas das dimensões do objeto, se
ele é quadrangular ou arredondado, e também suas cores, a variação das tonalidades. Além de
ser um sentido mais imaterial do que os outros, pois ao ocorrer, ela não modifica materialmente
o órgão do sentido e nem o meio através do qual alcança o órgão sensório, mas apenas o altera
formalmente, diferentemente do olfato ou da audição, cujos órgãos sofrem modificação seja
pela evaporação dos elementos, seja pela modificação que ocorre no ouvido, provocada pelo ar
que o move. Os sentidos, portanto, concedem ao homem a faculdade ou a função de conhecer
de uma maneira primária a realidade. É através deles primeiramente que podemos esboçar os
traços mais rudimentares da realidade em nossa imaginação.

24
ARISTÓTELES, Ethica Nicomachea I.13, 1102a 5.
42

No entanto, é somente a função humana mais superior, a que o distingue o homem das
plantas e dos animais por apenas ele a possuir, que possibilita o ser humano conhecer a realidade
desde os seus princípios e causas primeiras. A função racional existe no homem por conta do
princípio racional, do λόγος, que se encontra na parte racional da alma e cuja posse é tida, em
um sentido, como ser-lhe obediente aos desígnios da razão nas circunstâncias de escolha e ação
prática, em outro sentido, o mais pleno e legítimo, é tê-lo como elemento dominante, pelo qual
se exerce o pensamento e segundo o qual a realidade é conhecida e as decisões são tomadas.
No primeiro caso, as orientações da razão podem conduzir o homem às virtudes éticas, como a
justiça, a coragem, a temperança, a magnanimidade. No segundo, o homem consegue
desenvolver e adquirir as virtudes intelectuais provenientes do bom exercício da razão e que se
distinguem em cinco: a prudência, φρόνησις, a arte, τέχνη, a ciência, ἐπιστήμη, a intuição, νους,
a sabedoria, σοφία. As capacidades éticas e dianoéticas são alcançadas por homens que
conseguem agir de acordo com a razão, seja em seguir o que ela determina como o melhor
modo de agir em determinada situação, seja quando o pensamento é exercido da melhor forma
possível, o qual pode se desdobrar nos cinco tipos agora elencados. Seguindo a exposição da
alma humana, vemos que estas virtudes decorrem de uma correta integração entre as partes da
alma, a vegetativa e a perceptiva, culminando com o bom agir e com o bem pensar. Isto será
muito bem explorado por Aristóteles em sua teoria do conhecimento, principalmente ao modo
como nós conhecemos as coisas pelos sentidos, organizando-os na nossa imaginação, obtendo,
a partir disto, uma experiência e, por fim, apurando os dados em conhecimento verdadeiro das
causas e dos princípios da realidade.

2.3 A função do homem e a vida humana

O que podemos compreender, portanto, deste passo da Ethica Nicomachea e da


argumentação utilizada por Aristóteles para definir o bem último do ser humano, ou seja, o
elemento ordenador de todas as ações humanas e, por isso, o ponto de referimento da pesquisa
desenvolvida na Ethica Nicomachea, é que as ações humanas são o desedobramento dos
princípios que compõem o homem e uma vida humana. Portanto, toda e qualquer discussão da
ética e da política, para que seja conduzida de maneira completa, deveria se perguntar quais são
estes princípios que definem esta substância, cuja realidade é uma vida de atividades praticadas
a partir de uma alma racional.
43

Estabelecidos quais são os fatores próprios de uma vida humana, de que nela existe a
prática de atividades e de práticas produtivas, cujos fins se organizam e se articulam entre si
para que, de maneira gradual, o homem possa alcançar, finalmente, o bem supremo que lhe é
próprio, poderíamos querer perguntar quais são as causas pelas quais esta realidade, este fato
humano, é de tal maneira existente. Visto que este determinado fato humano ocorre na
realidade, poderíamos querer saber o por que de tudo isso ser possível de acontecer. Se
seguirmos a argumentação aristotélica na Ethica Nicomachea na busca pela definição do bem
supremo humano e nos deparmos com o argumento do ἔργον, não podemos não perceber que
ao fundo está o tratado de De Anima, ou a pesquisa sobre a substância dos seres vivos, dando
suporte aos conceitos descritos na ética e que não poderíamos deixar de recorrer a ele para uma
investigação completa dos modos como o homem age para alcançar o seu fim último. Somente
poderíamos encontrar em De Anima a causa pela qual o homem consegue se sustentar como ser
vivo e agente de ações, produtor de objetos e articulador de meios e fins para o cumprimente
de determinada tarefa. A vida humana tem a causa de sua vitalidade em algo que não pode ser
estudado pela ética. Recordando de uma passagem de De Anima vemos que somente alí que
poderia se discutir e se demonstar razão pela qual uma substância viva pode praticar todas as
atividades praticas, as produtivas, as intelectuais, e perceptivas, todas aquelas que compõem
uma vida humana.
No segundo capítulo do livro II de De Anima, Aristóteles, após ter chegado, no capítulo
anterior, a uma primeira definição de alma, alcançada por um procedimento demonstrativo
realizado a partir de conceitos previamente estabelecidos, descobertos, possivelmente em
Metafísica Ζ, e iniciando uma nova tentativa de definir o que seja alma, diz que: “οὐ γὰρ μόνον
τὸ ὅτι δεῖ τὸν ὁριστικὸν λόγον δηλοῦν, ὥσπερ οἱ πλεῖστοι τῶν ὅρων λέγουσιν, ἀλλὰ καὶ τὴν αἰτίαν
ἐνυπάρχειν καὶ ἐμφαίνεσθαι.”25 – “De fato, não somente o “o que” deve o discurso definitório
evidenciar, como a maioria das definições enunciam, mas também a causa deve compreender
e manifestar.” (tradução nossa).
Não apenas falar sobre a vida humana, sobre como ela se desenvolve, nem somente
expor as possibilidades de existência do ser humano, de como ele consegue articular as suas
necessidades com as respostas que ele descobre para cada uma delas em vista de saná-las e se
colocar cada vez mais próximo a seu objeto mais alto, deve ser o trabalho de alguém que estuda
o modo pelo qual o homem vive, mas deve ser, sobretudo, buscar expor as causas pelas quais
ele é capaz de fazer tudo isto. Pelo argumento do ἔργον, da função, pudemos ver que Aristóteles

25
ARISTÓTELES; De Anima II.2, 413a 13-16.
44

faz uso de conceitos que não são discutidos na Ethica Nicoamchea e que são abordados de
maneira muito rápida para dar sustentação argumentativa à definição de εὐδαιμονία que ele
gostaria de estabelecer naquele momento do texto. Mas Aristóteles não poderia no tratado
mesmo de ética levantar e discutir estes conceitos, uma vez que a ética se define como a ciência
que estuda o ser humano enquanto agente de ações no qual o princípio da ação, a escolha
deliberada, se encontra no agente e que a escolha coincide com o objeto da ação. Ou seja, a
ética tem como objeto de estudo um campo restrito da realidade humana, restrito à dimensão
do agente de ações que é analisado por ela, abordado não mais apenas enquanto ser vivo,
enquanto um ente dotado de alma e possuidor de propriedades que lhe permitem a vida. A
Ethica Nicomahcea, como Aristóteles mostrou, logo no início, ao considerar as possibilidades
de atividade humanas voltadas todas para um certo bem, se restringe ao campo da ação prática
e produtiva do ser humano.
Assim sendo, pelo modo em que Aristóteles se valeu do argumento do ἔργον na etapa
fundamental da Ethica Nicomachea como uma argumentação que se estrutura na distinção entre
as funções próprias a cada tipo de ser vivo, permitindo, num seguinte momento, esclarecer qual
é o fim úlitmo guiador das atividades humanas e, portanto, de acordo com o objeto de estudo
da ética, o ponto de referimento de toda a investigação sobre a vida humana, poderíamos dizer,
com clareza, que foi exigido um regresso investigativo aos princípios possibilitadores desta
ciência prática, a ética, através da investigação feita por uma ciência teorética sobre a alma,
contida em De Anima.
Ao utilizar o argumento do ἔργον, no qual mostrou que o bem supremo do homem é a
perfeição de sua função racional, Aristóteles se valeu de um horizonte conceitual mais amplo
do que aquele da ética, a qual estuda o ser humano como agente de ações realizadas após uma
escolha deliberada. Isto significa que ao objeto de estudo da ética deve ser um desenvolvimento
da função humana até a sua perfeição através da realização da atividade para a qual o homem
está configurado essencialmente e que, por isso, na Ethica Nicomachea seriam investigadas as
coisas que surgem na vida humana como meio de se alcançar a realização do bem supremo a
partir da determinação formal da alma humana. Este patamar de investigação conceitual voltado
para as propriedades essenciais da alma em geral e especificamente da alma humana, só poderia
ser realizado por uma ciência mais universal que a ética e a política.
Aristóteles usa, portanto, um tipo de argumentação que poderia nos fazer recorrer ao De
Anima para tentar respondê-la melhor. No entanto, ao irmos ao De Anima na tentativa de
consultar a ordenação entre si das funções da alma e dos tipo de vida que delas decorrem e de
que forma eles estão dispostos para fazer com que o homem seja um ser vivo, nos deparamos
45

com a necessidade de uma metodologia de pesquisa proposta por Aristóteles de proceder


primeiramente pela análise de cada uma das funções que se verificam nos vários seres vivos
para somente depois tentarmos organizar a relação existente entre elas.
No entanto, até mesmo para recorrermos ao tratado de De Anima a ser utilizado como
um texto que nos sirva de sustenção conceitual quanto aos princípios da vida humana para assim
conduzirmos a discussão da ética sobre bases conceituais comuns, sobre a qual uma
compreensão mais precisa da Ethica Nicomachea poderia ser feita, devemos atentar para o
ponto no qual a ligação entre os dois tratados possa ser feita. Este ponto de ligação somente
pode ser identificado no momento no qual Aristóteles consegue distinguir o tipo de vida que
pertence unicamente ao ser humano. O tipo de vida intelectiva não é compartilhado nem pelos
vegetais e nem pelos animais. Disso, Aristóteles pôde concluir que, ao buscar a função própria
ao homem, sendo a vida intelectual a atividade da função que somente o homem pode praticar,
é ela a atividade da parte intelectiva da alma humana. E a εὐδαμιμονία será, portanto, o exercício
ativo bem realizado desta parte da alma humana.

2.4 De Anima – a definição de alma

No segundo livro de De Anima, Aristóteles tenta dois caminhos para conseguir definir
a alma. O primeiro deles parte de alguns conceitos que nos fazem lembrar a discussão de
Metafísica Ζ sobre a substância. Esta teria três significados: 1) forma, 2) matéria e 3) o
composto de ambas, de matéria e forma. Destes três significados, o melhor que se encaixa na
realidade dos seres vivos é o de substância como composto de matéria e forma. Parecendo ser
substância, sobretudo, os corpos e, dentre os corpos, ainda mais os naturais e, entre os corpos
naturais, alguns tendo vida e outros não, todo o corpo natural dotado de vida será uma
substância, e o será precisamente como substância composta. E sendo a substância dos seres
vivos um corpo de determinada espécie, a alma não pode ser um corpo, uma vez que ela é
predicada dele. Resta, portanto, concluirmos que a alma é a forma de um corpo natural que tem
a vida em potência26. Além disso, a substância no sentido da forma é ato e, portanto, a alma é
também ato do corpo. Por sua vez, ato tem dois sentidos, um como ἐπιστήμη e outro como
θεωρεῖν, ou seja, um sentido de capacidade para o exercício e outro como o exercício em
prática. De maneira análaga, a vigília é a ciência em exercício no θεωρεῖν, enquanto que o sono

26
Cf. Aristóteles; De Anima II.1, 412a 19-21.
46

é a ciência ainda como potência para o conhecimento, a ἐπιστήμη. Sendo o sono análogo à posse
da ciência, e a vigília, ao exercício da ciência, Aristóteles completa a analogia com relação à
alma, pela qual, primeiro no indivíduo, há a atualidade primeira da forma de um corpo que há
a vida em potência e, somente em um momento posterior, há o exercício completo destas
capacidades de vida.
Em acréscimo a esta definição, Aristóteles ainda acrescenta que o corpo que há a vida
em potência é um corpo dotado de orgãos, do qual a alma é o ato primeiro. E o corpo de um ser
vivo deve ser capaz de fazer funcionar todos os seus órgãos para sustentar a sua vida. Mas,
perdida a capacidade de sustentar a vida, um corpo natural não é mais o corpo de um ser vivo,
mas o seria apenas por homonímia. Por isso, a alma deve ser o ato primeiro de um corpo para
permití-lo a sustentar a vida.
Estabelecida esta primeira definição de alma no capítulo primeiro do segundo livro de
De Anima, Aristóteles decide retomar desde o início a discussão sobre a alma e tentar uma nova
definição, pois uma definição não pode apenas mostrar que uma coisa é de fato, como o fazem
a maioria das definições, sendo apenas como uma conclusão de um silogismo, mas a boa
definição deve conter sobretudo as causas de um fato determinado. Aquele que busca uma boa
definição deve fazer com que nela esteja contido o fato e a razão pela qual o fato é de
determinada maneira. Buscar este tipo de definição e não somente o outro equivale ao
procedimento de identificar a razão pela qual a quadratura pode ser construída quando se
encontra a linha média entre uma figura oblonga e o equivalente retângulo eqüilátero
circunscritos em um semi-círculo. A linha média é a razão entre as duas figuras, ela é a causa
pela qual, de um figura, se pôde formar outra figura equivalente em área. A linha é o termo
médio que permite que, de uma figura, forma-se outra figura.
De maneira semelhante, no caso da alma, deveríamos encontrar uma definição na qual
fosse expressa a razão pela qual um ser vivo tem vida, ou seja, que diga que a alma é a razão
pela qual ele é um ente vivo. Os seres animados se distinguem dos seres inanimados porque
vivem, ou seja, dos corpos naturais, os seres vivos se distinguem por serem corpos naturais
vivos. O viver se diz em muitos sentidos, mas dizemos que um ser é vivo quando a ele pertecem
ao menos uma das características do intelecto, da sensação, do movimento e do repouso, ou da
nutrição, do crescimento ou da diminuição.
Podemos verificar na realidade que as plantas se nutrem, crescem segundo uma
determinada ordenação. Vemos que os animias também se nutrem e têm ao menos o mais
básicos dos sentidos, isto é, o tato e que poderíamos dizer também que o homem pensa,
raciocina e conhece algo da realidade. A vida, portanto, parece pertencer a todos estes seres
47

vivos por conta do princípio existente neles que os permitem realizar estas funções. A definição
primeira de alma dizia que ela é a forma de um corpo natural que há a vida em potência e, além
disso, que, sendo a forma ato e o ato possuindo os sentidos de ἐπιστήμη e do θεωρεῖν, a alma
seria o ato primeiro no sentido da ciência, ou seja, no sentido do possibilitador do exercício da
ciência. Os seres vivos, que possuem alma, se distinguem dos corpos naturais não vivos pela
vida, e podemos dizer que eles são vivos por exercitarem as atividas da nutrição, da sensação,
do deslocamento e do pensamento. Tendo isto em mente, Aristóteles completa o raciocínio
dizendo que: “ἐπεὶ δὲ ᾧ ζῶμεν καὶ αἰσθανόμεθα διχῶς λέγεται, καθάπερ ᾧ ἐπιστάμεθα (λέγομεν
δὲ τὸ μὲν ἐπιστήμην τὸ δὲ ψυχήν, ἑκατέρῳ γὰρ τούτων φαμὲν ἐπίστασθαι).”27 – “uma vez que
‘isto mediante o qual vivemos e percebemos’ se diz em dois sentidos, como também ‘isto
mediante o qual conhecemos’ (nos referimos, por um lado, ao conhecimento e, por outro, à
alma, pois dizemos conhecer por cada um destes” (tradução nossa).
Isto quer dizer que aquilo mediante o qual podemos conhecer, ou perceber, em resumo,
viver, pode ser conpreendido como o exercício ou o ato de realização da capacidade de
pensamento, de percepção e de vida, ou aquilo permite que estes exercícios sejam praticados.
E Aristóteles ainda acresecenta que a ciência é como o ato do sujeito apto a receber28, ou seja,
é o exercício do sujeito capaz de receber a ciência. Sendo, dos dois sentidos de alma, um o ato
primeiro como ciência e o outro como ato segundo como o exercício da ciência, a alma é,
primeiramente, o sentido de ser como ciência. Desta argumentação podemos concluir que a
alma é aquilo mediante o qual um sujeito pode exercer a ciência, ou a nutrição, ou a percepção
ou o pensamento em plena atividade. Portanto, podemos dizer que: ἡ ψυχὴ δὲ τοῦτο ᾧ ζῶμεν
καὶ αἰσθανὸμεθα καὶ διανοούμεθα πρώτως.29 - a alma é isto primeiramente pelo qual vivemos,
percebemos e pensamos. (tradução nossa).
Em consequência, podemos dizer que a alma deve ser uma certa essência ou forma,
εἶδος, mas que não seja nem matéria e nem o substrato, como já havíamos visto na primeira
definição de alma, pois um corpo é o substrato ao qual a forma inere. Em um ser-vivo, sendo
ele uma substância composta de matéria e forma, o ato não pode ser o substrato daquilo que
tem vida em potência, pois a vida é a realização desta capacidade de um corpo natural ter vida.
Mas um corpo natural que tem em potência a vida é um corpo de certa natureza passível de
receber a forma ou a alma que lhe permitirá ser vivo. Portanto, podemos concluir que a alma

27
ARISTÓTELES; De Anima II.2, 414a 4-6.
28
Cf. Aristóteles, De Anima II.2, 414 9-10.
29
ARISTÓTELES; De Anima II.2, 414a 1213.
48

deve ser a forma ou a essência de um corpo natural que tem a potência de ser de determinada
natureza.

2.4.1 A definição da alma intelectiva

O tratado De Anima é uma obra que busca definir a alma e suas propriedades. Sendo
assim, a explicação de seu objeto de investigação – a alma – deveria se limitar, aparentemente,
a uma definição que servisse para as três espécies diferentes de alma. Porém, uma tal definição
não serviria como definição a nenhum tipo específico de alma, sendo apenas uma definição
geral não aplicável a nada específico. Este tipo de definição se assemelharia a uma definição de
figura geométrica, as quais só existem como triângulo, quadrado, pentágono e assim por diante,
mas às quais se aplica uma definição geral, mas que não serve especificamente a nenhuma delas.
No caso das almas vegetativas, sensitivas e intelectiva, o caso seria o mesmo. Existindo apenas
uma definição geral que é aplicável a todas, mas especificamente a nenhuma delas, é necessário
que se pesquise cada uma delas em particular.
No entanto, da mesma forma, ocorre com as figuras geométricas. O triângulo é a figura
geométrica mais simples de todas e a primeira a ser formada, a partir da qual todas as outras
figuras, tais como o quadrado, o pentágono, podem ser formadas através da justaposição delas
entre si. Com a alma, a mesma coisa aconteceria, uma vez que uma alma poderia estar
potencialmente contida na outra, como a alma vegetativa estaria contida em potência na alma
sensitiva. Por isso, pela impossibilidade de se chegar a uma definição que sirva para todas elas,
é necessário que se investiguem as espécies de alma, ou seja, a da planta, a do homem e a das
feras, para que se evite, assim, uma definição abstrata que não se refira a nada da realidade e
para que se possa conhecer de que maneira uma espécie de alma se arranja com as diversas
funções presentes em cada alma de cada ser-vivo de uma determinada espécie.
O estudo da alma intelectiva deveria mostrar o traço essencial que a distinguiria das
outras espécies de alma. Esta parte da alma é aquela pela qual conhece e pensa30 e quanto à
qual deve-se investigar qual seja a sua característica específica e de que maneira a intelecção
se produz31. Ao mesmo tempo, este estudo nos permitiria identificar a alma de um indivívuo da
espécie humana. Pois, como Aristóteles insiste que a alma de um indivíduo não possui partes
separáveis, mas exerce funções dintintas em uma única alma, que a alma é o princípio das

30
Cf. Aristóteles; De Anima III.4, 429a 10-11.
31
Aristóteles; De Anima III.4 429a 13-14.
49

faculdades de nutrição, crescimento, sensação, movimento e de pensamento e que, embora


separávies logicamente, as funções da alma não se separam realmente em várias almas distintas
num mesmo indivíduo, é preciso investigar cada uma destas espécies de alma nos casos
concretos em que elas existem.
Uma alma é alma de uma planta, de um animal e de um homem. Nas plantas, a alma
tem apenas a função vegetativa, ou seja, a função que realiza a nutrição e o crescimento. Nos
animais, a alma possui as funções de nutrição e crescimento e também a função sensitiva, capaz
de acolher as formas sensíveis dos objetos da realidade. E, no homem, encontramos todas as
funções anímicas que as plantas e os animais possuem mais a função intelectiva. Mas, segundo
a analogia feita por Aristóteles com as figuras geométricas e a alma, na qual era explicado que,
da mesma forma que na geometria o termo precedente está contido em potência no termo
posterior, ou seja, que os triângulos estão contidos em potência no quadrado, também na alma
a função vegetativa está contida em potência na função sensitiva, e possivelmente também as
outras estariam contidas em potência na função intelectiva, devemos ter claro que a alma na
qual estão contidos os termos precedentes é a forma determinante do indivíduo estudado. Se
analisarmos um animal para esclarecermos o que vem a ser a alma animal que exerce a função
sensitiva, devemos perceber que a alma vegetativa ainda que necessária para a manutenção da
sensitiva, dependeria formamente da alma sensitiva. Esta é a forma do animal em questão e é o
ponto mais alto e superior ao qual este ser vivo pode alcançar. É através da alma sensitiva que
um animal se distingue de uma planta e para a qual sua vida deve estar voltada para realizar-se
completamente. Analisar um animal sem ter a alma sensitiva como o ponto alto de plenitude da
forma seria como perder de vista o que é um animal e ter apenas a análise de uma função sendo
somada à análise da outra função seria como juntar duas peças distintas de um quebra-cabeças
sem perceber o quadro geral do qual elas farão parte quando este estiver completo.

2.4.2 A função intelectiva

Aristóteles começa a tratar da função intelectiva de maneira específica nos capítulos 4,5
e 6 do livro III de De Anima, explicando que a natureza desta função é a atividade de apreensão
das essências de cada um dos objetos e a produção de juízos com estas formas. Na passagem
429a 13-18, Aristóteles compara o pensamento, ou seja, a atividade desta função da alma, à
percepção, sendo que esta sofreria a ação dos objetos em seu aspecto sensível e o pensamento,
a ação dos objetos em seu aspecto inteligível. Vejamos a passagem:
50

“εἰ δή ἐστι τὸ νοεῖν ὥσπερ τὸ αἰσθάνεσθαι, ἢ πάσχειν τι ἂν εἴη ὑπὸ τοῦ νοητοῦ
ἤ τι τοιοῦτον ἕτερον. ἀπαθὲς ἄρα δεῖ εἶναι, δεκτικὸν δὲ τοῦ εἴδους καὶ δυνάμει
τοιοῦτον ἀλλὰ μὴ τοῦτο, καὶ ὁμοίως ἔχειν, ὥσπερ τὸ αἰσθητικὸν πρὸς τὰ
αἰσθητά, οὕτω τὸν νοῦν πρὸς τὰ νοητά”.32

“Se, então, a intelecção é como o perceber, ou seria um padecer algo da parte


do inteligível ou alguma outra coisa deste tipo. Então é necessário ser
impassível, capaz de receber a forma e ser esta [forma] em potência mas não
ser esta [forma em atualidade]; como o órgão sensório em relação ao objeto
perceptível, assim o intelecto em relação aos objetos inteligíveis.” (tradução
nossa)

Nesta passagem, Aristóteles faz uma analogia entre a percepção sensível e o perceptível
e a função intelectiva do pensar e a forma inteligível. Assim como a percepção sensível sofreria
a ação do objeto percebido como algo que, sendo uma potência passiva, sofre a ação de uma
potência ativa para que se atualize plenamente, da mesma forma ocorreria com o intelecto,
capaz de receber a forma inteligível da parte do objeto inteligível. Para receber a forma de um
objeto, o intelecto não pode estar ele mesmo atualizado, isto é, não pode ser ele mesmo nenhuma
forma determinada antes de apreender a forma inteligível, a qual bloquearia a apreensão ou a
atualização do objeto inteligível, o qual não encontraria espaço onde se atualizar. O intelecto
deve ser capaz de receber a forma, estando preparado para recebe-la por ser esta forma em
potência, sem que seja ela atualmente, ἀλλά μὴ τοῦτο, pois se o fosse estaria já modificado pela
forma recebida, estando já atualizado com esta forma.
Mais à frente, em outra passagem que se refere à mesma função do νοῦς, Aristóteles,
mantendo presente a similaridade passiva das duas funções, distingue a faculdade sensitiva da
faculdade intelectiva naquilo que diz respeito aos seus objetos respectivos. A diferença
fundamental, no entanto, entre as duas é que a primeira é capaz de apreender o que é a carne
em suas qualidades materiais, isto é, no modo como ela está composta pela matéria na realidade,
no arranjo entre as suas partes, na sua coloração, na sua consistência, na sua temperatura,
enquanto que o intelecto é capaz de apreender o que é a carne realmente, ou seja, a sua essência,
a razão pela qual a carne é da maneira como a percepção sensível a apreende através do sentidos.
Aristóteles diz: τῷ μὲν οὖν αἰσθητικῷ τὸ θερμὸν καὶ τὸ ψυχρὸν κρίνει, καὶ ὧν λόγος τις ἡ σάρξ·
ἄλλῳ δέ, (...) τὸ σαρκὶ εἶναι κρίνει.33 - Por um lado, pela faculdade sensitiva, o quente e o frio,

32
ARISTÓTELES; De Anima III.4, 429a 13-18.
33
ARISTÓTELES; De Anima 429b 14-18.
51

distingue, isto é, sendo a carne uma proporção. Portanto, por outra, (...) distingue o ser
segundo a carne. (tradução nossa).
A percepção sensível é capaz de apreender a carne como ela é encontrada na realidade,
ou seja, composta em uma matéria, ordenada nas qualidades materiais do calor, do frio, da
consistência, da coloração, da sua grandeza material. Mas somente a função intelectiva do
homem é capaz de apreender e distinguir o ser da carne, a sua essência, as causas pelas quais
as características daquela determinada carne que foi percebida sensivelmente pelo indivíduo se
encontravam arranjadas daquela maneira. Nesta passagem, Aristóteles deixou clara a diferença
entre o objeto e a sua essência, concebendo a cada uma das funções humanas uma atividade
distinta uma da outra no conhecimento destes termos. A atividade do νοῦς, a função essencial
da alma intelectiva é a apreensão das essências, daquilo que uma coisa é, sem fazer nenhum
tipo de composição entre o seu ser essencial e um acidente, ou seja, ela é a apreensão da forma
indivisível do objeto34.
Esta atividade da função intelectiva da alma humana está na base de todas as outras
cinco capacidades dianoéticas elencadas por Aristóteles na Ethica Nicomachea. Cada uma delas
depende, de certa maneira, da apreensão da forma ou do εῖδος do objeto para o qual se voltam.
E é esta capacidade que distingue o homem dos animais, fazendo com que ele possa viver uma
vida realmente humana. No entanto, esta capacidade de apreensão dos inteligíveis ou dos
princípios de um determinado objeto não é uma tarefa simples, mas requer um grande esforço
para ser realizada. Parece que a atividade de apreensão deve começar com uma atitude inicial
de questionamento e busca do princípio e da forma de um objeto. E dificilmente encontramos
um homem comum indagando-se pela essência das coisas. Encontrar a essência das coisas é a
função própria da alma intelectiva, atividade a qual dá início e possibilita a aquisição e a
atividade de todas as outras capacidades intelectuais humanas. A frase inicial da Ethica
Nicomachea que elencava os âmbitos de ação humanos resgata a realidade humana que se inicia
apenas com a atividade da apreensão das essências pela alma intelectiva. Como vimos,
Aristóteles, no livro VI da Ethica Nicomachea, apresenta as cinco potências dianoéticas, das
quais duas são virtudes, como a especialização ou o desenvolvimento da alma intelectual, a
qual tem o seu ápice virtuoso na atividade bem realizada da σοφία.

34
Esta passagem é muito importante para esclarecer toda a doutrina aristotélica do conhecimento, inclusive a difícil
questão relativa ao νοῦς ποιητικός e o νοῦς παθητικός. Neste texto agora, não desejaria me deter muito na análise
exaustiva de todos os conceitos envolvidos, por duas razãoes: primeira porque gostaria de chegar a outro ponto de
explicação anterior na minha argumentação; e segundo que só poderia analisar toda esta teoria depois de realizar
a análise também das capacidades do νοῦς, da ἐπιστήμη e da σοφία, que são o escopo deste meu trabalho.
52

Resta-nos saber, portanto, como esta vida humana se inicia, o que caracteriza o seu
início, quando se pode dizer que um homem vive uma vida de ser humano. A partir disso,
compreenderemos de que forma a σοφία é o ápice, a virtude da vida humana como um todo, e
do que ela é a virtude. E em seguida, respeitando a metodologia aristotélica aplicada na análise
das outras duas funções da alma, a vegetativa e a sensitiva, de descobrir primeiro o objeto para
o qual elas duas se voltam, depois o exercício ou a atividade das potências envolvidas praticados
e somente depois descobrir exatamente o que é cada uma das funções, poderemos compreender
o que é a função intelectiva da alma. É pelo exercício da função que poderemos descobri-la. No
casa da alma humana, não há apenas um único exercício, mas a apreensão dos inteligíveis do
νοῦς se desdobra em diversas capacidades.

2.5 Metafísica Α – a sabedoria (σοφία)

Vemos que no começo da grande maioria de seus tratados, para não dizer de todos,
Aristóteles busca o esclarecimento mais preciso da ciência, do método e dos traços gerais dos
objetos que serão abordados em seguida no texto. Em Metafísica Α, Aristóteles abre o capítulo
com uma afirmação sobre a essência do ser humano:

Πάντες ἄνθρωποι τοῦ εἰδέναι ὀρέγονται φύσει.35


Todos os homens, por natureza, tendem ao saber. (tradução nossa)

Temos nesta sentença uma fórmula lapidar que condensa muito da filosofia aristotélica
ao apresentar a natureza humana inclinada a realizar-se na busca e no exercício ativo do saber.
O termo que indica o destino para o qual o homem se dirige é εἰδέναι, que deriva do termo εἴδω,
que pode ser traduzido como ver, enxergar, saber, saber como fazer, ter habilidade de, ou seja,
é um termo que abrange uma amplitude semântica bem vasta, expressando a capacidade de se
ter um profundo contato cognitivo com um determinado objeto, o que, por sua vez, pode se
desdobrar em vários tipos de atividades cognitivas distintas. O modo como o homem está
constituído na realidade é expresso pelos termos ὀρέγονται φύσει. O primeiro deriva do verbo
ὀρέγω, que significa inclinar-se, estar voltado para, tender, e está qualificado na sentença pelo
termo φύσει, que indica uma proveniência original a partir da essência humana. A origem

35
ARISTÓTELES; Metafísica Α.1, 980a 1.
53

essencial desta inclinação é reforçada pela afirmação de sua validade universal, pois os termos
πάντες ἄνθρωποι, ou seja, todos os homens, indicam todos aqueles aquelas homens que
tenderiam igualmente ao conhecimento. Portanto, pode concluir que isto faça parte da essência
humana, a qual alcança a sua finalidade ao realizar-se no saber, no conhecimento.
Dois, ao menos, são os aspectos que a sentença inicial da Metafísica concentra: o
primeiro é a inclinação natural do homem, afirmação que pertenceria a uma espécie de
antropologia natural aristotélica; o segundo, o saber, pertenceria à discussão sobre a teoria do
conhecimento, da organização das ciências e das capacidades intelectuais humanas. Para a
precisa compreensão desta sentença e a apresentação dos significados que ela possui, são
necessários ao menos dois momentos de análise, nos quais serão desenrolados os sentidos
condensados em apenas seis palavras na original grego. A Metafísica reúne em si, o ponto mais
alto das duas discussões, tanto como complemento dos estudos éticos, principalmente como
extensão das explicações sobre as potências racionais como fora discutido na Ethica
Nicomachea, especialmente no livro VI, quanto o modo de realização da atividade mais alta
das capacidades humanas responsável pela plena atualidade da alma humana.
Os estudos éticos de Aristóteles buscam tratar o modo como a essência humana se
desenvolve nos afazeres para os quais o homem tem capacidade. A forma que compõem junto
da matéria a substância humana se desdobra nas funções vegetais, animais e racionais na
atualização de modos de ser, entre os quais, o mais apurado e fino, altaneiro e nobre, é a
atividade do θεωρεῖν junto à verdade, cuja virtude perfeita tem como nome σοφία, a sabedoria.
Todo o percurso do homem, entre seus percalços e venturas, entre os vícios que acumula e as
virtudes que consegue desenvolver, tem como ápice existencial a plena atualização do elemento
formal de sua alma na ação ativa de saber quais são os princípios da realidade. O campo de
estudo que se estende sobre a realidade do modo de vida e dos afazeres humanos pertence à
ética e tem como clássico escrito o tratado Ethica Nicomachea, de Aristóteles. Embora a σοφία
seja tida como o que há de mais elevados entre as atividades humanas, ela não é exposta de
maneira integral neste tratado. Mas encontramos um longo e precioso estudo do que ela seja
durante toda a Metafísica. Os trabalhos, portanto, se complementam entre si, com a ética dando
origem ao estudo metafísico, ou a metafísica sendo a extensão necessária dos estudos éticos.
Ocorre que a σοφία, como as demais virtudes éticas e potências dianoéticas definidas na
Ethica Nicomachea, é atividade de uma capacidade humana, um exercício de uma das funções
da alma humana, da mais alta dentre elas, as quais juntas dão conta do ser humano completo.
Pela parte animal da alma, é que o homem apreende os elementos sensíveis da realidade, os
quais, através de um processo de apuro, assomam à universalidade daquilo que contém através
54

da memória, depois da experiência e, por fim, na intuição dos princípios universais pelo
intelecto humano. A sabedoria, a σοφία, é justamente o modo do ser humano trabalhar a
apreensão dos princípios e demonstrá-los em sua atividade filosófica. Assim, temos as partes
da alma humana, as suas funções e atualizações formais da substância, trabalhando no
desenvolvimento atual e existencial do homem.
Neste ponto é necessário recorrermos, portanto, à exposição que Aristóteles faz das
partes da alma humana, mostrando que há uma das funções que somente o homem possui e o
distingue dos outros animais, dentro da pesquisa que ele faz na Ethica Nicomachea para se
definir a ἐυδαιμονία, a felicidade, cujo conteúdo nos últimos trechos deste referido tratado será
tido como uma atividade da vida intelectual exercida pela virtude da σοφία, a sabedoria, e a
finalidade da vida humana.

2.5.1 A σοφία em Metafísica Α.1 e 2 e o início da vida humana

Em Metafísica Α 1 e 2, Aristóteles inicia uma pesquisa para descobrir o que é a


sabedoria, a σοφία, e o que faz um homem ser sábio. Aristóteles retoma, então, todos os graus
nos quais um ser-vivo adquire uma apreensão de algo da realidade, desde o contato sensível até
a apreensão intelectual das causas da realidade. A ascensão até o mais cognoscível por natureza,
ou seja, os primeiros princípios e as causas primeiras, começa a partir daquilo a que temos
acesso como seres materiais, para os quais a realidade está posta de maneira complexa e
intrincada nas disposições materiais de cada um dos objetos, de cujos segredos o
desvendamento requer as mais altas capacidades de raciocínio e dedicação no estudo que
somente poderiam se iniciar com a mudança de postura frente à realidade. A admiração por
certo algo da realidade, a surpresa ao se perceber que um fato existe e que é de tal maneira,
motiva o início de cada uma das investigações sobre as razões pelas quais as coisas são da
maneira que são. Como veremos mais à frente, o início da atividade intelectual que caracteriza
a vida humana e faz a função intelectual da alma exercitar-se, acontece com a admiração por
um fato da realidade e se desdobra na atividade de pesquisa, estudo, reflexão, apreensão e
demonstração de suas causas.
O primeiro meio de acesso que os homens junto a outros animais, tem à realidade lhe
é dado desde o seu nascimento através de sua alma perceptiva. Dos cinco sentidos, a visão é o
que o mais faz conhecer as coisas, por três razões: ela é o mais imaterial dos sentidos, pois
apreende a forma que advém dos objetos que chega à pupila através do meio aéreo ou aquático
55

atualizado em luminosidade. O órgão da visão quando modificado pelo objeto percebido, se


altera imaterialmente, sem que modifique a sua natureza, mas atualizando-a, apenas recebendo
o que há do aspecto formal no que o sujeito observa; pela apreensão deste aspecto formal, a
visão consegue dar conta dos sensíveis-comuns, ou seja, das formas que são comuns aos objetos
mateiras, como as dimensões, a profundidade, a altura, a largura; e na visão o que é percebido
dos objetos são qualidades que neles permanecem, ao contrário do que ocorre com o olfato, por
exemplo, que sente o cheiro dos vapores emanados dos corpos. Assim, a visão consegue ser o
sentido que apreende de maneira mais perfeita os atributos do objeto que está diante daquele
que o percebe.
Não basta, porém, para se ter o conhecimento da realidade, a simples percepção
sensível das coisas. Algo mais precisa entrar na conta para que o que foi percebido possa ser
trabalhado e esclarecido no que tem de mais verdadeiro. Este algo é a memória, quanto a qual
Aristóteles faz uma distinção em três níveis dos animais que: 1- não têm memória; 2- têm
memória, mas não escutam; 3- têm memória e escutam, considerando que aqueles que não têm
memória são menos inteligentes e menos capazes de aprender alguma coisa do que aqueles que
têm memória e escuta. Mas os que têm memória e escutam são mais inteligentes e têm mais
capacidade de aprender do que os que têm memória mas não escutam nada.
No capítulo 19 do segundo livro dos Analíticos Posteriores, nos é explicado que a
memória é a persistência sistemática dos sentidos percebidos, que em alguns animais é parte
integrante do processo de conhecimento:

“ὅσοις μὲν οὖν μὴ ἐγγίγνεται, ἢ ὅλως ἢ περὶ ἃ μὴ ἐγγίγνεται, οὐκ


ἔστι τούτοις γνῶσις ἔξω τοῦ αἰσθάνεσθαι· ἐν οἷς δ' ἔνεστιν αἰσθομένοις
ἔχειν ἔτι ἐν τῇ ψυχῇ. πολλῶν δὲ τοιούτων γινομένων ἤδη διαφορά τις
γίνεται, ὥστε τοῖς μὲν γίνεσθαι λόγον ἐκ τῆς τῶν τοιούτων μονῆς, τοῖς δὲ
μή. Ἐκ μὲν οὖν αἰσθήσεως γίνεται μνήμη.” 36

“Em animais nos quais esta persistência não vem a ocorrer, não
há conhecimento algum fora o ato de perceber ou nenhum
conhecimento de objetos cuja impressão não persiste; em animais nos
quais ela vem a ocorrer têm percepção e podem continuar a reter a
impressão sensível na alma: e quando esta persistência é
frequentemente repetida, uma outra distinção surge entre aqueles que
da persistência de tal impressão sensível desenvolve um poder de
sistematiza-las e aqueles que não o fazem. Então da percepção sensível
vem a ocorrer o que chamamos de memória...”(tradução nossa).

36
ARISTÓTELES; Analíticos Posteriores II.19, 99b 37-100a 3.
56

A memória, portanto, é o segundo estágio no qual se desenvolve o conhecimento das


coisas sensíveis e na qual pode-se trabalhar as apreensões singulares através da imaginação. A
cada impressão que temos de objetos, do que se sucede em torno de nós, da mudança das coisas,
da cores e das formas das coisas, são sensações que, ao serem guardadas na memória podem
ser retomadas posteriormente e organizadas segundo uma ordem sistemática. Cada sensação
particular pode ser vivida novamente diversas vezes e organizadas pela memória com as outras
sensações similares. Deste processo pode ser alcançado o nível de conhecimento mais elevado
que é o da experiência, ἐμπειρία, da qual apenas poucos animais compartilham. De uma série
de memórias de um mesmo objeto nasce a experiência sobre um determinado aspecto da
realidade. A partir disto, Aristóteles começa a traçar as semelhanças e as diferenças entre a
experiência e a arte.
A experiência é própria daquele que, curando várias pessoas doentes de uma mesma
enfermidade com o mesmo remédio, sabe que o procedimento foi eficaz com um indivíduo e
também com outro, mas sem que isso faça com que ele se dê conta que todo o tratamento
funcionou com várias pessoas que sofriam da mesma doença por conta de certas características
comuns entre as pessoas e de ser a mesma moléstia que as abatia. A pessoa foi capaz de perceber
que várias vezes um remédio surtiu efeito em várias pessoas, como no exemplo dado por
Aristóteles da cura de Cálias e Sócrates pelo medicamento semelhante, tendo de fato uma
experiência quanto ao modo de operar da natureza das coisas. Ele tem um certo saber de que se
uma pessoa tiver uma doença tal, for do tipo de pessoal tal, pode-se receitar um remédio que
funcionou com casos semelhantes, mas este homem ainda não possui o conhecimento das
causas e das razões pelas quais aquela doença se abateu sobre aqueles indivíduos e por que o
método de cura deu certo. O domínio deste conhecimento resultaria na posse de uma arte, de
uma τέχνη, ou de uma ciência, ἐπιστήμη. Pois a “a técnica surge quando, a partir de muitas
noções apreendidas a partir da experiência, um pensamento universal surgiu sobre muitas
coisas iguais”37 (tradução nossa). A vivência da experiência tem de ser apurada com a avaliação
consciente daquilo que foi percebido, guardado pela memória e experienciado diversas vezes,
do que será extraído o que existe de universal, fazendo-se constituir um conhecimento
verdadeiro da realidade.
No entanto, a passagem de uma experiência de um âmbito da realidade para o seu
conhecimento efetivo depende de uma investigação que permite apreender-se as causas pelas

ARISTÓTELES; Metafísica Α.1, 981a 5-7: γίγνεται δὲ τέχνη ὅταν ἐκ πολλῶν τῆς ἐμπειρίας
37

ἐννοημάτων μία καθόλου γένηται περὶ τῶν ὁμοίων ὑπόληψις.


57

quais as coisas são da maneira que são. Do simples conhecimento do fato das coisa, o homem
começa a perguntar-se o por que das coisas.
Dos dados adquiridos pelos sentidos, retidos na memória e transformados em
experiências, temos apenas a apreensão dos particulares da realidade, de como cada um dos
objetos se comportou em determinados períodos de tempo e em determinadas circunstâncias.
Este conhecimento, no entanto, não nos diz nenhuma das causas de serem os particulares do
jeito que são, mas nos informam apenas que eles são assim. Diz Aristóteles que “ainda que as
sensações sejam, por excelência, os instrumentos de conhecimento dos particulares, mas não
nos dizem o por que (τὸ διὰ τί) de nada: não dizem, por exemplo, porque o fogo é quente, mas
somente assinalam o fato de que este (ὅτι) é quente”38 (tradução nossa); e que os “empíricos
sabem o ‘que’, mas não o ‘por que’ dele”39 (tradução nossa).
Por isso, quando o primeiro que descobriu uma arte, dizendo as causas pelas quais podia
produzir um determinado efeito, dominando, assim, o procedimento produtivo e aplicando-o
quando o quisesse, foi considerado, segundo Aristóteles, um homem sábio. E ainda o foi mais,
aquele que descobriu uma arte voltada para o bem-estar e que não tinha nenhuma utilidade
prática posterior que não o bem viver.
Mas a passagem do nível de conhecimento dos fatos particulares da realidade para o
nível do conhecimento das causas pelas quais os fatos são da maneira que são só se inicia com
o maravilhar-se, θαυμάζειν, por um fato de ser tal jeito e pelas dificuldades que encontramos
quando reconhecemos que um fato é como é.
Nos Analíticos Posteriores II.12, Aristóteles nos explica a natureza das nossa
indagações pelas causas da realidade. Ele diz: Τὰ ζητούμενά ἐστιν ἴσα τὸν ἀριθμὸν ὅσαπερ
ἐπιστάμεθα40 - Todas as coisas indagadas são iguais ao número do quanto podemos saber.
(tradução nossa). Ou seja, nossas dúvidas se originam dentro das nossas possibilidades de
indagação. Em 89b 24-25, Aristóteles nos diz quais e quantas são as nossas indagações:
ζητοῦμεν δὲ τέτταρα, τὸ ὅτι, τὸ διότι, εἰ ἔστι, τί ἐστιν.41 - Indagamos quatro coisas: o o quê?, o
por quê?; se é (existe)?, o que é?. (tradução nossa)
Segundo estas duas passagens, podemos compreender que a pesquisa científica se inicia
em dois momentos. O primeiro começa com a pergunta τὸ ὅτι, o “o que?”, ou seja, perguntamos
se um determinada evento ocorre ou não ocorre, se um fato é real ou não é real. O exemplo de

38
ARISTÓTELES; Metafísica Α.1, 981b 11 – 13: καίτοι κυριώταταί γ' εἰσὶν αὗται τῶν καθ' ἕκαστα γνώσεις· ἀλλ'
οὐ λέγουσι τὸ διὰ τί περὶ οὐδενός, οἷον διὰ τί θερμὸν τὸ πῦρ, ἀλλὰ μόνον ὅτι θερμόν.
39
ARISTÓTELES; Metafísica Α.1, 981a 28 – 29: οἱ μὲν γὰρ ἔμπειροι τὸ ὅτι μὲν ἴσασι, διότι δ' οὐκ ἴσασιν·
40
ARISTÓTELES; Analíticos Posteriores II.1, 89b 23.
41
ARISTÓTELES; Analíticos Posteriores II.1, 89b 24-25.
58

Aristóteles é claro: o sol sofre eclipse ou o sol não sofre eclipse? Ou seja, esta dúvida se refere
ao fato de sol ter ou não ter um determinado predicado, ou se ao sol está vinculada ou não uma
determinada categoria. Uma vez levantada esta questão, podemos finalizar a nossa indagação
com a obtenção da resposta. Porém, podemos também acrescentar uma outra pergunta a esta
resposta e iniciarmos uma nova fase de indagação e pesquisa, perguntando o por que de este
fato ocorrer. Após descobrirmos que algo acontece na realidade, podemos iniciar a verdadeira
pesquisa científica, buscando as causas pelas quais uma coisa se encontra de tal maneira. Esta
é a pergunta pelo διό τι.
O seu grupo de perguntas se inicia com a pergunta se algo é ou, εἰ ἔστι, ou seja, se algo
é real, se é o caso de algo ser, como por exemplo, se o centauro ou se Deus são. A pergunta gira
em torno da consistência real do objeto, de sua existência real e de fato. A partir do momento
em que sabemos que algo é ou que existe, podemos passar ao outro nível de pergunta sobre o
que é tal coisa, no que esta coisa consiste. A segunda pergunta é a pergunta pelo τὶ ἐστί, a
pergunta pela essência de uma objeto, da sua definição, da sua causa formal.
Aristóteles põe em igualdade ambas as perguntas da ocorrência do fato e a da existência
de algo, acrescentando que as duas perguntas indagam, na verdade, pela existência ou não de
um termo médio, μέσον. Em seguida, ele completa a afirmação dizendo que as perguntas de se
existe um termo médio e o que é o termo médio são as perguntas de se existe uma causa de algo
ocorrer e qual é a sua causa, pois, “τὸ μὲν γὰρ αἴτιον τὸ μέσον”42, ou seja, “a causa é o termo
médio” (tradução nossa). Toda e qualquer pesquisa científica ou filosófica começa tanto com a
pergunta sobre a procedência do fato e sobre a existência de um objeto, de cujas respostas parte
a indagação do que sejam as causas para um fato ser como é e de uma coisa existir. Neste
sentido, há, portanto, um prelúdio à pesquisa sobre as causas de determinado objeto, há uma
atitude originária das atividades de busca pelas primeiras causas que regem um determinado
ser.
Como foi visto anteriormente, há uma espécie de momento no qual o homem,
apercebendo-se de sua ignorância sobre a realidade, começa a procurar a liberar-se dela com o
intuito unicamente de saber as respostas para as suas perguntas, as quais se colocou no momento
em que se maravilhou e se deu conta de que um objeto existe ou de que ele é de uma determinada
maneira. Aristóteles diz que “διὰ γὰρ τὸ θαυμάζειν οἱ ἄνθρωποι καὶ νῦν καὶ τὸ πρῶτον ἤρξαντο
φιλοσοφεῖν”43 – “De fato, os homens começaram a filosofar, como agora e em origem, por
causa do maravilhar-se.” (tradução nossa).

42
ARISTÓTELES; Analíticos Posteriores II.2, 90a 6-7.
43
ARISTÓTELES; Metafísica Α.2, 982b 12-13.
59

Ora, Aristóteles nos diz que, agora e em origem, o início da atividade filosófica pela
busca das causas acontece por conta da maravilha que experimentaram aqueles que começaram
a se indagar quanto à visão do fato e da existência do objeto. Mas Aristóteles ainda recoloca
que esta experiência ocorre agora e como na origem, ou seja, sempre que uma busca filosófica
de explicação da realidade se inicia é por conta do maravilhar-se e não que ela ocorreu uma vez
na história humana. Ou seja, esta é uma experiência real humana que dá origem, que dá o
impulso original para a reflexão filosófica da realidade através da busca pelos princípios que a
constituem. A atividade de apreensão dos princípios da realidade é o que distingue o ser humano
dos outros seres vivos. E como a atividade de apreensão dos princípios se inicia na busca por
eles, que, por sua vez, tem início com o maravilhar-se diante dos fatos e da existência dos
objetos, podemos dizer que é neste maravilhar-se que o homem começa a viver uma vida de ser
humano.
Neste ponto, podemos retornar à Ethica Nicomachea e vermos de que forma esta vida
humana se atualiza nas diversas possiblidades de ação prática e produtivas, voltadas todas para
um bem supremo, como nos atesta a primeira frase do tratado. Mas o retorno à Ethica
Nicomachea deve ser guiado na direção do fim último que ordena toda a vida humana, ou seja,
a εὐδαιμονία, que, por sua vez, é identificada como a atividade bem realizada da σοφία. A σοφία
é constituída pela capacidade do νοῦς e da ἐπιστήμη, sendo o ponto mais alto no qual a alma
intelectiva pode se desenvolver. A atividade de apreensão dos princípios perpassa todas as
capacidades intelectuais humanas, desde a τέχνη até a σοφία, no momento em que, para a
primeira são necessárias as formas do produtos a ser produzido e para a segunda os princípios
mais universais de todos. Aristóteles pode ter iniciado a discussão de Metafísica Α tomando
como exemplo a τέχνη por ela ser a mais simples das potências racionais, querendo evidenciar,
portanto, que até mesmo nela esta atividade essencial da função intelectiva da alma também
estava presente. Para que isso seja confirmado e a investigação seguir adiante, podemos analisar
cada uma das potências dianoéticas.

2.6 As capacidades dianoéticas

A intuição do universal ou dos princípios que estão contidos nas experiências


particulares pode produzir três tipos de conhecimento: a arte, τέχνη, a ciência, ἐπιστήμη, e a
sabedoria, σοφία. Em Metafísica Α.1 e 2 não encontramos uma distinção clara entre os três,
mas o temos em Ethica Nicomachea VI, capítulo no qual as cinco potências dianoéticas são
60

definidas. Em EN.VI.1, Aristóteles retoma novamente a discussão sobre as partes da alma e


relembra que havia distinguido a alma entre os elementos que são racionais e outros irracionais.
Ele propõe em seguida que seja feita uma distinção simples dentro da parte racional da alma,
admitindo que sejam duas as partes que possuem o princípio racional: “... uma pela qual
conhecemos as coisas cujas causas determinantes são invariáveis e outra pela qual
conhecemos as coisas variáveis”44 (tradução nossa). A diferença de espécie dos objetos faz com
que a alma também se distinga em partes, pois é por uma semelhança e afinidade aos seus
objetos que a alma os conhece. A parte que se volta para os objetos invariáveis será chamada
de científica e a parte que lida com objetos variáveis será chamada de calculativa, pois o
deliberar é o mesmo que calcular, e se delibera sobre o que é variável e não sobre o que não
muda nunca. São cinco os tipos de virtudes intelectuais, que podem ser divididas entre as
ligadas a objetos variáveis: a prudência, φρόνησις, técnica, τέχνη; e as ligadas a objetos
invariáveis: a ciência, ἐπιστήμη, o intintelecto, o νοῦς, e a sabedoria, a σοφία.
A divisão da alma em duas partes racionais segue de acordo com os objetos para os
quais se voltam, o que reflete a influência do princípio racional sobre as outras partes da alma.
Se levarmos em consideração ainda a parte irracional da alma, teremos um que participa da
razão e outra que não chega nem perto. Dos três principais elementos que compõem a alma: a
sensação, o desejo e a razão, apenas os dois segundos têm papel no desenrolar de uma ação. A
sensação não participa da ação, pois elas se encontram também nos animais, que não agem de
forma alguma. Os dois elementos que restam determinam a ação de maneira integrada, se
harmonizando entre si. A afirmação e a negação são ações de juízo que o intelecto é capaz de
realizar sobre um determinado objeto, cujo correspondente no desejo é o juízo do que é bom ou
mal. A virtude moral é uma disposição de caráter que envolve uma escolha em consonância
com a mediania, sendo a escolha um desejo deliberado, a virtude deve ser um desejo reto de
acordo com o que a razão afirma ser verdadeiro. A parte da alma racional que lida com as coisas
variáveis, âmbito no qual ocorre toda e qualquer ação humana, é a calculativa, o que é o mesmo
que dizer que o intelecto que se volta para ação é o prático, para o qual a verdade corresponde
ao reto desejo. A outra parta racional da alma é a que se volta para os objetos que são
invariáveis, que prende sua atenção na verdade imutável. Para o intelecto, que se volta para o
conhecimento objetivo das coisas, o bom e o mal estado do intelecto prático correspondem à
verdade e à falsidade. A origem como causa eficiente de uma ação prática é a escolha, que é,
na verdade, o desejo deliberado, cujo cálculo fora feito pelo raciocínio prático tendo em vista

44
ARISTÓTELES; Ethica Nicomachea 1139a 6-8: ἓν μὲν ᾧ θεωροῦμεν τὰ τοιαῦτα τῶν ὄντων ὅσων αἱ ἀρχαὶ μὴ
ἐνδέχονται ἄλλως ἔχειν, ἓν δὲ ᾧ τὰ ἐνδεχόμενα·
61

um bem qualquer. Neste sentido, o intelecto prático é também a fonte da ação, ao contrário do
intelecto científico, que está voltado unicamente para a verdade da realidade. O que os faz
semelhantes um ao outro é que “... a obra de ambas as partes é a verdade.”. A verdade é a das
coisas eternas e imutáveis para um, e para o outro, é a das coisas variáveis.
A divisão das ciências também se dará de acordo com o tipo de objeto a que visam em
suas investigações. A τέχνη e a φρόνησις têm como objeto o que é variável. A primeira lidando
com produtos que serão construídos com a modelação de uma matéria; a outra, lida com as
situações contingentes capazes de serem alteradas a cada instante, sobre as quais o homem tem
de dar uma resposta em seu agir. As outras três, a ἐπιστήμη, o νοῦς e a σοφία têm como seus
objetos de estudo as coisas que nunca se alteram e que permanecem sempre do mesmo modo.
Dentro do que é variável, se incluem tanto as coisas produzidas quanto as ações
praticadas, entre as quais há a diferença do praticar para o produzir de tal modo que a capacidade
de praticar é distinta da capacidade de produzir. A τέχνη se ocupa da geração e da invenção de
objetos, cuja origem se encontra em quem produz. A produção de um objeto se dá a partir da
forma que existe na alma do artista e está no reino das coisas variáveis e contingentes, pois, se
fossem necessários os objetos da arte, produção alguma haveria, visto que ela consiste na
alteração de algo por obra do produtor mediante um plano verdadeiro de operação produtiva, o
que se altera não é imutável. A operação artística se atualiza no objeto produzido, que, por sua
vez, deve a sua perfeição à serventia a alguma outra tarefa e assim por diante na ordem dos
afazeres humanos, não sendo ela mesma o fim da operação.
A prudência, φρόνησις, também se debruça sobre as realidades variáveis, que podem
ser sempre diferentes do que foram nos instantes anteriores. Ela consiste na capacidade de
análise das situações nas quais o homem se encontra e é capaz de coordenar a escolha de uma
determinada ação dentro de um determinado contexto em função de uma finalidade última a
que visa. O homem prudente deve conhecer as coisas que são boas para ele e deve ser capaz de
identifica-las, e também os seus contrários, nas situações em que estiver envolvido para
escolher o melhor meio de alcançar o bem que deseja. O resultado da deliberação e da escolha
do homem prudente é uma ação boa deseja por ela mesma e como fim de sua operação.
A ciência, ἐπιστήμη, é um hábito do intelecto, cujos objetos são as coisas que existem
necessariamente, que são eternas, ingênitas e imperecíveis. Toda a ciência pode ser ensinada e
o seu objeto apreendido. O ensino pode ser feito por demonstração silogística ou por indução.
O silogismo procede na demonstração na direção das conclusões, pelas premissas menores e
têm como ponto de partida os primeiros princípios da realidade, que não podem ser alcançados
62

por este processo. Portanto, a ἐπιστήμη é um capacidade que temos de demonstração a partir de
princípios aprendidos pela indução.
A capacidade que supre a ciência dos primeiros princípios, dos quais partem as suas
demonstrações, é o νοῦς, intelecto. Somente ela é capaz de apreender as verdades imutáveis do
que é invariável e imutável. Os objetos do νοῦς não podem ser objetos da ciência ou de qualquer
outra capacidade intelectual, pois eles são o começo de todo e qualquer raciocínio que formulam
a respeito da realidade. O que pode ser conhecido cientificamente é passível de demonstração
e as capacidades do intelecto prático versam sobre o que é variável e contingente. Também não
pode ser o mesmo objeto da sabedoria, pois dos filósofos se espera a demonstração do que
estudam. De modo, que resta apenas a razão intuitiva para dar conta dos primeiros princípios
da realidade.
A última virtude a ser definida por Aristóteles é a σοφία, ou sabedoria. Esta é um tipo
de saber que se distingue de todos os demais pela qualidade de seus objetos, imutáveis e eternos,
superiores aos das virtudes éticas. A sabedoria é algo que atribuímos àqueles que são os maiores
expoentes e os melhores mestres nas artes, elogio este que aponta para a perfeição do
conhecimento que o artista tem das primeiras causas da sua arte, a partir das quais consegue
produzir trabalhos em alta qualidade e coordenar as artes subordinadas à sua, fazendo-as servir
a ela. Os exemplos são Fídias, um grande escultor, e Policleto, artista que produz estátuas, a
ambos atribuída a sabedoria como a excelência de seus afazeres. Se, por um lado, temos este
sentido que atribuímos a pessoas com o saber sobre algo específico, por outro lado,
consideramos também pessoas sábias de maneira geral, as quais detêm um saber não restrito a
nenhum âmbito da realidade ou gênero de ser, mas dominam o conhecimento de todas as
categorias do ser considerado universalmente. Da mesma forma que um artista sábio possui
todo o conhecimento concernente à sua arte, o homem que tem a sabedoria terá a mais acurada,
minuciosa e perfeita de todas as formas de conhecimento, pois seus objetos são os mais altos e
nobres, não trata de nenhum campo em particular de ser, mas investiga o que são as primeiras
causas e os primeiros princípios da realidade. E os princípios serão os que são mais conhecíveis
nelos mesmos, mas menos conhecíveis para nós.
E dado que a sabedoria é o tipo de saber mais acurado, que os primeiros princípios a
partir dos que decorre uma demonstração são mais precisos do que a própria demonstração,
então o homem sábio deverá saber não somente a demonstração que decorre dos primeiros
princípios, mas também deverá conhecer os primeiros princípios. Como a sabedoria concerne
ao que é mais geral e universal a todas as coisas, aquele que a possui deverá dizer o que dos
primeiros princípios se pode derivar e também apresentar uma explicação do que é a verdade
63

das causas da realidade. Sabe-se que uma pessoa tem um tal conhecimento quando é capaz de
dizer as razões do objeto ser de determinado modo e não de outro, de modo que se espera este
tipo de explicação ainda mais do filósofo e daquele que tem em si a sabedoria. Com o
conhecimento do que é primeiro, as demais consequências são compreendidas com mais
facilidade. Por isso, Aristóteles irá definir a sabedoria como “... o intelecto e ciência, como a
uma ciência dos objetos mais dignos tendo a sua cabeça”45 (tradução nossa). Uma ciência dos
mais elevados objetos, que é, ao mesmo tempo, a compreensão dos princípios e a demonstração,
isto é, a sua cabeça, do que deles decorrem, sendo a perfeição de todas as ciências em
correspondência àquilo que estuda.
Após a definição do que seja a sabedoria, Aristóteles começa a compará-la às outras
ciências, respondendo com objeções àqueles que consideram outras ciências eu não a σοφία
como as melhores de todas. Toda ciência é medida de acordo com os objetos que estuda, sendo
mais nobres e perfeitas conforme a qualidade daquilo que estuda46. A sabedoria tem como objeto
de estudo aquilo que é mais elevado e honrado de todas as coisas, de cuja apreensão fornece
todos os elementos e princípios dos quais partem as outras ciências, se configurando, assim, a
melhor de todas e a mais desejável entre as possíveis ciências. Há homens que consideram, no
entanto, que a política e a prudência sejam os melhores tipos de conhecimento, uma vez que a
primeira governa a comunidade, sabendo o que é melhor para ela, e a segunda sabe o que é o
melhor para cada homem. Mas seria um erro de raciocínio achar que elas são as melhores. Pois,
primeiro, a sabedoria é um ciência que é buscada por ela mesma e nunca no interesse de outra
coisa, não sendo útil a mais nada ou servindo como meio para qualquer outra coisa que não o
seu próprio saber47. As ciências políticas e a prudência têm sua razão de ser na capacidade que
têm de organizar a busca do homem para que ele possa alcançar o seu bem próprio, que é a
atividade da sabedoria. O homem não é a melhor coisa do mundo, de modo que o estudo daquilo
que a ele diz respeito será de menor monta do que das coisas que são mais nobres e honradas.
Portanto, as ciências que estudam o que é bom para o homem e os afazeres que ele pode realizar
não são melhores e mais desejadas do que a ciência dos mais elevados objetos.
Em segundo lugar, a política e a prudência lidam com coisas que são variáveis e
mutáveis e que estão alinhadas em uma relação proporcional entre uma e outra. Como, por
exemplo, o saudável ou o bom são referentes a certo homem ou a um tipo determinado de ser,

45
ARISTÓTELES; Ethica Nicomachea VI.7, 1141a 18-20: ἡ σοφία νοῦς καὶ ἐπιστήμη, ὥσπερ κεφαλὴν ἔχουσα
ἐπιστήμη τῶν τιμιωτάτων.
46
Cf. Aristóteles; Metafísica Ι.6, 1157a 7-12.
47
Cf. Aristóteles; Metafísica Α.1, 981b 13-25.
64

diferindo, portanto, quando se toma outra coisa como referência, para os peixes, o que é bom e
saudável não é o mesmo que para o homem. Mas a σοφία tem como objeto aquilo que é sempre
da mesma maneira e não se altera nunca e não possui nenhuma limitação de âmbito de ser, não
havendo a necessidade de relação à outra coisa da qual é predicada. O conhecimento deste nível
é o mesmo sempre e para todas as coisas, sem qualificação e determinação, que serve para todas
as coisas. Diferentemente, o que é sábio em relação às coisas práticas é variável, pois volta-se
para as coisas que são boas ora para uns em uma tal situação, ora boas para outros em outra
situação. Aos homens que atribuímos sabedoria prática observam várias coisas e sabem o que
é bom para eles. Da mesma forma, por analogia, consideramos que alguns animais possuem
sabedoria prática, pois conseguem identificar o que é melhor para eles. Por isso é que não se
pode dizer que a sabedoria é a mesma coisa que a política ou a prudência.
Por outro motivo ainda, a sabedoria não pode ser considerada igual à política, pois, se
assim fosse, haveria tantas sabedorias filosóficas quanto são os animais, já que o bem varia de
acordo com a espécie de cada animal. Donde não é possível que haja apenas uma ciência para
todos os bens de cada um dos animais, mas é preciso que se tenha uma consideração distinta
para cada um dos distintos objetos. Como é o caso da medicina, que é diferente para cada uma
das espécies existentes. Mas a sabedoria dá conta daquilo que é comum a todas as coisas sem
restrição, diferentemente da política ou da prudência que exploram apenas o que é bom para a
cidade e para o homem singular.
Aristóteles ainda responde a uma última objeção, que diz que, se a sabedoria estuda o
que é mais elevado no munda, então ela deveria ser a mesma coisa que a política e a prudência,
que estudam o homem, que é melhor que todos os outros animais. Os corpos celestes, que somos
capazes de perceber com os nossos sentidos, por exemplo, são coisas mais elevadas que o ser
humano, sem considerar o motor imóvel que é apenas apreendido pelo pensamento e mais
elevado que os primeiros. Aristóteles, então, completa a definição que havia dado de σοφία
dizendo que ela é “... um conhecimento científico combinado com intelecto daquelas coisas que
são as mais elevadas por natureza.”48 (tradução nossa). Tales e Anaxágoras eram homens que
possuíam apenas sabedoria e não a prudência, pois conheciam as coisas que são eternas e mais
elevadas da natureza, mas não sabiam de modo algum o que era melhor para eles, o que
resultava em ações atrapalhadas e na negligência pelos assuntos políticos.
De fato, a prudência, por lidar com as coisas humanas, buscando o que é melhor para o
homem nas dadas situações da vida, é melhor no cálculo das coisas relativas à ação. O que não

