Você está na página 1de 105

LAÍS VIRGINIA ALVES MEDEIROS

ESSA LÍNGUA NÃO ME REPRESENTA: discursos sobre língua e gênero

PORTO ALEGRE
2016
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
INSTITUTO DE LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
ESTUDOS DA LINGUAGEM
ANÁLISES TEXTUAIS, DISCURSIVAS E ENUNCIATIVAS

ESSA LÍNGUA NÃO ME REPRESENTA: discursos sobre língua e gênero

LAÍS VIRGINIA ALVES MEDEIROS

ORIENTADORA: PROFª. DRª. SOLANGE MITTMANN

Dissertação de Mestrado em Estudos da


Linguagem, apresentada como requisito
parcial para a obtenção do título de Mestra
pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

PORTO ALEGRE
2016
AGRADECIMENTOS

Dizem as regras que devem constar nos agradecimentos as “pessoas que efetivamente
contribuíram para o trabalho”. Acreditando que uma dissertação não é apenas um trabalho
acadêmico, mas também o resultado de um longo processo do qual não se separa a vida
pessoal, a lista dessas pessoas pode ser maior do que as regras sugeririam.
À presidenta Dilma Vana Rousseff e ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que
muito provavelmente nunca lerão este trabalho, mas que, ao abrirem as portas do Ensino
Superior pra gente preta e pobre como eu, permitiram que ele existisse. Por fazerem de suas
vidas exemplos de resistência e resiliência, por mostrarem novos destinos possíveis para
mulheres sobreviventes da ditadura e retirantes nordestinos, minha gratidão eterna. Ao Partido
dos Trabalhadores, por mostrar que é possível, apesar dos pesares, construir um país mais
justo e igualitário, do qual sinto orgulho de fazer parte.
Às instituições CAPES/FAPERGS, pela bolsa concedida em suporte a esta pesquisa.
À UFRGS, por ter me formado, no sentido amplo do termo.
À minha orientadora, professora Solange Mittmann, que teve a boa vontade de acolher
uma guria perdida que só queria estudar Análise do Discurso (sem saber direito do que se
tratava, mas simpatizando muito com o clima dos SEADs), com uma inacreditável paciência
frente aos meus vacilos e uma confiança em mim por vezes maior do que a minha própria.
Às professoras Maria Cristina Leandro Ferreira e Ana Zandwais, pelas aulas que
exigiram meu melhor. Às professoras Patricia Reuillard e Sandra Loguercio, por terem me
ensinado a ser tradutora e terem incentivado que eu fizesse mestrado. Ao professor Rodrigo
Fonseca, que ministrou minha primeira disciplina de AD lá nos idos da graduação e desde
então seguiu cordialmente disponível, fosse indicando bibliografias pertinentes, fosse
assistindo às minhas apresentações.
À professora e colega de pesquisa Paula Daniele Pavan, pela leitura atenta do meu
projeto e pelo exemplo de dedicação e excelência. Ao amigo do Serviço Social, Guilherme
Gomes Ferreira, pela dissertação inspiradora e pela parceria que começou com os estudos de
gênero e se estendeu aos demais campos da vida (seriam os astros?). À historiadora Camila
Petró, pela solicitude espontânea no compartilhamento de bibliografias.
A todas as colegas do grupo de pesquisa e estudantes de Análise do Discurso que
tornam os eventos da área tão profícuos, diversos e calorosos.
À minha família, que sempre apoiou e ajudou a bancar minhas escolhas, entendendo
ou não, concordando ou não. Especialmente à minha irmã, Lívia, minha metade
complementar, inspiração e porto-seguro, responsável por me lembrar regularmente de que
formação acadêmica importa, sim, mas não é tudo, e assim ajudar a manter minha sanidade e
equilíbrio nos momentos mais complicados.
A todas as amizades que me acompanharam neste período, com menções honrosas:
à minha siamesa de mestrado, Debbie Noble (aka Noblelais), pela parceria que
começou nas disciplinas em que nos perdíamos juntas, se estendeu para trabalhos em
coautoria e culminou numa amizade reconfortante. À minha irmã astrológica, Michele
Passini, pelos tantos momentos de aconselhamentos pessoal e teórico. Às duas juntas, por
formarem comigo um trio de compreensão mútua que se tornou indispensável ao longo da
escrita;
às amigas do Ministério, Bru, Le, Raqueleta e Tai, minhas lexicats, que não
compartilham da minha teoria, mas compartilham das mesmas angústias e praticam comigo
um bonito exercício diário de compreensão à alteridade;
à galera da repartição, por ter segurado minha barra na época da seleção;
especialmente ao Dani e à Simone, que muito me ouviram lamuriar também durante a escrita;
ao Rafael, pelos queijos, goiabadas, pregos, parafusos, expropriações e tantos outros
códigos que compartilhamos no nosso universo tão particular que torna nossas vidas tão
menos solitárias, tão mais tragicômicas, tão mais... vivas, enfim.
Ao acaso, ao destino, ao Universo, ao Deus, aos Orixás, aos astros, ao mercúrio
retrógrado ou seja lá o que(m) for que conduziu aquelas coisas que não dependiam de mim e
mesmo assim deram certo.
Se uma mulher e seu cachorro estão
atravessando a rua e um motorista
embriagado atinge essa senhora e seu cão, o
que vamos encontrar no noticiário é o
seguinte: “Mulher e cachorro são atropelados
por motorista bêbado”. Não é
impressionante? Basta um cachorro para
fazer sumir a especificidade feminina de uma
mulher e jogá-la dentro da forma
supostamente “neutra” do masculino.
– Marcos Bagno
RESUMO

Esta dissertação, ancorada na Análise do Discurso pecheutiana, apresenta uma análise


de discursos a respeito de língua e gênero, tendo como corpus textos concernentes ao assunto
produzidos tanto em contexto institucional como de militância. Para tanto, começamos o
trabalho pela apresentação conjunta de noções da Análise do Discurso e do feminismo. Ao
mesmo tempo em que trabalhamos as noções fundamentais da teoria na qual se baseia a
análise aqui proposta, buscamos articulá-las ao movimento feminista e aos estudos de gênero.
Desse modo, tanto o movimento feminista quanto os estudos de gênero são apresentados, não
de modo cronológico ou revisionista, mas pelo que possam ter em comum com o viés teórico
da Análise do Discurso. Entre as noções mobilizadas na fundamentação teórica, destacamos
as de condições de produção, sujeito e formação discursiva. Em seguida, propomos uma
revisão da noção de língua, iniciando pelo estabelecimento da Linguística como ciência
autônoma e apresentando alguns de seus desdobramentos até chegar à noção como a
entendemos em nosso campo teórico. Tendo apresentado a parte teórica, partimos, então, para
a análise do corpus. Do contexto institucional, analisamos sequências discursivas tomadas dos
seguintes textos: a Lei Federal Nº 12.605 (BRASIL, 2012), que determina a flexão de gênero
na emissão de diplomas; a Lei Estadual Nº 14.484 (RIO GRANDE DO SUL, 2014), que
dispõe sobre o uso de linguagem inclusiva na redação oficial; o Decreto Nº 49.994 (RIO
GRANDE DO SUL, 2012), que dispõe sobre o uso da linguagem inclusiva nos atos
normativos, documentos e solenidades do Poder Executivo Estadual; e dois materiais
lançados pela Secretaria de Políticas para as Mulheres do Estado do Rio Grande do Sul: o
Manual para o uso não sexista da Linguagem e a Cartilha da Diversidade de Gênero. Já do
contexto de militância, analisamos dois textos publicados on-line, extraídos da Revista Geni e
do blog Batatinhas, com respectivos comentários publicados por internautas. Nas análises,
identificando contradições e retornos da memória discursiva e de pré-construídos, chegamos a
quatro diferentes posições de sujeito, delineadas a partir dos seus dizeres sobre língua e
gênero e pelo modo como seus saberes se marcam, se distanciam e se aproximam nesse
debate. Finalmente, apresentamos algumas considerações que, longe de finalizarem o debate,
procuram articular alguns dos pontos levantados no batimento entre teoria e análise.

Palavras-chave: Língua e gênero. Linguagem Inclusiva. Discurso Institucional. Discurso de


militância. Feminismo.
RESUME

Ce mémoire, ancré sur l’Analyse du Discours pecheutienne, présente une analyse des
discours à propos de la langue et du genre ayant comme corpus des textes issus du contexte
institutionnel et militant. Pour cela, on présente d’abord des notions provenant de l’Analyse
du Discours et du Féminisme. Pendant que l’on se penche sur les notions fondamentales de la
théorie dans laquelle s’est basée l’analyse proposée, on cherche de les articuler au mouvement
féministe et aux études de genre. De ce fait, tant le mouvement féministe que les études de
genre ne sont pas présentés de façon chronologique ou révisionniste, mais si en ce qu’ils aient
en commun avec l’Analyse du Discours. Parmi les notions ainsi mobilisées, on souligne celles
de conditions de production, de sujet et de formation discursive. Ensuite, on propose une
révision de la notion de langue, en présentant quelques-uns de ses déploiements depuis
l’établissement de la Linguistique comme science autonome jusqu’à son état actuel dans
notre champ théorique. Une fois conclue l’exposition théorique, on réalise l’analyse du
corpus. En ce que concerne le contexte institutionnel, sont analysées des séquences
discursives prises des textes suivants : la Loi Fédérale nº 12.605 (BRASIL, 2012), qui prévoit
la flexion de genre dans l’émission de diplômes ; la Loi Régionale nº 14.484 (RIO GRANDE
DO SUL, 2014), qui définit l’utilisation d’un langage non sexiste dans la rédaction des
documents officiels ; le Décret nº 49.994 (RIO GRANDE DO SUL, 2012), qui définit
l’utilisation d’un langage non sexiste dans des actes normatifs, documents et solennités du
Pouvoir Exécutif Régional ; et deux brochures sorties par le Secrétariat de Politiques pour les
Femmes de l’État du Rio Grande do Sul : le Manual para o uso não sexista da Linguagem
[Manuel pour l’Usage Non Sexiste de la Langue] et la Cartilha da Diversidade de Gênero
[Brochure pour la Diversité du Genre]. En ce que concerne le contexte militant, sont analysés
deux articles publiés en ligne, pris de la Revista Geni [Revue Geni] et du blog Batatinhas, et
ses commentaires faits par des cybernautes. En identifiant des contradictions et des retours de
la mémoire discursive et des pré-construits, on arrive à quatre différentes positions de sujet
dans l’analyse, délinées à partir de ses dires sur la langue et le genre et par le mode comme
ses savoirs se marquent, se distancent et se rapprochent dans ce débat. Enfin, on présente
quelques considérations qui, loin d’achever le débat, cherchent d’articuler des points soulevés
dans le croisement entre théorie et analyse.

Mots-clé: Langue et genre. Langage Non Sexiste. Discours Institutionnel. Discours militant.
Féminisme.
LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Revisando................................................................................................................72

Figura 2 – Sexo, gênero, identidade de gênero.........................................................................74

Figura 3 – Delimitações............................................................................................................90
LISTA DE QUADROS

Quadro 1 – Redação excludente X Redação Inclusiva.............................................................70

Quadro 2 – Representação X Não representação......................................................................70

Quadro 3 – Regras de concordância ou sintáticas.....................................................................71

Quadro 4 – Transgênero............................................................................................................75
LISTA DE SIGLAS

AD – Análise do Discurso pecheutiana

AIE – Aparelhos Ideológicos de Estado

CLG – Curso de Linguística Geral

PS-IB – Posição de Sujeito Institucional Binária

PS-INB – Posição de Sujeito Institucional Não Binária

PS-MTM – Posição de Sujeito Militante de Transgressão Morfológica

PS-MTS – Posição de Sujeito Militante de Transgressão Sintática

SD – Sequência Discursiva
SUMÁRIO

NA PONTA DA LÍNGUA...................................................................................................... 12

1 ANÁLISE DO DISCURSO E FEMINISMO: DIÁLOGOS ............................................ 15


1.1 O DISCURSO E SUAS CONDIÇÕES DE PRODUÇÃO................................................. 15
1.1.2 O Discurso sobre o Feminismo e suas Condições de Produção ................................. 17
1.2 O SUJEITO: INTERPELADO E CIRCU(I)NSCRITO ..................................................... 21
1.2.2 O Sujeito do Feminismo ................................................................................................ 23
1.3 FORMAÇÃO DISCURSIVA: UMA NOÇÃO PARA PENSAR TANTAS OUTRAS .... 25
1.3.1 Contradição .................................................................................................................... 29
1.3.2 A Formação Discursiva Feminista e suas Diferentes Posições de Sujeito ................ 31
1.4 MEMÓRIA DISCURSIVA ................................................................................................ 35
1.4.1 A Memória no Feminismo ............................................................................................ 38

2 ALGUNS DIZERES SOBRE LÍNGUA ............................................................................ 40


2.1 A LÍNGUA DO CURSO DE LINGUÍSTICA GERAL ..................................................... 40
2.2 POR UMA SUBJETIVIDADE NA LÍNGUA ................................................................... 43
2.2.1 Bréal e o Elemento Subjetivo........................................................................................ 44
2.2.2 Benveniste e a Enunciação ............................................................................................ 45
2.3 A LÍNGUA NA ANÁLISE DO DISCURSO PECHEUTIANA........................................ 47
2.3.1 Contestações da Análise do Discurso às Perspectivas Anteriores ............................. 47
2.3.2 A Língua em Pêcheux: encontrando seu lugar ........................................................... 49
2.3.2.1 Alguns materiais para esta materialidade ..................................................................... 51
2.3.3 A Língua em Henry: reconhecendo a imperfeição ..................................................... 52
2.3.4 A Certeza do Equívoco .................................................................................................. 54
2.4 CONSIDERAÇÕES SOBRE A LÍNGUA BRASILEIRA E POLÍTICA DE LÍNGUA ... 55
2.5 AFINAL, DE QUE LÍNGUA FALAMOS? ....................................................................... 57

3 ALGUMAS TENTATIVAS DE REPRESENTAÇÃO .................................................... 59


3.1 CONSIDERAÇÕES A RESPEITO DO CORPUS ............................................................ 59
3.2 CONSIDERAÇÕES A RESPEITO DA ANÁLISE ........................................................... 60
3.3 O DISCURSO INSTITUCIONAL: A LÍNGUA ENTRE CARTILHAS E LEIS ............. 61
3.3.1 A Língua entre Leis e Decretos .................................................................................... 62
3.3.2 Manual para Uso não Sexista da Linguagem: entre o reflexo e a ferramenta ........ 65
3.3.3 Direitos Iguais nas Diferenças: diversidade de gênero .............................................. 73
3.4 O DISCURSO MILITANTE: A LÍNGUA NAS REDES .................................................. 77
3.4.1 Especificidades da Internet ........................................................................................... 77
3.4.2 O X (ou @, ou e) da Questão ........................................................................................ 79
3.5 DELIMITANDO SABERES E POSIÇÕES ...................................................................... 87

PAPAS NA LÍNGUA ............................................................................................................. 92

REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 96
NA PONTA DA LÍNGUA

Esta dissertação, apresentada em 2016, teve seu início determinado há pelo menos
cinco anos. O ano era 2011 e o Brasil assistia à chegada da primeira mulher à cadeira da
Presidência da República: Dilma Vana Rousseff, eleita pela legenda do Partido dos
Trabalhadores, sucedia Luiz Inácio Lula da Silva, assegurando mais quatro anos do partido na
Presidência. Quanto a mim, um ano depois também assumia uma cadeira até então inédita: em
2012, comecei a atuar como estagiária da Redação Oficial do Gabinete do Governador do
Estado do Rio Grande do Sul. O trabalho consistia em auxiliar na redação, elaboração, revisão
e formatação da correspondência oficial, direcionada tanto à população quanto aos órgãos dos
governos municipal, estadual e federal.
Ainda que todo meu trabalho fosse orientado e supervisionado, eu sentia uma grande
responsabilidade pela redação dessa correspondência. Como feminista, sempre me incomodou
a redação padrão, que supunha o feminino representado pelo masculino, ou, como
conciliadoramente denominado, “neutro”. Como estagiária e recém-chegada, não cabia a mim
questioná-la. Foi com grande satisfação que ouvi que, ao nos referirmos à Dilma Rousseff,
deveríamos chamá-la de presidenta, não de presidente. E com maior satisfação ainda recebi a
notícia, no fim de 2012, da instituição de um Grupo de Trabalho específico para tratar de
linguagem inclusiva dentro dos órgãos do Governo Estadual.
Em 2014, acabou meu contrato com a Redação Oficial e em seguida ingressei no
mestrado, ainda tocada por essas questões. Tendo mantido contato com a equipe com a qual
trabalhava, fui presenteada com o material resultante daquele Grupo de Trabalho, o Manual
para o uso não sexista da Linguagem, acompanhado da Cartilha da Diversidade de Gênero,
ambas publicações da Secretaria de Políticas para as Mulheres. A leitura de ambos os
materiais me inquietou: havia algo que não fechava entre eles, um incômodo que permeava a
leitura, uma primeira impressão não bem delineada, mas certamente digna de análise.
Paralelamente à minha relação com os órgãos oficiais, sempre estive conectada aos
espaços virtuais de militância feminista. E foi neles que observei grafias diferenciadas
daquelas postuladas pela gramática e pela linguagem inclusiva institucional: se estas
recomendavam a escrita de “todas e todos”, na Internet encontrávamos “tod@s”, “todes”,
“todxs”. Em alguns blogs e sites, a escrita era acompanhada por reflexão metalinguística; em
outros, era simplesmente apresentada sem quaisquer explicações; em outros ainda, era
13

rechaçada. Esse embate fez brilhar para mim a hipótese de que, em se tratando de língua e
feminismo, não havia consenso, mas havia muitos discursos e poderes em conflito.
Foi daí que nasceu esta dissertação: um ensaio teórico de análise dos discursos sobre
língua que são mobilizados frente à relação entre língua e feminismo pela perspectiva da
teoria materialista do discurso. A quem tiver familiaridade com a teoria o aviso será
desnecessário, mas é importante registrá-lo para quem não tiver: analisar não significa chegar
a um sentido certo ou a uma verdade a respeito do objeto em análise, mas, sim, observar como
se estruturam os sentidos possíveis. É esta a proposta deste trabalho, e para tanto adotei o
percurso a seguir.
O primeiro capítulo tem uma função dupla: ao mesmo tempo em que situo este
trabalho no campo teórico da Análise do Discurso pecheutiana, apresentando os conceitos
fundamentais da teoria que mobilizo para a análise aqui proposta, busco uma articulação cm a
temática do gênero, apontando modos de ler o(s) feminismo(s) a partir da Análise do
Discurso. O segundo capítulo trata de um dos objetos centrais deste estudo: a língua. Parto de
uma breve revisão teórica de como a língua enquanto noção foi elaborada desde o começo do
estabelecimento da Linguística enquanto campo de estudo autônomo, apresento alguns dos
desenvolvimentos pelos quais passou e finalizo com a abordagem dessa noção pelo campo
teórico da Análise do Discurso. É no terceiro capítulo que concentro as análises do corpus,
investigando como se articulam língua e gênero no discurso institucional e no discurso
militante, delimitando as posições-sujeito e os saberes identificáveis no debate. Finalmente,
encerro (ao menos provisoriamente) a reflexão com alguns apontamentos (pretensamente)
conclusivos suscitados pelo cotejamento entre teoria e análise.
Se até aqui estou escrevendo na primeira pessoa do singular, a partir de agora
abandono esta forma por dois motivos principais. O primeiro, mais pragmático, diz respeito
ao rigor do hábito da escrita acadêmica, que postula uma escrita impessoalizada – e dado o
objeto a que me propus analisar, o esforço e a transgressão aqui estão focados em não adotar
ao longo da escrita a neutralidade de gênero pelas formas masculinas. O segundo, mais
teórico, diz respeito à perspectiva da Análise do Discurso: não falo sozinha, não sou a origem
do sentido, e mesmo este texto do qual me julgo autora não me pertence inteiramente. Na
ausência de pronome melhor que dê conta desse modo particular de subjetivação, adoto o
“nós” – cabendo aí também, mas não apenas, a formação discursiva na qual me inscrevo, os
discursos que entrecruzam minha escrita, a ideologia que me faz assumir exatamente o papel
que sou suposta a assumir...
14

Não sou una. O assunto que analiso, tampouco. E não podendo dar conta do todo,
propomos aqui um percurso que englobe ao menos parte das inquietações que motivaram esta
escrita.
1 ANÁLISE DO DISCURSO E FEMINISMO: DIÁLOGOS

Eu, por mim, queria isso e aquilo


Um quilo mais daquilo, um grilo menos nisso
É disso que eu preciso
ou não é nada disso
(eu quero todo mundo nesse carnaval)
– Sérgio Sampaio

A Análise do Discurso pecheutiana (que aqui será referida simplesmente como


Análise do Discurso), fundada entre os domínios da Linguística, da Psicanálise e do
Materialismo Histórico, apresenta uma multiplicidade de noções que se relacionam de modo
igualmente interseccional. Neste capítulo, apresentaremos um recorte teórico das noções que
julgamos fundamentais para um bom encaminhamento desta pesquisa, reconhecendo, de
antemão, que não são os únicos possíveis para a análise do objeto. Além disso, visto que nos
são caras as contribuições do feminismo e dos estudos de gênero, procuramos articular as
noções da Análise do Discurso às noções dessas áreas, criando assim o terreno para uma
análise que se valha dos saberes de ambos os domínios.

1.1 O DISCURSO E SUAS CONDIÇÕES DE PRODUÇÃO

Uma vez que uma pessoa leiga se atreva a lançar a alguém que se engaja na Análise do
Discurso a simples pergunta “mas o que é discurso?”, corre o risco de se deparar com um
silêncio cheio de constrangimento, ou, em consonância com Orlandi (1997), pleno de
sentidos. A categoria que integra a denominação de nosso campo teórico assumirá diferentes
sentidos nos campos da Antropologia, da Filosofia, da Literatura, da Arte e de tantas outras
teorias que dela se valem. Para a pesquisa aqui desenvolvida, trabalharemos com a noção de
discurso tal qual proposta por Michel Pêcheux.
A definição inicial, que encontramos no texto AAD-69 (PÊCHEUX, [1969] 2010), é
apresentada em contestação aos esquemas reacional e informacional que comumente
representariam o comportamento verbal. O esquema reacional apresenta um estímulo
atingindo um Sujeito, que, em resposta, emite um comportamento. Para Pêcheux ([1969]
2010), esse esquema, ao anular os lugares do produtor do estímulo e do sujeito, só seria
legítimo para representar um estímulo puramente físico. É por isso que o autor descarta o
esquema reacional e prefere basear suas ressalvas no esquema informacional: um destinador
16

A emite ao destinatário B, através de um código linguístico comum, uma informação sobre


um referente.
Os constituintes desse esquema são redefinidos por Pêcheux, de onde tiramos sua
primeira definição de discurso: “(...) o termo discurso, que implica que não se trata
necessariamente de uma transmissão de informação entre A e B mas, de modo mais geral, de
um ‘efeito de sentidos’ entre os pontos A e B.” (PÊCHEUX, [1969] 2010, p. 81). Não apenas
informação é redefinida para discurso, mas também sofrem alterações conceituais os
elementos A e B, que, para Pêcheux ([1969] 2010, p. 81), “designam lugares determinados na
estrutura de uma formação social”, lugares estes que estão representados; presentes, mas
transformados. Isso quer dizer que o que funciona nesse processo são as formações
imaginárias, ou seja, as imagens que A e B fazem de si mesmos e do outro.
É nesse mesmo processo que Pêcheux ([1969] 2010) situa a noção de condições de
produção do discurso, postulando que todo discurso é pronunciado a partir de condições de
produção dadas. Partindo do exemplo de um discurso de um deputado na Câmara, Pêcheux
apresenta fatores tais como partido político, situação ou oposição, para afirmar que o que é
dito (ou prometido, ou denunciado...) terá diferentes valores a depender das relações de força
existentes naquele campo político. Assim, é lançada a hipótese de que “a um estado dado das
condições de produção corresponde uma estrutura definida dos processos de produção do
discurso a partir da língua” (PÊCHEUX, [1969] 2010, p. 78). Ou seja, não é apenas a tomada
de posição pelo sujeito que determina a emergência dos discursos, mas também certas
condições de produção: elas tanto permitem e regulam certos discursos quanto os interditam.
Posteriormente (PÊCHEUX, [1973] 2012, p. 214) apresenta uma segunda definição do
discurso e de suas condições de produção: por discurso, o autor entende “uma sequência
linguística de dimensão variável, geralmente superior à frase, referida às condições que
determinam a produção dessa sequência em relação a outros discursos”. Produção, Pêcheux
frisa, não no sentido que circula na economia ou na psicolinguística, mas no sentido de
produção de um efeito (no qual ele reconhece sua filiação althusseriana).
A pertinência das noções de discurso e de condições de produção se justifica na
repercussão que essas noções terão na AD: partindo do pressuposto de que discurso é efeito
de sentidos, assumimos que os sentidos não estão dados de antemão, mas, sim, são
construídos no processo discursivo. Processo este que é considerado em sua relação com o
equívoco da língua: é assim que Pêcheux ([1983] 2006, p. 53) afirma que “todo enunciado é
intrinsicamente suscetível de tornar-se outro, diferente de si mesmo, se deslocar
discursivamente de seu sentido para derivar para um outro”. Esse espaço de deriva é
17

justamente o espaço de trabalho da AD, que reconhece que os discursos se estabelecem num
processo de desestruturação-reestruturação, não são desprovidos de origem e destino, mas,
sim, estão inscritos em filiações sócio-históricas de identificação, acionando redes de
memória e de dizeres possíveis.
Considerar o discurso nessa perspectiva, rompendo com as noções de literalidade e de
evidência do sentido, é justamente o que marca a posição epistemológica da AD dentro do
terreno da Linguística. Portanto, quando falarmos em discurso, estaremos falando a todo
momento de um processo que se inscreve, é claro, num comportamento linguístico, mas não
apenas: trata-se também de uma inscrição subjetiva, histórica e ideológica.

1.1.2 O Discurso sobre o Feminismo e suas Condições de Produção

Considerando que nessa perspectiva tratamos de efeitos de sentido construídos no


processo discursivo, questionamos: quais são os sentidos mobilizados, construídos e
reconstruídos quando falamos no discurso feminista? Esse discurso já constituiria hoje uma
categoria fixa, dotada de pouca mobilidade, ou os sentidos estariam em permanente
construção? Mantendo a perspectiva da análise do discurso, propomos uma breve reflexão que
associe essas questões ao discurso sobre o movimento feminista.
Para Hemmings (2009), o modo como o feminismo ocidental1 é narrado
academicamente é de grande pertinência quanto àquilo que entendemos por feminismo. A
autora critica a tradicional divisão do feminismo por ondas, visto que estas tenderiam a
homogeneizar as demandas e os questionamentos de cada fase, apagando as singularidades e
silenciando autoras que, ainda que não tenham se tornado centrais em sua época, são
representativas da pluralidade do movimento. Além disso, essa narrativa apresentaria o
feminismo de modo linear, “como um movimento partindo do pensamento feminista radical,
socialista e liberal em direção a uma teoria pós-moderna do gênero” (HEMMINGS, 2009, p.
216).
A narrativa criticada por Hemmings atribui, por exemplo, à década de 70 um caráter
essencialista, que tomava a categoria de mulher como pressuposto e determinante. Essa
perspectiva é assegurada pela costura de binarismos, sempre contrapostos às perspectivas que
eclodiram na década de 90. A década de 80, por sua vez, teria rompido com a suposta

1
Não estão dentro do escopo de nossa pesquisa as demandas feministas das culturas orientais, bastante
particulares e culturalmente distintas das aqui apresentadas.
18

homogeneidade do feminismo a partir da inclusão das demandas das mulheres negras. Sempre
segundo Hemmings (2009), esse modo de narrar o feminismo estabelece uma linha
cronológica evolutiva que sugere que, ao chegar na década de 90, o feminismo assumiu um
caráter pós-estruturalista baseado na diferença (o que permite o surgimento da vertente queer,
por exemplo).
A crítica da autora à narrativa que foi estabelecida a respeito do feminismo concerne a
esta pesquisa por exemplificar como alguns discursos são tomados como legítimos em
detrimento de outros e como o deslocamento discursivo consagra alguns sentidos e silencia
outros. Em nossa perspectiva teórica, reconhecemos a fragilidade das revisões que sugerem
uma linearidade temporal: ora, a história não se desenvolve de modo homogêneo, e descrever
um movimento social numa sucessão cronológica apresenta o risco de silenciar suas
contradições e estabilizar seus sentidos como já postos e não construídos. É em Althusser
(1978) que nos baseamos para afirmar que a história é um processo sem sujeito nem fim, e
que aqueles sujeitos que julgamos os porta-vozes de dados movimentos só o são porque as
condições históricas assim o permitiram. Esses movimentos não são resultado da inspiração
pontual de um indivíduo autônomo, mas de um processo histórico que eclodirá na irrupção de
um acontecimento.
Isso vai ao encontro do que Orlandi (1990) apresenta sobre o discurso sobre: como
discurso relatado de fora, ele age na institucionalização dos sentidos, buscando a linearidade e
a homogeneidade, representando geralmente lugares de autoridade. Nesse sentido,
identificamos, na narrativa vigente sobre o movimento feminista, um significativo jogo de
forças que regula quais saberes serão reconhecidos e quais serão silenciados: são reconhecidas
sobretudo as classificações polarizadas e são silenciadas as contradições, numa tentativa de
apaziguar academicamente a efervescência característica da militância.
Voltando agora nosso olhar para o feminismo que toca mais diretamente a nossa
pesquisa, aquele que se desenvolveu em solo brasileiro, é em Pinto (2003) que nos apoiamos
para relacioná-lo a uma manifestação de classe. Para a autora, que situa as primeiras
manifestações feministas brasileiras em alinhamento ao movimento sufragista, as condições
de existência excepcionais da porta-voz dessa fase, Bertha Lutz, foram determinantes para o
desenvolvimento de uma militância bem comportada. Filha de uma elite econômica e
intelectual, com parte dos estudos concluídos no exterior, Lutz transitava de modo confortável
na elite política da época e “lutava pelos direitos negados pelo Estado brasileiro à mulher, mas
ao mesmo tempo era representante oficial desse mesmo Estado em conferências
internacionais” (PINTO, 2003, p.23). Pinto ressalta que o pleito pelo direito ao voto
19

(conquistado em 1932), em consonância com os países centrais, não desafiava as bases das
relações patriarcais, agindo no limite da pressão intraclasse: buscava a inclusão, não a ruptura.
Coisa muito diferente acontecia quanto ao feminismo anarquista, que, sempre segundo
Pinto (2003), antecipava, já na década de 1920, uma percepção que só conquistaria um terreno
significativo no final do século: ao afirmarem que as opressões são sofridas de modo
específico, que abrangem não apenas gênero, mas também classe e raça, as feministas
anarquistas plantavam as sementes do que seria consagrado na década de 1980 como o
feminismo da diferença. Era assim que o movimento se dirigia principalmente às operárias e
artesãs, à classe trabalhadora, separadamente do debate que Lutz promovia entre mulheres
com acesso à educação formal. Essa vertente, que Pinto designa de feminismo mal
comportado, instaura uma ruptura também dentro do próprio movimento anarquista ao
defender que o problema da dominação da mulher é diferente do da dominação de classe,
reconhecendo inclusive o gênero como um dos elementos estruturantes da desigualdade nas
relações de trabalho.
A apresentação de Pinto dessas vertentes polarizadas sugere que o discurso do
movimento feminista é marcado desde suas condições de produção iniciais por uma
heterogeneidade de demandas e de estratégias, atestado pelo protagonismo de sujeitos em
lugares sociais bastante distintos. Assim, sua movimentação na rede de sentidos dará
continuidade a essa heterogeneidade, o que podemos identificar no atual debate sobre
linguagem inclusiva: não seriam algumas das propostas (apresentadas no capítulo 3) um
retorno da polarização “feminismo bem comportado” versus “feminismo mal comportado”?
Podemos pensar esse aspecto à luz do que Courtine (2009) propõe para pensar as
condições de produção, relacionando-as às formações discursivas. O autor lança uma crítica
às dificuldades que a noção conforme proposta por Pêcheux apresenta, especialmente no que
se refere à marcação de uma abordagem específica da AD. Para o autor, a definição que
relaciona lugares objetivamente definidos às suas representações subjetivas dá margem a
interpretações que apagam as determinações objetivas características do processo discursivo.
Dessa forma, não é efetuado um rompimento efetivo da noção de condições de produção para
o quadro teórico da AD com a noção em seu viés psicossociológico.
Courtine (2009) demonstra que a definição da noção de condições de produção do
discurso, sem conseguir se afastar da noção da situação de enunciação, é empírica,
heterogênea e instável. Sua argumentação é exemplificada pela relação que o autor estabelece
entre o processo de constituição dos corpora em AD e o modo como este problematiza a
noção de condições de produção. Para o autor, a própria seleção do corpus discursivo já
20

corresponde a um estado determinado das condições de produção do discurso. Nesse sentido,


enquanto alguns discursos podem jamais vir a ser objeto de análise, outros (o autor utiliza o
exemplo dos discursos políticos) são bastante recorrentes nos corpora discursivos. Assim, as
condições de produção atuam como uma espécie de filtro na constituição do corpus,
homogeneizando as sequências discursivas que o constituem através de uma série de
restrições, correndo o risco de um apagamento da contradição e de um silenciamento do
interdiscurso. Além disso, nesse processo, as condições históricas de produção do discurso
podem ser preteridas em relação às características específicas de uma situação de
comunicação, reforçando uma predominância psicossociológica da noção de condições de
produção ligada à definição empírica.
É por isso que o autor propõe como definição teórica que as condições de produção do
discurso estejam “sob a dependência da relação que uma FD mantém com a ‘pluralidade
contraditória’ de seu interdiscurso” (COURTINE, 2009, p. 76). Nessa perspectiva, ao pensar
sobre as condições de produção do discurso, considera-se mais do que as relações
estabelecidas entre as formações imaginárias que os lugares determinados numa estrutura
social atribuem a si mesmo e ao outro, mas sobretudo as formações discursivas nas quais estes
se inserem e o interdiscurso que é recortado de modo específico, afetado pela história e pela
contradição, por cada uma dessas formações.
Nesse sentido, nos interessa principalmente o jogo de dominância que se estabelece
entre as formações discursivas em contato naquele primeiro momento – e que, com os devidos
desdobramentos, pode ser identificado também no movimento feminista de hoje. Ora, a
formação discursiva feminista não estava apartada de uma formação discursiva centrada nos
saberes do anarquismo nem de uma formação discursiva centrada nos saberes da democracia.
No entanto, sendo a democracia o regime vigente e corroborado pelo Estado, e o anarquismo
justamente uma forma baseada na militância, de contestação ao regime vigente, enxergamos
como formação discursiva dominante daquele momento aquela que se alinha aos saberes do
Estado. Essa dominação pode ser pensada junto à proposta de Althusser a respeito dos
aparelhos ideológicos de Estado, definidos como “um certo número de realidades que
apresentam-se ao observador imediato sob a forma de instituições distintas e especializadas”
(ALTHUSSER, 1985, p. 68). Segundo Althusser (1985, p. 71), são os aparelhos ideológicos
de Estado que asseguram que a ideologia dominante, “que é a ideologia da ‘classe
dominante’”, mantenha seu status de dominação e aparente unicidade, mesmo estando
permeada pela diversidade e por contradições.
21

É assim que, ainda que permeadas por uma mesma formação discursiva, as condições
de produção de um feminismo bem ou mal comportado serão diferentes conforme se alinhem
mais ou menos aos saberes de uma formação discursiva dominante ou aos deformações
discursivas dominadas. Salientamos, nesse sentido,a noção de interdiscurso para Pêcheux
([1975] 2009, p. 148-149), que diz respeito ao “‘todo complexo com dominante’ das
formações discursivas”, o que lemos como a coexistência de diferentes formações discursivas
que se embrenham em jogos de forças nos quais umas delimitam as outras, havendo uma que
permanece em dominância. Uma vez que o feminismo bem comportado, sem a pretensão de
destruir as bases patriarcais, conquistou com o apoio do Estado o direito pleiteado,
identificamos em suas condições de produção uma inscrição dos saberes da formação
discursiva dominante.

1.2 O SUJEITO: INTERPELADO E CIRCU(I)NSCRITO

Do ponto de vista da AD, o sujeito é interpelado pela ideologia e afetado pelo


inconsciente, o que marca a distância que a AD toma de teorias idealistas, que pressupõem um
sujeito consciente e autônomo. O percurso que propomos aqui pretende não apenas
caracterizar esse sujeito, mas também posicioná-lo como noção dentro da teoria da AD e da
análise aqui proposta.
Para tratar da interpelação ideológica do sujeito, Pêcheux ([1975] 2009) baseia-se em
Althusser, motivo pelo qual partimos deste autor para então chegar às considerações daquele.
Antes de revisarmos o que Althusser ([1971] 1985) entende por sujeito, é necessário passar
pelas suas reflexões acerca da ideologia. São três as suas principais proposições a respeito: a
ideologia não tem história; a ideologia é uma “representação” da relação imaginária dos
indivíduos com suas condições reais de existência (esta se divide em duas teses: a ideologia
representa a relação imaginária dos indivíduos com suas condições reais de existência e tem
uma existência material); e, a que repercute de modo mais específico em nossa teoria, a
ideologia interpela os indivíduos enquanto sujeitos. Para uma melhor compreensão da terceira
proposição, julgamos produtiva uma explanação, ainda que breve, a respeito das duas
anteriores.
Althusser ([1971] 1985) compreende a ideologia sem história considerando que sua
estrutura e seu funcionamento a tornam uma realidade não histórica, pois se apresentam em
toda história com a mesma forma imutável. Ele relaciona esse aspecto da ideologia ao que
Freud propunha sobre o inconsciente: assim como o inconsciente é eterno, também a
22

ideologia o é. Para Althusser ([1971] 1985, p. 85), “a eternidade do inconsciente não deixa de
ter relação com a eternidade da ideologia em geral”. É nesses termos que o autor, tal qual
Freud propôs uma teoria do inconsciente em geral, propõe uma teoria da ideologia em geral.
Quanto às duas teses da segunda proposição, estas tratam da representação das condições de
existência na ideologia (para Althusser, não são representadas as condições reais, mas sim as
imaginárias, fruto da relação do indivíduo com as condições) e da materialidade da ideologia
(Althusser propõe que ela pertence ao campo das práticas).
A terceira proposição, que nos interessa especialmente devido à sua repercussão no
campo da AD, trata de uma relação constitutiva recíproca entre sujeito e ideologia: só existe
ideologia quando existem sujeitos, e só existem sujeitos porque existe ideologia. É a ideologia
que interpela indivíduos em sujeitos, e dizer sujeito, portanto, é dizer sujeito ideológico, pois
ele vive espontaneamente na ideologia. Nesse ponto, Althusser ([1971] 1985, p. 94) traz o
conceito de “efeito ideológico elementar”, que trata da evidência de que todo mundo é sujeito,
e, enquanto sujeito, é único, insubstituível e idêntico a si mesmo. Evidência que, por sua vez,
consiste no principal trabalho da ideologia: ela impõe as evidências de modo que não venham
a ser questionadas.
É assim que Pêcheux ([1975] 2009) sustenta que a constituição do sentido se une à
constituição do sujeito, dado o papel central que tem a ideologia tanto em uma quanto em
outra: é pela interpelação ideológica que se dá a identificação do sujeito com a formação
discursiva. Como efeitos dessa interpelação, trazemos o que Pêcheux denominou de
esquecimentos inerentes ao discurso: o primeiro, que tem relação com o inconsciente, diz
respeito ao fato de o sujeito não poder se situar fora de sua formação discursiva; o segundo
diz respeito ao fato de o sujeito poder selecionar dentro de sua formação discursiva dizeres e
enunciados que se encontram em relação parafrástica, optando2 por um em detrimento de
outro, ainda que este outro também esteja dentro do terreno de dizeres autorizados por aquela
formação discursiva.
Magalhães e Mariani (2010), por sua vez, afirmam que a entrada do sujeito na
linguagem o submete ao mesmo tempo a uma estrutura linguística e a sentidos já pré-
estabelecidos na historicidade e na memória. Desse modo, para compreender o funcionamento
do sistema de significantes, é preciso considerar que este se marca por uma negatividade e por
uma descontinuidade: “há uma distância entre um significante e outro, e nessa distância

2
Importante salientar que não se trata de escolha e opção conscientes e autônomas, mas resultantes da
interpelação à qual o sujeito está sempre-já submetido.
23

marca-se um vazio” (MAGALHÃES; MARIANI, 2010, p. 394). Nesse sentido, quando


falamos, estamos, por um lado, submissos ao sistema da linguagem; por outro, confrontados
com este vazio do qual não se escapa.
As autoras afirmam ainda que os significantes de que nos apropriamos são
transmitidos na convivência com “os pequenos outros, representantes do grande Outro”
(MAGALHÃES; MARIANI, 2010, p. 394). Isso implica que nossa entrada na linguagem já é
desde sempre constitutivamente marcada pela alteridade, pelas leis do simbólico que os
pequenos outros transmitem. É através desse simbólico, constitutivo, que o sujeito,
possibilitado pelo acontecimento da linguagem, é adaptado à ordem cultural e social na qual
está inscrito.
No que diz respeito especificamente à nossa pesquisa, a noção de sujeito é pertinente
porque é justamente na relação entre sujeito e língua que ganha corpo o debate sobre
linguagem inclusiva: é o sujeito que pode (ou não) ser representado pela língua, é o sujeito
que pode (ou não) alterar a língua para que esta o represente, é o sujeito que se identificará
com este ou aquele modo de dizer... Este sujeito está, de um modo ou de outro, relacionado ao
feminismo, que, por sua vez, também se debruça – diferentemente – sobre a noção de
sujeito(s).

1.2.2 O Sujeito do Feminismo

Ao falarmos em feminismo, estamos falando de um movimento que luta pelos direitos


das mulheres. Se nessa definição inicial encontramos um consenso, este se esvai frente às
perguntas: que direitos? que mulheres? Assim, ao tratarmos do sujeito do feminismo, nossa
preocupação é dupla: por um lado, nos interessa como o movimento feminista tem abordado
essa questão; por outro, queremos situá-la dentro de nossa perspectiva teórica, visto que a
categoria de sujeito – assim como a de discurso – se presta a leituras bem distintas a depender
do referencial teórico que se adota.
É na revisão apresentada por Costa (2002) que nos apoiamos para fazer essa
aproximação. A autora aponta diversas fases e nuances que (des)constituíram o sujeito do
feminismo, movimento este considerado um dos “empreendimentos teóricos e políticos mais
incisivos e de mais profundo impacto entre as lutas contemporâneas contra a sujeição, a
opressão e a dominação” (COSTA, 2002, p. 68). A discussão, assim como observado por
Hemmings (2009) quanto à narrativa do feminismo em diferentes décadas, se volta mais uma
vez para a alternância entre essencialismo e antiessencialismo.
24

Assim, como exemplo da tendência essencialista, Costa apresenta os filósofos pós-


estruturalistas que, numa tentativa de caracterizar a mulher, acabam reposicionando-a como o
Outro – posicionamento já criticamente apontado por Beauvoir ([1949] 2009) na década de
40. Definida por sua negatividade, por seu corpo, nessa perspectiva a mulher, como uma
categoria fixa, é construída sobretudo a partir da fala masculina. É em Alcoff (1988) que
Costa (2002) se baseia para afirmar que um feminismo focado na mulher reforçava uma
concepção humanista, reacionária e equivocada, na qual o sujeito feminino é concebido
centralmente a partir de sua identidade essencial como mulher.
Um outro modo de definir a mulher, como sujeito e como signo, é pleiteado por uma
corrente teórica oposta, que recusa o título de essencialista, argumentando que na estrutura
patriarcal nunca coube à mulher assumir o papel de sujeito, visto que sua identidade era
sempre externamente atribuída. Nessa perspectiva, a própria demanda de ocupar de forma
autoral a categoria “mulher” já é considerada uma forma de transgressão. Reconhecendo a
heterogeneidade e historicidade da categoria, propõe-se que ela deve continuar sendo utilizada
para que as mulheres se articulem politicamente, desde que sejam reconhecidas também as
divergências no que concerne às temporalidades e densidades.
Costa (2002, p. 66) resume a questão no que chama de “a dupla visão do feminismo:
seu sujeito, longe de ser apenas uma metáfora ou uma questão de pura diferença, existe dentro
e fora da ideologia de gênero”. Assim, é um sujeito que demanda seu próprio espaço de
autodefinição em confronto com a definição que lhe foi atribuída pelo patriarcado. O que a
autora defende é que o estabelecimento de uma identidade de gênero fixa, ainda que seja um
processo criticável e problemático, é fundamental para que se estabeleça um projeto feminista
mais amplo. A desconstrução da mulher enquanto categoria leva ao risco do extremo de não
haver mais um sujeito do movimento – e, não havendo sujeito, a luta reivindica direitos para
quem?
Nesse sentido, a autora aponta que a relação de contradição essencialismo versus
antiessencialismo é um falso dilema, visto que negar uma unidade preestabelecida não exige
que se abra mão de uma identidade comum heterogênea. Para tanto, Costa (2002) revisa a
proposta de Alcoff (1988) de mulher como posicionalidade politicamente assumida: há
diferentes modos e posições de assumir essa identidade, modos que abrangem identidades e
relações sociais que vão além do gênero (é o caso, por exemplo, de reconhecer as
diferenciadas demandas relacionadas a classe, raça, orientação sexual...). A ressalva à
proposta de posicionalidade é que ela excluiria os grupos que historicamente são privados do
acesso à identidade, à individualidade e à representatividade – suas histórias não importam.
25

São justamente as diferentes modalidades de opressão que são levantadas por Costa
(2002) para afirmar que os sujeitos do movimento feminista, ainda que plurais, partem de
lugares específicos que delimitam a forma como se representarão e serão representados (ou
não). Por isso a autora defende que a difícil condição do feminismo é lidar com esse jogo de
de-limitações do que é dito com o que não é dito, dos lugares e das ausências desses espaços
de fala.
A fim de pensarmos o sujeito do feminismo junto à noção de sujeito da AD, é
produtivo trabalhar antes a noção de formação discursiva, para então refletirmos sobre a
inscrição na sua rede desse sujeito interpelado e afetado, compactuando com seus saberes e
dizeres, podendo reproduzi-los ou contestá-los de acordo com as diferentes modalidades de
identificação do sujeito.

1.3 FORMAÇÃO DISCURSIVA: UMA NOÇÃO PARA PENSAR TANTAS OUTRAS

Para tratarmos da noção de formação discursiva, trabalhamos na presença das noções


de sujeito, de língua e de sentido, de modo que faz-se necessário articulá-las conjuntamente.
A primeira definição de formação discursiva não partiu de Pêcheux, mas de Foucault (1995).3
Para este, a formação discursiva está relacionada à regularidade dos enunciados:

No caso em que se puder descrever, entre um certo número de enunciados,


semelhante sistema de dispersão, e no caso em que entre os objetos, os tipos de
enunciação, os conceitos, as escolhas temáticas, se puder definir uma regularidade
(uma ordem, correlações, posições e funcionamentos, transformações), diremos, por
convenção, que se trata de uma formação discursiva. (FOUCAULT, 1995, p.43).

Já a concepção de formação discursiva de Pêcheux, com a qual trabalharemos, funda-


se sobre a noção de formação ideológica: “aquilo que, numa formação ideológica dada, isto é,
a partir de uma posição dada numa conjuntura dada, determinada pelo estado da luta de
classes, determina o que pode e deve ser dito” (PÊCHEUX, [1975] 2009, p. 147, grifos do
autor). Por formação ideológica entendemos, segundo Haroche, Pêcheux e Henry ([1971]
2007, p. 26), “um conjunto complexo de atitudes e de representações que não são nem
‘individuais’ e nem ‘universais’, mas que se relacionam mais ou menos diretamente a
posições de classes em conflito umas em relação às outras”. Assim, uma mesma formação

3
Embora trabalhemos com essa cronologia, salientamos que ela é contestada por Baronas (2004), que sugere
uma “paternidade compartilhada” do termo, alegando que este apareceu primeiro num texto de Pêcheux, para
somente um ano depois ser usado por Foucault.
26

ideológica comporta diferentes formações discursivas, com a semelhança de que não há ponto
pacífico em nenhuma delas: tanto a formação ideológica quanto a formação discursiva são
permeadas por conflitos, de posições de classes, como estabelecido na formulação dos
autores, mas não apenas. Uma vez que partimos dos pressupostos de que os enunciados
deslizam, os saberes se compartilham, os sentidos não são fixos e a alteridade está presente
desde a entrada do sujeito na linguagem, compreendemos os conflitos como inerentes a
qualquer formação.
É assim que Courtine (2009, p. 73) relaciona as noções de formação ideológica,
formação discursiva e interdiscurso: para o autor, as relações contraditórias das formações
discursivas, dependentes das formações ideológicas, são inscritas na materialidade mesmo
dessas formações discursivas, “isto é, em sua materialidade linguística”. Essa inscrição traz à
tona uma questão fundamental referente à formação discursiva, qual seja, a luta pelos
sentidos: a formação discursiva é responsável por determinar os sentidos das palavras, visto
que estas “mudam de sentido segundo as posições sustentadas por aqueles que as empregam”
(PÊCHEUX, [1975] 2009, p. 146-147). Pêcheux enfatiza que a mesma expressão pode
receber sentidos diferentes e igualmente evidentes a depender da formação discursiva em que
são pronunciadas, e isso reforça a não transparência e não univocidade do sentido, em
consonância com a concepção de língua pela perspectiva teórica da AD (conforme capítulo
2).
Para compreendê-la, é necessário retomar o papel central da ideologia e seu
consequente efeito de evidência: por um lado, a evidência do sujeito como “único,
insubstituível e idêntico a si mesmo” (PÊCHEUX, [1975] 2009, p. 141); por outro, a
evidência do sentido, que faz com que “uma palavra ou um enunciado ‘queiram dizer o que
realmente dizem’ e que mascaram, assim, sob a ‘transparência da linguagem’, aquilo que
chamaremos o caráter material do sentido” (PÊCHEUX, [1975] 2009, p. 146).
Se reconhecemos o caráter material do sentido e atribuímos à ideologia, não apenas ao
sistema linguístico, a evidência do sentido, cai por terra a possibilidade de um sistema
linguístico pautado exclusivamente na divergência de valores entre signos. A respeito disso,
Pêcheux postula que a língua é a base comum para diferentes processos discursivos. Assim, a
ênfase retorna novamente ao discurso, sendo a materialidade linguística sua forma de acesso,
mas não a detentora soberana dos sentidos. Pelo contrário, uma mesma materialidade
linguística pode significar de modos completamente distintos se estiver inserida em diferentes
formações discursivas, evidenciando a dependência que o sentido tem com a história e as
formações sociais. A partir daí a língua pode ser repensada por uma abordagem materialista,
27

com suas transgressões, contradições, deslocamentos, deslizamentos, equívocos e enunciados


com pontos de deriva possíveis.
Nesse sentido, importa a explanação de Pêcheux ([1975] 2009) a respeito do
interdiscurso e do discurso-transverso. O interdiscurso abriga dois tipos de elementos: o pré-
construído e as articulações. De um lado, o pré-construído apresenta o “sempre-já-aí” da
interpelação ideológica, impondo uma realidade, um sentido ao sujeito; de outro, a articulação
“constitui o sujeito em sua relação com o sentido” (PÊCHEUX, [1975] 2009, p. 151) em dada
formação discursiva. É isso que nos permite afirmar que todo discurso carrega ao mesmo
tempo uma presença anterior e uma manifestação atual. Essa manifestação, sempre segundo
Pêcheux ([1975] 2009, p. 153), “provém da linearização (ou sintagmatização) do discurso-
transverso no eixo do que designaremos pela expressão intradiscurso, isto é, o funcionamento
do discurso com relação a si mesmo”. Trata-se então de uma dupla relação: ao mesmo tempo
com o outro sempre já-lá e com o próprio funcionamento. Quanto ao discurso-transverso, este
é ao mesmo tempo aquilo que é parcialmente linearizado e aquilo que atravessa o linearizado,
comportando o que poderia ser dito, mas não foi.
Como já revisamos, não existe a possibilidade de o indivíduo não ser interpelado pela
ideologia: é apenas dessa forma que ele se constitui sujeito, e a partir daí pode enunciar
circundado pelos saberes da formação discursiva em que se inscreve. Também não se pode
estar fora de uma formação discursiva: ainda que exista um espaço de mobilidade para o
sujeito se identificar ou desidentificar, sair de uma formação discursiva representa
necessariamente se inscrever em outra. Essa inscrição, que não se dá de modo uniforme e sem
conflitos, é explicada pela noção de forma-sujeito, com seus desdobramentos e fragmentações
(INDURSKY, 2008).
O sujeito se identifica com uma formação discursiva pelo viés da forma-sujeito,
conceito que Pêcheux ([1975] 2009) toma de Althusser ([1974] 1978b) e que diz respeito à
“forma de existência histórica de qualquer indivíduo, agente das práticas sociais”
(ALTHUSSER, [1974] 1978b, p. 67 apud PÊCHEUX [1975] 2009, p. 150). A forma-sujeito,
para Pêcheux ([1975]2009), realiza a incorporação-dissimulação do interdiscurso: é através
dela que, ao elaborar seu dizer no fio do intradiscurso, o sujeito, ao mesmo tempo em que
seleciona dizeres do interdiscurso para deles se apropriar (afetado pela ilusão de que aqueles
dizeres são seus), apaga os outros dizeres possíveis dos quais seu dizer se descola, reforçando
a ilusão de estar na origem do sentido. Além disso, a forma-sujeito é veiculada pela formação
discursiva dominante, a qual, por sua vez, tem sua dominação determinada pelas formações
discursivas que constituem o seu interdiscurso. É assim que Courtine (2009) postula que não é
28

possível dissociar do interdiscurso o estudo de um processo discursivo inscrito em dada


formação discursiva. É a partir do interdiscurso que se podem estudar as modalidades de
assujeitamento referente à forma-sujeito da formação discursiva.
Os desdobramentos pelos quais a noção de forma-sujeito passou repercutem na noção
de formação discursiva (INDURSKY, 2008): em ambos os casos, a heterogeneidade não foi
reconhecida desde o princípio, aparecendo nas primeiras formulações como dotadas de
bastante unicidade. A noção de forma-sujeito introduz também a de tomada de posição,
“compreendida como o efeito, na forma-sujeito, da determinação do interdiscurso como
discurso-transverso ” (PÊCHEUX, [1975] 2009, p. 160). O que entra em jogo aqui são as
relações de força estabelecidas entre as diferentes formações discursivas que constituem o
interdiscurso, sendo a dominante aquela que exercerá a determinação da forma-sujeito.
No mesmo sentido, Pêcheux ([1975] 2009) teoriza sobre as modalidades da tomada de
posição, ou diferentes modos de se identificar com os saberes de dada FD, resultantes do
desdobramento da forma-sujeito: a identificação plena, a contra-identificação e a
desidentificação. Assim, a identificação plena caracteriza o discurso do bom sujeito, numa
superposição do sujeito do discurso ao sujeito universal (a forma-sujeito) da formação
discursiva, reduplicando os saberes da FD sem questioná-los. Já a contra-identificação
caracteriza o discurso do mau sujeito, que contesta, duvida e se afasta dos saberes da
formação discursiva com a qual está identificado – sem chegar a desidentificar-se, no entanto.
A desidentificação acontece quando o sujeito se desloca de uma FD a outra, deixando de se
identificar com os saberes da antiga para se identificar com os da nova.
Courtine ([1981] 2009), por sua vez, dialoga com Foucault ([1969]1995), para quem o
sujeito do enunciado constituiria uma função vazia a ser ocupada por este ou aquele
indivíduo. Partindo dessa formulação, Courtine ([1981] 2009, p. 87) a relaciona à
problemática da forma-sujeito, vislumbrando na função vazia descrita por Foucault “o lugar
do sujeito universal próprio a uma determinada FD”, ponto no qual os elementos de um saber
encontram a sua estabilidade referencial. Essa estabilidade tem a ver com a evidência do
sentido e com os sentidos possíveis naquela FD, entre os quais o sujeito circula e a partir dos
quais elabora seu dizer. Assim, Courtine ([1981] 2009) define a posição de sujeito como a
relação que se estabelece entre um sujeito enunciador (que se apropriou dos saberes daquela
FD, articulando-os como se fossem seus) e o sujeito do saber da FD (que reúne seus saberes
centrais). As possíveis variações dessa relação, sempre segundo Courtine, produzem os
diferentes efeitos-sujeito no discurso.
29

Se até agora falávamos em desdobramento, Indursky (2008) propõe que, mais do que
isso, se trate de uma fragmentação. Essa diferente perspectiva se deve à multiplicidade de
posições-sujeito que a forma-sujeito pode assumir: desdobrá-la em apenas três modalidades
não daria conta de todas elas, que se multiplicam à medida que o sujeito se aproxima ou se
afasta da forma-sujeito que organiza os saberes daquela FD. É em Indursky (2008), portanto,
que nos baseamos para pensar na heterogeneidade e na porosidade da FD, que permitem que
outros saberes ali adentrem e reverberem, repercutindo no modo como os sujeitos com ela se
identificam e alimentando os espaços de contradição. O que determina o surgimento de uma
nova formação discursiva é a irrupção, dentro dessa possível mobilidade entre as diferentes
posições, de uma nova forma-sujeito, que não mais se identifica com os saberes de sua FD e
passa a dizer aquilo que, dentro dessa FD, com suas diferentes posições-sujeito, não pode ser
dito.
Sendo porosas as fronteiras que delimitam as formações discursivas e sendo possível a
coexistência de diferentes posições-sujeitos, cabem algumas considerações a respeito da
noção de contradição, que assume papel central frente a uma forma-sujeito fragmentada (e,
daí, multiplicada).