48
ARISTÓTELES; Ethica Nicomachea VI.7, 1141b 2-3: ἡ σοφία ἐστὶ καὶ ἐπιστήμη καὶ νοῦς τῶν τιμιωτάτων τῇ
φύσει.
65

muda nunca não pode ser objeto de deliberação da prudência, que analisa apenas o que é
alterável e pode ser objeto de escolha. Dela não se exclui o estudo do que é universal, mas ela
tem a sua base no que é particular. Por isso, aquele que conhece menos o que é eterno, mas tem
muita experiência, acaba agindo melhor do que aquele que apenas conhece as coisas mais
elevadas, pois a ação diz respeito a coisas particulares e mutáveis e, sobre elas, versa a prudência
no sentido de extrair delas o que de melhor pode servir ao homem. Portanto, sabedoria é um
saber distinto da política e da prudência, ela é a ciência mais elevada de todas e capaz de
coordenar as demais, dando-lhes a verdade dos primeiros princípios e a demonstração do que
deles decorre, explicando cada passo e respondendo às objeções.
O verdadeiro conhecimento é aquele que é capaz de explicitar as causas das coisas, as
razões de elas serem como são. Isto é o que vemos na ciência, na arte e na sabedoria. Mas a
sabedoria é a virtude intelectual por excelência e o ápice da substância humana. Aristóteles, em
Metafísica Α.2, ainda completa a definição de σοφία, com seis características, das quais quatro
são atribuídas ao sábio e duas ao saber filosófico. Do sábio pode-se dizer que: 1) é aquele que
conhece todas as coisas de maneira universal; 2) é aquele que é capaz de conhecer as coisas
difíceis e não facilmente compreensíveis para o homem; 3) em cada ciência, é o que possui
mais conhecimento das causas; 4) quem é mais capaz de ensinar esta ciência. Sobre a sabedoria:
1) é aquela que, dentre as ciências, é escolhida por si e unicamente em vista do saber; 2) a que,
em maior grau, é aquela que é hierarquicamente superior com relação àquela que lhe é
subordinada. Assim sendo, podemos concluir que o conhecimento das causas e dos princípios
da realidade em suas três modalidades tem como o cume do saber humano a σοφία, a sabedoria.
No entanto, a investigação não pode se completar sem a análise precisa do que seja a
sabedoria. Para a compreensão da qual é necessário a análise das duas potências intelectuais
que a compõem: o intelecto e a ciência. Em seguida, podemos recorrer à analise da atividade
ativa da sabedoria como foi praticada na Metafísica pelo próprio Aristóteles.
Vemos portanto, que a leitura da Ethica Nicomachea e dos tratados que a ela poderiam
se seguir como investigações mais específicas sobre o intelecto e a ciência nos Analíticos, sobre
a sabedoria na Metafísica, não são apenas desdobramentos subsequêntes àquilo que fora dito
em De Anima, mas são verdadeiros meios de compreensão daquelas funções vitais, sobretudo
da função intelectiva. O que fora exposto em De Anima sobre a alma intelectiva quanto à sua
função de apreensão dos indivisíveis fora algo muito mais geral do que aquilo que fora
desenvolvido na Ethica Nicomachea e sobretudo nos Analíticos sobre as capacidades
intelectivas de conhecimento e demonstração dos princípios de demosntração da realidade.
Ainda mais que estes dois últimos tratados, a Metafísica não somente investigou o que era a
66

capacidade da sabedoria como foi a verdadeira demonstração de sua atividade. A Metafísica


possibilita um estudo do caso concreto desta virtude dianoética, como fora concluído na ética,
em seu próprio exercício atual e não apenas nos termos decorrentes de uma demosntração dos
princípios. Com isso, poderíamos concluir que o estudos destes tratados servem para a suas
compreensões mútuas, pois, de um lado, o que é exposto na ética teria como base conceitual o
que fora discutido em um tratado mais universal sobre a vida dos seres vivos, como o é o De
Anima; por outro lado, a Ethica Nicomachea, os Analíticos e a Metafísica, ajudam a
compreender o De Anima no momento em que eles se voltam para a atividade concreta da
função intelectiva da alma, cuja interpretação é o caminho para a definição do que seja a função
da alma intelectiva e da alma ela mesma.
É necessário prolongar um pouco mais a discussão sobre o modo como a vida humana
se estrutura em função da realização de sua finalidade última. Como todos os seres-vivos têm
uma finalidade para realizarem enquanto seres, tendo as suas vidas organizadas para que a sua
identidade específica seja plenamente atualizada. A vida humana se estrutura em função da
realização plena da alma intelectual, a qual define a alma humana como um todo, e, para que o
homem tenha uma vida plena e perfeita, precisa ele se organizar para que o intelecto consiga
realizar-se em sua atividade perfeita. Organização da vida significa ordenar as ações para que
uma finalidade pré-estabelecida como objetivo seja alcançada. Não apenas quanto à ações
pontuais, o homem delibera o que deve fazer, mas, sobretudo, aquele que percebe qual é o maior
dos bens humanos, busca a melhor forma de agir para que possa realizar a finalidade do homem.
Neste capítulo I da tese, foi visto, de maneira geral, a estrutura da alma humana, as suas
possibilidades de ação e atividade e as virtudes que lhe cabem. No próximo capítulo, se deverá
estudar como essa vida humana se organiza em função da realização da atividade segundo a
virtude perfeita da sabedoria numa estrutura finalística, isto é, numa estrutra que, tendo
estabelecido qual fim alcançar, ordena as outras atividades para si.
67

3 Capítulo II: A estrutura finalística da vida humana

3.1 O melhor dos bens como finalidade na Ethica Nicomachea

Logo após colocar-se a questão de se não seria muito mais proveitoso à vida humana a
possibilidade de realizar com mais precisão o nosso dever se soubéssemos o que e qual é o
melhor dos bens para o homem tal como os arqueiros tem à frente e em clara visão o alvo a ser
acertado pela flecha, Aristóteles toma para si a investigação do que é o ἀριστόν, o melhor dos
bens humanos. Seu raciocínio foi: “ἆρ’ οὖν καὶ πρὸς τὸν βίον ἡ γνῶσις αὐτοῦ μεγάλην ἔχει
ῥοπήν, καὶ καθάπερ τοξόται σκοπὸν ἔχοντες μᾶλλον ἂν τυγχάνοιμεν τοῦ δέοντος; εἰ δ᾿οὕτω,
πειρατέον τύπῳ γε περιλαβεῖν αὐτὸ τί ποτ᾿ ἐστὶ καὶ τίνος τῶν ἐπιστημῶν ἢ δυνάμεων”49, ou seja,
“talvez seja o caso que, também em relação à vida, o conhecimento dele tenha grande peso; e,
exatamente como os arqueiros que possuem um alvo, ainda mais nós alcançaríamos o nosso
dever? Se é assim, deve-se tentar determinar de forma aproximada o que ele [o melhor dos
bens] é e à qual das ciências ou das potências ele pertence” (tradução nossa) A pesquisa que
se desenvolve ao longo da Ethica Nicomachea servirá para responder a estas duas perguntas
iniciais: o que é e à qual capacidade humana este bem está vinculado primeiramente. A primeira
resposta ocupará todo o restante do primeiro livro, enquanto que a segunda se estenderá por
todo o restante da Ethica Nicomachea até o livro X, a partir do qual Aristóteles iniciará a
conclusão final completando a primeira resposta dada no livro I.
Nessa passagem acima citada, Aristóteles, embora formule a primeira sentença em
forma de pergunta, afirma50 que, em relação à vida humana (πρὸς τὸν βίον), o conhecimento
(γνῶσις) deste bem supremo nos facilitaria o cumprimento do que nos é necessário (τοῦ
δέοντος, τὸ δέον). Perguntando-se sobre a vida humana como um todo, ou seja, perguntando-se
sobre o modo de existência do ser humano, o filósofo reconhece ser preciso saber o que é aquilo
que, se alcançado, poderá fazer com que o homem realize aquilo que lhe é esperado. Costuma-
se traduzir51 este particípio neutro substantivado - τὸ δέον - como o que é nosso dever (ciò che
è nostro dovere), o que nos é devido, ou mesmo como o que devemos alcançar (ce que nous
devons atteindre), ou simplesmente o alvo correto (the right mark). Mesmo produzindo estas
traduções um pouco distintas entre si, todos estes tradutores concordam que o termo δέον,

49
ARISTÓTELES; Ethica Nicomachea I.1, 1094a 22-26.
50
Stewart, ad 1094a 22, pg. 16, recorda a citação que Zell e Michelet fazem de Muretus, o qual afirma ser costume
de Aristóteles levantar uma questão, colocando-a como questionamento.
51
Como em Zanatta, Gauthier-Jolif e Irwin.
68

δέοντος, da passagem, não carrega propriamente o de uma obrigação moral ou de uma ordem
decretada pela nossa razão no sentido moderno. Grant nos explica que este termo, neste
contexto, significaria “Not ‘our duty’ in the modern sense, this conception not having been as
yet developed, but more generally ‘what we ought to do’ from any motive”52. Ou seja,
reforçando que τὸ δέοντος na passagem não se refere a uma obrigação moral de tipo moderna,
Grant alude ao sentido de dever como aquilo que deve ser feito por conta de um determinado
motivo (from any motive). O comentador reconhece que o uso deste termo provém de um
contexto de discussão moral, como numa passagem da República 336d, na qual Trasímaco
demanda Sócrates que ele defina o que é a justiça, mas sem dizer que ela seja o que é necessário,
τὸ δέον, nem o útil, ou o vantajoso, nem o proveitoso ou o conveniente. Com o mesmo sentido,
τὰ δέοντα, as coisas necessárias, os seus deveres, as coisas que lhe são devidas, aparece
também em Cármides 164b e nas Memorabilia de Xenofonte. Em Cármides, Platão coloca
Sócrates perguntando a Crísias se o médico, ao realizar seu serviço de curar um paciente, não
estaria ele fazendo aquilo que é do seu dever, ao que Cármides responde que sim. Isto quer
dizer: que o médico, ao curar o paciente, realizaria a sua função conforme o esperado, segundo
aquilo que se reconhece ser um médico. Nas Memorabilia, ao contrário de Cármides,
Xenofonte, relatando eventos relativos a Sócrates, lamenta, com uma observação um tanto
atônita, a incapacidade de realizar atividades conforme aquilo que lhes era esperado realizar
daqueles que não mais dominam sua vida depois que esta fora escravizada pelas paixões e
sugada pelo refestelar-se nas bebidas: “ὁρῶ δὲ καὶ τοὺς εἰς φιλοποσίαν προαχθέντας καὶ τοῦς
εἰς ἔρωτας ἐγκυλισθέντας ἧττον δυναμένους τῶν τε δεόντων ἐπιμελεῖσθαι καὶ τῶν μὴ δεόντων
ἀπέχεσθαι”53. – “E vejo também que os que são induzidos para o amor da bebida e os que são
arrastados para as paixões são menos capazes de darem conta dos deveres e de se afastarem
do que não lhes é devido.” (tradução nossa).
No caso citado de Cármides, o panorama referido, dentro do qual um dever, um afazer,
era colocado como meta para o esforço e dedicação de realização, era algo específico: a ação
de um médico em curar um paciente. No caso das Memorabilia, o lamento refere-se ao desvio
por moção das paixões da realização de um dever. Quanto à pergunta de Aristóteles na
passagem, o dever não é de uma profissão, de uma técnica, ou de um afazer específico, mas da
vida humana como um todo, simplesmente, sem especificação alguma. Afim de evitar aquilo

52
GRANT, Alexander; Ethics of Aristotle, pg.424.
53
XENOFONTE; Memorabilia I.ii.22.4.
69

que Xenofonte denunciou em seu texto de memórias, ele acredita que é o mais proveitoso de
tudo o homem ter o conhecimento daquilo que está ao final do caminho que deve tomar.
Para evitar o desvio e o consequente estiolar-se de forças e evitar que fossem seguidos
os contraexemplos reprovados por Xenofontes, Aristóteles tem como certo que, ao viver, o
homem precisa ter em clara visão aquilo que deve alcançar e aquilo no qual deve empenhar a
sua vida, pois, como diz Santo Tomás de Aquino em seu comentário à Ethica Nicomachea:

“Agora, toda a vida do homem deve estar ordenada à finalidade suprema e


última da vida humana. É necessário, portanto, ter o conhecimento deste fim
da vida humana. A explicação é que a razão para os meios precisa sempre
ser encontrada no próprio fim, como também é provado no segundo livro da
Física.”54.

Segundo o modo de ordenação das ações humanas, como fora mostrado nas primeiras
linhas de Ethica Nicomachea, dispostas em meios para fins e fins últimos, dos quais um único,
supremo e perfeito, se destaca como o final da ordenação, é necessário conhecer este bem, pois
será ele que guiará a ordem de afazeres de modo a fazer com que o agente das ações possa
alcança-lo com a máxima precisão. Se é o fim último e perfeito que ordena, será dele que virá
o padrão, a norma, o λόγος, para as ações adequadas à sua aquisição, cabendo ao homem a
tarefa de conhece-lo, ou seja, saber qual finalidade é esta que organiza as suas ações, para
colocar-se num bom caminho para viver a boa vida. A finalidade suprema é o princípio de
organização da vida humana como um todo e uma finalidade específica, determinada, é o
princípio do raciocínio que conduz à escolha de uma determinada ação pontual, permitindo-nos
avaliar os meios adequados para este fim. Saber qual é o bem do homem é saber o que ordena
a vida humana como um todo, e saber um bem específico é saber o que inicia a nossa ação.
Se, portanto, as ações e as atividades particulares são ordenadas por algum motivo, por
algum fim, tanto mais o seria a vida humana como um todo, em função do qual estaria
organizada e estruturada como finalidade última e etapa final da perfeição humana. A seguir
tentarei apresentar como o motivo, a finalidade última do homem, coloca em ordem as ações
do homem que busca viver uma vida de felicidade.

54
AQUINO, St. Tomás de; Commentary on Aristotle’s Nicomachean Ethics §.23, tradução para o inglês por C.J.
Litzinger, O.P; tradução para o português feita por mim.
70

3.2 A necessidade segundo uma hipótese

A distinção presente em Física II.9, a que alude Santo Tomás, é aquela que Aristóteles
estabelece entre o que é necessário simplesmente, τὸ ἀναγκαῖον ἁπλῶς, e aquilo que é
necessário a partir de uma hipótese, τὸ ἐξ ὑποθέσεως ἀναγκαῖον. Neste capítulo da Física,
Aristóteles, após mostrar que a natureza atua por conta de uma finalidade, passa à questão de
como a necessidade é encontrada nas coisas naturais. Na primeira frase55 do capítulo, a qual
pergunta se o ‘por necessidade’ é a partir de uma hipótese ou é simplemente? – já levanta duas
possibilidades de tipos de necessidade que atuam na natureza: 1) a necessidade simples e 2) a
necessidade segundo uma condição ou hipótese. A distinção se baseia no tipo de causa a partir
da qual a necessidade se estabelece em relação à existência de um determinado ente natural. Do
primeiro tipo, a necessidade que está baseada em ou que parte de causas primeiras ou anteriores,
ex causis prioribus, é a necessidade absoluta ou simples. Isto ocorre com a causa material, tal
como o fato de um animal ser necessariamente corruptível dado que, sendo ele um animal, a
sua composição material deve ser de elementos contrários que se interagem e decompõe-se uns
aos outros ao longo do tempo. Também é de necessidade simples aquilo cuja necessidade
advém de uma causa formal, como o triângulo ter necessariamente três ângulos iguais a dois
ângulos retos. A necessidade, neste caso, está baseada na definição de triângulo, ou seja, na sua
forma. O outro caso é o da necessidade baseada numa causa eficiente, da maneira como é
necessário que haja dia e noite uma vez que o sol tem um movimento circular uniforme no éter.
Nos três casos, a causa é anterior à ocorrência do evento, ao efeito provocado pela causa ou à
corrupção do ente natural, ou seja, a causa determinou de maneira necessária os efeitos.
Respondendo à pergunta que abre o capítulo, Aristóteles primeiramente apresenta a
opinião de outros pensadores que colocavam a matéria como a causa principal de qualquer
acontecer de ordem físico. Em objeção a esta opinião, Aristóteles afirma que, da mesma forma
que nas coisas artificiais, há também, nas coisas naturais, uma necessidade por hipótese ou
suposição, ἡ ἐξ ὑποθήσεως ἀνάνγκη. Esta necessidade está na finalidade a que tende o ente
natural que vem-a-ser em uma processo determinado e não na matéria deste ente. E sendo um
fim e uma forma de determinada maneira, a matéria precisará também ser de uma determinada
maneira para que a finalidade e a forma possam se realizar completamente. Por último,
Aristóteles apresenta uma semelhança entre a necessidade presente na geração de coisas
naturais e a necessidade presente nas ciências demonstrativas.

55
Cf. Aristóteles, Física II.9, 199b 33-35.
71

O ponto que nos interessa ressaltar quanto a esta passagem de Aristóteles é o tipo de
necessidade que se encontra na estrutura das ações humanas e na ordenação dos meios, das
ações e das atividades para a realização de um fim. Por isso que, embora o Aristóteles se refira
quase que exclusivamente às atividades produtivas de objetos artificiais, esta explicação serve
igualmente para as ações humanas, que estão dispostas em função de uma finalidade
estabelecida anteriormente à escolha dos meios de ação.
A opinião corrente apresentada por Aristóteles não estabelece a distinção entre os dois
tipos de necessidade e fala a respeito de uma necessidade presente em todas as gerações, sejam
elas, naturais ou artificiais, como no caso da construção de uma casa. Como são as pedras
utilizadas mais pesadas que os demais materiais, elas devem permanecer abaixo de todos eles
e estabelecer as fundações da casa; em seguida, vêm os tijolos de barro, mais leves que a pedra,
para estruturar as paredes; e, por sobre todos os outros, as traves de madeira, mais leves do que
as pedras e os tijolos, serve de cobertura como um telhado. A necessidade neste caso adviria
das propriedades dos materiais utilizados na construção da casa. A disposição dos entes naturais
e artificiais seria estabelecida, por tanto, pela necessidade da matéria. Nestes casos, o tipo de
necessidade seria absoluta: sendo estes os materiais a serem utilizados na casa, a estrutura do
abrigo estará estabelecida pela propriedade material de cada um dos objetos relacionados entre
si, ou seja, segundo a filosofia de Aristóteles, estes que tinham esta opinião, reconheciam a
causa material como a principal responsável na geração dos entes naturais e a que imprimia a
necessidade nas suas estruturas.
Aristóteles, sem negar à matéria a sua função, identifica na finalidade e na forma os dois
princípios mais determinantes na geração dos entes naturais, reajustando a necessidade
implicada na geração do ente à hipótese final a ser realizada. É absurdo, sem dúvida, acreditar
que a disposição dos entes naturais se deve principalmente pelas suas propriedades materiais
ao mesmo tempo em que não é razoável considerar que uma casa poderia cumprir a sua
finalidade sem que os devidos materiais não fossem utilizados corretamente, pois a casa não se
manteria de pé sem que as suas fundações fossem de pedra, que suas paredes fossem de tijolos
e que seu telhado armado em vigas de madeira. E ainda que estes materiais sejam necessários
na construção e que devam ser colocados na ordem descrita, não significa que a casa assim foi
construída por conta das propriedades dos materiais. Não foi pelo peso, nem pela densidade,
que a pedra foi para debaixo da casa como a sua fundação, nem pela sua leveza e flexibilidade
que as madeiras cobriram as paredes de tijolos, forrando a casa como um telhado. Antes havia
a determinação final da casa que ordenou estes materiais desta determinada maneira. Desta
72

forma, podemos falar apenas segundo o aspecto material que os materiais construíram a casa,
pois, sem eles, esta casa determinada não existiria tal como ela existe.
Aristóteles, então, apresenta a sua opinião, refutando a opinião precedente, no seguinte
parágrafo:

“Ἀλλ᾿ ὅμως οὐκ ἄνευ μὲν τούτων γέγονεν, οὐ μέντοι διὰ ταῦτα –πλὴν ὡς δι᾿
ὕλην- ἀλλ᾿ ἕνεκα τοῦ κρύπτειν ἄττα καὶ σώζειν. ὁμοίως δὲ καὶ ἐν τοῖς ἄλλοις
πᾶσιν ἐν ὅσοις τὸ ἕνεκά τού ἐστιν, οὐκ ἄνευ μὲν τῶν ἀναγκαίαν ἐχόντων τὴν
φύσιν, οὐ μέντοι γε διὰ ταῦτα - ἀλλ᾿ ἢ ὡς ὕλην - ἀλλ᾿ ἕνεκα τοῦ. οἷον διὰ τί ὁ
πρίων τοιοσδὶ; ὅπως τοδὶ καὶ ἕνεκα τουδὶ. τοῦτο μέντοι τὸ οὗ ἕνεκα ἀδύνατον
γενέσθαι, ἂν μὴ σιδηροῦς ᾖ. ἀνάγκη ἄρα σιδηροῦν εἶναι, εἰ πρίων ἔσται καὶ τὸ
ἔργον αὐτοῦ. ἐξ ὑποθέσεως δὴ τὸ ἀναγκαῖον, ἀλλ’ οὐχ ὡς τέλος. ἐν γὰρ τῇ ὕλῃ
τὸ ἀναγκαῖον, τὸ δ’ οὗ ἕνεκα ἐν τῷ λόγῳ.”56

“Mas todavia não sem estes [materiais] [a casa] veio-a-ser, não certamente
por causa destes – exceto como por conta da matéria – mas por conta do
esconder e do proteger algo. Da mesma maneira também em todos os outros
casos nos quais o por causa de (a causa final) existe, não sem os [materiais]
que possuem a natureza necessária, não certamente por causa destes – exceto
como matéria – mas por causa da finalidade. Como, por que este serrote
aqui? Para isto aqui e por causa disto aqui. Isto certamente é incapaz de
gerar a finalidade, caso não seja de ferro. Ora, então é necessidade ser de
ferro, se um serrote e o trabalho dele for para existir. A necessidade então é
por hipótese, mas não como o fim. Pois a necessidade está na matéria e a
finalidade está no pensamento.” (tradução nossa)

A finalidade do projeto, o τὸ οὗ ἕνεκα, é o que coordena primordialmente a geração do


ente e é ela junto com a forma atualizada que são a hipótese da qual sairá a necessidade, a qual
recairá sobre a matéria que recebera a forma. Como exemplo temos a casa a ser construída, feita
para realizar a finalidade de esconder e proteger um determinado ente das intempéries e dos
perigos que sobre ele possam se abater. A boa proteção só poderia existir se a fundação do
abrigo fosse sólida, se as suas paredes fossem resistentes e se o seu telhado conseguisse cobrir
integralmente a área delimitada. Somente a partir desta finalidade e de se ter um abrigo forte e
resistente é que irá se impor a necessidade de certos materiais, os mais adequados e aptos para
a tarefa, em coordenação entre si para o alcance do fim. Uma casa tem uma determinada forma
e uma determinada finalidade, as quais, por sua vez, conseguem ser realizadas quando os
devidos materiais estão presentes e aptos para a sua geração. No entanto, uma casa não seria
concretamente uma casa, incapaz de esconder e de proteger um objeto, se não fosse feita de
pedras, de tijolos e de madeiras, ou seja, a finalidade do abrigo às intempéries não seria

56
ARISTÓTELES; Física II.9, 200a 5-15.
73

alcançada se não estivessem dispostos segundo a forma da casa os materiais pedra, tijolo e
madeira, não por serem estes o que geram a casa, mas por ser necessária a utilização destes
materiais dada a finalidade e a forma da casa. A pedra, os tijolos e as madeiras têm papel na
geração da casa somente no aspecto material, eles são a causa da casa apenas como causa
material. Caso se diga que os materiais são os elementos por conta dos quais a casa veio-a-ser,
sendo isso verdade, deve-se acrescentar, no entanto, o adendo de que esta afirmação procede
apenas segundo o aspecto material da geração, ou que não se pode considerar como causa da
casa os materiais, exceto como por conta da matéria (πλὴν ὡς δι’ ὕλην).
Em relação ao serrote, o caso procede de igual maneira: havendo ele uma forma e uma
finalidade determinadas, a de cortar a madeira, é necessário que ele possua dentes em forma de
serra e que estes dentes sejam feitos de ferro (σιδηροῦς). Por isso, ao se perguntar por qual razão
este objeto, o serrote, é assim desta maneira, deve-se responder que ele é assim para que ele
venha a ter uma certa forma, um τοδί, e uma certa finalidade, um ἕνεκα τουδί. Estes dois
aspectos estruturantes do ente, tendo sido estabelecidos, seu aspecto material passa a ser
considerado segundo a necessidade imposta pela finalidade e pela forma do serrote, o qual
deverá estar disposto para a realização destes dois aspectos, resultando com isso que seja
necessário que a ferramenta seja feita de ferro.
Segundo esta explicação, podemos nomear as três causas implicadas na geração de um
ente como sendo a finalidade, οὗ ἕνεκα, a forma, τὸ εἶδος, e a matéria, ἡ ὕλη. A finalidade e a
forma são os dois aspectos primordiais e a razão pela qual a necessidade é colocada na matéria
para que esta possibilite que a ferramenta realize a sua finalidade de cortar bem a madeira e
concretize plenamente a sua forma. A necessidade, portanto, é colocada na matéria, pois será
ela que deverá se dispor em uma certa forma para realizar a finalidade, a qual guarda, por sua
vez, a razão desta necessidade. Aristóteles conclui este ponto afirmando que a “necessidade,
então, é por hipótese, mas não como o fim”57, ou seja, que o fim não é a necessidade, mas é a
hipótese a partir da qual a necessidade será imposta àquilo que servirá ao alcance do fim visado.
Pois, ele nos explica, “a necessidade está na matéria e a finalidade está no pensamento”58, a
finalidade é aquilo o que o artífice estruturou em seu pensamento para realizar em uma matéria
segundo a forma do objeto. Em um trecho de seu comentário, Santo Tomás conclui este tópico,
com a seguinte explicação:

57
ARISTÓTELES; Física 200a 13-14.
58
ARISTÓTELES; Física 200a 14-15.
74

“Sic igitur patet quod in rebus naturalibus est necessarium ex suppositione,


sicut et in rebus artificialibus: sed non ita quod id quod est necessarium, sit
sicut finis; quia id quod necessarium est, ponitur ex parte materiae; sed ex
parte finis ponitur ratio necessitatis. Non enim dicimus quod necessarium sit
esse talem finem, quia materia talis est; sed potius e converso, quia finis et
forma talis futura est, necesse est materiam talem esse. Et sic necessitas
ponitur ad materiam, sed ratio necessitatis ad finem.”59

“Assim, então, é evidente que nas coisas naturais há uma necessidade segundo
suposição, assim como nas coisas artificiais: mas não do modo que isso que é
necessário seja de fato como um fim; porque isso que é necessário é
estabelecido a partir da parte da matéria; mas a partir da parte do fim é
estabelecida a razão da necessidade. De fato, não dizemos que seja
necessário haver tal fim, porque tal matéria é; mas de preferência e de
maneira inversa, porque tal fim e tal forma são o que há de ser, é necessário
tal matéria existir. E assim a necessidade é colocada junto à matéria, mas a
razão da necessidade junto ao fim.” (tradução nossa)

Nesta lição, Santo Tomás explica dois pontos importantes: o primeiro que, havendo o
tipo de necessidade segundo uma hipótese, a necessidade irá recair sobre a matéria do ente e
terá sua razão de ser na finalidade e na forma deste ente; o segundo ponto se refere ao fato de
que, se, por um lado, a atualidade da finalidade e da forma do ente são coisas que serão
alcançadas no futuro, por outro, a matéria é algo que já deve estar presente atualmente, que
possibilite o vir-a-ser atual e perfeito de um ente, pois, se não estivessem os materiais
disponíveis em um determinado momento para que fosse gerado um ente, este ente não poderia
ser gerado. Em resumo junto com Aristóteles60, os materiais não são os responsáveis pela
geração da finalidade e da forma do ente, nem pela geração do ente, mas sem eles estas coisas
não poderiam ser construídas ou geradas concretamente. Verdadeiramente, o que ocorre é que
a própria matéria tem a sua causa na finalidade a ser alcançada, pois é dela que recebe a razão
pela disposição que passará a ter quando servir à geração do ente. Ao se buscar as determinações
causais de um ente, se poderá dizer que as duas são as causas, mas principalmente a causa final,
pois ela é causa inclusive da matéria, e o contrário disso não ocorre. O fim não é tal porque a
matéria é de tal tipo, antes a matéria é de tal tipo porque o fim é assim.
Em seguida, Aristóteles faz uma comparação entre a necessidade presente nas coisas
naturais e a necessidade presente nas ciências demonstrativas, primeiramente quanto à ordem
em que a necessidade surge no decorrer dos dois processos, e quanto ao princípio a partir do
qual surge a necessidade. A ordem da necessidade se refere à posição, se anterior ou posterior,

59
AQUINO, Santo Tomás de; Commentaria in Octo Libros Physicorum §. 272.
60
Cf. Aristóteles, Física II.9, 200a 27-31.
75

do elemento que condiciona ou origina a necessidade nos elementos necessários, enquanto que
o princípio da necessidade se refere ao elemento que dará razão, que será a origem da
necessidade imposta a um elemento no processo de geração natural ou no de demonstração
científica. Baseado nestes dois aspectos, na ordem da necessidade e no princípio da necessidade,
pode-se notar uma semelhança e uma diferença entre o processo natural e a demonstração
científica.
A diferença consiste primeiramente no fato de que, nas ciências naturais, como no
exemplo da geometria a seguir, a necessidade, derivante da definição de um ente, funciona
como uma necessidade absoluta e não segundo uma hipótese, como ocorre no caso da geração
do ente natural. Por exemplo, se tomarmos uma reta, considerando a sua essência, e sendo um
certo triângulo de tipo reto, segue-se disso que a soma dos ângulos internos deste triângulo será
igual a dois ângulos retos. Neste caso de demonstração científica, parte-se da definição de reta
indo até a conclusão, alcançada através de um termo médio, da disposição dos ângulos de um
triângulo reto de maneira necessária. O primeiro elemento, a definição de reta, estava já
presente, já existia, antes que fosse desenvolvido o raciocínio silogístico junto ao termo médio
que culminasse no termo final conclusivo, ou seja, a definição está como o antecedente real,
atual, havendo o consequente ainda em potência, que a definição, através do termo médio
existente junto a ela, faz surgir por necessidade a atualidade da conclusão. Temos, então, que,
se a definição de linha reta é tal, segue-se a ela a conclusão de que os ângulos internos do
triângulo somam-se em dois ângulos retos.
No entanto, a relação contrária não procede: havendo a soma de dois ângulos retos como
resultado da soma dos ângulos internos de um triângulo retângulo, disso não se pode provar a
definição de reta, ou seja, se a conclusão, o consequente, for, não se segue disso que a premissa,
o antecedente, também é. Não se pode provar que algo tem uma certa propriedade ou definição
a partir da conclusão que a ela se seguiu, ou que, sendo a conclusão correta, não tem como se
afirmar que a premissa também seja verdadeira, uma vez que se pode derivar uma conclusão
verdadeira mesmo de uma premissa falsa. Por outro lado, segue-se que, se a soma dos ângulos
internos do triângulo não for igual a dois ângulos retos, então, o triângulo não será do tipo reto,
ou seja, se a conclusão for falsa, pode-se se dizer que a premissa também era falsa.
Inversamente, quanto à geração dos entes naturais, a conclusão é que impõe a
necessidade às premissas. Se um determinado objeto deve ser construído ou já foi construído,
ou se um certo ente deve ser gerado ou já foi gerado, então é necessário que os elementos
antecedentes estejam ou estivessem já presentes. Neste caso, nas construções com um propósito
(ἐν τοῖς γιγνομένοις ἕνεκά του), é o fim, a finalidade, que condiciona a necessidade dos
76

elementos que o irão compor, ou ainda, se utilizarmos os termos da explicação sobre o


silogismo, a conclusão irá condicionar a necessidade das premissas existirem. Assim, o
consequente é que faz a necessidade recair no antecedente, ou seja, no elemento que
temporalmente irá existir anteriormente à realização da finalidade, mas que ontologicamente é
secundário. É este exatamente o caso da necessidade segundo uma hipótese. E, portanto,
segundo a ordem da necessidade, no caso das ciências demonstrativas, a necessidade age
posteriormente aos princípios que regem demonstração, isto é, posteriormente à definição,
enquanto que nos processos ordenados segundo um propósito, a necessidade recai sobre o
elemento material, cuja atualidade deve estar já estabelecida anteriormente ao fim a ser
alcançado.
Uma semelhança, no entanto, pode ser percebida entre as duas categorias de processo:
da mesma forma que a falsidade da conclusão evidencia a falsidade da premissa, de igual
maneira a falha no produto da construção, a imperfeição na geração de um ente, ou mesmo a
sua inexistência, denunciam a falha do elemento material que o antecedia. Em ambos os casos,
a falha no consequente evidencia a falha no antecedente. Num caso, a falha no antecedente da
definição e, no segundo caso, a falha no antecedente material.
O texto de Aristóteles diz a razão disso. Retomemos a conclusão pelo trecho que se
segue à exposição da diferença entre a ciência e a geração/produção dos entes:

“ἔστι δὲ τὸ ἀναγκαῖον ἔν τε τοῖς μαθήμασι καὶ ἐν τοῖς κατὰ φύσιν γιγνομένοις


τρόπον τινὰ παραπλησίως. ἐπεὶ γὰρ τὸ εὐθὺ τοδί ἐστιν, ἀνάγκη τὸ τρίγωνον δύο
ὀρθαῖς ἴσας ἔχειν. ἀλλ’ οὐκ ἐπεὶ τοῦτο, ἐκεῖνο. ἀλλ’ εἴ γε τοῦτο μὴ ἔστιν, οὐδὲ
τὸ εὐθὺ ἔστιν. ἐν δὲ τοῖς γιγνομένοις ἕνεκὰ του ἀνάπαλιν, εἰ τὸ τέλος ἔσται ἢ
ἔστι, καὶ τὸ ἔμπροσθεν ἔσται ἢ ἔστιν. εἰ δὲ μή, ὥσπερ ἐκεῖ μὴ ὄντος τοῦ
συμπεράσματος ἡ ἀρχὴ οὐκ ἔσται, καὶ ἐνταῦθα τὸ τέλος καὶ τὸ οὗ ἕνεκα. ἀρχὴ
γὰρ καὶ αὕτη, οὐ τῆς πράξεως ἀλλὰ τοῦ λογισμοῦ (ἐκεῖ δὲ τοῦ λογισμοῦ. πράξεις
γὰρ οὐκ εἰσίν). ὥστ’ εἰ ἔσται οἰκία, ἀνάγκη ταῦτα γενέσθαι ἢ ὑπάρχειν, ἢ εἶναι
[ἢ] ὅλως τὴν ὕλην τὴν ἕνεκά του, οἷον πλίνθους καὶ λίθους, εἰ οἰκία. οὐ μέντοι
διὰ ταῦτά ἐστι τὸ τέλος ἀλλ’ ἢ ὡς ὕλην, οὐδ’ ἔσται διὰ ταῦτα. ὅλως μέντοι μὴ
ὄντων οὐκ ἔσται οὔθ’ἡ οἰκία οὔθ’ ὁ πρίων, ἡ μὲν εἰ μὴ οἱ λίθοι, ὁ δ’ εἰ μὴ ὁ
σίδηρος. οὐδὲ γὰρ ἐκεῖ αἱ ἀρχαί, εἰ μὴ τὸ τρίγωνον δύο ὀρθαί.”61

“O necessário é, nas matemáticas e nas coisas geradas segundo a natureza,


de uma certa maneira, paralelo. Pois, dado que uma reta é isto, é necessário
o triângulo ter dois ângulos retos iguais. Mas não sucede que dado isto, então
aquilo. Mas se isto não é, nem a reta é. Nas coisas construídas por causa de
algo é o inverso: se o fim será ou é, também o antecedente será ou é. Se não
for, como no caso em que não havendo a conclusão o princípio também não
será, também aqui ocorre quanto ao fim e ao propósito. Pois isto também é
princípio, não da ação, mas do raciocínio (lá é [princípio] do raciocínio
[apenas], pois não existem ações). Assim se é uma casa, é necessário estas

61
ARISTÓTELES; Física II.9, 200a 15-30.
77

coisas virem a ser ou existir, ou ser ou, de maneira geral, a matéria por causa
de algo, como tijolos e pedras, se é uma casa. Certamente, não é por causa
destes que o fim existe, exceto como matéria, nem será por causa destes. Em
geral, certamente, não havendo, não existirá nem a casa nem o serrote, a
primeira se não houver as pedras, o segundo se não houver o ferro. Pois nem
lá haverá os princípios, se não for o triângulo de dois ângulos retos.”
(tradução nossa)

Tendo já tratado dos aspectos semelhantes, o de que a falha do elemento posterior,


denuncia a falha do elemento antecedente, e dos aspectos de diferença, pelo qual não se pode
afirmar nas ciências que, se uma conclusão existe, ela deriva de um princípio, mas que na
natureza e nas artes, se um fim foi alcançado, é porque o antecedente tem de ter existido,
passemos à explicação desta diferença. A razão disto é que o fim/finalidade é o princípio do
fenômeno da geração, não da ação de gerar ou de construir ou de agir praticamente, mas do
raciocínio, do cálculo, da reflexão, que irão fazer com que a ação prática, a πράξις, seja iniciada.
Este fim funciona como a premissa inicial da demonstração científica, a qual inicia também o
raciocínio até culminar na proposição conclusiva. A frase mais importante deste trecho é a
seguinte: Pois isto também é princípio, não da ação, mas do raciocínio (lá é [princípio] do
raciocínio [apenas], pois não existem ações). Reconhece-se nela a natureza de princípio
iniciador da finalidade/forma na passagem à atualização de uma simples objetivo desejado, de
uma hipótese futura a ser concretizada, ou seja, de uma mero fim idealizado, a uma finalidade
perfeita e real.
A espécie de paralelismo que Aristóteles admite existir entre estes dois aspectos é, em
um certo nível, um paralelismo inverso, pois, enquanto que para um, a existência da conclusão
não garante a existência da premissa, para outro, a existência do fim é a prova de que o
antecedente material esteve disponível quando fora preciso. Mas num nível superior, o
paralelismo corre na mesma direção, pois, agora os dois, a premissa científica e a
finalidade/forma da natureza, da arte e da ação, são o princípio que impulsiona a realização dos
aspectos da ciência e da geração. A posição de ambos os princípios é a mesma no raciocínio:
são o elemento iniciador e a razão da necessidade, a origem da necessidade nos outros termos.
Na ciência, a premissa imprime a necessidade de tipo absoluto, sem dependência de nenhum
outro fator além de si mesma, surgindo a partir da premissa estabelecida. Por outro lado, na
geração natural, nas artes e no raciocínio das ações práticas, o princípio imprime a necessidade
segundo uma hipótese, pois, é a ele, é em função dele, é por conta dele, que se deve gerar, se
construir e proceder de uma determinada maneira. Uma vez estabelecido o fim, a forma, do ente
78

que se quer fazer vir-a-ser, os recursos materiais, os ações práticas e os procedimentos técnicos
se colocam como elementos necessários para que eles sejam realizados atualmente.
Numa ação prática, isto fica muito bem evidente ao pensarmos nos meios que
deveremos prosseguir para alcançar o fim visado, como apresenta este trecho da Ethica
Nicomachea:

“βουλευόμεθα δ’οὐ περὶ τῶν τελῶν ἀλλὰ τῶν πρὸς τὰ τέλη. οὔτε γὰρ ἰατρὸς
βουλεύεται εἰ ὑγιάσει, οὔτε ῥήτωρ εἰ πείσει, οὔτε πολιτικὸς εἰ εὐνομίαν ποιήσει,
οὐδὲ τῶν λοιπῶν οὐδεὶς περὶ τοῦ τέλους. ἀλλὰ θέμενοι τὸ τέλος τὸ πῶς καὶ διὰ
τίνων ἔσται σκοποῦσι. καὶ διὰ πλειόνων μὲν φαινομένου γίνεσθαι διὰ τίνος
ῥᾷστα καὶ κάλλιστα ἐπισκοποῦσι, δι’ἑνὸς δ’ἐπιτελουμένου πῶς διὰ τούτου ἔσται
κ’ακεῖνο διὰ τίνος, ἕως ἄν ἔλθωσιν ἐπι τὸ πρῶτον αἴτιον, ὃ ἐν τῇ εὑρέσει
ἔσχατόν ἐστιν. ὁ γὰρ βουλευόμενος ἔοικε ζητεῖν καὶ ἀναλύειν τὸν εἰρημένον
τρόπον ὥσπερ διάγραμμα (φαίνεται δ’ἡ μὲν ζήτησις οὐ πᾶσα εἶναι βούλευσις,
οἷον αἱ μαθηματικαί, ἡ δὲ βούλευσις πᾶσα ζήτησις), καὶ τὸ ἔσχατον ἐν τῇ
ἀναλύσει πρῶτον εἶναι ἐν τῇ γενέσει. κἂν μὲν ἀδυνατῳ ἐντύχωσιν, ἀφίστανται,
οἷον εἰ χρημάτων δεῖ, ταῦτα δὲ μὴ οἷὸν τε πορισθῆναι. ἐὰν δὲ δυνατὸν φαίνηται,
ἐγχειροῦσι πράττειν. δυνατὰ δὲ ἅ δι’ἡμῶν γένοιτ’ ἄν. τὰ γὰρ διὰ τῶν φίλων
δι’ἡμῶν πως ἐστίν. ἡ γὰρ ἀρχὴ ἐν ἡμῖν. ζητεῖται δ’ὁτὲ μὲν τὰ ὄργανα ὁτὲ δ’ἡ
χρεία αὐτῶν. ὁμοίως δὲ καὶ ἐν τοῖς λοιποῖς ὁτὲ μὲν δι’οὗ ὁτὲ δὲ πῶς ἢ διὰ τίνος.
ἔοικε δή, καθάπερ εἴρηται, ἄνθροπός εἶναι ἀρχὴ τῶν πράξεως. ἡ δὲ βουλὴ περὶ
τῶν αὑτῷ πρακτῶν, αἱ δὲ πράξεις ἄλλων ἕνεκα. οὐ γὰρ ἂν εἴη βουλευτὸν τὸ
τέλος ἀλλὰ τὰ πρὸς τὰ τέλη.”62

“Deliberamos não quanto aos fins mas quanto àquilo que está disposto para
os fins. Pois nem um médico delibera se irá curar, nem um retórico se irá
convencer, nem um político se irá produzir a equidade, nem nenhum dos
restantes casos delibera nada acerca do fim. Mas tendo sido estabelecido um
fim, investigamos como e através de que meio ele existirá. E, sendo evidente
um vir-a-ser através de muitíssimos meios, indaga-se através de qual meio
existirá mais fácil e belamente; sendo alcançado através de um meio,
questiona-se como ele existirá através deste meio e por qual meio aquele
[meio] existirá, até que se chegará à causa primeira, a qual está por último
naquilo que é inventado. Pois aquele que delibera parece buscar e analisar a
conduta mencionada como um teorema geométrico (nem toda pesquisa
parece ser uma deliberação, como as pesquisas matemáticas, mas toda
deliberação é uma pesquisa), e o último na análise parece ser o primeiro na
geração. E, ao se encontrar algo impossível, coloca-se de lado, assim como,
tendo necessidade de dinheiro, não é possível providenciá-lo. E se parece
possível, se prepara para agir. As coisas possíveis viriam a ser através de nós.
Pois as coisas que existem através dos amigos de certo modo existem através
de nós. Pois o princípio está em nós. Ora pesquisa-se os instrumentos, ora a
utilidade deles. Igualmente nos outros casos, ora se pesquisa através de que
meio será alcançado, ora como e através de que meio será efetuado63. Parece
então, conforme indagou-se, ser o homem o princípio das ações. A decisão
gira entorno das ações possíveis em relação a ele, as ações existem por conta

62
ARISTÓTELES; Ethica Nicomachea III.5, 1112b 11-35.
63
Cf. a explicação de Zanatta sobre esta glosa de διὰ τίνος, ad 1112b 31, pg.464, vol.1.
79

de outras coisas. Pois o fim não seria objeto de deliberação mas o seriam as
coisas relativas ao fim.” (tradução nossa)

O trecho anterior vem logo após a delimitação do horizonte daquilo quanto ao qual o
homem delibera. Em uma breve recapitulação do procedimento, podemos destacar os seguintes
objetos que não são passíveis enquanto tais de uma ação humana e, portanto, estão excluídos
da deliberação. Primeiramente, o que é chamado de objeto de deliberação ou aquilo sobre o que
se delibera (τὸ βουλευτόν) é aquilo que seria analisado não por alguém estúpido ou que tenha
se enfurecido, mas por aquele que possua a razão64 e, portanto, seja capaz de perceber a situação
contingente na qual se encontra adequadamente. Do horizonte da deliberação humana, fica
excluído tudo aquilo que foge à capacidade do homem de praticar uma ação, ou seja, tudo o
que é eterno, como o cosmos ou a incomensurabilidade entre a diagonal e o lado do quadrado65,
tudo aquilo que, embora em movimento, seja gerado sempre segundo as mesmas regras, seja a
partir da necessidade, como a queda de uma pedra para baixo, seja segundo a natureza, como
faz um ente ao impulsionar-se para uma finalidade determinada, ou mesmo de acordo com
alguma outra causa66 de geração. Também ficam fora aquelas coisas que uma hora se produzem
de um modo e, em outra hora, de outro67. Muito menos pertence ao campo de ação humana
aquilo que ocorre por mero acaso (ἀπὸ τύχης), como o descobrir um tesouro. Mas também nem
mesmo quanto a todas as coisas humanas cabe ao homem o deliberar, pois não se deliberar
sobre o que não nos diz respeito. Para um lacedemônio, deliberar sobre o melhor modo dos
Cítios administrarem a sua cidade é completamente inadequado, uma vez que a vida deles não
diz respeito à dos espartanos. Nenhuma destas coisas poderiam passar a existir, através de nós
e, portanto, a nossa deliberação somente pode ocorrer sobre o que está relacionado a nós e

64
Cf. Ethica Nicomachea III.5, 1112a 21: ὁ νοῦν ἔχων. Zanatta traduz como uma persona di senno; G.-J. traduzem
como un homme de bon sens; Ross traduz como a sensible man.
65
Segundo Stewart, pg. 256, vol.1, estes são os objetos da θεολογική e da μαθηματική, ambos entes ἀΐδια καὶ
ἀκίνητα, eternos e imóveis.
66
εἴτ’ ἐξ ἀνάγκης εἴτε καὶ φύσει ἢ διά τινα αἰτίαν ἄλλην, conferir Metafísica Ε.2, 1026b 27-31 quanto ao modo em
que estes seres são chamados τῷ μὴ ἐνδέχεσθαι ἄλλως.
67
Zanatta distingue em três tipos estes entes que podem ser diversamente daquilo que são (τοῦ δ’ ἐνδεχομένου
ἄλλως ἔχειν)
1) os entes que são objeto de produção (ποίησις)
2) os entes que são objeto de ação (πράξις)
3) os entes naturais (τὰ κατὰ φύσιν)
A causa dos entes naturais é a necessidade hipotética. Os entes naturais por vezes são tratados como entes que
não podem ser diversamente daquilo que são. Aqui, no entanto, os entes são classificados na categoria de entes
que podem ser diversamente daquilo que são na medida em que podem se atualizar ou não de uma determinada
maneira. Como é praticamente constante o modo de atualização destes entes, vindo a ser sempre da mesma
maneira, esta constância exprime uma necessidade, ainda que hipotética, de não poder ser diferentemente daquilo
que é, o que pode fazer crer que sejam entes que funcionem segundo uma necessidade absoluta.
80

somente sobre aquilo que pode ser realizado por nós mesmos68. Ou seja, o homem não pode
deliberar quanto aos objetos que pertencem ao âmbito da metafísica nem ao das matemáticas.
Quanto aquilo que pertence ao âmbito da física, sobre eles, o homem pode agir, não contra
aquilo que os fazem ser tal como o são, ou seja, contra a necessidade e contra a natureza de
cada um dos seres, mas somente quanto aos objetos enquanto passíveis de sofrerem uma
determinada ação. Dentro deste âmbito, no entanto, nem mesmo sobre todas as situações a
deliberação é adequada, como no caso citados dos Lacedemônio e Cítios, pois um permanece
muito distante do outro quanto ao contexto de cada um.
Os âmbitos da metafísica, da matemática e da física podem ser atingidos
intelectualmente pelo homem na medida em que ele alcança a ciência de cada um dos seus
objetos. Sendo eles objetos de conhecimento apenas, excetuando-se a condição em que os entes
físicos sofrem uma ação, não são objetos de deliberação. Ainda assim, dentre as coisas que
podemos realizar a partir de nós mesmos, somente aquelas que vêm-a-ser não sempre da mesma
maneira69, ou seja, aquelas coisas que podem ser ou de uma forma ou de outra, quanto ao que
podemos nos decidir de que forma existirão, podem ser objeto de deliberação. O deliberar está
restrito ao campo das coisas que ocorrem no mais das vezes (τὰ ὡς ἐπὶ τὸ πολύ), cujo destino
não se sabe exatamente como se completará, ou seja, as coisas cujo êxito não pode ser
determinado70. No campo ainda incompleto das coisas que admitem alteração dentro uma certa
constância no modo de existência, o homem pode manobrar com as possibilidades de arranjo
dos meios para alcançar um fim previamente estabelecido.
Após delimitar quais são as coisas quanto as quais podemos deliberar, ou seja, em que
campo da realidade o homem pode aplicar um tipo de análise e de escolha para agir, Aristóteles
apresenta o modo como esta análise (ἀνάλυσις) e a pesquisa (ζήτησις) empreendida estão
compreendidas na atividade da deliberação (βουλεύσις), de que forma o deliberar é uma
pesquisa, tal como o é a geometria, quais são os seus objetos e a maneira de proceder a sua
realização. A sentença principal deste trecho é a que diz que o homem não delibera sobre o fim,
mas sobre os meios de ação71, o que se verifica de maneira evidente nas diversas possibilidades
de ação humana. Um médico, ao exercer a medicina, não irá se questionar se deve ou não curar
um doente. Tendo já se decidido pela cura do paciente, o doutor passará a empreender uma
pesquisa, uma análise, dos procedimentos que farão com que a saúde possa ser restituída ao

68
Cf. Ethica Nicomachea III.5, 1112a 33-34: τῶν δ’ ἀνθρῶπων ἕκαστοι βουλεύονται περὶ τῶν δι’ αὑτῶν πρακτῶν.
69
μὴ ὡσαύτως δ’ἀεί. Cf. também Ethica Nicomachea III.5, 1112b 2-4: ἀλλ' ὅσα γίνεται δι' ἡμῶν, μὴ ὡσαύτως δ'
ἀεί, περὶ τούτων βουλευόμεθα.
70
Cf. Aristóteles; Ethica Nicomachea III.5, 1112b 8-9.
71
Cf. Aristóteles, Ethica Nicomachea III.5, 1112b 11-12.
81

doente. Um médico sabe que, para se curar um doente, deve-se reestabelecer o equilíbrio das
funções do corpo, ou seja, ele sabe que a saúde é um certo equilíbrio. Sabendo disso e querendo
restabelecer este equilíbrio, o médico irá pesquisar de que forma ele pode fazer com que o
equilíbrio retorne ao paciente. Isto poderá ser feito através da produção de calor, que, por sua
vez, poderá ser feita, naquele momento e naquele paciente, pela fricção das mãos72, iniciando
o tratamento necessário.
Todo processo de deliberação é uma pesquisa, um exame, uma investigação, embora
nem todos estes sejam também uma deliberação. Qualquer um que deseje alcançar um
determinado fim deverá empenhar-se no exame deste fim, decompondo-o nas etapas que
permitem que ele seja realizado, tal qual um geômetra analisa a figura nas etapas da construção
que deverá demonstrar. Se, quanto a uma figura geométrica como o triângulo, é necessário, para
a demonstração de um teorema, considerar o valor da soma dos ângulos internos e externos do
triângulo igual a dois ângulos retos ou, em outro teorema, traçar uma linha que parte do centro
do semicírculo no qual o triângulo está inscrito até o vértice oposto, e assim por diante,
decompondo em várias etapas a demonstração de uma verdade teórica, também algum agente
deverá proceder na deliberação para a escolha de suas ações. Um fim deve ser visualizado antes
de uma ação ser praticada, da mesma forma que uma figura do geômetra é visualizada em sua
inteireza antes da decomposição em suas partes para a demonstração do teorema.
Posteriormente, segundo as necessidades da situação particular, o fim é decomposto nos meios
possíveis àquele que deseja alcança-lo até a primeira ação que deve ser realizada dentro da
cadeia culminante no fim desejado. O que era, portanto, o último a ser percebido na deliberação
é o primeiro elemento a ser realizado na cadeia de ações que conduzem ao fim almejado, tal
qual na demonstração do teorema, o primeiro traçado foi o último elemento percebido como
necessário para a sua realização.
Aristóteles explica, então, como a análise deliberativa deve ser realizada. Quanto a isto,
ele nos indicada três coisas. A primeira delas é a identificação do modo (πῶς) e dos meios (διὰ
τίνων) pelos quais conseguirá alcançar o fim. Ao refletir sobre o modo, o deliberante buscará
qual ação ou movimento deve realizar e através de quais meios ele deve se empenhar na
realização da ação. Em seguida, na reflexão, caso ele se depare com uma série numerosa de
meios possíveis para agir, deverá escolher dentre eles aquele que o aproximará mais facilmente
e da melhor maneira possível (διὰ τίνος ῥᾷστα καὶ κάλλιστα) do fim desejado, ou seja, uma vez
que uma abundância de meios de ação se colocam à disposição do agente, ele deve selecionar

72
Metafísica 1032b 14 – 32.
82

o melhor dentre eles73. Então, uma vez prescrito qual meio é este, o melhor deles, aquele que
delibera deve dedicar-se à utilização deste meio, estando ele disponível,74 para que o fim possa
ser alcançado por estes meios.
Caso este meio não esteja disponível ou que se perceba que, para tê-lo à disposição, é
preciso utilizar-se de outros meios, então, uma nova pesquisa, o deliberante deverá empreender
até encontrar o meio que dê acesso à utilização do meio seguinte e assim por diante até alcançar
a finalidade última. A série de meios até o fim se encadeará conforme o acesso que um meio
permite a outro até o fim desejado: sendo um fim x e um meio a, deve-se estabelecer como
através deste meio a o fim será alcançado (πῶς διὰ τούτου) e, então, como, por este meio, a virá
à disposição do agente (κἀκεῖνο διὰ τίνος): se por um outro meio b, e este por outro meio c, e
este por um meio d, e assim por diante na cadeia de meios até chegar ao meio disponível para
ação necessário num determinado momento.
Este modo de raciocínio, no qual o último elemento descoberto no raciocínio
deliberativo é princípio de uma cadeia de ação que permitirá que o fim venha a ser, é
semelhante, segundo Aristóteles, ao modo de proceder dos geômetras numa exposição analítica
de teorema geométrico75. Pois, da mesma forma em que num teorema parte-se de uma verdade
conhecida e se retrocede até o princípio que permite a existência desta verdade em uma
determinada figura geométrica, também numa deliberação sobre os melhores meios para se
chegar a um fim, parte, deste fim determinado, a análise da cadeia de meios para este fim até
se chegar à ação específica e disponível em um determinado momento e em determinadas
circunstâncias como princípio da cadeia de ação que permitirá a existência atual da finalidade
desejada. O que é o último numa deliberação é o primeiro na operação produtiva e prática.

73
Joachim, ad 1112b 15, pg. 102, assinala que, embora a προαίρεσις não envolva propriamente uma ‘preferência’
entre dois meios disponíveis, mas uma avaliação, uma aquilatação (weighing), entre as alternativas, os meios
escolhidos terão sido aprovados contra os outros competidores.
74
St.Tomás de Aquino assinala que constantia et sollicitudo, perseverança e cuidado, são necessários para a
aquisição do fim.
75
Ross considera que διαγράμματα refere-se a uma geometrical construction ao invés de uma geometrical proof
como propõe Bonitz, segundo Ross (Cf. Ross, Metaph. II, pg. 268). Quanto a este termo, Bonitz resgata o uso na
passagem 998a 25, na qual διαγραμματῶν faz referência à demonstração de um teorema geométrico. No
comentário a esta passagem, Bonitz se refere a uma outra, 1014a 35, em que Aristóteles declara os elementos dos
διαγραμμάτων serem também considerados os elementos das ἀποδείξεων, da demonstração. Ross, sem querer tirar
de todo a razão de Bonitz, assinala que o sentido de διαγράμματα na passagem é o originário de construção
geométrica, que consiste na divisão, διαίρεσις, da figura geométrica ao longo da demonstração do teorema. A
divisão da figura em linhas e superfícies faz com que o conhecimento em potência da verdade do teorema seja
atualizado junto à atividade de divisão feita da figura segundo as potências que lhe pertenciam. É este aspecto da
demonstração do teorema que fica mais evidente, segundo Ross, com a traduação de geometrical construction para
διαγράμματα. No entanto, seguirei Giovanni Reale e traduzirei como teorema geométrico, expressão que indica
seja a prova lógica da propriedade da figura seja a construção auxiliar de linhas e superfícies para a visualização
da prova. Por outro lado, Stewart não considera nem que este tracho possa referir-se à Met. Θ e nem muito menos
que o que seja feito seja uma análise do triângulo, mas uma síntese.
83

A disposição, portanto, dos meios será determinada de maneira necessária segundo o


fim a que visa o agente da operação prática e produtiva. Nas ações práticas humanas e nas suas
produções artísticas, o fim determinará cada uma das etapas a serem cumpridas, dentro de um
quadro contingente específico, para que seja alcançado.
Se tamanha relevância existe na ordenação de meios para a realização de uma finalidade
quando se trata de uma tarefa específica e pontual, quanto mais não terá importância a
identificação dos elementos que integram o modo de ação humano no quadro mais geral da
realização de sua vida? O homem, ao perceber o que deve ser feito, para que se torne pleno,
isto é, para que alcance a sua felicidade, passa a estruturar também as ações pontuais para que
possam permitir que ele se encaminhe para a realização da perfeição de sua vida.
Stewart explica que:

“se um homem sabe qual é o bem do homem (the ἀγαθόν of man), isto é, a
forma (εἶδος) ou a organização da natureza humana como um sistema
harmonioso de partes equilibradas, e se ele mantém o pensamento ou a
percepção disso sempre à sua frente em tudo o que ele faz, ele nunca irá falhar
em fazer, no tempo correto, o que é necessário (δέον) para a sua
manutenção.”76 (tradução nossa)

Ou seja, se o homem consegue ter em vista sempre a realização da vida humana


completa, articulando cada uma das partes da alma, todas as paixões e as várias necessidades
fisiológicas, de modo a permitirem o alcance da felicidade, não perdendo jamais este objetivo
vital, ele nunca irá falhar em fazer o que deve ser feito, isto é, o que lhe é esperado realizar
enquanto homem. Assim, o conhecimento da finalidade e da natureza humana permite ao
homem que ele organize a sua vida em função da realização de seu bem maior, ordenando cada
ação particular para que contribua no alcance de seu objetivo final.

3.3 A organização do Tratado da Ethica Nicomachea

Esta finalidade última, como já vimos anteriormente, foi definida por Aristóteles no
capítulo 7 do livro I da Ethica Nicomachea. Portanto, tendo estabelecido qual é o fim último a
que os homens se inclinam, Aristóteles passará, a partir do livro II do tratado, a analisar cada

76
STEWART, J.A.; Notes on the Nicomachean Ethics of Aristotle, vol.1, pg. 17; Orford University Press,
Londres; 1892.
84

uma das disposições e das capacidades anímicas envolvidas nas ações que conduzem à
realização deste fim último. Da mesma forma em que a alma possui a razão, o λόγος, em dois
sentidos, possuindo, por um lado, segundo o sentido de tê-la consigo e de exercê-la e, por outro
lado, no sentido de possui-la como mestre e a quem se deve obedecer, dois também são os tipos
de qualidades da alma que o ser humano pode adquirir para dar conta da ação prática,
administrando os meios adequados à realização de um fim. A partir do segundo livro da Ethica
Nicomachea, Aristóteles empreenderá uma investigação sobre cada uma destas disposições
virtuosas, candidatas à regra padrão da conduta prática do ser humano que busca a realização
do fim último. A pesquisa se desenvolverá na análise das virtudes éticas, ou seja, das
disposições humanas que seguem em obediência à razão, até as capacidades intelectuais,
aquelas que têm a razão em sentido pleno, de exercê-la. Das capacidades intelectuais, apenas
duas são de fato virtudes, excelências, da parte racional humana. Uma, relativa à parte
calculativa da alma, a prudência, φρόνησις, é a virtude que tem por objeto aquilo que pode ser
diferente daquilo que é, avaliando os objetos com os quais o homem deve lidar durante uma
ação prática. A outra, relativa à parte científica da alma, é a sabedoria, σοφία, cujos objetos são
os primeiros princípios da realidade, aquilo que não pode ser diferente daquilo que é.
Descrevendo cada uma das capacidades e das virtudes humanas, Aristóteles, além de
apresentar aquilo que o homem é capaz de desenvolver quanto ao seu caráter e sua inteligência,
busca os melhores meios de realização do fim último que definira no livro I, capítulo 7. O tipo
de finalidade última a que o homem está inclinado se compõe de uma ação prática realizada
segundo uma virtude. No estágio da investigação a partir do livro II, as virtudes ainda a serem
apresentadas e analisadas são as candidatas à norma com a qual irá se conformar a ação prática
da felicidade. Podem, no entanto, estas virtudes, serem apenas meios para a realização deste
fim último. A necessidade da distinção entre os tipos de virtude, as práticas e as intelectuais, e
dentre as intelectuais, a calculativa e a especulativa, exige de Aristóteles esta reflexão filosófica,
que se estenderá por todo o tratado até o final, no livro X: quais são as possíveis disposições
que conduzirão o homem à sua realização plena?
Na realidade, será somente no capítulo 7 de Ethica Nicomachea X que Aristóteles
apresentará a definição completa e definitiva da felicidade perfeita (τελεία εὐδαιμονία),
encontrando a virtude conforme a qual a atividade da alma deverá ser exercida e concluindo a
pesquisa de todo o restante da investigação. A expressão τελεία εὐδαιμονία, que Aristóteles
ainda não havia empregado ainda no tratado, aparece na seguinte passagem: “ἡ τούτου ἐνέργεια
κατὰ τὴν οἰκείαν ἀρετὴν εἴη ἂν ἡ τελεία εὐδαιμονία. ὅτι δ’ἐστὶ θεωρητική, εἴρηται.
85

ὀμολογούμενον δὲ τουτ᾿ἂν δόξειεν εἶναι καὶ τοῖς πρότερον καὶ τῷ αληθεῖ’77 - “a atividade disto
[do intelecto, νοῦς] segundo a virtude própria seria a perfeita felicidade. Que esta é a teorética,
se disse. Isto [a conclusão], sendo admitida por todos, parece ser semelhante tanto aos
resultados anteriores quanto à verdade.” (tradução nossa). Esta definição final de felicidade
conclui o que fora desenvolvido durante todo o tratado, referindo-se aos conceitos trabalhados
nas outras etapas do tratado, como nos livros I e VI.
Dessa forma, podemos dizer que o tratado se orienta segundo a busca pelas virtudes e
disposições da alma que conduzem o homem à felicidade, à realização de sua finalidade, àquilo
que é o seu mais estimado bem. Portanto, considerando que descobrir qual é o melhor dos bens
humanos e de que forma o homem pode alcança-lo é o objetivo do tratado, ou seja, considerando
todo o estudo acerca da felicidade humana, poderíamos dividir o tratado em pelo menos três
grandes etapas.
A primeira parte inicia-se logo com o começo do tratado com uma primeira formulação
sobre o bem último ao qual todos os homens tendem. Esta primeira formulação da questão se
estende até o capítulo 6, ainda do primeiro livro, e logo é substituída por uma outra formulação,
quando Aristóteles chega ao limite das primeiras definições do que seja a felicidade, εὐδαιμονία,
e percebe que não poderia avançar mais em direção à verdade utilizando-se deste procedimento
indagatório de levantamento das opiniões mais relevantes sobre o assunto. O novo
procedimento investigativo inicia-se na proposta de Aristóteles de investigar qual é a função
própria do homem. Tal caminho de investigação iria permitir determinar o ἀριστόν próprio ao
ser humano ao identificar aquela tarefa através da qual ele alcançaria a finalidade para qual, de
acordo com sua essência, está inclinado. Esta etapa praticamente se conclui com a definição de
εὐδαιμονία no trecho de 1098a 16-18, segundo o qual o bem humano consiste em uma atividade
da alma de acordo a virtude e, visto que as virtudes são múltiplas, esta atividade deverá ser
segundo a virtude mais excelente e mais perfeita.
Em seguida, o tratado se desdobra nas definições das diversas virtudes da alma humana,
sejam as racionais sejam as morais, e em levantar quais seriam os aspectos complementares
para a realização de uma boa vida, como por exemplo a amizade, uma certa quantidade de bens
materiais, uma boa disposição de saúde. Assim se procede até a conclusão final do tratado no
livro X.
Por fim, na terceira etapa, em Ethica Nicomachea X.7-8, Aristóteles conclui a pesquisa
passando em revista todas as características necessárias àquilo que deve ser a felicidade, retoma

77
ARISTÓTELES; Ethica Nicomachea X.7, 1177a 16-19.
86

alguns pontos discutidos ao longo do texto, confirmando-os como sendo elementos


característicos da felicidade, e reconhece o conceito de θεωρία, contemplação, como sendo a
atividade própria da εὐδαιμονία.
De maneira esquemática, o tratado se dividiria desta forma:
a) Primeira Etapa:
1) de Ethica Nicomacha I.1, 1094a 1 até 1094a 25: Tendo averiguado que as ações
humanas têm uma certa ordenação entre si, permitindo com que os seus fins possam
servir de meio para atividades superiores, Aristóteles, baseado nas premissas de que há
um fim que é sempre escolhido por si mesmo e nunca em função de outro para além
dele e de que a nossa busca não pode jamais ser infinita, conclui que deve haver de fato
um fim último realizável pelo homem e desejado somente por conta de si mesmo. Com
isso, ele inicia a sua investigação para descobrir que tipo de bem último é este desejado
somente por si mesmo:

2) de Ethica Nicomachea I.1, 1094a 26 até 1095a 13: discussão referente ao método de
pesquisa adequado ao objeto, à ciência responsável por tal investigação – a ciência
política, ἐπιστήμη πολιτική -, e sobre o pesquisador mais capacitado para tal tarefa de
pesquisa.

3) Ethica Nicomachea I.2, 1095a 14 – 1095b 13: primeira vez em que a εὐδαιμονία, ainda
sem definição precisa, surge como sendo o fim último do homem, em 1095a 18-20.
Algumas precisões metodológicas, entre as quais a necessidade de se fazer um
levantamento das opiniões mais ilustres quanto ao que seja a felicidade, partindo daquilo
que é mais acessível a nós homens até o que é mais cognoscível por natureza.

4) Ethica Nicomachea I.1, 1095b 14 até 1096a 12: apresentação das opiniões mais comuns
sobre o que é a felicidade e os tipos de vida a que cada uma corresponde. Aqueles que
levam a vida de prazer, βίος ἡδονικός, consideram ser a felicidade o prazer e amam uma
vida devotada aos gozos; a vida política, βίος πολιτικός, é desejada por aqueles que
buscam as honras, principalmente, daqueles que são julgados serem virtuosos; o terceiro
tipo é a vida teorética, βίος θεωρητικός, destinada à contemplação da verdade, da qual
Aristóteles posterga até o livro X a caracterização precisa. A vida de riquezas, βίος
χρηματιστής, é uma vida de constrições e a riqueza não é nunca aquilo que se busca de
verdade, antes é apenas uma meio em vista de outra coisa.
87

5) de Ethica Nicomachea I.4, 1096a 11 a 1097a 14, todo o quarto capítulo: debate sobre as
teoria platônicas do Bem, do ἀγαθός.