1.3.1 Contradição

Pêcheux ([1975] 2009, p. 130) considera a existência de um caráter “intrinsecamente


contraditório” em todo modo de produção que tenha como princípio a luta de classes. Essa
contradição pode ser atribuída tanto à multiplicidade de ideologias que se marca entre classes
distintas quanto às diferentes ideologias que se manifestam numa mesma classe, e, nesse
sentido, retornamos novamente à teoria althusseriana que serve de base para a reflexão
pecheutiana, voltando-nos agora sobre os Aparelhos Ideológicos de Estado (doravante AIE).
Os AIE, para Althusser, são o lugar e o meio de realização da ideologia dominante. A
definição é acompanhada por uma ressalva: não se trata de aparelhos de pura e simples
reprodução; pelo contrário, eles constituem “o palco de uma dura e ininterrupta luta de
classes” (ALTHUSSER, 1985, p. 106 apud PÊCHEUX, 2009, p. 131). Assim, os AIE
constituem, em dada formação social, um conjunto complexo, “com relações de contradição-
desigualdade-desubordinação entre seus ‘elementos’” (PÊCHEUX, [1975] 2009, p. 131). Um
dos efeitos imediatos dessas relações é que cada um dos AIE contribui de forma diferenciada
tanto para a reprodução das relações de produção quanto para sua transformação, confirmando
30

que o vínculo entre a reprodução e a transformação das relações de produção é contraditório e


ligado ao nível ideológico.
Esse caráter ideológico, sempre segundo Pêcheux ([1975] 2009), se manifesta na
imposição de novas relações de desigualdade e subordinação no interior do complexo dos
AIE: é aí que se trabalha a noção da transformação, visto que essas novas relações
transformariam a relação do Estado com o conjunto do complexo dos AIE e, por fim,
transformariam o próprio aparelho de Estado. Isso equivale a dizer que é a estrutura da
contradição entre reprodução e transformação que “constitui a luta ideológica de classes”:

a relação de classes é dissimulada no funcionamento do aparelho de Estado pelo


próprio mecanismo que a realiza, de modo que a sociedade, o Estado e os sujeitos de
direito (livres e iguais em direito no modo de produção capitalista) são produzidos-
reproduzidos como evidências naturais (PÊCHEUX, [1975] 2009, p. 134)

É parte da tarefa da AD, reconhecendo o trabalho da Ideologia, compreender como se


produzem e se reproduzem essas evidências: evidências das classes, dos sujeitos e dos
sentidos, e de que tudo isso é como é porque só poderia ser assim. Nesse ponto, adiantamos
algumas ponderações a respeito da noção de língua no âmbito da AD (sobre a qual nos
estenderemos no capítulo 2), visto que a língua funciona também como condição e palco para
que se manifeste a luta de classes. Dessa forma, fazemos eco ao apontado por Schons e
Mittmann (2009, p. 299) ao afirmarem que:

Tomar a língua como plana, transparente, unívoca e homogênea é deixar-se levar


pelas ilusões provocadas pela própria ideologia dominante, que, em sua ânsia por
manter a todo custo um imaginário de sociedade sem conflito de classes, impõe o
monologismo, o sentido único, nas constantes tentativas de silenciar o que sempre
vem irromper: o próprio jogo de forças entre as ideologias.

O silenciamento desse jogo de forças é marcado justamente onde se nega a


contradição: uma vez que aos estudos linguísticos é atribuído um estatuto de cientificidade, a
interpelação ideológica é convenientemente deixada de lado, pautando-se na ilusão de que a
ciência é isenta de ideologia, e, portanto, uma área que se pretenda científica não deveria se
reconhecer ideológica. Enquanto analistas do discurso, caminhamos em direção contrária: não
concebemos um estudo que não considere o papel da ideologia e de suas consequentes
relações de reprodução, transformação e contradição.
É por isso que Pêcheux (1980) afirma em texto posterior que “uma certa maneira de
tratar os textos está inextricavelmente imbricada em uma certa maneira de fazer política”.
31

Nesse sentido, o autor considera os estudos linguísticos como uma tomada de posição na luta
de classes: para Pêcheux, o modo de pensar a língua se liga ao modo de pensar a história.
Retomando Schons e Mittmann (2009), salientamos que, uma vez que a constituição
das formações ideológicas se dá de modo desigual e contraditório, não é possível pensar na
FD como um só discurso para todos, mas antes como dois ou mais discursos em um único. No
mesmo sentido, Indursky (2005) defende que a formação discursiva seja considerada “desde
sempre já ideológica e contraditória”. Considerar o aspecto contraditório inerente às
formações discursivas, juntamente à diversidade das posições-sujeito, evita que leiamos
ruptura e irrupção de uma nova formação discursiva onde o que na verdade se manifesta é a
contradição constitutiva – o que virá à tona quando da análise do discurso institucional, por
exemplo.

1.3.2 A Formação Discursiva Feminista e suas Diferentes Posições de Sujeito

Analisar o movimento feminista pelo viés da Análise do Discurso permite uma leitura
particular sobre a problemática questão do sujeito do feminismo: podem ser vários, ou
melhor, podem se apresentar diversas posições de sujeito. O que desejamos nesta seção é, a
partir do que entendemos do movimento feminista, esboçar uma proposta de delineamento de
uma formação discursiva feminista que dê conta da multiplicidade de saberes e posições de
sujeito que a constituem.
Deste modo, partindo da definição inicial de Pêcheux, pensamos sobre o que pode e
deve ser dito no âmbito de uma formação discursiva feminista. Procurando uma similitude
entre as demandas que variaram de época a época – o direito ao voto; a autonomia sobre o
corpo e os direitos reprodutivos; a inserção sem ônus no mercado de trabalho; a
representatividade da diversidade, dos diferentes modos de ser mulher; o direito de escolha
(PINTO, 2003, 2010; PEDRO, 2005; MARTINS, 2015) –, estabelecemos a luta pelos direitos
das mulheres como saber central e, assim, constituinte da forma-sujeito dessa formação
discursiva. Quais direitos e quais mulheres, questão espinhosa já apresentada em 1.2.2, será a
questão que delineará as diferentes posições de sujeito.
Toquemos, por exemplo, na questão dos direitos reprodutivos e sexuais. No Brasil, a
pílula anticoncepcional começou a ser comercializada na década de sessenta, acompanhando a
chegada do método no mercado de países como Alemanha e Estados Unidos. Já a legislação
referente ao aborto caminha a passos lentos: o aborto é permitido, mas apenas em casos de
estupro e risco de vida à gestante (BRASIL, 2005) ou, mais recentemente, de anencefalia do
32

feto (BRASIL, 2012). E em 2015, a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos


Deputados aprovou o Projeto de Lei Nº 5.069, de 2013, que tipifica como crimes “o anúncio
de meio abortivo e o induzimento, instigação ou auxílio à prática de aborto”, ainda a ser
votado pelo plenário.
Quanto aos crimes de violência contra a mulher, desde 2009 é considerado estupro
qualquer ato libidinoso sem consentimento (BRASIL, 2009). A Lei Nº 11.340, de 7 de agosto
de 2006, popularmente conhecida como Lei Maria da Penha, é voltada ao combate da
violência doméstica, e, recentemente, foi promulgada como agravante do homicídio a Lei Nº
13.104, de 9 de março de 2015, que classifica o feminicídio, o homicídio “contra a mulher por
razões da condição de sexo feminino”, como crime hediondo.
Se, por um lado, essas medidas asseguram (ao menos no terreno jurídico) direitos às
mulheres, por outro, partem de um pré-construído sobre o que é ser mulher. À época da
sanção da Lei Nº 13.104, por exemplo, foi identificada uma exclusão da população trans* na
lei, que se referia apenas às mulheres. A exclusão é significativa, visto que o Brasil é o país
com maior índice mundial de homicídios de travestis e transexuais, não dispondo de uma
legislação específica para esse tipo de violência. É nesse sentido que se manifestam as
reivindicações do transfeminismo, uma corrente em consonância aos estudos queer que
reivindica os direitos da população trans, definida como:

pessoas que vivenciam papeis de gênero fora dos modelos normativos


predominantes na sociedade, as quais se pode denominar genericamente como
integrantes da população “transgênero”, composta predominantemente por travestis
e transexuais, mas também por quaisquer outras pessoas que não se identificam com
o gênero que lhe foi atribuído socialmente. (JESUS, 2013, p. 1).

Mas o que é gênero? A exclusão desse termo das referidas leis mostra que o assunto
não é pacífico. Para Butler (2013), uma das principais referências da teoria queer, “o gênero
não é um substantivo, mas tampouco é um conjunto de atributos flutuantes, pois vimos que
seu efeito substantivo é performativamente produzido e imposto pelas práticas reguladoras da
coerência do gênero”. Não se trata da destruição da noção de gênero, mas de uma
relativização de suas possibilidades: para a autora, uma vez que o gênero é parte performado e
parte imposto, a identidade de gênero não estabelece uma relação direta com a configuração
biológica dos indivíduos. Nesse ponto, cai por terra a noção de binarismo, já que duas
categorias estanques como feminino e masculino não dariam conta das amplas possibilidades
de performatividade implicadas na noção butleriana de gênero como performatividade, que
33

questiona a constituição do sexo como anterior à cultura. Se o gênero é discursivizado, o sexo


também o é.
Assim, mesmo as configurações definidas até então como naturais (a fêmea e o macho
como categorias estanques, científicas, embasadas na configuração biológica) são
questionadas pela autora, para quem estas também são resultado de interpretação. Butler, na
esteira de autoras como Scott (1999), considera o gênero uma construção cultural que não
precisa encontrar correspondência nas condições biológicas, questionando a evidência da
biologia como destino (ainda que se reconheça, sempre criticamente, a comum atribuição de
papéis masculinos e femininos pautada na configuração genital). Ao teorizar essa diferença
entre sexo e gênero, abre-se espaço para a questão do não binarismo, posto que “não há razão
para que os gêneros também devam permanecer em número de dois” (BUTLER, 2013, p.24).
Desse modo, é também4 em Butler que se baseiam, por exemplo, as reflexões
transfeministas, que se desenvolvem no mesmo sentido do não binarismo e antiessencialismo.
No entanto, sabemos que essa problematização ainda é restrita aos espaços de militância e
estudos de gênero, e a não existência de formas gramaticais que contemplem a pluralidade é
testemunha disso. É o que constatamos, por exemplo, quando da utilização em plataformas
on-line de estruturas como “amigxs”, “amig@s”, “amigues”. A popularização dessas formas
(que será analisada no capítulo 3) sugere que a língua é também um dos direitos pleiteados
pelo movimento feminista: como tratar de representatividade, por exemplo, numa língua que
nas próprias estruturas morfológicas invisibiliza a forma feminina?
Se a questão já é espinhosa numa perspectiva binária, ela se complica ainda mais
quando se refere ao transfeminismo, que apresenta como alguns de seus princípios a
“desconstrução das identidades binárias (respeitar as pessoas, transgênero ou cisgênero, que
se enquadram no binarismo homem x mulher, sem excluir aquelas que não se enquadram
nesse modelo)” e a “terminologia (evitar termos que essencializem ou invisibilizem as
identidades trans)” (JESUS, 2013, p. 6). E como falar em pessoas não binárias numa língua
que trabalha com dois gêneros, masculino e feminino, sem alternativa que não caia na
invisibilização?
Como exemplo de como a gramática trabalha a categoria de gênero, trazemos a
definição conforme apresentada na Moderna Gramática Portuguesa, de Evanildo Bechara
(2009). As explanações teóricas a respeito do gênero são curtas, havendo sobretudo regras de
formação e de flexão. O gênero aparece quando da descrição da estrutura interna (a

4
Conforme apontado em Jesus e Alves (2012) e Jesus (2013), o transfeminismo é inicialmente inspirado no
feminismo negro e intersecional.
34

morfologia) do substantivo: em língua portuguesa, o gênero é uma das flexões possíveis do


substantivo, e este se divide em masculino e feminino.

É pacífica, mesmo entre os que admitem o processo de flexão em barco - barca e


lobo - loba, a informação de que a oposição masculino – feminino faz alusão a
outros aspectos da realidade, diferentes da diversidade de sexo, e serve para
distinguir os objetos substantivos por certas qualidades semânticas, pelas quais o
masculino é uma forma geral, não marcada semanticamente, enquanto o feminino
expressa uma especialização qualquer. (BECHARA, 2009, p. 132)

Nessa definição, que atribui propriedades semânticas ao gênero, chama atenção a


suposta pacificidade com que é aceita a não correspondência entre gênero gramatical e
diversidade de sexo. Essa pacificidade vai ao encontro do apagamento do político na língua:
uma vez que se aceita o ponto de vista da gramática normativa como a verdade sobre a língua,
se silenciam as discussões, já que a língua figura como um sistema com regras fixas e claras.
É o funcionamento da ideologia tornando evidentes os sentidos de gênero dentro dos saberes
gramaticais. A postulação gramatical do masculino enquanto forma geral e do feminino como
específico se insere, aliás, no mesmo campo de saber já criticado por Beauvoir ([1949] 2009):
o homem é o um, a mulher é o outro.
Se alguma flexibilidade é prevista pela gramática para acompanhar as mudanças
sociais, ela se mantém estritamente cerceada pelo binarismo. É o que vemos na seção que
trata do “gênero nas profissões femininas”.

A presença, cada vez mais justamente acentuada, da mulher nas atividades


profissionais que até bem pouco eram exclusivas ou quase exclusivas do homem tem
exigido que as línguas – não só o português – adaptem o seu sistema gramatical a
estas novas realidades. Já correm vitoriosos faz muito tempo femininos como
mestra, professora, médica, advogada, engenheira, psicóloga, filóloga, juíza, entre
tantos outros. (BECHARA, 2009, p. 134)

Reconhecendo uma exigência de adaptação do sistema gramatical às novas realidades,


a gramática não apresenta qualquer problematização a respeito, limitando-se a aplicar a regra
de formação morfológica do feminino aos substantivos referentes às profissões. Questões
como a representatividade feminina materializada por essa flexão, presentes no discurso
institucional sobre linguagem inclusiva, não encontram espaço na gramática. É com base
nisso que afirmamos que o gênero dos substantivos, numa perspectiva gramatical, não
encontra qualquer correspondência com a identidade de gênero, ainda que esses substantivos
se refiram a sujeitos para quem a identidade de gênero importa. Desse modo, uma língua que
represente a pluralidade de gênero, conforme pleiteada pelo movimento transfeminista, não
35

encontrará suas bases nem suas ferramentas na noção de flexão de gênero conforme proposta
pela gramática.
Nesse sentido, retornando ao terreno da AD, observamos que a forma-sujeito da
formação discursiva feminista se fragmenta em posições de sujeito cujas demandas se
distanciam bastante daquelas que fundaram o movimento. Se as demandas continuam girando
ao redor de “direitos para as mulheres”, reconhecemos que são demandas muito diferentes o
direito ao voto, por exemplo, e o direito à representação na língua. É por isso que, para
atender ao objetivo de nossa pesquisa, propomos inicialmente duas posições de sujeito
principais na formação discursiva feminista: uma binarista, que propõe a divisão de gêneros
entre o masculino e o feminino, e uma não binarista, que propõe que os gêneros possam se
apresentar em mais de duas configurações. Esse delineamento inicial é baseado nos saberes
feministas que se relacionam mais diretamente ao objeto de nossa pesquisa e não desconsidera
a existência de contradição nem a coexistência de posições outras, delineáveis a partir da
análise do corpus.
Tendo reconhecido alguns saberes inscritos na formação discursiva feminista, cabe
que nosso olhar se volte agora para o recorte que essa formação efetua no interdiscurso, visto
que não podemos apreendê-lo em sua totalidade, e a interpelação ideológica efetua parte desse
recorte. Também não podemos apreender aquilo a que não temos acesso, portanto, refletimos
aqui sobre o papel da memória como possibilitadora desse acesso.

1.4 MEMÓRIA DISCURSIVA

Tal qual no caso da formação discursiva, é de Foucault que partimos para trabalhar a
noção de memória. É importante ressaltar desde o início que a memória de que trataremos
aqui não é a memória cognitiva nem a memória individual, mas, sim, aquela relacionada aos
processos discursivos. Em Foucault (1999) é possível vislumbrá-la na descrição dos
procedimentos de controle do discurso: o autor reconhece que, ao mesmo tempo em que
existem discursos que tendem ao esquecimento no próprio momento em que enunciados, há
uma outra espécie de discursos, que originam novos discursos e “para além de sua
formulação, são ditos, permanecem ditos e estão ainda por dizer” (FOUCAULT, 1999, p. 22).
A memória, em Foucault, está relacionada às noções de enunciado e de rede de formulações,
sendo a formulação definida como o ato que possibilita o surgimento de um grupo de signos
produzidos a partir de uma língua natural (FOUCAULT, 1995). Este grupo de signos, se
36

dotado de certas características, será considerado um enunciado. Para ser enunciado, não basta
haver uma sequência de elementos linguísticos; é preciso que dada série de signos tenha uma
relação específica com “outra coisa”, referindo-se a ela mesma e tendo as margens povoadas
por outros enunciados, de modo que o enunciado emerge como um elemento singular dentro
do campo enunciativo no qual está imerso. Para o autor (FOUCAULT, 1995), o enunciado
não é uma estrutura, mas uma função de existência.
Nesse sentido, Courtine (2009) considera a noção de memória discursiva subjacente na
Arqueologia do Saber (FOUCAULT, 1995) no que se refere ao domínio associado das
formulações, ou seja, ao campo de concomitância – formulações coexistentes – e ao de
antecipação – formulações posteriores. O autor lança a hipótese de que a inserção da noção de
memória discursiva no campo da Análise do Discurso põe em jogo sua articulação com a
pesquisa histórica em suas formas contemporâneas. Essa inserção se dá por Pêcheux ([1983]
1999, p. 52), para quem a noção de memória discursiva é definida como:

aquilo que, face a um texto que surge como acontecimento a ler, vem restabelecer os
“implícitos” (quer dizer, mais tecnicamente, os pré-construídos, elementos citados e
relatados, discursos-transversos, etc.) de que sua leitura necessita: a condição do
legível em relação ao próprio legível.

Assim, consideramos a memória discursiva como mais um mecanismo necessário para


o estabelecimento dos sentidos. Para tratar dos implícitos “ausentes por sua presença”
(PÊCHEUX, [1983] 1999, p. 52)5 que ela restabelece, o autor recorre a Achard ([1983] 1999),
propondo que esse discurso do implícito não pode ser encontrado numa forma estável e
sedimentada, mas, sim, numa regularização formada sob a repetição. Seria nesta regularização
que encontraríamos os implícitos, em remissões, retomadas e paráfrases. Justamente devido a
essa característica, Achard ([1983] 1999) salienta que não é possível provar ou supor a
existência anterior desse implícito enquanto discurso autônomo.
Além dos sentidos, a memória se relaciona também com o acontecimento, definido por
Pêcheux ([1990] 2006, p. 17) justamente como “ponto de encontro de uma atualidade e uma
memória”. Por um lado, ela tende a absorver o acontecimento. Por outro, é possível que este
cause uma ruptura na memória, deslocando os implícitos relacionados à regularização daquele
momento e iniciando assim uma nova série de regularização. O acontecimento, para Pêcheux
([1983] 1999), suscita um jogo de forças, uma negociação permanente entre o choque de um
acontecimento singular e o dispositivo complexo da memória. Há uma força para que o

5
O referido texto de Pêcheux é um balanço feito a respeito de uma mesa-redonda da qual Achard participou.
37

acontecimento seja integrado à memória, absorvido e dissolvido, mas também uma força para
que a rede regularizada dos implícitos seja perturbada. O acontecimento pode escapar à
inscrição na memória, ser por ela absorvido como se não tivesse ocorrido, ou ainda causar
ruptura. É por isso que, nessa perspectiva, não consideramos a memória discursiva como um
espaço homogêneo, bem delimitado e estabilizado, mas, sim, como “um espaço móvel de
divisões, de disjunções, de deslocamento e de retomadas, de conflitos de regularização...”
(PÊCHEUX, [1983] 1999, p. 56).
É com base em Pêcheux ([1983] 1999) que Indursky (2003) caracteriza o
acontecimento discursivo como uma ruptura da inscrição na ordem da repetibilidade. Por
ordem da repetibilidade entendemos a linearização dos saberes que o sujeito efetua em seu
discurso, gerando uma formulação própria e trabalhando, na mobilização da memória
discursiva, com o repetível. O acontecimento discursivo, rompendo essa ordem, instaura um
novo sentido, até então impossível; “faz trabalhar a memória do dizer, a estrutura, o repetível,
provocando um reordenamento no que pode ser dito” (INDURSKY, 2003, p.115). Ao mesmo
tempo, a ordem da repetibilidade permanece lá, ressoando, pois não é possível apagar nem a
memória nem o sentido-outro. A autora, contextualizando sua reflexão no cenário político
brasileiro, indica que é possível que um acontecimento histórico permaneça um período em
suspenso antes de ser discursivizado: sua discursivização não é imediata. É apenas quando
dizeres sobre esse acontecimento histórico começam a circular, a mobilizar sentidos, que esse
acontecimento é discursivizado.
Em texto posterior, Indursky (2008) apresenta uma diferenciação entre o
acontecimento discursivo, que, como vimos, estabelece uma ruptura e a emergência de novas
forma-sujeito e formação discursiva, e acontecimento enunciativo. Para a autora, o
acontecimento enunciativo se dá quando novos saberes, até então interditados em dada FD,
adentram em seu domínio, provocando a irrupção de uma nova posição de sujeito em conflito
com a forma-sujeito daquela FD. A autora frisa que o acontecimento enunciativo está
relacionado ao afrontamento e à fragmentação da forma-sujeito; uma nova posição de sujeito
não será um acontecimento enunciativo se seus saberes não forem anteriormente interditados
por aquela FD. Esse acontecimento, então, promove não uma ruptura, mas uma coexistência
tensa e conflitante.
Se identificamos na noção de memória discursiva uma semelhança com a já citada
noção de interdiscurso, conforme definida por Pêcheux ([1975] 2009), cabe não confundi-las.
Nesse sentido, Leandro Ferreira (2012, p. 145) propõe uma distinção que atribui à memória os
já-ditos, o dizível, os sentidos possíveis já-lá, enquanto no interdiscurso existem também os
38

pré-construídos, o discurso transverso e todos os sentidos: “já-ditos, não ditos e por dizer”.
Essas noções se relacionam intimamente porque é determinada pelo interdiscurso que a
memória discursiva faz um recorte dos sentidos possíveis de serem atualizados na linguagem.
A autora destaca também que não se separa a memória do seu revés, qual seja, o
esquecimento: ao acionar alguns sentidos na memória, é preciso que se esqueçam outros
justamente para que aqueles possam irromper. Se não se pode dizer tudo, tampouco se pode
lembrar tudo. Entre os fatores determinantes deste jogo entre memória e esquecimento, estão
as condições histórico-sociais de emergência dos enunciados, ao que a autora acrescenta que a
memória implica “uma relação da linguagem com a história e pensá-la requer observar as
relações conflituosas dos aspectos de historicidade com os processos da linguagem”
(LEANDRO FERREIRA, 2012, p. 147).
Courtine (2009), por sua vez, pensa a memória relacionada à constituição dos corpora
de análise: tomando uma sequência discursiva como ponto de referência (denominada pelo
autor como sequência discursiva de referência, ou simplesmente sdr), é ao redor dela que
serão organizados os elementos do corpus. A memória então aparece na noção de domínio de
memória (que o autor salienta não ser um conceito fixo, dado por antecipação, mas, sim,
construído quando da constituição do corpus), definido como “conjunto de sequências
discursivas que pré-existem à sdr” (COURTINE, 2009, p. 111). É a partir dele que os
funcionamentos discursivos que articulam pré-construídos aos enunciados podem ser
apreendidos, o que lhe confere o papel de representar o interdiscurso “como instância de
constituição de um discurso transverso” (COURTINE, 2009, p. 112), em consonância com o
que vimos até aqui sobre a relação entre memória e interdiscurso e a irrupção do
acontecimento. O ponto de divergência, pensamos, diz respeito à proposição de Achard
([1983] 1999) quanto à impossibilidade de se encontrar como discurso autônomo os
implícitos que possibilitam a memória discursiva: para Courtine (2009), o domínio de
memória, ainda que não aponte um começo do processo discursivo, é o lugar que permite
determinar o surgimento dos enunciados que constituem os elementos do saber próprios da
formação discursiva em análise.
O que encontramos de regular na noção de memória na teoria é que ela permite a
articulação de noções primordiais, reforçando que estamos tratando de noções em rede e
permitindo compreender que a retomada de certos enunciados em certas condições dentro de
certas formações discursivas não se dá ao acaso.

1.4.1 A Memória no Feminismo


39

Em se tratando de um movimento que eclodiu em diferentes temporalidades e


regionalidades, seria difícil estabelecer o acontecimento que instaurou o feminismo enquanto
movimento de militância como um sentido possível. No entanto, podemos situar uma série de
acontecimentos (no plural) que marcaram a memória feminista e que retornam nos discursos
contemporâneos sobre feminismo, gênero e inclusão – é o caso, por exemplo, das sanções das
leis referidas em 1.3.2. No caso de nossa pesquisa, ao trabalharmos a língua em interface com
o feminismo, estamos lidando com discursos que retomam saberes muito anteriores ao debate
da linguagem inclusiva: se o movimento feminista contemporâneo apresenta pautas
específicas e distintas das iniciais, é também no terreno da memória discursiva que elas se
relacionam às bases fundadoras do movimento.
Pensemos por exemplo nas já citadas sufragistas brasileiras, representadas por Bertha
Lutz. O pleito naquele momento não era para que se mudasse o sistema da democracia, mas
para que as mulheres fossem incluídas num sistema já existente, sem alterar suas regras.
Quando nos deparamos com textos oficiais a respeito da linguagem inclusiva, a memória
discursiva de inclusão num sistema já estabelecido é acionada: mais uma vez, o apoio estatal é
a uma reforma na qual não se alteram as bases do sistema, apenas se abre espaço, de modo
quase condescendente, às mulheres.
Já quando pensamos na questão do gênero e sua não problematização pelo discurso
institucional (conforme analisado no capítulo 3), identificamos o que Leandro Ferreira (2012)
pontua sobre o esquecimento caminhar lado a lado com a memória: neste caso, para que os
direitos da mulher sejam lembrados como o foco de políticas públicas (concernendo a língua,
mas não apenas), esquece-se que há pessoas que não se encaixam no binarismo de gênero, não
sendo contempladas nas propostas de inclusão. Da parte da militância, por sua vez, a noção de
gênero é recortada de um modo bastante singular. Se Butler (2013) pode na pós-modernidade
consagrar a noção de não binarismo de gênero, identificamos nessa problematização um
retorno de uma memória que remete aos primórdios da teoria feminista.
É Rodrigues da Silva (2008, p. 29 ) quem afirma que, ao publicar O Segundo Sexo na
década de 40, Simone de Beauvoir “mesmo sem usar a palavra gênero, foi a primeira
feminista a analisar a situação da mulher na perspectiva do, hoje conhecido, conceito de
gênero”. Na época, postulando que a dominação masculina era um sistema estruturado na
percepção do homem como centro e da mulher como sua segunda, sua subordinada, Beauvoir
([1949] 2009) sustenta que essas percepções são construídas para manter um sistema
conveniente para o sexo opressor (o masculino). A autora afirma que as potencialidades do
40

sexo oprimido não são limitadas por nenhum destino biológico, mas por práticas que
asseguram a manutenção da opressão. Desse modo, apesar da nomenclatura “sexo”, hoje em
desuso para esse sentido, a problematização de Beauvoir, centrada nas relações de
desigualdade e exploração, partiam de uma leitura sobre as relações entre os gêneros.
No entanto, a vigente classificação do feminismo em vertentes situa Butler e Beauvoir
em posições quase opostas dentro do movimento: enquanto Beauvoir é posicionada dentro do
feminismo radical, marxista, moderno, essencialista, Butler figura como teórica queer, pós-
moderna, desconstrutivista, antiessencialista. A memória discursiva acionada nessa
classificação recorta do interdiscurso apenas aqueles saberes nos quais as teóricas se
diferenciam e que assim permitem essa classificação polarizada, sendo esquecido que,
respeitadas as particularidades de cada momento histórico, ambas as autoras estão tratando de
problematização do gênero.
Antes de passarmos da teoria às análises onde articulamos as noções até aqui
estudadas, cabe um capítulo para nos debruçarmos sobre uma outra noção, que estará no cerne
dessa análise: a língua.
2 ALGUNS DIZERES SOBRE LÍNGUA

Não faço nada que alguém não tenha feito não


Não falo nada que alguém não tenha dito então
Não penso nada
Nosso futuro é imprevisão
–Duca Leindecker

Antes de iniciarmos a reflexão quanto aos discursos sobre língua, não poderíamos
deixar de nos deter numa questão primordial: que língua? Tentando nos desviar do efeito de
evidência que garante que “todo mundo saiba” o que é língua, o que propomos neste capítulo
é, inicialmente, uma breve revisão teórica de como esse conceito tem sido trabalhado pela
Linguística. Em seguida, nosso olhar se voltará para o referencial teórico aqui adotado, qual
seja, a Análise do Discurso de linha francesa, em relação à(s) língua(s), de modo que, quando
falarmos de língua nos capítulos subsequentes, estaremos falando da língua tal qual
apresentada nessa perspectiva, sem com isso ignorar a existência (e a repercussão) de
perspectivas diversas.
Salientamos que, ainda que algumas noções das teorias aqui apresentadas não se
relacionem diretamente ao nosso objeto de pesquisa, retomá-las é fundamental por possibilitar
uma visualização de seu desdobramento ao longo das diferentes leituras desenvolvidas a
respeito da língua.

2.1 A LÍNGUA DO CURSO DE LINGUÍSTICA GERAL

Se quiséssemos definir um marco de estabelecimento da Linguística enquanto ciência,


partiríamos de Ferdinand de Saussure. Curiosamente, sua obra mais estudada, o Curso de
Linguística Geral (doravante CLG), não foi escrita por ele. Trata-se de uma organização feita
por seus colegas de departamento, Charles Bally e Albert Sechehaye, a partir dos cadernos de
estudantes que assistiram ao referido curso ministrado por Saussure.
Embora nos baseemos no CLG para refletir sobre o que Saussure entendia por língua,
é primordial ter em mente essa peculiaridade do processo de produção da obra, especialmente
no que se refere às flutuações terminológicas, às imprecisões e à seleção (que
desconhecemos) do que possa ter ficado de fora6. Assim, falaremos em língua a partir de
Saussure estabelecendo desde já que nossa leitura se restringe ao CLG, visto ser esta a obra

6
Rascunhos encontrados após a morte de Saussure foram compilados e publicados com o título de Escritos de
Linguística Geral (2002), trazendo novas perspectivas sobre seu pensamento.
41

fundadora dos Estudos Linguísticos e que serve até hoje como base introdutória, sem com
isso pretender dar conta de toda a perspectiva saussuriana sobre língua.
Em sua proposta de definir o objeto da Linguística, Saussure define que esta deve se
centrar no estudo da língua, não da linguagem nem da fala. Esse corte é significativo: ao
afirmar que a linguagem é “multiforme e heteróclita” (SAUSSURE, 2012, p. 41) e a fala é “a
parte individual da linguagem” (SAUSSURE, 2012, p. 51), Saussure reconhece uma
necessidade de “colocar-se primeiramente no terreno da língua e tomá-la como norma de
todas as outras manifestações da linguagem”. (SAUSSURE, 2012, p. 41). Nesse sentido, é
proposta uma separação clara entre língua e fala, a primeira bifurcação no estabelecimento da
Linguística como objeto de estudo, servindo a fala, no CLG, fundamentalmente como
exemplo distintivo para explicar os fenômenos da língua. Assim, enquanto a língua é definida
como “um produto social da faculdade de linguagem e um conjunto de convenções
necessárias”, “algo adquirido e convencional” (SAUSSURE, 2012, p. 41), a fala é “um ato
individual de vontade e inteligência”, “acessório e mais ou menos acidental” (SAUSSURE,
2012, p. 45).
Para o que nos interessa aqui, investigar como a língua foi definida nessa obra
fundadora (definição que viria a perpassar todas as posteriores escolas da Linguística), chama-
nos atenção uma proposição quase aforística a respeito da língua, apresentada ainda na
introdução da obra, que acreditamos ser capaz de, se bem analisada, condensar a concepção
de Saussure sobre este conceito: “A língua é um sistema de signos que exprimem ideias”
(SAUSSURE, 2012, p. 47). É sobre as noções de sistema e de signo que se apoia a concepção
de língua saussuriana. Visto que um conceito invoca o outro, trataremos de ambos
conjuntamente, buscando com isso uma visão geral da teoria saussuriana conforme
apresentada no CLG.
Para Saussure, “O signo linguístico une não uma coisa e uma palavra, mas um
conceito e uma imagem acústica” (SAUSSURE, 2012, p. 106). Essa definição marca os
estudos linguísticos de forma significativa porque vai de encontro à concepção de língua
como uma nomenclatura, uma lista de palavras correspondendo a referentes determinados.
Mais do que isso, constata que a língua não é uma representação fiel do mundo, na qual cada
item da lista encontraria uma representação, mas é ela mesma uma forma de recortar o mundo
e viabilizar pensamentos (que, sem a língua, não passariam de uma massa amorfa) que não
dependem de referentes reais.
O signo, na teoria saussuriana, não se limita à palavra, podendo designar qualquer
unidade linguística dotada de um conceito e de uma imagem acústica – inclusive as unidades
42

gramaticais, como flexão de número. Saussure apresenta uma crítica ao que comumente se
entendia por essa nomenclatura: signo, no uso corrente, designaria apenas a imagem acústica.
É por isso que ele propõe a distinção entre signo (a combinação do conceito com a imagem
acústica), significado (o conceito) e significante (a imagem acústica)7. A partir daí, são
apresentados os dois princípios do signo.
Um deles é o caráter linear do significante, que diz respeito ao fato de os significantes
acústicos disporem apenas da linha do tempo, de forma que seus elementos, apresentados um
após o outro, formam uma cadeia. A explanação sobre esse princípio no CLG é deveras
sucinta, de forma que não nos deteremos nela. Interessa-nos o outro princípio, que terá
importância na compreensão da língua como sistema e se relacionará à investigação aqui
proposta: a arbitrariedade do signo linguístico.
Por arbitrário entende-se que não há nenhuma relação natural ou logicamente
explicável que justifique a união de dado significado com dado significante, o que é
exemplificado, no CLG, pelo modo como diferentes línguas denominam referentes universais,
tais como sol e mar. Isso não significa que caiba ao falante definir os signos, visto que estes
são dados de antemão e passivamente assimilados. Aí retorna uma característica da língua:
devido ao seu caráter social, qualquer ação individual sobre ela seria insignificante, pois
apenas na coletividade os signos são estabelecidos e compreendidos. Essa característica se
relaciona às propriedades de imutabilidade e mutabilidade do signo. Seu caráter arbitrário
limita-se à união entre significante e significado, ocorrendo um processo diferente quanto se
trata da relação entre signo e massa social. Desse modo,

Diz-se à língua: “Escolhe!”, mas acrescenta-se: “O signo será este, não outro.” Um
indivíduo não somente seria incapaz, se quisesse, de modificar em qualquer ponto a
escolha feita, como também a própria massa não pode exercer sua soberania sobre
uma única palavra: está atada à língua tal qual é. (SAUSSURE, 2012, p. 111).

A língua figura aqui como um sistema imposto, rígido, herdado de gerações anteriores,
com signos fixos, que não dependem nem da massa social nem do indivíduo falante. A língua,
nessa perspectiva, é soberana, pois a arbitrariedade de seus signos e a complexidade do seu
sistema lhe protegem das modificações. Para questionar, seria preciso que houvesse uma
norma razoável que a regesse, mas a língua, sendo “sistema de signos arbitrários”
(SAUSSURE, 2012, p. 113), carece dessa base.

7
Cabe salientar que, embora a terminologia pareça bem estabelecida neste momento, ao longo do CLG é
possível notar certa flutuação terminológica, com termos e definições sendo referidos de forma contraditória.
Isso se deve, especula-se, à forma como o livro foi organizado.
43

Pensamos, no entanto, nas tentativas de normatizar a língua através de dicionários e


gramáticas e nas regras que são delineadas nesses manuais: ainda que não se explique a
arbitrariedade nem se fuja dela, existe um estabelecimento de padrões (tal palavra vai
flexionar de tal modo, enquanto outra flexionará de modo diverso etc.). Uma vez que essas
regras, explicadas e sistematizadas, estão postas claramente, não se abriria ao sujeito falante e
mesmo à massa social uma chance de compreendê-las e, a partir daí, questioná-las a ponto de
modificá-las?
Também a isso Saussure (2012, p. 114) responde defendendo uma “inércia coletiva a
toda renovação linguística”. Para ele, a massa social é naturalmente inerte, e a língua está
unida a ela de tal forma, difundida e manejada constantemente, que uma revolução seria
impossível. Seu caráter de fixidez se reforça quando lembramos que a língua, situada no
tempo, é herdada; logo, não apenas o peso da inércia o sustenta, mas também o peso da
tradição. Isso não significa que a possibilidade de mutabilidade do signo seja descartada por
Saussure. Pelo contrário: relacionando-a à imutabilidade, é posto que: “o signo está em
condições de alterar-se porque se continua.” (SAUSSURE, 2012, p. 115). O caráter social da
língua, ao mesmo tempo em que garante sua fixidez, garante sua mutabilidade: a mudança é
um efeito das forças sociais ao longo do tempo. De comum entre as mudanças resta o fato de
que sempre se trata de um deslocamento da relação (arbitrária) entre significado e
significante. O fato de a língua se modificar ao longo do tempo não invalida, nessa
perspectiva, a impotência do falante de exercer, individual e intencionalmente, influência
sobre ela.
As definições aqui apresentadas nos permitem considerar a língua tal qual apresentada
no CLG essencialmente como um sistema de pouca mobilidade constituído por signos
arbitrários. Nesse sentido, é válido que nos debrucemos sobre uma questão que, deixada de
lado ao longo do CLG, ao ser explorada permite um novo modo de se pensar a língua: as
noções de sujeito e de subjetividade.

2.2 POR UMA SUBJETIVIDADE NA LÍNGUA

Naquilo que se designa como corte saussuriano, vimos que a atividade do sujeito
falante ficou reservada à fala, cabendo à Linguística estudar a língua em sua organização
enquanto sistema. No entanto, teóricos diversos se dedicaram ao estudo da atividade do
sujeito, trazendo a subjetividade para dentro da discussão nos Estudos Linguísticos. Seguindo
nosso percurso através das teorias que fundamentaram o que se pode considerar como língua,
44

trazemos as leituras de Bréal e Benveniste, que tratam desse objeto considerando a


possibilidade de subjetividade e enunciação.

2.2.1 Bréal e o Elemento Subjetivo

Para Bréal (1992), a subjetividade na linguagem não é um acessório, mas uma parte
essencial em torno da qual o restante de seus elementos se organizou. O autor defende que o
produtor da linguagem não se limita a descrever os fatos, mas imprime a eles reflexões e
sentimentos pessoais, hipótese confirmada por uma breve revisão a respeito da gramática e
suas diferentes possibilidades de expressar o que Bréal designa de aspecto subjetivo da
linguagem: verbos, advérbios, pronomes.
Assim, os advérbios, que, segundo o autor, estão presentes em todas as línguas,
permitem que sejam expressas as impressões dos interlocutores. Um dos exemplos que ele
apresenta é a construção “a esta hora, sem dúvida, ele já chegou” (BRÉAL, 1992, p. 158), na
qual “sem dúvida” não diz respeito a ele ter chegado sem dúvida, mas ao emissor, que não
tem dúvida de que ele chegou. Não se trata, portanto, de mera descrição, mas também de
opiniões (e, portanto, de subjetividade) que frequentemente lhe são atreladas, e isso permite a
Bréal (1992) afirmar que entre as palavras que servem para expor os fatos e as palavras que
dizem respeito ao aspecto subjetivo da linguagem há uma união tão íntima que uma parte
significativa da gramática é dela originária.
Nesse sentido, Bréal apresenta o exemplo dos verbos e dos modos verbais, nos quais
essa união se mostraria de forma mais evidente. Partindo da análise da gramática grega e
latina, o autor explica que em ambas a distinção entre os modos não era muito clara: é o caso
dos modos optativo e subjuntivo, no grego antigo, e do futuro, do subjuntivo e do optativo, no
latim. Bréal considera que falar de algo no futuro está intimamente ligado a desejá-lo ou crer
naquilo, o que é confirmado pela semelhança entre os referidos modos. Essa lógica teria se
mantido nas línguas modernas, como no caso do francês, em que o modo condicional teria
hoje nuances dos antigos subjuntivo e optativo. Quanto ao modo imperativo, seria neste que o
elemento subjetivo mais fortemente se marcaria, visto que une a ideia da vontade daquele que
fala à ideia de ação.
Na análise dos pronomes, por sua vez, são demonstrados os diferentes níveis de
participação atribuídos pelas três pessoas do verbo. Ao considerar que a primeira pessoa serve
para que o falante marque uma oposição de sua individualidade frente ao resto do universo e
que a segunda tem como principal função ser interpelada pela primeira, Bréal afirma que
45

apenas a terceira pessoa representaria uma porção objetiva da linguagem, sendo as outras duas
reservadas à subjetividade.
A análise dos elementos gramaticais que expressam subjetividade permitiu a Bréal
propor um ponto de vista que partisse do falante e de seu agenciamento da linguagem,
sustentando que os primeiros empregos da linguagem diziam respeito a desejos, ordens,
posses, o que colocava a subjetividade como elemento central. Essa proposta não invalida o
corte saussuriano entre língua e fala, tampouco a proposição de língua como sistema, mas
sugere que se passe a estudar a fala, e portanto o sujeito, de forma conjunta ao estudo da
língua. É em parte nesse estudo conjunto que consiste a teoria da enunciação elaborada por
Émile Benveniste, como veremos a seguir.

2.2.2 Benveniste e a Enunciação

“É um homem8 falando que encontramos no mundo, um homem falando com outro


homem, e a linguagem ensina a própria definição do homem.” É a partir dessa perspectiva que
Benveniste (2005, p. 285) propõe a subjetividade como constitutiva da linguagem, de tal
forma que questiona se seria possível sem a subjetividade que o homem ou a linguagem
existissem do modo como os conhecemos.
O percurso que propomos para a compreensão da teoria enunciativa de Benveniste
começa na leitura de Saussure que o autor apresenta, tentando ir além do que este propusera
quanto à análise da língua como sistema significante. É assim que Benveniste afirma que, ao
se dizer que a língua é feita de signos, diz-se também que o signo é a unidade semiótica, o que
exige que se compreenda a relação do signo enquanto unidade e enquanto dependente da
ordem semiótica. A unidade do signo é explicada pela natureza da linguagem: tratando-se do
descontínuo e do dissemelhante, ela só permite a decomposição, não a divisão. Diferentes
unidades podem ser reagrupadas, separadas, formar novas unidades, chegando ao limite
mínimo de significação: o signo. Abaixo do signo não há significação. O signo é, desse modo,
essa unidade que depende da consideração semiótica da língua.

8
Respeitamos aqui a terminologia adotada pelo autor [“C’estunhommeparlant que noustrouvonsdansle monde,
unhommeparlant à unautrehomme, et lelangageenseigneladéfinitionmême de l’homme”] e por sua tradutora,
porém, não podemos evitar o adendo de que um dos tópicos de análise desta dissertação é justamente a
invisibilidade da diversidade de gênero promovida pela adoção do masculino como neutro. Assim, como na
tradução consultada consta a palavra “homem” para se referir ao conjunto da espécie humana, mantivemos essa
terminologia, frisando que ela nos desagrada pessoal e teoricamente.
46

Quanto à significação, Benveniste esclarece que significar é ter um sentido, e nada


além disso. O critério que define se algo significa (e, portanto, é um signo) é seu uso e sua
compreensão por parte daqueles que manuseiam a língua. O signo, dentro do sistema que é a
língua, estabelece com outros signos relações que o definem e o limitam, e é por isso que,
para Benveniste, dizer “semiótico” é dizer também “intralinguístico”.
Relacionando semiótica e semântica, Benveniste propõe que enquanto uma significa, a
outra comunica. Se o signo é a unidade semiótica, a palavra é a unidade semântica. É assim
que Benveniste explica os diferentes sentidos que uma palavra pode adquirir conforme seu
uso, visto que na semântica há espaço para o agenciamento da língua por parte do locutor.
Esse agenciamento é denominado de “instâncias do discurso”, definidas como “os atos
discretos e cada vez únicos pelos quais a língua é atualizada em palavra por um locutor”
(BENVENISTE, 2005, p. 277). Tal qual Bréal, Benveniste propõe uma análise dessa relação
entre língua e locutor com base na existência e no uso dos pronomes pessoais.
Para Benveniste, a noção de “pessoa” é subjacente apenas aos pronomes eu e tu, nunca
a ele. Esses pronomes têm a particularidade de, ao contrário dos demais signos da língua, não
possuírem referentes fixos, e se referirem a uma “realidade de discurso”, sendo definidos em
termos de locução e alocução, não de objetos. Assim, o pronome eu significa “indivíduo que
enuncia a presente instância de discurso que contém a instância linguística eu”
(BENVENISTE, 2005, p. 279), caracterizando o processo de locução, enquanto o pronome tu
significa “indivíduo alocutado na presente instância de discurso contendo a instância
linguística tu” (BENVENISTE, 2005, p. 279), caracterizando o processo de alocução. Essas
referências ao sujeito que fala e ao sujeito com quem esse sujeito fala não remetem nem a
realidades nem a posições objetivas, mas ao processo a cada vez único da enunciação que as
contém. São signos “vazios”, que só existem quando atualizados na instância de discurso,
passíveis de serem assumidos por quem quer que os empregue, através dos quais o locutor
pode se apropriar da língua, tornando-se sujeito ao se identificar como eu. A terceira pessoa9,
por sua vez, seria a única passível de ter uma referência objetiva, visto que representa o
membro não marcado da correlação de pessoa e, no jogo interno/externo à enunciação,
representa o externo, aquele de quem se fala, num espaço não intercambiável (contrariamente
ao eu e ao tu, que podem se alternar ao longo da situação de discurso).

9
Ainda que Benveniste proponha que não se trate de uma pessoa (pessoas, em sua teoria, são apenas aquelas que
enunciam ou para quem se enuncia, dentro da relação intercambiável eu-tu, nunca o objeto referente da
enunciação), é este o termo tradicionalmente adotado.
47

Benveniste avança em sua reflexão apontando que a linguagem não pode ser
comparada a uma ferramenta que se utilize, visto que as ferramentas foram criadas pelo
homem, ao passo que a linguagem está na natureza do homem. O autor propõe que “é na
linguagem e pela linguagem que o homem se constitui como sujeito” (BENVENISTE, 2005,
p. 286), pois somente através da linguagem se fundamenta o conceito de “ego”. Por outro
lado, se a linguagem é condição para existência do sujeito, ela mesma só é possível porque
cada locutor, referindo-se a si mesmo como eu, apresenta-se como sujeito do seu discurso,
numa relação que mescla polaridade (eu de um lado, tu de outro), contraste (sou eu porque
não sou tu, e vice-versa) e reversibilidade (agora eu, logo mais posso ser tu, de acordo com
quem assumir a locução). É por essas peculiaridades que Benveniste afirma que a condição do
homem na linguagem é única, sem paralelo.
Se até aqui adotamos frequentemente o termo linguagem para tratar dos fenômenos de
língua, é porque o autor reconhece que as línguas particulares concordam e testemunham os
fatos da linguagem. É impossível conceber uma língua que não disponha de um modo de
expressão da pessoa justamente porque a linguagem é marcada pela subjetividade ao mesmo
tempo em que permite que esta exista. Nesse sentido, a teoria de Benveniste nos é cara
porque, ao se valer do conceito de língua de Saussure enquanto sistema de signos, apresenta
neste mesmo sistema os elementos que comprovam a subjetividade como uma característica
comum a todas as línguas.

2.3 A LÍNGUA NA ANÁLISE DO DISCURSO PECHEUTIANA

A Análise do Discurso, propondo questões às disciplinas em cujo entremeio se


constitui, apresenta à Linguística um olhar diferente sobre as questões referentes à língua e à
linguagem. Propomos aqui, inicialmente, uma revisão das críticas feitas por teóricos da AD às
teorias até aqui apresentadas, para em seguida revisarmos como a língua é abordada pela
teoria materialista do sentido conforme proposta por Michel Pêcheux.