6) De Ethica Nicomachea I.5, 1097a 15 até 1097b 21: apresentação das duas características
que o melhor dos bens humanos deve possuir: ele deve ser perfeito, τέλειον, e também
autárquico, autossuficiente, αὐτάρκες. Ao final desta passagem, Aristóteles reconhece
que aquilo que se considera felicidade é perfeito e autossuficiente.

b) Segunda Etapa:
1) De Ethica Nicomachea I.6, 1097b 22 a 1098a 20: o argumento da função, ἔργον, do
homem e a definição de felicidade. Os demais capítulos do livro I, de 1098a 20 a 1103a
10, discutem alguns pontos concernentes à definição de felicidade.

2) de Ethica Nicomachea VI, 1139a 14 a 36; de 1140b 31 a 1141a 8; de 1141a 9 a 1141b


8: a definição de sabedoria, σοφία. A partir do livro II, Aristóteles apresenta as virtudes
morais e as intelectuais do ser humano. Especificamente quanto à σοφία, sendo ela νοῦς
e ἐπιστήμη, tanto a definição do primeiro quanto a definição do segundo são também
importantes.

c) Terceira Etapa:
1) Ethica Nicomachea X.7-8: a contemplação, θεωρεῖν, é no que consiste a atividade da
σοφία e, portanto, é o que é a atividade da εὐδαιμονία. Revisão e confirmação de que os
elementos característicos atribuídos à εὐδαιμονία nos primeiros livros do tratado, como
ser ela o ἀριστόν, o τέλειον, ser αὐτάρκες, a mais prazerosa atividade de todas, pertencem
realmente à atividade da θεωρία e, por conseguinte, também à felicidade.

3.4 A polêmica entorno da noção do bem último

Seguindo o que foi apresentado na primeira parte deste trabalho quanto à questão
fundamental da Ethica Nicomachea, ou seja: a felicidade humana e a realidade ontológica da
alma humana e a atividade das capacidades intelectuais como sendo a atualização da substância
humana, uma questão se nos apresenta como obstáculo à passagem para a análise da σοφία.
Antes de apresentá-la, recordo que indiquei a necessidade de uma análise triádica para a
88

compreensão verdadeira da εὐδαιμονία. Como a felicidade é a atualização da alma humana na


atividade de sua capacidade mais alta e, sendo esta capacidade a σοφία, os três conceitos de
εὐδαιμία, alma e σοφία, e seus respectivos campos de estudos, deveriam ser considerados como
complementares e estudados de maneira integrada de modo que a análise de um se complete
com a do outro. Isto não é apenas uma questão de metodologia, mas um requisito do próprio
objeto, uma vez que uma realidade, por ex. a σοφία, é a atualidade de uma outra, a alma, que é,
por sua vez, a realidade que dá a sustenção à existência humana e à sua perfeição. Ao mesmo
tempo, uma vez que ela é a realização da alma humana, revelada no modo de existência humano,
a qual vem exposta na investigação ética, a σοφία só receberia uma análise a sua altura se a
explicação a ela dedicada fosse devidamente arranjada dentro do contexto da pesquisa sobre a
ética.
Obviamente, sendo o objeto deste trabalho a εὐδαιμονία, não será preciso estudarmos
todo o tratado da Ethica Nicomachea, mas apenas as partes referentes ao tema e que contribuem
para a definição de finalidade última do homem. No entanto, é a εὐδαιμονία que coaduna os
dois outros conceitos em uma unidade real e, por isso, em conseqüência, conceitual. Por uma
questão de método realmente aristotélico, partindo do que é mais concreto e real, mais próximo
e evidente a nós, o início da investigação deve começar indicando o que é a felicidade, ainda
que em termos gerais a serem aprofundados mais adiante.
Alguns pontos importantes relativos à discussão que envolve os estudiosos de
Aristóteles há cerca de 50 anos sobre o caráter da felicidade merecem uma consideração no
presente momento da tese. Trago esta discussão para debate no presente momento pois ela me
parece bloquear como um dique, fazendo desviar para outro caminho, o curso de uma correta
compreensão daquilo que Aristóteles nos mostrou em seu trabalho.
O modo mais adequado para a análise do que seja a felicidade não é diretamente abordar
os seus aspectos constitutivos à maneira como têm feito muitos comentadores, em particular
depois dos anos 60 do século XX, a partir do trabalho de Hardie sobre o caráter dominante ou
inclusivo da εὐδαιμονία em relação aos bens almejados pelo homem, sem que antes se tenha
feito o devido esclarecimento do que consiste a realização da finalidade humana, sobretudo em
seu aspecto ontológico. A εὐδαιμονία é fundamentalmente a atualização da natureza do ser
humano através de uma atividade virtuosa e não é uma corrida para obtenção de bens, sejam
eles complementares, justapostos ou em relação de domínio e subordinação entre si. Assim
sendo, a análise da natureza humana, de sua essência, deve ter a prioridade na linha de
investigação e servir como a linha mestra da pesquisa. Deixá-la de lado e voltar-se apenas para
os aspectos decorrentes desta realidade seria o mesmo que, ao vermos a estrutura de uma casa,
89

reparar apenas nos candelábros pendurados na viga mestra. Lâmpadas nos servem à iluminação,
mas apenas funcionam se sustentadas no alto do quarto em uma plataforma que as percorre e
as mantém existentes. Da mesma forma, somente após a discussão fundamental sobre a
εὐδαιμονία poderiam as questões relativas aos bens e às virtudes componentes da felicidade vir
à tona, colocadas em sua devida dimensão, como esclarecimentos derivados e não centrais na
definição de εὐδαιμονία.
A alma humana é intelectual e abriga no ser que compõe as outras duas funções
necessárias à vida humana: vegetativa e a perceptiva. A unidade anímica do ser humano não se
faz pela adição dos três tipos de alma enformando uma matéria, mas é a unidade da alma
racional que comporta necessariamente a atividade das funções vegetativas e perceptivas. Por
isso, podemos dizer com segurança que a vida humana, a sua atualização plena e a sua
felicidade, estão determinadas por este tipo racional de alma exigente das outras funções.
Abordar portanto a εὐδαιμονία é tentar ver de que forma esta alma se realiza plenamente em
sua atividade racional, que a caracteriza e organiza todo o restante das funções e da vida
humana.
Algo que se pode observar em muitos estudos sobre a εὐδαιμονία em Aristóteles é o
total desconhecimento dos fundamentos de sua ontologia, sobretudo da sua teoria sobre a
substância e a alma humana, nas argumentações sobre a relação entre a ação e a perfeição do
homem. Isto se reflete em explicações incompletas e até mesmo desviantes da essência do que
seja a εὐδαιμονία, dando luz a comentários que se mostram antes deslocados da teoria
aristotélica, fechados em si mesmos sem a força requeridas para o esclarecimento da questão.
Este problema fica ainda mais evidente nas contendas entre interpretações que enxergam
um caráter dominante, por um lado, e inclusivo, por outro, da εὐδαιμονία. Poderíamos
selecionar os trabalhos mais importantes sobre o tema, segundo A. Kenny78 e Carlo Natali79. A
partir do artigo de H. W. F. Hardie, The Final Good in Aristotle’s Ethics, publicada em 1965,
o debate seguiu entre as leituras dominantes e inclusivas, por um lado, com os artigos de Kenny,
Happiness (1965-66), Clark, Aristotle’s Man (1975), Heinaman, Eudaimonia and Self-
Sufficiency in the Nicomachean Ethics (1988); por outro, com Ackrill, Aristotle Eudaimonia
(1974), Devereux, Aristotle on the Active and Contemplative Lives (1977), Keyt, Intellectualism
in Aristotle (1978), Price, Aristotle’s Ethical Holism (1980), Roche, Ergon and Eudaimonia in
Nicomachean Ethics I (1988). Cooper escreveu duas obras, cada uma delas defendendo uma
interpretação: Reason and Human Good in Aristotle (1975) e Contemplation and Happines: a

78
Kenny, A.; Aristotele’s on the Perfect Life; 1992.
79
Natali, C.; La saggezza di Aristotele; 1989.
90

Reconsideration (1987). São estes os trabalhos mais influentes no debate sobre o ponto chave
da Ethica Nicomachea, a εὐδαιμονία, e que, mesmo sendo, como se referiu Natali80, uma
discussione in lingua inglese, parece um pedágio obrigatório a qualquer estudante do tema em
Aristóteles.
Ainda que Roochnik tenha razão ao afirmar que “Commentarors who enter it [este
debate] say little about what ‘theoretical activity’ itself actually is”81 – “Comentadores que
entram neste debate dizem pouco sobre o que ‘a atividade teorética’ realmente é” (tradução
nossa), algo ainda mais decisivo é o fato de deixarem de lado todo o fundamento sobre o qual
se estrutura a ética, o campo no qual a realidade humana se realiza. Ou seja, estes comentadores
cometem, no mínimo, dois erros ao mesmo tempo. Um erro é o de explorarem pouco o conceito
de theoria e o segundo e mais importante, o de não darem a devida importância à alma
intelectual, que caracteriza o homem. O distanciamento da resposta correta à pergunta sobre o
que seja o bem humano e o que seja a felicidade fica ampliado em pelo menos duas medidas.
A tese dominante defende que existe um bem único para o ser humano que se encontra
ao final da cadeia de bens ordenando todos os demais de modo que o homem os busque em
função dele. Ao invés, a tese inclusiva defende que não apenas um único bem compõe a
εὐδαιμονία, mas uma série deles, a qual, quanto mais bens forem acrescidos a ela, será ainda
melhor. Alguns estudiosos sustetam que esta multidão de bens seria todos os bens possíveis de
serem alcançados pelo homem, outros acreditam que apenas esses são os bens das virtudes
morais e das intelectuais juntos. Kenny82 defende que para a Ethica Nicomachea, a tese
dominante, é a mais adequada, enquanto que a inclusiva se encaixa melhor na Ethica Eudemia.
Quanto à Ethica Nicomachea, fica evidente, pelos capítulos X.7-8, que o fim último e único da
vida humana é a atividade bem realizada da σοφία e que somente ela pode consistir na mais alta
felicidade. No entanto, os defensores da tese inclusiva tendem a levantar suspeita quanto à
compatibilidade entre estes capítulos X.7-8 de Ethica Nicomachea e algumas passagens do
restante do tratado, como, por exemplo, a afirmação de Aristoteles de que as virtudes morais
também seriam almejadas como bens por si mesmas e fariam parte como elementos valiosos da
melhor vida do homem. Neste sentido, a tese inclusiva se oporia à dominante na medida em
que atribui valor semelhante às virtudes morais e às intelectuais, inclusive a σοφία, funcionando
todas juntas como os órgãos do corpo trabalham juntos para a sua saúde.

80
Natali, C.; La saggezza di Aristotele; 1989.
81
Roochnik, D.; What is Theoria? Nicomachean Ethics Book X.7-8.
82
KENNY, A.; Aristotle’s on the Perfect Life.
91

Se a atividade da σοφία é o que há de mais elevado para o homem realizar, então, as


virtudes éticas e a φρόνησις não terão tanta importância na felicidade humana, podendo até
mesmo serem preteridas em um momento de escolha entre a ação prática e o θεωρεῖν. A
dificuldade que pode aparecer caso Aristóteles defendesse de fato a predominância da θεωρία
sobre as outras virtudes, dizem uns, é a da possibilidade de ele defender uma tese na qual as
virtudes morais poderiam até mesmo não existir na alma do indivíduo σοφός, chegando à
possibilidade de um amigo ser totalmente usurpado para que um possa exercer a atividade da
σοφία83. Outros complementam esta crítica com a incredulidade em ver Aristóteles
menosprezar o papel da política na vida humana e renegando-o ao nível secundário e menor de
uma vida incompleta.
O litígio entre as duas teses talvez se deva sobretudo à dúvida que a tese inclusiva coloca
contra a dominante. Kenny afirma que:

“It is for this reason that so much recent attention has been focused on the
relationship, specially in the Nicomachean Ethics, between contemplative and
political happiness. For it is related to the decision, to be made in the actual
lives of Aristotle’s twentieth-century readers, how much energy and effort to
devote to philosophical and scientific research and how much to social and
political activity.”84

“É por esta razão que tão recentemente foi prestada atenção a esta relação,
especialmente na Ethica Nicomachea, entre a felicidade contemplativa e a
felicidade política. Pois está relacionada à decisão a ser tomada nas vidas
reais dos leitores do século XX de Aristóteles, quanta energia e esforço a ser
devotado à pesquisa filosófica e científica e quanto à atividade social e
política.” (tradução nossa)

O que completa umas das três razões pelas quais o debate entre as teses dominante e
inclusiva irá continuar, isto é, “to make the resulting interpretation one wich can be found
morally acceptable by contemporary philosophers”85 – “para fazer da interpretação resultante
uma que possa ser considerada aceitável moralmente pelos filósofos contemporâneos”
(tradução nossa). Isto é, parece que uma certa quantidade de preconceitos e de valores
contemporêneos obstaculizam a compreensão da filosofia aristotélica neste ponto, interpondo-
se como pré-requisitos para a validade de uma tese. Aos olhos de um leitor do século XX, a
teoria de Aristóteles sobre a felicidade como atividade da σοφία pareceria dura demais para ser

83
No caso, Devereux.
84
KENNY, A.; Aristotle’s on the Perfect Life; pg. 107.
85
KENNY, A.; Aristotle’s on the Perfect Life; pg. 93.
92

acatada se não pudesse ser diluída e adocicada com os valores caros aos nossos
contemporâneos.
Sem aprofundar as precisas conjecturas que faz Kenny, elenco, no entanto, alguns
possíveis momentos do texto de Aristóteles que fariam, não exatamente a defesa de uma das
teses, nem a total demolição de outra, mas mostrariam que talvez o debate não tenha muita
razão de ser em dividir-se entre essas duas teses. Seguramente não dariam força à tese inclusiva,
não menos que mostrariam que a dureza da tese dominante não é tão densa assim, exigindo
qualquer reparo para a sua aceitação. O que se poderá ver ao final desta argumentação é que as
características defendidas por uma tese são, de certa forma, contempladas na teoria aristotélica,
como a participação das virtudes morais na vida de alguém que pratica o θεωρεῖν, ao mesmo
tempo em que apresenta como necessária a preponderância da atividade da σοφία numa vida
eudaimônica. Os pontos podem ser divididos entre os comentários que tratam dos pontos em
torno dos quais giram as argumentações a partir da Ethica Nicomachea, por um lado, e em
argumentos ignorados que têm a sua origem em passagens da obra de Aristóteles que não a
ética, por outro lado. Me deterei à discussão sobre a Ethica Nicomachea, sem querer levantar o
debate também quanto a Ethica Eudemia.
A polêmica, que já dura por volta de 50 anos, desde a publicação do trabalho já dito de
W. F. R. Hardie, o artigo de The Final Good for Man, quanto à verdadeira natureza da felicidade
na ética aristotélica, se de caráter dominante ou inclusivo, baseia-se principalmente na análise
de três pontos: 1 - o caráter de perfeito (τέλειον) do bem humano; 2 - a auto-suficiência, ou
αὐτάρκεια, do bem último; 3 – os tipos de bens que compõem a cadeia de ações humanas.
Segundo a maneira com que estes três elementos se ordem na interpretação apresentada pelo
estudioso aristotélico, a felicidade humana terá um caráter dominante ou inclusivo.

3.4.1 A noção de perfeito (τέλειον) e de autossuficiência (αὐτάρκεια), e os


tipos de bens

Após ter passado pelo debate com as opiniões gerais dos homens comuns e eminentes,
Aristóteles volta à investigação sobre a definição do melhor dos bens a partir agora de suas
próprias opiniões. Este trecho pode ser dividido em duas partes principais. Na primeira delas,
são debatidas as opiniões e apresentadas duas características que o ἄριστον deve ter. Na
segunda, Aristóteles segue utilizando-se do método de exposição analítica para alcançar a
definição de εὐδαιμονία.
93

Em Ethica Nicomachea I.5, 1097a 15, Aristóteles nos propõe: “Voltemos novamente ao
bem que estamos procurando e indaguemos o que ele é, pois não se afigura igual nas distintas
ações e artes; é diferente na medicina, na estratégia, e em todas as demais artes do mesmo
modo.”86 (tradução nossa). A frase resgata tudo aquilo que fora discutido no início do tratado
quanto à disposição das atividades a um fim último e que a cada atividade corresponde um fim
distinto. Ainda é válida a ordem estabelecida pela arte mestra entre as atividades subordinadas
e seus fins, todos convergindo para o fim último. E mesmo em cada atividade que se subordina
a outra mais fundamental, existem vários pormenores operacionais para a produção do bem.
Aristóteles, então, pergunta novamente: “Que é, pois, o fim de cada uma delas?”87 (tradução
nossa). E a resposta: “talvez não seria aquilo por conta do qual as demais coisas são
praticadas?”88 (tradução nossa). Os exemplos são muitos, como a saúde para a medicina, a
vitória buscada pela arte da estratégia e a casa, pela arte da arquitetura e, assim, para todas as
atividades humanas. A conclusão é de que, se o homem visa algum fim em tudo o que faz, este
fim será um bem realizável mediante a ação; e, se há mais de uma, os bens serão aqueles
realizáveis através delas. Mas já havíamos chegado a esta conclusão e ela não esclareceu muita
coisa. O que precisamos é aprofundar a questão.
As premissas do raciocínio que levaram à conclusão quanto ao ἄριστον se encontram na
passagem I.1, 1094a 16-24, onde, após a apresentação da ordenação existente entre as
atividades humanas baseadas em uma arte arquitetônica e a relação entre seus fins e o fim último
visado, as premissas mostram duas características presentes nas atividades humanas: 1) das
coisas que fazemos, existe um fim que desejamos apenas por ele mesmo e todos os outros fins
são desejados por conta dele; 2) nem tudo desejamos com vistas em outra coisa. Disso se
concluiu que o fim desejado apenas por si mesmo deve ser o melhor deles, o ἄριστον.
Aristóteles resgata estas idéias e ainda acrescenta um conceito que até então não havia aparecido
no tratado com a seguinte sentença de Ethica Nicomachea I.5: “Uma vez que os fins parecem
ser muitos e nós escolhemos alguns dentre eles por causa de outro (como a riqueza, as flautas
e os instrumentos em geral), é evidente que não todos são fim; mas o sumo bem [o ἄριστον] é
claramente algo de perfeito (τέλειόν).”89 (tradução nossa). O novo conceito incluído na frase é
o termo perfeito, em grego τέλειον, apresentado como característica que o ἄριστον deve ter para

86
ARISTÓTELES; Ethica Nicomachea I.5, 1097a 15-18: Πάλιν δ' ἐπανέλθωμεν ἐπὶ τὸ ζητούμενον ἀγαθόν, τί
ποτ' ἂν εἴη. φαίνεται μὲν γὰρ ἄλλο ἐν ἄλλῃ πράξει καὶ τέχνῃ· ἄλλο γὰρ ἐν ἰατρικῇ καὶ στρατηγικῇ καὶ ταῖς λοιπαῖς
ὁμοίως.
87
ARISTÓTELES; Ethica Nicomachea I.5, 1097a 18: τί οὖν ἑκάστης τἀγαθόν;
88
ARISTÓTELES; Ethica Nicomachea I.5, 1097a 18-19: ἢ οὗ χάριν τὰ λοιπὰ πράττεται;
89
ARISTÓTELES; Ethica Nicomachea 1097b 25-28: ἐπεὶ δὲ πλείω φαίνεται τὰ τέλη, τούτων δ' αἱρούμεθά τινα δι'
ἕτερον, οἷον πλοῦτον αὐλοὺς καὶ ὅλως τὰ ὄργανα, δῆλον ὡς οὐκ ἔστι πάντα τέλεια· τὸ δ' ἄριστον τέλειόν τι φαίνεται.
94

assim ser chamado. Até a passagem citada de Ethica Nicomachea I.5, em toda a referência que
fora feita à finalidade de uma ação, o termo aplicado fora fim, ou τέλος. Quando ordenados
dentro de uma cadeia de ações subordinadas a uma δύναμις fundamental, as atividades têm seus
fins visados em função do fim da arte mais eminente. O conceito de fim, durante todas as
passagens anteriores, não guarda o sentido forte e elevado que, a partir desta frase, Aristóteles
irá expressar com o termo τέλειον, muito embora este conceito contenha em si mesmo a idéia
de τέλος. A completude e o alcance das finalidades visadas possuem a dimensão da atividade
que os produziram, que está restrita, na maioria das vezes, pela superioridade do fim de outra
atividade. Isto implica que o seu fim é desejado, principalmente, não por conta de si mesmo,
mas de outro fim, e este, por sua vez, por conta de outro. A aspiração é satisfeita apenas na
medida de possibilidade em que a ação a ela correspondente pode responder na produção e na
prática dentro da ordenação de fins. Como mostra a sentença de Ethica Nicomachea I.5, 1097b
25-28, os fins são variáveis e escolhemos alguns dentre eles. A vida humana, sendo algo
unitário, faz com que uns fins sejam escolhidos como meios e outros em detrimento de uns para
que se alcance o fim que complete todas as aspirações e atividades do homem. Em uma cadeia
de afazeres e fins, um produto é a perfeição da operação que o produziu, uma operação cujo
fim é ela mesma tem em si sua perfeição e, da mesma forma, de um agente, quando realiza toda
a sua natureza, dizemos que é perfeito com suas possibilidades totalmente realizadas, que
alcançou o fim último em máximo grau, tem sua forma totalmente atualizada, não restando mais
nada como seu complemento.
Em Ethica Nicomachea I.5, 1097a 30-35, Aristóteles faz a divisão entre os três tipos de
bem que temos em vista:

“τελειότερον δὲ λέγομεν τὸ καθ' αὑτὸ διωκτὸν τοῦ δι' ἕτερον καὶ τὸ μηδέποτε δι'
ἄλλο αἱρετὸν τῶν <καὶ> καθ' αὑτὰ καὶ δι' αὐτὸ αἱρετῶν, καὶ ἁπλῶς δὴ τέλειον
τὸ καθ' αὑτὸ αἱρετὸν ἀεὶ καὶ μηδέποτε δι' ἄλλο.” 90
“Ora, nós chamamos aquilo que merece ser buscado por si mesmo mais
perfeito do que 1) aquilo que merece ser buscado com vistas em outra coisa,
e aquilo que nunca é desejável no interesse de outra coisa mais perfeito do
que 2) as coisas desejáveis tanto em si mesmas como no interesse de uma
terceira; por isso, chamamos de perfeito e incondicional 3) aquilo que é
sempre desejável em si mesmo e nunca no interesse de outra coisa.” (tradução
nossa)

Os três tipos são: 1) algo desejado apenas por causa de outra coisa; 2) algo desejado por
si mesmo e por conta de outra coisa; 3) algo desejado apenas por si mesmo. A divisão é feita

90
ARISTÓTELES; Ethica Nicomachea I.5, 1097a 30-34.
95

seguindo o grau de completude e realização do fim a que uma atividade busca alcançar. Se o
fim é realizado em toda a sua perfeição, não há razão para se buscar algo para além dele para
completá-lo. O fim que é desejado apenas por si mesmo é o que alcança a completude e a
perfeição de toda a cadeia de afazeres, não restando nada além para engrandecê-lo. Se o fim
que buscamos deve ser o melhor de todos os fins almejados, em função do qual todos os outros
são queridos, e se o ser humano não deseja nada até o infinito, então, o ἄριστον deve ser o fim
que completa todos os outros e que não é completado por nada mais, ou seja, ele deve ser
perfeito, τέλειον.
A característica necessária ao ἄριστον parece se aplicar ao conceito de εὐδαιμονία, pois
Aristóteles diz: “Ora, esse é o conceito que preeminentemente fazemos da felicidade
[εὐδαιμονία]. É ela procurada sempre por si mesma e nunca com vistas em outra coisa...”91
(tradução nossa). Ou seja, a εὐδαιμονία é desejada, da mesma forma que aquilo a que chamamos
perfeito, apenas por si mesma e nunca no interesse de outra coisa. Além disso, muitas outras
coisas que são desejadas por si mesmas são também desejadas por conta da εὐδαιμονία, como
a honra, o prazer, a razão e muitas outras virtudes, pois se acredita que da posse delas, alcançar-
se-á mais facilmente a felicidade.
Depois desta conclusão, Aristóteles introduz a segunda característica que acredita dever
pertencer ao ἄριστον que buscamos: a auto-suficiência, αὐτάρκεια. Ao final, descobre que a
εὐδαιμονία é algo perfeito e auto-suficiente, sendo também a finalidade da ação. O conceito de
auto-suficiência parece derivar do conceito de bem perfeito, já que, pelo raciocínio acima
mostrado, podemos notar que o bem que é buscado apenas por si mesmo não tem nenhum
complemento além dele que possa suprir o desejo de quem o almeja, podendo ser dito algo
perfeito e suficiente para a aspiração. O texto da ética confirma isso, com a diferença de dizê-
lo não apenas suficiente, mas auto-suficiente. A diferença que foi acrescida é que este bem
perfeito deve ser suficiente em si mesmo, à parte dos demais, não contado como um bem entre
outros. Confirma-se isto com a definição de auto-suficiência como “... sendo aquilo que, em si
mesmo, torna a vida desejável e carente de nada.”92 (tradução nossa). A εὐδαιμονία é
considerada a coisa mais desejável de todas e não é contada como um bem entre outros, ou seja,
ela é um bem que satisfaz completamente as necessidades humanas sem que nada do que se
precise fique excluído. A εὐδαιμονία faz isso por si mesma, pois completa, ela mesma, as

91
ARISTÓTELES; Ethica Nicomachea I.5, 1097a 34-1097b 1: τοιοῦτον δ' ἡ εὐδαιμονία μάλιστ' εἶναι δοκεῖ· ταύτην
γὰρ αἱρούμεθα ἀεὶ δι' αὐτὴν καὶ οὐδέποτε δι' ἄλλο.
92
ARISTÓTELES; Ethica Nicomachea I.5, 1097b 14-15: τὸ δ' αὔταρκες τίθεμεν ὃ μονούμενον αἱρετὸν ποιεῖ τὸν
βίον καὶ μηδενὸς ἐνδεᾶ·
96

aspirações essenciais humanas e faz a vida digna de ser vivida e desejada. Graças a este caráter
auto-suficiente que a ordenação dos afazeres humanos e de seus fins ganham razão de ser em
uma vida unitária, na qual as coisas têm sentido e onde as aspirações podem ser completadas.
E mesmo que se quisesse acrescentar um bem qualquer a mais à εὐδαιμονία, isso a engradeceria
e a tornaria ainda mais desejada, pois “... dos bens é sempre maior o mais desejado.”93 (tradução
nossa). O ἄριστον buscado deve ser perfeito e auto-suficiente, duas características que a
εὐδαιμονία apresenta, donde se conclui que ela é o melhor dos bens para o homem.
Poderíamos, após estas considerações, nos perguntar, tendo em mente a polêmica na
qual o conceito de αὐτάρκεια está envolta, se faz sentido considerá-la apenas como um
amontoado de bens, todos eles requeridos para fazer da vida feliz carente de nada ou se não
seria melhor consderá-la como aquilo que ela realmente é: a realidade de independência da
unidade da realização da essência humana de um indivíduo. Não seria muito mais importante
descobrir esta realidade da autossuficiência da εὐδαιμονία e enfatizá-la do que, para contrapôr-
se à interpretação inclusiva, excluir da felicidade qualquer fator externo a este processo de
atualização? O atributo da autossuficiência não menospreza e nem exlclui os outros elementos
necessários ao processo de atualização, mas afirma a natureza da atualização realizável somente
na substância de um indivíduo, feita por seu esforço, num processo de unidade integrativa de
seu ser.

3.4.2 Dois pontos ignorados pelos comentadores que fazem evanescer a


questão

O primeiro ponto importante a ser considerado é a relação entre a reta razão e a visão
da finalidade necessária para estabelecê-la.
Aristóteles, ao longo dos livros Ethica Nicomachea II-V, se volta para as virtudes da
parte irracional da alma, parte na qual estão potencializados os princípios desiderativos e de
deslocamento em direção aos objetos necessários, básicos à vida humana, à satisfação do prazer
ou à fuga da dor. As funções anímicas do ser humano são basicamente as de crescimento e
nutrição, a de percepção e deslocamento e a intelectual. As funções de crescimento e de nutrição
são excercidas sem que o homem possa decidir sobre o seu funcionamento, sem que possa
determinar se elas devem prosseguir ou parar, pois são atividades das quais dependem a vida

93
ARISTÓTELES; Ethica Nicomachea I.5, 1097b 19-20: ἀγαθῶν δὲ τὸ μεῖζον αἱρετώτερον ἀεί.
97

humana e que, se interrompidas, o indivíduo morreria. A parte desiderativa, por sua vez, a parte
que impulsiona o homem a deslocar-se em busca daquilo que o manterá vivo, daquilo que irá
satisfazer a vida na qual está apoiado94, ou o afastará daquilo que o põe em risco, pode ser
submetida ao comando da parte racional da alma humana através do ὀρθὸς λόγος, a reta razão.
Ouvindo o princípio racional correto e aquiescendo sob o seu comando, a parte desiderativa
pode ser direcionada às ações segundo uma medida adequada à situação e ao fim almejado. As
virtudes práticas, conforme o modo pelo qual forem direcionadas e controladas pela parte
racional da alma, se fortalecerão como vício ou como virtude ao longo do tempo pela
sedimentação do habito correto ou incorreto na alma do indivíduo.
Assim sendo, as virtudes práticas não poderiam ser as mais perfeitas virtudes da alma
humana, uma vez que dependem de uma capacidade intelectual que as ordene segundo a medida
correta de paixão a ser aplicada em uma situação contigente que exige a tomada de uma decisão
e da realização de uma ação. A medida de paixão aplicada é determinada pela reta razão, o
ὀρθὸς λόγος, a qual não pode pertencer à parte da alma que se submete ela mesma à razão. A
coragem, a magnanimidade, a justiça, a liberalidade e as outras, são a medidade justa de impulso
desiderativo ordenado pelo correto pensamento sobre a situação que se realiza após a escolha
por uma determinada atitude frente a uma situação específica.
Somente a partir do livro VI que Aristóteles começa a investigar as virtudes da parte
racional da alma. A nova etapa da investigação segue toda a investigação dos livros precedentes
ao assumir como pontos a serem analisados a reta regra e a norma que a determina. Eis a
primeira frase do sexto livro: “ἐπεὶ δὲ τυγχάνομεν πρότερον εἰρηκότες ὅτι δεῖ τὸ μέσον αἱρεῖσθαι,
μὴ τὴν ὑπερβολὴν μηδὲ τὴν ἔλλειψιν, τὸ δὲ μέσον ἐστὶν ὡς ὁ λόγος ὁ ὀρθὸς λέγει, τοῦτο
διέωμεν.”95 – “Como dissemos precedentemente que se deve escolher a via do meio e não o
excesso e a falta e que o meio é como diz a reta regra (ὁ ὀρθὸς λόγος), analisemos este ponto.”
(tradução nossa).
Ela faz referência à discussão anterior, que buscou, nos livros II-V, definir as virtudes
éticas, ou seja, as virtudes da parte irracional da alma alcançadas pela escolha correta do meio-
termo (τὸ μέσον) entre o excesso e a falta segundo o comando, a prescrição dada pela reta regra,

94
O debate quanto aos tipos de vida nas quais o homem pode se aplicar é de altíssima importância e deverá ser
abordado, sobretudo, quando a necessidade de se discutir a vida teorética se apresentar. Por enquanto, darei como
implícita a discussão. Bastará ressaltar, no momento, que o homem não pode não ter vida intelectual pelo fato que
é isso que o faz homem, mas pode submeter a sua vida a um modo de existência que não é verdadeiramente
humano. Uma vida de prazeres, como diz Aristóteles, é uma vida bestial.
95
ARISTÓTELES; Ethica Nicomachea VI.1, 1138b 18-20.
98

da forma como a retra regra ordena, ὡς ὁ λόγος ὁ ὀρθὸς λέγει96 (VI.1, 1138b 20). Quanto às
virtudes morais descritas em Ethica Nicomachea II-V, ou seja, quanto às disposições naturais,
aos hábitos e aos desejos do ser humano ordenados ao fim último do homem segundo a razão
própria do prudente, o φρόνιμος, para desenvolver as quais o homem deve escolher a via do
meio-termo e fazê-lo com a disposição de humor correta, se referiu Aristóteles até o momento
no tratado. Apenas dizendo respeito ao objeto da parte irracional da alma, a virtude moral era
uma espécie de proporção entre o excesso e a falta de paixão, de vontade, de empenho, para
uma determinada ação. No entanto, Aristóteles havia se referido à reta regra (ὀρθὸς λόγος) como
um atributo do homem prudente, do φρόνιμος, sem explicar o que era exatamente esta reta
regra. O φρόνιμος já havia sido apresentado desde o início do tratado como um ponto de
referência de homem maduro e bem formado, apto a encontrar o termo-médio, a mediania
(μεταξύ), entre o excesso e a falta, de um caráter que se formou na prática da ação virtuosa. O
passo seguinte seria, então, estabelecer corretamente o que é a reta razão.
A sentença final de EN VI.1, que afirma que: “τὶς ὁ ὀρθὸς λόγος καὶ τούτο τὶς ὅρος”, ou
seja, o que é, ou qual é o ὀρθὸς λόγος, se completa se se responde também à pergunta quanto à
essência da norma, do limite, do que é o ὅρος, que determina o ὀρθὸς λόγος. O homem sábio,
ao conceber a proporção adequada de empenho a ser aplicada em um situação, sempre tem já
concebido em sua mente a finalidade humana última, dentro da qual a ordenação proporcional
da ação entre o excesso e a falta se adequa e se integra na cadeia de ações humanas voltadas
para o seu bem último. A pergunta pelo ὀρθὸς λόγος só se completa com a pergunta pela sua
norma, a qual, por determinar de forma superior a primeira, ganha proeminência na formulação
das duas perguntas, ao ponto de fazer da resposta do que seja o ὀρθὸς λόγος um derivado da
resposta quanto ao ὅρος. Parece, portanto, que a proposta de Joachim97 não se contrapõe, enfim,

96
Segundo o comentário de O. Navarre citado por Gauthier-Jolif, o termo λέγει nesta frase indicaria, ou haveria o
mesmo sentido do verbo κελεύω, comandar, prescrever, e toma como exemplo uma passagem de Xenofonte. Mas,
mais à frente no texto, vemos que o verbo λέγει é usado em uma outra frase a indicar a atividade que exerce a
medicina. O médico prescreve um remédio ou um tratamento ao seu paciente. O verbo grego para tal ação é o
próprio κελεύω. E é a medicina a arte com a qual Aristóteles irá fazer a analogia entre a reta regra e a arte médica
para indicar o mesmo tipo de ordenamento que faz o λόγος à parte irracional da alma em direção às virtudes.
97
Joachim (The Nicomachean Ethics, pag. 164) faz referência a Rassow, que considera existir no livro VI duas
linhas distintas de pesquisa: uma longa, que começa em 1138b 34, e uma curta, que vai de 1138b 35 – 1139a 3 (H.
Rassow; Forschungen über die Nikomachischen Ethik, Weimar, 1874). Joachim enfatiza que ele mesmo buscou
mostrar a unidade da proposta do livro VI. Assim também considera Bywater. O capítulo VI.1 não seria de
Arisóteles. Esta conclusão de Bywater teria sido formulada por conta do uso não usual que Aristóteles faz do termo
λόγος nesta capítulo. Mas, segundo Joachim, seguindo Burnet, λόγος é usado nesta passagem como se faz quando
o termo λόγος é usado dentro de uma doutrina aristotélica exposta muito bem na Metafísica. Esta doutrina, que
estaria presente em Met.Ζ.7 e em Λ.4 e, como me parece semelhante, também em Θ.2, afirmaria que uma τέχνη é
a presença do εἶδος do objeto a ser produzido na alma do artista. Da mesma forma, estaria o ὀρθὸς λόγος, neste
caso, como o εἶδος da ação virtuosa presente na alma do φρόνιμος; e é a proporção existente entre o excesso e a
falta que constitui a ação virtuosa.
99

à porposta de Gauthir-Jolif de ler a frase de VI.1, 1138b 34, como uma pergunta pela norma
que determina o ὀρθὸς λόγος, isto é, aquela que deverá ser respondida sobretudo quando se
pergunta pelo ὀρθὸς λόγος.
A norma, ao ser requerida para estabelecer a reta razão, estabelece a relação de
subordinação entre a finalidade última do homem e as outras virtudes de sua alma. Ou seja, a
virtude da φρόνησις e as virtudes morais dependem do fim último como ponto de referência
para a sua existência. Ou seja, não se poderia haver, neste contexto, espaço para uma
interpretação do tipo inclusiva da εὐδαιμονία pelo simples fato de que os termos não estão
relacionados entre si de maneira igual.
Desta forma, o capítulo primeiro de EN VI já coloca a pergunta pelo objeto de que irá
se ocupar Aristóteles nos restantes capítulos. Apresentando os principais pontos de
questionamento sobre as virtudes da parte racional da alma, após a análise das virtudes éticas
correspondentes à parte irracional da alma, através de perguntas que inquirem sobre as virtudes
racionais, Aristóteles inicia a explicação que culminará na definição de σοφία logo após a
definição de φρόνησις.
O outro ponto necessário a ser considerado é a afirmação de Aristóteles de que “o vício
é destrutivo do princípio”98. Esta afirmação implica a necessidade da posse das virtudes morais
do indivúduo para que ele tenha em vista a finalidade última a ser alcançada e a possibilidade
de fazê-lo. Aprofundarei a questão mais à frente. Mas somente esta indicação nos serve para
mostrar que não faz sentido a oposição entre uma εὐδαιμονία dominante ou inclusiva pois,
simplesmente, de um lado, ela não pode incluir todos os bens, e de outro, ela requer a posse das
virtudes morais para a sua realização. De modo que, se para tentar salvar a necessidade da
presença das virtudes morais no cálculo da εὐδαιμονία inclui-se como fins supremos todas as
virtudes morais, formando a interpretação inclusiva, abre-se mão do aspecto normativo ou
ordenador que a finalidade última tem sobre a determinação da reta regra. Por outro lado, para
contrapor-se à interpretação inclusiva, faz-se uma interpretação dominante que tende a
menosprezar a posse e o desenvolvimento das virtudes morais no ser humano, como fez, por
exemplo, Cooper99 em seu artigo, ao considerar que o filósofo não teria obrigação moral
alguma.
Estes dois pontos mostram que as virtudes morais permitem a vida da θεωρία, mas que
só se organizam a partir da visão do todo da vida humana, só feita quando, de certa forma, se
viveu ou se soube da atividade da σοφία, ou de como se a vive, e de seus objetos de estudo.

98
ARISTÓTELES; Ethica Nicomachea VI.5, 1140b 19-20.
99
Cooper; Reason and Human Good.
100

Vemos uma alusão a este fato quando Aristóteles, ao discutir as caracrterísticas do pesquisador
e o método adequado da pesquisa sobre a ética e a política, diz que o estudioso deve ter tido
uma vida bem ordenada que não se deixou levar pelas paixões, pois o objetivo não é
propriamente o conhecimento, mas a ação. Um que não contrala as suas paixões não seria,
portanto, bom estudioso do assunto. Ora, se para a pesquisa sobre a ação humana este princípio
é válido, não o seria ainda mais para os objetos mais elevados e aos quais temos menor acesso?
A outra parte dos possíveis pontos que nos servem diz respeito àquilo que já apresentei
no capítulo anterior e que se resume na noção aristotélica do desenvolvimento do indivíduo
desde o seu nascimento até a idade adulta. Nesta noção, as virtudes morais devem ser
desenvolvidas antes das virtudes intelectuais próprias à σοφία, pois são mais acessíveis aos
jovens do que a atividade da pesquisa científica. O aprendizado de uma ciência ou da filosofia
demora anos e exige maturidade, enquanto que as virtudes morais já podem ser encontradas no
mais jovem dos homens.
O segundo ponto é que a alma humana, sendo intelectual, não pode se aperfeiçoar senão
na atividade bem realizada da sabedoria, σοφία. Por isso, a vida política é inferior à vida
contemplativa, ela não faz uso de toda a capacidade humana, estando sempre aquém do que o
homem pode realizar. As virtudes morais são a vida da função animal da alma humana,
existindo a partir da alma intelectual pela virtude da prudência. Aristóteles chega a cogitar em
Ethica Nicomachea X.7, 1177b 26- 1178a 2, que a vida contemplativa pertenceria a uma
condição superior ao homem e que não seria enquanto homem que o ser humano viveria a vida
de contemplação da verdade. No entanto, a referência de Aristóteles nesta passagem de X.7 é
do homem como o entendiam a maioria, ou seja, apenas como homem político, e não como o
ente capaz, quando em sua plenitude, de compreender e contemplar as coisas mais nobres da
realidade.

3.5 A noção de σοφία em Ethica Nicomachea

A noção de sabedoria, σοφία, aparece na obra de Aristóteles, exposta em suas


características, em basicamente duas100 obras: Metafísica Α e Ethica Nicomachea VI101. Em
ambas as passagens encontramos como resultado da apresentação e da análise de σοφία

100
Conferir o tratamento dado no Protreptico ao termo φρόνησις como uma capacidade teorética, contemplativa e
não prática. Gauthier-Jolif fazem referência a isto e Düring também.
101
Cf. BONITZ; Index Aristotelicus, pg 688.
101

conceitos que se assemelham em alguns aspectos e se distinguem em outros, mas que,


sobretudo, resultam, cada um, de um respectivo impulso investigador próprio a contextos de
investigação diferentes. Tanto Metafísica Α quanto Ethica Nicomachea VI concordam que a
σοφία é uma ciência que tem por objeto o que é primeiro na ordem do ser. Mas, enquanto que
no contexto de Metafísica Α Aristóteles indagava pela existência de uma ciência das causas e
dos princípios dos seres, no livro Ethica Nicomachea VI, ele visava descobrir qual é a
excelência, a virtude (ἀρετή) da parte racional da alma, conforme a qual o homem realiza a
atividade da felicidade (εὐδαιμονία). A primeira investigação buscava uma ciência determinada
para desenvolver uma pesquisa sobre o estudo das primeiras causas da realidade, a investigação
da Ethica Nicomachea é uma investigação política sobre as capacidades anímicas e as
respectivas atividades que um homem pode praticar num âmbito de uma vida completamente
realizada e busca descobrir qual é a excelência da alma humana. Se considerarmos que a
investigação da Metafísica é um verdadeiro e próprio esforço de Aristóteles na compreensão
do que sejam os primeiros princípios da realidade e o sentido primeiro de ser, poderíamos dizer
que, no fundo, os dois conceitos de σοφία se convergem em plena complementariedade de um
em relação ao outro e que os dois contextos acabam como que sendo um o desdobramento do
outro: como que, após ter enunciando na Ethica a atividade própria ao ser humano, Aristóteles
a tomasse para si e a realizasse, ou ao menos a tentasse realizar, na Metafísica.
Além deste tratamento específico sobre σοφία, podemos encontrar em Metafísica Θ.2-5
a teoria geral sobre as capacidades intelectuais (δυνάμεις μετὰ λόγου) adquiridas pela instrução
(μαθήσις, διδασκαλία) e pelo exercício, as quais são atualizadas somente após uma decisão, uma
escolha deliberada (προαίρεσις), por um dos dois contrários possíveis de atualização. De
maneira diferente, na Ethica Nicomachea, Aristóteles se refere à τέχνη, à ἐπιστήμη, ao νοῦς
como disposições da alma (ἕξεις τῆς ψυχῆς) e da σοφία e da φρόνησις como virtudes. Um
tratamento intermediário pode ser encontrado nos Analíticos Posteriores, no qual são descritos
os hábitos da alma, como é feito na Ethica Nicomachea, mostrados no modo em que as
potências racionais são adquiridas a partir de um conhecimento já existente, como aparece em
Metafísica Θ.2-5. O estudo sobre o que seja a sabedoria em Metafísica Α já foi discutindo no
capítulo I desta tese. Cabe, agora, o estudo da sabedoria na Ethica Nicomachea. Como foi visto
em Ethica Nicomachea I.7, Aristóteles apresenta uma definição de εὐδαιμονία ainda de maneira
bem geral que requer uma precisão maior a ser realizada ao longo do tratado. A definição foi
baseada numa distinção de partes da alma entre irracional e racional, por um lado, e em
científica e calculativa por outro. Em Ethica Nicomachea I.13, há um primeiro aprofundamento
102

destes conceitos, os quais, no entanto, são realmente explorados apenas em EN VI. Somente
em EN X.7 e 8, que Aristóteles completa o estudo da excelência da alma humana.
Ao começar a tratar da ciência perfeita em EN X.7, Aristóteles não identifica mais o
elemento que permite ao homem o conhecimento pelo termo λόγος, mas utiliza-se já do termo
νοῦς. Ou seja, ele troca a linguagem que vinha utilizando para explicar a distinção das partes
da alma em racional e irracional por um termo mais preciso que permite a ele alcançar uma
definição conceitual mais precisa do que seja a atividade perfeita e o que seja a perfeição
humana. O termo νοῦς, como aparece em Ethica Nicomachea X, nos permite compreender mais
corretamente a distinção das partes e das faculdades da alma de forma mais clara, lançando luz
à compreensão das partes em que se utilizava o termo λόγος em Ethica Nicomachea I-VI. Em
Metafísica Θ, Aristóteles se utiliza do termo λόγος para distinguir as capacidades racionais da
irracionais. Em De Anima, no entanto, a parte da alma pela qual o homem conhece e pensa é o
νοῦς, o qual apreende o λόγος, se se quiser nomear assim alguma definição de um ente,
permitindo a aquisição das capacidades intelectuais. A alteração na utilização de termos nos
exigirá, portanto, o estudo da definição do que seja o intelecto e a parte da alma que é definida
por ele. Este estudo encontramos no De Anima III.4-6. Primeiro estudaremos a definição de
sabedoria a partir do material que Aristóteles discute até Ethica Nicomachea VI e, depois,
completaremos o estudo com a análise de EN X.7-8, nos quais se encontram a definição da
atividade da contemplação e as suas propriedades.
No capítulo 13 do livro I, Aristóteles, após ter apresentado a definição de felicidade,
εὐδαιμονία, inicia uma nova etapa de sua pesquisa, raciocinando que: “Ἐπεὶ δ’ ἐστὶν ἡ
εὐδαιμονία ψυχῆς ἐνέργειά τις κατ’ ἀρετὴν τελείαν, περὶ ἀρετῆς ἐπισκεπτέον ἂν εἴη. τάχα γὰρ
οὕτως ἂν βέλτιον καὶ περὶ τῆς εὐδαιμονίας θεωρήσαιμεν.”102 - “Uma vez que a felicidade é uma
certa atividade da alma segundo uma virtude perfeita, deveria se investigar as virtudes. Pois
talvez, desta maneira, veremos também melhor a respeito da felicidade.” (tradução nossa).
Se é segundo a virtude da alma que a atividade da felicidade deve estar conformada e,
uma vez que Aristóteles está querendo descobrir o que é exatamente esta atividade, ἐνέργεια,
que é praticada pelo homem feliz, μακάριος ἀνθρωπός103, o correto caminho de investigação é
identificar qual é esta virtude, esta excelência da alma, que o homem pode atingir e nela realizar
a sua finalidade. O estudo das virtudes, das excelências humanas, pertence, portanto, ao estudo
da ciência política como caminho necessário para a determinação do melhor dos bens humanos

102
ARISTÓTELES; Ethica Nicomachea I.11, 1102a 5-7.
103
Cf. Aristóteles; Ethica Nicomachea X.7, 1177b 23.
103

e, por extensão, o bom político deve se esforçar em conhecer verdadeiramente as virtudes para
fazer os cidadãos homens virtuosos e submetidos às leis da cidade104.
A virtude, a excelência, é o estágio no qual algo atinge a sua perfeição formal, no qual
realiza a sua finalidade, onde um ser alcança, de maneira perfeita, o bem, o ἀριστόν, a que tendia
por natureza, no grau mais elevado possível. Pode-se descobrir qual é a virtude de um ser
perguntando pela função que ele deve realizar segundo a sua natureza. Para descobrir a
definição de εὐδαιμονία, o bem último do ser humano, Aristóteles assim procedeu no livro I,
capítulo 7, indagando pela função própria do homem. No capítulo 13, ele retoma a mesma
distinção entre as diversas capacidades da alma dos seres viventes. Cada uma das capacidades
da alma humana tem uma função adequada a ela, como a vegetativa tem de nutrir, a sensitiva
de perceber os objetos, mas somente uma função anímica é unicamente pertencente ao ser
humano, qualificada como a função que o identifica dos demais animais.
Aristóteles estuda o que seja a virtude perfeita da alma humana em algumas etapas. A
primeira começa logo no início de Ethica Nicomachea I.7 e 13, de maneira geral como
introdução para o estudo de todas as virtudes humanas, das virtudes éticas até as dianoéticas.
No livro VI, Aristóteles, junto ao tratamento que confere às outras capacidades intelectuais,
define o que seja a virtude da parte racional da alma, especificamente da parte científica,
determinando que a sabedoria seria uma ciência dos objetos mais nobres realizada com o
conhecimento dos primeiros princípios. E, como conclusão da Ethica Nicomachea, nos capítulo
X.7 e 8, Aristóteles, retomando as descobertas sobre o melhor dos bens humanos que fez pelo
tratado, explica, com mais precisão, no que consiste a atividade da felicidade perfeita e as
propriedades que ela apresenta. A mais nobre atividade, à qual o homem tem acesso, é a
atividade da contemplação do conhecimento do que há de mais elevado realizada pelo intelecto.
Nos capítulos 7 e 13 do livro Ethica Nicomachea I e no livro VI, capítulo 2, Aristóteles
distingue uma parte da alma que possui λόγος: “Πρότερον μὲν οὖν ἐλέχθη δυ’ εἰναι μέρη τῆς
ψυχῆς, τό τε λόγον ἔχον καὶ τὸ ἄλογον.”105 – “Anteriormente106 foi dito serem duas as partes da
alma, uma que possui λόγος e outra sem λόγος.” (tradução nossa).
A parte da alma que distingue o homem dos outros animais é parte racional, a parte que
possui o λόγος. O termo λόγος pode significar o conhecimento de algo ao referir-se à capacidade

104
Zanatta alude às passagens de 1094b 26-b11; 1099b 29-31. St. Tomás in Com. a EN §224-225, mostra que o
estudo da virtudes está conectado à Ciência Política. A Política, tendo como meta a boa formação dos cidadãos,
em fazê-los cumpridores das leis e homens virtuosos, deve ter a preocupação de também estudar as virtudes, aquilo
a que deverão estar conformes os homens felizes. O estudo da virtude está, portanto, havendo seus princípios
englobados na ciência política, submetida a esta ciência superior.
105
ARISTÓTELES; Ethica Nicomachea VI.2, 1139a 3-5.
106
Se refere a Ethica Nicomachea I.7, 1103a 3-7; e acrescentemos também à Metafísica Θ.2.
104

de apreensão de um conteúdo de um determinado objeto e também o conteúdo de um


determinado objeto. Possuir o λόγος significa, primeiramente, o conteúdo apreendido de um
objeto e, de maneira, derivada, o conhecimento deste objeto. A alma ter uma parte que possua
o λόγος significa dizer que é uma parte que possuirá as formas, as essências, apreendidas dos
objetos e que, por isso, é uma ciência deste objeto apreendido. No livro VI, Aristóteles dá um
segundo passo na classificação das partes alma, pois ele diz que, de acordo com a diferença de
gênero dos objetos para os quais estão voltadas, surgem mais duas partes dentro da parte
racional da alma. Há, segundo a passagem de número 1139a 6-11, dois gêneros107 de ente para
os quais se volta esta parte racional, em relação aos quais, pela correspondência necessária entre
uma parte da alma e seu objeto, estão dispostas duas outras partes, as quais Aristóteles distingue
como sendo uma científica, ἐπιστημονικόω, e outra, calculativa, λογιστικόν. O gênero de ser
teorizado108 pela parte científica é aquele cujos princípios não podem ser de outra maneira (αἱ
ἀρχαὶ μὴ ἐνδέχονται ἄλλως ἔχειν). São os entes que não podem ter sua coerência interna, a união
entre o sujeito e seus atributos essenciais, alterada, entes cuja relação predicativa deve ocorrer
sempre da mesma maneira segundo o nexo causal necessário entre os termos. O outro gênero
de ser é aquele da esfera da contingência, das conexões mutáveis entre os predicados, daquilo
que pode ser de outra maneira (τὰ ἐνδεχόμενα αλλως ἔχειν). A parte calculativa delibera sobre
aquilo que pode ser diversamente daquilo que é, daquilo que é passível de alteração, de
mudança.
Quanto a estes dois tipos de objetos, a parte racional da alma pode apenas apreender, na
medida do possível, os seus respectivos conteúdos formais, o λόγος de cada um deles. O único
que pode sofrer ação é o segundo tipo, os seres mutáveis, sobre os quais, no entanto, a alma
racional não pode agir se não contar com o auxílio de outras partes da alma humana.
O bom e o mal estado da parte dianoética é o verdadeiro e o falso. A alma pode dizer o
verdadeiro (ἀληθεύειν), afirmando ou negando, julgando, que uma propriedade está ou não
unida a determinado sujeito, se ela estiver de fato unida ou não a este sujeito109. Esta é a verdade
ou a falsidade, o bom ou o mal estado, da διάνοια, do pensamento discursivo, da inteligência
humana. Como disposições dianoéticas, Aristóteles identifica cinco: a prudência, a técnica, a
ciência, o intelecto e a sabedoria.
A identificação da função anímica própria ao homem e a posterior distinção da parte
racional em outras duas partes, que comportam juntas cinco disposições, faz surgir uma outra

107
Cf. a explicação de St. Tomás sobre este assunto em Com. a EN §.1119-1123.
108
Cf. Aristóteles, Ethica Nicomachea VI.2, 1139a 7: θεωροῦμεν.
109
Cf. Aristóteles, Metefísica Θ. 1051a 34-b6
105

dificuldade: qual será a virtude de cada uma destas partes e qual das duas virtudes será a mais
valorosa? Visto que existem duas partes na parte racional da alma, parte a qual define o homem
e por cuja virtude ele realiza sua finalidade, qual será, das duas virtudes, o bem último do
homem, a que, em cujo exercício, o homem atinge a sua finalidade? Perguntar pela virtude de
algo é perguntar pela função que lhe é própria110.
Aristóteles conclui ao final do segundo capítulo que, sendo o bom e o mal estado da
parte teórica dianoética o verdadeiro e o falso e que o bom estado da parte dianoética prática111
é a verdade correspondente à retidão do desejo, a função de ambas as partes racionais é a
verdade e que as disposições segundo as quais cada uma alcançará o verdadeiro, estas serão
as suas virtudes112. Isto significa dizer que a virtude de cada uma das partes racionais, da parte
científica e da parte calculativa, tem como desempenho excelente o alcance em máximo grau
da verdade. Alcançar a verdade o mais possível é, para ambas as partes, realizar de forma
perfeita as suas respectivas funções.
Aristóteles, iniciando o capítulo VI.7 para definir a virtude da parte calculativa da alma,
retoma o sentido comum de σοφία, sentido que se aproximava dos elencados em Metafísica
Α.1-2. A sabedoria indicaria a mestria, o domínio e a plenitude de uma técnica ou
conhecimento. Desde há muito, portanto, o termo σοφία era já utilizado para indicar o pleno
desenvolvimento de uma capacidade intelectual humana. Aristóteles, no entanto, não está
procurando em Ethica Nicomachea VI nenhuma habilidade, nenhum conhecimento ou
capacidade num sentido determinado, isto é, nem como a indicar a habilidade de mestre de um
artista escultor, ou a grande experiência de um médico, nem mesmo o amplo conhecimento de
um físico. Além destes tipos, Aristóteles considera que existe outro tipo de sábio, um cujo
conhecimento não está restrito a nenhum domínio específico, um sábio num sentido absoluto,
cujo conhecimento é o da mais perfeita das ciências.
Uma ciência, para ser perfeita, deve ser sem restrições no seu campo investigativo, feita
por nada superior a ela. Sendo ela a mais perfeita, deverá ser a mais elevada de todas e deve
não ser ignorante quanto a nenhum princípio ou conhecimento. O sábio, mestre nesta ciência,
deverá, então, ter em sua alma não apenas o conhecimento das consequências que derivam dos
princípios de sua ciência, mas deve possuir, sobretudo, a verdade destes princípios. Por isso,
que, se poderá dizer, que a sabedoria é a excelência da mais perfeita ciência, isto é, quando a
ciência que estuda o que há de mais nobre e mais elevado e também detém o conhecimento dos

110
ARISTÓTELES; Ethica Nicomachea 1139a 15-17.
111
ARISTÓTELES; Ethica Nicomachea VI.2, 1139a 27-31.
112
ARISTÓTELES; Ethica Nicomachea VI.2, 1139b 12-13.
106

primeiros princípios, dos quais decorrem as demonstrações científicas, então, ela estará
completa.
Nos Analíticos Posteriores113, Aristóteles, primeiro distingue um conhecimento
acidental de um conhecimento absoluto, sem determinação restritiva. Alguém possui o
conhecimento absoluto de alguma coisa quando sabe que: 1) a causa da qual o fato resulta é a
causa desse fato; 2) que este fato não pode ser de outra maneira. Sem que se saiba destes dois
aspectos não há possibilidade de haver conhecimento absoluto nem científico, apenas um
conhecimento acidental. E o conhecimento científico significa basicamente um conhecimento
apodítico, isto é, um conhecimento que procede por demonstração. E demonstração significa
“um silogismo científico. E científico eu chamo um silogismo segundo o qual, quando o temos,
temos um conhecimento científico.”114 (tradução nossa). O conhecimento científico é obtido
pela posse do silogismo apodítico em nossa alma, o qual, quando o temos, já possuímos o
conhecimento, pois, das premissas, a conclusão procede. Para ser um conhecimento apodítico
ele deve proceder de premissas que são verdadeiras, primárias, imediatas, mais conhecidas,
anteriores e causativas da conclusão. O objetivo da demonstração é estabelecer conexões
universais entre a substância e seus atributos próprios, apresentando o termo-médio que permite
descobrir de que modo um atributo pertence a uma determinada substância. O conhecimento
será desmonstrativo se for feito através de premissas que sejam verdadeiras; primeiras, isto é,
que sejam anteriores à conclusão; imediatas, isto é, são premissas primeiras necessárias que
uma ciência requer para demonstrar que uma propriedade pertence a uma substância de maneira
direta, sem ter que recorrer a outras premissas para provar o que deve ser provado; mais bem
conhecida para nós do que a conclusão será a premissa; anteriores e causativas da conclusão,
isto é, anteriores na ordem do ser que permite com que algo seja o que é por conta de uma
determinada realidade. O conhecimento científico é principalmente a capacidade de articular as
premissas de um modo em que o termo-médio faça, de fato, as vezes de causa pela qual uma
propriedade pertence a uma substância. Ele não é descobrir conclusões simplesmente ou saber
que uma propriedade pertence a uma substância, mas é fazer visível de que maneira, através do
que, como, uma propriedade inere a uma substância.
Para que um conhecimento seja efetivo na alma de alguém é preciso que as premissas,
que os princípios dos quais decorre a conclusão, seja mais bem conhecido que a conclusão que
ele irá causar. A origem de todo conhecimento é um conhecimento anterior. Conhecer os
princípios dos quais uma demonstração será feita é a condição básica para que se possa

113
Sobretudo, Analíticos Posteriores 71b 9-72b 4; 73a 21-74a 3.
114
ARISTÓTELES; Analíticos Posteriores I.2, 71b 17-19.
107

conhecer uma realidade de maneira científica. Nenhuma outra capacidade intelectual além do
intelecto pode fornecer os princípios a partir dos quais a ciência irá estruturar a demonstração
pelo silogismo. Portanto, a virtude da parte da alma que tem o princípio racional, mais
especificamente, a virtude da parte científica da alma, deverá ser a realização de um
conhecimento que seja o mais perfeito que o homem pode alcançar. Uma ciência não seria
perfeita se não fossem conhecidos também os princípios dos quais ela parte, antes ela nem
mesmo seria ciência. Assim, se é a virtude que se procura, ela deve ser a atividade da ciência
realizada com o pleno conhecimento dos seus princípios. E, se é a mais perfeita ciência, ela
deve ser ciência do que há de mais nobre e elevado, e os seus princípios deverão ser também o
que há de mais nobre e elevado na realidade. Os primeiros princípios, segundo o que aparece
nos Analíticos Posteriores I.10 e II.19, são os axiomas e princípios da atividade intelectual e os
princípios de cada ciência particular. Como Aristóteles busca a mais elevada ciência, o objeto
dela será o mais elevado, e também os princípios serão os mais elevados. Por isso, serão os
primeiros princípios desta ciência perfeita, os axiomas e os princípios da atividade intelectual
e os primeiros princípios desta ciência mais elevada.
Para se ter conhecimento no mais alto grau de um determinado objeto é bom que o
cientista não apenas seja capaz de saber de que forma as propriedades se conectam entre si, de
que forma uma propriedade superior deriva uma inferior, qual é o termo médio que faz a união
entre outros dois predicados e sujeitos, mas deve ele também ter o conhecimento dos princípios
a partir dos quais, não só como cada uma destas operações podem se realizar, mas também
como cada um dos elementos pode existir do jeito em que ele é tomado num determinado
raciocínio. A realização deste conhecimento é a virtude de uma parte da alma racional, a parte
científica, pois nela estão unidos em conhecimento tanto a disposição para a realização dos
raciocínios silogísticos quanto a disposição de apreensão dos princípios que servem de base
para os silogismos. Alguém que apreende um determinado princípio e em seguida faz as
derivações silogísticas das propriedades e do sujeito apreendidos realiza a virtude da alma
racional. Assim como aquele que realiza a ciência, tendo apreendido os princípios gerais sobre
os quais, de mais elementar, sustentam as suas demonstrações, também alcança a virtude mais
elevada da alma humana. A definição de σοφία pode ser, portanto, formulada como intelecto e
ciência: ciência das realidades que mais são dignas de apreço coroada pela inteligência dos
princípios supremos115.

115
ARISTÓTELES; Ethica Nicomachea VI.7, 1141a 18-20.
108

Assim, a sabedoria deverá ser a excelência de um conhecimento e isto significa que ele
deverá ser um conhecimento científico, apodítico, desenvolvido sob o conhecimento verdadeiro
dos primeiros princípios e, sobretudo, em atualidade. Um conhecimento não se completa se não
estiver em atividade. O homem, pelo estudo, pela prática e pelo aprendizado, consegue adquirir
o hábito, a capacidade de ter um conhecimento perfeito. Mas a capacidade é ainda incompleta
em relação à sua atividade. O hábito ou a capacidade do conhecimento só poderão ser realmente
uma excelência se estiverem em atualidade, quando o homem for possuidor atual deste saber.
A atividade à qual o homem chega quando atualiza esta forma de conhecimento será chamada
por Aristóteles de θεωρία, isto é, contemplação. Apenas em Ethica Nicomachea X.7 que
Aristóteles irá, de maneira explicita, precisar o que seja esta atividade contemplativa e, ao
explica-la, irá mostrar que todos os atributos que eram identificados como pertencentes ao
maior dos bens humanos se encontram nela. Isto quer dizer que a contemplação será a atividade
da felicidade humana.
Partindo da premissa de que a felicidade é uma atividade de acordo com a virtude e que
essa deve ser a virtude mais alta, Aristóteles começa Ethica Nicomachea X.7 com a conclusão
de que, portanto, a virtude mais alta deverá pertencer àquilo que existe de molhor, isto é, melhor
relativo ao homem, pois se busca a felicidade humana. Aristóteles, nesta passagem, passa a
considerar o que há de melhor no homem o intelecto, νοῦς, diferentemente do que fez até então
desde o livro I. Antes, a distinção entre partes da alma era entre as que possuíam o λόγος e as
que não o possuíam, e a diferença entre os que o possuíam no sentido forte do termo e aqueles
que o possuíam no sentido derivado de obedecê-lo. Agora, a virtude da alma humana é ligada
ao intelecto, porque ele é o que há de melhor no ser humano e é ele que, por natureza, comanda,
dirige e conhece as coisas belas e divinas. Aristóteles apresenta a conclusão do estudo que
desenvolveu, dizendo que “a atividade desta [parte da alma que possui o intelecto] segundo a
virtude perfeita seria a perfeita felicidade”116 (tradução nossa).
Até a passagem de Ethica Nicomachea X.7, 1179a 19, Aristóteles não havia respondido
claramente que a virtude seria a atividade do intelecto, νοῦς, o qual, agora é reconhecido como
aquilo que existe de mais elevado em nós. E, tendo apenas reconhecido isso, passa à conclusão
de que a atividade do que há de melhor em nós é a atividade contemplativa117, a θεωρία. Esta
conclusão pode ser confirmada pela evidência de que todos os resultados da pesquisa sobre o
bem melhor e mais perfeito apontam para a contemplação como sendo a atividade na qual se
encontrariam todos os atributos com os quais foi qualificado o bem supremo do homem.