2.3.1 Contestações da Análise do Discurso às Perspectivas Anteriores

Para Haroche, Pêcheux e Henry ([1971] 2007), a separação teórica entre língua e
linguagem conforme proposta por Saussure não foi obstante para evitar que esses conceitos,
nas teorias linguísticas subsequentes, acabassem por ser confundidos. Ademais, a ruptura
saussuriana não impediu que nos estudos de semântica se manifestasse o empirismo renovado
48

pelo formalismo. O próprio termo “semântica” não está presente no CLG, mas as definições
gerais a respeito do que poderia ser esta teoria, sim. No entanto, a linguística recobriria apenas
uma parte da semântica, cujo estudo necessitaria de uma mudança de terreno ou de
perspectiva.
Os autores iniciam a crítica ao CLG pelo conceito de analogia, que, para Saussure, é o
que explica a aparição de novas formas, tratando-se de um processo gramatical e sincrônico.
Saussure, ratificando sua separação entre língua e fala, considerou a analogia no terreno da
fala, visto que seria inicialmente uma criação individual, para em seguida acrescentar que esta
só é possível se a língua oferece as condições linguísticas necessárias. A ideia subjacente à
analogia seria totalmente subjetiva, justificando a associação desse conceito ao sujeito
individual.
O que Haroche, Pêcheux e Henry ([1971] 2007) apontam sobre essa relação entre ideia
e analogia é que ela baseia a hierarquização saussuriana entre valor e significação. Para
Saussure, o valor domina a significação, subordinação que os autores classificam de centro da
ruptura saussuriana: “do ponto de vista da língua, só conta o valor e não a significação”
(HAROCHE; PÊCHEUX; HENRY, [1971] 2007, p. 18, grifos dos autores). No entanto,
quando se procura abordar o assunto por uma perspectiva semântica, esbarra-se com o fato de
que as palavras podem mudar de sentido segundo as posições de quem as emprega, o que
coloca problemas que não podem ser regrados apenas em termos de valor, sistema e
subsistemas.
Nesse sentido, os autores postulam que “o laço que une as ‘significações’ de um texto
às suas condições sócio-históricas não é meramente secundário, mas constitutivo das próprias
significações” (HAROCHE, PÊCHEUX; HENRY, [1971] 2007, p. 20), reconhecendo que
essa questão não está presente na problemática saussuriana, visto que dizem respeito à fala
(que, separada da língua pelo autor, não é seu objeto de estudo). Mesmo essa separação é
criticada por Haroche, Pêcheux e Henry ([1971] 2007), que, embora reconheçam sua
necessidade para o estabelecimento da linguística como ciência, criticam o posicionamento de
Saussure quanto à sociologia, especialmente no que diz respeito às concepções de criação que
embasam a teorização sobre a analogia.
Ora, falar em criação é falar em subjetividade. E a subjetividade adotada pela
perspectiva saussuriana, sempre segundo Haroche, Pêcheux e Henry, baseia-se numa
ideologia individualista e subjetiva da criação, da qual (como exposto no capítulo 1),
sabemos, a AD discorda veementemente. Se o sujeito não é pleno, não é mestre de si mesmo e
muito menos da língua, não podemos esperar que as significações lhe ocorram como criações
49

individuais descoladas das condições sócio-históricas de produção. E é por isso que, ainda que
as reflexões saussurianas sobre valor e significação tenham sido válidas para o
estabelecimento dos estudos linguísticos, elas não são suficientes para embasar reflexões
linguísticas que se proponham a um ponto de vista semântico.
Assim, Haroche, Pêcheux e Henry ([1971] 2007) propõem uma mudança de terreno
que supra as necessidades de combate ao empirismo (e sua reflexão centrada no indivíduo) e
ao formalismo (e sua confusão entre a língua, objeto da linguística, e a linguagem). Para tanto,
é proposta uma semântica discursiva, que daria conta de analisar os processos característicos
de uma formação discursiva, considerando conjuntamente as formações ideológicas e sociais.
Quanto à enunciação, Pêcheux e Gadet ([1977] 2008) a interpretam como uma terceira
via entre o logicismo (que foca no estudo da língua enquanto sistema, procurando sua
autonomia, seus universais) e o sociologismo (que foca no estudo do indivíduo na situação da
língua, ganhando ares de interdisciplinaridade). O que as três têm em comum é que todas elas
recobrem a contradição fundamental relacionada ao sujeito e denegam a política, interditando
a possibilidade de um ponto de vista materialista sobre a língua.
Nesse sentido, nosso objeto de análise, articulando saberes que vêm de áreas rígidas
como a gramática e fluidas como os estudos de gênero, encontrando espaço tanto em espaços
institucionais quanto em espaços militantes, deve ser trabalhado justamente nesse ponto de
vista que esmiuça a contradição e considera a língua em seu aspecto político, conforme
veremos em 2.4.
A revisão até aqui apresentada não teve por intuito apresentar uma linearidade
evolutiva que desembocasse na Análise do Discurso, mas, sim, apresentar o que diferentes (e
não por isso menos válidas) vertentes dos estudos linguísticos teorizaram a respeito da língua,
bem como os motivos pelos quais nossa perspectiva teórica se distancia delas. Passamos
agora às especificidades da língua tal qual estudada pela Análise do Discurso pecheutiana em
suas diferentes abordagens.

2.3.2 A Língua em Pêcheux: encontrando seu lugar

A relação entre história e língua é analisada sob um ponto de vista materialista, no


qual interessa o efeito das relações de classe sobre as práticas linguísticas (PÊCHEUX, [1975]
2009, p. 22). Para Pêcheux ([1975] 2009), as relações capitalistas desenvolvem uma luta entre
“realizações” dessa língua: há, sem dúvida, diferenças na estrutura da língua – em seus
aspectos sintáticos, morfológicos etc –, mas o que interessa em seu estudo é como essas
50

diferenças se reinscrevem nas diferenças de sentido, o que conduz a direções diferentes


determinadas pelos interesses ideológicos que estejam em jogo.
Assim, o autor afirma que:

o sistema da língua é, de fato, o mesmo para o materialista e para o idealista, para o


revolucionário e para o reacionário, para aquele que dispõe de um conhecimento
dado e para aquele que não dispõe desse conhecimento. Entretanto, não se pode
concluir, a partir disso, que esses diversos personagens tenham o mesmo discurso: a
língua se apresenta, assim, como a base comum de processos discursivos
diferenciados, que estão compreendidos nela na medida em que, como mostramos
mais acima, os processos ideológicos simulam os processos científicos. (PÊCHEUX,
[1975] 2009, p. 81).

Ao reconhecer a permanência de um sistema que rege a língua, Pêcheux ([1975] 2009)


retoma Paul Henry ([1977] 1992) para explicar a autonomia relativa da língua: são as leis
internas que regem esse sistema e que, em sua totalidade, constituem o objeto da Linguística.
Essas leis importam para a teoria pecheutiana porque elas constituem a base dos processos
discursivos: o sujeito não se serve acidentalmente da língua para expressar suas atividades
cognitivas; pelo contrário, o discurso está atrelado à língua de forma constituinte, não
existindo sem ela. No que diz respeito especificamente à nossa pesquisa, o capítulo de
análises permitirá uma problematização dessa autonomia.
Na perspectiva pecheutiana, a divisão saussuriana que estabelecia a fala como
atividade individual e a língua como sistema social deixa de ser aplicável. Pêcheux ([1975]
2009) propõe que a noção de processo discursivo reposicione a noção de fala, bem como o
antropologismo psicologista por ela vinculado. A fala não é o aspecto individual da língua
justamente porque todo processo discursivo baseado no sistema da língua está inscrito em
práticas de classe, numa relação ideológica de classes. Ainda que a língua, sendo a mesma
para o revolucionário e o reacionário, seja indiferente à divisão e à luta de classes, a recíproca
não é verdadeira: as classes a utilizam de modo determinado, principalmente na luta política.
O autor (PÊCHEUX, [1975] 2009, p. 82) salienta que isso não significa que existam “línguas
de classes” com suas próprias “gramáticas de classes”. Pelo contrário: a língua aparenta
unidade, e é sob essa aparência que ela autoriza a divisão. É nela que se desenvolvem as
contradições ideológicas constituídas pelas relações contraditórias que os processos
discursivos, inscritos em relações ideológicas de classes, mantêm entre si.
Quanto a esses processos discursivos, Pêcheux (2009) afirma que se constituem tanto
por processos nocionais-ideológicos quanto por conceptuais-científicos. Para desenvolver essa
51

reflexão, ele se vale da relação sintática estabelecida pelo pronome “que”, que alterna entre
explicação e determinação.
Revisando pressupostos da Lógica e da Linguística, Pêcheux conclui que estruturas
como “aquele que” autorizam uma espécie de esvaziamento do objeto a partir da função. O
exemplo com que o autor trabalha traz novamente a referência a Paul Henry, desta vez para
lidar com a relação entre construído (modificável) e pré-construído (permanente): Henry
propõe o termo “pré-construído” para caracterizar uma construção anterior, algo que fala
externa e independentemente. Em paralelo ao pré-construído, teríamos aquilo que é
construído no enunciado, como no exemplo de Pêcheux (2009, p. 89), em que o enunciado
“aquele que morreu na cruz nunca existiu” relaciona um pré-construído cristão (aquele que
morreu na cruz) com uma construção discursiva ateia (nunca existiu).
Além de identificar as relações entre o modificável e o permanente, interessa a
Pêcheux compreender a língua enquanto materialidade do discurso, trabalhando-a em sua
contradição e historicidade. Nesse sentido, trazemos sua reflexão com Gadet, que, analisando
a história da linguística a partir de uma perspectiva discursiva, apresenta noções caras a um
estudo materialista da língua.

2.3.2.1 Alguns materiais para esta materialidade

Para Gadet e Pêcheux ([1981] 2010), as línguas naturais são providas de marcas
sintáticas que lhes permitem deslocamentos, transgressões, reorganizações. Se essas marcas,
provando que as línguas não se organizam segundo uma ordem lógico-matemática, dificultam
seu estudo, concomitantemente permitem que as línguas naturais sejam capazes de fazer
política. Ao revisar o modo como diferentes regimes políticos trabalharam a questão da
língua, Gadet e Pêcheux ([1981] 2010, p. 37) postulam que esta é “uma questão de Estado,
com uma política de invasão, de absorção e de anulação das diferenças”. É a essa política que
as diferentes línguas metaforizadas pelos autores servem, seja como instrumento, seja como
exemplo.
A língua metálica, por exemplo, é relacionada às máquinas lógicas, que fabricam suas
próprias memórias para apagarem a dos povos e, por que não, a própria historicidade da
língua. É uma língua fascista, lógica, sem aspecto exterior. A língua de madeira, por sua vez,
associada ao campo do Direito e do Estado, é uma língua de classe a qual nem todos têm
acesso, “na qual ‘para bom entendedor’ meia palavra basta” (GADET; PÊCHEUX, [1981]
2010, p. 24), representando a maneira política de denegar a política. Já a língua de vento,
52

associada à publicidade e à comunicação, assegura a manutenção das línguas metálica e de


madeira ao dissimular “pela noção higiênica de informação o fato de que o que se comunica
provém de uma loucura do Estado” (GADET; PÊCHEUX, [1981] 2010, p. 116).
Daltoé (2011), por sua vez, propõe ainda um quarto material possível para essa língua
política. Contextualizada no cenário político brasileiro, tal qual nossa pesquisa, sua análise
aponta para uma língua capaz de subverter a rigidez da língua fechada da política: a língua de
barro. Caracterizada por sua maleabilidade e plasticidade, é a língua que marca a produção e
a introdução, na língua política, de um novo modo de enunciar, questionando e revirando
sentidos estabilizados.
Ao analisarmos os discursos que circulam a respeito da língua nos espaços
institucionais e de militância, é preciso levar em conta essas diferentes formas de a língua se
marcar, se manifestar, se contradizer, se impor. A língua não é una, mas, dada sua forma de
sistema dotado de relativa autonomia, em seus diversos funcionamentos, podemos identificar
certos graus de similitude. Nesse sentido, avançamos para a reflexão de Henry a respeito da
língua, análise que, mobilizando conceitos tais como o real da língua, a história e a
contradição, contesta pressupostos da Linguística.

2.3.3 A Língua em Henry: reconhecendo a imperfeição

Paul Henry, tendo desenvolvido parte de suas reflexões em parceria com Pêcheux,
inscreve igualmente o estudo da língua em sua inevitável relação com a divisão e a luta de
classes. Para Henry (1992), praticar uma ciência significa trabalhar sua contradição
específica, e é nesse sentido que a categoria da contradição, conforme elaborada por Marx, é
aproximada dos Estudos Linguísticos. A ciência que Henry (1992) se propõe a trabalhar, para
marcar que a língua não se limita nem à ideologia nem ao formalismo, delineia o conceito de
discurso.
Henry (1992) contesta uma semântica da língua que se apoie na significação literal,
afirmando que a questão do sentido faz ressurgir a questão do sujeito. Assim, é proposta uma
articulação entre sentido e forma-sujeito: o sentido da língua não está “nas palavras, no texto
ou no discurso de um indivíduo, mas na relação desse texto, dessas palavras, desse discurso
individual com outros textos, outras palavras, outros discursos, relação na qual esse sentido se
constitui enquanto efeito ideológico” (HENRY, 1992, p. 140).
É isso que nos permite afirmar que, assim como para Pêcheux, para Henry a língua é
igualmente um objeto histórico e ideológico. Nesse sentido, o que destacamos é o
53

reconhecimento do espaço dos estudos linguísticos na configuração desse objeto: o autor


salienta que a linguística é capaz de demonstrar que existe algo na linguagem que escapa da
determinação das relações de produção, sendo relativamente autônomo quanto a essa
determinação. Ao reconhecer essa particularidade, questiona-se a necessidade de distinção
entre “sujeito da linguagem” e um “sujeito do assujeitamento ideológico” (HENRY, 1992, p.
147).
Para Henry, o desdobramento da forma-sujeito deve ser considerado não apenas na
relação de produção-reprodução inserida num contexto especificamente econômico, mas
também na relação com a linguagem. Linguagem esta que não pode, numa leitura
materialista, prescindir da ruptura das “oposições entre forma e conteúdo ou entre mecanismo
e conteúdo” (HENRY, 1992, p. 165, grifos do autor). Em vez de uma série de dicotomias, a
linguagem aqui é proposta como o simbólico realizado, o que, por sua vez, constitui o sujeito
como efeito. Retomando Saussure,Henry (1992) concorda que a ordem da linguagem não
pode ser reduzida nem ao individual nem ao coletivo e que a língua não é apenas a atividade
individual da fala: seria antes aquilo que faz a unidade da linguagem, podendo ser estudada
nela mesma.
Henry (1992) introduz uma diferente hipótese para explicar a ilusão de originalidade,
de posse de nossos pensamentos e de nossas palavras: se com Pêcheux e Althusser vimos a
interpelação ideológica como explicação dessa ilusão, Henry sugere que ela também tenha
alguma coisa a ver com a existência da sintaxe. A sintaxe, para o autor, parte do pressuposto
de que as frases estabelecem relações significativas entre si, relações estas que devem ser
caracterizadas e podem ser delinearizadas pela inversão de seus elementos: “no deslocamento
da frase a identidade do sujeito da enunciação presente sob o sujeito do enunciado não é mais
assegurada” (HENRY, 1992, p. 180).
A sintaxe está de tal forma situada na articulação da língua e do discurso que sua
identificação pela construção de uma gramática supõe “uma explosão da dimensão do
discurso” (HENRY, 1992, p. 180), visto que todos os brancos e vazios tendem a ser
preenchidos. Todo discurso da sintaxe, segue Henry, opera segundo leis que são justamente
aquelas que a gramática procura alcançar. Sem negar que exista alguma organização cerebral
suposta pela linguagem, o autor defende que tal organização não esgotaria a matéria e que não
haveria sujeito preexistente à linguagem (ainda que esta não seja suficiente para constituí-lo
como tal).
A relação entre sujeito e ideologia e entre sujeito e desejo teria seu fundamento na
autonomia relativa da língua: o real da linguagem é irredutível às superestruturas ideológicas.
54

Esse irredutível real da linguagem, espaço de resistência que reforça a imperfeição da


linguagem enquanto ferramenta, é o que escapa à categorização teórica e impede que a língua
enquanto objeto de estudo seja totalmente apreendida.

2.3.4 A Certeza do Equívoco

A reflexão de Leandro Ferreira sobre a língua nos é cara por dar continuidade à
exploração desse espaço não categorizável, de onde eclodem a falha, a ruptura, a falta. A
autora, sustentando a evidência do sentido e do sujeito como decorrentes do efeito de
evidência da língua, trabalha com a língua enquanto “sistema instável e heterogêneo”
(LEANDRO FERREIRA, 2000, p. 24), reconhecendo que nela há um espaço que escapa à
gramatização, a uma “estruturação lógico-matemática categórica” (LEANDRO FERREIRA,
2000, p. 28). Esse espaço seria o lugar de resistência da língua, espaço que põe em questão o
ideológico, bem como seu efeito de evidência (LEANDRO FERREIRA, 1996). Um aspecto
considerado pela autora como uma evidência ideológica diz respeito aos efeitos de
completude e explicitude da língua, uma tentativa de assegurar a transparência que acaba,
pelo contrário, comprometendo a nitidez: “a língua ao se mostrar, esconde” (LEANDRO
FERREIRA, 2000, p. 65).
O estatuto de equivocidade da língua, por suavez, é reconhecido “como um princípio
constitutivo que deixa marcas na forma como ela se organiza e como incorpora para o seu
âmbito o que lhe é próprio” (LEANDRO FERREIRA, 1996, p. 49). A língua, voltada ao
equívoco, apresenta contradição no próprio modo como está ligada à história e aos sujeitos
falantes. Se concordamos anteriormente que a língua é um objeto histórico, Leandro Ferreira
(2000) ratifica que a história está na língua, e mais: retomando Gadet e Pêcheux, assume que
o equívoco é o ponto de união entre língua e história. Nesse sentido, o equívoco, rejeitado por
parte dos estudos linguísticos sob o negativo rótulo da “ambiguidade”, assume aqui uma
parceria com a ambivalência, deixando ambos sua denegada posição periférica em troca de
um papel central.
Isso implica a não-separação entre língua e discurso, contrariamente ao que ocorre
quando se trabalha com o conceito de ambiguidade (LEANDRO FERREIRA, 2000). Implica
também a perda da pretensão de resolver ou de evitar as contradições e o reconhecimento de
que os sentidos também são feitos pela falta e pela falha. Além disso, o que comumente se
classifica como pontos de dúvida, de indefinição, mau uso, má compreensão, pode aqui ser
interpretado como “formas de resistência” (LEANDRO FERREIRA, 2000, p. 67): assume-se
55

que a língua, em sua opacidade, dispõe de mecanismos de resistência, o que dificulta


enquadrá-la de maneira categórica. Isso não significa, é claro, que a língua seja uma entidade
solta e livre de amarras: há uma tensão permanente entre liberdade e coação. Se, por um lado,
existe a possibilidade de escape, por outro existe a necessidade de ordenamento, o que reforça
a explanação de Pêcheux a respeito da autonomia relativa da língua.
Reconhecendo as brechas, os deslizes, as faltas e os excessos como estruturais da
língua, poderíamos aproximar os terrenos da sintaxe e do discurso, terrenos que não se
relacionam em simples relação de complementaridade e cuja contribuição mútua está longe de
ser pacífica (LEANDRO FERREIRA, 2000). Para tanto, a sintaxe deveria ser deslocada de
sua corrente posição num universo logicamente estabilizado para permitir uma visualização
mais clara das relações entre os enunciados e seus mecanismos de funcionamento, um acesso
ao acontecimento discursivo por meio da organização da língua (LEANDRO FERREIRA,
2000).
Finalmente, nessa perspectiva, qualquer ponderação acerca das relações entre língua e
discurso, considerando a contribuição da sintaxe para esse estudo, deve levar em conta que os
enunciados não podem dizer tudo, uma vez que lidamos com um sistema significante instável,
heterogêneo, não fechado e, sobretudo, aberto ao equívoco. Essa heterogeneidade não impede
que algumas regularidades possam ser apreendidas, constituindo modos particulares de ser da
língua, conforme vimos em Gadet e Pêcheux (2010).

2.4 CONSIDERAÇÕES SOBRE A LÍNGUA BRASILEIRA E POLÍTICA DE LÍNGUA

Se até agora falamos da língua enquanto noção, enquanto materialidade do discurso,


gostaríamos de voltar nosso olhar especificamente para a língua na qual nosso objeto de
análise se constitui, qual seja, a língua brasileira.
Se defendemos que a língua é atravessada pela política, cabe frisar a distinção
proposta por Orlandi (2007a) entre política linguística e política das línguas. Enquanto a
política linguística, situada no campo teórico da sociolinguística, parte de línguas e sentidos já
dados, inerentes como tal, a política das línguas, situada no campo teórico da Análise do
Discurso, parte desta língua que é desde sempre já afetada pelo político, com “formas sociais
sendo significadas por e para sujeito históricos e simbólicos” (ORLANDI, 2007a, p.8). E
assim fazemos eco ao seu questionamento: “que discursos sobre a língua são admitidos como
verdadeiros determinando um conjunto de práticas?” (ORLANDI, 2007a, p.8). Posta essa
distinção, Orlandi (2007a) afirma que o saber sobre a língua não é indiferente à política das
56

línguas, e que a formação de uma consciência linguística dá-se a partir da experiência. Nesse
sentido, é proposto um percurso histórico que abrange a formação do português como língua
nacional no Brasil (ORLANDI, 2007b). No que nos diz respeito aqui, focamos no processo de
gramatização da língua brasileira iniciado no século XIX.
Para Orlandi (2007b), a criação das primeiras gramáticas no Brasil, ainda que
seguissem denominadas como referentes à língua portuguesa – e não língua brasileira –
permitia aos gramáticos que as escreviam assumir uma posição de autor, um lugar de
autoridade: a autoridade de dizer como é essa língua em suas especificidades desenvolvidas
no Brasil. Nesse sentido, é possível identificar processos que ressignificam e historicizam
tanto o saber sobre a língua quanto a sua constituição e a visibilidade que lhe é permitida. A
autoria de uma gramática redigida no Brasil é uma forma de, ao gramatizar uma língua,
permitir a emergência de um sujeito nacional, constituído por uma língua que lhe é própria,
num processo de individualização não apenas da língua e dos saberes a ela relacionados, mas
também do país, de seus sujeitos e de suas instituições (ORLANDI, 2007b).
No mesmo sentido, Mittmann (2010), em análise de gramáticas fundadoras e
contemporâneas, constata que o trabalho sobre a língua funciona como uma marca identitária:
é preciso marcar a língua de um para especificar que esta não se trata da língua do outro – e,
assim, que se trata de dois sujeitos distintos com suas distintas identidades. Delimita-se, desse
modo, uma fronteira entre nacionalidades – fronteira que lemos em concordância com Cazarin
(2010), para quem a fronteira não se trata de uma separação divisória estática, mas de um
espaço de entrecruzamento e entrelaçamento. Importante frisar que se, num primeiro
momento, o estabelecimento de gramáticas permitiu que através da língua se estabelecesse
uma distinção entre o sujeito brasileiro e o sujeito português, ele permitiu também que essa
noção de sujeito fosse refratada por graus de conhecimento. Assim, distinguem-se os sujeitos
que sabem a língua corretamente daqueles que não sabem. Nesse sentido, Mittmann (2010)
identifica uma oscilação das gramáticas contemporâneas entre o apego à norma culta,
vinculada à escrita, e a abertura para uma variação vulgar, vinculada à fala, num
enfrentamento constante entre tradição e contemporaneidade.
É também sobre uma relação de enfrentamento que podemos pensar o que Orlandi
(2009) propõe como distinção entre língua imaginária e língua fluida: para a autora, temos em
nosso imaginário a impressão de uma língua “estável, com unidade, regrada, sobre a qual,
através do conhecimento de especialistas, podemos aprender, termos controle” (ORLANDI,
2009, p.18), fixada em regras, fórmulas e sistematizações. Seria esta a língua imaginária. Já a
língua fluida é a língua em movimento, em mudanças contínuas, sem limites, “que podemos
57

observar quando focalizamos os processos discursivos, através da história de constituição das


formas e sentidos, nas condições de sua produção, na sociedade e na história, afetada pela
ideologia e pelo inconsciente” (ORLANDI, 2009, p. 18).
Zoppi Fontana (2009), por sua vez, ao propor a análise do português do Brasil como
língua transnacional, reforça a construção de uma posição de autoria referente ao saber
metalinguístico. Interessa-nos aqui especialmente sua retomada da noção de instrumentos
linguísticos: estes dizem respeito a “revoluções tecnológicas (AUROUX, 1992) que
decidiram o destino do homem na sua relação com os objetos simbólicos e com as formas de
organização social” (ZOPPI FONTANA, 2009, p. 24). No caso da língua, esses instrumentos
seriam as gramáticas, os dicionários e demais formas materiais que objetificam a língua. Da
leitura de Auroux (1992), destacamos seu conceito de gramatização: diz respeito ao processo
de descrever e instrumentar uma língua por meio das tecnologias que baseiam nosso saber
metalinguístico, quais sejam, a gramática e o dicionário. Considerando que a norma escrita
conforme apresentada na gramática “pode suscitar novas associações semânticas, ou ainda
novas reinterpretações morfológicas das unidades” (AUROUX, 1992, p. 70), a teorização de
Auroux nos interessa porque, no mesmo sentido da de Orlandi, apresenta dois funcionamentos
da língua: a teorização, estabilizada, e a prática, marcada por mobilidade. No caso de Auroux
(1992), reconhece-se uma possível influência da teorização sobre a prática, o que, na análise
de nosso objeto, se marcará pela oscilação entre aceitação e contestação. Assim, identificamos
discursos que aceitam a língua tal como a gramática a define, bastando, num processo
circular, a gramática como fundamento, e outros que pleiteiam uma autonomia sobre a
gramática, sugerindo que o movimento seja contrário ao descrito por Auroux: é a prática da
língua que deve determinar a gramática.
Nesse sentido, interessa-nos delinear o funcionamento, seja pelo viés institucional ou
militante, das relações de subjetivação, de autoria, de tomada de posição, de conformismo
e/ou transgressão em relação à língua e ao saber metalinguístico. A língua gramatizada
serviria ainda hoje como modo de marcação de autoridade? Quanto do saber metalinguístico
está implicado nas discussões sobre gênero?
Deixando essas questões provisoriamente em suspenso, passamos à questão derradeira
deste capítulo.

2.5 AFINAL, DE QUE LÍNGUA FALAMOS?


58

Após a revisão de diferentes perspectivas a respeito da língua, o fecho que propomos


vem não coincidentemente em forma de pergunta. Não pretendemos dar uma resposta, mas,
sim, propor alguns alinhavos sobre o que podemos trazer para nossa reflexão.
Para Leandro Ferreira (2000, p.80), “em matéria de língua, não se vai de um polo a
outro, zerando tudo o que ficou para trás. Seria novamente cair na ilusão e na camisa-de-força
do ‘isso ou aquilo’”. Em consonância com a autora, propomos que todas as referidas
concepções de língua repercutem de forma diferente sobre os debates e as formulações que
materializam o que diferentes sujeitos entendem por língua. É por isso que, mais uma vez,
marcamos nossa aderência ao campo teórico da Análise do Discurso de linha francesa,
pensando a língua a partir das concepções oriundas desse campo. Pensamos sobre a língua,
então, como a base dos processos discursivos, base que não controlamos e que nos constitui.
Pensamos sobre a língua estando na própria língua. Uma língua que pode ser explicada por
diferentes metáforas, mas sempre parcialmente: não temos acesso ao todo, há algo que não
deixa de escapar, uma falha, um furo. No entanto, reconhecemos que, ao dizer “língua”, não
conseguimos recortar apenas a teoria que nos diz respeito: ela vem atravessada por outras
teorias delineadas ao longo da história da linguística, que reverberam ora como pré-
construídos, ora como discursos transversos.
Finalmente, a mesma autora nos aponta que “é sempre bom reiterar que a linguística
não é o único discurso sobre a língua, assim como a física não representa o discurso único
sobre o universo...” (LEANDRO FERREIRA, 2000, p. 106). Essa reiteração nos toca
particularmente devido ao nosso recorte de pesquisa lidar ora com conhecimentos
especializados, ora com conhecimentos leigos. Linguistas ou não, todxs falamos sobre língua,
visto que, enquanto sujeitos por ela constituídos, não conseguimos lhe ser indiferentes. Afinal,
de que língua falamos e de que modo falamos sobre ela? As análises que apresentaremos aqui
propõem analisar os discursos passíveis de emergirem quando, produtivamente, mantemos
essa questão em aberto.
3 ALGUMAS TENTATIVAS DE REPRESENTAÇÃO

– Existe homem e existe mulher. E tá acabado!


– Eu sou homem e sou mulher. E você tá acabado!
– Laerte Coutinho

Neste capítulo apresentaremos nosso exercício de análise dos discursos sobre língua e
gênero em espaços institucionais e em espaços de militância feminista on-line. Para tanto,
iniciamos com uma breve reflexão e apresentação do corpus discursivo e da metodologia de
análise, para em seguida apresentar as sequências discursivas e respectivas análises.

3.1 CONSIDERAÇÕES A RESPEITO DO CORPUS

Antes de abordarmos o processo de constituição do corpus, cabe situá-lo frente à


noção de arquivo. Para tanto, partimos de Pêcheux ([1982] 1994, p. 51), que define o arquivo
como “campo de documentos pertinentes disponíveis sobre uma questão”. Pensamos aqui na
memória discursiva e no recorte que esta efetua no interdiscurso: os arquivos não são objetos
dados de antemão, tampouco reflexos de uma realidade ou momento históricos. Mittmann
(2014) destaca, por exemplo, o jogo de forças que ocorre tanto na delimitação das bordas do
arquivo, separando seu exterior do seu interior, quanto em sua organização interna, marcada
por movimentos de sobreposições e reacomodações. No caso de nossa pesquisa, o arquivo foi
constituído por textos de diferentes gêneros a respeito de linguagem inclusiva, gênero e
feminismo, que circularam em plataformas diversas. São exemplos: textos teóricos publicados
em jornais, crônicas de opinião publicadas on-line, artigos de personalidades dos campos da
política e da militância publicados em redes sociais, entre outros.
Nesse sentido, o recorte do arquivo seria o primeiro movimento de constituição do
corpus, a etapa na qual, segundo Courtine (2006), é necessário atribuir um limite ou campo de
olhar sobre um conjunto de textos a fim de delimitar seu horizonte. Dentro desse limite, uma
segunda separação deve ser efetuada, obedecendo a um princípio de segmentação que divida
o que será interno ao corpus e o que permanecerá circundando seu exterior. Finalmente,
trabalha-se sobre os segmentos recortados de forma a ordená-los, compará-los, deslocar o
olhar sobre os textos selecionados. Uma vez constituído o corpus, a análise deve se basear
sobre a pluralidade de funcionamentos nele identificáveis.
Interessa-nos igualmente, além do processo de constituição, o critério adotado. Ainda
segundo Courtine (2006, p. 27), “é preciso encontrar textos que incomodem”, e, nesse sentido,
60

podemos assegurar que os textos selecionados para esta pesquisa são baseados, permeados e
costurados por incômodos. O incômodo, por exemplo, de questionar a evidência da língua,
afinal, a questão do gênero já estaria resolvida na gramática! O incômodo de questionar a
visibilidade e representatividade feminina, afinal, mulheres já têm direito ao voto, até à
Presidência! O incômodo de problematizar as amarras de gênero, afinal, existe homem e
existe mulher, qual é a grande questão em cima disso?
Desse modo, o corpus aqui apresentado poderia ser definido como um conjunto de
textos incômodos/incomodados versando sobre um mesmo tema (qual seja, a relação entre
língua, gênero e feminismo) que circularam em diferentes ambientes desde o ano de 2012.
Para a análise, foi feita a divisão entre discurso institucional e discurso militante, ao que
julgamos primordial acrescentar que esta serve apenas a fins analíticos e não pretende separar
de forma categórica o que se passa em cada esfera, como se fossem polos opostos e
incomunicáveis entre si. No entanto, por se constituírem de materialidades diversas e que
partem de esferas de saber bastante distintas entre si, julgamos produtivo analisá-las
separadamente para só num segundo momento compará-las em suas similitudes e
discrepâncias. É também em Courtine (2009) que nos apoiamos para constituir esse corpus de
diferentes materialidades: se a crítica do autor se dirigia à possibilidade de as condições de
produção filtrarem a constituição do corpus, aqui tentamos ampliá-lo para que as sequências
discursivas abrangessem a heterogeneidade e a contradição características das atuais
condições históricas de produção.
Assim, são apresentados fragmentos de textos produzidos num momento histórico no
qual a participação política feminina não pode mais ser ignorada, mas não apenas: é um
momento em que, conforme vimos no capítulo 1, até mesmo as antes rígidas fronteiras de
feminino e masculino são problematizadas. E esse conflito, como não poderia deixar de ser,
eclode na língua, sobre o que se foca nossa análise.

3.2 CONSIDERAÇÕES A RESPEITO DA ANÁLISE

Pêcheux e Fuchs ([1975] 2010) propunham a linguística (articulada ao materialismo


histórico e à teoria do discurso) como uma das regiões de conhecimento constitutivas do
quadro epistemológico da análise do discurso. Para o autor e a autora, os processos
discursivos estão na fonte dos efeitos de sentido, e estes são realizados na língua enquanto
lugar material. Essa perspectiva desloca o olhar da língua enquanto função para focá-lo no
seu funcionamento. O papel da linguística na análise do discurso seria o de permitir uma
61

análise sobretudo morfossintática, promovendo uma deslinearização especificamente


linguística dos textos e evitando cair no efeito subjetivo da leitura.
É nesse sentido que Pêcheux e Fuchs ([1975] 2010) abordam a relação existente entre
léxico e sintaxe. Explicam que o léxico não é apenas um estoque de morfemas apartado da
sintaxe, mas, pelo contrário, são elementos articulados que se estruturam sobre a sintaxe. Esta,
por sua vez, não é um domínio neutro de regras formais, mas o modo particular de uma língua
organizar o traço das referências enunciativas. Frente à postulação de que as construções
sintáticas têm uma “significação” que convém destacar, sentimo-nos confortáveis para
articular a semântica a essa relação: léxico, sintaxe e morfema não podem ser apartados da
semântica, visto que, nessa perspectiva, significam.
Trazer esses elementos para a análise abre a possibilidade de evitar uma leitura
subjetiva, ligada à evidência do sujeito e do sentido, conforme abordamos no capítulo 1.
Nessa leitura, um texto seria “biunivocamente associado a seu sentido” (PÊCHEUX; FUCHS,
[1975] 2010, p. 167). Em nossa perspectiva, pelo contrário, o sentido de dada sequência se
concebe quando esta é associada a dada formação discursiva. Essa associação, não sendo
facilmente identificável, não pode ser estabelecida de modo automático, cabendo antes uma
análise das relações de paráfrase e de polissemia que são estabelecidas com outros discursos.
A análise aqui empreendida, por exemplo, parte justamente dessas relações para só depois
associá-las a uma (ou mais) formação(ões) discursiva(s). Esse caminho por etapas é
importante para evitar igualmente uma leitura empírica, que apenas confirme as hipóteses já
presentes desde a delimitação do corpus.
Desse modo, o dispositivo metodológico da AD funciona aqui como uma conjunção
de saberes de diferentes campos: sendo a língua a base material dos processos discursivos,
voltamos nosso olhar para os funcionamentos do léxico, da sintaxe e do morfema, o que nos
auxilia na análise daquilo que de fato nos interessa, ou seja, o discurso que articula língua e
gênero em diferentes instâncias de enunciação.

3.3 O DISCURSO INSTITUCIONAL: A LÍNGUA ENTRE CARTILHAS E LEIS

No dia 1º de janeiro de 2011, Dilma Rousseff tomava posse como... sendo a primeira
mulher a assumir a Presidência da República no Brasil, presidenta, portanto? Ao menos esta
era a palavra adotada pela mídia oficial do governo. No entanto, a simples flexão de gênero da
palavra “presidente” para “presidenta” mobilizou uma discussão (ainda hoje, 2016, não
encerrada) na qual tomaram parte linguistas, jornalistas, profissionais da educação e pessoas
62

leigas. Afinal, faria sentido essa flexão de gênero num substantivo comum de dois gêneros,
ou, termo igualmente adotado pela gramática, “neutro”?
A alternância entre “presidente” e “presidenta” marca um aspecto gramatical que
retornará em diversos momentos da análise do corpus: a questão do morfema, entendido pela
gramática como “unidade mínima significativa ou dotada de significado que integra a
palavra” (BECHARA, 2009, p. 334). O que destacamos quanto à vogal de desinência de
gênero “- a” enquanto morfema é que as gramáticas não entraram em consenso quanto à sua
classificação: ele é apresentado ora como morfema categórico, ora como morfema
derivacional (FERREIRA DA SILVA, 2005). É por isso que neste trabalho, não sendo nosso
objetivo a classificação de morfemas, vamos nos deter sobre sua característica de significar,
referindo-nos inicialmente a esse morfema como “vogal de desinência de gênero” –
nomenclatura que poderá ser repensada ao longo das análises.

3.3.1 A Língua entre Leis e Decretos

A discussão sobre a marcação linguística do gênero feminino ficou ainda mais


acalorada quando da sanção da Lei Federal Nº 12.605, de 3 de abril de 2012, que “determina o
emprego obrigatório da flexão de gênero para nomear profissão ou grau em diplomas”
(BRASIL, 2012). Para algumas pessoas, tratava-se de um necessário reconhecimento do
espaço feminino nos ambientes formais de educação; para outras, uma imposição pela
presidenta Dilma Rousseff de sua preferência pessoal pela flexão de gênero.
O estado do Rio Grande do Sul foi ao encontro do debate com o Decreto Nº 49.994, de
27 de dezembro de 2012, que “estabelece a utilização da linguagem inclusiva de gênero nos
atos normativos, nos documentos e nas solenidades do Poder Executivo Estadual” (RIO
GRANDE DO SUL, 2012) e com a Lei Estadual nº 14.484, de 30 de janeiro de 2014, que
“dispõe sobre a utilização da linguagem inclusiva de gênero no âmbito da Administração
Pública Estadual” (RIO GRANDE DO SUL, 2014). No mesmo sentido, a Secretaria de
Políticas para Mulheres10 lançava dois manuais: o Manual para uso não sexista da linguagem
(RIO GRANDE DO SUL, 2014c) e a Cartilha da Diversidade de Gênero (RIO GRANDE
DO SUL, 2014b).

10
Secretaria criada em 2011, durante o governo de Tarso Genro (PT), e extinta no ano de 2015, durante o
governo de José Ivo Sartori (PMDB).
63

A relação entre língua e gênero, portanto, parecia estar no centro do debate tanto em
nível estadual quanto em nível federal. Para analisar os possíveis funcionamentos desse
debate, trazemos três sequências discursivas recortadas das leis e do decreto:

SD1:
Lei Nº 12.605
Determina o emprego obrigatório da flexão de gênero para nomear profissão ou grau em diplomas.
A PRESIDENTA DA REPÚBLICA Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a
seguinte Lei:
Art. 1oAs instituições de ensino públicas e privadas expedirão diplomas e certificados com a flexão de
gênero correspondente ao sexo da pessoa diplomada, ao designar a profissão e o grau obtido. (BRASIL,
2012).

Na SD1 não há referência explícita à questão da língua, ainda que o assunto seja
tangenciado pela flexão de gênero. Identificamos nessa SD um pré-construído que se adere
aos saberes da gramática, que prevê nas estruturas de flexão de gênero da língua a visibilidade
profissional feminina. E assim como na gramática, há uma correspondência entre sexo e
gênero que não problematiza a questão nem pelo viés da identidade nem pelo viés da língua: o
gênero corresponde ao sexo, e essa correspondência deve ser respeitada na emissão dos
diplomas, dando ênfase à distinção (ainda que binária) entre feminino e masculino.

SD2:
Decreto Nº 49.994
Art. 1º Fica instituído o uso da linguagem inclusiva de gênero nos atos normativos, no que couber, nos
documentos e nas solenidades do Poder Executivo Estadual.
Art. 2º Entende-se por linguagem inclusiva:
I - a utilização de vocábulos que designem o gênero masculino apenas para referir-se ao homem, sem
que seu alcance seja estendido à mulher; e
II - nos textos escritos ou falados, toda referência à mulher deverá ser feita expressamente utilizando-se,
para tanto, o gênero feminino.
Art. 3º A menção aos cargos deverá observar o gênero de seu ou de sua ocupante, respeitada a condição
feminina ou masculina. (RIO GRANDE DO SUL, 2012).

Já na SD2 tanto a questão da língua quanto a do gênero são mais explicitamente


abordadas. Quanto ao gênero, identificamos uma convergência aos discursos de
representatividade feminina ao se postular que a menção ao gênero feminino é imprescindível,
contrariando o postulado gramatical de neutralidade abrangente da forma masculina. Se os
saberes gramaticais são confrontados no que se refere ao gênero, identificamos uma
ressonância deles na apresentação normativa, que determina como e o que se deve falar e
escrever, de uma linguagem inclusiva. Além disso, a linguagem inclusiva figura como algo
passível de “uso”, de “utilização”, como se estivesse a serviço do sujeito. Se, por um lado, o
decreto é significativo por institucionalmente reconhecer e ressaltar linguisticamente a
64

participação feminina, por outro, ao destacar os gêneros masculino e feminino, não se abre
brecha para questionar o binarismo de gênero, que figura não como identidade, mas como
“condição”.

SD3:
Lei Nº14.484
Parágrafo único. Para os efeitos desta Lei, entende-se por linguagem inclusiva de gênero o uso de
vocábulos que designem o gênero feminino em substituição a vocábulos de flexão masculina para se
referir ao homem e à mulher.
Art. 2.ºPara os fins do disposto nesta Lei, são objetivos da linguagem inclusiva:
I - a inclusão dos gêneros feminino e masculino, com as respectivas concordâncias, na designação, geral
ou particular, dos cargos, dos empregos e das funções públicas e dos postos, patentes e graduações;
II - a não predominância, na elaboração de quaisquer documentos, mídias e outros veículos de
divulgação, de um gênero sobre o outro, ainda que sustentada em uso do costume ou das regras
gramaticais da língua portuguesa;
III - a disseminação do uso dos dois gêneros, para os casos de pluralização, ao invés do uso do gênero
masculino;
IV - a utilização do gênero feminino para toda referência à mulher;
V - a não utilização do termo “homem”, para fins de referência a pessoas de ambos os sexos,
substituindo pela forma inclusiva “homem e mulher”; e
VI - contribuirpara uma cultura de igualdade de gênero, por meio da linguagem inclusiva. (RIO
GRANDE DO SUL, 2014).

Para a análise da SD3, levantamos alguns pontos que consideramos pertinentes. Um


deles é a convergência entre práticas e objetivos; nos itens I a V do Art.2º, são apresentados
os modos linguísticos de prática da linguagem inclusiva, através da concordância de gênero e
do uso expandido de dois gêneros; já no item VI, há um deslizamento em que a linguagem
inclusiva passa a figurar não como um fim em si, mas como uma estratégia para que se
alcance uma cultura de igualdade de gênero. Interessante observar que esse deslizamento é
acompanhado por uma quebra no paralelismo por meio da mudança de classe gramatical: se
até então eram os substantivos (“inclusão”, “não predominância”, “disseminação”,
“utilização”, “não utilização”) que descreviam a prática da linguagem inclusiva, sua função é
descrita por um verbo (“contribuir”).
Se entendemos que todos os itens de I a VI são complementos de “são objetivos da
linguagem inclusiva”, a repetição de “linguagem inclusiva” no item VI, que poderia ser
classificada como uma falha na coesão textual, pode ser uma pista de um raciocínio circular,
no qual a linguagem inclusiva tem confundidas sua função, sua aplicação e sua existência.
Desse modo, identificamos nessa proposta de linguagem inclusiva uma ressonância da língua
de madeira, conforme descrita por Gadet e Pêcheux ([1981] 2010): uma língua de Estado, de
acesso e compreensão restritas.
Se na SD2 a neutralidade gramatical era combatida sem ser explicitamente
mencionada, na SD3 encontramos os saberes gramaticais reconhecidos como pré-construídos
65

a serem enfrentados: “ainda que” o uso e a gramática postulem a predominância de um gênero


sobre o outro, a proposta de linguagem inclusiva visa a combatê-la. A gramática, assim, figura
como um saber cuja legitimidade é reconhecida, mas que ainda assim pode ser contestado. No
entanto, identificamos na redação da Lei uma contradição marcada pela organização sintática:
ainda que a mulher seja incluída num nível lexical, seu papel é sintaticamente secundário,
como vemos em “homem e mulher”. Se no item II há uma abertura para criticar as amarras
gramaticais, priorizando a inclusão do gênero feminino, essas mesmas amarras se impõem na
sequência.
O que identificamos na análise das três SDs é que todas trabalham com a categoria de
gênero enquanto pré-construído, no qual se enquadram a figura masculina e a figura feminina
(nessa ordem), linguisticamente marcadas pela concordância de gênero, sem que se cogitem
neutralidade ou não binarismo. A língua, dessa forma, já apresentaria em sua rigidez
gramatical as estruturas morfológicas (como a vogal de desinência de gênero) necessárias e
suficientes para a promoção da linguagem inclusiva: para falar aos homens, usam-se
pronomes masculinos; para as mulheres, pronomes femininos; para grupos onde se integram
os dois gêneros, pronomes masculinos e femininos, mantendo a posição masculina como
primária e a feminina como secundária.
Nas leis e no decreto de onde foram recortadas as SDs, identificamos um jogo de
forças no qual temos: de um lado, a força da língua em sua autonomia relativa, consagrada
pela gramatização ou pelo uso; do outro lado, a força da resistência em combater as formas
linguísticas que são consideradas excludentes do feminino. Adotando os termos de Orlandi
(2009), seria possível pensar numa negociação com a língua imaginária: reconhecendo suas
regras, tenta-se driblá-la em alguns aspectos – exemplificada pela inclusão de “mulheres” na
comunicação governamental –, ao mesmo tempo em que a língua fluida carrega o sujeito para
além das regras dribladas – exemplificada pela predominância sintática do masculino sobre o
feminino.

3.3.2 Manual para Uso não Sexista da Linguagem: entre o reflexo e a ferramenta

Partimos agora para a apresentação do Manual para uso não sexista da linguagem: o
que bem se diz bem se entende11. A publicação foi elaborada a partir do manual da Red de
Educación Popular entre Mujeres de Latinoamérica y Caribe. Sua versão em língua brasileira,

O mesmo manual foi analisado em Zoppi-Fontana (2015), Garcia (2015) e Garcia e Sousa (2014).
11
66

de Beatriz Cannabrava, foi disponibilizada on-line em sites e blogs feministas anteriormente à


publicação governamental. Esta foi realizada pelo Grupo de Trabalho instituído pelo Dec. Est.
nº 49.995/2012, e consiste em sete capítulos teóricos e um capítulo de prática, com textos de
apresentação de autoria do Governador (Tarso Genro), da Secretária da Assessoria Superior
do Governador (Mari Perusso) e da Secretária Estadual de Políticas para as Mulheres (Ariane
Leitão). Além disso, traz em anexo um recorte do artigo de Marlon Leal Rodrigues (2004),
Flexão nominal: problemas de gênero e grau, algumas considerações, os decretos Nº 49.994
e Nº 49.995, ambos de 27 de dezembro de 2012, e a Lei nº 14.484, de 30 de janeiro de 2014.
Vamos nos deter mais longamente no Manual dada a pertinência que nele enxergamos,
pois, enquanto as leis e decreto de onde foram recortadas as SDs anteriores apresentam o uso
da linguagem inclusiva de modo normativo, ao Manual cabe apresentá-la de modo didático, o
que o torna um objeto ainda mais rico para análises dos discursos a respeito da relação entre
língua e gênero.
A peculiaridade de se tratar de um material institucional pode ser produtiva se pensada
junto ao que Althusser (1975) postula quanto aos aparelhos ideológicos de estado serem ao
mesmo tempo o terreno de criação, reprodução e manutenção da ideologia dominante. Não
sabemos se a divisão inicialmente proposta por Althusser dos AIE em oito categorias
(religiosos, escolar, familiar, jurídico, político, sindical, cultural e de informação)
corresponderia aos aparelhos como se apresentam na conjuntura atual. No entanto,
entendemos que uma Secretaria de Estado voltada aos interesses femininos não deveria
constituir o aparelho repressivo de Estado (definido também por Althusser a partir da
utilização da violência física ou simbólica para a manutenção da ideologia dominante),
constituindo antes um aparelho ideológico, que não ousamos classificar justamente em função
de questionarmos a aplicabilidade atual das oito categorias. Ainda assim, consideramos a
Secretaria como pertencente aos AIE e, desse modo, o que podemos apresentar como hipótese
sobre esse material, antes mesmo de iniciar a análise, é que, ainda que à primeira vista a
proposta de um manual voltado à linguagem inclusiva possa soar transgressora, é provável
que, enquanto material oriundo de um AIE, ele siga reproduzindo a ideologia dominante.
O primeiro aspecto digno de análise é a diferença entre a Lei Estadual Nº 14.484 e o
Manual no que se refere à nomenclatura: para a Lei, como apresentamos na SD3, trata-se de
“linguagem inclusiva”; para o Manual, como está marcado em seu título, trata-se de “não
sexismo”, e não na linguagem, mas no “uso”. A diferença, que pode parecer sutil, sinaliza
diferentes pré-construídos a respeito da língua: enquanto a língua discursivizada pela Lei é
passível de distinções (existe a linguagem inclusiva e existe aquela que não o é), para o
67

Manual o que se distingue é a forma de uso da língua (ela é uma só, passível de ser utilizada
de diferentes maneiras).
Neste ponto cabem algumas palavras a respeito da distinção entre língua e linguagem.
Pela análise do corpus como apresentada até aqui, entendemos que, quando se fala em
linguagem inclusiva ou não sexista, o que entra em confronto são concepções diversas a
respeito da língua, bem como seus diferentes modos de expressão – como apontado na análise
da SD3, em que línguas imaginária e fluida se confrontam. Identificamos uma oscilação na
qual em alguns momentos língua e linguagem não são diferenciadas e, em outros, língua12 diz
respeito ao sistema e linguagem à prática desse sistema. O que se mantém é que, mesmo que
se fale em linguagem, é em torno da língua que se concentram os saberes e pré-construídos
mobilizados. Assim, salientamos que língua e linguagem não são sinônimas, mas, nesta
pesquisa, ali onde o corpus por vezes diz linguagem, podemos ler questões de língua, ou, de
modo mais adequado ao objetivo da pesquisa, discursos sobre língua.
Partindo para as sequências do Manual, trazemos duas SDs recortadas do capítulo 1, O
papel da linguagem como agente socializante de gênero, no qual são introduzidas as
primeiras questões relacionando língua e gênero.

SD4:
É que a língua, ao ser o reflexo da sociedade que a utiliza, transmite a ideologia imperante nela, pois
reflete e reforça as desigualdades derivadas das discriminações exercidas contra as mulheres por meio
do androcentrismo e do sexismo (RIO GRANDE DO SUL, 2014c, p. 24).

SD5:
a língua em si não é sexista como sistema, mas o que é sexista é o mau uso que se faz dela, uso
consolidado, aceito e promovido pela sociedade (RIO GRANDE DO SUL, 2014c, p.26).

Cotejando as duas sequências, identificamos uma aparente contradição quanto à


concepção de língua. Na SD4, a língua é considerada ao mesmo tempo um espelho da
sociedade e um veículo de sua ideologia dominante, ao passo que na SD5 é estabelecida uma
diferença entre o sistema da língua e seus possíveis usos – reforçando uma concepção de
língua como instrumento. Nesse sentido, ambas as SDs relacionam a língua à sociedade de
modos distintos: na SD4, seria uma relação pautada na estrutura (a sociedade faz a língua); na
SD5, seria uma relação pautada no hábito (a sociedade usa a língua de determinada maneira).
Nas breves descrições que as SDs apresentam sobre língua, vislumbramos aquilo que
Leandro Ferreira (1996) aponta como o equívoco da língua: a língua que, ao se mostrar, se
esconde. A língua que resiste pelas rupturas, pelas faltas, pelas falhas. O que se diz sobre

12
Lembramos que, na perspectiva da AD, a língua é a materialidade do discurso.
68

língua numa SD se fragmenta na SD seguinte, e a tentativa de relacioná-la à sociedade se


esfumaça numa relação de causa e consequência que não encontra consenso. O que se pode
deduzir a partir dessas SDs é que a língua é passível de uso, o que abriria uma possibilidade
de utilizá-la de modo mais ou menos sexista. Mas se ela é um reflexo da sociedade (em
consonância com o pré-construído de uma língua transparente, que diz exatamente aquilo que
deveria dizer), como a utilização de um reflexo permitiria mudar justamente aquilo que é
refletido?
Para trazer mais elementos a esse questionamento, apresentamos uma SD recortada do
capítulo 4, A Gramática e a Semântica, no qual são apresentadas algumas “estratégias” para a
prática da linguagem inclusiva. Destacamos que o próprio termo empregado, “estratégias”, já
dá pistas de um sujeito estrategista, que utilizaria a língua a partir de escolhas
conscientemente sexistas ou não sexistas.

SD6:
Estamos plenamente convencidas de que será a influência social que fará possível que as palavras
representem devidamente a diversidade existente e que mude a representação das mulheres no mundo e
a imagem estereotipada, minimizada ou desvalorizada que ainda hoje reproduzimos ao falar (embora
seja sem intenção, sem interesse e sem pensar, ou simplesmente por falta de informação) do mesmo
modo que conceitos e ideias evoluiram mediante uma mudança em nossa forma de falar e escrever (RIO
GRANDE DO SUL, 2014c, p. 51).

A contradição que marcava a relação entre as SDs4 e 5 retorna na SD6, de modo que é
difícil compreender em que se sustentaria a argumentação: são as palavras que efetuam a
mudança social ou as palavras mudam para acompanhar a sociedade que mudou? As palavras,
nesta SD, como fragmentos da língua, ao mesmo tempo em que representam, mudam a
representação, num jogo em que a influência é ora exercida, ora sofrida. Trata-se aqui de uma
língua versátil que não se limita à passividade ou à atividade, mas que joga entre as duas
possibilidades, mudando e sendo mudada, representando e sendo representada.
Chama-nos atenção aqui o adendo sobre a minimização feminina na língua não ser
intencional. Isso nos conduz aos esquecimentos constitutivos do sujeito: duplamente
interpelado, crê que suas palavras sejam fruto de seu interesse e sua intenção, assim como vê
uma possibilidade de alterá-las a partir da informação. Na SD4 a língua é apresentada como
transmissão da ideologia imperante na sociedade, o que poderia trazer a ideologia para ser
pensada conjuntamente às propostas de linguagem inclusiva. No entanto, reconhecer que a
sociedade é dominada por dada ideologia não significa reconhecê-la no seu próprio discurso,
tampouco reconhecer que escapar de uma ideologia (no caso a dominante) implica
necessariamente ser interpelado por outra (que podemos chamar, provisoriamente, de
69

resistente). Assim, o sujeito que defende a linguagem inclusiva não ignora a existência da
interpelação ideológica (ainda que não se refira a ela por esses termos) na naturalização de
uma linguagem sexista, mas, ao tratarda linguagem inclusiva, esta noção é deixada de lado em
detrimento de outras como intenção, interesse e falta de informação – talvez porque o
ideológico pareça ser sempre aquilo que vem do lado de lá, enquanto do lado de cá o que
falamos seria apenas a verdade...
Em se tratando de um material distribuído por uma Secretaria de Estado, é tentador
identificar, mais uma vez, nessa alternância entre o que se reconhece e o que não se reconhece
como ideológico, a língua de madeira conforme descrita por Gadet e Pêcheux ([1981] 2010).
É a língua que denega a política e, no caso em análise, o faz relacionando-a à alteridade: não é
que a ideologia não faça parte do debate, ela apenas estaria do outro lado.
As duas sequências seguintes, também retiradas do Manual, tratam igualmente da
possível relação entre língua, intenção e mudanças:

SD7:
A linguagem, a forma de comunicação entre homens e mulheres, não está isenta desta forma de
construção e foram elaboradas [sic], não só como diz Simone de Beauvoir, a partir dos interesses dos
homens, mas está carregada de uma clara intencionalidade por remarcar o caráter negativo do sexo
feminino e supervalorizar o sexo masculino (RIO GRANDE DO SUL, 2014c, p. 37).