116
ARISTÓTELES; Ethica Nicomachea X.7, 1177a 16-17.
117
Cf. Aristóteles; Ethica Nicomachea X.7, 1177a 17-18.
109

No que consiste a contemplação? Se ela é a atividade do que há de melhor em nós


segundo a virtude da parte da alma que comanda e conhece, consistindo na felicidade perfeita,
então, certamente, é uma atividade de conhecimento perfeito coroado com o conhecimento dos
primeiros princípios. A contemplação é a atualização deste conhecimento, realizado da melhor
maneira possível, alcançando a sua excelência. Por isso, se pode dizer que a contemplação é a
atividade da sabedoria, isto é, a atividade da excelência do conhecimento. Düring118, depois de
explicar que a contemplação é a atividade de atualizar o saber, sendo sempre de maneira efetiva
e não uma mera atividade extática, contrapõe esta noção à interpretação que Gauthier
defenderia. Para Gauthier119, segundo Düring, a teoria não é precisamente uma vida erudita,
isto é, uma vida de estudos, dedicada à averiguação e à descoberta da verdade. Antes, o ideal
aristotélico, para Gauthier, seria o de jamais estudar e jamais descobrir, para que se possa
consagrar todo o seu tempo à ver (à reguarder): ela seria uma vida de espectador das realidade
divinas enfim conhecidas. Contra esta interpretação, Düring diz que, na verdade, este tipo de
atividade de espectador em tempo integral, sem percorrer o esforço do estudo e da descoberta,
seria a atividade da divindade aristotélica, a qual poderia contemplar-se a si mesmo na atividade
de intelecção da intelecção, νοήσις νοέσεως, como Aristóteles explica em Metafísica Λ. A vida
do homem contemplativo, no entanto, não é essa. O ideal que Gauthier parece indicar, diz
Düring, é o ideal dos Onfalópsicos bizantinos, os quais, olhando fixamente para os próprios
umbigos, acreditavam poder contemplar em estado de êxtase a luz divina. Este tipo de vida,
exclui, evidentemente, todo o caminho de estudo, aprendizado, pesquisa e investigação que
Aristóteles indica como o meio para se conhecer alguma coisa e adquirir as capacidades
intelectuais para se poder atualizar o conhecimento perfeito.
St. Tomás de Aquino120 nos explica que a contemplação da verdade tem dois sentidos:
1) um consiste na investigação da verdade; 2) o outro, na reflexão da verdade já descoberta e
conhecida. O segundo tipo seria o mais perfeito, pois é o fim e a finalidade da investigação. Ou
seja, para St. Tomás, o que Aristóteles parece indicar com uma atividade contemplativa é um
processo de se descobrir e aprender algum conhecimento da realidade, mas, principalmente, o
de atualização deste conhecimento de maneira perfeita e que, nesta atividade, o homem reflete
sobre o conteúdo conhecido como se pudesse ver cada uma das partes da verdade e dos meios
pelo quais ela foi apresentada. Com esta explicação de St. Tomás, pode-se dizer que, na

118
Cf. DÜRING, Ingemar, Aristóteles, Exposición e Interpretación de su Pensamiento, traduccion y edición de
Barnabé Navarro, 2ª ed.; UNAM, México, 2005; pg. 732.
119
ARISTÓTELES; L’Ètique à Nicomaque, introduction, traduction et commentaire par Gauthier e Jolif,
pg.848-866.
120
St. Tomás de Aquino, Commentary on Aristotle’s Nicomachean Ethics, livro X, lição X, §.2092.
110

atividade contemplativa, o conhecimento está em perfeita atualidade e sobre ele acrescenta-se


o aspecto reflexivo que esta atividade permite: o homem é capaz de pensar-se a si mesmo
também como aquele que conheceu a verdade.
Esta noção de contemplação é a mais interessante de todas. Mas precisa que uma
especificação seja feita quanto a ela agora, embora, só se poderá compreender esta explicação
plenamente após a análise do capítulo III sobre o intelecto. A atividade reflexiva que o homem
pode fazer através da contemplação da verdade pode ocorrer apenas de maneira acidental, per
accidens. O intelecto humano não tem como objeto próprio e primário a si mesmo, mas as
essência dos entes e, por isso, só pode refletir sobre si a partir da forma que apreendeu e à qual
se plasmou. Apenas a substância imaterial descrita em Metafísica Λ tem como objeto próprio a
si mesmo e, por isso, reflete sobre si mesmo e se conhece per se, por si mesmo. Mas na atividade
de contemplação, ainda que seja per accidens, o intelecto humano pode refletir sobre si mesmo
e, ao fazê-lo, será capaz de discernir o que ele é realmente e o que é seu objeto e sua atividade,
compreendendo a sua própria ação como o cume de um processo de investigação e estudo,
realizado na perfeição e plenitude de suas capacidades. Por isso, neste sentido, se pode pensar,
ainda que Aristóteles não diga isso de maneira explícita, que na atividade da θεωρία, o homem
pode, em certa medida, conhecer-se a si mesmo, descobrir quem é este agente capaz de
compreender a realidade, estruturando o que aprendeu num conhecimento científico e
verdadeiro, discernindo o que as coisas são e o que ele fez para conhece-las. Isso permitirá a
ele ver a sua vida alcançar o ápice de atualização e felicidade.
Aristóteles, em Ethica Nicomachea X.7 e 8, explicitamente sugere, num raciocínio sobre
a vida contemplativa, que ela seria superior à condição do homem e que, apenas por conta da
presença de algo divino em sua alma, é que o homem poderia viver uma vida de contemplação.
Aristóteles, ao efetivar estes juízos, considerava, ao menos, três coisas: 1) o sentido de vida
humana como vida política; 2) os atributos semelhantes que se poderiam encontrar tanto na
vida contemplativa vivida pelo homem quanto naquela vivida pelos deuses; 3) o intelecto, tanto
para o homem como para a divindade, é a capacidade pela qual se conhece e se pensa e, ao fazê-
lo, pode-se, em certo sentido, assemelhar-se ao objeto apreendido formalmente; entre a vida
contemplativa dos deuses e a dos homens, não há diferença substancial, apenas de intensidade
e duração e de sujeito contemplativo.
O primeiro caso reflete a opinião comum de que a vida humana alcançava o seu ápice
de atividade na ação política, a qual seria exercida pela parte da alma calculativa, ordenando-
se as paixões e os impulsos que a natureza material inflinge à vida humana. Frente a este tipo
de vida, a contemplação parece realmente algo de divino, estando para além das possibilidades
111

do homem político e, se alguém admite esta compreensão restritiva do que seja o homem, pode-
se dizer, então, que a vida contemplativa é algo de divino e que o exercício de sua atividade se
deve à presença de um elemento divino, isto é, extrínseco à vida humana, no ser humano. Assim,
se o intelecto é algo de divino no homem, a atividade que ele realiza também será algo de
divino. Em certa medida, pode-se dizer que, de fato, a vida de contemplação e que o intelecto
são coisas divinas e que, se o homem viver de acordo com a virtude deste elemento, ele viverá
uma vida divina tanto quanto possível, pois muitos atributos que são referidos como
pertencentes à atividade dos deuses também são atributos da atividade da contemplação
realizada pelo homem.
Quanto ao segundo aspecto, em Ethica Nicomachea X.7, depois de definir que a
contemplação é a perfeita felicidade, Aristóteles passa em revista todos os atributos que viu
pertencerem ao bem supremo do homem e os confirma como pertencentes à atividade da
contemplação, averiguando, assim, que o supremo bem para o homem é a felicidade na
atividade da contemplação da verdade segundo a sabedoria. Os atributos podem ser
resumidamente elencados da seguinte maneira: 1) a atividade contemplativa é a mais elevada
de todas as atividades; 2) ela é a atividade mais contínua, pois se pode contemplar de maneira
mais contínua do que se pode realizar qualquer outra tarefa; 3) a atividade da sabedoria é a mais
prazeirosa de todas; 4) a contemplação é autossuficiente; 5) é a mais desejada por si mesma,
pois é a atividade para além da qual não se busca nada mais; 6) é a atividade que se realiza
longe das atividades práticas, isto é, ela é realizada nos tempos livres que não estão ocupados
por tarefas úteis. Todas estas características pareceriam antes pertencerem às atividades
exclusivas dos deuses. Mas, como Aristóteles mostrou, também elas pertencem seguramente à
atividade mais perfeita que o homem pode realizar. Ou seja, a atividade que detém estas
propriedades é também humana, mas humana no sentido iminente, isto é, no sentido de uma
vida na qual se realizam plenamente as funções intelectuais de conhecimento da realidade de
que o homem é capaz.
Se se considera que a vida humana é apenas a vida política, toda e qualquer vida
intelectual vivida pelo homem será tomada como algo divino, pois ultrapassa o padrão do
empenho prático da vida política, podendo ser desconsiderada como atividade que foge àquilo
que se espera do ser humano. Aristóteles, no entanto, afirma que é esta idéia que deve ser
rechaçada como objetivo final, como meta, de vida humana e que se deve tentar ser tão imortal,
isto é, praticar o mais possível a atividade que também os deuses praticam, o quanto possível,
ainda que de maneira inferior àquela deles. Segundo a sua natureza, o homem somente pode
tornar-se um ser em sua realização completa ao viver a vida em que as potências que o definem
112

como homem estejam em plena atividade e todas as suas forças estejam empenhadas na mais
perfeita atividadede que é capaz. Esta atividade, como foi visto, é a atividade contemplativa,
frete à qual a vida política fica aquém das possibilidades de realização humana. A vida devotada
ao prazer fica ainda mais abaixo do que a vida política daquela plenitude de ação de que o
homem é capaz. A vida que busca as riquezas não é senão um meio para viver as outras
possibilidades de vida.
Inferior não em substância, mas em intensidade e duração, a atividade contemplativa da
qual o ser humano é capaz só pode ser vivida por certos períodos de tempo conforme a
disponibilidade das ações práticas. Os deuses não têm outras necessidades, como os homens as
têm, além de contemplarem-se a si mesmos. Eles não precisam praticar ações para que se
encontrem em uma situação em que consigam estudar, aprender e depois contemplar o
conhecimento adquirido. Eles já vivem em contemplação, eles seriam νοήσις νοήσεως,
intelecção de intelecção.121 O homem, embora precise ganhar a vida, pode, ainda assim, se
dedicar para se aproximar o mais possível da vida divina, tendo, por uma lado, apreendido as
formas dos entes mais elevados das realidade, conformando-se a elas, por outro, exercendo a
mesma atividade que os deuses são capazes de realizar. Aristóteles, de passagem, alude a um
certo caráter divino do intelecto humano. A divindade do intelecto se daria pela atividade que
ele pratica de conhecer o que há de divino na realidade, permitindo ao homem assemelhar-se à
forma divina do objeto quando a apreende intelectualmente. Ao exercitar o conhecimento, o
homem poderia divinizar-se e imortalizar-se o mais que possível, vivendo uma vida superior à
do homem comum. Mas parece que a divindade do intelecto humano ou, como Aristóteles
cogita, a presença de algo divino no homem, isto é, a presença do intelecto, deve ser
compreendida dentro das possibilidades humanas ainda. Mesmo que o homem, apreendendo o
que há de mais divino na realidade, se assemelhe apenas pela apreensão formal do objeto e não
se altera a si mesmo, ficando a sua essência preservada, o homem não é um ser divino como o
são os deuses e só poderia, eventualmente, ser considerado assim por ter em si a capacidade de
conhecer a realidade. Apenas conhecendo os entes, assemelhando-se às suas formas apenas de
maneira intelectual, é que o homem pode se aproximar do que são os deuses, mas ele o faz na
medida de sua humanidade, isto é, enquanto homem, enquanto ser humano, limitado como é
pela sua corporeidade e pelas vicissitudes da vida prática. Sua felicidade é humana e só faz
sentido ser dito assim, porque é o ápice de um esforço de aprendizado, estudo, empenho em

121
Aristóteles não trata deste aspecto dos deuses em Ethica Nicomachea X.7-8, mas podemos, pelo que ele diz
em Metafísica Λ, aplica-lo aqui a eles por conta da argumentação em questão.
113

adquirir as atividades necessárias para realizar o conhecimento perfeito que pode alcançar como
homem.
Os tipos de vida que Aristóteles identificou em Ethica Nicomachea I.3 como o modo
como muitos vivem foram a vida do prazer, a vida política e a vida das riquezas. Nenhuma das
três foi reconhecida por Aristóteles como plenamente digna de ser vivida e não poderiam ser
modos de vida adequados à felicidade. Mas a quarta, a vida contemplativa, foi apenas citada
com a promessa de que seria estudada em outro momento. Apenas no livro X que ela é
apresentada como sendo o modo de vida da felicidade.
Assim, a felicidade será uma atividade contemplativa na qual o homem mobiliza o seu
intelecto para que consiga realizar a sua função de homem, isto é, de ente definido pelo princípio
racional ou pelo intelecto. A atividade da contemplação será aquela em que mais perfeitamente,
mais completamente, o homem consegue aplicar todas as suas forças e possibilidades de ser
para que viva e alcance a sua perfeição enquanto ente, enquanto ser-humano.
A atividade de contemplação realiza a felicidade humana. Aristóteles explicou na Ethica
Nicomachea os aspectos práticos sobre esta atividade. O aspecto anterior à ela, isto é, as
condições anímicas e substanciais que permitem que, pela atividade da contemplação, o homem
alcance a plenitude de seu ser só poderá ser compreendido no estudo de De Anima,
especificamente, no estudo sobre o intelecto e as capacidade intelectuais, como veremos no
próximo capítulo.
114

4 Capítulo III: a função intelectual da alma: o intelecto, νοῦς

No primeiro capítulo desta tese, foi visto que o modo como a alma humana está
estruturada e como ela se fundamenta em sua função intelectual. O modo como o homem se
realiza enquanto homem, de que forma a vida humana realmente se inicia, como ela está
inclinada a se realizar através da atividade de seu intelecto, tudo isso se sustenta por conta da
vida da função presente somente na alma humana e que não se encontra em outro ser vivo: o
intelecto. Em seguida, a vida ativa desta parte da alma, realizada em plena perfeição, foi
identificada como a felicidade, a εὐδαιμονία, humana. Mas esta descoberta não bastou, pois foi
necessário precisar que uma vida ativa consistia em uma atividade virtuosa do intelecto
humano, a qual foi reconhecida como sendo a sabedoria, σοφία. A sabedoria é excelência na
realização da atividade da ciência, ou seja, é o modo perfeito do conhecimento científico
daquilo que é mais digno de prestígio. A excelência da ciência não pode ser alcançada, no
entanto, sem que ela esteja coroada com a intelecção dos supremos princípios, completando-se
um conhecimento das premissas e das conclusões em uma só atividade.
Tendo já discorrido sobre os elementos constitutivos da felicidade humana no capítulo
anterior, resta-nos agora cumprir a última etapa de análise desta tese: recorrer ao tratado De
Anima para que se consiga compreender o que é o intelecto em seu sentido mais eminente, isto
é, como capacidade intelectual constituinte da alma humana, e o que significam estas atividades
dianoéticas descritas na Ethica Nicomachea, as quais, realizadas na excelência, conduzem o
homem à sua felicidade.
Primeiro é importante deixar estabelecido que é o νοῦς, entendido como a função da
alma humana tal qual é apresentado no De Anima, apreendendo as formas inteligíveis de cada
objeto inteligível, que proporciona à alma que desempenhe as funções dianoéticas de
composição e divisão de duas noções inteligíveis. Dessa função dianoética compositiva ou
divisional existem três espécies que podem se encontrar na verdade ou na falsidade ao
produzirem suas composições: a ἐπιστήμη, ciência, a δόξα, a opinião, e a φρόνησις, a prudência.
Destas três, a que nos interessa um pouco mais é a ἐπιστήμη, porque compõe com o νοῦς a
atividade da contemplação da verdade.
Para que se realize o estudo da natureza e das atividades do intelecto, νοῦς, como
apresentada em De Anima, é necessário ter presente o modo com que esta função da alma foi
sendo trabalhada até a sua definição final nos capítulos III.4-6 do tratado. Aristóteles não
estabeleceu diretamente em III.4 o que é o intelecto, mas foi, desde o final de III.2, apresentando
as propriedades do intelecto, confrontando-o em paralelo com a percepção naquilo que
115

aproximava e no que afastava estas duas funções da alma capazes de conhecer algo dos entes.
Que a realidade pode ser conhecida pelo homem ou, ao menos, que o homem é capaz de
desenvolver alguma espécie de saber sobre ela, por meio da sensação ou da inteligência, é algo
que não se pode questionar. O problema é saber por que meios, de que forma e o que o homem
pode conhecer da realidade através destas funções. A percepção sensível, a sensação, é um meio
de se estabelecer contato com a realidade pela apreensão dos aspectos físicos aparentes que ela
apresenta. Há, no entanto, outro tipo de contato com o ser dos entes que não é propriamente
pela sensibilidade e nem está focado em suas aparências sensíveis. Aristóteles, dispondo-se a
descobrir o que é isto que também proporciona aos homens um conhecimento da realidade, mas
que é sabido ser de um tipo diferente de conhecimento daquele oferecido pelos sentidos, começa
a empreender o estudo do intelecto e dá início à solução para a dificuldade de se estabelecer os
limites do conhecimento sensível e do conhecimento intelectual dos entes, de se ter clareza
quais são as possiblidades de cada um deles, de se saber quais são os objetos próprios de cada
um. A passagem do estudo da percepção para o estudo do intelecto não é imediata. Muito menos
ocorre, de maneira abrupta, a transposição de um tema para o outro, mas se sucedem em torno
à transição de De Anima III.2 para III.3, ou seja, da passagem do final da discussão dos sentidos
particulares e das reflexões sobre a percepção da percepção e do estudo da distinção dos objetos
sensíveis pertencentes a gêneros diferentes, para o início das primeiras apresentações das
capacidades intelectuais colocadas em confronto com aquelas capacidades sensíveis que
pareciam ser as mesmas ou semelhantes. O estudo do intelecto tem início ainda na discussão
sobre a percepção, permanecendo o paralelismo comparativo entre as duas funções até que as
suas diferenças tenham sido completamente estabelecidas e o estudo do intelecto ganhe plena
atenção, sobretudo em III.4-6. Ainda que Aristóteles declare com veemência em III.3 que “é
evidente que não é a mesma coisa o perceber e o pensar”122, ele não havia apresentado de
maneira definitiva tudo aquilo que fazia ele ter certeza desta afirmação, como passará a fazer
nos trechos seguintes a esta sentença.

122
ARISTÓTELES; De Anima III.3, 428a 6-7. A expressão τὸ φρονεῖν está sendo usada de maneira metonímica,
agrupando sobre si a referência a todas as outras atividades da inteligência humana: νοῦς, ἐπιστήμη, φρόνησις, etc.
Esta sentença, segundo Ross, pg. 284, seria a apódosis que resolveria a frase que abre o capítulo de III.3, segundo
a qual o entender, o pensar, pareceriam ser como o perceber algo, pois, por eles três, se conhece e se distingue
algo dos entes.
116

O paralelismo feito por Aristóteles entre αἴσθησις e νοῦς pode ser visto, por exemplo,
em:

a) Logo no início de III.3: “δοκεῖ δὲ καὶ τὸ νοεῖν καὶ τὸ φρονεῖν ὥσπερ αἰσθάνεσθαί τι
εῖναι (ἐν ἀμφοτέροις γὰρ τούτοις κρίνει τι ἡ ψυχὴ καὶ γνωρίζει τῶν ὄντων)”123 –
“parecem ser também o entender e o pensar como o perceber algo (pois em ambos,
a alma distingue e conhece algo dos entes).” (tradução nossa)
b) A resolução da confusão entre sensação, crença e imaginação na primeira parte de
III.3, mostra uma equiparação que, mesmo Aristóteles a refutando, parece relevante
de se considerar como possível.
c) Em III.4: no momento em que, raciocinando sobre a natureza do νοῦς, Aristóteles
levanta a hipótese de que: “εἰ δή ἐστι τὸ νοεῖν ὥσπερ τὸ αἰσθάνεσθαι, ἢ πάσχειν τι ἂν
εἴη ὑπὸ τοῦ νοητοῦ ἤ τι τοιοῦτον ἕτερον”124 – “se, então, o entender é como o
perceber, ou seria um padecer a partir do inteligível ou seria uma outra coisa deste
tipo.” (tradução nossa).
d) Depois, novamente em III.4, a comparação entre o tipo de impassibilidade da
faculdade perceptiva e da faculdade intelectiva: “ὅτι δ’ οὐχ ὁμοία ἡ ἀπάθεια τοῦ
αἰσθητικοῦ καὶ τοῦ νοητικοῦ”125 – “que não é a mesma impassibilidade da faculdade
perceptiva e a da faculdade intelectiva...” (tradução nossa).
Colocado em confronto, muitas vezes, como nos exemplos apresentados, com a
percepção sensível, o intelecto foi sendo estudado por Aristóteles segundo o modo que permitia
fazer com que as características que o fazia ser tomado como a mesma coisa que αἴσθησις
fossem paulatinamente subtraídas do conjunto daquelas que pertenciam unicamente a ele. Das
propriedades e atividades que se podem destacar nesta investigação do νοῦς junto à αἴσθησις,
podemos considerar que são as mais importantes as:

a) a capacidade de κρίνειν τι τῶν ὄντων, isto é, de distinguir algo dos entes. Esta
capacidade foi citada junto da capacidade de γνωρίζειν, conhecer, no início de De
Anima III.3, como sendo aquilo que levava a crer que νοῦς e φρονεῖν que fossem a
mesma coisa que αἴσθησις. A distinção é sempre um processo secundário em relação
à apreensão, ao conhecimento dos entes, ainda que, possa ocorrer simultaneamente
à própria percepção.

123
ARISTÓTELES; De Anima III.3, 427a 19-21.
124
ARISTÓTELES; De Anima III.4, 429a 13-15.
125
ARISTÓTELES; De Anima III.4, 429a 29-30.
117

b) Em De Anima III.4, 429a 13-15: A qualidade de ambos serem algo do tipo do


πάσχειν τι, isto é, não são exatamente um padecer algo, mas são outra coisa deste
tipo, τι τοιοῦτον ἕτερον.
c) Em De Anima III.4, 429a 15-16: são impassíveis, ἀπαθεῖς, na medida em que não
sofrem a alteração do tipo descrito acima, mas se atualizam sem sofrer uma alteração
que aniquile sua substância pela ação do agente da mudança.
d) Em De Anima III.4, 429a 16-17: os dois têm seus objetos próprios como uma forma
a ser apreendida, para a αἴσθησις é uma forma sensível e para o νοῦς uma forma
inteligível.
Basicamente, são estas as propriedades que pertencem à percepção e ao intelecto,
quanto às quais Aristóteles terá de responder em que medida elas contribuem para que os dois
sejam considerados como a mesma coisa, como algumas opiniões antigas sustentavam, ou,
antes, mesmo com sua coincidência, as duas funções da alma são distintas entre si. A ordem,
portanto, da análise daquilo que parece ser comum à percepção e ao intelecto, deverá ser a
ordem em que se poderá iniciar a análise do intelecto, conforme o estudo de Aristóteles.
A primeira das averiguações das propriedades que conduziram o filósofo ao debate com
as opiniões correntes sobre estas duas funções da alma é a da capacidade de distinguir algo dos
entes, o que levou à crença de serem a mesma coisa αἰσθησις e νοῦς. A impressão de
similaridade quanto a esta capacidade das duas potências da alma de poderem identificar e
diferenciar o que é igual e o que é diverso da forma que cada uma delas apreendeu foi causada,
principalmente, porque ainda não estava estabelecido o limite do conhecimento sensível, isto é,
não estava delimitado até que ponto o conhecimento que se tinha da realidade era somente
sensível ou se era também de outra ordem, que, até o momento do tratado, não estava
plenamente definido. Na verdade, a capacidade de discernimento, κρίσις, decorre
necessariamente da presença da forma do objeto depois que esta foi apreendida e se realiza, no
entanto, em cada um dos âmbitos específicos à forma do objeto apreendido: a distinção sensível
é feita pela percepção sensível e a distinção intelectual pelo intelecto. Com este raciocínio, a
confusão se desfaz. Assim que, tendo-se determinado o que o intelecto apreende, se conheceu
que seu objeto não pertence ao âmbito da sensibilidade, mas o ultrapassa e o abarca numa
unidade superior.
Assim, o estudo do intelecto nos obriga, primeiramente, a esclarecer o que seja a
capacidade de discernimento, de que forma ela começa a ser trabalhada no final de De Anima
III.2 aplicada à percepção e como ela surge no início de De Anima III.3 como algo que colocaria
νοῦς e αἰσθησις como funções similares. Em seguida, com o objetivo de se chegar à definição
118

do νοῦς, será feita a análise dos capítulos III.4 e 6, nos quais as outras propriedades apresentadas
anteriormente também são discutidas.
O capítulo III.3, no entanto, nos servirá apenas até a sua primeira parte, que acaba em
427b 26, depois da qual inicia-se uma investigação sobre a imaginação, φαντασία, que não nos
interessa neste tese, e em alguns trechos nos quais aprece alguma indicação do que seja a
atividade intelectual das outras capacidades que não o intelecto. Ainda que esta função
imaginativa desempenhe um papel importantíssimo na psicologia de Aristóteles, sobretudo ao
fornecer o material imaginativo a partir do qual o intelecto poderá fazer a extração de suas
formas inteligíveis, deveremos deixar de lado a sua análise e passaremos diretamente para o
capítulo III.4, no qual inicia-se o estudo do intelecto, νοῦς.

4.1 Discernimento: segundo a sensação e o intelecto

Poder-se-ia dizer126 que a estrutura do capítulo De Anima III.3 é um tanto desconcertada


e que, pelo fato de nele se desenvolver, de maneira mais detida, o tema περὶ φαντασίας, sobre a
imaginação, o capítulo acaba servindo principalmente como etapa de transição entre as
discussões sobre a percepção e o pensamento, αἰσθησις e φρόνησις, uma vez que a φαντασία
seria o intermediário entre estas duas funções da alma. A sua primeira terça parte se dedicaria
inicialmente a uma espécie de discussão preliminar sobre a sensação e o pensamento e a
capacidade de distinção dos entes, que os faria similares. A função desta primeira parte, que
pareceria antes responder a uma dúvida restante deixada pelo capítulo anterior, somente seria
esclarecida um pouco depois, em 427b 27-29, quando vem a ser enunciada a necessidade de se
distinguir a imaginação da intelecção, νοεῖν. Nesta primeira terça parte do capítulo, de 427a 17
até 427b 26, estaria contido um debate das teses de alguns filósofos antigos sobre se a sensação
e o pensamento seriam ou não a mesma coisa e apenas a partir de 427b 27 é que a imaginação
apareceria, de forma um tanto abrupta, como o centro da discussão, primeiramente afirmando-
se o que ela não seria e, em seguida, a partir de 428b 10 até o final do capítulo, apresentando-a
em sua definição positiva. A discussão da primeira parte do capítulo estaria apenas como uma
espécie de confuso preâmbulo à discussão do que seja a imaginação, sem que esta discussão
pudesse sugerir mais do que uma preparação para a abordagem do tema principal.

126
Cf. a alusão a esta possibilidade de leitura como indicam Hicks pg. 452 e Hamlyn pg. 147, sobretudo Hamlyn.
119

No entanto, esta leitura parece ignorar algo fundamental do capítulo, fazendo com que
aquilo de que ele trate definitivamente nos escape por entre os dedos, nos deixando sem saber
a causa de sua composição ser da maneira como é. Ainda que o tema περὶ φαντασίας, sobre a
imaginação, ocupe boa parte do capítulo, na verdade, ele só é introduzido por ocasião da
distinção entre a percepção e o intelecto em 427b 14-16: a imaginação é outra coisa que a
sensação e o pensamento. Esta passagem, que pareceria abrupta segundo a outra leitura, na
verdade, cabe perfeitamente bem nesta altura do capítulo ao apresentar a imaginação como
mais um elemento que evidenciaria que o pensamento não é sensação. A partir de 427b 26 até
o final, o capítulo se concentra exclusivamente na definição de φαντασία e que somente por esta
razão é que se poderia supor que o tema de III.3 seria a imaginação. No entanto, mais justo
seria que se considerasse, levando em conta o papel que o capítulo tem dentro do tratado como
um todo, que o seu tema principal não é exatamente a definição de imaginação, ainda que ela
ocupe quase três terços do capítulo, mas que seja a diferenciação entre sensação e pensamento.
Esta discussão só fica evidente na primeira parte do capítulo, de 427a 17- 427b 26, na qual se
inicia a distinção entre a percepção e o intelecto, dando continuidade às reflexões feitas em
III.2 sobre a capacidade de distinguir os objetos sensíveis própria da sensação. A imaginação
aparece, portanto, como o primeiro elemento que conduzirá ao pleno estabelecimento de que o
νοῦς não é absolutamente αἴσθησις. Assim compreendido o capítulo, se pode entender melhor
o seu significado e de que forma o tema da imaginação nele aparece.
Se forem comparadas dois trechos, um do início de III.3, outro do início de III.4, a
continuidade temática da discussão segundo a perspectiva na qual a questão em que se
contrapõem sensação, por um lado, e intelecto e pensamento, fica evidente. O capítulo III.3
começa com uma frase em cuja prótasis se lê que a alma se define segundo duas diferenças:
pelo movimento local e pelo intelecto e pensamento, por um lado, e pela sensação, por outro.
Considerando que a sensação foi tratada amplamente em quase todo o livro II até o capítulo
III.2 de De Anima, podemos compreender que a sentença de abertura de III.4 está de acordo
com a perspectiva em que se colocou a questão do modo de conhecimento sensível e intelectual
dos entes pela alma no início de III.3. A primeira sentença do capítulo III.4, tomando em análise
a parte da alma pela qual a alma conhece e raciocina, ᾦ γινώσκει τε ἡ ψυχὴ καὶ φρονεῖ, indica
que Aristóteles já resolveu a dificuldade que faziam parecer similares sensação e intelecto e
que agora ele pretende tratar exclusivamente desta parte da alma intelectual, do intelecto. A isso
pode-se acrescentar uma intepretação segundo a qual a prótasis inicial de III.3, 427a 17-19,
“Ἐπεὶ δὲ...αἰσθάνεσθαι”, se completaria somente a partir da sua apódosis em 427b 6, “ὅτι μὲν
οὖν οὐ ταὐτόν τὸ αἰσθάνεσται καὶ τὸ φρονεῖν, φανερόν”, “é evidente que sentir não é o mesmo
120

que pensar”127. Ou seja, Aristóteles apresenta as diferenças entre sensação e intelecto, dentre
as quais a imaginação, e posteriormente, a partir de III.4 trata exclusivamente do intelecto.
É por esta razão que o capítulo III.3 e cada uma de suas partes, principalmente a primeira,
cuja leitura abstraída da continuidade entre os capítulos gera certa incompreensão, precisaria
que fosse compreendido, para se evitar que seja entendido como um capítulo fragmentário,
como um desdobramento de duas das questões respondidas no capítulo anterior, o De Anima
III.2. Estas duas questões são: a percepção da percepção e a capacidade de distinção entre os
objetos sensíveis, tanto daqueles pertencentes ao mesmo gênero quanto daqueles que são de
gêneros sensíveis diferentes. Resgatando a antiga crença de que sensação e pensamento seriam
a mesma coisa por apresentarem os dois a capacidade de distinção, Aristóteles, antes de iniciar
o estudo sobre o intelecto, precisa deixar claro que, apesar desta coincidência de capacidade, as
duas funções da alma não são a mesma coisa. Por isso, de certa forma, a primeira parte de III.3
adianta alguns temas de De Anima III.4-6, como algumas propriedades do intelecto e de
algumas das capacidades dianoéticas, como a opinião, por exemplo, conforme a necessidade da
argumentação.
Mas é sobretudo a atividade de κρίνειν, distinguir, que nos servirá como início da análise
do νοῦς, pois foi por ela que Aristóteles começou a se indagar se, além da sensação, outra
função anímica também cumpria a tarefa de distinguir algo dos entes. Mesmo que, pertencendo
também à αἴσθησις e fazendo com que se leve a crer que se assemelhem, ela e o νοῦς, a
capacidade de distinguir algo dos entes figura em relação a cada uma delas com uma diferença
fundamental: enquanto que à sensação pertence a distinção entre uma variedade de formas
sensíveis, a distinção própria do νοῦς ocorrerá em um nível superior de universalidade a partir
da apreensão da forma inteligível comum à multiplicidade dos entes particulares. Ou seja,
enquanto que a uma pertence a distinção entre os múltiplos elementos sensíveis das cores, dos
sons, da textura, etc., ao outro, é própria a capacidade de saber distinguir o que reúne esta
variedade em um princípio formal único universal a vários entes. Se a sensação é capaz de
distinguir diferenças, o intelecto será capaz de distinguir unidades.
A atribuição de similaridade entre a percepção, por um lado, e a intelecção e o pensamento,
por outro, se deve à capacidade de distinção de algo dos entes que as três funções possuiriam,
a qual, por sua vez, decorreria da capacidade primeira, que cada uma delas apresenta, de terem
para si apreendida a forma, seja sensível, seja inteligível, dos entes seus objetos. Aristóteles não
havia tratado detidamente, no entanto, do intelecto até então e, tomando uma vaga noção do

127
Cf. a interpretação que Ross faz de a apódosis de 427a 17-19 só aparecer em 427b 6.
121

que isso e o pensamento seriam, iniciou o capítulo III.3 com uma discussão que pareceria ser
não muito sólida e caminharia ainda numa incerteza quanto àquilo que não é, de fato,
percepção, mas supostamente intelecto e pensamento. Esta discussão, em relação àquela da
imaginação, ficaria mesmo deslocada de contexto, já que ela não é nem intelecto e nem
propriamente percepção e também não realizaria a distinção de algo dos entes, cujo exercício
por parte dos dois não influencia nem contribui para a sua atividade específica.
A capacidade de distinguir não se restringe somente a saber que um objeto apreendido é
igual a si mesmo e diferente de outro, mas cabe também a esta capacidade distinguir entre a
forma apreendida e a percepção da apreensão desta forma. Quando Aristóteles, após ter tratado
da percepção da percepção, inicia o estudo do modo como se percebe e se distingue entre
objetos sensíveis de gêneros diferentes, nos permite a especulação de que também a distinção
pode ocorre dentro deste processo de se perceber que se percebe, em que talvez exista ainda a
percepção e o conhecimento deste ato de distinção entre as funções de apreensão e percepção
do objeto apreendido. Através do estudo da capacidade do κρίνειν, pode-se compreender que a
percepção e o intelecto não se voltam apenas para seus objetos próprios, mas, de certa forma,
também se voltam para si mesmos numa percepção da percepção para aquela e na reflexão
intelectual para aquele.
Será adotada, portanto, a proposta interpretativa feita por Santo Tomás de Aquino na lição
IV de seu comentário referente às passagens de 427a 17 – 427b 26, do livro III de De Anima.
Seguindo esta leitura da passagem do capítulo, poderemos compreender a função da discussão
nela presente no sentido de ser um modo para integrar a discussão do capítulo anterior, III.2, ao
mesmo tempo em que abre espaço para a nova análise, que se concentrará no capítulo III.4-6,
sobre o intelecto. O santo arranja em três pontos a estrutura da primeira parte:

1) após Aristóteles ter mostrado que a percepção dos atos dos sentidos particulares e que
descriminar entre os vários objetos sensíveis são atividades que não ultrapassam o limite
da sensibilidade como um todo, o filósofo se pergunta se o saber e a intelecção (sapere
et intelligere), que também parecem apresentar esta capacidade de distinção, estão para
além deste limite.
2) Para responder a esta indagação, Aristóteles procede da seguinte maneira:
a) prova que o saber e a intelecção não são atividades dos sentidos, o que equivale
dizer que sentido e intelecto são coisas distintas;
b) mostra que a imaginação, que é um tipo de sentido, é algo outro que a capacidade
para formar opiniões, a qual pertence ao intelecto.
122

O elemento que estimula a questão que Aristóteles se coloca é a capacidade de distinção


ou discernimento (κρίσις) que, pertencendo aos sentidos, parece também pertencer ao intelecto.
Este fato da semelhança na presença desta capacidade distintiva sensorial e intelectiva levou
alguns filósofos antigos a estabelecerem que os sentidos e o intelecto seriam uma e mesma
coisa. Aristóteles, evidentemente, não concorda com esta tese e, tomando inicialmente esta
capacidade como elemento condutor da discussão, começa a análise e a diferenciação entre o
intelecto e os sentidos, a imaginação e o intelecto. Esta distinção entre sentido e intelecto sob a
atividade cognitiva da distinção, irá transpor a passagem do capítulo III.2 para o III.3, dando
início, posteriormente, ao tratamento do intelecto, νοῦς, nos capítulos III.4, 5 e 6 de De Anima,
de maneira mais detalhada. Não será necessário nos determos na análise de toda a primeira
parte do capítulo III.3. Terão serventia para a análise apenas o início da discussão, a qual
assinala a primeira capacidade do intelecto, a distinção, e nos apresenta outras diferenças entre
as atividades da percepção e as intelectuais.
Antes de iniciar a análise das primeiras passagens do capítulo III.3, deve ser feita, então,
uma rápida apresentação retrospectiva das passagens do capítulo III.2 nas quais aparece a noção
de distinção realizada pela sensação e em torno da qual abre-se a discussão sobre o intelecto.

4.1.1 De Anima III.2 e a noção de distinção (κρίσις)

O tema principal deste capítulo é o que se poderia chamar de problema da percepção


das próprias atividades perceptivas. O tema, no entanto, como se poderá ver, extrapola a mera
percepção de que se percebe e abarca a capacidade de discernimento dos objetos e das próprias
atividades sensitivas. Alguém poderia sugerir que uma pessoa discernir entre as atividades que
ela mesma realiza seria uma espécie de atividade de autoconsciência, o que, no entanto, não
soaria muito aristotélico. Aristóteles, de fato, não utiliza a expressão autoconsciência nem algo
similar, cuja aplicação seria extemporânea em seus textos e que, ao final das contas, não poderia
significar nada mais que a percepção de que se percebe e a capacidade da distinção entre as
diferenças próprias dos objetos sensíveis. Ao realizar estas duas atividades, o homem realizaria
não apenas a atividade restrita das percepções próprias bem como teria o conhecimento claro
para si da realização destas atividades, saindo, assim, de uma posição de passividade perceptiva,
123

de uma espécie de simples padecimento das afecções sensíveis para um efetiva atividade
perceptiva humana, na qual o aspecto intelectual já começa a se mostrar atuante128.
Uma capacidade à qual muitas vezes Aristóteles se refere, mas que não a define
propriamente, é a capacidade de realizar uma distinção ou discernimento. O termo grego para
isso é κρίσις e o verbo correspondente é κρίνειν. Em português, no entanto, a tradução de κρίσις
pode ser distinção ou discernimento. É necessário, no entanto, salientar uma diferença para o
uso das duas traduções possíveis. Quando utilizado em referência a um aspecto mais restrito,
no qual tem-se a situação em que se tem uma clara noção da igualdade e das diferenças entre
uma coisa e outra, é mais adequado que se utilize o termo distinção. Já o termo discernimento
exprime uma capacidade muito mais ampla e abrangente em que se realiza a distinção e se tem,
ao mesmo tempo, a clara percepção de que a referida atividade de distinguir algo dos entes
esteja sendo realizada. É o caso de se dizer que a distinção é uma tarefa realizada sempre que
uma forma é apreendida, seja ela sensível ou inteligível, e se estabelecem as igualdades e
diferenças devidas e que o discernimento somente ocorre quando se há também, quanto a isso,
a percepção de que se percebe.
A estrutura de De Anima III.2 é dividida em quatro pontos: 1) a consciência da
percepção, ou a percepção de que se percebe; 2) a identidade entre sensação e seu objeto
sensível no ato da percepção; 3) a sensação enquanto uma certa proporção; 4) a distinção
perceptiva, ou seja, a capacidade da sensação de distinguir entre os específicos objetos sensíveis
e entre objetos sensíveis de gêneros distintos. Os temas 1) da percepção da percepção e 4) a
capacidade da distinção podem ser considerados como dois modos em que a capacidade da
percepção seria capaz de distinguir seus objetos. No primeiro modo, ocorre a percepção que o
objeto sensível próprio é distinto do ato perceptivo correspondente. O homem consegue, através
da capacidade reflexiva, perceber o objeto sensível e perceber que o percebe, distinguindo a
realidade sensível da sua atividade perceptiva própria. No segundo modo, o homem é capaz de
realizar duas distinções. A primeira delas é entre os objetos próprios de cada um dos sentidos,
como a distinção pela visão do branco e do preto, segundo a qual ela distingue as diferenças
dos objetos contidos num mesmo gênero, a cor, neste caso. No segundo tipo de distinção, o
homem é capaz de fazer a distinção entre as diferenças dos diferentes objetos próprios, que não
pertencem a um mesmo gênero, como a distinção entre cor e sabor, entre o branco e o doce.

128
Esta noção de discernimento, κρίσις, fica evidente entorno à passagem 426b 22, quando há uma espécie de
equiparação entre νοεῖν e αἰσθάνεσται, a partir de λέγειν. Cf. A explicação de Narcy sobre esta habilidade em
ΚΡΙΣΙΣ et ΑΙΣΤΗΣΙΣ, in Corps et Âme, sur le De Anima d’Aristote. Narcy, no entanto, propõe traduzir κρίσις por
jugement, juger, principalmente por conta de que aquele que realiza a κρίσις é capaz também de negar a
propriedade de uma ente e a negação é própria do julgamento.
124

Aristóteles, no entanto, não apresenta no De Anima nem em outra obra uma definição
peremptória do que seja a κρίσις, a atividade de distinção, de discernimento, que a alma é capaz
de realizar. Rastreando algumas passagens nas quais há referência à distinção ou nas quais
Aristóteles descreve uma situação em que ocorre uma distinção, se poderá compreender o que
seja esta atividade. Fundamentalmente, se poderá compreender que a distinção é uma atividade
que, tomando-se como padrão, como critério, a forma, a qualidade, de um ente, pode-se avaliar
as outras propriedades que ou a ela se igualam, se assemelham, lhe são afeitas ou que a esta
forma se contrapõem, se diferenciam, contrariam a ela, e, assim, se poderá dizer, conhecer,
perceber, as formas e as propriedades e distingui-las uma das outras.
Quanto aos temas 1) e 4), a noção da capacidade de distinguir, τὸ κρίνειν, e os
respectivos termos correlatos, τὸ κρινοῦν, o que distingue, e κρινεῖ, distingue, aparecem
explicitamente apenas a partir de 427b 8, quando Aristóteles inicia a discussão sobre a distinção
do tema 4), sobre a maneira pela qual se pode distinguir entre os objetos sensíveis de gêneros
diferentes. Este tópico da discussão começa com a afirmação de que cada sentido há o seu órgão
sensório e se refere ao seu objeto sensível próprio, sendo capaz de distinguir as diferentes
qualidades do seu próprio objeto sensível129.

4.1.1.1 κρίνειν a partir da apreensão da forma e do conhecimento do


seu contrário

Em De Anima I.5, cerca de 411a 1-5, durante uma etapa das refutações que decorreram
após o recenseamento das principais antigas opiniões sobre a alma, Aristóteles questiona a tese
que, seguindo o princípio de que o símile é percebido e conhecido pelo símile, defende que a
alma deve ser composta por uma multiplicidade de elementos para que possa vir a perceber e
conhecer os entes. Aristóteles contra-argumenta raciocinando que, admitindo-se que alma fosse
composta de vários elementos, não seria necessário, no entanto, que ela fosse formada por todos
eles, já que bastaria que estivessem presentes em sua composição apenas um dos elementos,
cuja contrariedade seria discernida a partir dele mesmo. A multiplicidade de princípios, de
elementos, compositivos da alma, sobre os quais se ergue a doutrina elementarista poderia ser
reduzida, então, pelo menos à metade daquilo que seus defensores propõe. Se a alma viesse a
perceber e conhecer os elementos, bastariam apenas dois deles, a partir da privação dos quais

129
ARISTÓTELES; De Anima III.2, 426b 8-11.
125

se poderia chegar ao conhecimento de seus contrários. A refutação aristotélica segue o princípio


segundo o qual é suficiente apenas uma parte da contrariedade para discernir a si mesma e o
seu oposto130. O conhecimento das coisas compostas repousaria sobre dois princípios, se os
considerarmos um como a perfeição e o outro como a sua imperfeição, sendo o primeiro deles
a fonte a partir da qual conhecemos tanto a coisa mesma quanto a sua contrariedade. Como, no
caso do fogo, se conhece a qualidade quente a partir dela mesma, isto é, a contrariedade perfeita,
se conhece também a sua negação, o não-quente, isto é, o frio, ou seja, a imperfeição da primeira
qualidade. Isso ocorre porque o quente, a qualidade presente, a forma determinada do objeto, é
o critério de ambas as contrariedades, κριτής ἀμφοῖν131, para a avaliação e conhecimento das
duas polaridades opostas, tanto da contrariedade de possessão da forma quanto da contrariedade
da sua ausência privativa. A forma é, assim, a regra, a medida, o meio pelo qual se conhecem
ambas as qualidades132, servindo como referência para se dizer aquilo que é igual a si mesmo e
o que é diferente de si, realizando assim a distinção, o discernimento, do objeto apreendido em
relação àquilo que lhe é diferente. A negação, por sua vez, é a contrariedade negativamente
determinada, não podendo ser ela mesma a medida de conhecimento nem para si nem para o
seu oposto.
Contudo, a tese exposta neste trecho de que o conhecimento de uma das partes da
contrariedade é suficiente para distinguir ela mesma e também o seu contrário, ou oposto, é um
princípio que, embora Aristóteles o utilize muitas vezes133, parece ser válido apenas em casos
em que a relação entre os contrários pertencentes ao mesmo gênero exprimem a posse, ἕξις, e
a privação, στέρησις134, de uma determinada forma em maneira perfeita. Um ente pode estar
privado de uma forma de várias maneiras, isto é, se algo é dito como privado de uma forma
pode ele estar proximamente ou remotamente privado desta forma. Todo contrário é uma
privação, mas nem toda privação é um contrário135. Os contrários são os pólos a partir dos quais
um sujeito pode vir a se submeter a uma alteração, seja para a sua degeneração ou para uma

130
ARISTÓTELES; De Anima I.5, 411a 3-4: “ἱκανὸν γὰρ θάτερον μέρος τῆς ἐναντιώσεως ἑαυτό τε κρίνειν καὶ τὸ
ἀντικείμενον.” - Pois é suficiente uma outra parte da contrariedade para distinguir ela mesma e também o oposto.
(tradução nossa)
131
ARISTÓTELES; De Anima I.5, 411a: “κριτὴς γὰρ ἀμφοῖν ὁ κανών.” - “Pois a reta é o critério para ambos
(para o que é reto e o curvo).” (tradução nossa)
132
Cf. St. Tomás de Aquino, comentário ao De Anima §.191.
133
Cf. por exemplo De Anima 427b 5-6.
134
Sobretudo Rodier, Movia e Hicks se baseiam na interpretação de Simplício de que este argumento de Aristóteles
teria apenas valor dialético. Rodier cita a passagem em que Simplício restringe o argumento de Aristóteles apenas
a um caso específico: τοῦτο δὲ οὐχ ἁπλῶς ἀληθὲς οἶμαι, ἀλλ’ ὅταν θατέρου στέρεσις ᾖ. Presumo que isto não é
verdadeiro de maneira simples, mas quando for a privação do outro. (Simplício, In libros Aristotelis De Anima
commentaria, 72, 24-25.)
135
ARISTÓTELES; Metafísica, 1055b 11-17.
126

geração, segundo a perda ou a aquisição de uma determinada forma. O contrário privativo é


aquele que está mais distante da forma que será adquirida pelo sujeito, o que significa dizer que
é o oposto que está mais a disposição para a tal forma, pois dela ele está totalmente privado. Os
outros tipos de privação estão já graduados dentro desta escala que se inicia antes do ponto de
contrariedade mais distante da forma a ser adquirida, ela não é a disposição total nem o contrário
privativo perfeito, mas está encaminhado, de certa maneira, já em uma certa determinação e
não está mais totalmente privado da forma. Algo que seja amarelo, por exemplo, pode ser dito
que está privado da forma da brancura porque não é branco, mas não pode ser dito que está
privado da brancura da mesma maneira que o preto está. O preto é a privação total da brancura,
ele é a contrariedade mais extrema em relação ao branco, é a ausência completa de cor. Em um
sentido, o preto e o amarelo são ambos privações, mas enquanto o amarelo é só um tipo de
privação do branco, o preto é a sua privação perfeita.
Portanto, aquele que viesse a conhecer a forma de um ente, poderia conhecer também o
seu contrário, caso este fosse do tipo de privação perfeita e que não pudesse ocorrer uma escala
entre a posse perfeita da forma e a sua completa privação. Se, no entanto, a relação entre os
contrários não for como este tipo de possessão e privação, aquele que conhece algo, irá também
conhecer o seu contrário apenas em sua forma não-positiva, apenas como sua negação, isto é,
como aquilo que não é idêntico ou igual a ele mesmo, obtendo em relação a este contrário
somente um conhecimento negativo de seu conteúdo, o qual refletiria apenas o reverso do
contrário positivo136. Dessa maneira, pode-se incluir uma infinidade de outras possíveis
privações segundo a escala de privação na negação do contrário positivo, se este contrário não
for uma estrita privação perfeita. Como no caso da reta e da não-reta, por exemplo. A não-reta
pode significar uma séria infinita de modulações na curvatura da linha, que antes era a reta, o
que incluiria nesta não-reta o circular sem que seja considerado como circular, o curvo
acentuado, o curvo leve, e por aí em diante.

4.1.1.2 κρίνειν a partir do meio-termo entre os contrários

Aristóteles, em De Anima II.11, a partir de 424a 1, já havia descartado a tese de que o


símile conhece o símile e, de acordo com a sua tese de que o sentido deve ser em potência os
seus objetos perceptíveis, ou seja, a sensação é uma espécie de padecer a percepção pela ação

136
Cf. Movia, pg. 274 e Hicks, pg. 296.
127

do agente sensível, tornando-se aquela semelhante a este. Seguindo esta refutação, ele conclui
que o órgão sensor não pode ter ele mesmo cada uma das formas que irá perceber, mas deve
ser uma meio-termo, um μεσότης, entre as oposições contrárias do gênero do objeto sensível. O
órgão sensório possui uma determinação qualitativa derivada da sua composição elementar
enquanto órgão do corpo137. Sendo a sensação um padecimento sofrido pelo sentido devido a
ação de um objeto sensível, o agente da ação fará com que o paciente se assemelhe a si se o
paciente estiver disposto em potência para tal assimilação. Como o órgão sensório possui ele
mesmo determinação formal de qualidades sensíveis, ele não estará disposto potencialmente
para receber esta mesma forma enquanto paciente de uma alteração vinda de um objeto sensível
que tenha a mesma determinação qualitativa. O órgão sensório será capaz de perceber apenas
as qualidades para as quais está potencialmente disposto, mas que nele mesmo elas ainda não
estão presentes de maneira atualizadas, isto é, ele não será nenhuma delas atualmente, mas será
cada uma delas somente de maneira potencial. O órgão do tato, por exemplo, não poderá
perceber uma certa temperatura se a temperatura do objeto sensível for a mesma que a sua, uma
vez que já está suprido desta mesma forma atualmente. Permanecendo nele a capacidade de
perceber o quente e o frio, com a condição de ainda não ser nenhum deles em atualidade, deverá
ser ambos em potência segundo o modo que estas qualidades o excedem ou lhe faltam em valor
qualitativo em relação à sua determinação formal. Ou seja, o tato só irá perceber aquilo que lhe
for mais quente ou mais frio segundo a sua própria temperatura natural.
Em seguida, nesta passagem, Aristóteles explica a causa de o órgão sensor, sendo uma
mediania entre as oposições, poder perceber as qualidades excessivas ou faltantes em relação a
ele, distinguindo cada uma delas. A causa da distinção se deve ao fato de que o órgão sensório,
sendo ele uma espécie de mediania, de um estado entre dois pólos de oposição dentro do gênero
sensível para o qual está disposto, é capaz de distinguir cada um dos objetos sensíveis na medida
em que o meio-termo pode138 também fazer a vez de um contrário em relação à qualidade
sensível que está percebendo. Assim, o objeto sensível será percebido e as suas qualidades serão
distinguidas cada uma como diferentes das qualidades da determinação formal do órgão sensor,
sendo qualificadas ou como excessivas ou como faltantes. Ao ser considerado como o contrário
dentre duas outras qualidades, o meio-termo é como o ponto a partir do qual pode se iniciar um
movimento em direção a um contrário ou ao outro, os quais serão tomados como os pontos
finais onde o movimento irá se completar. Ou seja, o meio-termo é como o padrão inicial que

137
Sobre como o termo αἰσθήσεως, De Anima 424a 4, deve significar propriamente órgão sensório e não o sentido,
cf. Hamlyn, pgs. 112-113.
138
Sobre o modo como o μεσότης pode servir como oposto aos contrários, cf. Física 229b 15-21; 262a 19-28.
128

poderá dizer quais são os possíveis caminhos que irá tomar, de que tipo são e como será o
resultado após terem sido percorridos.
Uma vez que o órgão sensório pode ser afetado por ambos os contrários, ao ser ele
comparado a um dos outros extremos, o meio-termo apresentaria, em comparação ao outro
contrário, a característica do outro, o que permitirá a ele distinguir a qualidade que lhe é peculiar
daquela que o objetos sensível, o contrário a ele, possui, que esta qualidade é igual a si mesma
e a outra lhe é diferente. Por exemplo, o órgão sensor do tato se apercebe de uma temperatura
que é mais quente ou mais fria do que a sua própria, distinguindo a sua própria temperatura da
temperatura percebida, ou seja, ele percebe que, em relação ao que é muito quente, a sua
temperatura é mais fria, mas quanto àquilo que lhe é mais frio, a sua temperatura é mais quente.
O meio-termo é duplo em relação ao excesso e a falta das qualidade opostas dentro do gênero
sensível, podendo ser tanto o contrário em relação à qualidade apreendida quanto, se comparado
com a qualidade oposta, ser também ele o contrário desta, ao mesmo tempo em que é o critério
de avaliação das duas qualidades distintas e opostas.
Além desta primeira distinção, ocorre também a distinção entre as formas dos objetos
sensíveis apreendidos. A nova forma do objeto que o sentido apreendeu é também um critério
para a distinção entre ela e as outras que dela são diferentes, na medida em que ela é agora a
forma em questão e o critério para distinção entre as qualidades. Isso permite que os diversos
modos destas variações sensíveis possam ser percebidos e comparados não só em relação ao
meio-termo como também em relação a cada um dos objetos sensíveis apreendidos.
A distinção envolvida na passagem de De Anima II.11, 424a 1-7, se assemelha à função
distintiva descrita no trecho de De Anima I.5. Em 411a 1-5, um dos contrários, ou seja, uma das
qualidades apreendidas, a forma que atualmente está presente no sujeito, é tomada como
referência para a avaliação da outra qualidade que a ela se opõe como sua qualidade negativa,
permitindo com que o sujeito possa distinguir aquilo que é igual a si e esta qualidade daquilo
que lhe é diferente. No caso da distinção de 424a 1-7, a forma a partir da qual ocorre a distinção
não se contrapõe apenas ao seu pólo oposto negativo. O meio-termo servirá ora como o oposto
para um extremo ora como oposto para o outro extremo, fazendo-se em cada momento de
contrário em relação àquele do qual irá distinguir-se. Nos dois casos, no entanto, nota-se que
uma forma apreendida é a norma, o padrão, o critério de distinção entre as outras formas: no
primeiro caso, a forma é apreendida, enquanto que no segundo a forma é a própria forma do
órgão sensor.
129

4.1.1.3 κρίνειν a partir do sentido como λόγος

A partir de De Anima III.2, Aristóteles explica que os objetos sensíveis são como uma
mistura, μεῖξις, segundo uma certa proporção, um λόγος, uma média, uma razão, entre os
contrários de um mesmo gênero. Tal como o objeto sensível, o sentido também deverá ser uma
proporção, um λόγος, na medida em que estiver em ato ao apreender a forma de seu objeto. A
distinção nesta passagem terá seu papel mais ressaltado conforme o delineamento que será dado
à qualificação de cada objeto sensível particular, como o branco, o amarelo, o doce, o amargo,
o grave e o agudo. Na medida em que os objetos sensíveis passam a ser caracterizados como
um proporção específica cuja identidade é, ao mesmo tempo, uma diferente proporção frente
às demais, isto é, aos demais objetos, a percepção de cada objeto sensível deverá ocorrer junto
à distinção de cada um deles. Neste mesmo capítulo, estando a capacidade de distinção dentro
do contexto específico da discussão da percepção da percepção, o verdadeiro tema do capítulo
III.2, o filósofo acaba por conferir à ação daquele que distingue os objetos sensíveis um caráter
intelectual que até o momento não havia sido claramente revelado. Aristóteles, salientando o
traço intelectual da alma humana, segundo o qual cada uma das funções, mesmo que sejam
compartilhadas com outros seres vivos, são realizadas de acordo com o modo próprio do
homem, através do qual cada uma das ações ganha ou força intelectual ou estão integradas numa
vida racional, atribui à ação da percepção um novo aspecto, o aspecto de certa intelectualidade,
que aproxima muito mais a sensibilidade da vida do intelecto ou, ao menos, a aproxima de uma
vida de verdadeiro conhecimento dos entes.
Por isso, pode-se propor que a ação de κρίνειν, que até então estava sendo traduzida
simplesmente como distinção, poderá passar a ser indicada pelo termo mais apropriado de
discernimento. O discernimento indica uma intensificação do caráter de intelectualidade e
percepção, pelo qual o ser humano, que antes era capaz apenas de distinguir o que é igual ao
objeto e o que lhe é diferente, consegue fazer esta mesma ação num nível mais alto de
intensidade, no qual discerne que o conhecimento de que cada uma destas atividades cognitivas
está sendo realizado por ele mesmo enquanto agente de conhecimento e percepção. O limite,
que começa a parecer tênue, nestas explicações de Aristóteles, entre a percepção e o intelecto,
entre o conhecimento sensível e o intelectual, pode ser averiguado no uso dos termos conhecer,
dizer, perceber, saber139, os quais são utilizados num modo em que não comportam os seus
significados técnicos com os quais aparecem em outros contextos, mas aludem a uma ação vaga

139
O início de III.3 e de III.4
130

de conhecer a realidade, seja intelectual seja perceptivelmente. Os termos κρίνειν e κρίσις, que
indicam as atividades de distinção e discernimento, parecem ser usados sempre no sentido
preciso e técnico. A atividade de discernir é a mesma, o que muda é apenas o tipo de forma, de
espécie, de propriedade, que cada função avalia. Há o discernimento sensível quando se estiver
no nível da sensibilidade e distinção disser respeito aos objetos sensíveis, e há o discernimento
intelectual quando forem as formas inteligíveis que estiverem em questão.
Aristóteles, buscando a definição última de sensação, toma como início do argumento o
sentido da audição e o seu objeto, a voz, e depois estende a definição obtida na conclusão deste
raciocínio aos outros sentidos e objetos sensíveis. Começando com a seguinte passagem: “εἰ δ’
ἡ φωνὴ συμφωνία τίς ἐστιν, ἡ δὲ φωνὴ καὶ ἡ ἀκοὴ ἔστιν ὡς ἕν ἐστι [καὶ ἔστιν ὡς οὐχ ἕν τὸ αὐτὸ],
λόγος δ’ ἡ συμφωνία, ἀνάγκη καὶ τὴν ἀκοὴν λόγον τινὰ εἶναι”140. A tradução fica: “Se a voz é
um tipo de consonância141, a voz e a audição são como algo único142, e o acorde é uma razão,
é necessário também a audição ser uma razão.” (tradução nossa).
O trecho nos permite elaborar o seguinte raciocínio: uma vez que a consonância é um
tipo de proporção, de razão, de λόγος, e que a voz é uma espécie de consonância, de acorde,
podemos considerar que a voz é um tipo de proporção. E como a voz e a audição são como algo
único143, quando estão em atualidade, então a audição também é um tipo de proporção, de razão,
de λόγος.
A grande dificuldade deste trecho é compreender o que Aristóteles quer explicar com o
termo λόγος, e aquilo a que é atribuído, ou seja, à συμφωνία, primeiramente, e, depois, à φωνή,

140
ARISTÓTELES; De Anima III.2, 426a 27-30.
141
Sigo o texto estabelecido por W.D Ross na sua edição de De Anima, no qual aparece a fórmula εἰ δ’ ἡ φωνὴ
συμφωνία τίς ἐστιν em 426a 27. Sigo esta formulação adotada por Movia (175 e 356), Hamlyn (49 e 125), Ross
(273 e 277). Movia segue, por sua vez, Prisciano de Lídia (Metaphr. in Theophr. 22, 24), Sofonía (112, 33),
Trendelenburg (ad 426a 27), Bywater (Aristotelia , III, 55), Smith (ad l. e n.2), Ross (ad l.; 273), Theiler (53; ad
426a 27-b 7, 133) e Hamlyn (49). Embora os MSS apresentem uma formulação diferente, ΕΙΔΗ, cuja leitura
permite uma variedade de interpretações (εἰ δὴ, εἰ δὴ ἡ e εἰ δ’ ἡ), o argumento só consegue funcionar se se tomar
ἡ φωνή, a voz, como o sujeito e συμφονία, consonância, como o predicado da frase. Hicks, pg. 442, resgatando a
tese de Torstrik, considera συμφωνία como sendo o sujeito da frase e acredita que possui nestas passagens o sentido
de termo musical, o que o leva à conclusão de que “it is quite evidente that συμφονία is a species of vocal sound”.
Concordando com Torstrik que a conclusão do silogismo não se seguiria das premissas, Hicks lembra
ironicamente, no entanto, que nenhuma conclusão universal poderia se seguir de premissas particulares, ou seja,
este fato não inviabilizaria a interpretação que ele propõe ao termo συμφονία. No entanto, parece que, de fato,
inviabiliza o silogismo cuja conclusão seria a de que a audição e o sentido são um tipo de λόγος.
142
Não incluí na tradução a expressão καὶ ἔστιν ὡς οὐχ ἕν τὸ αὐτὸ. A fórmula ἕν τὸ αὐτὸ poderia significar, como
propõe Simplício, cuja proposta fora lembrada por Rodier, pg. 376, μία καὶ ἡ αὐτή, ou seja, uma e a mesma. A
exclusão da expressão se deve à desconfiança de que ela seja uma glosa ao texto. De qualquer forma, alguns
interpretes, como Filoponos (475.28-476.13), Simplício (193.31-194.4) e Plutarco de Atenas (Cf. Ross, De Anima,
pg. 277), enxergam na contraposição entre as duas expressões uma alusão ao modo potencial, que se contraporia
à expressão que referencia o modo atual, da voz e da audição. As duas somente se identificariam quando estivessem
em atualidade.
143
A defesa desta tese aparece em De Anima III.2, de 425b 26 a 426a 26.
131

voz, e à ἀκοή, audição. Primeiramente, deve-se perceber que συμφωνία, ao ser traduzida por
consonância nesta passagem, não precisa ser compreendida exatamente como uma espécie de
acorde, no qual ao menos duas notas são tocadas ao mesmo tempo de maneira que formem uma
única voz, ainda que possam ser percebidas cada uma das vozes singulares. Se consonância
fosse esta espécie de acorde de vozes poderia se contra-argumentar que nem todas as vozes são
um acorde, pois há aquelas que não o são. Uma outra compreensão de συμφωνία é mais
adequada: a noção de συμφωνία como uma mistura, μεῖξις, de sons, segundo a qual um novo
tipo de som surgiria, um que não se confundiria com nenhum daqueles que o compôs144, mas
um que seria formado pela combinação destes sons. A συμφωνία, portanto, seria uma mistura
ordenada segundo uma proporção, uma medida, expressa pelo λόγος.
O sentido de λόγος pode levar a uma série de confusões, as quais podem ser resolvidas
se dois pontos forem considerados para se esclarecer esta questão: 1) o primeiro seria
compreender λόγος como uma espécie de ordenação formal da capacidade do sentido, a qual se
contrapõe à determinação espacial de grandeza do órgão sensório, como é explicado na
passagem de De Anima II.11, 424a 26-28; 2) o segundo ponto é a possibilidade de
compreendermos λόγος segundo o sentido adotado na tradução, ou seja, como razão, como uma
proporção145, seguindo a concepção que Aristóteles também apresenta em De Sensu. 439b 19
e 447a 29, de que os objetos sensíveis, os sons, as cores, são como uma mistura, uma μεῖξις,
entre contrários. Os contrários não se misturariam de qualquer forma, mas seguiriam uma certa
proporção na medida do λόγος indicado para a mistura entre eles. O primeiro sentido,
obviamente, se refere à essência da função perceptiva, a qual está preparada em potência para
receber a impressão sensível do objeto e que se atualiza na medida em que percebe o objeto. O
segundo sentido diz respeito sobretudo à determinação formal do objeto sensível, ao modo em
que ele se constitui enquanto objeto de percepção e o que será, de fato, percebido pelos sentidos
ao atualizarem-se como sentido e sensação.
Em De Anima, no entanto, não encontramos um definição tão precisa da natureza de
cada objeto sensível como sendo uma mistura entre os contrários segundo uma dada proporção
quanto a que é explicada com mais detalhes na obra De Sensu et Sensato, sobretudo em duas
passagens: a) 439b 10-440a 15 e b) 447a 29-447b 1. A definição final dos sentidos em De
Anima tem a sua formulação final justamente nesta passagem de III.2 que estamos analisando,
426a 27 – 426b 7. Muito menos, Aristóteles se utiliza do objeto da audição, o som, como modelo

144
Cf. Hicks, pg. 442, ad 426a 27.
145
Sobre o λόγος como uma proporção quanto à συμφονία, podemos encontrar referências na Metafísica Α.9, 991b
13-14, por exemplo. Mais sobre a discussão, Cf. Hicks, pg. 266.
132

para explanar sobre a mistura dos contrários como o resultado da produção dos objetos
sensíveis, mas utiliza-se da cor como paradigma da explicação. Segundo estas duas passagens,
podemos compreender que: a cor é o limite do transparente, isto é, a maior ou menor presença
do diáfano nos corpos. Em alguns deles se produz a luz e a total treva, em outros produz-se o
branco e o preto. As outras cores se geram na medida em que o branco e o preto estejam
dispostos um em relação ao outro formando um composto que não é nenhuma das duas cores
originárias, sempre segundo uma dada proporção146.
A noção de proporção147 se aplica primeiramente aos números, expressando uma
possível relação entre eles segundo uma certa medida em comum e, somente de maneira
secundária, é que se pode aplicá-la ao gênero da quantidade, dentro do qual as quantidades
contínuas podem ser comensuradas e comparadas umas com as outras, contanto que seja
também respeitada uma medida que sirva como unidade última de comensurabilidade entre os
dois entes em questão. Apenas segundo o sentido de proporção aplicado à quantidade, caso se
tenha estipulado a unidade de medida comum às qualidades a serem mensuradas ou caso se
tenha considerado a qualidade como uma quantidade por acidente, é que a qualidade pode ser
comensurada e comparada proporcionalmente em relação a outros casos particulares e, assim,
o cálculo de avaliação, de comparação, de medição pode ser estabelecido entre estas qualidades,
descobrindo-se que um som é mais grave que outro, que uma cor é mais intensa que outra, e
etc.
Quanto às cores e aos demais objetos sensíveis, os quais são qualidades corpóreas, a
mistura na qual são produzidas estas qualidades sensíveis deve estar submetida à condição de
sentido que a noção de proporção da qualidade tem por derivação da proporção numérica e
quantitativa. Portanto, o que deverá se misturar primeiramente é uma quantidade, um contínuo,
ao qual a cor se configura como uma qualidade. Tornando-se a cor uma quantidade por acidente,
se poderá dizer que ela foi também misturada segundo uma certa proporção quando o contínuo
em que está como qualidade também tiver sido misturado segundo a mesma dada proporção.
As misturas, no entanto, podem ocorrer de duas maneiras: 1) uma mistura em justaposição,
segundo a qual as partes daquilo que pode ser dividido até partes mínimas, ou seja, um homem,
um cavalo, uma semente, são colocadas uma ao lado da outra sem que cada uma das partes seja
percebida individualmente pela sensação; 2) uma mistura de todo com todo, pela qual um todo