SD8:
Posto que as palavras definem a realidade modelando-a, e que também a realidade tem uma grande
carga no significado que se dá às palavras, podemos impulsar propostas dirigidas a mudá-las mediante
um uso não sexista das palavras e, com isto, conseguir a sua modificação.
A linguagem cria consciência, cultura, ideologia e modifica o pensamento das pessoas. Podemos,
portanto, ao mudar a forma de falar e escrever, modificar a mentalidade das pessoas, suas condutas e
como consequência a própria sociedade (RIO GRANDE DO SUL, 2014c, p. 42).

Ao abordar a forma de comunicação, a concepção de língua presente na SD7 é a de


uma língua fruto de construção, de (mais uma vez) intenção, que se presta a servir a dados
interesses. Essa leitura continua na SD8, na qual a língua é apresentada como uma ferramenta
manipulável que, se agora serve a dados interesses, pode ser voluntariamente modificada para
que sirva a interesses outros. Se nas SDs anteriores havia certo embaçamento entre causa e
consequência (a língua modifica o mundo ou o mundo modifica a língua?), na SD8 a primazia
do sujeito sobre a língua está bem estabelecida: bastaria escrevê-la e falá-la de outro modo,
governando-a, para que a sociedade acompanhasse a mudança. Esta SD estabelece uma
contradição com a SD4, que afirma que a língua é um reflexo da sociedade que a utiliza. Se
naquela análise nos questionávamos de que forma o reflexo poderia alterar aquilo que está
70

sendo refletido, uma resposta provisória se apresenta na SD8: mudando o reflexo, o que se
reflete muda junto.
Nesse sentido, as SDs até aqui apresentadas trabalham com um funcionamento da
língua que é heterogêneo e marcado por contradições: ela é causa e consequência, é feito e
efeito, é reflexo e ferramenta, é permanente e modificável. De forma alguma consideramos a
contradição como um aspecto negativo; é antes constitutivo. Desse modo, a análise do corpus
caminha em convergência com a língua que postulamos na AD: quando se tenta aprisioná-la,
ela escapa; quando se tenta dominá-la, ela resiste; quando se tenta modificá-la, ela demonstra
sua autonomia. Sobretudo, numa relação de elaboração entre língua e sujeito, este tropeça na
ideologia que interpela a ambos, sem conseguir se isentar de seus efeitos e sendo carregado
por ela ali mesmo onde tenta evitá-la.
Até agora trouxemos SDs que tratavam do aspecto “teórico” da linguagem não sexista;
os quadros abaixo apresentarão algumas das propostas práticas de aplicação dessa linguagem
de acordo com o Manual.

Quadro 1 – Redação excludente X Redação Inclusiva


Redação Excludente Redação inclusiva
Os indígenas terão crédito A população indígena terá crédito
Os jovens que desejem estudar A juventude que deseje estudar
Os votantes do Distrito Federal tendem a O eleitorado do Distrito Federal tende a
Os cidadãos se manifestaram A cidadania se manifestou
Os gaúchos não querem que A sociedade gaúcha não quer que
Os interessados em participar As pessoas interessadas em participar
Os maiores de idade receberão uma As pessoas maiores receberão uma
Os meninos terão atenção médica As crianças terão atenção médica, ou
As meninas e os meninos terão atenção médica
Fonte: RIO GRANDE DO SUL, 2014c.

Quadro 2 – Representação X Não representação


Não representa a toda a humanidade Representa a humanidade
Há 2.000 anos o homem vivia da caça Há 2.000 anos se vivia da caça
Na época pré-histórica os homens escreviam Na época pré-histórica se escrevia mediante
mediante hieróglifos hieróglifos
O trabalho do homem melhora sua vida O trabalho da humanidade melhora a vida
É benéfico para o homem É benéfico para a sociedade/ É benéfico para as
pessoas
Atuação do homem na clonagem de animais pré- Atuação de especialista na clonagem de animais
históricos pré-históricos
Houve mutação das espécies pela ação predatória Houve mutação das espécies pela ação predatórias
do homem das pessoas, do gênero humano
É responsabilidade do homem a manutenção da É responsabilidade da humanidade a manutenção
biodiversidade da biodiversidade
Já era homem quando perdeu o pai Já era adulto quando perdeu o pai
É apenas um homem, não pode fazer milagres É apenas um ser humano, não pode fazer milagres
Fonte: RIO GRANDE DO SUL, 2014c.
71

Esses quadros são apresentados como alternativas que tiram o foco do masculino ao
utilizar termos genéricos, abrangentes ou referentes à coletividade. No entanto, evitar o
destaque do masculino não significa destacar ou reconhecer o feminino. É por isso que no
capítulo seguinte, que trata especificamente de profissões exercidas por mulheres, uma
estratégia diferente é apresentada:

Quadro 3 – Regras de concordância ou sintáticas


Não empregar Empregar
Um fiscal Uma fiscala
Um patrão Uma patroa
Aquele cavaleiro Aquela cavaleira
O juiz A juíza
O industrial A industrial
Fonte: RIO GRANDE DO SUL, 2014c.

O quadro é apresentado logo após uma breve explicação a respeito da formação do


masculino e do feminino em profissões e cargos, situações gramaticalmente previstas na
língua portuguesa. Dessa forma, são reproduzidos os saberes de concordância de gênero
conforme estes são apresentados pela gramática, não havendo espaço para questioná-los – é o
que notamos, por exemplo, quando se faz concordância de fiscal para fiscala, mas não de
industrial para industriala.
Como instruções finais, é apresentado um quadro de revisão que resume as sugestões
apresentadas ao longo do manual:
72

Figura 1 – Revisando

Fonte: RIO GRANDE DO SUL, 2014c.

O que destacamos da figura é que os itens A e B dialogam entre si, bem como os C e
D. Vejamos: enquanto A propõe que as mulheres sejam visibilizadas, B propõe uma inversão
da ordem sintática usual, trazendo o feminino como elemento primário e o masculino como
secundário. Já nos itens C e D temos abordada a questão da invisibilidade: esta só é aceita
como recurso último por economia de tempo ou trabalho, caso em que são recomendados os
genéricos, como vimos no Quadro I. O que se prefere, no entanto, é que o feminino seja
claramente expresso: não apenas as estratégias tradicionais como barras e parênteses são
criticadas, mas também as pouco convencionais e não gramaticalizadas, como a substituição
das vogais pelo símbolo @ ou pela letra x. Estes, de acordo com o Manual, não são
verdadeiramente representações do feminino, ao que lançamos a pergunta: seriam, então,
representação do quê?
A questão poderia ser deixada em suspenso se pacificamente aceitássemos que o
Manual publicado pela Secretaria frisa apenas a visibilização feminina sem ampliar o debate
para a problematização de gênero. No entanto, no mesmo ano, foi distribuída pela mesma
Secretaria uma Cartilha intitulada Direitos iguais nas diferenças: Cartilha da Diversidade de
Gênero. Embora o material não tenha como objetivo refletir sobre questões de linguagem, a
73

publicação quase simultânea da Cartilha e do Manual nos intriga no sentido de que a Cartilha
levanta a possibilidade de um debate até então silenciado pelo Manual: as relações de poder
não se estabelecem apenas entre homens e mulheres, binariamente, mas estão presentes
também na diversidade de gênero.
Ora, se uma publicação postula que é preciso reconhecer as mulheres pelo uso de uma
linguagem não sexista e se na outra são reivindicados direitos iguais nas diferenças, é o caso
de questionarmos: como a diversidade de gênero e seus direitos, reconhecidos pela Secretaria,
são (ou não) perpassados pela linguagem não sexista que a própria Secretaria propõe?

3.3.3 Direitos Iguais nas Diferenças: diversidade de gênero

O que pretendemos ao trazer ambos os materiais da Secretaria de modo comparativo é


analisar se a percepção de gênero que um material divulga é condizente com a linguagem não
sexista ensinada pelo outro material e se ambos os materiais, tendo partido da mesma
Secretaria, mobilizam discursos inseridos numa mesma formação discursiva.
A cartilha Direitos iguais nas diferenças: Cartilha da Diversidade de Gênero foi
lançada no ano de 2014 pela Secretaria de Políticas para as Mulheres; não consta na
publicação se para a sua produção foi criado Grupo de Trabalho específico (como foi no caso
do Manual). A língua, como veremos ao longo da análise, não é tema com o qual a Cartilha se
preocupe. Direcionada ao público feminino, a Cartilha apresenta algumas explicações a
respeito do que entende por diversidade de gênero, diferentemente do Manual, que partia das
categorias de feminino e masculino como pré-construídos estanques. Assim, encontramos na
Cartilha:
74

Figura 2 – Sexo, gênero, identidade de gênero

Fonte: RIO GRANDE DO SUL, 2014b.


75

Assim como o Manual, a Cartilha define gênero como construção social. No entanto,
como vemos na Figura 2, ao falar em identidade de gênero, abre-se a possibilidade de não
binarismo: “gênero masculino, feminino ou de alguma combinação dos dois, independente
de seu sexo biológico”. Além disso, aborda didaticamente a questão da transgeneridade13,
conforme segue:

Quadro 4 – Transgênero

Travesti: Pessoa biologicamente masculina que


tem identidade de gênero oposta ao seu sexo
biológico, assumindo pápéis de gênero
diferentes daquele imposto pela sociedade.

Transhomem: Pessoa biologicamente feminina


que tem identidade de gênero oposta ao seu sexo
transgênero biológico, assumindo papéis de gênero
São pessoas que possuem identidade de gênero diferentes daquele imposto pela sociedade.
oposta ao seu sexo biológico.
Entre os transgêneros estão os travestis,
transhomens e transexuais.

Transexual: Pessoa que possui uma identidade


de gênero diferente do sexo designado no
nascimento. Homens e mulheres transexuais
podem manifestar o desejo de se submeterem a
intervenções médico-cirúrgicas para realizarem a
adequação dos seus atributos físicos de nascença
(inclusive genitais) à sua identidade de gênero
constituída.

Fonte: RIO GRANDE DO SUL, 2014b.

Se na Figura 2 temos aberta a possibilidade de não binarismo, no Quadro 4 esta


possibilidade se fecha: ainda que se trate de transgeneridade, os deslizamentos asseguram o
binarismo. As definições começam por “pessoa”, mas logo deslizam para “homens”,
“mulheres” e “identidade de gênero oposta”. Além disso, destacamos os artigos masculinos na
definição de transgênero, uma vez que esta também começa (e por isso poderia terminar) por
“pessoas”, substituição sugerida pelo Manual como proposta de redação inclusiva. A redação,

13
As definições apresentadas na Cartilha não estão de acordo com as defendidas pelo movimento transfeminista.
Para conhecê-las, consultar Jesus (2012).
76

no entanto, não é mantida, e o artigo masculino aparece tanto se referindo à grande classe (“os
transgêneros”) quanto às especificidades “os travestis, transhomens e transexuais”.
O que identificamos neste breve cotejamento entre Manual e Cartilha é que a proposta
de uma linguagem não sexista parece se limitar a incluir e destacar as mulheres por meio da
sintaxe e da concordância nominal sem oferecer alternativas que deem conta da diversidade
de gênero. E mesmo as propostas apresentadas não encontram correspondência na Cartilha,
como podemos observar na sequência abaixo, recortada do capítulo que trata sobre violência
de gênero:

SD9:
Desde que o bullying entrou pelos portões das escolas, pedagogos (as), pesquisadores (as) e advogados
(as) receberam o desafio de identificar, combater e, principalmente, prevenir essa prática (RIO
GRANDE DO SUL, 2014b, p.20).

Identificamos aqui uma contradição entre a teoria postulada num material e a prática
apresentada em outro. No Manual (conforme Figura 1), recomenda-se que não se usem
parênteses ou barras diagonais;na Cartilha, a vogal de desinência do gênero feminino é
apresentada justamente entre parênteses. Nesse sentido, retomamos a imagem construída no
Manual da língua enquanto ferramenta: até podemos tentar tomá-la como tal, mas essa ilusão
não se sustenta porque não temos seu domínio. Se resistimos à ideologia dominante pela
tentativa de novos modos de dizer, a língua resiste com igual força em sentido contrário,
impondo sem que percebamos os modos de dizer que tentamos refutar. Mais do que uma
autonomia relativa, a língua tem também história e ideologia, e estas reforçam e naturalizam
padrões nos quais é possível recair mesmo (e talvez principalmente) tentando evitá-los. Se
algo fala antes, não fala de qualquer modo: o antes que fala aqui carrega uma tradição de
subordinação feminina ao masculino que é marcada na língua e se impõe com a força de um
aprisionamento.
Ora, se a língua da política é a de madeira, restrita a quem tem condições de acessá-la,
é justo que não esperemos que partam dela a mobilidade e a mudança. O discurso
institucional se apresenta pontuado por contradições que dificultam o delineamento de
posições claras e de Formações Discursivas: partindo de uma mesma Secretaria, a contradição
entre os materiais vai ao encontro de nossa perspectiva teórica, mostrando que o sujeito não é
soberano nem da língua (seja ela sexista ou não) nem dos discursos (que se relacionam por
jogos de forças nos quais se estabelece um dominante). Da análise empreendida até aqui,
concluímos provisoriamente que o sexismo em sua manifestação linguística é um discurso
77

dominante, com tamanha força que se marca mesmo (e talvez principalmente) quando se tenta
fugir dele. As iniciativas da Secretaria, ainda que tentem padronizar uma linguagem não
sexista, esbarram tanto na interpelação ideológica quanto na autonomia relativa da língua.
Ainda que goze de maior legitimidade e aceitabilidade social, o discurso institucional
não é o único que problematiza as questões envolvendo língua e gênero. É por isso que
trazemos agora fragmentos que intitulamos de discurso militante, dado que foram em sua
maioria retirados de espaços virtuais de militância feminista e/ou de gênero.

3.4 O DISCURSO MILITANTE: A LÍNGUA NAS REDES

Antes de apresentarmos a segunda parte do corpus com as sequências de análise,


cabem algumas considerações a respeito dos textos encontrados on-line, que constituem uma
materialidade específica distinta, por exemplo, da dos textos institucionais até agora
apresentados.

3.4.1 Especificidades da Internet

As relações que se estabelecem nos espaços virtuais podem ser pensadas tanto dentro
de nossa perspectiva teórica quanto a partir de contribuições outras. Assim, traremos
inicialmente algumas reflexões de Castells (2003) para pensarmos a respeito desse modo
específico de organização, para, em seguida, voltarmos ao nosso referencial com base em
Gallo, pensando a textualização nessa plataforma.
Para Castells (2003), a Internet pode ser caracterizada como um meio que permite
comunicação horizontal e livre expressão. Tendo sido apropriada pela prática social, exerce
efeitos específicos sobre esta, pois não se trata da construção de uma realidade virtual, e sim
da “extensão da vida como ela é, em todas as suas dimensões e sob todas as suas
modalidades” (CASTELLS, 2003, p. 100). Desse modo, ainda que dotada de algumas
particularidades, a vida on-line não se distingue tão completamente da off-line. Uma das
semelhanças reside na formação de redes e comunidades, cujas formações, com o intermédio
da Internet, podem ser dissociadas de apenas uma forma material; assim, públicos específicos
formam redes específicas on-line de acordo com seus interesses e necessidades.
A formação dessas redes pode ser pensada à luz do questionamento proposto pelo
autor quando da análise da política da Internet: a rede é apenas uma possibilidade de
expressão ou se torna ela mesma uma ferramenta modificadora com poder de transformar o
78

jogo político-social? No que nos interessa nesta pesquisa, esse questionamento se aproxima
ao que já apontamos quanto à língua: ela é ferramenta ou reflexo?
Pensamos, por exemplo, no símbolo @, que foi tomado justamente do domínio da
informática e foi de tal modo popularizado como proposta de linguagem inclusiva que não
pode deixar de ser reconhecido (ainda que contestado) pelo discurso institucional (conforme
Figura 1). É um caso em que os saberes específicos das redes se interseccionam com o mundo
off-line, tornando as fronteiras que delimitam o dentro e o fora difíceis de identificar, visto
que os debates que se iniciam na Internet encontram continuidade off-line. Além disso, o
meio on-line, possibilitando a formação de redes por interesses sem barreiras físicas,
possibilita também que uma pluralidade mais heterogênea de sujeitos assumam posições num
mesmo debate: diferentemente do que ocorre no discurso institucional, no qual os lugares de
enunciação são mais rigidamente determinados, o discurso das redes tende a apresentar maior
fluidez, já que teoricamente bastaria ter acesso à Internet para tomar parte no debate.
No entanto, Castells (2003) salienta que o acesso à Internet não é homogêneo nem
igualitário, sofrendo um recorte de classe tanto no que se refere à possibilidade de acesso
quanto no uso que é feito desse acesso. Assim, ainda que a Internet permita uma abrangência
de posições maior do que a de uma Secretaria de Estado, por exemplo, devemos manter em
mente que sua abrangência não é universal e passa longe de representar uma totalidade das
posições possíveis dentro de um debate.
Outra particularidade que gostaríamos de ressaltar dialoga com o que Gallo (2008)
teoriza a respeito do discurso da escrita e do discurso da oralidade. Para a autora, o discurso
da escrita é caracterizado por sua determinação institucional e seu efeito de fechamento,
sendo imbuído da função-autor e não estando relacionado ao fato de ser ou não grafado – uma
manifestação de uma personalidade política, por exemplo, vocalizada, pode estar inscrita no
discurso da escrita, desde que tenha assegurado esse efeito de finalização. O discurso da
oralidade, pelo contrário, é caracterizado pela sua abertura permanente, o que equivale a dizer
que neste não há uma função-autor do qual o sujeito se valha. É o discurso da dispersão, em
que os sentidos não se estabilizam nem provisória nem aparentemente.
A autora inclui ainda uma terceira categoria, necessária para a análise de espaços
discursivos próprios da Internet: a escritoralidade, que reúne elementos tanto do discurso da
escrita quanto do discurso da oralidade (GALLO, 2012). Esse modo específico de
discursividade caracteriza a especificidade de um discurso cujo sentido é fechado, mas
provisório; a autoria pode ser assumida, mas submetida à perecibilidade do espaço virtual,
onde os textos podem sumir instantes após terem sido publicados. No que se refere à escrita,
79

Gallo (2008, p. 48) salienta que “a escrita gráfica, na sua constituição, mobiliza os sons da
linguagem articulada, mas não é uma representação dessa linguagem. Os efeitos de sentido
dessa produção (escrita gráfica) são específicos e próprios dela unicamente”. Essa perspectiva
fornece suporte para pensar a relação da escrita com a oralidade, reconhecendo que nessa
relação são retomados pré-construídos que repercutem no debate aqui analisado e convidam
os sujeitos a tomarem posição em uma formação discursiva.
Na análise que apresentamos anteriormente sobre o discurso institucional,
identificamos sobretudo o discurso da escrita, visto que eram textos com efeito de
fechamento, sinalizado inclusive pelo tom normativo de algumas SDs. Nas SDs que
apresentaremos, retiradas de textos on-line, esse efeito não é predominante, havendo espaço
também para o discurso da oralidade, marcado pela abertura, pelo retorno, pelo debate. Isso
não significa que a cada ambiente (institucional ou virtual) corresponda diretamente um tipo
de discurso, mas que identificamos uma tendência de correspondência relacionado ao
ambiente de veiculação dos textos de onde recortamos as SDs, o que ficará mais bem
exemplificado com a análise que segue.

3.4.2 O X (ou @, ou e) da Questão

No Manual era brevemente pontuada uma discordância quanto às formas que inseriam
x ou @ no lugar das vogais, demonstrando que essa estratégia já goza de certa popularização
e não é ignorada nem mesmo pelas instituições. Nesse sentido, buscamos na rede (onde a
estratégia nasceu, cresceu e se popularizou) alguns dos discursos que a reiteram, a refutam e a
debatem.
Nosso corpus se constitui de dois textos publicados em diferentes plataformas on-line
com alguns dos respectivos comentários. O texto Minimanual dx guerrilheirx linguísticx
(doravante Texto 1) é assinado por Marcos Visnadi e foi publicado em setembro de 2013 na
Revista Geni14, que se apresenta como “uma revista virtual independente sobre gênero,
sexualidade e temas afins”. O segundo texto, Deixando o X para trás na linguagem neutra de
gênero (doravante Texto 2), é assinado por Juno e foi publicado em agosto de 2013, com
atualizações em setembro e novembro de 2014, no blog Batatinhas15, que se apresenta como
“Perspectivas trans fora da binária”.

14
Disponível em: <http://revistageni.org/>. Acesso em: 25 fev. 2016.
15
Disponível em: <https://naobinario.wordpress.com/>. Acesso em: 25 fev. 2016.
80

O texto 1 apresenta uma reflexão a respeito do uso do x “para rasurar o binarismo de


gênero na língua portuguesa”, partindo de uma retomada sobre a marcação linguística de
gênero até chegar aos textos publicados pela revista:

SD10:
Um dos muitos debates que temos na Geni, desde que começamos a pensar na revista, lá em fevereiro
deste ano, é o do uso da linguagem. Não poderia ser diferente: a maior parte do nosso conteúdo é em
texto escrito, e todo ele, em português. A pergunta que nos fazemos é: como lutar contra todas as
opressões utilizando uma língua que carrega nela mesma as marcas da opressão, em particular a do
binarismo de gênero?
Linguisticamente, a questão é cabeluda, e, não sendo linguista, não vou me meter nela. Uma ideia que
parece recorrente e bem aceita no debate científico é a de que o português não se divide entre os gêneros
masculino e feminino, mas sim entre a ausência de marcação de gênero (uma espécie de neutro, que
coincide com o que chamamos de masculino) e a marcação de gênero propriamente dita (o que
chamamos de feminino). [...]
Politicamente falando, a palavra “neutro” dá arrepios em qualquer pessoa que não a use a seu favor.
Atribui-se ao arcebispo sul-africano Desmond Tutu uma frase que me parece certeira: “Se você é neutrx
em situações de injustiça, você escolhe o lado dx opressorx”. A confusão que faço entre o “neutro”
linguístico e o “neutro” político é proposital, porque os dois se confundem mesmo. A linguística, como
ramo da moderna ciência de matriz europeia, geralmente pressupõe uma neutralidade da observação que
a gente precisa questionar, sobretudo porque o neutro costuma coincidir, não por acaso, com o
masculino (e branco, e heterossexual, e burguês etc.). (VISNADI, 2013)

Nesta sequência, o discurso sobre língua difere daquele apresentado no Manual: se lá,
sexista era apenas o uso que se podia fazer da língua, na SD10 se manifesta o posicionamento
de que a língua carrega por si só as marcas de opressão. É assim que se instaura um conflito
entre o que se quer fazer com a língua (textos que não oprimam) e o que a língua em sua
autonomia relativa permite (concordância binária de gênero). Esse conflito é pontuado por
resistência, já que, ainda que se reconheçam os argumentos teóricos que pautam esse
binarismo, eles são contestados com base no questionamento à neutralidade: de que
neutralidade estamos falando? A quem serve essa neutralidade? A posição marcada aqui é a
de contestação: na sequência da explicação da regra gramatical, que apresenta uma distinção
entre a ausência da marcação de gênero e a “marcação de gênero propriamente dita”, a própria
regra já é contestada pela escrita em “Se você é neutrx em situações de injustiça, você escolhe
o lado dx opressorx”. O uso do x, nesta SD, marca que já foi assumido um lado: se o “o” é
neutro – linguístico e político – e se a neutralidade é a opção pela opressão, o x seria a opção
pelo oprimido. Não se aceita a neutralidade, e se é na língua que ela se marca, é também na
língua que ela será combatida, mesmo que isso custe a quebra de regras básicas do sistema
gramatical.
Nesse sentido, gostaríamos de problematizar a relação que Pêcheux ([1975] 2009)
apresenta entre língua e formação discursiva: para o autor, como já vimos no capítulo 1, o
sistema da língua é o mesmo, o que muda o sentido das palavras e expressões é a formação
81

discursiva. Cotejando as alterações propostas pelo discurso institucional e pelo discurso


militante, nos deparamos com a questão: o próprio sistema da língua não seria alterável pela
formação discursiva?
Estamos trabalhando, por exemplo, com inversão sintática (conforme Figura 1) e com
transgressões morfológicas (conforme SD 10). O que até agora chamávamos de vogal de
desinência de gênero desliza para uma consoante de não desinência de gênero. Ainda não
delineamos se os discursos institucional e militante se inserem numa mesma formação
discursiva e já apontamos pelo menos um ponto de discordância entre os dois no que se refere
ao uso do x e do @. No entanto, podemos pontuar que eles têm em comum o fato de
questionarem as amarras do sistema: as regras e o uso impõem que se escreva/ se fale de
determinado modo, e é contra essa imposição que ambos os discursos se confrontam. Ainda
que postulando estratégias diversas e marcados por contradições quando se trata de trazê-las à
pratica, observamos que ambos os discursos se organizam em volta de um incômodo frente ao
sistema.
O sistema da língua, apontado por Pêcheux como sendo o mesmo para o reacionário e
o revolucionário, parece não representar mais este segundo grupo. Enunciar de certo lugar não
é mais suficiente: é preciso enunciar de um modo que, por si só, caracterize este lugar. É o
que observamos na SD11:

SD11:
Graficamente, a substituição da arroba pelo xis tem muita razão de ser. O símbolo da arroba, composto
de um A e um O (ou seja, as duas marcas mais evidentes de designação de gênero em português), ainda
é binário – e, diz a Lia Urbini, flagrantemente machista, pois o O envolve o A.
Já o xis é praticamente uma rasura, uma negação explícita desse binarismo machista. Ele causa um baita
estranhamento, dificulta, trava a leitura. E é justamente essa a intenção! Interromper o automatismo do
nosso olhar, mexer na zona de conforto é um jeito de chamar a atenção para relações de violência que
passam despercebidas, que são legitimadas sob a carapuça da naturalidade – ou da neutralidade.
(VISNADI, 2013).