146
Cf. nota 37, pg. 296, da edição de De Sensu et Sensato feita por Andrea L. Carbone; Cf. também o comentário
de St. Tomás de Aquino às passagens citadas em seu comentário à mesmo obra de Aristóteles.
147
Sobre a noção de proporção e medida e como se estende aos outros gêneros além da quantidade: Metafísica
Δ.6, 1016b 17- 1017a 6; Ι.1, 1052b 1-24.
133

é misturado sem que nenhuma das partes primárias permaneça fora da mistura, como a mistura
entre água e vinho. O primeiro modo de mistura é incompleto e o segundo é perfeito148. E é
sobretudo no segundo sentido que a mistura segundo uma dada proporção gera uma grande
quantidade de cores diferentes. A cor existe nos corpos segundo a maior ou menor presença da
qualidade do transparente nos corpos, tal qual a luminosidade ou a escuridão neles estão
presentes. Conforme a proporção em que estes corpos se misturem, corpos que têm maior ou
menor presença do transparente, surgiriam as mais variadas cores.
A multiplicidade das cores decorre, portanto, da multiplicidade de proporções possíveis
de serem arranjadas entre os corpos que detém, pela maior ou menor presença do transparente,
os contrários extremos, o branco e o preto, consistindo, cada uma das cores existentes, em uma
espécie dentro do gênero cor. Isso pode ocorrer por duas razões: 1) a contrariedade ser a
diferença máxima que se pode encontrar dentro do mesmo gênero; 2) a cor, por ela se encontrar
na superfície dos corpos e ser, assim, um contínuo por acidente149, é definida dentro da
contrariedade máxima do branco e do preto. Disso se segue que, um contínuo é aquilo que pode
ser dividido em partes, as quais podem também ser subdivididas, e um corpo contínuo é o que
pode ser dividido em três dimensões150, na largura, no cumprimento e na altura. Aplicando estas
propriedades à afecção sensível que é a cor, sendo ela uma quantidade por acidente, pode-se
dizer que o gênero cor é dividido finitamente dentro do espectro que vai do branco ao preto,
compondo com a mistura proporcional dos dois uma série finita de cores151. Esse modo de
produção das cores se reproduziria semelhantemente quanto aos sons, aos sabores e os outros
gêneros de objetos sensíveis segundo a mistura dos contrários originários de suas qualidades
no modo como cada objeto é formado.
Dessa forma, na passagem de 426a 26-28, συμφονία pode ser compreendida como o
resultado de uma mistura dos contrários de grave e agudo segundo uma certa proporção das
medidas entre eles. A passagem, no entanto, não se restringe à definição de que apenas o audível
é um objeto sensível ordenado em sua estrutura segundo uma dada proporção. Após se referir
à συμφονία, ao objeto audível e ao sentido da audição, como uma proporção, um λόγος, e de
afirmar que todo o excesso pode destruir a audição por ultrapassar esta proporção, Aristóteles

148
Cf. Aristóteles, De Sensu et Sensato 440b 1-25.
149
ARISTÓTELES; Categorias 6, 5a 38- 5b 10.
150
ARISTÓTELES; De Caelo I.1, 268a 6-8.
151
Uma explicação mais sucinta e objetiva é dada por Carbone à página 299, na nota 74 sobre a 445b 21-31, de
sua edição de Parva Naturalia, texto De Sensu et Sensato: La contrarietà è la differenza massima nell’ambito del
medesimo genere (Cfr. ad esempio Metaph. V.10, 1018a 25 sgg.). Un continuo come il visibile, ad esempio, che è
definito dai contrari ‘bianco’ e ‘nero’, può essere diviso in un numero finito di parti comprese tra questi estremi,
che corrispondono alle specie del visibile (Cfr. Metaph. V.25, 1023b 12 sgg.). Le affezioni sensibili sono qualità,
pertanto sono continue per accidente in quanto – come si è visto – sono quantità per accidente.
134

também reconhece que o excesso em relação aos sabores pode destruir o saboroso e o paladar
e que, em relação às cores, o que é muito esplendente ou o que é muito escuro também pode
aniquilar a visão. Isso ocorre porque os objetos sensíveis como um todo e não somente o audível
são compostos segundo uma proporção estabelecida na mistura entre os contrários de seu
gênero.
Cada um dos objetos perceptíveis será, portanto, o resultado da mistura entre os
contrários segundo uma dada proporção, segundo um λόγος, sendo cada um uma espécie dentro
do gênero, portando em si uma diferença própria que o distingue dos demais componentes do
grupo. O animal capaz de perceber os objetos sensíveis irá perceber, então, um elemento dentre
todos os outros possíveis de existir dentro da combinação dos contrários originais, percebendo,
ao mesmo tempo, a espécie única pertencente ao gênero sensível, igual, segundo o gênero, às
outras, e a diferença que constitui este objeto sensível singular como um objeto distinto das
demais espécies do seu gênero.
A capacidade de distinção se realizará na identificação do objeto percebido, de que é
igual a si mesmo, diferente dos demais e que os demais são diferentes dele. Ou seja, quando
Aristóteles afirma que cada sentido se refere ao objeto sensível correspondente e se encontra
no órgão sensível enquanto tal e distingue as diferenças do próprio objeto sensível, κρίνει τὰς
τοῦ ὑποκειμένου αἰσθητοῦ διαφοράς, como a vista distingue o branco e também o preto e o
paladar o doce e amargo152, ele se refere a esta capacidade da sensação, ao perceber o objeto
sensível, de distinguir que ele é igual a si mesmo e diferente do outro e o outro diferente dele.
Aquele que percebe a cor branca é capaz de distinguí-la ao mesmo tempo da cor preta, ou seja,
ele sabe que a cor branca é igual a si mesma, que ela é diferente da cor preta e que a cor preta
é diferente dela. Uma vez que o objeto sensível é um espécie dentro de um gênero de objetos
sensíveis e que esta espécie se constitui pela sua específica composição de sua mistura segundo
uma dada proporção que é diferente de todas as demais proporções e, portanto, misturas das
outras espécies do gênero, a percepção do objeto sensível deve ser a percepção da espécie deste
objeto sensível ao mesmo tempo em que é também a percepção da sua diferença em relação às
demais espécies do gênero. Ser capaz de perceber a espécie sensível implica perceber que ela é
diferente das demais espécies do gênero a que pertence, o que significa dizer que perceber o
objeto sensível é também ser capaz de distingui-lo dos demais objetos pertencentes ao seu
gênero no ato mesmo da percepção.
Alexandre de Afrodísias nos explica esta capacidade em seu tratado Ἀπορίαι καὶ λύσεις:

152
Cf. Aristóteles; De Anima 426b 8-11.
135

“Tendo-se estabelecido que aquele que os percebe também distingue as suas


diferenças (não, pois, por um lado, os percebe e, por outro lado, distingue as
suas diferenças, segundo as quais são objetos perceptíveis, mas o que os
percebe também as distingue, isto é, aquele que distingue as diferenças deles
também os percebe; pois é o mesmo distinguir em relação ao perceber; por
isso, então, também a percepção parece ser uma certa distinção).”153
(tradução nossa)

Segundo esta passagem de Alexandre, a percepção e a distinção são um e o mesmo ato,


pois que perceber é perceber o objeto, o qual é constituído de maneira diferente dos demais e,
percebendo, ser capaz de perceber que o objeto é diferente dos demais.
Até esta passagem de 426b 10, Aristóteles não havia conferido, em toda a amplitude,
um caráter mais forte para a percepção em descobrir e evidenciar a identidade do objeto sensível
percebido, distinguindo-o dos outros, e muito menos ressaltou que o processo pertenceria à
própria percepção em um e mesmo ato, comportando um aspecto de percepção intelectual que
até então não tinha. Hicks, sobre este aspecto inédito da percepção, nos diz que:

“A discriminação (κρίσις), que está implicada em toda percepção, não foi até
o momento especialmente enfatizada no tratamento dos vários sentidos, mas
de 426b 10 é claro que ela pertence a todo ato de percepção. Perceber um
objeto através do sentido, proferir um juízo sobre ele, receber sua forma sem
a matéria, são variados modos de se descrever aquilo que substancialmente é
um e o mesmo ato.”154 (tradução nossa)

Ou seja, a capacidade de κρίνειν, que até a passagem de De Anima 426b 10, era uma
atividade específica de raciocínio sobre os contrários apreendidos, colocando-os em
contraposição a partir da apreensão de um deles, fossem em plena contrariedade no gênero
fossem como o meio-termo, contrapondo-se, em um momento, a um e, em outro momento, a
outro contrário, passou a pertencer também à percepção em cada momento em que se apreende
uma forma sensível, estando presente na atividade de percepção da percepção, pela qual aquele

153
Alexandre de Afrodísias, Ἀπορίαι καὶ λύσεις, 94.28 – 95.1, citado por Hicks pg. 445, nota a De Anima 426b 10:
συστήσας, ὅτι ἡ αἰσθανομένη τινῶν καὶ τὰς διαφορὰς αὐτῶν κρίνει (οὐ γὰρ ἄλλης μὲν τὸ αἰσθάνεσθαί τινων, ἄλλης
δὲ τὸ κρίνειν τὰς διαφορὰς αὐτῶν, καθ’ ἅς ἐστιν αἰσθητά, ἀλλ’ ἥ τε αἰσθανομένη τινῶν καὶ κρίνει αὐτά, καὶ ἡ
κρίνουσα τὰς διαφορὰς αὐτῶν καὶ αἰσθάνεται αὐτῶν· ταὐτὸν γὰρ κρίνειν τῷ αἰσθάνεσθαι· διὰ τοῦτο γὰρ καὶ ἡ
αἴσθησις κρίσις τις εἶναι δοκεῖ).
154
Hicks pg. 414, nota a De Anima 424a 5: The discrimination (κρίσις), wich is implied in all perception, has not
been hitherto specially emphasized in the treatment of the several senses, but from 426b 10 it is clear that it belongs
to every act of sensation. To perceive an object by sense, to pronounce a judgment upon it, to receive its form
without the matter, are various modes of describing what is substantially one and the same act. Cf. κρίνει 418a
14, 422a 21.
136

que percebe um objeto e que tem percepção de que percebe algo, é capaz, ao mesmo tempo, de
perceber que distingue cada um dos objetos, diferenciando-os dos demais.
Por isso, é melhor, a partir desta passagem de De Anima III.2, a atividade de κρίνειν, ἡ
κρίσις, ser compreendida não mais como uma simples distinção ou discriminação, mas como a
atividade mais completa e abrangente do discernimento, segundo a qual tem-se percepção dos
objetos sensíveis com a percepção completa da atividade perceptiva, sabendo-se que os objetos
têm as suas características específicas, diferenciando-se dos demais objetos de seu gênero por
uma determinação própria.
Mas Aristóteles não se restringiu a encontrar a distinção apenas entre objetos do mesmo
gênero sensível. Tendo feito a apresentação definitiva da natureza do objeto sensível e da
sensação correspondente, Aristóteles segue para a segunda grande questão do capítulo De
Anima III.2 sobre a capacidade de discernimento, κρίσις, entre os objetos sensíveis de gêneros
diferentes, a qual irá dar o ensejo para o prosseguimento da pesquisa a partir do capítulo De
Anima III.3 sobre o intelecto. A capacidade de distinção, que até a passagem de 426b 12 era
considera somente em relação à distinção entre as diferenças dos objetos pertencentes ao
mesmo gênero, amplia-se na avaliação das diferenças existentes entre objetos de gêneros
diferentes. A atividade de distinguir ganha um papel mais relevante na atividade anímica do ser
humano ao elevar a sua função de identificação daquilo que é igual ao objeto percebido e o que
lhe é diferente à atividade de percepção da percepção, considerando os diversos tipos de
apreensões sensíveis, seja da apreensão de objetos do mesmo gênero seja da sensação de objetos
de outros gêneros sensíveis.
Esta tese decorre daquilo que já havia sido estudado ao longo do livro De Anima II, nos
capítulos sobre os diversos sentidos e seus objetos sensíveis correspondentes. Tendo-se já
esclarecido no que consistia a percepção dos objetos sensíveis próprios e como se pode
distinguir as várias diferenças de cada um dos objetos que pertencem a um mesmo gênero, surge
a dúvida do item 4): nós, seres humanos, que conseguimos distinguir que o branco é diferente
do doce, através do que percebemos que eles se diferenciam? A dificuldade que Aristóteles
encontra nesta situação é que a nossa capacidade de distinção não se concentra apenas em
distinguir entre as diferentes qualidades contidas nos objetos dos sentidos separados,
considerados em si mesmos. A capacidade ultrapassa esta esfera sensível específica e consegue
discernir entre as diferentes qualidades de objetos pertencentes a sentidos diferentes.
Necessariamente, deverá ser com a percepção que percebemos estas diferenças, uma
vez que se trata das diferenças de objetos sensíveis. É evidente que não se pode distinguir
objetos sensíveis separados através de sentidos separados. A distinção deve ser una e os objetos
137

devem se manifestar em relação a algo único, pois, caso não o fosse, a distinção não se
constituiria como uma unidade mais do que se constitui a percepção de duas pessoas diferentes
sobre objetos diferentes. Se alguém percebesse uma coisa e outra pessoa outra coisa, seria
evidente que estes objetos são coisas diversas. Mas a dificuldade que deve se resolver é que
esta distinção deve ocorrer de maneira unitária em relação a objetos distintos para uma mesma
pessoa, para um só e mesmo árbitro, que irá, comparando duas coisas, indicar quais são as
qualidades semelhantes e quais são as diferentes que nelas ele percebe. A unidade da distinção,
ao comparar e indicar que qualidades diferentes pertencem a objetos diferentes, por ser algo
único, requer que a percepção que a permite e o pensamento sobre os objetos que a pressupõe
sejam realizados de maneira unitária, isto é, o mesmo que percebe e apreende as diferenças é
também aquele que as distingue e as enuncia.
Devemos atentar ao que Aristóteles afirma neste momento para compreendermos
melhor a discussão que inicia De Anima III.3: ὥστε ὡς λέγει, οὕτω καὶ νοεῖ καὶ αἰσθάνεται155,
isto é, da mesma forma que diz, dessa mesma maneira também apreende e percebe. A distinção
é uma capacidade tanto do intelecto quanto da percepção, fazendo difícil se descobrir se ela é
realizada pelo intelecto ou pela percepção156. A coincidência entre as duas capacidades leva à
dúvida que Aristóteles levanta no início de De Anima III.3: será que de fato o intelecto e a
percepção são coisas iguais? Sendo as duas capacidades potências que realizam a distinção de
seus objetos, os antigos filósofos acreditavam que elas fossem uma mesma coisa. O aspecto
intelectual da percepção já havia sido apresentado por Aristóteles desde os capítulos anteriores.
A percepção, que até um puro perceber passivo passou a ser uma atividade de discernimento, a
qual apreendia o objeto sensível, distinguia um objeto do outro e conseguia perceber-se a si
mesma, realizando um processo completo de conhecimento sensível da realidade.
Como se disse, toda a primeira parte de De Anima III.3, de 427a 17 até 427b 26, é uma
discussão que antes remete às definições anteriores da capacidade perceptiva e parece ainda
responder a uma última distinção necessária das restantes capacidades distintivas da alma que
podem não mais pertencer à sensação, mas que ainda não se sabe ao certo que função sejam. O
papel desta discussão se enquadra no plano geral da pesquisa do tratado somente como o
delineamento do plano de investigação apresentado em De Anima III.3, 427b 27-29, no qual,
se apercebendo da articulação existente entre as noções de intelecção, imaginação e
pensamento, ὑπόληψις, Aristóteles afirma que, sendo o intelecto diferente da sensação e
parecendo incluir por um lado a imaginação e, por outro, o pensamento, depois que se houver

155
ARISTÓTELES; De Anima 426b 22.
156
Cf. Hicks, pg. 448, ad 426b 22.
138

tratado da imaginação, deverá se investigar o que seja o pensamento. Com a apresentação deste
plano, a discussão do início do capítulo tem o seu acabamento vinculado às dúvidas levantadas
pela discussão da última parte do capítulo I desta tese. Como a intelecção é, tal como a sensação,
uma capacidade de distinção dos entes e como ela parece incluir durante seu agir a imaginação,
a qual, por sua vez, decorre da sensação, já de início seria preciso fazer a primeira diferenciação
entre a intelecção e o pensar da imaginação segundo a atividade da distinção que os identifica.
A frase que abre o capítulo nos apresenta um paralelo entre a capacidade da sensação e
as capacidades do pensamento e da inteligência baseado no exercício da capacidade de
distinguir algo dos entes, κρίνειν τι τῶν ὀντῶν, a qual, se, por um lado, permitirá que antigos
filósofos criem suas teses ancorados nesta semelhança, por outro lado, será resguardada por
Aristóteles como elemento comum preservado da confusão da síntese daquelas duas
capacidades. O capítulo 2, do livro III, terminou com a análise feita sobre o modo pelo qual
cada um dos objetos sensíveis próprios são distinguidos entre si, como, por exemplo, o branco
seria distinguido do doce, o vermelho do amargo, e assim por diante. A capacidade da sensação,
durante o livro II, foi designada como um ἀλλοιοῦσθαι, πάσχειν e ἐνέργεια, ser alterado, sofrer
e atividade. No livro III, a sua capacidade distintiva e seu aspecto intelectual, que já haviam
sido observados em outras passagens (418a 14, 422a 21, 424a 5), foram trazidos à tona
completamente157. Segundo esta capacidade de distinção que a sensação e o intelecto
apresentam, os dois foram colocados em paralelo e considerados de duas maneiras, por
Aristóteles como duas capacidades distintas e, pelos antigos, como uma mesma capacidade
cognitiva.
De 427a 17 até 427b 26, Aristóteles responde às teses em voga de filósofos seus
antecessores, segundo as quais νοεῖν e φρονεῖν parecem ser uma espécie de perceber algo,
αἰσθάνεσθαι τι. A evidência para esta tese seria que, através destas duas capacidades, por um
lado, pela sensação, τῷ αἰσθάνεσθαι, e, por outro, pela intelecção e pelo pensamento, τῷ νοεῖν
καὶ φρονεῖν, a alma distingue e conhece algo dos entes, ἡ ψυχή κρίνει καὶ γνωρίζει τι τῶν ὄντων.
As teses antigas identificaram estes elementos comuns da distinção e do conhecimento à
sensação e ao intelecto e passaram a considerar que o intelecto e o pensamento seriam uma
espécie de sensação. Com todas estas capacidades, de fato, por necessidade discriminamos
aquilo que percebemos ou pensamos, julgando a coisa conhecida ser diferente de todas as outras
coisas e igual a si mesma.

157
Cf. Hicks, pg. 445; Ross, pg. 279; Hamlyn, pg. 82, ad 410a 23.
139

Podemos acompanhar a evolução da abordagem deste aspecto cognitivo da capacidade


sensitiva através de três passagens do tratado. A primeira aparece no segundo capítulo do livro
I e nos diz que o animado parece se diferenciar do inanimado sobretudo por duas propriedades,
pelo movimento e pela sensação158. Esta sentença não expressa propriamente a opinião de
Aristóteles, mas, como geralmente ocorre com frases principais com parece, δοκεῖ, resume a
impressão que ele teve em relação às várias teses que existiam sobre a alma na época, as quais
ele iria, em seguida, analisar e confutar. Como início da pesquisa, ele propõe que sejam tomadas
em conjunto as opiniões dos predecessores que tenham de algum modo se expressado sobre a
alma para que se compreenda corretamente o que eles disseram e se evitar os seus eventuais
erros. A partir da opinião comum de que é a alma, através das propriedades do movimento e da
sensação, a responsável pela diferenciação entre o animado e o inanimado, as teorias antigas
são elencadas segundo a ênfase que cada um dos filósofos atribui aos aspectos do movimento
e da sensação. Segundo o primeiro aspecto, o movimento é considerado a propriedade mais
característica da alma e, por conta do princípio de que uma coisa move somente se estiver ela
mesma em movimento, consideram alguns que as coisas se movem em virtude da alma. De
acordo com o outro aspecto, que o animado conhece e percebe os entes (ἐπὶ τὸ γινώσκειν καὶ
αἰσθάνεσται τῶν ὄντων), consideram a alma ser idêntica aos princípios, segundo a noção que
diz que se conhece o igual pelo igual (γινώσκεσθαι τῷ ὁμοίῳ τὸ ὅμοιον). Nesta perspectiva se
expressou Empédocles dizendo ser a alma constituída de todos os elementos, ou seja, de todos
os corpos simples e das duas forças motrizes, amor e discórdia, στοργή e νεῖκος, sendo também
alma cada uma destes elementos159. Platão, segundo Aristóteles, teria dito no Timeu da mesma
forma que na obra Sobre a Filosofia que a alma fosse composta de elementos.
Ao lado destas opiniões, vêm elencados algumas outras, como a de Xenófanes, segundo
o qual a alma seria um número que se moveria a si mesmo, a de Demócrito e a de Anaxágoras,
cada um propondo uma explicação para o fato de a alma ser capaz de perceber e conhecer os
entes. Aristóteles parece utilizar o termo γινωσκεῖν, conhece, junto a αἰσθάνεσθαι, sentir, não
em sentido forte de conhecer racionalmente, tal qual irá utilizar mais adiante no tratado. Ao
menos não há ainda nesta etapa da pesquisa do aspecto assinalado da capacidade de distinguir,

158
ARISTÓTELES; De Anima I.2, 403b 25-27.
159
Movia considera que seja uma dedução de Aristóteles o que ele atribui como sendo tese de Empédocles, de que
a alma seria composta de elementos. Nos textos de Empédocles constaria apenas a tese de que nós conhecemos
cada elemento através do elemento presente no nosso corpo, não se encontrando nem o termo ψυχή nos fragmentos
dos versos e nem a noção de alma distinta do corpo em sua física, ainda que ele faça depender da composição
corpórea “a atividade da alma”, compreendida como atividade racional. Junto com Movia, Hicks considera que
seja uma inferência de Aristóteles que Empédocles acreditava que cada um dos elementos fosse também alma,
pois, sendo a alma composta de elementos e a parte de cada elemento entra na sua composição, então, em virtude
de ser esta parte, cada um dos elementos poderia ser chamado de alma. Cf, Hicks, pg 221, e Movia, pg. 235.
140

κρίνειν, que começará a aparecer somente a partir da metade do livro II, após as primeiras
análises da capacidade sensitiva, e que será considerado como sendo parte das opiniões
correntes no livro III. No início do capítulo III.3, a sensação reaparece como aspecto distintivo,
ao lado do movimento, da alma. Desta vez, no entanto, ao iniciar o tratamento das funções da
alma seguintes à sensação, junto com a sensação aparecem também o pensamento e a
intelecção, os três sob o aspecto principal da capacidade de distinguir algo dos entes.
Em De Anima III.9, 432a 15-22, aparece a terceira articulação das capacidades da alma
que a distingue das outras coisas. Iniciando o capítulo 9, Aristóteles, retomando o que havia
sido discutido no capítulo III.8, conclui o que havia sido discutido até então dizendo que, uma
vez que a alma, intendendo aquela dos animais, fora definida em relação a duas capacidades,
pela capacidade de discriminação, τῷ κριτικῷ, e, além disso, a capacidade que produz o
movimento local. O que aparece de novidade nesta passagem, expressando um ganho na clareza
da compreensão do objeto, é a especificação da função de discriminação, a qual é atribuída ao
pensamento discursivo, διάνοια, e à sensação, αἴσθησις. Aristóteles reconhece a capacidade
discriminante da sensação e do pensamento, não apresentando-as mais como se fossem
semelhantes, mas coisas distintas, que compartilham da mesma capacidade, com a sensação
discriminando objetos sensíveis e o pensamento, objetos inteligíveis.
A partir de III.9, 432a 15-22, Aristóteles já considera como certo o resultado dos estudos
por ele realizados durante todo o livro II e o livro III até o capítulo 9, que irá iniciar para
pesquisar com mais detalhe o princípio motor nos animais. Nesta passagem, muito diferente
de 403b 25-27, e não tão diferente de 427a 20-21, pois é já a conclusão desenvolvida, os
elementos que distinguem os animais são a capacidade de distinção e movimento. A atividade
de distinguir algo dos entes pode ser realizada pela sensação e pela διάνοια, isto é, pelo
pensamento discursivo. A informação que foi introduzida por Aristóteles em III.3, 427a 20-21,
de que alma é capaz de distinguir algo dos entes e assim o faz através do intelecto e não apenas
pelos sentidos, embora verdadeira, aparecia de maneira confusa nas teses dos filósofos
originários.
A primeira parte do capítulo III.3 pode ser dividida em três. Uma delas é a discussão
desta tese de que o pensamento é a mesma coisa que a sensação. O princípio que coordena a
formulação da opinião de que pensamento e intelecção seriam como a sensação de algo é ainda
o de que o símile conhece pelo símile. E, uma vez que a sensação é algo corpóreo tal qual o é a
inteligência, e que, portanto, são capazes de distinguir algo dos seres, o pensamento e a
inteligência seriam como um sentir algo dos entes. Empédocles é novamente assinalado como
exemplo de um defensor da tese de que sensação e inteligência são a mesma coisa, cuja
141

comprovação seria pela citação de um verso seu de que a mente, a inteligência, dos homens
cresce quando ela está em relação com algo que está presente. O raciocínio de Empédocles,
segundo a interpretação de Aristóteles, como pode ser melhor verificado em Metafísica Γ.5,
seria de que o pensamento é sensação, a sensação é uma alteração e que, alterando-se o estado
físico do corpo, poderia se alterar também o pensamento. Homero também, através da sentença
da Odisséia de que tal é de fato a mente se alterar, também reconheceria um aspecto físico e
corpóreo no pensamento.
A confusão consistia em unificar como apenas uma capacidade aquilo que pode ser
realizado por ao menos duas potências diferentes, ou seja, estes pensadores antigos tomavam o
pensamento e a intelecção, φρονεῖν e νοῦς, por serem estes capazes também de distinguir algo
dos entes, como sendo a mesma coisa que a sensação, αἴσθησις, pois seria esta a capacidade
que mais estaria de acordo com suas concepções físicas, nas quais a alteração corpórea é a
atividade por meio da qual o animal conhecia algo da realidade, e alteração corpórea cabe
eminentemente à sensação. Mas, tendo-se resolvido a confusão e, uma vez que se tenha
estabelecido a diferença entre sensação, imaginação e pensamento, se identificou que a
capacidade comum entre eles era a capacidade de distinção, a qual é atividade de acordo com a
função e os objetos em questão. No entanto, ao mesmo tempo em que se percebeu a diferença
entre sensação e imaginação, por um lado, e pensamento, por outro, Aristóteles não esclareceu
nestas passagens de III.3 ainda qual a diferença existente entre os vários tipos de atividade
intelectual. De fato, ele só fará isso, de maneira explicita, quanto ao νοῦς, ao intelecto que
apreende as formas e produz proposições, e relatará algumas características do intelecto prático
na medida em que servirem à explicação do modo de locomoção do animal. Por enquanto,
podemos adiantar alguns pontos que deverão ser retomados somente depois da análise do que
seja o intelecto.

4.2 Pensamento discursivo, διάνοια, e pensamento, ὑπόληψις

A passagem de III.9, 432a 15-22, para se referir à capacidade intelectual, contrapondo-


a aos sentidos, aparece o termo διάνοια, pensamento discursivo, o qual, mesmo podendo
compreender a referência à capacidade de φρονεῖν, pensar, extrapola o significado de simples
conhecimento, e abarca também a noção de ciência, prudência e opinião. Somente em III.6,
Aristóteles trata da atividade de composição de juízos, com os quais lidariam estas capacidades,
sem, no entanto, utilizar-se do termo διάνοια, como se parecia sugerir em III.3 e em III.9, pelo
142

menos. Que διάνοια compreenda a ciência, a opinião e a prudência não é estabelecido


diretamente por Aristóteles no De Anima e só podemos alcançar este uso por um interpretação
indireta que conjugue a ação do intelecto, a atividade da διάνοια e a formação das convicções.
As convicções aparecem, no entanto, somente aqui em III.3 na argumentação em que se
diferenciam a imaginação do pensamento. Não fica claro, no entanto, se a intelecção e o
pensamento, νοῦς e διάνοια, se referem à mesma coisa ou se são aspectos distintos da
capacidade intelectual. Aristóteles, porém, diz que: “μία τις ἔστι τούτων δύναμις ἢ ἕξις καθ' ἃς
κρίνομεν καὶ ἀληθεύομεν ἢ ψευδόμεθα; τοιαῦται δ' εἰσὶν αἴσθησις, δόξα, ἐπιστήμη, νοῦς.”160 –
“é uma destas potências ou hábitos segundo as quais distinguimos e estamos na verdade ou na
falsidade. Estas capacidades são a percepção, a opinião, a ciência e o intelecto.” (tradução
nossa). Ou seja, junto à ciência e à opinião, Aristóteles coloca o intelecto como também sendo
uma capacidade que diz algo de algo tal como o fazem a ciência, a opinião e a sensação. Antes,
em 427b 24-26, porém, haviam sido subordinadas ao mesmo gênero, a ciência, a opinião e a
prudência, como espécies da convição, menos o intelecto. Ou seja, pareceria que o intelecto não
é um tipo de pensamento, mas, ainda assim, julga e participa do verdadeiro e do falso. Numa
passagem anterior a esta, também em III.3, vem o intelecto a ser referido como a capacidade na
qual estão os pensamentos retos e os não retos, isto é, a ele pertencendo a ciência, a prudência
e a opinião verdadeiras e falsas: “ἀλλ' οὐδὲ τὸ νοεῖν, ἐν ᾧ ἐστι τὸ ὀρθῶς καὶ τὸ μὴ ὀρθῶς, τὸ μὲν
ὀρθῶς φρόνησις καὶ ἐπιστήμη καὶ δόξα ἀληθής, τὸ δὲ μὴ ὀρθῶς τἀναντία τούτων”161 – “mas nem
o intelecto, no qual estão o pensamento reto e o não-reto, o reto são a prudência, a ciência e a
opinião verdadeiras, e o não-reto, o contrário destes.” (tradução nossa).
Esta distinção só poderá ser entendida à luz de III.6 na definição das atividades do
intelecto de apreender as formas e de produzir proposições verdadeiras ou falsas, as quais, como
vimos, são apenas aludidas de passagem em III.3. Podemos, no entanto, agora já adiantar o que
seja o pensamento, ὑπόληψις.
Para distinguir a sensação, a imaginação e o pensamento, Aristóteles mostrará que a
sensação gera um movimento na alma em que as impressões sensíveis continuam em atividade.
Este movimento da alma sensível é a imaginação. A partir dela é que o pensamento poderá
trabalhar com as suas operações. Vimos que Aristóteles já havia determinado como
pertencentes ao intelecto os pensamentos retos e os não-retos, que são verdadeiros ou falsos,
estes são a ciência, a prudência e a opinião. Depois ele irá dizer que, diferentemente dos
sentidos, que podem ser apenas atividades em que não existe o falso, é possível pensar,

160
ARISTÓTELES; De Anima 428a 3-5.
161
ARISTÓTELES; De Anima III.3, 427b 8-11.
143

διανοεῖσθαι, também o falso. É, então, que Aristóteles apresenta a noção de ὑπόληψις:


“φαντασία γὰρ ἕτερον καὶ αἰσθήσεως καὶ διανοίας, αὕτη τε οὐ γίγνεται ἄνευ αἰσθήσεως, καὶ ἄνευ
ταύτης οὐκ ἔστιν ὑπόληψις.”162 – “Pois a imaginação é outra coisas que a sensação e o
pensamento discursivo, ela mesma não surge sem a sensação e sem a sensação não há
pensamento.” (tradução nossa). O início da sentença poderia sugerir que fosse completada com
a conclusão de que sem a imaginação não há pensamento, διάνοια, e que, ao terminar com
ὑπόληψις, o raciocínio não se completou. Hicks163 sugere, no entanto, que a relação de ὑπόληψις
e διάνοια não deve ser muito distante, pois se tomarmos a passagem de III.3, 429a 23, em que
aparecem διανοεῖται e ὑπολαμβάνει para indicar as tarefas que a alma realiza através do
intelecto, está obviamente adicionado à διανοεῖται para explicar o que ele seja. O verbo
ὑπολαμβάνω indica a ação de se tomar para si, prender, colher algo, agarrar, e ὑπόληψις indica
o substantivo correspondente, isto é, a operação de tomar, colher e, como resultado do
pensamento, formar uma opinião a partir da colheita dos elementos inteligíveis. Ou seja, a
διάνοια seria uma atividade cujo resultado é a ὑπόληψις. Para isso, podemos resgatar uma
passagem de Metafísica Α.1, em que o termo ὑπόληψις parece indicar o resultado que a atividade
que se imprimiu sobre o conteúdo inteligível adquirido a partir da experiência: “γίγνεται δὲ
τέχνη ὅταν ἐκ πολλῶν τῆς ἐμπειρίας ἐννοημάτων μία καθόλου γένηται περὶ τῶν ὁμοίων
ὑπόληψις”164 – “a técnica surge quando, a partir de muitas noções apreendidas a partir da
experiência, um pensamento universal surgiu sobre muitas coisas iguais.” (tradução nossa).
Assim, o resultado do pensamento sobre as noções que a experiência produziu vem-a-ser o
pensamento sobre muitas coisas. Ou seja, o pensamento seria o resultado do pensar, o qual pode
ser verdadeiro ou falso, com a certeza da correção do juízo que fora feito, isto é, com o
pensamento que não se errou no pensamento e se estabeleceu uma proposição correta. Se o
pensamento for verdadeiro, será ciência, prudência ou opinião, se falso, será ignorância,
imprudência e engano ou opinião falsa. Os contrários, no entanto, mesmo sendo falsos, serão
ainda convicções, pois, mesmo se estando no falso, há que se convir que o que se disse é
verdadeiro, ainda que não o seja. O termo διάνοια não aparece nesta passagem, mas, seguindo
o que foi exposto, alguém poderia supor que ele se encaixaria perfeitamente aí.
Podemos ainda comparar a esta passagem duas outras em que διάνοια aparece como um
gênero sob o qual todas as capacidades intelectuais estão submetidas e outra em que a ciência
é reconhecida como ὑπόληψις. Em Analíticos Posteriores I.33, 7-9, Aristóteles demanda que as

162
ARISTÓTELES; De Anima III.3, 427b 14-16.
163
Cf. Hicks, ad 427b 16, pg. 457.
164
ARISTÓTELES; Metafísica Α.1, 981a 5-7.
144

outras formas de pensamento, διάνοια, deveriam ser distribuídas entre νοῦς, ἐπιστήμη, τέχνης,
φρόνησις e σοφία, isto é, entre intelecto, ciência, técnica, prudência e sabedoria, mas reconhece
que este trabalho deveria ser realizado em outros tratados, de física e ética. Ou seja, a diferença
entre eles, o que cada um é, só pode ser esclarecido após a pesquisa física, isto é, psicológica,
e ética sobre estes assuntos. Isto significa que o esclarecimento deverá passar pela análise de
De Anima III.6 e dos livros de Ethica Nicomachea. Em Ethica Nicomachea VI.6, a ciência é
reconhecida como uma ὑπόληψις sobre as coisas universais e sobre o que existe
necessariamente. Assim, em geral, temos que a ciência, a prudência e a técnica são o
pensamento alcançado numa proposição que pode ser verdadeira ou falsa e que, talvez, a
διάνοια também sirva para indicar a faculdade de conhecimento da realidade de uma maneira
mais geral que o termo intelecto, νοῦς, poderia fazer.
A passagem de Metafísica Α.1 descreveu a aquisição da técnica, processo este que é o
mesmo para a aquisição de qualquer pensamento. No entanto, a descrição é muito concisa e não
contempla cada uma das partes do processo em que uma ciência é adquirida e atribuir que o
processo de διάνοια está aqui implícito é supor muitas coisas. Por isso, o que seja a ὑπόληψις,
a διάνοια e todas as atividades do pensamento, somente podem ser compreendido com a devida
análise do início da vida intelectual, que consiste na apreensão das formas inteligíveis feita pelo
intelecto. Será depois disso que se poderá retomar esta discussão e, de maneira definitiva,
esclarecer o que é cada coisa. Certo já temos que as atividades do pensamento pertencem ao
intelecto, agora se são o resultado da διάνοια ou se a própria διάνοια é uma faculdade que,
embora distinta do intelecto, ainda pertença a ele enquanto ele for compreendido como a
capacidade inata do ser humano de conhecer a realidade só poderemos descobrir depois da
análise de III.6.

4.3 De Anima III.4-6: o νοῦς: sua natureza e atividade

Seguindo a ordenação da alma e o método utilizado por Aristóteles até esta etapa do
tratado pelo qual foram estudadas as funções mais básicas em primeiro lugar e depois aquelas
mais complexas e elevadas, seria esperado que agora, depois da análise feita dos sentidos e da
imaginação, a função locomotiva dos animais surgisse como objeto de estudo a ser abordado.
145

Algumas possíveis razões para que o capítulo apareça como tal, nesta altura do tratado, podem
ser alegadas165:

1) Aristóteles ainda segue no ritmo de distinção entre sensação e intelecto. A tarefa não
fora ainda esgotada mesmo com a definição da imaginação, cuja apresentação resolveu
uma séria de confusões e respondeu a várias opiniões antigas que faziam confundir
sensação e intelecto.
2) Sendo o intelecto um dos princípios que causam a locomoção animal, seria mais
oportuno que se definisse primeiro o que ele fosse antes que se iniciasse os estudos sobre
a função responsável pelo deslocamento dos entes.
A primeira razão, no entanto, parece ser a mais relevante e segue o mesmo ritmo
explicado quanto ao capítulo III.3 de estudo e de diferenciação das funções capazes de conhecer
a realidade e de elas distinguirem entre as formas que apreenderam. A maneira deste estudo de
busca da definição do intelecto que se iniciou no contexto de diferenciação da sensação se
integra no que pode ser compreendido como a terceira e última grande etapa da aplicação no
De Anima da análise hylomórfica, cuja primeira etapa se realizou em relação à alma e ao corpo
em geral e a segunda etapa foi sobre a sensação166. A análise hylomórfica é o estudo de um ente
e de suas propriedades pela identificação e definição das quatro causas que respondem pelo seu
ser, sendo que, dentre elas, a causa final responde por aquilo para o que um ente é. As descrições
sobre as causas formal e final da alma em sentido geral foram explicadas nos primeiros
capítulos de De Anima II. A alma segundo a função da percepção teve a sua explicação a partir
de De Anima II.5 pela análise de seu aspecto formal, mas sobretudo pela análise de sua
finalidade, ou seja, pela realização da apreensão sensível, da percepção, dos objetos sensíveis,
a qual é a atualização plena do que seja propriamente esta função anímica. Em De Anima III.4-
6, a análise, sendo sobre a função do intelecto, será sobre a sua forma e, principalmente, sobre
a sua atividade de apreensão das formas inteligíveis dos entes, a qual é atualização plena daquilo
que ela é. Ou seja, no fundo, o elemento pelo qual serão diferentes as funções da alma é a
atividade que cada uma delas realiza. Por isso que as discussões que antecederam o capítulo
III.4, as discussões sobre a diferença entre percepção e intelecto, tratavam sobre o que cada um
era capaz de fazer e sobre quais objetos cada um realizava a sua tarefa própria.

165
As duas razões encontram-se em Hicks, pg. 474, e apenas a primeira em St. Tomás de Aquino, §.671 do
comentário ao De Anima.
166
Esta é a leitura que Shields faz da estrutura de análise de De Anima como vem explicada na pg. 292 de sua
edição do tratado: “Aristotle’s treatmente of reason (nous)representes his third and final major deployment of
hylomorphic analysis in De Anima, the first having been to soul and body in genereal and the second to perception
(aisthêsis).”
146

Aristóteles inicia no capítulo De Anima III.4 a análise do intelecto, do νοῦς, descrevendo


a sua natureza, a sua atividade de apreensão das formas e o surgimento da capacidade de
atualização da atividade intelectual segundo a decisão. Será mostrado que o intelecto como
potência básica, inata ao ser humano, à medida em que esta capacidade é praticada, dá origem
a potência de segundo nível do intelecto, a qual é também uma capacidade que, no entanto,
conserva um duplo aspecto de ser: em um sentido, ela é ativa e, em outro sentido, ainda em
potência, sendo possível de ser atualizada completamente apenas pela decisão do sujeito. À
medida em que o homem consegue realizar a atividade da inteligência, ele se encaminha para
o aperfeiçoamento da sua forma natural, aproximando-a da perfeição. Apenas a apreensão das
formas não é a única atividade intelectual. Também a produção de juízos, isto é, a composição
ou divisão destas formas, é uma possibilidade de exercício intelectual, a qual ocorre somente
após a atividade primordial de apreensão de formas. Dessa maneira, o que ocorre são atividades
que dão prosseguimento à atividade racional num aperfeiçoamento da capacidade inata natural
do ser humano de conhecer a realidade.
As formas inteligíveis apreendidas são os princípios das outras atividades intelectuais,
as atividades da διάνοια, isto é, as atividades do pensamento, da inteligência, algumas das quais
são descritas em Ethica Nicomachea VI. O intelecto é a função da alma que inicia a vida
humana a partir da apreensão das formas inteligíveis a partir do material sensível fornecido
pelos sentidos e pela imaginação e que permite com que as atividades intelectuais do
pensamento, de julgamento, de afirmação e de negação, possam surgir no trabalho com estas
formas apreendidas. Em De Anima III.3, Aristóteles adiantou a apresentação destas capacidades
da διάνοια quando prosseguiu a tentativa de distinguir o intelecto da sensação. Naquela
situação, a linguagem relativa a estas capacidades não era tão exata quanto o necessário para
não se confundir ou, ao menos, para se deixar o mais claro possível o que era uma atividade
primária de apreensão intelectual e o que eram as atividades intelectuais do tipo de formação
de julgamento. Apenas na passagem do capítulo ΙΙΙ.3, em 427b 24-26167, ao dizer que são
diferenças do pensamento, a ciência, a opinião, e a prudência, que Aristóteles deixou mais
evidente que tinha em mente distinguir a intelecção das outras atividades decorrentes da
apreensão das formas feita por ela.

167
Não considerarei como evidência para isso a sentença de 428a 16-17, cuja complicação me impede de utilizá-
la de maneira definitiva.
147

A análise geral do que seja o intelecto e a essência do que sejam as capacidades intelectuais
de julgamento se concentra em três168 capítulos e pode ser estruturada da seguinte forma:
1ª Parte: o νοῦς ele mesmo:

a) DA III.4: o νοῦς como intelecto em potência


b) DA III.5, de 430a 10-19: o νοῦς como intelecto agente e paciente
c) DA III.5, de 430a 19- 430b 6: o νοῦς em atualização

2ª Parte: DA III.6: duas atividades do νοῦς:

a) sobre a apreensão dos indivisíveis


b) a atividade de composição de julgamento

A 1ª parte se ocupa da definição do νοῦς, a sua natureza em potência, como e sobre quais
objetos ele opera. A 2ª parte apresenta o νοῦς nas atividades que ele desempenha, desde a mais
básica e originária delas, a de apreensão das formas indivisíveis, até as atividades mais
complexas de composição de julgamento, como a ciência, a opinião, a prudência, as quais não
podem existir senão de maneira secundária em relação àquela primeira. Aristóteles não faz esta
relação de maneira explicita em De Anima III.6, nomeando como διάνοια a composição dos
objetos apreendidos pelo intelecto. Muitas vezes, durante o De Anima e em outros tratados,
como Ehitca Nicomachea e Analíticos Posteriores, ele parece utilizar διάνοια e νοῦς de maneira
indistinta (413b 12; 429a 30; 433a 9) e em outras no sentido específico de cada um (EN 1139a
27; 1139a 33; AP 100b 5). Através de outras passagens dos textos de Aristóteles, como
Metafísica Ε.4 1028a 1, e por algumas passagens de De Anima III.3, quando ele fala de
composição de objetos inteligíveis, podemos resgatar a nomeação de διάνοια a esta atividade.
Aristóteles também não identifica nenhuma outra parte ou função da alma humana além do
intelecto, o que nos faz raciocinar que somente no seio do intelecto que poderiam surgir estas
novas capacidades. Quando se refere à διάνοια ele o faz como um sentido subordinado de uma

168
Refiro-me à análise, sobretudo, do que se pode chamar de νοῦς θεωρητικός, isto é, o intelecto teorético. O
intelecto prático, νοῦς πρακτικός, não se contrapõe ao teorético, mas é como que o seu complementar em relação
ao conjunto das atividades intelectuais humanas. Ocorre que o intelecto prático terá um tratamento mais
aprofundado a partir de De Anima III.7, no qual serão discutidos os princípios de atividade do pensamento relativo
às atividades práticas que o homem pode realizar, o que deve incluir uma análise também da apreensão dos dados
particulares da situação na qual o agente da ação se encontra. Este estudo vai além do interesse desta tese. Cf. em
De Anima III.7, 431b 6-15, o paralelismo entre o intelecto teórico e o prático pelo modo com que o verdadeiro e
o falso para o primeiro correspondem ao bem e ao mal para o segundo. Cf. também a nota a 431b 10, de Hicks,
pg. 540, em que cita Trostrik: Intellectus praticus non est penitus diversus ab intellectu teorético: nam verum et
bonum in eadem συστοιχίᾳ continentur, item falsum et mallum: differunt ita ut bonum semper referaturad aliquem
vel ad aliquid cui bonum est, verum non item.
148

faculdade (433a 1), num sentido bem largo, como uma espécie de capacidade, mas diferente de
uma potência inata de apreensão das formas como é o intelecto.
Mas surgem duas questões: 1) se a felicidade deve ser uma atividade da alma de acordo
com a virtude perfeita, isto significa que a alma deve estar empenhada nesta atividade, isto é, a
sua função intelectual deve estar ativa, em atualidade, na felicidade. São três as funções ou
partes da alma. A parte exclusiva do homem é o intelecto, νοῦς. Ora, deverá ser ou esta função
da alma, de algum modo, atualizada na felicidade ou alguma outra. 2) Aristóteles não nomeia
nenhuma outra função ou parte da alma além do intelecto como responsável pelo conhecimento.
O que ele faz é deduzir outras capacidades intelectuais que são atividades discursivas, as quais
compõem ou dividem os objetos apreendidos pelo intelecto, acrescentando ou não a variação
temporal a ela. Ou seja, estas são a ἐπιστήμη, a φρόνησις e a δόξα, as quais são consideração ou
pensamento, ὑπόληψις, o resultado da atividade da διάνοια. Assim, restam como sendo
atividades derivadas do νοῦς. Isto nos levaria a concluir que, para que se alcance a felicidade,
o νοῦς como parte, função, da alma humana, deve ser o atualizado, ainda que através destas
atividades ou de maneira derivada.
O importante é que, exatamente por tratarem-se de outras capacidades adquiridas e não
de disposições inatas ao homem que surgem pela apreensão de uma forma por parte do intelecto,
que podemos dizer que elas não entrariam em conflito por espaço ou protagonismo com o
intelecto, mas que dele dependem e nele encontram a sua origem para a realização completa do
homem.
Apenas a análise de parte do capítulo III.4 e de quase todo o capítulo III.6 nos será
suficiente para colhermos os elementos que nos são necessários à melhor compreensão da
perfeição da vida humana na atividade da sabedoria, isto é, na realização da felicidade. Já
trabalhamos com os elementos necessários da definição do intelecto, da ciência e da virtude da
sabedoria em Ethica Nicomachea VI. Agora, então, nos servirá a análise destes capítulos para
aprofundar o conhecimento do que sejam estes hábitos, ou capacidades, humanos e de que
forma eles dispõem o homem para a realização plena de seu ser.
149

4.3.1 1ª Parte: o νοῦς ele mesmo:

4.3.1.1 De Anima III.4: o νοῦς como intelecto em potência

A primeira etapa que se deve cumprir agora é a análise do primeiro item da 1ª parte: o
νοῦς como intelecto em potência. Este tema, como está indicado no esquema, ocupa o capítulo
quarto inteiro do livro III de De Anima e pode ser, por sua vez, organizado da seguinte maneira:

1- DA III.4 a) de 429a 10 a 429b 5: definição do intelecto em potência


2- DA III.4 b) 429b 5-9: aquisição do hábito intelectual
3- DA III.4 c) 429b 10-22: o objeto do intelecto
4- DA III.4 d) de 429b 22 a 430a 9: apresentação de algumas objeções e as devidas
respostas a elas.
Será feita apenas a análise dos três primeiros itens para que a tese não se perca de seu
objetivo. Ainda que as objeções e as respostas sejam muito importantes no tratado, abordá-las
resultaria num desvio de foco e numa prolixalidade desnecessária para a compreensão da
questão fundamental da tese.
A sentença de abertura de De Anima III.4 contém este princípio claramente: “Περὶ δὲ
τοῦ μορίου τοῦ τῆς ψυχῆς ᾧ γινώσκει τε ἡ ψυχὴ καὶ φρονεῖ, εἴτε χωριστοῦ ὄντος ἔιτε μὴ χωριστοῦ
κατὰ μέγεθος ἀλλὰ κατὰ λόγον, σκεπτέον τίν’ ἔχει διαφοράν, καὶ πῶς ποτὲ γίνεται τὸ νοεῖν”169 –
“Sobre a parte da alma pela qual a alma conhece e pensa, ou se é separado do ente ou se não
é separado segundo a grandeza mas segundo a definição, é preciso investigar qual diferença
existe e de que modo a intelecção surge.” (tradução nossa)

4.3.1.1.1 Duas dificuldades iniciais

O capítulo começa com algumas dificuldades: περὶ δὲ τοῦ μορίου τοῦ τῆς ψυχῆς ᾧ
γινώσκει τε ἡ ψυχὴ καὶ φρονεῖ. A primeira delas é a de considerar que a alma é dividida em
partes. A segunda, que será vista mais à frente, é sobre os termos γινώσκει e φρονεῖ, isto é, a
dificuldade em se descobrir a que eles se referem. Neste caso, uma das partes, aquela pela qual
a alma conhece e pensa, é a que então deverá ser analisada, isto é, o νοῦς. A noção de que a

169
ARISTÓTELES; De Anima III.4, 429a 10-13.
150

alma seja dividida em partes não seria aristotélica e teria sido já rechaçada pelo próprio filósofo
bem no início de De Anima, no capítulo 4 do primeiro livro, na passagem em que ele afirmaria
que igualmente melhor é não dizer que a alma se apieda ou que aprende ou que pensa, mas
que o homem o faz pela alma170, ou seja, que não seria a alma e nem menos nenhuma de suas
partes que se apiedaria, que aprenderia ou que pensaria, mas antes o ser animado como um todo
que faria tudo isso. A preocupação em não isolar partes da alma teria conduzido Temístio à
tradução de ἡ ψυχή na passagem por ser-humano ao invés de alma simplesmente171 para evitar
que a noção estranha a Aristóteles estevisse contida nesta passagem. Por outro lado, Shields
dispensa esta preocupação ao explicar que o real motivo da preocupação de Aristóteles nesta
passagem de 408b 13-15 não é negar que a alma seja o sujeito destes predicados psicológicos,
mas antes afirmar apenas que ela não está sujeita a nenhum movimento intrínseco como poderia
estar implicado pela manifestação de tais predicados, isto é, de que ela se apieda, aprende ou
pensa. Aristóteles estaria buscando explicar, como o faz pela sentença seguinte àquela, que a
alma não está em moimento por causa de si mesma, mas em virtude de se dispor em relação
com o corpo, o qual se move dessa maneira, pois algumas vezes o movimento chega junto à
alma e, outras vezes, parte dela172.
Um caso similar de uso da noção de parte da alma, μορίον τῆς ψυχῆς, aparece também na
Ethica Nicomachea, principalmente no livro VI.2173, quando Aristóteles retoma a distinção feita
antes174 da alma dividida em duas partes, a irracional e a racional, a qual, por sua vez, seria
também dividida entre as partes científica e a calculativa. Burnet comentou que o uso de parte,
μόριον, nestas passagens da Ethica está inserido no desenvolvido da filosofia de Aristóteles
sobre a base de estudo sobre psicologia de Platão, utilizando-se de maneira alterada o termo
platônico τὸ λογιστικόν e tomando o argumento do mestre para estabelecer a diferença de gênero
entre as partes racionais, τὰ νοητικὰ μόρια. Ora, Joachim responde que isso não precisa ser
ressaltado, pois se sabe que Aristóteles não reconhece a noção de partes da alma, mas insiste
que a alma possui funções diversas. Joachim reforça a falta de necessidade de se levar muito a
sério esta nomenclatura, assinalando a perda do sentido original que o princípio de que o símile

170
Cf. De Anima I.4 408b, 13-15.
171
Shields é quem assinala, à pg. 295 de seu comentário, esta preocupação por parte de Temístio. Cf. a resposta
de Shields à mesma pg. 295, sendo completada em 142-145.
172
Cf. De Anima I.4, 408b 15-18.
173
Cf. Ethica Nicomachea VI.2, 1139a 3-5 πρότερον μὲν οὖν ἐλέχθη δύ' εἶναι μέρη τῆς ψυχῆς, τό τε λόγον ἔχον καὶ
τὸ ἄλογον – Anteriormente falamos duas serem as partes da alma, a que tem a razão e a que não tem. E 1139a
11-12: λεγέσθω δὲ τούτων τὸ μὲν ἐπιστημονικὸν τὸ δὲ λογιστικόν· - Que seja chamada uma destas [partes] a
científica e a outra a calculativa. E, mais à frente, em 1139b 12: τὰ νοητικὰ μόρια – as partes intelectuais.
174
Cf. Ethica Nicomachea I.13, 1102a 26 e seguintes.
151

é conhecido pelo símile sofreu com Aristóteles e que a diferença de gênero dentro do τὸ λέγον
ἔχων não pode ser considerada como séria na psicologia do filósofo175, embora a filosofia seja
verdadeiramente aristotélica.
Uma posição similar àquela de Joachim parecem ser a de Movia e a de Hicks. Movia cita a
observação de Hicks a este estranho uso de μόριον por Aristóteles o que, segundo o comentador,
estaria adequando o seu vocabulário à linguagem corrente referente a esta discussão e que todas
as menções a “partes” não é senão provisória176, lembrando que, a rigor, o νοῦς, é uma
faculdade da alma ou (o que seria a mesma coisa) se identifica com a alma intelectiva. Esta
parece ser, de fato, a compreensão mais adequada do uso da expressão τοῦ μορίου τοῦ τῆς ψυχῆς,
da parte da alma, nesta passagem de De Anima III.4. Até então, Aristóteles já conseguiu
mostrar que não faz sentido dizer que a alma é dividida em partes, pois ela é a primeira
atualização de um corpo que em potência tem vida e não um contínuo passível de divisão.
Buscar alguma polêmica nesta passagem por conta do termo μόριον é desviar-se por má vontade
do sentido verdadeiro que do trecho se apreende com facilidade e boa-vontade.
A segunda dificuldade a que me referi diz respeito ao uso dos termos γινώσκει e φρονεῖ.
A parte da alma que deverá ser investigada será aquela ᾧ γινώσκει τε ἡ ψυχὴ καὶ φρονεῖ, ou
seja, aquela parte da alma através da qual ela conhece e pensa. Aristóteles, tendo encontrado a
atividade própria que distingue esta parte da alma da parte perceptiva através do descarte das
atividades que competem somente à percepção, tenta determinar no que consiste a atividade
intelectual para que, posteriormente, consiga definir o que seja exatamente esta parte intelectiva
da alma. Ao definir, pela atividade do conhecer e do pensar, o novo objeto de estudo, isto é, o
νοῦς, ele define a parte da alma pela função que ela deve realizar, ou seja, pela causa final ao
qual tende, para se realizar completamente, esta parte da alma. Por isso, a tarefa que ele deverá
completar é a de investigar em que se diferencia esta parte da alma das outras e no que consiste,
como ocorre e como vem-a-ser a intelecção, o entender, τὸ νοεῖν.
Nenhum dos dois termos utilizados nesta sentença, γινώσκει e φρονεῖ, está sendo
utilizado no sentido estritamente técnico para indicar uma atividade específica que pode ser
realizada, mas também não se referem, no sentido mais amplo possível, a toda e qualquer
atividade de apreensão cognitiva de algo da realidade. Podemos dizer que conhecer (γινωρίζειν)
está indicando a atividade precípua do intelecto, a partir da qual todas as demais atividades
intelectuais que se utilizam do material inteligível por ele apreendido podem realizar-se. Mas,

175
Sobre este comentário de Joachim a Burnet e à filosofia de Arisóteles, cf. seu comentário à Ehitca Nicomachea,
pg. 168.
176
Cf. Movia, pg. 372, comentando a passagem de De Anima III.4, 429a 10-b 9.
152

por sua vez, γινώσκει também não está sendo usado para se referir com toda a precisão à
atividade intelectual a que o νοῦς é capaz de realizar, pois, especificamente, o νοῦς não conhece
algo, mas apreende a sua forma inteligível. Ao mesmo tempo, não se pode dizer que o νοῦς não
deixa de conhecer a realidade, porque, a rigor, é somente ele e as outras atividades intelectuais
que podem mesmo desenvolver um contato com a realidade de tipo cognitivo e intelectual e
não simplesmente sensível.
Quanto ao termo φρονεῖ, pensa, de φρονεῖν, pensar, se poderia dizer que está sendo
usado de maneira metonímica para aludir a todas as outras faculdades do seu tipo, as quais são,
na verdade, secundárias em relação ao intelecto, νοῦς, o qual conhece a natureza das coisas
primeiramente, permitindo a produção judicativa pela qual se forma a predicação de um atributo
em relação a um sujeito ou se produz uma sentença na qual se coadunam uma multiplicidade
de elementos predicativos. O pensamento ou, mais tecnicamente, segundo a Ethica
Nicomachea, a prudência, φρόνησις, somente pode ser realizada quando se tem em mãos todos
os elementos com os quais se poderá ponderar sobre o argumento sobre qual seria o melhor
meio de se alcançar uma finalidade desejada. Na verdade, o uso de φρονεῖν nesta passagem é,
como em muitas passagens de De Anima III, de uso metonímico para as atividades descritas
como atividades da διάνοια em III.3 distintas da percepção e da imaginação. Em De Anima
III.3, estabeleceu-se a contraposição entre τὸ νοεῖν e τὸ φρονεῖν, de um lado, e τὸ αἰσθάνεσται,
de outro, como ponto inicial para a primeira distinção entre a capacidade de entender e pensar
a realidade da capacidade de perceber sensivelmente a realidade. A diferença entre entender e
pensar se estabelece na medida em que pensar pertence à produção de julgamento, ou melhor,
é um dos tipos da ὑπόληψις, como foi visto, enquanto que o entender é da ordem anterior de
apreensão intelectual, do entendimento da unidade de uma realidade. O νοεῖν daquela ocasião
do início de III.3, 427a 17-21, equivale ao uso que γινώσκει, τὸ γινώσκειν, desempenha aqui
nesta passagem de III.4, ou seja, o conhecer, sendo a primeira atividade necessária, e a segunda,
o pensar, uma atividade derivada.
Não parece ser muito adequada a intepretação177 que se faz de que φρονεῖ é usado para
discriminar o intelecto das outras faculdades cognitivas, nas quais estaria incluída também a
percepção sensível. O termo γινώσκει não seria de aplicação exclusiva ao intelecto, mas seria
usado para atestar a capacidade cognitiva da αἴσθησις, como em De Gen. An. I.23, 731a 33,
αἴσθησις γὰρ ἔχουσιν, ἡ δ’ αἴσθησις γνῶσίς τις – pois têm a sensação, e a sensação é um certo
conhecimento. Um certo conhecimento não é um conhecimento no sentido pleno e preciso a

177
Cf. Hicks, pg. 475, nota a 429a 10.
153

que a passagem de III.4 se refere e que Aristóteles começará a analisar para descobrir o que é a
atividade que distingue a função intelectiva da função perceptível da alma. Aristóteles não
utilizaria um termo em sentido tão amplo num contexto tão decisivo como este.
Nem parece que a outra interpretação, a de Temístius e de Simplício, de que γινώσκει
se refere à atividade teorética e que φρονεῖ à atividade prática da alma seja suficiente, pois a
prudência, dependendo sempre de um certo conhecimento fornecido pela atividade aludida por
γινώσκει, a atividade de apreensão da forma, não poderia estar contraposta, no mesmo nível, à
γινώσκει, muito mais geral que φρονεῖ, a qual precisa também servir como referência de todas
as capacidades que produzem julgamento.

4.3.1.1.2 O que deve ser investigado

Aristóteles, tendo estabelecido o quadro geral a partir do qual irá investigar a parte da
alma através da qual a alma conhece e pensa, se coloca duas questões: a) se esta parte é
separada segundo a magnitude ou somente segundo a definição; b) como a intelecção vem-a-
ser?
A primeira questão retoma um problema já proposto em capítulos anteriores para uma
possível discussão e resolução futuras. A questão aparece claramente na passagem de De Anima
II.2, 413b 13-15: “πότερον δὲ τούτων ἕκαστόν ἐστι ψυχὴ ἢ μόριον ψυχῆς, καὶ εἰ μόριον, πότερον
οὕτως ὥστ' εἶναι χωριστὸν λόγῳ μόνον ἢ καὶ τόπῳ” – “ou cada uma destas é uma alma ou uma
parte da alma, e se é uma parte, ou então é separado apenas segundo a definição ou também
segundo o lugar.” (tradução nossa). As partes referidas são as faculdades nutritiva, sensitiva,
racional e locomotiva, todas elas definidoras da alma. Um pouco mais à frente, em 413b 24-27,
o νοῦς parece ser o candidato mais adequado para ser uma faculdade da alma separada como o
eterno é separado do corruptível, sendo sugerido que fosse um ente à parte espacialmente.
O χωριστοῦ da passagem significa estar separado das outras partes/faculdades/funções da
alma e, portanto, de saída já se estabeleceu que o νοῦς é, de fato, separado das outras parte da
alma por cumprir outro tipo de função, isto é, a função de conhecer e de pensar. A função de
algo é uma das causas que define o que algo é. Portanto, segundo o λόγος, ou seja, segundo a
definição, já se sabe que o intelecto é algo separado. A separação é feita somente de maneira
abstrata, pela razão, descobrindo o que, essencialmente, faz do intelecto diferente das demais
partes da alma. A dúvida que permanece é se ele é separado também segundo a magnitude.
Como vimos na sentença de 413b 13-15, sentença muito semelhante a esta de III.4, 429a 10-
154

12, o que cumpriria a função de κατὰ μέγεθος, segundo a magnitude, é a expressão τόπῳ,
segundo o lugar. Se κατὰ μέγεθος for compreendido como equivalente a τόπῳ178, a sugestão de
que o intelecto possa estar separado localmente também das outras faculdades implicaria que
ele poderia ter uma existência separada das outras partes da alma, o que implicaria em uma
existência separada também do corpo e, enfim, do próprio ser-humano de quem seria o
intelecto. Seguindo este raciocínio, se poderia considerar que o intelecto também deveria ter
uma magnitude através da qual pudesse ser um ente separado das demais partes da alma, o que
poderia requerer, segundo o sentido de magnitude, um corpo ou algo do tipo, o que Aristóteles
nega completamente ao intelecto.
Isso nos coloca na situação em que podemos compreender κατὰ μέγετος em um sentido
menos rígido179, segundo o qual Aristóteles não se perguntaria exatamente se o intelecto teria
ou não uma magnitude própria que fizesse um ente separado das outras partes da alma, mas se
a razão seria separada segundo a magnitude por ela não estar relacionada à magnitude do corpo
como estão as partes sensíveis da alma, isto é, como os sentidos estão relacionados aos órgãos
do corpo e ao corpo ele mesmo, ao final. O intelecto, sendo ele χωριστός, não estaria separado
espacialmente, mas trabalharia por conta própria, sem contar com a interferência ou com o
concurso do corpo, como fazem os sentidos. Ou, então, compreender κατὰ μέγεθος com a leitura
mais rígida de magnitude. No caso da primeira leitura, vemos que Aristóteles a eliminaria com
a explicação de que o intelecto não é misturado a nada corpóreo e nem possui um órgão próprio,
o que implica que ele não possui uma magnitude própria. No caso da segundo interpretação,
Aristóteles não chega a tocar neste ponto, deixando a questão em aberto.
Se o intelecto é separado das outras partes da alma somente pelo pensamento, isto é,
segundo o λόγος, é porque através da inteligência, o homem consegue saber o que o intelecto é
realmente, ele possui a capacidade que permite que ele conheça a definição de νοῦς, isto é, a
sua natureza. Por isso, sendo preciso investigar em que o intelecto se diferencia das outras
partes, σκεπτέον τίν’ ἔχει διαφοράν, ou seja, quais são as propriedades, as características, que o
intelecto possui de diferente das outras partes das alma, deve-se investigar de que forma, como,
de qual maneira, a operação de intelecção surge, vem-a-ser, γίνεται180. Em primeiro lugar,

178
Sobretudo é Hicks, pg. 475, quem enfatiza esta equivalência.
179
Sugestão feita por Shields, pg. 295.
180
Shields explica na página 296 que enxerga no modo como Aristóteles formulou a sentença duas possibilidades
de leitura, uma versão genética, que indaga como a intelecção se desenvolve nos seres humanos, e uma versão
analítica, que pergunta o que é a operação, a atividade, de intelecção. Segundo ele, as questões têm ênfases
diferentes. A versão genética estaria mais interessada na intelecção (reasoning) considerada como uma atividade
cognitiva, querendo perguntar como o raciocinar humano, o qual é, por exemplo, capaz de apreender as verdades
necessárias, se desenvolve a partir da percepção sensível e da experiência. Neste sentido, esta discussão daria
continuidade à abordagem feita em Metafísica Α.1 e nos Analíticos Posteriores II.19. Já a versão analítica introduz
155

Aristóteles irá tratar dos atributos distintivos do intelecto para depois, a partir de 429b 10 em
diante, tratar de sua atividade, do processo de intelecção. Mas pode-se dizer que, sendo a
atividade do intelecto a sua função, cuja realização é a causa final de seu ser, a descrição dos
atributos do intelecto está intimamente ligada à sua operação e que descrever os atributos
implica a explicação do que é a sua operação, e a explicação da operação exige a descrição dos
atributos. Em resumo, como explicou Hicks, “natureza e operação, operação e objeto estão
tão intimamente congregados que nenhuma rígida e fixa divisão é possível”181 (tradução nossa).
A realidade de congregação entre a natureza, a operação e o objeto do intelecto fez Aristóteles,
por fim, tendo descoberto que a natureza do intelecto é uma pura potência de apreensão da
formas inteligíveis182, o lugar das formas, não todas elas, mas somente as inteligíveis, e não em
atualidade plena, mas elas em potência183, e como a potência é conhecida através de seu ato,
examinar o ato de conhecer (τὸ νοεῖν), ou seja, examinar como a atividade de conhecer, como
a atividade da intelecção, se completa na apreensão de seus objetos próprios, as formas
inteligíveis,
O levantamento das características que o intelecto apresenta, começou a ser feito desde
o início de De Anima III.3, restando para este capítulo de III.4 dizer aquilo que somente ele
possui, características estas que não surgiram na polêmica de se elas pertenciam também aos
sentidos ou não, ou propriedades que promovessem a confusão em se identificar corretamente
o que era apenas da percepção ou apenas do intelecto. Ainda assim, Aristóteles começa a
investigação sugerindo um certo paralelismo do intelecto com a percepção quanto à
impassibilidade que ambos apresentam para depois resolvê-lo na conclusão de que o intelecto
é diferente da percepção, pois ele não é misturado ao corpo, não há nele nenhuma composição
de elementos materiais nem a posse de um órgão pelo qual realizaria a sua função. Finalmente,

como tópico para investigação a natureza da intelecção (reasoning) junto à questão correlata sobre a natureza da
faculdade do intelecto (reason). Segundo esta abordagem, Aristóteles perguntaria que tipo de coisa é a intelecção
(τὸ νοεῖν), tal que a sua faculdade, intelecto (reason), é afetada pelos objetos do intelecto (νοητά), como o
hylomorfísmo geral requer quando aplicado neste domínio, ainda que esta faculdade seja impassível e não-
misturada como o corpo. Talvez Aristóteles devesse ter formulado ambas as questões, visto que ele chegou tão
longe no De Anima, acredita Shields. E, mesmo sendo difícil de se ter certeza quanto a uma frase tão sucinta e
concisa, é provável que ele tenha realmente se colocado estas duas questões. Quanto ao modo como a frase está
construída, há pouco guiamento através de formulações paralelas em outras passagens, de modo que o comentador
sugere reflexão sobre as preocupações que Aristóteles apresenta em relação ao intelecto e à intelecção nesta e nos
capítulos subsequentes.
O primeiro aspecto, ainda que não tenha sido abordado com esta nomenclatura, de genética, foi em parte
discutido no capítulo I desta tese, sobre o surgimento da vida humana. Mas não me parece que esta leitura
decomposta seja o melhor caminho para a compreensão do intelecto. Como salientou Hicks, a ligação entre a
atividade, a operação e a natureza é tão próxima que seria difícil estabelecer uma delimitação entre eles.
181
Cf. Hicks, pg 475, ad 429b 12: but nature and operation, operation and object are so closely blended that no
hard and fast line is possible.
182
Cf. De Anima III.4, 429a 15-16.
183
Cf. De Anima III.4, 429a 26-28.
156

ele deduz uma diferença fundamental entre a percepção e o intelecto: a primeira, se tiver contato
com um intenso objeto perceptível, pode ser danificada e, até mesmo, destruída, enquanto que
o intelecto, ao apreender as formas de maior inteligibilidade, não é enfraquecido por elas, mas
sai fortalecido e mais capaz.

4.3.1.1.3 A qualidade de ser impassível, ἀπαθές

Aristóteles, então, dando início a sua argumentação, toma como uma possível
similaridade ente intelecto e percepção para descobrir a primeira característica o fato de os dois
serem um meio de conhecimento e distinção dos entes, da realidade, tal como foi visto em De
Anima III.3. Dado que as diferenças entre os dois deverão ser estabelecidas a partir de III.4, um
meio de se iniciar o estudo deste tópico, para que a questão seja esclarecida, é analisar quanto
ao que os dois são confundidos. “εἰ δή ἐστι τὸ νοεῖν ὥσπερ τὸ αἰσθάνεσθαι, ἣ πάσχειν τι ἂν εἴη
ὑπὸ τοῦ νοητοῦ ἤ τι τοιοῦτον ἕτερον. ἀπαθὲς ἄρα δεῖ εἶναι, δεκτικὸν δὲ τοῦ εἴδεους καὶ δυνάμει
τοιοῦτον ἀλλὰ μὴ τοῦτο, καὶ ὁμοίως ἔχειν, ὥσπερ τὸ αἰσθητικὸν πρὸς τὰ αἰσθητά, οὕτω τὸν νοῦν
πτρὸς τὰ νοητά.”184 – “Se, então, a intelecção é como o perceber, ou seria um padecer algo da
parte do inteligível ou alguma outra coisa deste tipo. Então é necessário ser impassível, capaz
de receber a forma e ser esta [forma] em potência mas não ser esta [forma em atualidade];
como o órgão sensório em relação ao objeto perceptível, assim o intelecto em relação aos
objetos inteligíveis.” (tradução nossa).
A estrutura da argumentação é a seguinte:

1) Primeiro, é proposta uma similaridade entre a sensação e o intelecto quanto à


alteração que sofreriam os dois quando realizassem as suas atividades de distinção
dos entes.
2) Não é possível que os dois sofram um padecimento, mas devem ser alguma outra
coisa.
3) Deve o intelecto ser impassível
4) O intelecto é capaz de apreender as formas
5) O intelecto deve ser em potência as formas que irá receber e não ser nenhuma delas
em atualidade.

184
ARISTÓTELES; De Anima III.4, 429a 13-15.
157

Primeiramente, Aristóteles sugere uma similaridade entre o ato de entender e o ato de


perceber na medida em que, sendo a percepção um tipo de conhecimento, o qual pode ser
potencial e atual, assim também o entendimento é um tipo de conhecimento que deverá ser
potencial e atual. O sentido seria ou um sofrer algo (πάσχειν τι), no estrito sentido do termo,
pela ação de algum objeto sensível (τὸ αἰσθητόν) e, da mesma forma, seria também o intelecto
um padecer algo pela ação do objeto inteligível (τὸ νοητόν), ou seriam os dois alguma outra
coisa do mesmo tipo, mas não um padecer algo estritamente considerado. Aristóteles sugere
esta outra possibilidade, ἤ τι τοιοῦτον ἕτερον, pois o ato do intelecto não pode ser um πάσχειν
τι no estrito sentido da palavra, uma vez que a sua atividade não se trata exatamente de um
πάσχειν τι. O intelecto não é um ser passível a um objeto e nem a sua atividade pode ser um
padecer pela ação de outro.
A ação de padecer algo, πάσχειν τι, implica necessariamente a relação entre um objeto
de natureza contrária ao sujeito paciente numa atividade cujo resultado é a destruição da
potência passiva tal como é ao receber a nova forma atualizada nela pelo princípio ativo de
alteração do agente, adequando esta matéria da substância passiva à forma possuída pela
substância do agente. A atividade de ambos, αἴσθησις e νοῦς, não podem ser um padecer algo
pois não recebem a forma do agente da ação que age sobre eles em sua matéria, fazendo-a
conformar-se a ele, mas padecem algo no sentido de apenas receber pelo órgão sensível ou pela
capacidade correspondente ao objeto a forma. Neste sentido é que Aristóteles não considera os
dois como um padecer algo, mas se decide por atribuir-lhes alguma outra coisa deste tipo, τι
τοιοῦτον ἕτερον. Anteriormente, em De Anima II.5, ele já havia admitido usar o termo πάσχειν
para indicar a atividade a que estavam submetidos os sentidos e seus órgãos sensórios por falta
de um termo mais adequado185, desenvolvendo a noção de que a percepção seria uma maneira
de ser afetado até, após proceder no refinamento e na qualificação desta tese, rejeita-la
completamente186. O caso se repetiria nesta passagem se ele não sugerisse alguma outra coisa
do mesmo tipo, ao que, no entanto, ele não tem nem mesmo um termo alternativo para indicar
como nome. Pois, em relação ao intelecto e também aos sentido, a modificação expressa por
πάσχειν não é a do tipo φθορά τις ὑπὸ τοῦ ἐναντιοῦ, isto é, uma certa destruição por parte do
contrário, mas deverá ser uma σωτηρία τοῦ δυνάμει ὄντος, isto é, uma preservação do ente em
potência187 quando se atualizasse pela sua atividade. A semelhança do evento lhe permite
recorrer, porém, ao uso do termo πάσχειν, propondo um sentido aproximado a ele, sem que seja

185
Cf. De Anima II.5, 417b 29- 418a 7.
186
Cf. Hamlyn, pg. 136, nota à passagem 429a 13.
187
Cf. Hicks, pg. 476.
158

seu sentido estrito. Por isso, a disjunção alternativa, ou um πάσχειν τι, um certo padecer algo,
ou um τι τοιοῦτον ἕτερον, ou uma outra coisa do tipo.
Não sendo, portanto, um padecer algo, o intelecto junto com a percepção deverá ser
algo ἀπαθές, isto é, impassível, ou seja, ele é uma função da alma que não pode sofrer uma ação
de um agente no sentido de padecê-la a ponto de ter a sua capacidade passiva contrária à
capacidade ativa destruída pela sua assimilação à forma do agente. Que a qualidade de
impassibilidade deva ser atribuída ao νοῦς é a consequência188 de sua impossibilidade de ser
considerado uma capacidade de padecer uma ação.
Não sendo ela uma capacidade para padecer uma ação no estrito sentido do termo
πάσχειν, padecer, mas outra coisa do tipo deve ela ser uma capacidade que, em certo sentido, é
passiva, sem que, no entanto, seja destruída pela ação de uma agente. Aristóteles, então, articula
a necessidade de ser impassível com a capacidade de estar apto a receber a forma, sendo, não
em atualidade, esta forma, mas em potência. Isto significa que o intelecto estará engajado em
uma atividade de recebimento das formas a partir do objeto inteligível, mantendo o seu aspecto
de passividade como potência apta a receber as formas quando atualizá-las em si. Da mesma
forma que a percepção está voltada para os objetos sensíveis, αἰσθητά, diz Aristóteles, assim
também estará o intelecto voltado para os objetos inteligíveis, νοητά. O que seja este objeto
inteligível, o νοητόν, só será explicado na segunda parte de III.4.
O intelecto será impassível no sentido de passividade em que sofre uma ação direta do
contrário resultando na sua destruição enquanto potência passiva contrária ao agente, mas será
passível de alteração no sentido em que se conservará na atualização de sua natureza de
recebedor de formas inteligíveis. Esta é diferença entre πάσχειν, padecer, e ἀλλοίωσις,
alteração, explicada por Aristóteles em De Anima II.5. Enquanto que padecer uma ação implica
a assimilação do contrário passivo pelo contrário ativo, destruindo-se o sujeito passivo tal como
é enquanto potência, a alteração significa a percepção da parte daquilo que está em ato daquilo
que está em potência conforme a atualização da potência passiva pela ação do agente. É como
dissemos acima, uma preservação do ente em potência. No caso, o ente em potência é o
intelecto que se preserva como tal ao atualizar a sua capacidade natural de apreender a forma.
Shields salienta que a distinção feita em De Anima II.5, 417b 2-16 é crucial e relembra
o exemplo utilizado por Aristóteles para explicar esta diferença:

188
Assim Rodier, pg.436, nota à passagem 429a 15, reforça ser esta atribuição uma consequência de se deixar de
lado a possiblidade do νοῦς ser um padecer algo.
159

“Uma criança é alterada ao ser alimentada e nutrida; mas a comida não afeta
a sua natureza enquanto ser-humano. Ao contrário, o seu crescimento à
maturidade envolve ela realizar o seu pleno potencial a partir de um estado
o qual já colocado e não adquirido no processo de ela ser afetada, isto é, a
sua natureza enquanto ser-humano. De maneira similar, o intelecto nunca é
alterado na sua natureza quando é afetado pelos seus objetos.”189 (tradução
nossa)

4.3.1.1.4 A qualidade de ser puro, não-misturado, ἀμιγῆς.

Tendo, então, estabelecido que o νοῦς deve ser uma parte da alma ἀπαθές, impassível, e
apta a receber todas as formas de seus objetos inteligíveis por não ser ainda nenhuma delas em
atualidade, porque sempre inalterada, sendo em potência cada uma delas, Aristóteles se
encaminha para indicar outra propriedade crucial do intelecto: ser não-misturado, ἀμιγῆς, isto
significa não ser determinado por nenhuma forma, elemento ou natureza previamente à
atualização do conhecimento das formas. Aristóteles usa o termo ἀμιγῆς190 em um sentido muito
amplo, que é capaz de corresponder à pureza em relação à formas inteligíveis, aos elementos
materiais, às qualidades físicas e corpóreas, ou seja, a tudo aquilo que pudesse, de alguma
maneira, imprimir ao intelecto uma atualidade anterior que bloquearia e impediria a sua
atividade própria. Esta característica do intelecto fará toda a diferença para a sua atividade, pois
o permitirá tudo conhecer por não ter nenhuma determinação formal que impeça a apreensão
de outras formas. Ele poderá trabalhar sem a intervenção do corpo e o que o conferirá com a
força de não ser destruído pela ação de uma intensa forma inteligível, como pode ocorrer com
a percepção por uma intensa forma sensível.

“ἀνάγκη ἄρα, ἐπεὶ πάντα νοεῖ, ἀμιγῆς εἶναι, ὥσπερ φησὶν Ἀναξαγόρας, ἵνα
κρατῇ, τοῦτο δ' ἐστὶν ἵνα γνωρίζῃ (παρεμφαινόμενον γὰρ κωλύει τὸ ἀλλότριον
καὶ ἀντιφράττει)· ὥστε μηδ' αὐτοῦ εἶναι φύσιν μηδεμίαν ἀλλ' ἢ ταύτην, ὅτι

189
SHIELDS, Christopher; Aristotle - De Anima; Translated with an Introduction and Commentary, Claredon
Press, Oxford, 2016: A child is altered by being fed and nurtured; but food does not affect her nature as a human
being. On the contrary, her growing to maturity involves her realizing her fullest potential from a state which is
already in place and not acquired in the process of her being affected, namely her nature as a human being.
Similarly, reason is never altered in its nature when affected by its objects.
190
Hicks, pg. 478, considera que a noção de ἀμιγῆς no contexto desta passagem está ligada a ἀπαθές e indicaria
sobretudo esta pureza do νοῦς quanto às determinações formais atualizadas. Mas também admite que, se
confrontado com a origem da aplicação do termo neste contexto, isto é, as teses de Anaxágoras, pode-se expandir
o uso também para a referência à mistura com o corpo, a qual seria discutida mais à frente, em 429a 24 ss.
Particularmente, me parece que St. Tomás de Aquino, §.677, está mais próximo da verdade ao enxergar nesta
pureza a liberação das determinações materiais-corpóreas.
160

δυνατός. ὁ ἄρα καλούμενος τῆς ψυχῆς νοῦς (λέγω δὲ νοῦν ᾧ διανοεῖται καὶ
ὑπολαμβάνει ἡ ψυχή) οὐθέν ἐστιν ἐνεργείᾳ τῶν ὄντων πρὶν νοεῖν”191

É necessário então, para que tudo entenda, ser não-misturado, como diz
Anaxágoras, para que domine, isto é, para que conheça (pois o estranho,
aparecendo ao mesmo tempo, impede e obstaculiza). Assim, de modo algum
ele será alguma natureza, exceto ela mesma, porque em potência. Então, o
chamado intelecto da alma (digo o intelecto pelo qual a alma pensa e
apreende) não é nenhum dos entes em atualidade antes de entender.
(tradução nossa)

Ainda se servindo da comparação com a percepção, Aristóteles deduz que o intelecto


deve ter a propriedade de ser não-misturado, isto é, puro de qualquer elemento192 que pudesse
limitar o alcance do seu conhecimento dos entes. Aristóteles, neste ponto, finalmente rechaça
completamente o princípio antigo de que o símile é conhecido pelo símile, tal como foi visto
em De Anima I e II, da maneira como era sustentado por Empédocles, segundo o qual a alma
deveria ser composta por todos os elementos para que pudesse vir a conhecer todas as coisas193.
Contrapondo-se a esta tese, Anaxágoras defendia194 que o intelecto deve ser impassível e não-
misturado, isto é, livre de qualquer elemento que o determinasse de alguma maneira, pois
pensava que, para o intelecto ser o princípio do movimento, ele deveria ser imóvel, isto é,
impassível, em nenhum curso de atividade já determinada, e que, para dominar e comandar, ele
não poderia estar misturado a nada que pudesse delimitar o seu curso de ação como o faria esta
característica à qual estaria misturado.
Aristóteles seguiu este raciocínio de Anaxágoras aplicado, no entanto, ao que ele
buscava explicar como propriedade do intelecto, adaptando o que o outro atribuiu ao intelecto
pensado como o princípio do universo à capacidade de conhecimento humano. Enquanto

191
ARISTÓTELES; De Anima III.4, 429a 18-24.
192
Hicks, à pg. 477, sobre a passagem 429a 18, comenta que unmixed supre with objects of cognition, isto é, que
ἀμιγῆς supre εἴδη νοητά, as forma inteligíveis, e πάντα τὰ νοητά estaria implicada em πάντα νοεῖ. Com isso, ele
quer dizer que o intelecto ser não-misturado significa ele não ser misturado a nenhuma das formas inteligíveis que
deverá apreender e não exatamente, no momento, às determinações formais que uma composição material pudesse
lhe atribuir. Hicks considera que dizer que ἀμιγῆς se refere à mistura do νοῦς com elementos materiais seria
antecipar a conclusão de 429a 24 de que o νοῦς não está misturado ao corpo. Considero esta leitura bem
interessante, sobretudo pela relação que Aristóteles procura estabelecer entre o sua compreensão de νοῦς e a de
Anaxágoras, que não deveria ser mistura a nenhuma coisa, a nenhum princípio do universo, o que incluiria também,
numa linguagem aristotélica, as formas inteligíveis, ultrapassando o limite da materialidade física.
193
Cf. De Anima I.2, 404b 8-15.
194
Cf. Física VIII.5, 256b 24-27: διὸ καὶ Ἀναξαγόρας ὀρθῶς λέγει, τὸν νοῦν ἀπαθῆ φάσκων καὶ ἀμιγῆ εἶναι, ἐπειδή
γε κινήσεως ἀρχὴν αὐτὸν εἶναι ποιεῖ· οὕτω γὰρ μόνως ἂν κινοίη ἀκίνητος ὢν καὶ κρατοίη ἀμιγὴς ὤν. – Por isso que
também Anaxágora diz corretamente que o intelecto é impassível e não-misturado, uma vez que ele o fez princípio
do movimento. Pois apenas assim, sendo imóvel, ele moveria e, sendo não-misturado, ele comandaria (tradução
nossa). Em De Anima I.2, 405b 19-21, Aristóteles também atribui a Anaxágoras a caracterização do intelecto como
impassível e puro.
161

Anaxágoras atribuía ao intelecto as qualidades de ser impassível e não-misturado porque


deveria ser ele o princípio de todo movimento e deveria tudo comandar, Aristóteles percebeu
que estas características deveriam também pertencer ao intelecto não porque ele devesse tudo
comandar como o intelecto do universo, sendo princípio de todo movimento, mas porque ele
deve tudo conhecer, πάντα νοεῖ. Para tudo conhecer, o intelecto não pode ter nada que o impeça
de realizar esta atividade, obstaculizando-o do conhecimento da natureza dos entes através de
um mistura com alguma determinação anterior à forma apreendida, ou atualizada nele mesmo.
Qualquer195 coisa que for em potência em relação ao seu objeto, estando apto a recebê-
lo, deve estar necessariamente privado deste objeto. Tal como o olho, estando em potência em
relação às cores e apto a recebe-las como seus objetos, deve ser totalmente sem cor, assim
também deve ser o intelecto em relação aos objetos que irá entender: ser em potência cada um
deles, capaz de ser afetado por eles, e estando, antes da atividade, privado de qualquer uma das
coisas que irá apreender. Uma vez que o intelecto deva conhecer todas as coisas, o que inclui
todas as coisas naturais, materiais, corpóreas, e todos os elementos da natureza, é necessário ele
estar privado de cada uma destas formas antes de conhecê-las, de maneira a nenhuma delas
bloquear, impedir ou obstaculizar a sua apreensão. Caso ele já tivesse uma destas formas
apreendidas, não poderia mais apreendê-las, pois a atividade de apreensão já estaria realizada e
a potencialidade necessária para a atividade estaria esgotada na sua atualização. Poderia, além
disso, a apreensão intelectual ser deturpada pela influência de uma forma já presente, como
ocorre com a sensibilidade quando alguém com febre não percebe as coisas da mesma forma
porque a potência do sentido está de alguma forma alterada pela determinação formal presente
anteriormente à atividade perceptiva, tal como ocorre com a vista ou a língua. Tendo a primeira
já apreendido uma cor, não a percebe novamente e estando a segunda sob a determinação de
uma disposição febril, não percebe mais corretamente os sabores doces.
Este é o tipo de restrição que Aristóteles quer evitar para o intelecto para não cometer o
erro da teoria de Empédocles. Por esta teoria, podendo o símile ser conhecido apenas pelo
símile, seria obrigatória que a composição do intelecto fosse feita das várias formas inteligíveis
já em atualidade, as quais restringiriam a amplitude do alcance de conhecimento intelectual,
pois a atividade do intelecto já estaria realizada quanto a alguma forma inteligível. Por isso, o
raciocínio de Aristóteles seguiria como: um ente misturado não pode conhecer tudo e o intelecto
conhece tudo, então o intelecto não pode ser misturado a nada.

195
Cf. St. Tomás de Aquino, comentário ao De Anima III.4, lição VII, §.680.
162

Assim, Aristóteles acrescenta que o intelecto não pode ter de maneira alguma nenhuma
determinação por natureza, ὥστε μηδ' αὐτοῦ εἶναι φύσιν μηδεμίαν ἀλλ' ἢ ταύτην, ὅτι δυνατός,
isto é, ele não pode ter nenhuma outra natureza que não a sua própria, a qual, por privação das
formas que virá conhecer, é aberta à apreensão da natureza de qualquer outro ente, consistindo
em uma pura potencialidade. O intelecto estará disposto a receber qualquer forma inteligível de
qualquer tipo de ente (429a 21-22), não poderá ser nenhum dos entes em atualidade antes de
conhecê-los (429a 24), sendo ele capaz de conhecer não apenas um particular tipo de ente, como
a visão vê apenas a cor e a audição escuta apenas os sons, nem mesmo as coisas particulares
acidentais e qualitativas, mas poderá conhecer a natureza sensível como um todo. E, tal como
as faculdades sensíveis são por natureza livres e privadas da forma de uma classe de objetos
sensíveis, o intelecto deverá estar livre e privado da toda a natureza sensível.

4.3.1.1.5 O intelecto não é misturado ao corpo e não possui um


órgão corpóreo

Dando continuidade à argumentação, Aristóteles deduz outra propriedade do intelecto:

“διὸ οὐδὲ μεμῖχθαι εὔλογον αὐτὸν τῷ σώματι· ποιός τις γὰρ ἂν γίγνοιτο, ἢ
ψυχρὸς ἢ θερμός, κἂν ὄργανόν τι εἴη, ὥσπερ τῷ αἰσθητικῷ· νῦν δ' οὐθὲν ἔστιν.
καὶ εὖ δὴ οἱ λέγοντες τὴν ψυχὴν εἶναι τόπον εἰδῶν, πλὴν ὅτι οὔτε ὅλη ἀλλ' ἡ
νοητική, οὔτε ἐντελεχείᾳ ἀλλὰ δυνάμει τὰ εἴδη”196.

“Por isso, é bem dito ele não ser misturado ao corpo. Pois surgiria alguma
qualidade, ou frio ou quente, e existiria algum órgão corpóreo, como existe
em relação à faculdade perceptiva. Ora, de fato, não há nenhum. E bem dizem
os que afirmam ser a alma o lugar das formas, exceto que não ela toda, mas
apenas a [parte] inteligível, e não as formas em atualidade, mas em potência.”
(tradução nossa)

O trecho acima é a conclusão do raciocínio que ele fez sobre a pureza do intelecto. A
conclusão é que o intelecto não pode ser misturado ao corpo, caso contrário, ele apresentaria
qualidades sensíveis, o que o impediria de conhecer tudo, e teria um órgão corpóreo para
realizar a sua função, o que também limitaria a sua atividade. A argumentação a respeito desta
característica esbarra em uma certa confusão com uso do termo αμιγῆς. Assim, esta
argumentação é feita, na verdade, utilizando-se da noção do correspondente contrário do termo

196
ARISTÓTELES; De Anima III.4, 429a 24-29.
163

não-misturado, isto é, a noção do termo μεῖξις, mistura. A noção de μεῖξις, mistura, que seria
aplicável somente em relação aos corpos, foi utilizada para se pensar a característica do
intelecto, o qual, a rigor, não é de forma alguma um corpo.
Hicks é quem melhor nos explica esta confusão e nos ajuda na compreensão deste trecho
através de uma nota à passagem de 429a 24, à página 480 de seu comentário ao De Anima. Ele
resgata uma passagem de De Anima I.3, 407b 2, em que a expressão μεμεῖθαι τῷ σώματι, ser
misturado ao corpo, aparece na crítica que Aristóteles fez a Platão quanto à indissolúvel união
entre corpo e alma, esta última identificada por νοῦς, no Timeu. A possibilidade de algumas
afecções da alma serem peculiares somente a ela mesma e não, como o restante, comum à alma
e ao corpo, diz Hicks, foi reafirmado em De Anima I.1, 402a 9 e ss. e em 403a 3-11. Portanto,
Aristóteles, já desde o início do tratado sobre a alma, indicava a possibilidade de atividades que
pudessem ser realizadas de maneira não-misturada a elementos corpóreos. Em seguida,
iniciando a explicação sobre a relação entre νοῦς e corpo, Hicks recorda que não há nenhuma
razão para que algumas partes da alma não devam estar separadas do corpo, se elas não forem
as atualidades de qualquer corpo que seja197. Ora, este seria o caso do intelecto, o qual é pura
potencialidade antes de apreender qualquer forma.
Hicks continua a explicação dizendo qual é o preciso sentido de mistura e como a
definição de alma apresenta a relação dela com o corpo. Primeiramente ele afirma que a
verdadeira mistura é de corpo com corpo, para o que uma das condições seria a similaridade
entre as matérias198. Neste sentido, o que é chamado de mistura está completamente fora de
questão quando um dos fatores é a alma intelectual: se νοῦς fosse algo corpóreo misturado ao
corpo, ele estaria presente em atualidade e não em potencialidade, como o é na argumentação
de III.4. Isto não é, no entanto, aquilo que Aristóteles quer explicar. Pois, tendo sido a alma
toda definida em De Anima II.1 como a enteléquia ou a perfeição do corpo, a parte disto que
pensa não pode ser mais corpo do que a alma ela mesma. Na realidade, a alma não é o corpo,
mas é algo do corpo199. A dificuldade da passagem existe por conta do sentido bem extenso em
que o termo mistura, μεῖξις, é usado e, então, é aplicado erroneamente a νοῦς.
Então Hicks apresenta um caminho para transpormos esta dificuldade: algo incorpóreo
pode ser dito per accidens estar misturado ao corpo, e esta imprópria extensão do termo mistura

197
Cf. De Anima II.1, 413a 6-10.
198
Cf. Gen. et Corr. I.10.
199
Cf. De Anima II.2, 414a 20: σῶμα μὲν γὰρ οὐκ ἔστι, σώματος δέ τι – pois não é corpo, é algo do corpo (tradução
nossa).
164

pode ser usada para indicar a união entre forma e matéria na coisa concreta. E é neste sentido
que Aristóteles nega o intelecto estar misturado ao corpo.

“Como parte da alma, o intelecto reside no corpo inteiro e o utiliza como seu
órgão. Se não exatamente “misturado ao” corpo, o intelecto é, em todo caso,
dependente do corpo, sem o qual ele não pode ser abastecido com imagens
mentais. É preciso, portanto, que seja quanto à sua operação que nós agora
estamos considerando a questão da mistura ou não-mistura com o corpo. A
recepção de formas que constitui o entendimento pode ocorrer sem a
intervenção do corpo, e Aristóteles apontaria para a meditação profunda
como prova disso.”200 (tradução nossa)

Assim, podemos compreender que o intelecto não pode estar misturado ao corpo porque
isso contrariaria a noção de alma que Aristóteles apresentou como sendo a atualização de um
corpo. Mas o intelecto é pura potencialidade pois tudo conhece e não pode estar já em atualidade
em relação a um corpo, o que implicaria numa determinação formal atual. Somente num
segundo sentido que se poderia cogitar a sua mistura com corpo: se ele precisa das imagens
para sua atividade, precisaria se misturar ao corpo para realiza-la? Aristóteles diria que não,
pois o intelecto se serve do corpo, mas não o permite intervir no sua função. Isto significa que
ele não se utiliza de um órgão corpóreo para apreender as formas tal como a sensação se utiliza
dele, isto é, ele não está misturado ao corpo como uma forma determinando uma matéria de
modo a constituir um órgão sensório. Se estivesse, ele iria se apresentar com alguma qualidade
física, sendo ou frio ou quente, o que acabaria impedindo-o de estar aberto a todas as formas.
Vimos que os próprios sentidos funcionariam desta forma restrita ao conseguirem perceber
apenas os objetos que excedessem ou faltassem em relação ao meio-termo entre os dois
extremos das qualidades sensíveis. Uma vez que é a alma que age junto ao objeto através do
órgão corpóreo, ela deve estar disposta em correspondência com o órgão aos estar em potência
para a realização de sua atividade.
Na verdade, não faz diferença para o ato da potência se é a potência ela mesma que tem
alguma qualidade ou se é o órgão sensório, uma vez que o ato não é nem da potência sozinha e
nem do órgão apenas, mas dos dois juntos. Tal como a mão se adapta ao instrumento que irá
utilizar, ajustando os dedos conforme o necessário, assim também a alma se adaptaria à

200
HICKS, R. D.; Aristotle – De Anima, with translation, introducton and notes; Cambridge Universtiry Press;
1907. “As part of the soul, intellect resides in the whole body and uses it as its organ. If not exactly "mixed with"
the body, intellect is at all events dependent upon the body, without which it could not be supplied with mental
images. It must therefore be in respect of its operation that we are now considering the question of admixture or
non-admixture with the body. The reception of forms which constitutes thinking may take place without the
intervention of the body, and A. would point to profound meditation as a roof of this.”
165

corporeidade do órgão sensório, seu instrumento, em que tivesse sede. Por isso que da
conclusão que obteve de que o intelecto não pode ter nenhuma natureza de modo a não o
impedir de tudo conhecer, Aristóteles deduziu que o intelecto também não poderia ter nenhum
órgão corpóreo.
Aristóteles, então, conclui toda esta argumentação sobre as propriedades do intelecto
relembrando um bom dito dos antigos que reconheciam ser a alma o lugar das formas. Ser o
lugar de algo significa ser aquilo que em si mesmo recebe algo. A alma, segundo o dito,
receberia em si todas as formas. O dito seria perfeito, no entanto, se reconhecesse não a alma
como um todo ser o lugar das forma, mas apenas a parte dela pela qual ela conhece e pensa,
isto é, somente o intelecto pode ser este lugar, sendo impassível, não-misturado, não ligado ao
corpo e sem nenhum órgão corpóreo. Nenhuma das outras partes da alma pode receber as
formas, só o νοῦς, pois ele é todas elas, não em atualidade, mas em potência.

4.3.1.1.6 A diferença de impassibilidade do intelecto em


comparação com a percepção

Como última etapa da primeira parte de De Anima III.4, Aristóteles faz uma comparação
entre os dois modos em que o intelecto e a percepção são impassíveis, isto é, ἀπαθεῖς.
Anteriormente, ele havia estabelecido que os dois eram impassíveis no sentido de não serem
afetados no sentido estrito do termo padecer algo, mas poderia se dizer que o eram, mas em um
sentido menos rígido por falta de nomenclatura mais adequada. No entanto, mesmo a respeito
da coincidência de intelecto e sensação serem impassíveis, eles não seriam impassíveis da
mesma maneira.
Um sentido pode ser danificado e até mesmo destruído se tiver contato com um sentido
muito intenso que pudesse danificar o órgão sensório, por exemplo, alguém poderia ficar surdo
ao ouvir um som muito alto, ou ficar cego se visse uma luz muito intensa. Ou então, se
recordarmos que sentido é uma proporção na mistura entre os contrários do gênero sensível201,
todo o excesso quer vier a destruir esta proporção irá destruir o sentido.
Mas com o intelecto isto não ocorre. Não tendo ele um órgão sensório, não pode ser
destruído pelo excesso, intensidade e força de seu objeto. Ao contrário, quanto mais elevado
for o nível de inteligibilidade de uma forma mais ele será capaz de compreender as formas

201
Cf. De Anima III.2, 426a 27- 426b 7.
166

inferiores e subordinas. Conhecendo as formas mais inteligíveis, isto é, entendo as formas de


maneira mais abstrata – abstrata em relação a sua essência ou pura forma – de alguma forma, o
intelecto ilumina a compreensão do que é mais concreto, tornando-o mais inteligível202.
Esta diferença existe porque, explica Aristóteles, enquanto os sentidos não trabalham
nem realizam as suas funções sem o corpo, apenas através do órgão sensório utilizado como
instrumento, o intelecto, ao contrário, trabalha de maneira separada, ele é χωριστός, isto é, sem
o concurso do corpo. Isso não quer dizer que ele não se utiliza do material que o corpo lhe
fornece nem que ele tenha uma existência separada dele, mas somente que ele é, como foi visto,
impassível, não-misturado e não é ligado ao corpo.

4.3.1.2 De Anima III.4: aquisição do hábito intelectual

Uma vez estabelecida que a natureza do intelecto é uma pura potencialidade em relação
às formas inteligíveis, Aristóteles passa agora à explicação de como o intelecto pode passar a
um segundo nível de potencialidade, no qual o homem pode realizar a tarefa de apreensão
intelectual quando quiser. Isto ele faz em duas etapas, que ocupam a passagem de 429b 5-9:

a) A primeira se refere ao modo como a potência do intelecto pode elevar-se de grau,


superando a pura potencialidade originária e alcançando o estado de habito
intelectual.
b) O intelecto é ainda uma certa potência, mas não como antes de aprender e descobrir,
podendo pensar-se a si mesmo.
O trecho é o seguinte:

“ὅταν δ' οὕτως ἕκαστα γένηται ὡς ὁ ἐπιστήμων λέγεται ὁ κατ' ἐνέργειαν


(τοῦτο δὲ συμβαίνει ὅταν δύνηται ἐνεργεῖν δι' αὑτοῦ), ἔστι μὲν καὶ τότε
δυνάμει πως, οὐ μὴν ὁμοίως καὶ πρὶν μαθεῖν ἢ εὑρεῖν· καὶ αὐτὸς δὲ αὑτὸν
τότε δύναται νοεῖν.”203

“Quando, dessa maneira, vier a ser objetos particulares, como o que é


dito sapiente segundo a atualidade (isto ocorre quando for capaz de
exercer a sua atividade por si mesmo), então, por um lado, é, de certo
modo, em potência, não da mesma forma que era antes de aprender e
descobrir; e também é capaz de pensar a si mesmo.” (tradução nossa)

202
Cf. Hamlyn, pg. 137.
203
ARISTÓTELES; De Anima III.4, 429b 5-9.
167

4.3.1.2.1 Os graus da potência intelectual

Nesta passagem, Aristóteles retoma a distinção feita em De Anima II.5 entre dois
patamares de potencialidade em que o intelecto pode se desenvolver. A discussão, na verdade,
aparece também em Metafísica Θ.2-5 e 8, no contexto de descrição do processo de aquisição
das potências racionais, e em Física VIII.4, 255b 1 e ss., quando foi necessário distinguir os
modos em que a δύναμις é dita.
Vimos que o intelecto é uma pura potencialidade apta a apreender as formas inteligíveis,
não sendo nenhuma deles em atualidade, mas somente em potência. Quando, o intelecto vem-
a-ser os objetos particulares, isto é, quando o intelecto consegue realizar a sua atividade e
apreender as formas inteligíveis, tal qual se encontra naquele que é chamado de sapiente em
atualidade, então pode-se considerar que o intelecto se encontra na condição de intelecto em
ato. E, como explica Aristóteles, a condição de intelecto em ato é alcançada tão logo alguém
possa realizar a atividade de apreensão das formas por si mesmo, isto é, assim que desejar, tal
como o que é chamado sapiente consegue praticar a ciência quando quiser.
A expressão δι' αὑτοῦ que traduzi por por si mesmo indica similarmente a peculiar
propriedade das capacidades racionais de iniciarem a sua ação depois de uma decisão
deliberada, como explicou Aristóteles em Metafísica Θ.5204. De acordo com a divisão
estabelecida desde o início de Metafísica Θ, há as potência irracionais, δυνάμεις ἀλογοί, cujo
agente atualiza a sua potência ativa no paciente de potência contrária passiva, e há as potências
racionais, δυνάμεις μετὰ λόγου, ou seja, as potência que se atualizam segundo a razão,
encontradas na parte racional da alma.
As potências irracionais entram em atividade assim que as condições necessárias
estiverem presentes, isto é, quando o agente e o paciente se encontram e, sem que nenhum fator
externo as empeça, suas potências se atualizam necessariamente, com o agente impondo a sua
forma ao paciente, o possuidor do contrário privado da forma do agente. As potências racionais,
por sua vez, se fundam em noções, no λόγος, isto é, na forma inteligível de um ente, quanto a
qual deverão se atualizar. Fundar na forma significa que eles têm sob si a possibilidade da
produção, do conhecimento, do pensamento, isto é, da atualização de dois contrários, da forma
e de sua privação. Colocada à sua frente a opção de dois caminhos para a sua ação, o homem
deverá escolher segundo o qual deverá agir, decidindo-se ou pela atualização da forma ou pela

204
Cf. Metafísica Θ.5, 1048a 1-24.
168

atualização da sua privação205. Segue-se, então, a decisão racional na escolha deliberada e,


estando em condição de realizarem-se, somente entrarão em atividade depois que o agente
decidir por ativar uma das duas, ou seja, segundo a decisão ou por si mesmo.
Ao encontrarem-se nas devidas condições necessárias e não havendo impedimento
externo, as potências irracionais exercem as suas atividades de sujeito agente e de sujeito
paciente, sem que se decidam por assim fazer ou não fazer, tal como o fogo, que, ao se
aproximar da gasolina, não delibera se deve ou não queimá-la, mas simplesmente a fez entrar
em combustão imediatamente. As potências racionais, ao invés disso, ainda que precisem que
as condições para a sua atualização estejam presentes, não serão conduzidas às suas atualizações
por efeito necessário da natureza na presença do objeto sobre o qual irão atuar, mas por
iniciativa própria do homem, isto é, sem constrangimento de nada que não de sua própria
decisão de atualizá-las, realizando-as por si mesmo, tendo aquilo com o qual irá agir já sob sua
posse e nele mesmo como forma apreendida em sua alma.
O intelecto tendo, então, conseguido atualizar-se e se encontrar da mesma forma que
está aquele que possui a ciência, ou seja, apto a realiza-la sempre que assim o desejar, ainda se
conserva, no entanto, como potencialidade, embora não uma potencialidade no mesmo sentido
de antes, isto é, de apreender as formas. Ou seja, o intelecto, que antes de apreender as formas
inteligíveis era uma pura potencialidade apta a receber cada uma destas formas, após tê-las
apreendido, alçou-se a outro patamar de potencialidade, no qual está pronto para tornar-se
plenamente operante quando for requerido, estando, neste estágio, no patamar de uma primeira
atualidade ao qual se seguiria o segundo e perfeito patamar.
Neste sentido, é preciso relembrar a escolha que Aristóteles fez de caracterizar o
intelecto como impassível porque não poderia atribuir-lhe a capacidade de sofrer uma ação no
sentido estrito do padecer algo que provocasse a destruição da potencialidade assim como era,
assimilando-a ao sujeito agente da ação. Era preciso considerar que, quando o intelecto se
atualizasse, o padecimento da ação não seria uma mudança no sentido da μεταβολή, mas no
sentido de uma alteração, αλλοῖωσις. Este tipo de alteração implica o aperfeiçoamento da
potência através de sua atualização porque indica a realização de sua função, de sua razão de
ser. A alteração não destrói o sujeito passivo ou potente, mas o torna mais perfeito, mais bem
acabado, rumo ao que deve ser enquanto ser. Ela é uma alteratio perfectiva, non corruptiva206.
Esta distinção foi feita por Aristóteles em De Anima II.5.

205
Atualizar uma privação consistiriam, por exemplo, no caso da medicina, na produção de uma doença ou não
atualizar a saúde, mas a sua privação.
206
Cf. Hicks, pg. 484, nota à passagem De Anima III.4, 429b 5.
169

O primeiro estágio de atualidade do intelecto que Aristóteles está descrevendo é


equivalente ao primeiro estágio de atualidade da ciência quando está pronta para tornar-se
operativa pela decisão do possuidor do conhecimento. O intelecto pode ser dito estar em
potência em dois sentidos:

1) Quando ainda é pura potência, sendo o lugar das formas, sem ser nenhuma delas em
atualidade, mas em potência. Isso ocorre quando ele não apreendeu nenhuma dessas
formas que pode apreender e que virão a tornar-se seu conteúdo. Este é o estágio
herdado dos pais pela criança, a qual, antes de apreender e pensar qualquer forma,
têm apenas a potência de vir a apreendê-las e adquirir inteligência e ciência.
2) Depois de ter começado a exercitar-se na apreensão das formas e de ter entendido
algumas delas, através do ensino ou da descoberta, a pessoa, possuindo estas formas
atualizadas em seu intelecto, adquire o segundo estágio de potência. A partir deste
estágio, tendo já as formas em sua alma, pode, então, decidir-se por si mesmo
quando deverá atualizá-las e exercitar a atividade plena de entender, νοεῖν, cada uma
destas formas. O intelecto se encontra em atualidade, mas de certa forma, ainda em
potência, neste estágio.
O intelecto no segundo nível de potência se encontra no mesmo nível de potencialidade
que a sensação antes da percepção, isto é, no nascimento da criança, e, quando a sensação está
em ato, ela se iguala em modo ao intelecto quando este está na sua atualização plena. Ocorre
que a sensação depende que objetos que lhe são exteriores a façam passar da potência ao ato da
percepção. De tal tarefa está incumbido o agente da ação, que deve estar em ato, e que, para a
percepção, devem ser seus objetos sensíveis. Portanto, estes objetos sensíveis, αἰσθητικόν,
estarão já em ato, em certo sentido, antes da percepção, por serem os agentes que conduzirão a
sensação em potência à sensação em ato, mas quanto à sensação em atualidade perfeita, estão
eles ainda em potência. No caso do intelecto e da ciência, seus objetos inteligíveis, os νοητά,
depois que tiverem sido apreendidos, também se encontram em atualidade no intelecto, em um
sentido, mas em potência ainda quanto à atividade plena da inteligência e da ciência. No
entanto, enquanto os objetos sensíveis são objetos exteriores e não estão submetidas à razão
humana, conduzindo ao ato a sensação, os objetos inteligíveis apreendidos, estando já na alma
do homem como entes em potência, segundo um aspecto, são já entes em atualidade segundo
outro aspecto, prontos para atualizarem-se plenamente como objetos inteligíveis assim que for
decidido que o intelecto deverá se atualizar em perfeição na atividade da inteligência. Nesta
atividade, o intelecto atualiza as formas inteligíveis que estavam em potência nele mesmo, nele
170

como o τόπος τῶν εἴδων, o lugar das formas, fazendo-as formas inteligíveis em atualidade, e a
si mesmo intelecto em atualidade, a partir do que pode, então, pensar-se a si mesmo.

4.3.1.3 O intelecto é capaz de pensar a si mesmo

O intelecto pode pensar-se a si mesmo207. A sentença é realmente controversa é aparece


interpretada de maneiras diferentes. Rodier, por exemplo, considera que, sendo o intelecto
identificado com o objeto inteligível em ato, ao pensa-lo, pensa também a si mesmo:

“O intelecto se identifica com o inteligível ainda mais completamente que a


sensibilidade com o sensível, porque o inteligível é pura forma, sem matéria.
(...) é ele mesmo que o intelecto pensa ao pensar o inteligível, posto que cada
ato da intelecção é a identificação do pensamento com o inteligível.”208
(tradução nossa)

Da mesma opinião parece ser Alexandre de Afrodísias quando diz que: uma vez que o
intelecto em atividade não é outra coisa que não a forma apreendida, o intelecto em potência é
já capaz de pensar a si mesmo; pois, dado que o inteligível apreendido é a mesma coisa que a
forma e se, pensando, o intelecto vem-a-ser, então, tendo a capacidade de pensar as formas, ele
tem a capacidade e a potência do pensar a si mesmo209.
As duas opiniões baseiam-se na tese de que o νοῦς é a mesma coisa que o νοούμενον,
isto é, de que o intelecto é o mesmo que o objeto entendido quando se atualiza plenamente no
pensamento desta forma apreendida. Rodier ainda considera a identidade entre intelecto e

207
Leio a passagem de 429b 9: καὶ αὐτὸς δὲ αὑτὸν τότε δύναται νοεῖν, com δὲ αὑτὸν, com Hicks e Movia e não δι’
αὑτοῦ, como Ross e Hamlyn por indicação de Bywater. O termo δι’ αὑτοῦi, por si mesmo, já apareceu
anteriormente se referindo ao controle que o homem teria sobre sua ação. Não faria sentido repetí-la novamente e
ignorar um tema que depois aparece em outras passagens de Aristóteles.
208
RODIER, G.; Aristote – Traité de L’Ame, traduit e annoté; Ernest Leroux éditeur; Paris; 1900. Cf. pg.440-441:
L’intellect s’identifie avec l’intelligible, plus complètment encore que la sensibilité avec le sensible, parce
quel’intelligible est pure forme, sans matière. (...)c’est lui-même que l’intellect pense en pensant l’intelligible,
puisque chaque acte d’intellection est l’identification de la pensée avec l’intelligible.
209
Citado por Hicks, na pg. 485: Alexandre de Afrodísias, De Anima 86, 15: καὶ ἐπεί ἐστιν ὁ κατ' ἐνέργειαν νοῦς
οὐδὲν ἄλλο ἢ τὸ εἶδος τὸ νοούμενον, ὥσπερ καὶ ἐπὶ τῆς αἰσθήσεως ἐδείχθη, ὁ ἐν ἕξει νοῦς (οὗτος δέ ἐστιν ὁ νοεῖν ἐπ'
αὐτοῦ δυνάμενος καὶ τὰ τῶν νοητῶν εἴδη λαμβάνειν καθ' αὑτά), οὗτος ἤδη δύναται καὶ αὑτὸν νοεῖν. ἐπεὶ γὰρ τὸ
νοούμενον εἶδος αὐτός ἐστιν, εἴ γε νοῶν ὃ νοεῖ γίνεται, ὁ ἄρ' ἕξιν ἔχων τοῦ τὰ εἴδη νοεῖν, οὗτος ἕξιν καὶ δύναμιν ἔχει
τοῦ νοεῖν ἑαυτόν. – E uma vez que o intelecto em atividade não é nenhuma outra coisa que a forma apreendida,
como também ocorre com a sensação vista, o intelecto em potência (este o que é capaz de pensar junto a si mesmo
e colher as formas dos inteligíveis enquanto elas mesmas), este é já capaz também de pensar ele mesmo. Pois uma
vez que a forma apreendida é a mesma, e se, pensando, o que pensa vem-a-ser, então, o que tem a potência de
pensar as formas, este tem a potência e a capacidades de pensar a si mesmo. (tradução nossa)
171

objeto apreendido como ainda mais forte do que a identidade entre a sensação e o objeto
sensível, porque a forma inteligível é pura forma, sendo completamente sem matéria. A
identidade do intelecto e do objeto inteligível e da sensação com o objeto sensível, de fato
ocorre, mas não ocorre simplesmente, mas de maneira qualificada. O conhecimento de si
mesmo deve ser compreendido como uma atividade de reflexão do intelecto que ocorre a partir
da apreensão da forma, distinguindo o objeto do intelecto que o apreendeu.
Podemos citar a passagem de Metafísica Λ.7:

“αὑτὸν δὲ νοεῖ ὁ νοῦς κατὰ μετάληψιν τοῦ νοητοῦ· νοητὸς γὰρ γίγνεται
θιγγάνων καὶ νοῶν, ὥστε ταὐτὸν νοῦς καὶ νοητόν. τὸ γὰρ δεκτικὸν τοῦ
νοητοῦ καὶ τῆς οὐσίας νοῦς, ἐνεργεῖ δὲ ἔχων.”210

“o intelecto pensa a si mesmo partilhando do inteligível; pois vem-a-


ser inteligível, apreendendo e tocando [o objeto inteligível], o intelecto
e o inteligível são o mesmo. Pois o intelecto é capaz de receber o
inteligível, isto é, a substância, estando em atividade.” (tradução
nossa)

Nesta passagem, Aristóteles, elencando inicialmente o modo excelente, em grande


prazer, de princípio necessário e existente como Bem, em que o Primeiro Motor vive, descreve
o modo em que, de maneira fugaz, nos é concedido viver como ele através da atividade atual
do intelecto ao pensar a si mesmo. O intelecto não se pensa diretamente a si mesmo como se
fosse o seu primeiro objeto natural, per se. É necessário que ele compartilhe da qualidade de
forma inteligível do seu objeto para que ele possa tornar-se inteligível também. A forma do
objeto inteligível significa que ele contém a essência do ente do qual é a forma, mas só a carrega
de maneira inteligível, isto é, sendo uma forma que tem a capacidade de ser conhecida. Quando
o intelecto, apreendendo esta forma e partilhando de sua natureza inteligível, pode ele também
tornar-se um objeto inteligível de maneira derivada, não por si mesmo, mas por acidente. O
intelecto, antes de qualquer apreensão, é uma pura potencialidade, sem nenhuma atualidade que
permita ser conhecido por si mesmo. Mas a atualidade só lhe é concebida na atividade de
apreensão da forma, isto é, quando ele recebe a forma inteligível em atualidade nele mesmo.
O intelecto humano, sendo ele primeiramente uma potência de conhecimento, não pode
ser ele mesmo a origem eminente de sua própria atividade, a qual somente entra em atividade
por conta de seu objeto. Contrariamente ocorre com o Primeiro Motor, porque sua natureza é o
ato puro de pensamento, ou seja, ela mesma é a origem de seu pensar, consistindo ela mesma,

210
ARISTÓTELES; Metafísica Λ.7, 1072b 19-24.
172

isto é, o pensamento em ato, em seu objeto eminente. Ele, então, pode se pensar a si mesmo por
si mesmo e não acidentalmente.
Hicks acrescenta um resumo da nota de Zabarella à passagem de Alexandre citada,
reforçando que o intelecto somente pode pensar-se a si mesmo não diretamente, mas apenas
por contradistinção, isto é, per accidens. Ou seja, se retomarmos a noção de κρίσις que foi
debatida na primeira parte deste capítulo compreendemos que somente por um ato de distinção
realizado pelo intelecto entre a forma que ele apreendeu e aquilo que a ela é diferente, ou seja,
outras formas e até ele mesmo, é que ele pode, então, vir a conhecer verdadeiramente o seu
objeto e, então, só então, conhecer-se a si mesmo. Um comentário desta atividade de distinção
necessária do intelecto em relação ao seu objeto que o permite a reflexão sobre si mesmo nos
faz Oehler: “Indeed it is a necessary condition of knowledge of objects and of its own existence
that it should distinguish between itself and its objects”211 – “De fato, é uma condição
necessária para o conhecimento dos objetos e para a sua própria existência que ele deva
distinguir entre ele mesmo e os seus objetos” (tradução nossa). Para que não o intelecto tome
uma coisa por outra e não confunda a forma apreendida, a qual é a essência de um ente, o
intelecto deve ser capaz de perceber a diferença existente entre a sua substância e a de seu objeto
e entre a atividade que ocorre e o seu conteúdo. E ele explica ainda mais, dizendo que o intelecto
pensa a si mesmo não porque ele pensa as formas as quais ele se tornou, mas porque ele está
ciente de seus objetos, isto é, de suas formas. O auto-conhecimento somente é conhecimento
enquanto está ciente de si por meio do conhecimento de seu objeto212.
A noção de reflexão do intelecto pode ser estendida à reflexão que o homem mesmo
pode realizar sobre a sua estrutura de pensamento, o que significa que ele pode pensar a sua
própria atividade intelectual e, por isso, a sua própria estrutura de ser-humano. Aristóteles não
expande a este aspecto a análise da reflexão que o intelecto faz de sua atividade. Mas, como
apresentei no capítulo I desta tese que a estrutura da alma humana é ordenada em função
daquela mais alta capacidade anímica, cuja atividade perfeita é a condição para a atualização
perfeita do ser-humano, podemos perceber que a reflexão sobre esta capacidade eminente é
também a reflexão da vida humana como um todo. Não se trata aqui de auto-consciência, pois
esse termo é estranho a Aristóteles, mas de domínio intelectual sobre as atividades que o homem
pratica, de um discernindo do que vem a ser cada uma destas atividades e do objeto que conhece.
A clarividência poderá ser estendida também para as outras atividades intelectuais em que o

211
Cf. Oehler, Klaus; Aristotle on Self-Knoledge; in Proceedings of the American Philosophical Society, Vol. 118,
Nº 6 (27 de Dez. de 1974).
212
Cf. Oehler novamente, pg. 498. O trecho é uma paráfrase de uma passagem sua.
173

homem se empenhar nas quais o intelecto é mobilizado para a sua realização e suposto como a
fonte da compreensão primeira e do conhecimento necessário do objeto sobre o qual deverá
agir.
A distinção só pode ocorrer depois que alguma coisa é tomada como critério de
distinção. No caso da sensação e do intelecto, o critério a ser tomado é o objeto, a forma
apreendida, a partir da qual se poderá, em um momento posterior, descobrir o que é a sensação
e o intelecto. Ao assumir a identidade de seu objeto, o intelecto, ainda que tenha absorvido a
sua forma, não pode perder a sua essência de capacidade de apreensão intelectual. Ao executar
esta tarefa de saber o que é o objeto, permitindo-se que, posteriormente, pense a si mesmo, o
intelecto passa a ter não uma simples distinção, mas um discernimento do que seja ele mesmo
e seu objeto. A atividade de discernir indica algo mais forte do que apenas distinguir, pois é a
aplicação de uma capacidade do auto-conhecimento pela reflexão213. A reflexão é sobre sua
atividade, a partir da forma que se absorveu e da qual se partilha.
Mesmo a passagem em que Aristóteles afirma que a ἐπιστήμη é igual a seu objeto214 e
que, portanto, pensando no seu objeto estaria pensando em si mesma, pode ser usada para
defender a tese de que o intelecto pensa a si mesmo porque ele se torna a forma apreendida sem
que se esclareça que é assim de forma secundária. Aristóteles se refere à ἐπιστήμη, ciência,
como sendo a forma do próprio ente presente na alma do sábio. Disso se deduz que o intelecto
pode se conhecer a si mesmo porque ele é a mesma coisa que a forma do ente. A diferença, no
entanto, é que a ciência é uma capacidade adquirida pelo sujeito e que não pode existir sem esta
forma apreendida pelo intelecto, por isso se pode dizer que a ciência é a mesma coisa que a
forma. Com o intelecto não é a mesma coisa, porque ele existe como potência já antes de
qualquer apreensão formal e é por esta condição que ele pode apreender várias formas e não se
fixar apenas na primeiríssima que conheceu. Aristóteles mesmo reconhece215 que, embora o
intelecto absorva a forma apreendida, o seu ser não é a mesma coisa que o ser do objeto
apreendido. Evidentemente, o intelecto deve conservar a sua capacidade de retornar à
disposição de δεκτικὸν τοῦ εἴδους, apto a apreender a forma.

213
Cf. Metafísica Λ.9, 1074b 35-36: Aristóteles utiliza a expressão αὑτῆς δ’ ἐν παρέρῳ, dele mesmo em modo
secundário, ou seja, no contexto, era discutida a impressão que se tem de que a ciência, a opinião, a sensação e o
raciocínio, têm a si mesmos como objetos apenas de maneira secundária, refletindo o que são depois que
conheceram seus objetos.
214
Cf. as passagens de Metafísica Λ.9, 1074b 38- 1075a 5; De Anima III.4, 430a 4-7.
215
Cf. Metafísica Λ.9, 1074b 38: οὐδὲ γὰρ ταὐτὸ τὸ εἶναι νοήσει καὶ νοουμένῳ - pois nem é a mesma coisa o ser
da intelecção e o ser do objeto apreendido. Hicks conclui que a identidade entre o intelecto e a coisa apreendida
deve ser entendida como uma identidade real e não mental. Sobre isso cf. nota a passagem 429b 9, pg. 485, de seu
comentário ao De Anima.
174

O intelecto é e sempre será uma forma e uma substância enquanto é uma parte da alma
humana e não poderá jamais transformar-se em outro ente por receber uma outra forma. Hicks
sugere que o comparemos à matéria prima, estando o intelecto em relação à forma apreendida
como a matéria para a forma, o que pode parecer paradoxal ao pensarmos que ele é εἶδος εἰδῶν,
forma das formas, sendo capaz de receber cada uma delas, permanecendo a sua real natureza
inalterada. Por isso que o intelecto deve conhecer-se a si mesmo por reflexão, ou na medida em
que reflete sobre a sua própria operação de pensar as formas. Conhecendo-se a si mesmo, ele
descobre que era uma pura potencialidade antes de pensar qualquer coisa, apto a receber em si
qualquer forma, disposto a tornar-se qualquer natureza. Da mesma forma que o selo ou a
tabuinha de cera recebem a impressão e a escrita sobre si e ficam como que transformados
naquilo que os marcou sem que, no entanto, percam a sua disposição de se apagarem as suas
marcas, voltando ao estado inicial de receptor de formas. Assim também deve suceder com o
intelecto: não deve nunca perder a sua forma de absorver em si as formas inteligíveis, caso
contrário, deixaria de ser uma capacidade de conhecimento, tornando-se outro ente que não a
parte intelectual da alma.

4.3.1.4 A potência ou o hábito, ἕξις, intelectual

A atividade reflexiva e a atividade realizável conforme a decisão podem ser praticadas


somente depois que o intelecto atingiu o patamar de segunda potencialidade. Pode-se usar como
exemplo desta tese a atividade da ciência da aritmética. Aquele que apreendeu os princípios da
aritmética, isto é, as formas com as quais seguem-se a atividade do aritmético, poderia
desenvolver a sua atividade de compreensão das formas da aritmética quando quisesse,
contemplando-as. Em Ethica Nicomachea216, Aristóteles sempre se refere ao intelecto como
uma ἕξις διανοητική, isto é, um hábito dianoético, do pensamento. Nos Analíticos Posteriores
II.19, Aristóteles também se refere às capacidades intelectuais como ἕξεις, sobretudo o
intelecto, considerando-o como hábito dianoético.
Como foi visto, o intelecto pode ser explicado como tendo dois níveis de potência, um
inato e outro adquirido pelo estudo, pelo exercício continuado, pelo aprendizado. Isto não quer
dizer que este sentido de hábito, ἕξις, seja, assim, antagônico à noção do segundo nível de
potência explicado na passagem de De Anima III.4, 429b 5-9.

216
Ethica Nicomachea I.13, 1103a 8-10; VI.2, 1139a 16, 1143a 25.
175

A noção de hábito intelectual tem o mesmo sentido da potência adquirida, pois indica
uma condição em que se pode fazer uso, quando se desejar, de uma capacidade intelectual. O
hábito intelectual se formaria quando a parte da alma racional possuisse o princípio, a forma,
do objeto sobre o qual se realizaria a atividade cognitiva. Ter o hábito da ciência seria ter
ativamente em si o conhecimento científico pronto para ser utilizado plenamente no exercício
completo do conhecimento. O hábito seria, então, o exercício da posse da capacidade do
conhecimento. Neste sentido, o intelecto poder alcançar a capacidade de segundo nível, como
indica De Anima III.4, é o mesmo que o homem possuir o hábito intelectual de apreensão dos
primeiros princípios, como diz Ethica Nicomachea VI.
O hábito e a potência de segundo nível são o que são porque, no intelecto, está atualizada
a forma apreendida do objeto, assim, a potência de nível dois é a atividade de uma atualização
que ainda é potência para atualizar-se plenamente e o hábito é a posse da forma do objeto em
atualidade que ainda pode se ativar no exercício pleno da atividade intelectual. Tanto a potência
de segundo nível quanto o hábito são um aperfeiçoamento da forma do intelecto,
aperfeiçoamento ainda incompleto que só se realizará plenamente quando estivar na atividade
de conhecimento.

4.3.1.5 De Anima III.4, 429b 10-22: o objeto do intelecto

A parte de De Anima III.4 que vai de 429b 10 a 22 define de maneira mais específica
qual é o objeto do νοῦς e de que forma e por qual parte da alma ele vem a ser discernido. Com
esta análise, Aristóteles continua a tarefa de determinar πῶς ποτὲ γίνηται τὸ νοεῖν, como vem-
a-ser o conhecer, atividade esta que deverá respeitar a condição natural do ente no modo em
que ele pode ser conhecido. Aristóteles distingue três tipos de objetos do intelecto e as
diferenças de modalidade em que, segundo o modo como eles estão para o ente, ele os deverá
apreender.
Foi dito que o intelecto é o lugar das formas. As formas são aquilo que o intelecto
apreende da essência dos entes. Os entes devem ser separados em dois grupo: 1) aqueles cuja
essência não se identifica com o ente ele mesmo; 2) aqueles entes que são eles mesmos a sua
essência. Os entes do primeiro grupo têm sua essência individuada por uma matéria e não
podem ser compreendidos como entes separados dela, como ocorre com os entes físicos e os
matemáticos. Já os entes do segundo grupo não têm uma matéria componente de seu modo de
ser, sendo, todos eles, iguais à sua essência. O intelecto, para apreender a forma dos entes de
176

cada um dos níveis, deverá subir no grau de abstração conforme o grau de separação e
independência em que as essências estiverem dispostas em relação à matéria. Assim, pode-se
concluir que o intelecto, apreendendo com cada vez mais precisão e abstração as formas dos
entes, aperfeiçoa ainda mais a sua atualização ao tornar-se a sua atividade mais próxima dos
princípios e o mais possível menos corpórea.
O trecho pode ser dividido em duas partes principais e uma frase final que, considerando
tudo o que foi dito, deduz uma última realidade concernente ao intelecto e as formas inteligíveis.
A primeira parte diz respeito ao modo de conhecimento dos entes físicos e como e por quais
partes da alma os objetos são distinguidos. A segunda segue a mesma questão, mas quanto aos
entes matemáticos. A frase final é o comentário que Aristóteles faz ao modo em que o intelecto,
conforme a natureza de cada ente, poderá pensar seus objetos.
A primeira parte diz:

“ἐπεὶ δ' ἄλλο ἐστὶ τὸ μέγεθος καὶ τὸ μεγέθει εἶναι, καὶ ὕδωρ καὶ ὕδατι εἶναι
(οὕτω δὲ καὶ ἐφ' ἑτέρων πολλῶν, ἀλλ' οὐκ ἐπὶ πάντων· ἐπ' ἐνίων γὰρ ταὐτόν
ἐστι), τὸ σαρκὶ εἶναι καὶ σάρκα ἢ ἄλλῳ ἢ ἄλλως ἔχοντι κρίνει· ἡ γὰρ σὰρξ οὐκ
ἄνευ τῆς ὕλης, ἀλλ' ὥσπερ τὸ σιμόν, τόδε ἐν τῷδε. τῷ μὲν οὖν αἰσθητικῷ τὸ
θερμὸν καὶ τὸ ψυχρὸν κρίνει, καὶ ὧν λόγος τις ἡ σάρξ· ἄλλῳ δέ, ἤτοι χωριστῷ
ἢ ὡς ἡ κεκλασμένη ἔχει πρὸς αὑτὴν ὅταν ἐκταθῇ, τὸ σαρκὶ εἶναι κρίνει.”217

“Uma vez que a grandeza e o ser segundo a grandeza são coisas diversas,
também a água e o ser segundo a água (assim também quanto a muitas outras
coisas, mas não quanto a todas; pois, quanto a umas, o ser é o mesmo), o ser
segundo a carne e a carne ou por outra coisa ou pela mesma coisa disposta
de outra maneira serão distinguidos. Pois a carne não é sem a matéria, mas
é como o adunco, isto nisto. Por um lado, pela faculdade sensitiva, o quente
e o frio, distingue, isto é, sendo a carne uma proporção. Portanto, por outra,
ou por uma [função] separada ou como a linha dobrada em um ângulo está
disposta em relação a si mesma quando esticada, distingue o ser segundo a
carne.” (tradução nossa)

4.3.1.5.1 Os diferentes tipos de ente

Antes de seguir para a análise do trecho, é melhor ser definir com mais precisão os
componentes dos dois grupos de entes. Pode-se encontrar vários trechos em Metafísica Λ nos
quais Aristóteles apresenta a diferença entre os entes que não coincidem com sua essência e
aqueles que ente e essência constituem uma mesma coisa. Todas as coisas que são consideradas
como matéria ou em união com ela ou, até mesmo, aquelas que constituem uma unidade

217
ARISTÓTELES; De Anima III.4, 429b 10-18.
177

acidental, não coincidem com a sua essência218. Estes entes unidos à matéria são os entes físicos
que existem concretamente na natureza. A essência é individualizada pela matéria concreta de
modo a gerar um composto com um princípio específico e um princípio material, o qual permite
ao ente se diferenciar nas propriedades acidentais dos outros indivíduos de sua espécie, como
Sócrates e Calias, Sócrates sentado e Calias de pé. O ente unido à matéria apresenta uma série
de singularidades concretas que não podem estar contidas na sua essência, a qual só exprime
aquilo que ele é especificamente sem incluir todas as variações acidentais que lhe são possíveis.
Os entes compostos assim são conhecidos primeiramente pela sensação, a qual abre ao
intelecto, através da imaginação, o acesso ao conhecimento da essência destes entes.
Similares a estes entes, outros entes há que também possuem matéria e que, por isso,
não coincidem com suas essências: são os entes matemáticos. A diferença entre eles e os entes
físicos é que, enquanto os primeiros são compostos de uma essência e uma matéria sensível, os
entes matemáticos possuem a matéria inteligível219 abstraída pelo intelecto. Os entes físicos
concretos são compostos de um corpo material suscetível ao movimento e à mudança,
apresentando qualidades sensíveis, como o calor, o frio, as cores, a aspereza e a maciez. As
propriedades acidentais elencadas pressupõem uma qualidade e uma quantidade, quanto ao
corpo, esta será continua e, quanto às qualidades, será discreta. Durante o exercício intelectual,
a νόησις, o estudante de matemática poderá abstrair cada uma das variações sensíveis concretas
até encontrar a matéria inteligível que as suportava e seguir com o conhecimento das grandezas
contínuas, a linha, e as demais figuras geométricas, como os triângulos, os círculos e os
quadrados. A individualidade de cada uma das formas geométricas irá variar dentro das
possiblidades de variação que a quantidade permitir.
Além destes dois entes, há aqueles que, não sendo compostos de matéria, coincidem
com suas essências, existindo simplesmente em si mesmos, identificando-se o ente e a essência.
Qual ou quais sejam estes entes, há uma variada de opções de opinião: Hamlyn220 diz que, sendo
a individualidade deles determinada pela forma ou essência, estes entes serão Deus e as
inteligências divinas apenas; Movia221 e Hicks222 afirmam que a identidade de ente e essência
se realiza nos conceitos transcendentais de ser, um, bem, etc.

218
Metafísica Λ.11, 1037a 32- 1037b 7.
219
Metafísica Λ. 10, 1036a 9-12.
220
Cf. Hamlyn, ad 429b 10, pg. 137.
221
Cf. Movia, ad 429b 10-22, pg 376.
222
Cf. Hicks, ad 429b 12, pg.486.
178

4.3.1.5.2 As distinções entre o ente e a essência

Aristóteles diz, então, que τὸ μέγεθος, a grandeza, e τὸ μεγέθει εἶναι, o ser segundo a
grandeza, isto é, a essência de grandeza, são coisas diferentes. Igualmente distintos são τὸ
ὕδωρ, a água, e τὸ ὕδατι εἶναι, o ser segundo a água, a essência de água. Com estes dois
exemplos, o filósofo indica, primeiramente, o reino dos entes matemáticos e, com o segundo, o
reino da física. A grandeza é um objeto matemático, alcançado com o trabalho de abstração a
partir das imagens fornecidas pelos sentidos. Por sua vez, a água, composto de matéria e forma,
é um ente concreto, passível de sofrer alteração nas suas qualidades ao interagir com outros
entes também concretos. O reino da física é o reino da multiplicidade dos entes singulares,
unificados segundo o princípio formal da essência de cada espécie.
A diferença entre ente e essência também ocorre com muitas outras coisa, não, porém, com
todas, pois, quanto a algumas, esta diferença não se verifica. Aristóteles não dá nenhum
exemplo de que coisas são estas nem muitos menos fornece algum nome. Ele se limita a indicar
que, quanto a algumas coisas, o ente e a essência são o mesmo. Seguindo a distinção que
fizemos acima, se pode dizer que estes entes são os entes imateriais, os quais não se individuam
pela matéria, constituindo-se unos por serem a própria essência que os define.
Esclarecidas estas diferenças, Aristóteles estabelece por qual função o homem deverá
distinguir cada um dos objetos, o ente e a sua essência. O trecho não é muito claro e requer mais
atenção. Retomo-o:

“τὸ σαρκὶ εἶναι καὶ σάρκα ἢ ἄλλῳ ἢ ἄλλως ἔχοντι κρίνει· ἡ γὰρ σὰρξ οὐκ
ἄνευ τῆς ὕλης, ἀλλ' ὥσπερ τὸ σιμόν, τόδε ἐν τῷδε. τῷ μὲν οὖν αἰσθητικῷ
τὸ θερμὸν καὶ τὸ ψυχρὸν κρίνει, καὶ ὧν λόγος τις ἡ σάρξ· ἄλλῳ δέ, ἤτοι
χωριστῷ ἢ ὡς ἡ κεκλασμένη ἔχει πρὸς αὑτὴν ὅταν ἐκταθῇ, τὸ σαρκὶ εἶναι
κρίνει”223

Há um momento em que aparece a fórmula ἀλλῷ - ἄλλως ἔχοντι κρίνει, por outra – pela
mesma disposta de outra forma distingue. Outra passagem se utiliza de uma fórmula
semelhante, que, no entanto, pode ser compreendida como uma sentença em que se precisa o
sentido da primeira fórmula. Há também uma fórmula que consta em uma frase mais à frente
no capítulo, a qual estudaremos mais adiante, que se assemelha a estas das duas passagens. A
fórmula é: ἑτέῳ ἢ ἑτέρως ἔχοντι κρίνει – distingue ou por uma diferente ou pela mesma disposta

223
ARISTÓTELES; De Anima III.4, 429b 12-18.
179

em maneira diferente. O sentido das três é análogo, o que deverá mudar é a referência que os
pronomes fazem. Elas aparecem nas passagens:

a) 429b 12-13: τὸ σαρκὶ εἶναι καὶ σάρκα ἢ ἄλλῳ ἢ ἄλλως ἔχοντι κρίνει – a essência da
carne e a carne distingue ou por outra ou pela mesma disposta de outra maneira
b) 429b 16-18: ἄλλῳ δέ, ἤτοι χωριστῷ ἢ ὡς ἡ κεκλασμένη ἔχει πρὸς αὑτὴν ὅταν ἐκταθῇ, τὸ
σαρκὶ εἶναι κρίνει – por outra, ou uma separada ou como a linha dobrada disposta
quanto a si mesma quando esticada.
c) 429b 20-21: ἑτέῳ ἄρα ἢ ἑτέρως ἔχοντι κρίνει – Então, distingue por uma diferente ou
pela mesma disposta de maneira diferente.
Em a) e b) a distinção é entre ἡ σάρξ e τὸ σάρκι εἶναι, entre o ente singular carne e a
essência de carne. Em c) a distinção é entre os entes que pertencem à realidade abstrata, τῶν ἐν
ἀφαιρέσει ὀντῶν, dos entes na abstração, isto é, é a distinção entre os entes matemáticos, as
figuras geométricas, e as suas essências.
O sujeito de κρίνει seria aquele que distingue carne e sua essência, a grandeza e sua
essência, é precisamente aquele que distingue, isto é, τὸ κρινοῦν. O termo não aparece na
passagem, gerando certa dúvida se seria ele mesmo o correto sujeito a quem atribuir as ações
de distinção ou se seria algum outro. Hicks224 acredita que, se τὸ κρινοῦν for considerado o
sujeito, a frase expressará a ideia de que é a mesma pessoa que julga e discerne, uma hora, ᾗ
αἰσθητικός, enquanto dotado de percepção, distinguindo os objetos sensíveis ao empregar a
faculdade sensitiva e, depois, ᾗ νοητικός, enquanto dotado da faculdade intelectual,
empregando o intelecto, distinguindo as formas e as essências dos entes. Com esta opção, se
evita atribuir duas atividades distintas ao νοῦς, como acabaria acontecendo se fosse adotada a
sugestão de Zeller, o qual via no νοῦς o sujeito de κρίνει.
Nas fórmulas, o dativo instrumental é um indicativo de que tanto o νοῦς quanto a
αἴσθησις são utilizados como instrumentos, como meios, para se realizar a distinção dos objetos.
Temos, então, ἄλλῳ se referindo a cada uma das faculdades, αἴσθησις e νοῦς, e ἄλλως ἔχοντι,
implica τῷ αὐῷ, pelo mesmo, e, portanto, indica que é pelo mesmo instrumento disposto em
maneira diferente, resultando numa leitura do tipo τῷ αὐτῷ ἄλλως καὶ ἄλλως ἔχοντι, pelo
mesmo instrumento disposto de uma forma aqui e outra ali.
Foi visto que, ao longo deste capítulo, a atividade do κρίνειν é uma referência recorrente
nos contextos em que Aristóteles discute as funções da alma pela qual o homem conhece algo

224
Cf. Hicks, ad 429b 13, pg. 486.
180

da realidade e distingue algo dos entes225. Ainda que a atividade de distinção e discernimento
ocorra quanto a objetos sensíveis e também a objetos inteligíveis, ela não é uma outra parte da
alma, diferente da sensação e do intelecto. À apreensão de uma forma, ou seja, ao se conhecer
algo da realidade, a atividade da distinção deve ocorrer coincidentemente, para que o objeto
seja conhecido de maneira precisa e seus limites não sejam dissolvidos e ele acabe sendo
confundido com outros objetos. Nesta passagem, Aristóteles, ao utilizar o termo κρίνειν para
indicar a relação que o homem estabelece quanto aos entes e às essências, ele está tomando
como pressuposto a premissa de que cada objeto é conhecido por uma função específica e por
esta vem-a-ser distinguido.
A dificuldade maior de compreensão se dá quanto à fórmula de a) e b). A leitura de c),
na verdade, é de que a estrutura é análoga ao uso da primeira fórmula, mas com outro referente.
São quatro as possibilidades de leitura da fórmula ἀλλῷ - ἄλλως ἔχοντι κρίνει e a quais partes
da alma ela se refere para indicar a autoria da realização da atividade de distinção. As leituras
3) e 4) supõem que a fórmula de 429b 16-17, ἄλλῳ δέ, ἤτοι χωριστῷ ἢ ὡς ἡ κεκλασμένη ἔχει
πρὸς αὑτὴν ὅταν ἐκταθῆ, τὸ σάρκι εἶναι κρίνει seja uma precisão da fórmula que inicia na 429b
12-13, τὸ σαρκὶ εἶναι καὶ σάρκα ἢ ἄλλῳ ἢ ἄλλως ἔχοντι κρίνει, que significa que existe uma
unidade de uso no qual são explicados dois modos distintos das mesmas faculdades. Fica então,
ἄλλῳ - ἤτοι χωριστῷ; ἢ ἄλλως ἔχοντι - ἢ ὡς ἡ κεκλασμένη ἔχει πρὸς αὑτὴν ὅταν ἐκταθῆ. Que a
percepção sensível perceba a carne singular nas qualidades físicas sensíveis do quente e do frio,
é algo evidente que não precisaria mais ser questionado. Quatro leituras possíveis são:

1) Distinguir a carne pela faculdade sensitiva, percebendo pelos sentidos as qualidades


físicas que um ente singular apresenta, tal como a temperatura quente ou fria do corpo,
e a essência da carne, através de outra faculdade, ou seja, através do intelecto. Esta
leitura é a mais simples e não dá conta da variação indicada por ἄλλως ἔχοντι.
1. τῆν σάρκαν τῷ αἰσθητικῷ - a carne pela faculdade sensitiva
2. τὸ σάρκι εἶναι ἄλλῳ (τῷ νοητικῷ) – a essência da carne por outra faculdade
(pela intelectual)
2) Distinguir a carne pela faculdade sensitiva e a essência da carne por outra faculdade ou,
então, pela mesma faculdade que percebe a carne, mas disposta de outra maneira. Neste
caso, o νοῦς seria a mesma faculdade que a ἄισθησις, mas disposta de maneira diferente
para apreender a forma do ente singular.
1. τῆν σάρκαν τῷ αἰσθητικῷ - a carne pela faculdade sensitiva.

225
Cf. De Anima III.3, 427a 21-22.
181

2. τὸ σάρκι εἶναι ἄλλῳ ἢ [τῷ αὐτῷ] ἄλλως ἔχοντι (τῷ αἰσθητικῷ ἄλλως ἔχοντι –
a essência da carne distinguida por outra ou pela mesma, disposta de outra
maneira.
3) Pela interpretação de Rodier226. Aristóteles faria uso ambíguo do termo σάρξ, indicando,
através dele, a carne in concreto, concreta, real e singular, e também a carne in
abstracto, abstrata, como a carne universal. A carne concreta seria conhecida somente
pela sensação e a carne abstrata e a essência de carne seriam conhecidas pelo intelecto
agindo de duas formas. O intelecto distinguiria a essência da carne como uma linha reta,
pois a apreensão da forma pura da carne é feita em um ato único somente quanto à
forma, sem matéria. A carne abstrata é distinguida pelo intelecto da maneira de uma
linha dobrada, pois, sendo a carne abstrata uma composição discursiva entre a forma
abstrata e uma matéria inteligível, o intelecto deve apreender a pluralidade de elementos,
dobrando-se sobre si. Ao distinguir a matéria da forma de um ente que não é dividido
na realidade, o intelecto trabalha de maneira dobrada sobre si, pensando como dividido
o que está unido na realidade, como o ponto, o qual une dois segmentos da linha
dobrada, é uno e duplo ao mesmo tempo.
1. τῆν σάρκαν τῷ αἰσθητικῷ (carne concreta) – a carne pela faculdade sensitiva.
τὸ σάρκι εἶναι τῷ νοητικῷ - a essência de carne pelo intelecto
2. τῆν σάρκαν τῷ νοητικῷ (carne abstrata) – a carne pelo intelecto
τὸ σάρκι εἶναι τῷ νοητικῷ - a essência de carne pelo intelecto
4) Pela interpretação de Santo Tomás de Aquino227. Distinguir a carne e a essência da carne
por duas funções que podem trabalhar de duas maneiras distintas. De um modo, a carne
e a essência da carne são discernidas por potências na alma completamente distintas; a
essência é discernida pelo intelecto e a carne pelos sentidos. Isso ocorre quando alguém
conhece a carne individual nela mesma e a natureza específica da carne nela mesma. De
outra maneira, a carne e a sua essência são discernidas, não por duas capacidades
distintas, mas por uma faculdade que as conhece de duas maneiras diferentes. Em um
modo, conhece a carne e, em outro, conhece a sua essência. Assim como seria
impossível para nós distinguirmos entre o doce e a brancura se não tivéssemos um
sentido comum que conhecesse ambas as qualidade de um vez, da mesma forma, não
poderíamos fazer nenhuma comparação entre o universal e o singular se não tivéssemos
uma faculdade que percebesse os dois ao mesmo tempo. Por isso que o intelecto percebe

226
Rodier, ad 429b 12-17, pg. 448-449.
227
St.Tomás de Aquino, ad 429b 10-18, §.712-713.
182

os dois de uma vez, mas de maneiras distintas. O intelecto tem como objeto próprio a
forma inteligível do ente carne, para a qual ele se dirige diretamente. Mas ele conhece
o ente individual indiretamente ou de maneira reflexiva ao retornar aos fantasmas, às
imagens, das quais ele abstraiu o que era inteligível.
1º. Funções distintas distinguem τῆν σάρκα e τὸ σάρκι εἶναι:

a) τῆν σάρκα τῷ αἰσθητικῷ - a carne pela faculdade sensitiva


b) τὸ σάρκι εἶναι τῷ νοητικῷ - a essência de carne pelo intelecto

2º. A mesma função distingue τῆν σάρκα e τὸ σάρκι εῖναι

a) τὸ σάρκι εἶναι τῷ νοητικῷ (ἄλλῳ) – a essência de carne pelo intelecto


b) τῆν σάρκα τῷ νοητικῷ (ἢ [τῷ αὐτῷ] αλλως ἔχοντι) – a carne pelo
intelecto (pela mesma, disposta de outra maneira)

Embora as duas últimas interpretações, a de Rodier e a de St. Tomás, sejam similares,


cada uma delas compreende a ação do intelecto na distinção da carne de maneira diferente.
Enquanto que Rodier explicitamente considera que a carne distinguida pelo intelecto é abstrata,
isto é, universal, consistindo num produto da atividade de abstração do mesmo intelecto, o que
faz com que a atividade referida pela figura de linguagem da linha dobrada seja a do próprio
intelecto, St. Tomás, aborda a atividade do intelecto em respeito à carne como uma atitude
reflexiva, pela qual, não à carne abstrata, que o intelecto prestaria atenção, dobrando-se sobre
si mesmo, mas faria uma reflexão quanto à origem do objeto do qual abstraiu a essência de
carne, isto é, quanto à imagem de carne. St. Tomás não diz se a carne a que se refere na atitude
reflexiva seria uma carne universal produzida pelo acúmulo das percepções singulares de cada
carne, ou se seria uma série de imagens singulares de carne, das quais o intelecto abstrairia a
carne universal, restando a ele a atividade de apreensão da essência de carne. A atitude reflexiva
descrita agora pode ser compreendida como um outro aspecto realizado quando o intelecto
pensa a si mesmo ao exercer em ato a sua atividade de pensar as formas apreendidas. Saber a
origem da forma que está pensando é reflexionar sobre a origem da atividade que pratica, saber
reconhecer que uma essência apreendida é diferente das imagens singulares de onde foi
abstraída é parte integrante de seu conhecimento. O intelecto dobra sobre si mesmo ao
reflexionar sobre seu objeto, o qual já é imaterial como forma pura intelectual.
A sensação, se limitada à compreensão de ser apenas a percepção dos singulares, parte
dos entes particulares, reunindo-os em uma imagem, a qual segue para servir de fonte inicial
183

para o intelecto agir, colocando-se, em contraposição à linha dobrada do intelecto, como uma
linha reta que não reflete sobre sua atividade e nem retorna sobre seus objetos.
Em 429b, 14-16, Aristóteles afirma que através da faculdade perceptiva, o homem
distingue o quente e o frio, sendo a carne uma certa proporção. A carne é uma proporção na
mistura entre elementos. O quente e o frio, duas qualidades não essenciais da carne, mas que
decorrem de sua composição, são percebidas pelos sentidos, especificamente pelo tato. Outras
qualidades sensíveis também se encontram na carne e são percebidas por outros sentidos. Na
passagem, ao citar θερμόν e ψυχρόν, os objetos próprios do tato, Aristóteles quis salientar que
é, quanto a estes objetos, a αἴσθησις a faculdade adequada para percebê-los, deixando supor que
a mesma avaliação vale também para as outras qualidades sensíveis, às quais a ação de
conhecimento sensível será, da mesma maneira, aplicada. Quando o filósofo introduz o ἄλλω
para se referir ao meio pelo qual o indivíduo e a sua essência são distinguidos, ele parece querer
designar com ênfase que deverá ser por outra faculdade que não a percepção, a qual conhece as
qualidade sensíveis, que a essência da carne deverá ser conhecida pelo intelecto.
A esta solução de St. Tomás poderíamos acrescentar ainda a possibilidade de a
percepção sensível também ser capaz de distinguir o universal do particular que ela percebe. A
afirmação de Analíticos Posteriores II.19, 100a 17 de que ἡ αἴσθησις τοῦ καθόλου ἐστίν – a
percepção sensível é do universal, serve para completar a necessidade de se conhecer, ainda
que ou indiretamente ou acidentalmente228, o correspondente distintivo do seu objeto próprio.
Tal como o intelecto, ao distinguir a essência de um ente, também deve saber aquilo do que ele
é distinto, ou seja, o particular individual, quanto ao qual também a αἴσθησις deve ser capaz de
distinguir o correspondente universal.
Hicks229, levando em consideração a explicação de Zeller de “que enquanto a simples
percepção dos dados dos sentidos pertença à αἴσθησις e não ao νοῦς, ainda que todo
julgamento sobre eles seja compartilhado pelo pensamento... Conceitos enquanto tais,
pensamentos universais, limitados a nenhuma experiência individual são conhecidos per se
pela razão, mesmo que os materiais fornecidos a ele são providos pela percepção dos sentidos”
(tradução nossa) e que conhecemos a carne e similares pelos sentidos e as formas e as
qüididades pelo intelecto, sugere que Aristóteles esteja querendo discutir se, afinal, os sentidos
e o intelecto são diferentes ou são a mesma faculdade disposta de outra forma. Aristóteles
estaria tentando responder à pergunta de 429a 11 sobre o grau de separação entre intelecto e as
outras faculdades, uma vez que ele já havia assumido que intelecto e sensação são diferentes

228
Cf. Metafísica Μ. 10, 1087a 19-21.
229
Cf. Hicks, ad 429b 13, pg. 487.
184

desde há muito com base no fato de que se encontram animais com percepção sensível e
carentes de intelecto.
Ocorre que, podemos pensar, Aristóteles em outras situações parece mesmo aproximar
sensação e intelecto, como vimos no início de De Anima III.3, ao compartilharem da capacidade
de distinção, e também no fato de a sensação ser apresentada como sendo capaz de apreender
o universal (An. Post.II.19, 100a 17) em cada ato de percepção, ainda que seja per accidens. A
aproximação poderá dever-se ao fato de, sendo o homem definido pela posse do intelecto, isto
é, ser homem é ser um ente cuja essência inclui a capacidade da atividade intelectual, o que
implica que a sua capacidade intelectual numa alma única integra sob si as outras atividades
das outras partes da alma. Desse modo, até mesmo a percepção será já direcionada no sentido
de uma atividade que dispõe o homem na atividade de apreensão intelectual das formas. Não
que a sensação as apreenda, mas ela disponibilizaria o material sensível, através da imaginação,
do qual o intelectual poderá apreendê-las de uma forma humana, isto é, a αἴσθησις forneceria,
já de forma unificada, os singulares arranjados numa unidade universal. A dificuldade no
entanto, é que mesmo a universalidade que pode ser fornecida pela percepção não é articulada
de maneira intelectual como é a feita pela apreensão da forma realizada pelo intelecto.
Depois de ter examinado o modo como o intelecto distingue os entes físicos, que são
concretos e unidos à matéria, e as suas essências, as quais não coincidem com os entes das quais
são essências, Aristóteles examina o modo como o intelecto distingue os entes matemáticos.

“πάλιν δ’ ἐπὶ τῶν ἐν ἀφαιρέσει ὄντων τὸ εὐθὺ ὡς τὸ σιμόν. μετὰ συνεχοῦς γάρ.
τὸ δὲ τί ἦν εἶναι, εἰ ἔστιν ἕτερον τὸ εὐθεῖ εἶναι καὶ τὸ εὐθύ, ἄλλο. ἔστω γὰρ δυάς.
ἑτέρῳ ἄρα ἢ ἑτέρως ἔχοντι κρίνει.”230

“Por sua vez, quanto aos entes abstratos, a reta é como o adunco, pois é unida
ao contínuo; enquanto que a sua essência, se são diferentes a essência da reta
e a reta, é outra coisa; que seja a díade. Então, o homem os distingue ou por
uma função diferente ou pela mesma disposta de um modo diferente.”
(tradução nossa)

As peculiaridades destes entes é que, apesar de serem entes unidos à matéria, esta, em
seus casos, não é uma matéria concreta, com qualidades sensíveis, perceptível pela sensação,
mas é uma matéria inteligível, abstraída das particularidades, uma que vale por muitas
semelhantes, ou seja, é já uma forma universal, que concentra em si a unidade de uma
multiplicidade de figuras concretas singulares. Por isso, a atitude do intelecto frente a estes

230
ARISTÓTELES; De Anima III.4, 429b 18-21.
185

entes deve ser diferente da relação estabelecida entre os entes físicos. A estes, o intelecto tem
acesso pelos sentidos, a aqueles, o intelecto é que os abstrai das imagens de vários entes
singulares aglutinadas na imaginação. Ou seja, o intelecto, em parte, fornece o material de
estudo para si mesmo, do qual poderá apreender a essência. Aristóteles se refere aos entes
matemáticos como estando ἐν ἀφαιρέσει, ou seja, na esfera da abstração, isto é, da abstração
dos elementos variáveis que cada ente particular detém, o que acaba por compor a esfera dos
entes da abstração intelectual. Os entes matemáticos, no entanto, compostos de matéria
abstraída, ainda que não tenham as singularidades da matéria, precisam existir numa matéria.
Por isso que, ainda neste caso, mesmo estando na esfera da abstração, a existência de um ente
matemático não coincide com a sua essência. A reta pode ser analisada em sua extensão, a
matéria contínua, e em sua essência, a díade, ou seja, sua essência lhe é algo diferente, porque
não tem matéria, só a reta a tem.
A terceira fórmula 429b 20-21: ἑτέῳ ἄρα ἢ ἑτέρως ἔχοντι κρίνει – Então, distingue por
uma diferente ou pela mesma disposta de maneira diferente é usada para se referir ao
conhecimento da essência dos entes matemáticos que, embora não existam separados da
matéria, são imateriais apenas no sentido abstrato, intelectual da palavra. A reta, estudada pela
geometria, é como o nariz adunco, estudado pela física: a linha é grandeza contínua e sua
essência deve existir na matéria, assim como a curvatura do nariz adunco existe no nariz
adunco. Um ente material, seja concreto seja inteligível, não pode existir apartado de sua
matéria, de modo que sua essência não pode coincidir com ele. Assim, será por uma faculdade
diferente que a essência da linha reta será conhecida, isto é, deverá ser conhecida pelo intelecto.
Mas o ente geométrico deve ser abstraído das imagens que a imaginação fornece, de modo a se
desfazer daquilo que é próprio da singularidade das figuras individuais dos entes físicos,
deixando permanecer somente as grandezas contínuas unificadoras dos entes concretos, seres
com grandezas particulares e definidas. O intelecto, então, deverá voltar-se para o ente abstrato,
imaterial, universal, da figura geométrica para poder conhecer a sua essência, fazendo a sua
atividade de apreensão das formas. A atitude do intelecto em relação à matéria inteligível, neste
caso, é semelhante à atitude da percepção quanto aos entes sensíveis: em um caso, a percepção
trabalha como recolhedora de sensações particulares e o intelecto apreende a sua essência; no
caso que se está discutindo, o intelecto faz o serviço de produzir a matéria de onde irá retirar o
conhecimento da essência, se colocando em duas atitudes frente ao objeto matemático, uma
como produtor do ente abstraído e outra como a faculdade que apreende a sua essência. Esta é
a atitude diferente do intelecto que Aristóteles indica na passagem, dizendo que ela é a mesma
faculdade em uma disposição diferente. Neste caso, a disposição diferente parece se referir
186

especificamente à atividade de abstração intelectual e à apreensão da forma, e não somente à


reflexão que o intelecto realiza sobre a origem imaginativa do ente do qual vai apreender a
essência.

4.3.1.5.3 Os níveis de atividade do intelecto

Por fim, na última linha da passagem, Aristóteles conclui o capítulo estabelecendo uma
atitude correspondente entre o intelecto e o modo de ser de cada um dos entes que compreende.
Ele diz: “ὅλως ἄρα ὡς χωριστὰ τὰ πράγματα τῆς ὕλης, οὕτω καὶ τὰ περὶ τὸν νοῦν.”231 – “E, de
maneira geral, como estão as coisas separadas da matéria, assim também estão separadas
quanto ao intelecto”, isto quer dizer que, para cada modo em que as coisas estão separadas da
matéria, será estabelecida uma atitude correspondente do intelecto. Os entes que coincidem com
suas essências e não estão de modo algum ligados à matéria são conhecidos somente pelo
intelecto. Quanto aos entes ligados à matéria, seja sensível ou inteligível, o homem não pode
nem mesmo pensa-los sem que imagine também a matéria com a qual estão ligados. Os entes
matemáticos, conhecidos em sua essência pelo intelecto, são ligados à matéria, não à matéria
concreta, mas à inteligível, abstraída pelo intelecto. Os entes físicos, embora possam ser
conhecidos em sua essência abstraindo-a de sua matéria concreta, não podem ser
compreendidos completamente abstraídos de sua matéria sensível, pois um homem é
compreendido como incluindo carne e osso, ainda que não seja este osso e esta carne concretos.
Para o conhecimento dos entes físicos, o intelecto serve-se da contribuição que os sentidos lhe
fornecem das impressões sensíveis e que a imaginação preserva. Portanto, o objeto próprio do
intelecto serão as essências dos entes, dos quais o intelecto deverá distinguir quando não forem
coincidentes no ser. E esta essência dos entes não será algo separado do ente do qual é essência,
mas existirá em cada um dos entes sensíveis. St. Tomás de Aquino232 faz um comentário
complementar a isso, dizendo que não são exatamente as formas inteligíveis os objetos do
intelecto, antes, elas são o meio pelo qual o intelecto conhece a essência dos entes, o seu
verdadeiro objeto. As formas inteligíveis são objetos do intelecto apenas quando este está
refletindo sobre si. O que o intelecto entende é o que constitui o assunto, o conteúdo, de uma
ciência e todas elas, à parte a lógica, têm como assunto de estudo realidades, coisas reais, e não

231
ARISTÓTELES; De Anima III.4, 429b 21-22.
232
Cf. St. Tomás de Aquino, ad 429b 18-22, §§.718-719.
187

idéias ou formas inteligíveis. A forma inteligíveis não são o que o intelecto entende, mas são
uma semelhança na alma, similitudo eius in anima, daquilo que ele de fato conhece.
Podemos dizer que três modos de apreensão do objeto foram considerados neste
capítulo: 1) os sentidos apreendem cada uma das qualidades sensíveis dos entes concretos; 2) o
intelecto apreende a forma dos entes que está ligada à matéria; 3) o intelecto apreende a forma
que não está ligada à matéria. Hicks salienta que antigos comentadores chegaram a utilizar as
expressões ὁ ἄυλος νοῦς, o intelecto não material, que apreende as ἄυλα εἴδη, as formas
imateriais, e ὁ ἔνυλος νοῦς, o intelecto material, o qual apreende as ἔνυλα εἴδη, as formas
materiais. O intelecto, de acordo com o tipo de objeto que irá conhecer, é considerado com um
determinado aspecto. Se conhece algo imaterial, é tomado como imaterial, isto é, como uma
função capaz de pensar um ente mais elevado em uma atividade mais elevada. Se conhece entes
materiais, a sua atividade será do nível de materialidade correspondente à concretude material
de seu objeto, o que significa um nível de atividade menos perfeito. Hicks233 compreende este
aspecto de variação do tipo de atividade do intelecto dizendo que o intelecto, em suas operações,
pode separar-se em um grau maior ou menor da matéria; em um grau menor, quando apreende
a noção singular a partir dos sentidos e da imagem através da abstração; em um grau maior,
quando o intelecto pensa aquilo que é comum às espécies e à essência específica. Nos dois
casos, o intelecto conhece o universal, embora no segundo os universais sejam mais altos dos
que os do primeiro caso.
O intelecto não está restrito a um tipo de forma e nem fixo a um grau apenas de atividade.
Conforme vai subindo no grau de abstração dos entes, ele intensifica também a sua própria
atividade de conhecimento. Pois o intelecto é o lugar das formas e se atualiza completamente
ao conhecer o mais que puder a forma. A forma que ele pode conhecer mais completamente é
aquela que não está restrita em seu conhecimento pela matéria, a qual não pode ser apreendida
pelo intelecto, e que é conhecida pelo intelecto e apenas por ele, sem dependência dos sentidos.
A cada grau de abstração, o intelecto conhece formas superiores e alcança patamares mais
elevados de universalidade, conhecendo cada vez mais o que é mais geral e comum aos seres.

233
Cf. Hicks, ad 429b 22, pg. 493.
188

4.3.1.5.4 Um comentário à possível relação entre ἐπαγωγή e


νόησις e o princípio das ciências

Aristóteles não se refere em momento algum no De Anima à atividade de indução,


ἐπαγωγή, a qual, como apresentada sobretudo nos Analíticos Posteriores, é a atividade pela qual
o intelecto pode galgar níveis superiores na apreensão de formas universais e princípios
primeiros. Toda ciência deve partir de princípios, os quais não podem ser apreendidos pela
mesma ciência que deles fará uso. Este é o papel do intelecto: apreender os princípios. Em
Metafísica Ε.1234, Aristóteles explica que as ciências se limitam a um determinado setor ou
gênero de ser e que desenvolvem a sua pesquisa entorno a isso. Ele ainda diz que as ciências
não se ocupam da essência, mas partem dela ou deduzindo-a da experiência ou tomando-a como
hipótese e seguem com a demonstração, com mais ou menos rigor, das propriedades que
pertencem ao gênero de ser que tomaram como objeto de estudo. Em seguida, depois de
distinguir as ciências entre práticas e teóricas, Aristóteles elenca a ciência física, aquela que
estuda os entes que possuem em si o princípio de movimento, depois a matemática, que estuda
os entes imóveis e não separados da matéria, e a teologia, que estuda o que é eterno, imóvel e
separado. Tratamos desta mesma variação de atitude do intelecto correspondendo à variação de
graus de ente, explicando que o conhecimento vai se alterando, ficando menos singular e mais
universal na medida em que o intelecto apreende a essência dos entes mais elevados. A
caminhada do intelecto na subida do mais particular para o mais universal é o meio de
conhecimento adequado ao homem. O lema aparece na Física I.1, 184a 15-17, dizendo que o
caminho de investigação deve começar por aquilo que nos é mais imediato e cognoscível e claro
para nós, em direção ao que é mais claro e mais imediatamente cognoscível por natureza. Cada
patamar de compreensão que o intelecto consegue alcançar com o conhecimento da essência de
uma ente corresponde a um tipo de ciência tal como descrita em Metafísica Ε.1. O caso parece
ser o mesmo em De Anima, Metafísica e na Física: o conhecimento dos entes vai se dando por
gradação, daquilo que é mais básico ao mais geral e que, em cada um desses níveis, uma ciência,
no sentido estrito, isto é, conhecimento demonstrativo, pode se iniciar.
A dificuldade surge quando a indução, como aparece nos Analíticos Posteriores II.19,
parece substituir a atividade da νόησις, a qual, segundo o De Anima, seria realizada pelo νοῦς
na mesma atividade de apreensão dos princípios da realidade. Enquanto o intelecto é descrito
no tratado sobre a alma como a função capaz de apreender a essência do ente mais elevado, as

234
Cf. Metafísica Ε.1.
189

categorias, os princípios, a partir dos quais pode se iniciar uma ciência, nos Analíticos, o νοῦς
é um hábito, uma ἕξις, dos primeiros princípios, os quais foram apreendidos por indução,
ἐπαγωγή, e não mais pela νόησις, a atividade do νοῦς, como visto no De Anima. A atividade de
indução é descrita como a extração do universal a partir dos particulares, como pode ser
atestado em algumas passagens235, como Tópicos 156a 4-6, em que diz procedendo (ἐπαγόντα)
dos particulares em direção ao universal e do conhecido em direção ao desconhecido. Assim,
o νοῦς, segundo o Analíticos Posteriores, realizaria a tarefa que, em De Anima III.4, foi dita ser
de extração, de abstração, de apreensão da essência dos entes, isto é, do que há de comum a
vários entes singulares, pela indução, ἐπαγωγή, e não por νόησις, a atividade do intelecto. No
entanto, o νοῦς nos Analíticos Posteriores II.19 seria apenas o hábito dos primeiros princípios
e não dos variados universais dos diversos graus de abstração como vimos agora em De Anima
III.4. Se realmente esta for a única possibilidade de compreensão do que seja o intelecto nos
Analíticos, então o resultado será uma incongruência entre a definição de intelecto e de sua
atividade nos dois tratados.
Nos Analíticos, Aristóteles especifica ainda mais a tarefa da ciência como sendo a de
revelar a causa de uma determinada coisa, isto é, dizer o seu por que, διότι, e não somente
indicar que ela é o caso, ὅτι. A demonstração da ciência segue mostrando a relação causal
existente entre dois entes estabelecida por um termo-médio que os unifica num princípio
universal. A ciência não pode ser a responsável por descobrir, entender, o que é este termo-
médio que unifica os dois outros termos, porque a sua atividade é a de mostrar a relação
existente entre eles três. Assim, se seguirmos o raciocínio de que a ciência deve partir dos
princípios conhecidos e que ela não admite falsidade e é a mais precisa capacidade intelectual
além do intelecto, pode-se concluir que, se é o intelecto que apreende os princípios, não pode
haver subordinação do intelecto à ciência e que ele deveria apreender apenas os primeiros
princípios. Esta dificuldade pode ser somada então às outras duas, o que geraria uma
impossibilidade de se ter, de fato, o domínio dos princípios da Física e da Matemática
totalmente ou sem antes tê-los recebidos a partir do resultado de uma demonstração da ciência
mais geral de todas, a qual parte dos primeiros princípios apreendidos pelo intelecto.
Além do que foi visto em De Anima III.4, 429a 10 – 429b 22, do νοῦς como faculdade
da alma que conhece as formas e apreende a essência dos entes, a isto podemos acrescentar que
a atividade do intelecto, aquela apresentada em Analíticos Posteriores, pode, no entanto, ser
entendida como compreendendo não apenas a apreensão dos primeiros princípios, mas também

235
As outras passagens seria: An. Post. 81b 2; Tópicos 105a 13, 108b 11 ss, 156b 14; Elen. Sof. 174a 34.
190

dos universais de vários níveis e de maneira bem semelhante à que indiquei ser a do intelecto
em De Anima III.4. Nos Analíticos Posteriores, como sugere o professo Lesher236, a atividade
do νοῦς pode ser realizada também no curso da investigação científica, progredindo em direção
aos primeiros princípios e não estar reservado apenas à sua última apreensão deles. Dessa
forma, se pode estabelecer uma preciosa ligação entre a νόησις, a atividade do νοῦς, e a extração
dos universais, isto é, a indução, a ἐπαγωγή.
No artigo The Meanigs of ΝΟΥΣ in the Posterior Analytics, Lesher toma a afirmação de
Aristóteles de que os primeiros princípios devem ser apreendidos por indução, pois o intelecto
os apreenderia da maneira como a percepção produz o universal e mostra que por apreender
os primeiros princípios se deva compreender também apreender o universal. Embora estas
operações sejam coisas diferentes, elas são, de alguma maneira, similares e análogas, pois a
primeira lida com a generalização a partir dos princípios particulares e a segunda com a
formação de conceitos. O primeiro universal terá sido apreendido quando um dos indivisíveis
estiver sedimentado no intelecto. Isso poderia se contrapor à apreensão do universal como
formação de conceito se καθόλου fosse entendido como conceito (concept) nos Analíticos
Posteriores e não como “um atributo que pertence a cada instância do sujeito” e, na ocasião,
também como um atributo que pertence a cada instância, essencialmente e como tal. Assim,
apreender o universal no sentido de καθόλου, que é evidente nos Analíticos Posteriores, quer
dizer apreender o princípio universal e não produzir conceitos. O autor do artigo nos
exemplifica: ver que todos os Xs são Ys, ou que X é W porque X é um Z, e todos os Zs são Ws.
Se esta ação é uma formação de conceito, ela deve ser exemplificada não por um homem que
está aprendendo o significado da palavra homem, mas pelo cientista que, ao desenvolver uma
definição científica da natureza do homem, demonstra que certos atributos são inerentes
essencialmente, necessariamente e universalmente ao homem.
Em seguida, Lesher, cita duas passagens nas quais vê a mesma descrição do processo
no qual a percepção produz o universal e diz para parar (ἵσταται) na espécie de animal, depois
em animal e, finalmente, pára quando o universal unitário foi alcançado que vê descrita também
na passagem de Analíticos Posteriores 100b 1-5. As duas passagens citadas são:

1) “Mas foi mostrado que nestas predicações substanciais nem os predicados


ascendentes nem os sujeitos descendentes formam uma série infinita; ex.
nem a série homem é bípede, bípede é animal, etc., nem a série que predica
animal de homem, homem de Calias, Calias de um outro sujeito como um

236
LESHER, James H.; The Meanigs of ΝΟΥΣ in the Posterior Analytics; in Phronesis, vol.18, nº1, 1973, pg. 44-
68.
191

elemento de sua natureza essencial, é infinita. (Analíticos Posteriores 83a


39-b 5)
2) Agora, todas as coisas existentes ou (1) são tais que não podem
verdadeiramente ser predicadas em um sentido universal de nenhuma outra
coisa (ex. Cléon e Calias a qualquer coisa que é individual e sensível), mas
outros atributos podem assim ser predicados delas (pois cada um dos dois
exemplos apenas citados é um homem e um ser animado); ou (2) são
predicados de outras coisas, mas outras coisas não são primeiramente
predicadas delas; ou (3) ambas são elas mesmas predicadas de outras
coisas e têm outras coisas predicadas delas (como ‘homem’ é predicado de
Calias e ‘animal’ de homem)... Deveremos explicar isso em outro lugar que
há também um limite superior para o processo de predicação (ἵσταταί
ποτε); por enquanto tomemos isto como resolvido. (Analíticos Primeiros,
43a 25-37)”237 (tradução nossa)

Então, segue Lesher raciocinando que, se a leitura estiver correta, não é o caso que se
esteja fazendo uma analogia entre a apreensão do universal e a apreensão dos primeiros
princípios, mas é um argumento em favor da tese de que os últimos são um tipo especial dos
primeiros. Ele conclui então dizendo que a indução é o meio pelo qual se chega aos primeiros
princípios porque é a indução que, em geral, nos supre com o conhecimento dos primeiros
princípios. Esta explicação da indução dos primeiros princípios seria, portanto, um corolário da
interpretação de que intelecto e indução são aspectos complementares da mesma atividade e
que o intelecto é um tipo de conhecimento que geralmente se tem dos princípios universais.
A interpretação de que intelecto e indução são dois aspectos da mesma atividade aparece
na página 58 do artigo e diz:

“A relação entre νοῦς e ἐπαγωγή se revela como uma relação


tipicamente aristotélica: há um atividade, apreender o princípio universal, mas
isso admite várias descrições; se referir a ela como um ato da νόησις é dar uma
caracterização epistemológica, enquanto que caracterizá-la como uma
ἐπαγωγή é falar de uma metodologia. Esta descrição do νοῦς e da ἐπαγωγή
coincide com a visão de Aristóteles de que a experiência nos provê com
princípios que nós nos esforçarmos para estruturar em forma silogística e que
compreende o νοῦς como a ‘fonte do conhecimento científico’, uma vez que é o
νοῦς que nos supri de tais princípios.”238 (tradução nossa)

237
Sigo a tradução do próprio Lesher, páginas 61-62: 1) Aristóteles, Analíticos Posteriores 83a 39-b 5: “But it has
been shown that in these substantial predications neither the ascending predicates nor the descending subjects
form an infinite series; e.g. neither the series, man is biped, biped is animal, etc., nor the series, predicating animal
of man, mano f Callias, Callias of a further subject as an element of its essential nature, is infinite”; 2) Aristóteles,
Analíticos Primeiros, 43a 25-37: “Now all existing things either (1) are such that they cannot be truly predicated
in a universal sense of anything else (e.g. Cleon and Callias and anything wich is individual and sensible), but
other attributes can be so predicated of them (for each of the two examples just quoted is a man and an animate
being); or (2) are predicated of other things, but other things are not first predicated of them; or (3) both are
themselves predicated of other things and have other things predicated of them (as ‘man’ is predicated of Callias
and ‘animal’ of man)... We shall explain eslwhere that there is also an upward limit to the processo f predication
(ἵσταταί ποτε); fot the presente let this be taken as assumed”
238
LESHER, James H.; The Meanigs of ΝΟΥΣ in the Posterior Analytics; in Phronesis, vol.18, nº1, 1973, pg. 58:
“The relation between νοῦς and ἐπαγωγή turns out to be a typically Aristotelian one: there is one activity, grasping
192

Dessa forma, podemos resolver a dificuldade, que apresentamos anteriormente, em


como fazer os dois tratados De Anima e Analíticos Posteriores, no que diz respeito ao intelecto,
à νόησις e à ἐπαγωγή, às ciências e às essências, se coincidirem e não se chocarem. A
interpretação de Lesher nos permite dizer que a apreensão dos princípios é uma atividade que
o intelecto deve exercer e que permite iniciar as outras atividades intelectuais. Como vimos, o
intelecto apreende a forma dos entes físicos primeiro e as suas qualidades sensíveis percebidas
permanecem na imaginação, da qual serão abstraídos os entes matemáticos. Destes entes, serão
apreendidas as suas essências. E assim por diante, até a apreensão da essência do ente sem
matéria, do universal, dos primeiros princípios, das categorias, etc.
Um dos pontos de que Lescher se serviu para conectar as atividades de apreensão dos
princípios e da apreensão do universal foi o de que a atividade de indução é uma progressão
que encontra término em uma unidade indivisível, ou seja, em um universal que unificava uma
multiplicidade de entes sob a mesma determinação geral específica. A apreensão dos
indivisíveis é exatamente o tema de De Anima III.6, no qual Aristóteles explica que atividade
primordial do intelecto é a apreensão do indivisíveis, a partir dos quais se poderá compor
proposições verdadeiras ou falsas, nas quais estão reunidas os objetos inteligíveis. Este capítulo
nos servirá, portanto, não apenas para solucionar esta dificuldade, mas como também nos
permitirá compreender de que forma todas as outras atividades do pensamento estão baseadas
na atividade primordial do intelecto de apreensão das formas. Assim, veremos como a alma do
ser humano se desenvolve intelectualmente para poder alcançar a felicidade na atividade da
sabedoria.
Na Ethica Nicomachea VI.6, Aristóteles também descreve o νοῦς como uma ἕξις, um
hábito, tal como aparece nos Analíticos Posteriores II.19, sem, no entanto, restringí-lo
explicitamente aos primeiros princípios. Neste capítulo da Ethica Nicomachea, a sua
caracterização é sobretudo a de ser uma capacidade239 de compreensão do que é verdadeiro,
que não cai jamais no erro e que é dos princípios. A descrição do intelecto na Ethica
Nicomachea, por aquilo que vimos até o momento, parece aproximar as duas descrições do

the universal principal, but it admits of various descriptions; to speak of it as an act of νόησις is to give an
epistemological characterization, while to characterize it as ἐπαγωγή is to speak of methodology. This account of
νοῦς and ἐπαγωγή coincides with Aristotle’s view that experience provides us with principles wich we then
endevour to estructure within syllogistic form, and it makes perfectly good sense of νοῦς as the ‘source of scientific
knowledge’ since it is νοῦς wich supplies us in general with such principles”.
239
Vimos já que o sentido de hábito, ἕξις, e capacidade, potência, δύναμις, se equivalem.
193

νοῦς, do De Anima e dos Analíticos Posteriores. Veremos que, com a explicação de Lescher e
análise de III.6, a aproximação será ainda maior.

4.3.1.6 O intelecto agente ou o νοῦς ποιητικός

Antes que possamos seguir para a análise do capítulo De Anima III.6, é preciso que seja
feita uma apresentação do elemento intelectual responsável por realizar a abstração das formas
inteligíveis das imagens dos entes presentes na alma humana.
Como a essência dos entes só se torna acessível a nós através da apreensão que fazemos
dos aspectos físicos e materiais dos entes quando fixadas as suas formas sensíveis na
imaginação, é necessário que algum princípio realize a operação de extração da forma que pode
ser conhecida destes entes. Aristóteles atribui esta tarefa ao intelecto, utilizando-se de metáforas
para explicar como realiza a sua função, e depois, esclarece qual é a sua natureza e as suas
propriedades, diferenciando-o do intelecto em potência.

“Ἐπεὶ δ' [ὥσπερ] ἐν ἁπάσῃ τῇ φύσει ἐστὶ [τι] τὸ μὲν ὕλη ἑκάστῳ γένει (τοῦτο
δὲ ὃ πάντα δυνάμει ἐκεῖνα), ἕτερον δὲ τὸ αἴτιον καὶ ποιητικόν, τῷ ποιεῖν πάντα,
οἷον ἡ τέχνη πρὸς τὴν ὕλην πέπονθεν, ἀνάγκη καὶ ἐν τῇ ψυχῇ ὑπάρχειν ταύτας
τὰς διαφοράς· καὶ ἔστιν ὁ μὲν τοιοῦτος νοῦς τῷ πάντα γίνεσθαι, ὁ δὲ τῷ πάντα
ποιεῖν, ὡς ἕξις τις, οἷον τὸ φῶς· τρόπον γάρ τινα καὶ τὸ φῶς ποιεῖ τὰ δυνάμει
ὄντα χρώματα ἐνεργείᾳ χρώματα.”240
“Uma vez que, como em todas as coisas da natureza, há algo que, por um
lado, é a matéria para cada gênero de coisa (e esta é em potência todas as
coisas daquele gênero), por outro lado, diferente é a causa, isto é, a produtiva,
pela qual produz todas as coisas, como a técnica em relação à matéria
trabalhada, é necessário que também na alma se encontrem estas diferenças.
Há, por um lado, este tipo de intelecto, o qual vem-a-ser todas as coisas, e,
por outro lado, o intelecto o qual produz todas as coisas, como um certo
hábito como a luz. Pois de certa maneira a luz faz as cores em potência, cores
em atualidade.” (tradução nossa)

Primeiramente, Aristóteles descreve o intelecto pela metáfora da produção técnica e a


complementa com uma comparação dele com a luz. A metáfora da técnica segue como: 1) tal
como na natureza há um fator que é a matéria de um gênero, a qual é em potência todas as
coisas particulares que se incluem neste gênero; 2) e há o fator que opera como uma causa
produtiva ativa, produzindo todas as coisas, como a arte trabalha a matéria de seu produto.

240
ARISTÓTELES; De Anima III.5, 430a 10-17.
194

Assim, então, como na natureza, na alma também há estas diferenças entre a causa material e a
causa produtiva. Por um lado, há o intelecto que serve como a causa material, pois é ele que
vem-a-ser todas as coisas, isto é, vem-a-ser todas as formas que apreende. Por outro lado, há o
intelecto que faz as vezes de causa produtiva, fazendo, como na arte, a operação do artista de
fazer, tabalhando o material, a produção de todas as coisas, isto é, produzir todas as formas que
o intelecto material irá se tornar. Assim, há o intelecto como potencialidade na qual todas as
formas inteligíveis podem ser atualizadas, tornando-se, como um produto de arte, o resultado
do trabalho de um artista, e há o outro intelecto, pela ação do qual todas estas formas inteligíveis
são atualizadas, trabalhando como um artesão que sabe extrair da matéria bruta e disforme a
obra de arte que estava escondida nela. Este úlimo tipo de intelecto passou a ser conhecido na
tradição de estudo aristotélica como intelecto produtivo ou νοῦς ποιητικός. Neste texto, prefiro
me referir a ele mais precisamente como intelecto agente, embora eu não desconsidere como
adequada a opção por intelecto produtivo.
Aristóteles compara o intelecto agente à luz, capaz de fazer com que a cor em potência
possa ser atualizada no meio e alcançar a visão, atualizando-se plenamente como cor e fazendo
surgir a visão da cor, tal como faz o intelecto agente, permitindo que as formas sejam feitas
inteligíveis para a apreensão do intelecto passivo.
A este modo de ser como a luz do intelecto agente, Aristóteles identificou como uma
ἕξις, isto é um hábito. O sentido de ἕξις aqui usado evidentemente não tem o sentido de hábito
ou da potência de segundo nível à qual ascende o intelecto em potência, os quais são alcançados
somente depois que o intelecto em potência apreendeu as formas inteligíveis. O que Aristóteles
quer justamente mostrar é que o intelecto agente é o responsável pela apreensão das formas
pelo intelecto potencial, o que implica ele ser responsável também pelo hábito ou a potência de
segundo nível, significando, assim, que ele não é o hábito neste sentido. A ἕξις aqui está sendo
usado no sentido de um estado de presença de uma forma contraposta à privação potencial. Por
isso, o intelecto produtivo é uma atualidade como a ἕξις que se contrapõe à pura potencialidade
do intelecto potencial. O intelecto em potência, sendo pura potência, não poderia, sem que
houvesse um intelecto em atualidade, apreender as formas inteligíveis, pois não é capaz de
extraí-las das imagens sensíveis dos entes em que estão. Somente o intelecto agente, atual, é
capaz de iluminar a essência dos entes, fazendo-as saírem da escuridão confusa em que estavam
mergulhadas nas imagens dos sentidos. Tal como a luz faz uma cor em potência tornar-se cor
em ato iluminando o meio e fazendo-o transparente para que a cor alcance a vista e seja
atualizada a visão da cor, assim também o intelecto produtivo ilumina o elemento formal dos
195

entes, fazendo com que a essência de cada um dos entes possa aparecer, destacando-se da
imagem, podendo ser apreendida pelo intelecto em potência.
Depois de ter estabelecido a comparação entre os dois intelectos, Aristóteles segue para
a apresentação das propriedades do intelecto agente: “καὶ οὗτος ὁ νοῦς χωριστὸς καὶ ἀπαθὴς
καὶ ἀμιγής, τῇ οὐσίᾳ ὢν ἐνέργεια· ἀεὶ γὰρ τιμιώτερον τὸ ποιοῦν τοῦ πάσχοντος καὶ ἡ ἀρχὴ τῆς
ὕλης.”241 – “E este intelecto é separado e impassível e não-misturado, sendo em atividade por
essência. Pois sempre o que produz é superior ao que sofre, assim é o princípio superior à
matéria.” (tradução nossa). Todas as três propriedades apresentandas como pertencentes ao
intelecto em potência também pertencem ao intelecto agente, isto é, ele também é separado,
impassível e não-misturado. A diferença é que ele, em essência, é atual, em atividade. O
princípio produtivo é superior ao princípio material, que sofre a ação do primeiro, e o intelecto
em potência está para o intelecto agente como a matéria a ser trabalhada pelo princípio
produtivo. Como foi visto que o intelecto em potência é separado, impassível, não-misturado,
o intelecto agente necessariamente assim também deve ser. O intelecto agente será superior ao
intelecto em potência, justamente, por ser em ato enquanto que o outro é em potência.
O fato do intelecto agente ser em ato enquanto o intelecto em potência é em potência
pode gerar uma interpretação segundo a qual há dois intelectos pelos quais o homem pensa,
sendo que o intelecto agente seria algo separado como uma substância independente, graças a
atualidade da qual o homem seria capaz de apreender as formas. Mas não é correta esta
interpretação, pois, neste caso, a natureza humana não seria suficiente para completar a própria
operação de intelecção, a qual conduz à sua completa perfeição natural do ser humano, estando
sempre dependente de um princípio externo. Além disso, é o homem mesmo que apreende as
formas extraídas do material imaginativo apreendido pelos seus próprios sentidos. Apenas o
homem particular tem acesso à sua própria imaginação, da qual abstrai as formas. Se o princípio
do intelecto agente fosse algo externo ao homem particular, teria que ter acesso desde fora à
imaginação, à alma humana, para abstrair as formas inteligíveis. Mas é a própria alma do
homem particular que realiza estas operações. No homem, há o intelecto em potência e o
intelecto agente.
Disto surge uma segunda dificuldade: Aristóteles designou como a função pela qual o
homem conhece o intelecto e mostrou que deve haver o intelecto em potência e o intelecto
agente; como poderia a mesma função ser ativa e em potência em relação ao mesmo objeto,
isto é, em relação à essência dos entes, a qual apreende quando as conhece? Não haveria aí uma

241
ARISTÓTELES; De Anima III.5, 430a 17-19.
196

espécie de duplicidade de uma mesma coisa, sendo ao mesmo tempo em ato e em potência? Na
verdade, esse é uma questão de perspectiva em que se encara a questão. O intelecto é uma
função da alma, uma capacidade que o ser-humano possui de conhecer as coisas, conseguindo,
através dos dados que lhe chegam pelos sentidos, descobrir a essência de cada coisa, a essência
que estava contida no material fornecido pelos sentidos que poderia apenas ser trazido à luz
pela capacidade intelectual. O intelecto agente é a potência que o homem tem de tornar a forma
do ente apreensível para o intelecto em potência.
St. Tomás de Aquino242 diz que seria mais fácil se for compreendido como o intelecto
em potência está em potência em relação aos objetos inteligíveis e como estes estão em potência
em relação ao intelecto agente. Em relação ao intelecto em potência, os objetos inteligíveis são
formas definidas, as quais podem ser apreendidas pelo intelecto em potência, o qual é, em
relação aos objetos inteligíveis ainda não apreendidos, ainda indefinido. Assim, tal como uma
folha de papel é indefinida antes que as letras definidas sejam nela escritas, também, desta
maneira, será o intelecto em potência indefinido antes de apeender as formas inteligíveis
definidas, atualizando-se como potência de compreensão intelectual. Neste sentido, o intelecto
agente não é em ato, isto é, ele não é atualizado como potência que apreendeu as formas
definidas dos objetos inteligíveis, pois caso assim fosse, o intelecto em potência apreenderia as
formas diretamente dele e não das imagens abstraídas dos entes.
Em relação ao intelecto agente, o objeto inteligível é indefinido antes que o intelecto
agente o faça definido como forma abstraída da imaginação, imaterializando-a e fazendo-a
capaz de ser apreendida pelo intelecto em potência. Assim, em relação ao intelecto agente o
objeto inteligível está em potência e o intelecto agente, em ato. St. Tomás explica que o que faz
o intelecto agente em relação aos objetos inteligíveis é o fato de ele ser uma “força imaterial
capaz de assimilar outras coisas a si mesmo, isto é, de imaterializá-las”243 (tradução nossa).
Foi dito por Aristóteles que o intelecto agente é uma ἕξις compreendida como forma; o intelecto
em potência foi comparado à matéria de um artista, sendo em potência para apreender as formas
inteligíveis. Se pode entender, então, que a própria função do intelecto na alma, sendo já a
atualidade de uma forma determinada, é já a atualidade do intelecto agente, o qual, como
explicou St. Tomás de Aquino, é uma força capaz de tornar outras coisas igual si,
imaterializando-as, tornando-as capazes de serem entendidas e assimiladas como formas
inteligíveis. Neste sentido, o intelecto humano é esta capacidade de imaterializar as coisas e
apreende-las.

242
Cf. St. Tomás de Aquino, Commentary on Aristotle’s De Anima, De Anima III.5, lição X, §.737-739.
243
AQUINO, St. Tomás de; Commentary on Aristotle’s De Anima, De III.5, lição X, §.739.
197

4.3.2 2ª Parte: De Anima III.6: duas atividades do νοῦς

O capítulo III.6 é dividido em duas partes principais. Na primeira, Aristóteles distingue


dois tipos de atividade do intelecto: a atividade de apreensão dos chamados indivisíveis, isto é,
das noções singulares e simples; e a atividade de composição ou divisão das noções, isto é, uma
atividade discursiva de produção de juízos. Na segunda parte, são apresentados os tipos de
unidades indivisíveis que existem segundo a quantidade, a espécie e o limite e conclui
retomando a distinção entre o valor das operações dos intelecto. A primeira conclusão é que o
primeiro tipo de atividade é sempre verdadeira e não admite falsidade e a outra diz que o
segundo tipo de atividade intelectual pode ter como resultado um juízo verdadeiro ou falso,
mesmo que positivo ou negativo.
Aristóteles começa o capítulo dizendo que:

“Ἡ μὲν οὖν τῶν ἀδιαιρέτων νόησις ἐν τούτοις περὶ ἃ οὐκ ἔστι τὸ


ψεῦδος, ἐν οἷς δὲ καὶ τὸ ψεῦδος καὶ τὸ ἀληθές σύνθεσίς τις ἤδη νοημάτων
ὥσπερ ἓν ὄντων – καθάπερ Ἐμπεδοκλῆς ἔφη “ᾗ πολλῶν μὲν κόρσαι
ἀναύχενες ἐβλάστησαν”, ἔπειτα συντίθεσθαι τῇ φιλίᾳ, οὕτω καὶ ταῦτα
κεχωρισμένα συντίθεται, οἷον τὸ ἀσύμμετρον καὶ ἡ διάμετρος – ἂν δὲ
γενομένων ἢ ἐσομένων, τὸν χρόνον προσεννοῶν [καὶ] συντίθησι. τὸ γὰρ
ψεῦδος ἐν συνθέσει ἀεί· καὶ γὰρ ἂν τὸ λευκὸν μὴ λευκὸν <φῇ, τὸ λευκὸν
καὶ> τὸ μὴ λευκὸν συνέθηκεν· ἐνδέχεται δὲ καὶ διαίρεσιν φάναι πάντα.
ἀλλ' οὖν ἔστι γε οὐ μόνον τὸ ψεῦδος ἢ ἀληθὲς ὅτι λευκὸς Κλέων ἐστίν,
ἀλλὰ καὶ ὅτι ἦν ἢ ἔσται. τὸ δὲ ἓν ποιοῦν ἕκαστον, τοῦτο ὁ νοῦς”244.

“A intelecção dos indivisíveis diz respeito àquelas coisas


quanto as quais não há o falso; naquelas em que há o falso e o
verdadeiro, há já uma síntese dos inteligíveis como uma unidade dos
entes – ao modo como disse Empédocles: “de onde muitas cabeças sem
pescoço nasceram”, depois foram reunidas pelo Amor; assim também,
estas coisas, antes separadas, são compostas, como a
incomensurabilidade e a diagonal. Pensando-se nas coisas que foram
ou nas que serão, a noção de tempo é acrescentada. De fato, o falso
está sempre na síntese, pois ainda que se afirme o branco ser não-
branco, o branco e o não-branco foram combinados. É possível chamar
todas estas operações divisão. Mas, de qualquer forma, falso ou
verdadeiro não é apenas que Cléo é branco, mas que ele era ou será.
O que produz a unidade em cada caso é o intelecto.” (tradução nossa)

O tema do capítulo III.6 é a ἡ τῶν ἀδιαιρέτων νόησις, isto é, a intelecção do que é


ἀδιαίρετος. O termo grego pode ser traduzido tanto como indivisível quanto indiviso, tendo a
amplitude necessária para dar conta da referência dos vários sentidos que ele comporta. Assim

244
ARISTÓTELES; De Anima III.6, 430a 26- 430b 6.
198

se pode dizer que são uma unidade aquilo que não pode mais ser dividido além do que já foi
sem perder a sua identidade e aquelas que, tendo sido compreendidas em sua unidade, podem
ainda, no entanto, serem divididas em outras unidades mais simples e superiores na ordem do
ser. Indivisível pode se referir também àquilo que é não indiviso em ato mas é, ainda em
potência, divisível, como a reta que, tomada como uma grandeza una em ato, pode ser dividida
em infinitas partes. Hicks considera que Aristóteles toma como certa esta capacidade do
intelecto pensar os indivisíveis e tenta, na verdade, discutir os vários meios com os quais isso
vem a cabo. Mas, como foi visto no capítulo III.4, a capacidade do intelecto pensar os
indivisíveis é da sua natureza, apesar de Aristóteles não ter indicado que a intelecção dos νοητά
são a apreensão dos indivisíveis. O comentador complementa o que disse, afirmando que
Aristóteles está lidando com unidades (units or unities) e que ἀδιαίρετον, indivisível, são apenas
um termo mais preciso para o vago e ambíguo ἕν, um245.O que seria, então, a unidade que está
implícita neste capítulo o indivisível equivale a ela?
O uno e o múltiplo estão dispostos entre si como o indivisível está para o divisível. Tudo
o que é dito uno é indivisível e tudo o que é dito múltiplo é divisível. A essência do uno é ser
algo indivisível, como algo particular e determinado, podendo ser separável pelo lugar, pela
forma ou pelo pensamento. O uno é oposto por contrariedade ao múltiplo assim como o
indivisível é oposto por contrariedade ao uno. Para nós seres humanos, cujo primeiro contato,
a relação mais eminente com a realidade, é através dos sentidos, os quais nos fazem conhecer
a multiplicidade dos entes e suas mais variadas qualidades, o divisível e o múltiplo são mais
evidentes, acessíveis e são conhecidos primeiro e, através deles, conhecemos os seus contrários,
o uno e o indivisível246. Em sentido absoluto, porém, o indivisível e o uno são anteriores e mais
simples do que o múltiplo e o divisível.
No capítulo III.4, vimos que o intelecto tem como objeto próprio a essência dos entes,
os quais se dividem em três tipos de acordo com a relação com que a sua essência tem com a
matéria. A matéria é o princípio que singulariza uma essência em um ente, resultando no fato
que a essência é diferente do ente que ela define. Os entes físicos e os matemáticos são
exatamente aqueles em que suas essências não lhe são coincidentes pois estão ligados à matéria,
os primeiros à matéria concreta, o que lhes confere uma individualidade e qualidades que o
distinguem como únicos dentro da ampla variação de integrantes de cada espécie, e os outros
são entes que, ligados à matéria inteligível, isto é, àquela abstraída da matéria concreta, variam
apenas segundo a grandeza e o formato.

245
Cf. Hicks, pg. 510.
246
Cf. Metafísica Ι.3, 1054a 20-29.
199

O homem pode vir a conhecer estes entes em suas definições através de seu intelecto,
quando ele apreende as formas inteligíveis, τὰ νοητὰ, de cada um a partir da multiplicidade dos
dados que os sentidos lhe fornecem, apresentando-lhe os inúmeros entes em suas singularidades
e variações acidentais, unificados, no entanto, pela presença de uma essência comum a cada
espécie. A primeira unidade indivisível que o homem consegue perceber é a substância
individual, isto é, um homem concreto, particular, um cachorro concreto, uma cadeira
determinada. A unidade que compõe os entes particulares físicos é a unidade da substância
composta de matéria e forma, na qual estão coincidentes os acidentes e a variação singular das
qualidades de cada indivíduo. A unidade substancial das coisas materiais são o primeiro nível
de indivisibilidade acessível ao homem pelos sentidos.
Os entes físicos podem constituir uma unidade quando a noção (λόγος) que exprime a
essência de um ente é indivisível da noção que exprime a essência de outro247. Poderão compor
uma unidade segundo a espécie à qual pertencem, como a unidade dos entes que são cachorros,
ou dos que vacas, se a definição de um for indivisível, isto é, indistinguível da definição do
outro. A noção que os une é a essência, a qüididade, comum a eles, que os identifica como
membros de uma mesma espécie. Uma definição, no entanto, pode ser divisível em gênero e
diferença específica, de modo que, ao ser analisada pelo intelecto, pode vir a ser separada em
suas partes até que se alcance outro patamar de unidade e indivisibilidade. Se nos referirmos ao
homem como animal racional, poderíamos dissolver esta definição em animal e racional, tomar
o gênero animal como nova unidade e seguir para uma nova análise de definição.
Os indivisíveis, neste capítulo, portanto, são os νοητά, como vimos em III.4 como os
objetos do intelecto, e são imateriais. Os entes físicos só podem ter as suas essências conhecidas
quando elas forem abstraídas da matéria que compõe cada ente individual. A essência, sendo
imaterial, será apreendida intelectualmente como uma unidade em si mesma que, no entanto,
pode vir a ser decomposta em suas partes e analisadas em outras unidades superiores. Os entes
matemáticos são entes abstraídos dos entes particulares que, no entanto, não poderiam ser
pensados em suas essências sem a matéria inteligível que os compõe. O intelecto, assim, deveria
pensá-los como compostos em sua matéria inteligível e a sua essência, tomando-os como algo
indivisível, ainda que se possa, posteriormente pensar a essência separadamente da matéria.
Sendo o objeto do capítulo os indivisíveis, Aristóteles tratará dos modos em que eles são
apreendidos e das outras atividades possíveis de serem realizadas a partir da sua presença no
intelecto. Duas são as atividades: a primeira e original é a apreensão dos νοητά e a segunda é a

247
Cf. Metafísica Δ.6, 1016a 32-35.
200

atividade de composição ou divisão dos νοητά que gera um julgamento ou afirmativo ou


negativo, podendo ser verdadeiro ou falso. No primeiro tipo de operação, como ela tem como
objetos os indivisíveis, as formas, as quais são em ato e não perecem, não se geram e nem se
alteram, ou se apreende a forma ou não, nela não havendo espaço para a falsidade. A verdade
ou falsidade na apreensão dos objetos não está em produzir enunciados compostos verdadeiros
ou falsos. A sua verdade e falsidade se devem à apreensão ou não da forma indivisível.
Aristóteles explica em Metafísica Ε.4248, o que será reforçado em De Anima III.6249, que o
verdadeiro e o falso não estão nas coisas, as quais são ou não são de determinado modo, mas
estão no pensamento, ἐν διανοίᾳ, isto é são os modos de ser dos produtos da atividades
discursiva do intelecto. Quando se pensa naquilo que é simples e que não está unido a nada,
quando o intelecto apreende as essências e as formas, neste caso, o pensamento não pode
introduzir a verdade ou a falsidade, pois quanto àquelas coisas que são simples250 e que são
realmente, περὶ δὲ τὰ ἁπλᾶ καὶ τὰ τί ἐστίν, o verdadeiro e o falso não estão nem mesmo no
pensamento, οὐδ’ ἐν διανοίᾳ, isto é, o pensamento não trabalha sobre elas para que disso surja
a verdade ou a falsidade. A verdade e a falsidade destas coisas simples e indivisíveis são modos
de ser dos entes do pensamento dianoético ao dizer respeito à essência dos entes, a sua
apreensão intelectual e a composição ou separação de predicados251.

4.3.2.1 Os modos de ser verdadeiro e falso do intelecto: apreensão,


composição e separação

Aristóteles explica melhor o que seja o verdadeiro e o falso quanto ao que é composto
ou separado e ao que é indivisível em Metafísica Θ.10. Primeiramente, ele explica o caso das
coisas que podem ser combinadas e separadas no intelecto e, depois, ele explica a apreensão
das formas, as quais são combinadas na realidade, mas que são apreendidas separadamente
como indivisíveis. Quanto ao primeiro caso, ele faz a distinção entre dois tipos de operação
cujo modo de ser verdadeiro e de ser falso corresponderá ao modo de ser do ente real quanto
àquilo que pensa e enuncia. O intelecto trabalha na composição ou na separação das noções que

248
Cf. Metafísica Ε.4, 1027b 17- 1028a 1.
249
Shields, ad 430a 26-b 6, pg.332, indica também De Interp. 16a 9-11 e 18a 13-17; Hamlyn, ad 430a 26, pg. 142,
indica De Interp. 16a 9 e ss., Met. 1012a 2 ss., 1027b 17 ss., 1051b 1 ss.
250
Coisas simples, τὰ ἁπλᾶ, equivale a coisas indivisíveis, ἀδιαίρετα, em De Anima III.6.
251
Posteriormente deveremos explicar o que seja a διάνοια, o pensamento discursivo, e como ele está articulado
com a função intelectual da alma. Por enquanto, diremos que διάνοια é um termo que se refere a várias operações
intelectuais do mesmo tipo, pelas quais são tomadas noções singulares e trabalhadas em síntese ou na análise.
201

na realidade estão compostas ou separadas. Separada, neste caso, se refere, não à qualidade
indivisível da noção, mas à impossibilidade de um enunciado ser proferido como predicado de
um sujeito ou estar junto a outro predicado seu contraditório: Sócrates não pode estar junto a
asno como sujeito e predicado e nem branco junto a preto como dois predicados de uma mesma
coisa num mesmo sentido. Depois, o filósofo apresenta um segundo tipo de enunciado cujo ser
verdadeiro ou falso pode alterar-se, porque a realidade à qual se refere pode também se alterar
e aquilo que uma vez estava combinado pode, em outro momento, vir a estar separado.
Quanto às coisas unidas e separadas, o ser como o verdadeiro, o dizer a verdade,
ἀληθεύειν, consiste em pensar e em dizer, quanto ao que está unido na realidade, que ele está
unido, e quanto ao que está separado, que está separado. Por exemplo, se dissermos que o
homem é um animal, ou que a diagonal é incomensurável, estaremos na verdade, porque, na
realidade, tanto o homem é animal quanto a diagonal do quadrado é incomensurável. Ou, se
alguém disser que o Sócrates não é um asno, também estará na verdade, porque o predicado
asno não está, na realidade, unido a Sócrates. E ser como o falso, estar enganado, ἔψευσται,
consiste em pensar de maneira contrária, isto é, consiste em dizer que o que está unido na
realidade está separado e que o que está separado, que está unido. Como quando alguém diz
que homem não é animal ou que o Sócrates é um asno estará no falso.
St. Tomás de Aquino252 explica que a causa da verdade ou da falsidade estarem
presentes na proposição e no pensamento deve ser traçada até a disposição da coisa sobre a qual
foram proferidos os juízos. Assim, na combinação, na σύνθεσις, o intelecto toma duas noções,
uma das quais é a forma e a outra se relaciona com ela estando nela presente como predicado.
Devendo ser a causa da operação do intelecto rastreada até a coisa real, então as substâncias
compostas, isto é, as substâncias materiais, individuais com predicados, a combinação ou a
separação de matéria e forma ou também a combinação e a separação de sujeito e acidente,
deve servir como fundamento e causa da verdade e da falsidade na combinação e na separação
no pensamento e expressos numa proposição. Por exemplo, na proposição de que Sócrates é
homem, a sua verdade é causada pela combinação da forma humanidade com a matéria
individual, por conta da qual, Sócrates é este homem; se alguém disser que homem é branco, a
causa da verdade desta enunciação é a combinação de brancura com o sujeito. Isso é similar
em outros casos e também nos casos em que há separação. Como Aristóteles diz, não é pelo
fato de pensarmos que alguém seja branco, que ele assim o será, mas porque ele é branco e
afirmamos isto, que estaremos na verdade.

252
Cf. St. Tomás de Aquino, Comentário à Metafísica Θ.10, 1051a 34-1052a 11, lição 11, §.1898.
202

Se combinação e a separação das coisas são a causa da verdade e da falsidade no


pensamento e na fala, então, a diferença entre a verdade e a falsidade no pensamento e na fala
deve estar baseada na diferença entre a combinação e a separação das coisas na realidade. Há
dois grupos de coisas: 1) coisas que estão sempre unidas e que não podem jamais ser separadas;
por ex. alma racional humana não pode ser separada da alma sensitiva. Há coisas que não estão
nunca unidas e que jamais deverão se unir, como o branco e o preto; 2) coisas que ora estão
unidas, mas que podem estar separadas, e coisas que estão separadas, mas que podem ser
unidas. Por exemplo: Sócrates pode estar sentado agora e, daqui a meia hora, estar de pé; e estar
de pé agora e, depois, sentado. O ser do que é unido e composto deverá consistir no ser unido
e composto e o não ser consistirá em não ser-unido e ser múltiplo.
O ser no qual a atividade do intelecto é o combinar, expressando uma afirmação, aponta
para a união, para a unidade, e para a combinação natural do ente. E o não ser da atividade de
separação, indicado pela negação, será em referência à separação e à multiplicidade do ente na
realidade. O enunciado de uma combinação será sempre verdadeiro ao expressar
afirmativamente uma combinação real e o contrário será sempre falso. E a negação do
enunciado, que expressa uma separação real que jamais poderá ser de outra maneira, será
sempre verdadeiro, e o contrário será sempre falso. Acerca das coisas que podem se encontrar
no segundo modelo, isto é, podendo estar unidas em uma ora e separadas em outra, o mesmo
enunciado pode ser verdadeiro e também falso, seja ele afirmativo ou negativo, conforme o
atual estado do ente.
Ainda em Metafísica Θ.10, Aristóteles explica, então, o outro modo de operação pelo
qual o intelecto apreende as formas e as enuncia. A verdade quanto às coisas simples não está
no intelecto da maneira em que a verdade quanto ao que é composto está. As coisas simples,
isto é, as formas indivisíveis, são unas e não são compostas na realidade e, por isso, a verdade
e a falsidade não poderá estar na composição ou separação destas formas no intelecto. E também
não poderá a verdade ou falsidade estarem no enunciado delas, pois a afirmação ou a negação
da composição não estarão expressando a realidade da coisa, a qual não é nem composta nem
separada. A verdade quanto às coisas simples, às coisas indivisíveis, estará na apreensão, no
entrar em contato253 com a forma e dizê-la, isto é, nomeá-la. Apreender a forma é conhece-la e
lhe estar conforme e, junto ao pronunciá-la, é estar na verdade. O contrário disso é não conhecer
a forma e não poder dizê-la, isto é, é estar na ignorância. A falsidade, quanto a este tipo de

253
Aristóteles utiliza a expressão θιγεῖν καὶ φάναι – ter contato e dizer.
203

objeto e operação intelectual, não tem lugar, não faz sentido atribuí-la a quem não apreendeu
sequer a forma.
Aristóteles, na passagem de Metafísica Θ.10, 1051b 24-25, que usamos como
explicação, utilizou a expressão θιγεῖν καὶ φάναι, tocar e mostrar, para se referir ao ato em que
o intelecto apreende as formas e as faz evidente ao dizê-las e, em seguida, frisa que οὐ γὰρ ταὐτὸ
κατάφασις καὶ φάσις, pois a afirmação não é o mesmo que a denominação254. No tratado De
Interpretatione I-VIII, Aristóteles explica exatamente a diferença entre dar nomes e produzir
uma sentença com significado, o que corresponde às etapas de atividade do intelecto de
apreender as formas e de produzir juízos. Considerando-se que as palavras ditas são símbolos
dos padecimentos de nossa alma, para cada padecimento da alma haverá um símbolo que
sinalize cada um deles. E da mesma forma em que em nosso intelecto há aquilo quanto ao qual
não há verdade ou falsidade e também aquilo quanto ao qual pode haver ou verdade ou
falsidade, também em nosso discurso isso deverá ocorrer, isto é, haverá aquele elemento de
discurso que não portará nem verdade nem falsidade e haverá também aqueles que indicaram
verdade ou falsidade. O nome e o verbo são os elementos da linguagem que se assemelham ao
conceito, à forma apreendida no intelecto, porque eles não expressam nem verdade nem
falsidade, eles estão num patamar anterior quanto ao que há a nomeação ou não. O processo
pelo que o intelecto passa é o de apreensão da forma e de nomeação, por exemplo, à forma de
homem que alguém apreende dá-se o nome de ‘homem’, e a forma da cor branco designa-se
com o termo ‘branco’. A afirmação e a negação são proposições, λόγοι ἀποφαντικοί, sentenças
declarativas, que podem ser verdadeiras ou falsas, pois dizem algo de algo, isto é, dizem ou
que aquilo que está unido na realidade está unido ou que o que está separado está separado.
Podem haver as proposições simples, que afirmam ou negam uma única coisa de algo, e pode
haver as proposições compostas, que são formadas por mais de uma proposição simples.
No capítulo De Interpretione VIII, Aristóteles, ao explicar que uma proposição é
simples quando é uma afirmação ou uma negação de algo e de nada mais de outra coisa, seja
dizendo-se algo universal de um sujeito universal ou não, elenca uma série de possibilidades de
proposições: Todo homem é branco; um homem é branco; nenhum homem é branco; nem todo
homem é branco; homem não é branco; alguns homens são brancos. Estas são, na verdade, a
expressão linguística das premissas, são os princípios, dos quais se iniciam um raciocínio, ou
seja, elas são as possíveis estruturas das quais parte a ciência.

254
O termo φάσις tem como sentido primeiro denúncia, delação, acusação, vindo do verbo φαίνω que indica a
ação de fazer algo vir a luz de modo que todos saibam do que algo se trata. No contexto de produção de juízos,
veremos que φάσις indicará também a ação de nomear as formas apreendidas.
204

Aristóteles, ao final de De Anima III.6, compara o intelecto, ao apreender as formas, aos


sentidos, que nunca se erram quanto aos seus objetos. A vista, ao operar, sempre estará na
verdade quanto ao seu objeto, pois ela está em atividade porque a cor é o agente próprio que
atualiza a potência da vista de enxergar. Assim ela nunca poderá ser atualizada por outra coisa
que não a cor e, estando em atividade por conta de uma cor específica, ela estará conforme
aquela cor e, portanto, na verdade quanto a ela. No caso do intelecto, sendo ele o lugar das
formas, a operação própria que deve realizar será apreender a forma, a qual, o atualizará em sua
operação. Sendo a forma o objeto que atualiza a operação intelectual, não há como o intelecto,
estando em atividade, não se conformar à ela. E estando a ela conformado, estará na verdade.
Mais importante ainda é o fato de as coisas simples, as formas e as essências serem em
ato e não em potência; sendo em potência, uma coisa se geraria e se corromperia, sendo em ato,
ela não se gera e nem se corrompe, não se altera e nem deixa de ser o que é. As formas do tipo
simples são seres em si mesmo, isto é, nelas o ente e a essência coincidem, a essência não está
ligada a uma matéria com a qual viesse a compor um ente concreto e particular. Ela, não sendo
gerada e nem podendo ser corrompida em sentido absoluto, pode, no entanto, ser gerada e ser
corrompida no sentido específico de ser individualizada em uma matéria na geração de um ente
determinado e ser corrompida quando este ente viesse a deixar de existir. Mas sendo simples,
não pode se gerar nem se corromper porque é apenas forma, sem a matéria, e por isso, está
sempre em ato. Então, quanto a estas coisas, não pode haver erro ou acerto, nem é possível
trocar de opinião quanto a elas, pois elas são imutáveis e simples. Quanto à essência, ou se está
na verdade, ao tê-la apreendido, ou se está na ignorância, sem tê-la compreendido.
Por isso, Aristóteles utiliza um verbo que expressa uma atividade sensível em Metafísica
Θ.10, 1051b 24, θιγεῖν, θιγγάνω, tocar, ter contato, e, ao final de De Anima III.6, 430b 27-30:
“ὁ δὲ νοῦς οὐ πᾶς, ἀλλ' ὁ τοῦ τί ἐστι κατὰ τὸ τί ἦν εἶναι ἀληθής, καὶ οὐ τὶ κατά τινος· ἀλλ' ὥσπερ
τὸ ὁρᾶν †τοῦ ἰδίου ἀληθές, εἰ δ' ἄνθρωπος τὸ λευκὸν† ἢ μή, οὐκ ἀληθὲς ἀεί, οὕτως ἔχει ὅσα ἄνευ
ὕλης.”255- “Com o intelecto nem sempre isto é o caso (que a afirmação ou a negação da
predicação de uma coisa de outra coisa é sempre verdadeira ou falsa). Mas como o ver o objeto
próprio é verdadeiro, nem sempre é verdadeiro que o branco seja um homem ou não, dessa
maneira ocorre com todas as coisas sem matéria.” (tradução nossa).
Os sentidos não podem se enganar quanto ao objeto sensível próprio, mas pode se
enganar quanto ao objeto sensível per accidens. Assim, por exemplo, alguém percebe a cor
branca, mas erra quanto àquilo que tem a cor branco como qualidade. O erro do intelecto pode

255
ARISTÓTELES; De Anima III.6, 430b 27-30.
205

ocorrer quanto ao que é simples e indivisível apenas por acidente, como quando o intelecto
combina ou separa a essência de algo com uma coisa definida. Como quando alguém atribui a
essência de triângulo a um círculo, ou quando se diz que o homem não é um animal racional.
Também pode alguém estar no falso quanto à essência quando acaba por compô-la de partes
que são incompatíveis entre si, como, por exemplo, dizer que a essência do homem consiste em
ser um animal não-sensível. Em todos os casos, o falso ocorre sempre na combinação das
formas, as quais ou são apreendidas ou não.
Às combinações descritas acima, é possível ainda se acrescentar as noções de passado
e de futuro, isto é, a noção de tempo, para se referir ao estado de coisas que foram ou que serão.
Assim, o intelecto, para ser verdadeiro, deverá acrescentar à combinação do juízo sobre uma
realidade que foi a variante que indicará o tempo quando esta coisa foi aquilo que foi. E, se o
intelecto, para compor um juízo com as formas de algo que uma dia virá-a-ser, deverá
acrescentar a noção temporal de futuro.
Para ilustrar o modo de operação intelectual em que os juízos são formados, em De
Anima III.6, Aristóteles utiliza, como analogia, a teoria de Empédocles256 sobre o surgimento
das coisas. O fragmento referido conta que todas as coisas teriam se originado do acaso, com
muitas cabaças surgindo sem pescoço e que outras partes do corpo também foram aparecendo
sem que estivessem conectadas. Pela ação do Amor as partes que deveriam se unir foram
unidas, formando um animal completo das partes que cresciam a esmo. Da mesma maneira,
trabalharia o intelecto, combinando ou separando as formas que ele apreende, que nascem nele
como nasciam as cabeças sem pescoço, para formar novos compostos únicos que expressam
um juízo.

4.3.2.2 διαίρεσις, separação, e unidade do intelecto

Nas últimas três linhas, Aristóteles nos explica dois pontos importantes sobre a atividade
intelectual: 1) que tudo o que fora dito sobre a combinação vale também para a separação; 2)
em todas as atividades de apreensão da forma e de formação de combinações das formas, quem
garante a unidade das combinações é o intelecto.

256
O fragmento de Empédocles referido por Aristóteles seria, segundo: 1) Hamlyn, DK Fr.57; 2) Movia, DK Fr.37
e 57; 3) Hicks, DK Fr.57.
206

A frase em que Aristóteles afirmaria o primeiro ponto é ambígua e precisa de análise


detalhada: ἐνδέχεται δὲ καὶ διαίρεσιν φάναι πάντα. Hicks257, seguindo os comentários de
Vahlen, assinala que ela pode ser compreendida de duas maneiras:

a) Tudo o que foi dito sobra a σύνθεσις pode também ser dito sobre a διαίρεσις, isto é,
que ela pode ser verdadeira ou falsa e pode ser dita simplesmente ou segundo uma
modalidade de tempo.
b) Se pode dar o nome de διαίρεσις a tudo aquilo que chamamos de σύνθεσις.
Hicks descarta a primeira opção, pois ela seria verdadeira se διαίρεσις significasse
apenas juízo negativo. Até o momento, σύνθεσις fora utilizada para juízos positivos e negativos,
mas, com esta frase, pode-se compreender διαίρεσις com um sentido mais estendido, no qual
cabem tanto a afirmação quanto a negação. Assim, com esta nova possiblidade, Aristóteles
apresentaria uma teoria complementar sobre o julgamento, segundo a qual, sendo tudo o que
fora dito da σύνθεσις seria válido também para a διαίρεσις, pois a teoria envolveria e implicaria,
não apenas conjunção, mas também separação e análise feitas pelo intelecto. Podemos encontrar
em Física I.1 o processo semelhante de análise que Aristóteles parece indicar nesta passagem:

“ἔστι δ' ἡμῖν τὸ πρῶτον δῆλα καὶ σαφῆ τὰ συγκεχυμένα μᾶλλον· ὕστερον
δ' ἐκ τούτων γίγνεται γνώριμα τὰ στοιχεῖα καὶ αἱ ἀρχαὶ διαιροῦσι ταῦτα.
διὸ ἐκ τῶν καθόλου ἐπὶ τὰ καθ' ἕκαστα δεῖ προϊέναι· τὸ γὰρ ὅλον κατὰ
τὴν αἴσθησιν γνωριμώτερον, τὸ δὲ καθόλου ὅλον τί ἐστι· πολλὰ γὰρ
περιλαμβάνει ὡς μέρη τὸ καθόλου.”258

“Em primeiro lugar, a nós, são mais visíveis e claras as coisas que são
um todo misturado e confuso. O todo é mais conhecido. Depois, a partir
destas coisas, vêm-a-ser conhecidos os elementos e os princípios que
separamos (διαιροῦσι). Por isso, deve-se proceder dos universais para
as coisas singulares. Pois o todo é mais prontamente conhecido pelos
sentidos, e o universal é um certo todo. Pois o universal compreende
muitas coisas como partes.” (tradução nossa)

O que podemos conhecer primeiramente são os dados arranjados em um todo confuso,


produzidos pelos sentidos, pela imaginação e pelo intelecto. Algo ser συγκεχυμένον significa
ser um todo concentrado de informações que precisam ser decompostas da sua unidade em
partes mais simples, como Sócrates andando, um centauro ou a essência de homem. A
διαίρεσις, a divisão, é necessária seja no caso das informações estarem presentes primeiramente
como separadas, indivisíveis, seja no caso de elas serem apresentadas como um todo confuso.

257
Cf. Hicks, ad 430b 3, pg. 51a 4:
258
ARISTÓTELES; Física I.1, 184a 21-26.
207

No primeiro caso, o intelecto toma os elementos separados e os coloca juntos, relacionando as


partes com o todo, o acidente com a substância, antes de compor um julgamento. Ou seja,
partindo dos dados dos sentidos, o intelecto, após ter apreendido as formas indivisíveis de cada
um dos entes do todo confuso da imaginação, deve separar cada uma destas formas, e organizá-
las de modo que as partes possam estar relacionadas numa ordenação adequada à referência do
ente real, isto é, quais acidentes estão ligados a quais substâncias reais, preparando-se a
possibilidade para ser compor um juízo. No outro caso, a análise ocorre sobre o todo confuso,
do qual são separadas cada uma das partes, procedendo-se do universal em direção à apreensão
de cada uma de suas partes isoladamente. Assim, do todo confuso que percebemos, como o
Sócrates que caminha, decompomos os dados sensíveis na substância Sócrates e no acidente do
caminhar e compomos um juízo de que Sócrates caminha. Depois, tomando o universal
apreendido como forma, ou como o todo que compreende partes, o desmembramos em sua
estrutura compositiva para que possamos alcançar os elementos mais simples que faziam a
definição. Da noção universal de homem, que apreendemos na operação intelectual anterior,
podemos formar o juízo de que homem é um animal bípede. A conclusão de Hicks é de que a
sentença de Aristóteles reconhece que em cada um dos juízos produzidos pelo intelecto há
sempre um isolamento e uma composição dos elementos.
Foi visto anteriormente que cada definição pode ser decomposta em suas partes e, com
esta sugestão de Vahlen e Hicks de que o intelecto também pode realizar uma análise, isto é,
uma divisão de elementos a partir de um todo ou de um universal, para a formação de um juízo,
podemos compreender que o intelecto tem a possibilidade de alcançar, através de análises
sucessivas, as formas mais simples, subindo do que é mais particular e concreto em direção aos
princípios mais gerais. Como mostrou Lesher, o intelecto não está restrito à apreensão apenas
dos primeiros princípios da realidade. Com o que acabamos de ver, o intelecto tem a sua
capacidade de apreender a forma simples a partir do que os sentidos lhe apresentaram e, a partir
das formas que ele mesmo possui, apreender novos elementos ainda mais simples e universais.
A última frase deste primeiro trecho de De Anima III.6 diz que: τὸ δὲ ἓν ποιοῦν ἕκαστον,
τοῦτο ὁ νοῦς259 – o que produz cada unidade é o intelecto. O intelecto é a função da alma que
realiza a apreensão das formas e produz cada juízo. A primeira frase de abertura deste capítulo
perguntava pela parte da alma pela qual o homem conhece e pensa. Podemos compreender
agora que cada um dos termos indicava uma atividade que a mesma parte da alma pode realizar:
conhecer, γνωρίζεῖν, indica a atividade de apreensão das formas, das unidades inteligíveis

259
ARISTÓTELES; De Anima III.6, 430b 5-6.
208

presentes nos entes; e φρονεῖν, pensar, indica a atividade discursiva, derivada da primeira
atividade, de produção de juízos, pela qual se articulam as formas que já estão no intelecto.
Sendo o intelecto a capacidade natural de apreensão do que é indivisível, uno, é ele o que deve,
nas atividades discursivas, suportar a unidade, por um lado, do que será formada entre as formas
distintas apreendidas e compostas na σύνθεσις na medida em que percebe a unidade de
composição possível entre elas, e, por outro lado, ele deverá manter a unidade entre os
elementos decompostos pela διαίρεσις como componentes de uma forma apreendida
anteriormente à formação do juízo.
Em De Anima III.4, Aristóteles fez a distinção entre dois níveis de potência do intelecto.
Uma é a potência natural com a qual o homem nasce e que compõe o seu ser, fazendo parte de
sua alma, de apreender as formas, e de ser a capacidade de se atualizar na atividade de
assimilação e de ser o lugar das formas. Através do exercício, do estudo ou do aprendizado
desta capacidade natural, o homem é capaz de alcançar o segundo nível de potência, no qual
pode já prescindir de um mestre e atualizar esta capacidade intelectual quando desejar, tendo
desenvolvido uma condição do intelecto que, por um lado, é potencial e, por outro, atual.
Esta capacidade intelectual de segundo nível não é a capacidade de produção de juízo,
a qual se refere àquilo quanto ao que há o falso e o verdadeiro, mas é somente a capacidade de
apreensão de formas inteligíveis, de unidades indivisíveis, quanto ao que não há o falso, só o
verdadeiro ou a ignorância. A atividade de produzir juízos, no entanto, pode ser realizada
porque o intelecto mantém a unidade, isto é, pode apreender a unidade que suporta a
composição dos juízos. Assim, foi visto que a atividade original do intelecto está ainda presente
na atividade discursiva, ainda que ele não exerça a atividade primordial sobre um objeto
externo, mas já sobre as próprias formas apreendidas, das quais percebe, apreende as unidades
superiores que elas possuem entre si, ou que guardam concisão nelas mesmas.
Em Metafísica Ε.4, Aristóteles, ao comentar sobre a unidade que o intelecto deve buscar,
diz que: πῶς δὲ τὸ ἅμα ἢ τὸ χωρὶς νοεῖν συμβαίνει, ἄλλος λόγος, λέγω δὲ τὸ ἅμα καὶ τὸ χωρὶς
ὥστε μὴ τὸ ἐφεξῆς ἀλλ' ἕν τι γίγνεσθαι260 - o modo em que o intelecto apreende as coisas ao
mesmo tempo ou separadamente, é outro discurso, digo entender ao mesmo tempo e
separadamente não de maneira sucessiva, mas na medida em que formem algo uno (tradução
nossa). Podemos tomar o termo ἅμα, ao mesmo tempo, de maneira conjunta,
contemporaneamente, de duas maneiras: ou se compreende no sentido de que duas coisas ao
mesmo tempo são algo uno num mesmo e único período de tempo; ou se compreende no sentido

260
ARISTÓTELES; Metafísica Ε.4, 1027b 23-25.
209

de que coisas se conectam e estão próximas uma à outra numa ordem em que uma sucede a
outra. Foi visto que cada uma das formas que o intelecto apreende, ele o faz de maneira singular,
isto é, apreendendo apenas uma forma, de maneira simples e indivisível, sem fazer nenhuma
afirmação ou negação. Mas quando realiza a sua segunda operação, combinando ou separando
as formas apreendidas, ele compreende as formas combinadas como algo uno, como algo que
forma uma unidade, tal qual o intelecto também compreende as partes de um todo ao
compreender o todo. O intelecto compreende uma casa, não compreendendo as fundações, os
muros, o telhado, mas ao compreender todas as coisas como fazendo parte e estruturando a casa
toda. Da mesma forma trabalha o intelecto, compreendendo como uma forma pode ser
predicada de outra, como um predicado se refere a um sujeito, como um atributo pertence
realmente a um sujeito.

4.3.2.3 Os tipos de indivisíveis apreendidos pelo intelecto

Depois ter ter explicado as atividades de apreensão dos indivisíveis, Aristóteles segue à
precisão dos sentidos de indivisível, primeiramente indicando que o indivisível pode ser dito
como em potência e como em ato, depois, apresenta os três tipos de unidade indivisível que o
intelecto consegue apreender: a unidade segundo a quantidade, segundo a espécie e segundo o
limite. Uns são indivisíveis em potência e outros são divisíveis em potência, mas são
apreendidos como indivisíveis em ato.
Um coisa pode ser indivisível e una por continuidade, como a quantidade contínua da
extensão. Neste caso, a extensão é apreendida como indivisível em ato, mas é divisível em
potência. E, ao se apreender algo que é indivisível em ato e divisível em potência, o intelecto o
fará num tempo indivisível. As grandezas espaciais podem ser apreendidas de dois modo, ou
como potencialmente divisível, com o intelecto considerando durante um período de tempo
cada uma das partes, uma após a outra, as quais formam um todo; ou como uma grandeza
indivisível, com o intelecto compreendendo a reta em um tempo indivisível como um todo
formado por uma unidade de partes, as quais são apenas divisíveis em potência. Isso quer dizer,
como Aristóteles salienta, que a reta apreendida em sua totalidade não foi sendo montada
mentalmente aos poucos, como o intelecto compreendendo uma parte, depois outra parte e mais
outra até que, juntando todos os pedaços, formasse uma reta completa. As partes divididas só
existem em potência e também apenas em potência é a possibilidade de se apreender cada uma
delas em um tempo também dividido.
210

O segundo tipo de indivisível é aquele segundo a espécie, isto é, aquele tipo de


indivisível que, embora seja constituído de partes, pode ser apreendido como formando uma
unidade segundo uma espécie, como o homem, o cavalo, ou até um exército ou uma armada.
Neste caso, a unidade é apreendida num único instante de tempo, num tempo indivisível como
a unidade que o intelecto apreende. E mesmo que a divisibilidade destas unidades possa estar
contidade em cada unidade apreendida, ela é apenas potencial, pois, o que é apreendido é a
unidade do objeto ordenado segundo uma espécie, isto é, segundo um princípio unificador.
Pode-se apreendeer cada uma das partes que compõe o todo, mas, como ocorre com a reta, a
qual, ao ser apreendida em suas partes, exige uma divisão temporal na atividade de apreensão,
também, neste caso, será preciso uma divisão no tempo em que se apreende o todo segundo a
espécie.
O terceiro tipo de indivisível apreendido é o do limite, sendo o ponto o mais expressivo
dentre os tipos de limite, o qual não é apenas indivisíveis atualmente e não também em potência
como são os indivisíveis segundo a quantidade e a espécie. O ponto e qualquer outro tipo de
divisão deste tipo são apreendidos pela privação daquilo que limitam. O ponto é o limite de
divisão entre seções de uma reta, ou seja, ele é uma privação do contínuo delimitado, assim
como uma reta é o limite da superfície, a qual é o limite do sólido. O ponto, sendo uma privação
de uma reta contínua, deve ser apreendido a partir de uma grandeza contínua. Temos o contato
inicial com a realidade pelo sentidos, os quais fornecem os dados concretos da realidade ao
intelecto pela imaginação. Dentre estes dados há a grandeza dos entes, em seus formatos e
tamanhos. O ponto, portanto, será a apreensão desta unidade indivisível da privação da
magnitude da reta contínua fornecida pelos sentidos.
A partir desta noção de apreensão do limite indivisível ser uma apreensão pela privação,
Aristóteles estende o raciocínio até outros tipos de privação, como o mal e o preto. Para se
conhecer um contrário privativo é preciso que se o conheça por meio do outro contrário,
negando-o na privação. Para isso, no entanto, o intelecto deve ter o contrário negativo em
potência depois que apreendeu e tem em ato a forma do contrário positivo. O homem conhece
o branco possuindo a sua forma em ato no intelecto e a forma em potência do contrário negativo.
Depois, somente a partir privação do contrário positivo, é que, quando este contrário negativo
se atualiza como forma contrária à forma positiva, o homem pode conhecer também a forma
contrária ao branco que é o preto. Assim, o homem apenas irá compreender a forma contrária
como a privação se já tiver apreendido a forma positiva inteligível da qualidade em seu
intelecto.
211

O intelecto, portanto, ao apreender as formas indivisíveis pode, seguindo o trabalho de


análisá-las, se ela forem potencialmente divisíveis, apreender também outras unidades atuais
indivisíveis, subindo na universalidade das unidades, encontrando unidades superiores.

4.3.3 O intelecto e as outras atividades intelectuais

Neste terceiro capítulo da tese, pudemos analisar todas as características da potência


natural do intelecto, a parte da alma pela qual o homem conhece e pensa, as atividades as quais
ele empreende e a diferença de nível potencial que o intelecto pode alcançar, podendo entrar
em atividade conforme a decisão humana. O intelecto é uma potência inata do ser humano,
impassível, não-misturada, em potência todas as formas, capaz de distingui-las e de pensar a si
mesmo. Esta potência é capaz de realizar a atividade de apreensão das formas e de realizar a
atividade de produzir composições ou separações entre estas formas apreendidas. Pudemos
também ver que a capacidade intelectual de apreender as formas é a capacidade que o intelecto
desenvolve como hábito e potência de segundo nível que pode ser atualizada quando assim for
decidido.
Uma parte da questão fundamental da tese foi, então, respondida: o intelecto é uma
potência inata do ser humano, é a parte da alma pela qual ele conhece e pensa. O homem se
distingue dos outros animais por justamente possuir essa função intelectual que forma a sua
alma, definindo-se pela presença da potência de conhecer e pensar a realidade na constituição
de seu ser. Para se realizar plenamente enquanto ente, como ser-humano, o homem precisa
realizar uma vida em que o conhecimento e o pensamento estejam ativos, em atualidade, para
que levem à cabo toda a potencialidade latente que ele guarda em si. Isso só é possível se forem
adquiridas as capacidades intelectuais que signifiquem um aperfeiçoamento do intelecto inato.
A primeira delas é a capacidade de apreender as formas inteligíveis e a outra é a de formar
proposições sobre algo da realidade.
A vida intelectual, no entanto, não se completa somente nestas duas atividades que
descrevemos do intelecto de apreensão das formas e composição de juízos simplesmente. No
capítulo II desta tese, vimos que é na atividade virtuosa de uma ciência dos objetos mais nobres
coroada pelo conhecimento dos primeiros princípios que se pode realizar a felicidade. Nos é
necessário, portanto, precisarmos de que forma a potência inata do intelecto pode se realizar
plenamente nesta atividade cuja virtude é a sabedoria, isto é, de que maneira a atividade do
intelecto se estende até a ciência mais nobre. Vimos também, no item 3 deste capítulo III, que
212

a ciência, a prudência, a opinião, podem ser nomeadas como pensamento, ὑπόληψις, e são
resultados da atividade do pensamento discursivo. Não havíamos fechado questão sobre o que
era exatamente isso a que Aristóteles chamava de διάνοια no capítulo de De Anima III.3 porque
ainda restava analisar em III.6 o que seriam as atividades intelectuais que poderiam ser
verdadeiras ou falsas, que faziam uso de proposições, isto é, que se seguiam à atividade do
intelecto de produção de combinação ou separação de formas inteligíveis.
Depois de De Anima III.6, Aristóteles volta a sua atenção à análise da locomoção dos
animais, trata do processo em que a parte prática do intelecto determina a correta ação praticada,
mas não desenvolve o estudo da parte teorética do intelecto e nem retoma mais o que seja a
ciência, a técnica, nem a opinião. Aristóteles inicia o capítulo III.9 inaugurando outra etapa de
investigação da alma, exatamente da parte que faz mover o animal, raciocinando que, se a alma
foi definida como em relação a duas capacidades, aquela pela qual ela realiza a distinção, que
é função do pensamento, διανοίας ἔργον, e dos sentidos, e aquela que produz o movimento
local, é preciso pesquisar sobre isso que faz mover o animal, pois quanto ao tratamento
dispensado aos sentidos e ao intelecto já foi suficiente261. Assim concluímos que o que foi
apresentado de De Anima III.3 até 6, sobre o intelecto, foi suficiente para se esclarecer a
questão. No entanto, ao usar o termo διάνοια e não νοῦς, temos que considerar que o que foi
dito até o momento deve ser considerado válido para o intelecto como potência natural de
apreender as formas, como capacidade de produzir proposições e também como a capacidade
de se realizar a ciência, a técnica, a prudência, a opinião e a sabedoria. Como Aristóteles não
se referiu a nenhuma outra destas capacidades em De Anima III.4-5 além do intelecto, mas o
fez em III.3, devemos considerar o que foi dito sobre ela neste capítulo e encontrar alguma
maneira de articular estas outras capacidades com o que foi apresentado sobre o νοῦς. Esta
deverá ser a última etapa para se concluir a tese, isto é, responder como a potência natural do
intelecto se articula exatamente com todas as potências intelectuais adquiridas, os hábitos
dianoéticos da Ethica Nicomachea, numa atividade de aperfeiçoamento da alma humana na
qual se realiza plenamente o homem na felicidade.
O termo διάνοια, que traduzimos como pensamento discursivo, aparece sendo utilizado
em De Anima III.3, para referir-se às capacidades humanas que, por serem capacidades de
conhecimento e distinção dos entes, levou muitos a crer que fossem iguais aos sentidos e à
imaginação. Como vimos, elas foram distinguidas dos sentidos da mesma forma que foi o
intelecto. Ao explicarmos a atividade de formação de proposições verdadeiras ou falsas em De

261
De Anima III.9, 432a 15-19.
213

Anima III.6, foi visto também que Aristóteles, na referência à atividade de produção de juízos
em Metafísica E.4 e Θ.10, indicou que esta atividade pertencia ao pensamento, à διάνοια, e que
não se tratava de encontrar a verdade ou a falsidade nas coisas, mas apenas no pensamento. Em
III.6, quem exerce como potência a atividade discursiva é o intelecto, ao trabalhar com as
formas que nele estão atualizadas a composição de proposições. Ficou, portanto,
aparentemente, designado que νοῦς e διάνοια comportam o mesmo sentido, pois é no intelecto
em que estão as formas a serem combinadas e o são por ele, mas também onde elas se
encontram, depois de cominadas, é na διάνοια. Além da própria do intelecto, Aristóteles não
indicou nenhuma outra parte da alma pela qual o homem conhece e pensa e, sendo o pensamento
a atividade da διάνοια, podemos concluir que ela deve ser uma faculdade do intelecto, algo que
ele é capaz de realizar, tal como é capaz de realizar a atividade de distinção, κρίνειν, como
vimos no item 1, deste capítulo da tese.
Nem na Ethica Nicomachea e nem nos Analíticos Posteriores, Aristóteles chega a fazer
um detalhamento minucioso como faz em De Anima III.6 ou Metafísica Ε e Θ sobre o intelecto
poder executar esta tarefa de compor proposições. Em De Anima III.4, Aristóteles parece
indicar com certeza que a potência de segundo nível é a da capacidade de se apreender a forma
inteligível dos entes segundo a decisão do homem, enquanto que em Ethica Nicoamchea VI e
Analíticos II.19 o intelecto aparece como a capacidade que garante os princípios que serão
utilizados pela ciência para a realização da demonstração do silogismo. Ora, o princípio do
silogismo não é apenas o nome, nem apenas um verbo, mas é uma proposição, que pode ser
verdadeira ou falsa, a qual é produzida pelo intelecto numa atividade posterior à apreensão das
formas. Então, a potência de segundo nível, que deveria ser o intelecto, seria a de produção de
proposições. Assim, se poderia estabelecer a diferença de intelecto como apreensão das formas
e διάνοια como faculdade do intelecto de formação de proposições, sem que entrem em conflito
o nome de um com a noção do outro. Isso se encaixaria com a distribuição em Analíticos
Posteriores II.19, sob o gênero da διάνοια, todas as cinco capacidades intelectuais. E com isso
se entenderia a diferença entre a potência intelectual humana como origem de todas as
atividades intelectuais, as quais têm como base e sede o intelecto, a parte da alma pela qual o
homem conhece e pensa. Neste caso, no entanto, se geraria o seguinte problema: ou a potência
de segundo nível é a apreensão das formas, como está em III.4, ou ela é a atividade de produção
de proposições. Ou, se se considerar como διάνοια a atividade discursiva do intelecto, isto é, a
de produção de proposições, o hábito do intelecto como está na Ethica Nicomachea VI.6, seria
uma capacidade dianoética e a potência de segundo nível de De Anima III.6 de apreender as
214

formas indivisíveis ficaria relegada como uma capacidade que, no entanto, não participa
diretamente da virtude.
Como foi visto, a felicidade deve ser uma atividade da alma em que a ciência é praticada
estando coroada pelo conhecimento dos primeiros princípios. Quanto a isso poderíamos nos
perguntar: como a atividade do intelecto de apreensão das formas estaria em atividade junto à
ciência sem que a atividade compositiva do intelecto pudesse sequer aparecer como outra
capacidade que também entrasse em atividade? A isto, podemos também acrescentar a
dificuldade em torno do modo como Aristóteles se refere às capacidades intelectuais na Ethica
Nicomachea, em parte de De Anima e nos Analíticos Posteriores. No De Anima, Aristóteles se
refere ao νοῦς como uma função pela qual a alma conhece e pensa, se refere à sua atividade
como atividade do intelecto, isto é, indica-a pelo verbo τὸ νοεῖν, e, a partir de III.7, começa a
distinguir como νοῦς θεωρητικός, intelecto teorético, e νοῦς πρακτικός, intelecto prático262, as
partes da função intelectual que tinham como objeto o conhecimento e a ação prática,
compreendendo, não de maneira evidente, a ciência, por um lado, e a prudência e a arte, por
outro. Em Ethica Nicomachea, ao invés de se referir diretamente ao intelecto, Aristóteles se
utiliza das expressões θεωρητικὴ διάνοια, pensamento teorético, e πρακτικῆ διάνοια,
pensamento prático263 e se refere sempre às virtudes e às capacidades da alma como διανοητικαὶ
ἀρεταί, virtudes dianoéticas e não virtudes intelectuais, as quais surgiriam do intelecto. Parece,
assim, que Aristóteles considera como atividade intelectual mesmo apenas as que são já a partir
de proposições e o intelecto como apreensão de formas inteligíveis, sendo anterior a estas
atividades, não é nem considerado.
Ou διάνοια e νοῦς significam coisas semelhantes ou Aristóteles exprime teorias diversas
em cada situação de texto diferente, em uma, indicando que o intelecto, tal como descrito em
De Anima III.4-6, interage nas atividades intelectuais da alma ou é uma outra faculdade que
toma a dianteira netas atividades. Parece, porém, que o uso que Aristóteles, quando não está
descrevendo especificamente a natureza e a atividade primordial do intelecto, νοῦς, é ambíguo
e permite desenvolver uma interpretação que não faça com que os textos colidam entre si.
Em duas passagens de Ethica Nicomachea VI podemos colher uma ajuda para resolver
esta dificuldade. Em 1139a 21, lemos que ἔστι δ' ὅπερ ἐν διανοίᾳ κατάφασις καὶ ἀπόφασις –
está exatamente no pensamento a afirmação e a negação. Já tínhamos visto esta mesma
declaração em Metafísica Ε e Θ quando discutimos os tipos de ser como verdadeiro e ser como

262
De Anima III.9, 432b 27; III.10, 433a 15-16.
263
Ethica Nicomachea VI.2, 1139a 27-29.
215

falso que o intelecto pode assumir. Agora, me sirvo da explicação de Stewart264 para esclarecer
este problema. Ele, depois de apresentar as passagens que utilizamos para explicar as atividades
intelectuais, lembra mais uma em especial: Metafísica Γ.7: ἔτι πᾶν τὸ διανοητὸν καὶ νοητὸν ἡ
διάνοια ἢ κατάφησιν ἢ ἀπόφησιν265- além disso, todo objeto de pensamento e objeto inteligível,
o pensamento discursivo ou afirma ou nega (tradução nossa). Segundo Stewart, e nos parece
verdadeiro, a faculdade que pensa junto aquelas coisas que existem ou ocorrem juntas no mundo
externo, e pensa à parte aquelas coisas que existem ou ocorrem à parte, a qual, em outras
palavras, afirma ou nega de acordo com as condições objetivas e alcança a verdade onde é
possível cair em falsidade, esta é a διάνοια. Ou seja, a διάνοια é o entender ou o pensamento
discursivo, como distinto do intelecto, o pensamento intuitivo. O último está voltado para as
εἴδη ou noções per se, as quais são indivisíveis na unidade de sua substância, sua verdade
consiste em apenas clara inteligibilidade e não há o falso como oposição. Em resumo, a διάνοια
é um nome para indicar a outra atividade do intelecto, na qual ele produz os discursos, as
proposições, a partir das quais as outras atividades intelectuais podem ocorrer. Por isso, são
colocadas sob o gênero de atividades dianoéticas. No entanto, o próprio Stewart reconhece que,
mesmo sendo esta a distinção geralmente feita por muitos estudiosos de Aristóteles, quando
eles a fazem, os termos podem ser usados de maneira intercambiável. Ele apresenta como
evidências as mesmas passagens que apresentei como mais ambíguas no uso do termo. A
conclusão que podemos chegar é a de que as atividade dianoéticas, isto é, as atividades que se
utilizam das proposições compostas pelo intelecto, como a ciência, a técnica, a prudência e a
opinião, são desenvolvimento do próprio intelecto enquanto potência inata humana e que,
portanto, praticar cada uma destas atividades é ativar esta potência natural. Não são o hábito do
intelecto de apreender os primeiros princípios, mas são outros hábitos que só podem ser gerados
na potência intelectual capaz de produzir as proposições, seus princípios de atividade. Na
ciência, por exemplo, o silogismo articula em si ao menos duas premissas, delas alcançando a
conclusão pela unidade que as premissas têm entre si.
O intelecto a que Aristóteles se refere em Ethica Nicomachea VI como o hábito dos
primeiros princípios, o qual, junto à ciência, realiza a ciência perfeita, não é o hábito que
apreendeu as formas de entes físicos ou matemáticos simplesmente, mas consiste no hábito da
apreensão dos axiomas necessários à qualquer demonstração científica e dos princípios da
ciência dos objetos mais elevados e nobres da realidade. Os axiomas, enquanto princípios
sustendores do silogismo demonstrativo, não chegam a ser estabelecidos nas proposições

264
STEWART, J.A.; Notes on the Nicomachean Ethics of Aristotle; Oxford Claredon Press; 1892. Cf. pg. 22-24.
265
ARISTÓTELES; Metafísica Γ.7, 1012a 2-3.
216

demonstradas, mas lhe suportam como princípios do raciocínio e do pensamento científico.


Aquele que pratica a ciência, os toma como princípios para realizar a sua atividade, partindo
dos princípios primeiros. Assim, se pode reconhecer na potência de segundo nível descrita em
III.4 o hábito, a capacidade intelectual que é exigida na atividade da contemplação da verdade
e da virtude da sabedoria. Nenhum conhecimento poderia ser completo sem que estes princípios
fossem absorvidos intelectualmente e, quando necessários, fossem ativados para a realização
de uma atividade científica sobre os objetos mais nobres que existem. Um bom exemplo de
ativação do conhecimento dos primeiros princípios é argumentação que Aristóteles utiliza em
Metafísica Γ.4 para se provar a realidade do princípio da não-contradição. Ele não estabelece
uma demonstração em que a primeira premissa seja uma proposição dizendo o que seja o
princípio de não-contradição, mas estabelece um raciocínio no qual, utilizando-se ativamente
do princípio de não-contradição, faz o leitor/aluno apreender este princípio. Em seguida, pelo
restante da Metafísica, Aristóteles inicia o estudo do que há de mais nobre e elevado na
realidade, estabelecendo os sentidos de ser e culminando com a investigação da substância
imaterial em Λ.
O intelecto, que é a potência de apreender as formas indivisíveis, alcança a sua plenitude
de ação ao apreender as formas mais simples, universais e primeiras da realidade, estabelecendo
em si o hábito, a capacidade de atualizar quando o homem desejar o conhecimento atual destas
formas. Ele apreende as formas inteligíveis dos entes materiais, mas a sua potência mesmo, a
qual se desenvolve em hábito e em atividade plena, é a de apreender os primeiros princípios,
sem os quais não se estabelece conhecimento de verdade. Foi visto que o intelecto não se
restringe apenas à apreensão das formas dos entes materiais e dos entes matemáticas, pois, ao
analisar as partes compostitivas das formas, num movimento ascensional, alcança as formas
mais simples, cujo ente e substância se coincidem, subindo gradualmente até alcançar os
primeiros princípios. No decorrer desta atividade é que o intelecto, apreendendo as formas de
entes físicos e matemáticos, pode compor com elas as proposições, contribuindo para a
atividade de uma ciência específica, de uma técnica, da atividade prática coordenada pela
prudência e da formação da opinião. A atividade do intelecto é ascensional em direção ao que
é mais universal e, à medida em que caminha em direção aos princípios, coloca o homem na
condição de se atualizar plenamente.
Assim, a questão fundamental da tese pode ser resolvida: como capacidades adquiridas,
ao serem atualizadas de maneiras virtuosa, podem levar o homem à sua perfeição? O intelecto,
sendo a potência e a parte da alma que define o homem e a sua vida humana, deve se atualizar
através do exercício das capacidades em que se desenvolve, adquirindo em si a capacidade de
217

pratica-las por decisão e de maneira perfeita no exercício virtuoso do conhecimento do que há


de mais elevado e nobre na realidade pela ciência coroada pelos primeiros princípios. A ciência
mais nobre realizada junto à intelecção ativa dos primeiros princípios, ao serem atualizados de
maneira perfeita, segundo a virtude da sabedoria, fazem o homem contemplar a verdade,
conduzindo-o à felicidade através da atividade ativa de uma vida contemplativa, na qual o ser
humano alcança a sua plenitude enquanto ser-humano. A vida contemplativa é a vida intelectual
do homem em sua completude perfeita, levada plenamente ao seu máximo de realização.
A vida humana é a vida sendo vivida de maneira ordenada pela alma intelectual, fazendo
com que a ela se submetam a parte animal ao toma-la como senhora obedecendo-a. A finalidade
da alma humana como um todo se ordena à realização da contemplação e para esta realização
todas as outras partes devem estar organizadas. Aristóteles, quando avaliava cada um dos tipos
de vida, mostrou que o homem que escolhia um dos tipos, formatava o seu viver de modo que
cada esforço em que se empenhava servia para a realização do prazer ou das honrarias políticas
ou, até mesmo, do acúmulo de riquezas. Estes tipos de vida desviam o homem de sua realização
plena, ou reduzindo-o a uma atividade animalesca ou restringindo a sua atividade humana a
uma esfera prática de ações políticas.
Em De Anima III.9, Aristóteles cita de passagem que o νοῦς θεωρητικός não pensa nada
que é objeto de ação e nada do que se deve evitar ou perseguir. A sua tarefa é conhecer a
realidade, saber de maneira científica a essência das coisas, e não perder-se em força na
avaliação do que se deve ou não fazer. A atividade do νοῦς θεωρητικός é a ativação da βίος
θεωρητικός, da vida contemplativa, na qual o homem realiza-se por inteiro na contemplação da
verdade.
Por isso que a vida contemplativa é o ápice de atualização e perfeição da vida humana.
A vida humana não é uma vida voltada aos prazeres, ao acúmulo de riquezas nem mesmo apenas
à atividade política, mas consiste, originalmente, na vida intelectual, isto é, na atividade da alma
intelectual que o define como ser humano. Por isso, pode-se dizer que o homem, ao viver a vida
contemplativa, realiza plenamente a sua vida intelectual na atividade da felicidade.
218

5 Conclusão: Ethica Nicomachea, De Anima e a integração da filosofia de Aristóteles

Para concluir a tese, apresento uma interpretação de uma possível integração da filosofia
de Aristóteles, de todo o seu conhecimento, na medida em que pôde realizar a pesquisa da ética,
da metafísica e da alma humana. Integração esta feita em duas camadas. Uma na qual,
integrando todo o seu arcabouço filosófico desenvolvido durante anos de pesquisa na definição
da finalidade última do homem, a εὐδαιμονία, condensou toda a possibilidade de realização das
capacidades humanas numa vida plena. E na outra camada, a da sua própria investigação
filosófica desenvolvida na ética, fazendo uso, como todo ser humano faria ao investigar um
objeto da realidade de acordo com as possibilidades cognitivas da essência humana, do
instrumental dialético e lógico do raciocínio, da capacidade da abstração da verdade de uma
situação real e de todo o conhecimento anterior obtido, mostrou a verdade daquilo mesmo que
ele investigava, da natureza humana se tornar plena no exercício atual da atividade da σοφία.
Com isso, o que Aristóteles produziu de trabalhos filosóficos e científicos não ficou em um
plano abstrato longe daquilo que é verdadeiro e real. Mas ganhou a força de veracidade que
uma investigação pode receber quando realizada sobre a base daquilo que é real e concreto e
não em conceitos deslocados da realidade que pairam nas alturas como nuvens evanescentes.
Deste modo, teria Aristóteles alcançado um conhecimento verdadeiro na atividade da
σοφία e nas definições da ética ao conseguir ter contato real tanto com os princípios da realidade
quanto com a atualidade concreta que posteriormente definiu como sendo a finalidade última
do homem. Considerando o desenvolvimento de sua filosofia, Aristóteles seria não somente um
grande filósofo que produziu grandes obras, mas sobretudo um exemplo concreto daquilo que
ele mesmo pôde descobrir em filosofia e ciência. Poder-se-ia mostrar, assim, que a ética, pela
definição de εὐδαμαιμονία organiza e integra a filosofia de Aristóteles e a atividade da σοφία
conduz à integração à plenitude do ser humano. E, sobretudo, o estudo da ética, como o fez
Aristóteles, integrou a sua filosofia e o se conhecimento, reservando um lugar de grande
importância na sua grande obra filosófica.
Aristóteles, ao realizar, no tratado Ethica Nicomachea, a investigação sobre a finalidade
do homem e descobrir primeiro, no livro I, capítulo 7, que a εὐδαιμονία é uma atividade da
alma de acordo com a virtude perfeita e, depois, no livro X, capítulo 7, confirmar que a vida
teorética no exercício do θεωρεῖν da verdade é a finalidade última do homem e, assim, a sua
felicidade, não somente alcançou a definição que buscava, finalizando assim a sua pesquisa
sobre a causa final humana, mas, sobretudo, integrou na exposição da essência e da finalidade
do homem o conhecimento desenvolvido ao longo de toda uma vida dedicada à filosofia, à
219

pesquisa científica, à sabedoria e à descoberta da verdade. A integração se fez em duas camadas.


Uma através da definição de εὐδαμονία e a outra na própria atividade filosófica que Aristóteles
realizou ao longo de sua vida e que se integrou ao identificar que aquilo mesmo que ele fazia e
ao fazê-lo era o ideal mais elevado da vida humana.
A definição de εὐδαιμονία presente na Ethica Nicomachea apresenta como perfeição da
vida humana a atividade bem realizada da virtude da σοφία no conhecimento da verdade, no
qual estão compreendidos tanto o conhecimento das causas do objeto pesquisado quanto o
modo pelo qual este objeto deriva destas causas. A atividade bem realizada da σοφία é a
plenitude da vida do ser humano, cuja substância, ainda que, por união à matéria, o faça um
ente móvel e sujeito às contingências e às particularidades do mundo físico, o possibilita,
através das capacidades da alma intelectiva, ascender ao que é imutável e universal pelo
conhecimento das causas da realidade. Concisa, então, na definição de εὐδαιμονία está a noção
desta estrutura ontológica do ser humano e do modo pelo qual o homem conhece as causas da
realidade.
A pesquisa exigia o domínio, por parte de Aristóteles, de áreas do conhecimento com as
quais pudesse proceder a sua investigação, utilizando-se das ferramentas teóricas desenvolvidas
nos tratados referentes aos discursos dialéticos e lógicos, por exemplo, para que seus raciocínios
pudessem seguir corretamente sob uma ação deliberada de assim fazê-los. Mas também para
que, sendo a σοφία o modo mais elevado de conhecimento do ser humano, Aristóteles tivesse
os meios de analisar esta capacidade específica de conhecer a realidade e de saber do que se
tratava. A análise dos discursos dialéticos e lógicos não serviram apenas para encaminhar a
investigação de modo correto, mas entram elas mesmas na investigação como elementos
constitutivos do objeto em questão. Além disso, como a ética investiga um ente móvel, cuja
vida prossegue no meio das contingências e da mudanças ao mesmo tempo em que possui as
capacidades necessárias para conhecer algo imóvel e eterno, seria necessário ter o mínimo de
conhecimento desta realidade física no qual o homem estava inserido e, ao menos, um certo
grau de conhecimento das primeiras causas da realidade para que, assim, estivessem claros o
objeto da pesquisa da ética e o objeto de conhecimento no qual a vida do ser humano pode se
aperfeiçoar.
Servindo-se de todo o ferramental epistemológico adequado a esta pesquisa, Aristóteles
pôde descobrir a verdade da essência humana, explicitando desde o modo pelo qual o homem
pode conhecer a realidade e mostrando-se como exemplo, ainda que involuntariamente, do
conhecedor efetivo das primeiras causas e dos primeiros princípio da realidade. Processo pelo
qual pôde vir a atualizar plenamente o seu ser, perfazendo um percurso de ascensão àquilo que
220

é mais elevado e retornando, na pesquisa e na análise filosófica da ética, à atualização em uma


vida individual concreta.

5.1 A integração da filosofia aristotélica

Das cinco capacidades dianoéticas humanas, a σοφία é a que, quando exercida de


maneira perfeita, atualiza a forma humana em sua perfeição última através da descoberta e da
demonstração das causas da realidade. Uma espécie de síntese entre o νοῦς, a capacidade de
apreensão dos primeiros princípios, e a ἐπιστήμη, a capacidade de realizar demonstrações
científicas de um objeto pesquisado, faz da σοφία uma virtude dianoética que apreendeu os
primeiros princípios da realidade e de demonstrar seja a relação entre a causa descoberta e o
objeto de estudo seja as derivações decorrentes deste princípio, realizando desta forma um
conhecimento perfeito, no qual consegue integrar a solução de uma questão à clareza e ao
conhecimento do modo em que se procedeu a sua descoberta e à apresentação do modo de
ligação entre uma causa e o seu efeito.
A vida humana está estruturada para que a sua essência se atualize de maneira perfeita
no conhecimento próprio à σοφία, na qual todas as capacidades anímicas do ser humano
encontram o seu sentido último, segundo o qual as funções da alma se organizam para a
atualização perfeita da essência do homem, com cada uma cumprindo uma etapa do processo
cognitivo. A σοφία exige o máximo de aplicação e atividade da alma humana quando, para a
apreensão dos primeiros princípios, faz uso da capacidade própria ao νοῦς, cuja matéria prima
de trabalho são as formas sensíveis decorrentes das impressões sensíveis que são conservadas
na memória, e, em seguida, para a demonstração das causas de um objeto, faz uso da capacidade
da ἐπιστήμη, a qual segue em silogismos internos quando em uma reflexão pessoal de um
problema e em exposições que vão da prova científica a uma apresentação didática a um aluno.
Sendo assim, todas as capacidades humanas podem ser atualizadas em seu grau máximo na
perfeita atividade da contemplação feita na perfeita virtude da sabedoria, na qual cada elemento
da alma e capacidade humana deve exercer a sua função específica num modo integrado de
conhecimento e atualidade da substância do ser humano.
Mas para a realização de um tal tipo de conhecimento, tanto da σοφία para um homem
em sua plenitude de ser quanto para aquele que investiga esta realidade, explicada por
Aristóteles na Ethica Nicomachea, uma série de requisitos e competências são necessários para
que, primeiro, um princípio possa ser descoberto e, depois, para que ele possa adequadamente
221

ser demonstrado. Somente uma vida completa de estudo, pesquisa, experiência e reflexão
filosóficas, permite a um homem se encontrar em condições de realizar este processo de
conhecimento e, ao fim, poder atualizar a σοφία e, em consequência, a sua própria essência
humana. Um conhecimento, para que não se configure em uma simples especulação cujos
resultados coincidem com a realidade por mero acaso, não pode realizar e nem ser considerado,
de fato, um conhecimento verdadeiro, se a pesquisa não tiver sido feita sob domínio das
capacidades racionais aplicadas em cada uma de suas etapas de maneira virtuosa e escolhidas
deliberadamente. Uma das diferenças entre as capacidades racionais e as capacidades
irracionais é que, com as primeiras, o indivíduo deve decidir, após uma deliberação, pela
atualização de sua capacidade266, enquanto que as segundas se atualizam assim que encontram
a capacidade correspondente e que nenhum obstáculo as impeça de atualizarem-se.
Se também considerarmos um conhecimento ou um estudo como uma possível ação
virtuosa, devemos considerar a restrição feita quanto à situação na qual podemos dizer que uma
ação é de fato virtuosa. Um ação virtuosa deve ser feita de maneira voluntaria, o agente deve
saber do que se trata a sua ação, desejá-la por si mesma, agindo com retidão, de maneira resoluta
e agindo de fato bem. Neste caso, podemos lembrar a imagem do arqueiro que, mesmo
acertando o alvo, dele não podemos dizer que fez um bom tiro a menos que o tenha feito sob o
domínio de suas capacidades. Dessa forma e seguindo estas exigências, devemos avaliar que
uma atividade intelectual, sobretudo a atividade da σοφία, devem seguir estes mesmos preceitos
para serem conhecimentos verdadeiros e atividades virtuosas, como parece ter sido o caso de
Aristóteles ao longo de sua vida e na investigação da ética.
O tratado da Ethica Nicomachea é o fruto de uma atividade intelectual das mais altas
realizada por Aristóteles, para cuja realização um amplo domínio de diversas áreas do
conhecimento foi exigido e no qual o eixo central, a definição de εὐδαιμονία, sendo a mais
elevada atividade intelectual que o homem pode alcançar, reúne o conhecimento
epistemológico e ontológico desenvolvido em décadas de estudos. Para responder a pergunta
central da ética, Aristóteles se utilizou destes conhecimentos como meios de reflexão filosófica
próprio e como elementos compositivos da definição da finalidade última do homem, pois sabia
que fazer uso deste instrumental racional faz parte da natureza humana e que ele mesmo os
tinha dominado em perfeição após um longo período de prática real de atividades racionais.
Aristóteles, o autor da Ethica Nicomachea, é o exemplo concreto de realização de uma vida
toda dedicada ao aprendizado, à educação e ao conhecimento da verdade, cujo sincero empenho

266
Cf. Aristóteles, Metafísica Θ.5.
222

à pesquisa e à reflexão dos diversos âmbitos da realidade, suportados por um arcabouço lógico
e dialético desenvolvidos através de um método rigoroso de trabalho, fez transparecer o
verdadeiro sentimento da φιλία ao conhecimento e à verdade e de real realização de vida
teorética.
Aristóteles escreveu a Ethica Nicomachea quando já se encontrava novamente na cidade
de Atenas ministrando cursos no Liceu que inaugurara nos jardins dedicados a Apolo Liceo.
Desde que deixara a cidade de Atenas e a Academia após a morte de seu mestre Platão, viveu
em várias cidades ao redor do mar Mediterrâneo, desde a corte do rei Ermia àquela do rei Felipe
da Macedônia, passando pela cidade de Mitilene na ilha de Lesbos. Mesmo assim deu
continuidade às suas pesquisas, sobretudo àquelas referentes à biologia, aos animais e às
plantas, ainda que não pudesse dar cursos como fazia quando ainda era um acadêmico em
Atenas. Quando voltou à cidade ateniense, pôde finalmente retomar todos os trabalhos que já
havia desenvolvido desde a época da Academia, como o Órganon, a Retórica, partes da
Metafísica, alguns livros da Física, junto a outras obras de cosmologia, a Ethica Eudemia, e
uma boa parte de sua obra filosófica. A estes trabalhos pôde acrescentar as pesquisas biológicas
que fizera durante sua vida de pesquisador livre, todo o material inicial de pesquisa organizado,
além da série de experiências reais e concretas por ele vividas, produzindo como resultado os
restantes livros da Física, da Metafísica, os grande tratados biológicos, o De Anima, outros
livros da Política e as versões finais da Ethica Eudemia e da Ethica Nicomachea. Desde as altas
esferas da estrutura do universo até os elementos materiais simples, dos primeiros princípios da
realidade até o caso mais particular de uma situação política, do modo condensado próprio ao
discurso poético até a mais direta demonstração científica, foram abordados, pesquisados e
amplamente estudados por Aristóteles diversos campos do saber e da realidade em uma vida
toda dedicada ao conhecimento e à filosofia.
Portanto, à época em que escrevia a Ethica Nicomachea, Aristóteles já poderia, como
homem maduro e desenvolvido em suas virtudes dianoéticas e éticas e com uma alma bem
estruturada, respeitar a exigência que ele mesmo impusera de que o estudo da política é
adequado somente àqueles que não estão mais submetidos às paixões e que não se deixam levar
por tudo aquilo que se lhes é interposto à vista e ao desejo, uma vez que ele mesmo já havia
organizado sua vida em função do fim mais elevado da filsofia e da retidão do caráter, e expor
todos os pontos pelos quais devem proceder a realização plena da alma de um ser humano.
De forma análoga à atividade da σοφία, na qual um princípio é apreendido e depois
demonstrado, o trabalho de toda uma vida foi como que concluído na forma da pesquisa da
ética, o âmbito das contingências, cujos os elementos particulares devem ser considerados para
223

uma boa compreensão da natureza do objeto e que requer, ao mesmo tempo, para a completa
sabedoria do caso, o conhecimento dos princípios universais e imutáveis da realidade. Da
ascensão intelectual aos primeiros princípios, universais e eternos, à concretude da contingência
da ética, Aristóteles procedeu suas investigações ao longo de sua vida, o que permitiu apresentar
a explicação do que são os primeiros princípios, como o fez na Metafísca, e o modo como o
homem pode alcançá-los através de suas capacidades cognitivas, como mostrou principalmente
nos Tópicos, nos Analíticos Primeiros e Posteriores e no De Anima. Assim, Aristóteles integra
o seu conhecimento em duas realizações ou camadas. Uma camada é aquela na qual consegue
ele integrar as suas obras anteriores na definição como o ser humano pode atualizar pela σοφία
a sua natureza plenamente, ou seja, explica como o homem pode alcançar e realizar esta
capacidade intelectual que é a mais elevada de todas e que requer todas as etapas cognitivas
anteriores a ela, dando assim unidade ao saber que havia acumulado naquilo a que eles poderiam
mais fundamentalmente servir: à plenitude do ser humano. A segunda camada é aquela na qual
ele mesmo, Aristóteles, foi o ente real e concreto que atualizou e levou a cabo esta finalidade
última do ser humano, tendo sob o seu domínio os meios pelos quais um homem pode isto
realizar. A possibilidade da compreensão da realidade do ser humano, de sua essência e da
plenitude de seu ser existiu porque Aristóteles viveu atualmente esta modalidade de
conhecimento e de vida, na qual pôde moldar a sua alma e conseguir um verdadeiro
conhecimento daquilo que se propôs a apresentar no tratado da Ethica Nicomachea resumido
da definição da εὐδαιμονία.
A descoberta real feita por um ser humano individual, Aristóteles, se deu por que a sua
própria vida foi a realização e a concretização da finalidade última do homem, da forma como
esta fora definida em seu tratado. Se, quando são descobertos os princípios de um objeto e,
depois, são demonstradas as suas causas, fazemos evidente o modo pelo qual a causa está
relacionada ao objeto, e se só o conseguimos fazê-lo quando de fato adquirimos o conhecimento
da causa, o que Aristóteles expõe na ética é o conhecimento adquirido da realização de uma
vida individual feita com a devida demonstração dos fundamentos desta realização, tanto pela
apresentação das causas pelas quais o homem conhece os princípios da realidade quanto pelo
definição do objeto da σοφία. A atividade real da σοφία foi praticada por Aristóteles
principalmente na Metafísica, de cuja atividade pôde, então, abstrair a sua essência e sobre a
qual pôde identificar a sua definição verdadeira através de um processo cognitivo verdadeiro.
Para Aristóteles, que viveu uma vida de intensa reflexão filosófica, o tratado da ética é uma
exposição, possivelmente, de sua experiência real, de seu próprio caminho de vida intelectual
realizado através da atualização de sua essência no conhecimento da realidade e, como que a
224

finalização deste conhecimento, exposição da possibilidade da plena realização deste


conhecimento, que foi, ao mesmo tempo, a atualização de sua própria essência. Aristóteles
conseguiu integrar na atividade que identificou como a finalidade última do homem toda a
verdade que conseguiu descobrir através de suas pesquisas e o fez também ao realizar a própria
pesquisa da ética, deixando, com isso, um papel importantíssimo para o tratado da Ethica
Nicomachea e o exemplo de si mesmo numa vida dedicada à filosofia.
225

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