Mesmo dentro da transgressão morfológica, como demonstra a SD11, se identificam


posições diferentes. De um lado, temos o @, que transgridiria a morfologia sem transgredir o
binarismo, uma solução de arestas polidas e até graficamente arredondadas, remetendo aos
domínios da informática e da comunicação on-line. Do outro, o x, graficamente pontiagudo,
que rasuraria e carregaria consigo pré-construídos de diferentes campos de saber: é com um x
que se assinala a alternativa escolhida (inclusive a de “sexo”, seguida das opções “masculino”
e “feminino”, que se apresenta em qualquer formulário de identificação); é um x que
perseguimos quando, frente a uma equação matemática, queremos chegar numa resposta
certeira, exata; é a abertura que clama por um fechamento. No entanto, quando incorporado à
82

escrita, anuncia a permanência de uma abertura: aqui, nesta posição do discurso militante, não
se fecha com a neutralidade, mas com o questionamento e a transgressão.
O texto é seguido por pouco mais de uma dezena de comentários de internautas, dos
quais recortamos as SDs seguintes:

SD12:
A questão que se coloca é: ao aplicarmos o X não estamos, mais uma vez, suprimindo o feminino? E se
colocarmos no feminino todas as palavras?
Outra questão é: na comunicação oral: tanto o X quanto o @ são impronunciáveis. Como fica?
No mais, nenhum sujeito é neutro, portanto, acredito que a utilização dos artigos no feminino ainda é o
melhor caminho.

SD13:
nao concordo em colocar tudo no feminino, porque entaoexcluimos o masculino. sem falar que o xis,
como esta dito no artigo, vem pra causar incomodo e quebrar o binarismo. nao acho que afasta ninguem
da causa feminista nao. sou feminista recente e estou me acostumando com o xis.

Ao compararmos o texto principal da postagem aos comentários que o seguem,


identificamos uma alternância entre as particularidades do discurso da escrita e do discurso da
oralidade (GALLO, 2008), o que compreendemos pela noção de escritoralidade (GALLO,
2012). Poderíamos reconhecer na SD11 o discurso da escrita, visto que é um texto
argumentativo, com certo trabalho de costura dos fragmentos e com mais afirmações do que
questionamentos, e nas SDs 12 e 13 o discurso da oralidade, visto que são comentários que
apresentam um raciocínio no momento mesmo em que este é elaborado, com questionamentos
e tendência à dispersão. No entanto, considerando a escritoralidade como uma terceira via
possível, as 3SDs estariam inscritas nesse modo de discursividade, pois, com mais ou menos
exercício de textualização, estão todas sujeitas à provisoriedade característica dos ambientes
virtuais.
A SD12, além disso, traz à tona a questão da relação entre escrita e fala, defendendo
que uma alternativa não oralmente pronunciável não seria incorporável à língua. Num sentido
contrário, retomamos a distinção que Gallo (2008) apresenta: ainda que a escrita mobilize
sons da linguagem articulada, não é uma representação desta, sendo, pelo contrário, dotada de
efeitos de sentidos únicos e distintos. Ora, num debate que se desenvolve de forma escrita,
qual seria a relevância de uma possível pronúncia de dadas palavras? O discurso que
identificamos nessa preocupação é sobre uma língua única, homogênea, que deveria servir
igualmente a todos os suportes e propósitos, não sendo possível fragmentá-la entre escrita e
oralidade.
No que se refere ao gênero, o que se marca nas SDs 12 e 13 é uma divergência sobre a
língua motivada não por sua forma, mas por sua função: quem a língua deve representar? O
83

que deve combater? O discurso sobre língua identificado no Manual se repete na SD12,
caminhando no mesmo sentido de reprovação às transgressões morfológicas e não
problematização de gênero: existem mulheres e homens, e todas e todos devem e podem ser
representadas e representados por uma linguagem não sexista, visto que a língua em sua
sistematização atual disponibiliza flexões de gênero suficientes e necessárias para essa
representação. A SD13, pelo contrário, aponta para uma problematização de gênero que é
silenciada pela flexão de gênero tradicional: existem possibilidades não binárias de gênero
que não encontram representação numa flexão binária.
Nesse ponto poderíamos tender a identificar, de forma quase polarizada, no discurso
institucional sobre língua um alinhamento aos saberes do feminismo bem comportado (que
até permite a inclusão feminina, desde que não transgrida as bases do sistema vigente) e no
discurso militante um alinhamento aos saberes do feminismo mal comportado (que não se
limita a incluir as demandas femininas no sistema, mas a reconstruir esse próprio sistema),
com base no posicionamento frente ao (não) binarismo da língua e, por consequência, da
identidade de gênero. No entanto, as seguintes sequências, recortadas do Texto 2 e de seus
comentários, nos sugerem que a delimitação não é tão simples. Antes de apresentarmos as que
tratam especificamente sobre língua, apresentamos as que teorizam sobre gênero e não
binarismo, conforme segue:

SD 14:
os gêneros das pessoas não-binárias costumam ser muito mais difíceis de explicar às pessoas, de forma
que “não ser”, “ser nenhum dos dois”, ou ser qualquer um deles de forma não-normativa (bigênera,
multigênera, pangênera, etc) será algo encarado como uma invenção, uma tolice, etc, porque estas
experiências são apagadas, e estão sempre na margem. É certamente mais complicado explicar a alguém
que você não é nem homem, nem mulher do que explicar que você é homem ou mulher, apesar de não
assim terem te designado no nascimento.
Estas dificuldades demonstram no geral como o sistema está orientado no sentido de preservar uma
estrutura rígida, de dois gêneros. Todas as práticas que retornam a estas afirmações são dificuldades
encaradas porque organizamos o mundo ao redor destas duas categorias.
Por todos esses motivos, é importante perceber que construções neutras de gênero são importantes para
tornar o mundo mais vivível às pessoas trans* não-binárias, e que elas ocupam um local importante
nesta discussão sobre neutralidade e sobre o uso da linguagem demarcada. Em nossos cotidianos, as
marcações de gênero e as tentativas de torná-las neutras ou melhores frequentemente falham nesse
quesito específico, como em “todas e todos”, “homens e mulheres”, “senhoras e senhores”, “masculino
e feminino”, “todos/as”, “srs(as)” etc. (JUNO, 2013).

O que observamos nesta SD é um posicionamento de discordância tanto com o


discurso institucional quanto com parte do discurso militante observado no Texto 1. No que
se refere ao discurso institucional, as propostas de neutralidade são insatisfatórias, visto que
mantêm o binarismo e não abrangem as pessoas que não se encaixem nas categorias rígidas de
feminino ou masculino. Quanto ao discurso militante, a discordância se marca frente à
84

neutralidade: na SD10, a neutralidade linguística e a neutralidade política são vistas de forma


integrada e ambas devem ser combatidas; na SD14, a neutralidade é um objetivo a ser
atingido, e seria ela que daria conta de representar linguisticamente as pessoas até então não
representadas pela flexão binária de gênero. Nesse sentido, o não binarismo, que é apenas
pincelado no Texto 1, ocupa papel central no Texto 2. A neutralidade de gênero não visaria
mais apenas a combater um suposto sexismo estrutural da língua, mas, sim, a reconhecer que
existem grupos outros que precisam ser incluídos de forma não binária num sistema que tende
ao binarismo. Assim, são apresentadas algumas alternativas:

SD15:
Utilize generosamente termos neutros como “pessoa”, “indivíduo”, etc. para retirar o gênero marcado
diretamente. Coloquialmente, qualquer palavra serve.
Ela partiu > A pessoa partiu / essa pessoa partiu
A casa dela > A casa da pessoa
Todas as presentes> Todas as pessoas presentes
Quantas temos aqui? >Quantas pessoas temos aqui?
[...]
Minha irmã > A pessoa minha irmã
Tua irmã > A pessoa sua irmã / A pessoa que é sua irmã
Nossa irmã > A pessoa nossa irmã
(Nota: O português provavelmente não oferece uma forma melhor de fazer isso com palavras como a
acima. O que podemos fazer é literalmente sugerir a desgenerificação ao propor que “irmã” se refere
a “pessoa”. Como a construção não é usual, ela já impõe um motivo.)
Aquelas que ganharam estão liberadas para ir > Quem ganhou pode ir / Aquelas pessoas que ganharam
estão liberadas para ir. (JUNO, 2013).

As sugestões apresentadas caminham no sentido de incluir sem determinar quem se


abrange nessa inclusão: ao não se referir nem a mulheres nem a homens, a forma “pessoas”
teria o potencial de abarcar a totalidade da diversidade de gêneros sem incluir explicitamente
nenhum deles. Nesse sentido, a modificação que é proposta na língua, assim como acontecia
com o Manual, se limita ao terreno do léxico e da sintaxe: à sintaxe tradicional da frase, é
acrescentada uma palavra que fugiria, de modo quase conciliador, do binarismo imposto pela
flexão de gênero. A língua aqui, mais uma vez, é negociável até certo ponto: muda-se parte de
sua disposição, mas não a sua estrutura morfológica.
O texto é seguido por mais de cinquenta comentários de internautas, de onde
recortamos as SDs que seguem:

SD16:
Eu gosto muito do hábito que vem se disseminando entre alguns círculos do uso do “e” (do exemplo
que vc deu, de “linde”), pq ele é fácil, substitui uma terminação numa estrutura que já existe, e não
precisa de nenhum artíficio, rodeio ou pensamento mais elaborado para aplicar. Quero dizer, nada fica
mais difícil de dizer com ele, é só substituir sempre e falar da mesma maneira. Mas concordo que a
coisa não é nada simples, que precisa partir de nós mesmes e que SEMPRE vai gerar estranhamento.
85

SD17:
Preocupo-me bastante com essa questão, mas ainda é difícil ver soluções. Quanto ao uso do X,
concordo com seus argumentos para não usá-lo, mas não concordo com as soluções alternativas. Vez ou
outra funcionam, mas todas elas buscam contornar a língua, assim como o X. O resultado é que o texto
pode ficar empobrecido, cheio de repetições de pronomes, sacrificando legibilidade ou fluidez para que
o texto não se torne sexista ou binário. Se todos os textos não-sexistas acabarem caindo em qualidade
por conta disso, vejo essas medidas como um atraso. A língua muda constantemente e naturalmente,
mas quando aplicamos novas regras nós mesmos, o nosso uso da língua pode se tornar hermético e as
mudanças serão no máximo provisórias e condicionais.

Os comentários parecem se inserir no mesmo discurso de combate ao binarismo de


gênero, visto que não contestam a motivação das alterações, mas o modo como elas são
aplicadas. Assim, tal qual as SDs recortadas do Texto 1 e comentários, a SD16, apontando
para uma alternativa até então não apresentada, “linde”, propõe alterações morfológicas em
substituição às sintáticas. A língua aqui deve ser prática, automática, sem grandes rodeios ou
reflexões. Identifica-se ainda uma pretensão de domínio da língua, que parece estar na base de
quaisquer modificações sugeridas de forma planejada. Esse domínio, que na SD16 é sobre a
língua, na SD 17 desliza para um domínio pela língua. É assim que encontramos uma posição
de crítica na SD17, que apresenta uma concepção de língua de caráter mais dominante do que
dominado: ao reconhecer uma semelhança entre as alternativas propostas, apontando que
todas caminham no mesmo sentido de contorno de uma língua já bem estabelecida, o que a
SD traz à tona é uma certa conformidade às regras do jogo. Se ganhamos no não binarismo,
perdemos na qualidade do texto. O que, então, deve se priorizar? Não haveria uma solução
que conciliasse o caráter autônomo da língua com a necessidade de mudanças apontada por
algumas posições da militância?
Essas questões também podem ser pensadas à luz da noção de autoria no âmbito da
Análise do Discurso. Orlandi (1996) pensa a autoria contrariando Foucault (2009) quanto à
função-autor. Para o autor, em nossa sociedade há alguns textos providos e outros
desprovidos de função-autor. Para a autora, “a função-autor se realiza toda vez que o produtor
da linguagem se representa na origem, produzindo um texto com unidade, coerência,
progressão, não-contradição e fim” (ORLANDI, 1996, p. 69). E acrescenta que a função-autor
é uma função decorrente da noção de sujeito, que produz seu efeito de continuidade. Dessa
forma, a autoria é posta como uma função enunciativa do sujeito, exercida a cada vez que este
se representa na origem do dizer e produz um lugar de interpretação (o que não significa,
frisamos, instaurar discursividade). “O sujeito só se faz autor se o que ele produz for
interpretável” (ORLANDI, 1996, p. 70), o que equivale a dizer que é preciso inscrever sua
formulação no interdiscurso, historicizando seu dizer e produzindo um evento interpretativo.
Trata-se aqui da repetição histórica, que inscreve o dizer no interdiscurso, lembrando que as
86

palavras só significam porque ativam a memória discursiva, mobilizando o que lhes é possível
vir a significar.
Orlandi propõe que o autor é “função da forma-sujeito e dos modos de individuação
sócio-historicamente determinados” (ORLANDI, 1996, p. 73), duplamente determinado pelo
Outro e pelo outro (retomaremos essa dupla determinação quando tratarmos da autoria pela
concepção de Gallo, que se vale da distinção estabelecida por Authier-Revuz). Além disso,
Orlandi (1993) afirma que o sujeito está inscrito no texto que produz: os diferentes modos de
inscrição atestariam diferentes funções enunciativo-discursivas. É proposta uma distinção
hierárquica entre as funções de locutor, enunciador e autor, postulando que é nesta última que
o sujeito falante se encontra mais afetado pelo contato com o social e suas coerções. A autora
afirma ainda que “o autor é a instância em que haveria maior ‘apagamento’ do sujeito”
(ORLANDI, 1993, p. 78), instância na qual se deve corresponder a um modo de dizer
institucionalizado, padronizado. É por causa dessa exigência que a autoria pode ser vista
também como uma forma de controle social sobre a relação do sujeito com a língua.
Gallo (2008), reconhecendo a Análise do Discurso como uma proposta de
interpretação, parte do pressuposto de que o outro é parte constitutiva do dizer. A partir da
leitura de Authier-Revuz (1982), Gallo (2001) distingue a heterogeneidade constitutiva
(relacionada ao Outro e ao esquecimento nº1) da heterogeneidade mostrada (relacionada ao
outro e ao esquecimento nº2), que pode ser marcada ou não marcada. Gallo (2001) traz como
exemplo de heterogeneidade marcada as glosas enunciativas, e de não marcadas as ironias e
imitações. Essa distinção diz respeito à heterogeneidade enunciativa; o que Gallo (2001)
propõe é que se trabalhe com uma heterogeneidade discursiva. Isso nos interessa
especialmente porque é a partir dessa distinção que a autora desenvolverá suas reflexões a
respeito da autoria.
Para a autora, a heterogeneidade discursiva seria permanente e não denegada, já que o
sujeito contaria com ela para fazer sentido, para se identificar e para conferir unidade e limites
ao seu discurso. Nesse sentido, Gallo (2001) relaciona a função-autor à heterogeneidade
enunciativa e propõe uma nova noção para ser pensada em relação à heterogeneidade
discursiva: o efeito-autor. Para Gallo (2001, p. 67), este é o “efeito do confronto de formações
discursivas, cuja resultante é uma nova formação dominante”. Ele é pensado em relação à
heterogeneidade discursiva porque é ela que permite que diferentes formações discursivas se
confrontem, possibilitando que desse confronto surja um novo sentido, o que caracterizaria o
efeito-autor, “verificável em alguns acontecimentos discursivos, mas não em todos” (GALLO,
2001, p. 69). Quanto à possibilidade de produção do efeito-autor, Gallo(2001) propõe chamá-
87

la de textualização, que, nessa perspectiva, diz respeito ao processo de produção do texto, da


estabilização de fragmentos e da organização da dispersão; o texto não é um objeto dado, mas
sim um resultado desse processo. Embora seja possível estabelecer paralelos entre os
processos, visto que ambos mobilizam limites e sentidos, é importante não confundir a
textualização com a escrita: enquanto esta trabalha sobre a grafia, aquela trabalha sobre a
matéria linguística.
A análise das SDs, se pensada juntamente à noção de autoria, permite-nos sugerir que
pontuar o texto com transgressões, sejam sintáticas ou gramaticais, é também um exercício de
autoria sobre a língua. Se para Orlandi (1996) a função-autor acontece toda vez que o sujeito
se representa na origem, estendemos essa origem não apenas ao discurso, mas à própria
materialidade da língua: o sujeito não se representaria apenas na origem do que diz, mas de
como diz. Ainda segundo Orlandi (1993), o sujeito está inscrito no texto que produz; assim,
ao propor um domínio sobre a língua (que, em qualquer dos discursos aqui analisados, é
modificável, em diferentes graus e de uma ou outra maneira), o que as diferentes posições
reivindicam é uma língua que carregue em si mesma essa inscrição do sujeito. Essa
reivindicação, como já pontuamos, vai de encontro à perspectiva pecheutiana (PÊCHEUX,
[1975] 2009) que vincula o sentido à formação discursiva e reconhece a autonomia relativa da
língua: ao lermos, por exemplo, “todxs”, “todes”, “tod@as”, “todas e todos”, muitos efeitos
de sentido são mobilizados a partir da própria materialidade gráfica.

3.5 DELIMITANDO SABERES E POSIÇÕES

Ao trazer SDs retiradas de materiais institucionais e de sites de militância, o que


identificamos é que o debate se divide em dois planos: o gênero e a língua. Ora, essa
afirmação neste ponto pode parecer cotejar o óbvio, mas não é o caso: é a concepção de
gênero que conduz as propostas de alterações ou manutenções linguísticas, e estas são ao
mesmo tempo permeadas por discursos sobre a língua. Nessa relação, identificamos no
discurso institucional marcas sobretudo de contradição, e no discurso militante, sobretudo de
heterogeneidade. Além disso, pensamos junto com Foucault (2009) sobre a leitura e a
legitimidade que o nome de autor pode conferir a um texto.
Na diferenciação entre o status atribuído a cada discurso numa sociedade – o discurso
da loucura, por exemplo, não detém o mesmo status que o da ciência –, vislumbramos um
indício do que se traduziria posteriormente nas noções de nome de autor e função-autor: não é
qualquer um que está autorizado a falar qualquer coisa, e o valor do que é dito será atribuído
88

diferentemente conforme o lugar social de quem fala. O que importa quanto ao nome de autor
é que “tal nome permite reagrupar um certo número de textos, delimitá-los, deles excluir
alguns, opô-los a outros.” (FOUCAULT, 2009, p. 45), repercutindo tanto sobre a leitura
quanto sobre a legitimidade do texto, recortando-o, caracterizando-o, apontando suas
possibilidades. É assim que uma lei sancionada pela presidenta ou uma cartilha publicada por
uma Secretaria de Estado gozarão de uma legitimidade de que um texto postado num blog de
militância não goza. Nesse sentido, mesmo a gramática parece figurar como um nome de
autor, ao redor do qual se concentram saberes sobre a língua que são legitimados pelo simples
fato de serem gramaticais – como vimos com Auroux (1992) sobre a circularidade que se
estabelece no processo de gramatização. Seriam esses documentos institucionalizados,
legitimados, dotados de função-autor, se adotamos a perspectiva de Foucault, para quem esta
função não se exerce em todos os textos.
Quanto aos textos oriundos da militância on-line, estes parecem ser dotados de uma
função-autor se assumimos a perspectiva de Orlandi (1996), já que, ainda que não detendo
tanta legitimidade quanto um texto institucional, são interpretáveis e inscritos no
interdiscurso. Mais do que isso, as propostas da militância no que se refere a uma língua que
inclua e represente pessoas não binárias pode ser lida como um modo de autoria não apenas
sobre o texto, mas também sobre o próprio sistema da língua, seja pela morfologia, seja pela
sintaxe. Se temos uma função-autor socialmente legitimada consagrando a língua em
gramáticas e manuais, existe uma em confronto, dotada de menos legitimidade mas tão
presente quanto, pleiteando uma língua que contemple a diversidade para além do binarismo
gramatical. Isso não significa, no entanto, que se chegue a um efeito-autor, já que, embora os
sujeitos envolvidos no debate detenham maior ou menor legitimidade, ainda estamos lidando
com saberes circunscritos numa mesma formação discursiva, a feminista. Não há um
confronto que leve a uma nova formação dominante. Pelo contrário: podemos até pensar, em
paralelo com Pinto (2003), que exista uma posição de sujeito alinhada ao feminismo bem
comportado, que, legitimada pelo Estado enquanto nome de autor, exerce uma dominância
sobre as posições alinhadas a um feminismo mal comportado, que pleiteia mudanças
estruturais.
É assim que, no discurso institucional, a curta problematização a respeito da
identidade de gênero é silenciada pelo reforço linguístico do binarismo mulheres-homens. A
língua em si não é identificada como machista, basta que saibamos usá-la, manipulando as
possibilidades que ela apresenta. A língua é em parte dominante (pois suas estruturas devem
ser respeitadas) e em parte dominada (pois seu uso pode ser modificado para atender a certos
89

propósitos). No entanto, exemplos deste uso são marcados pela contradição, como analisamos
pelo cotejamento entre as SDs que instruem a uma linguagem inclusiva e as SDs que reforçam
modos subordinantes (como o recurso aos parênteses para a vogal de desinência de gênero
feminina) de se referir às mulheres. Nessa contradição, identificamos o furo da língua, o
escape, o não sistematizável. Delineamos, assim, pelo menos duas posições neste discurso,
que chamaremos de Institucional Binária (PS-IB) e Institucional Não Binária (PS-INB),
diferenciadas pelo tratamento do gênero.
No discurso militante, o não binarismo de gênero aparece como pré-construído, e
parece haver consenso quanto ao papel da língua (seja ela referida como não binária ou
neutra) de fugir do binarismo ao se referiràs pessoas. No entanto, cada posição aponta para
uma sugestão diferente, todas elas refutadas por posições contrárias. Delineando que o
discurso militante sobre língua se agita em torno do não binarismo e que a heterogeneidade se
manifesta quanto às diferentes possibilidades de atingi-lo, propomos que neste discurso
tenhamos duas posições principais: vamos chamá-las de Militante de Transgressão
Morfológica (PS-MTM) e Militante de Transgressão Sintática (PS-MTS).
Ainda que os discursos aqui analisados apresentem significativas diferenças entre si,
não os localizamos em diferentes formações discursivas, visto que todos compartilham de
saberes feministas; as divergências podem ser explicadas pelas singularidades características
do próprio feminismo, conforme visto no capítulo 1. Assim, trata-se de posições-sujeito mais
ou menos identificadas com dados saberes da formação discursiva que aqui denominaremos
de feminista, conforme a figura abaixo:
90

Figura 3 – Delimitações

Fonte: Elaborada pela autora

A PS-MTM, representada pelo círculo vermelho, se insere no discurso militante e


adota tanto os saberes do não binarismo de gênero quanto a prática da transgressão
morfológica. É a posição que contesta a autonomia relativa da língua e marca o sentido na
materialidade mesma da palavra. Embora cercada pelas regras sintáticas e morfológicas,
busca driblá-las para se afastar do binarismo.
A PS-MTS, representada pelo círculo amarelo, também está inserida no discurso
militante e adota os saberes do não binarismo de gênero. No entanto, mais próxima da
91

manutenção das regras sintáticas e morfológicas, transgride apenas dentro dos limites da
sintaxe, de modo que sua contestação ao binarismo de gênero só pode ser percebida no
conjunto da frase, contrariamente à PS-MTM, que a marca em cada substantivo.
A PS-INB, representada pelo círculo azul, aparece muito brevemente na análise, mas
não pode deixar de ser citada: é a posição que, dentro do discurso institucional, reconhece a
existência do não binarismo de gênero, mas não o articula à língua, mantendo as regras
sintáticas e morfológicas e as formas binárias.
A PS-IB, representada pelo círculo verde, é a que melhor representa o discurso
institucional. Embora impulsionada por uma proposta de linguagem inclusiva, não se afasta
do binarismo de gênero, propondo uma língua que inclua homens e mulheres – apenas.
Marcada por contradição, essa posição oscila entre uma proposta de transgressão das regras
sintáticas no momento em que teoriza sobre a linguagem inclusiva e a manutenção das
mesmas regras no fluir da escrita. Desse modo, disfarçada por uma intenção de inclusão,
reproduz os saberes tradicionais de binarismo de gênero e subordinação feminina.
Delineadas essas quatro posições, identificamos, com base em Indursky (2008), um
acontecimento enunciativo a partir das posições de sujeito identificadas como militantes, visto
que inserem na formação discursiva feminista saberes que não se contentam com a inclusão
da mulher (ao contrário, por exemplo, da PS-IB), postulando o não binarismo. Esse
acontecimento problematiza a relação que Pêcheux ([1975] 2009) pontua a respeito da língua
(como sistema relativamente autônomo) com a formação discursiva (como lugar de onde as
palavras recebem seu sentido). A análise nos permite considerar que exista pelo menos uma
posição de sujeito (PS-MTM) que contraria essa relação, criando uma língua rasurada pela
história, que sinaliza seu sentido e seu pertencimento ideológico na própria superfície
linguística, por meio da vogal (ou consoante) de (não) desinência de gênero, e questionando a
autonomia do sistema linguístico. Desse modo, a emergência de novos discursos sobre língua
e gênero causaria a emergência de novas formas linguísticas (provisórias ou não), que, por sua
vez, agiriam na reorganização dos saberes e posições dentro da formação discursiva na qual se
inscrevem.
PAPAS NA LÍNGUA

Por mais que eu pense que eu diga que eu fale


Tem sempre alguma coisa por dizer
– Herbert Vianna

O trajeto teórico e analítico que percorremos até aqui, não tendo como objetivo chegar
a uma conclusão ou a uma resposta a respeito dos discursos sobre língua e gênero, permitiu
que pensássemos a relação conflituosa que se estabelece entre esses dois elementos. Desse
modo, retomamos algumas questões apresentadas ao longo do trabalho para articulá-las aos
resultados da análise.
A língua gramaticalizada serviria ainda hoje como modo de marcação de autoridade?
A análise das sequências discursivas aponta para a constante presença dessa língua: seus
saberes e normatizações, presentes como pré-construído, acionados pela memória discursiva,
são apresentados como uma realidade que ora é contestada, ora é obedecida, mas sempre uma
realidade. E, como realidade, poderia ser modificada a depender das ações e intenções dos
sujeitos. Assim, nos recortes analisados, identificamos sobretudo um enfrentamento contra
essa suposta autoridade, num ensaio de agenciamento dos sujeitos sobre uma língua que
deveria obedecê-los, e não o contrário.
Essa ilusão de agenciamento cai por terra quando pensada junto à interpelação
ideológica: se é possível tentar afrontar a autoridade da língua, o mesmo não ocorre quanto à
ideologia. O sujeito que se depara com uma proposta de alteração linguística, não podendo se
situar fora de sua formação discursiva, parece esbarrar sempre nesse funcionamento: não
escrevemos como/o que conscientemente queremos escrever, mas como/o que a ideologia nos
interpela a escrever. Em nosso corpus, esse funcionamento foi marcado principalmente nas
sequências discursivas onde identificamos contradição: onde existe um esforço, uma
resistência para evitar linguisticamente as marcas de subordinação feminina, existe também a
interpelação de uma ideologia dominante, da qual não se consegue escapar substituindo
estruturas morfológicas ou sintáticas.
Se o próprio da formação discursiva é delinear o que pode e deve ser dito dentro do
seu domínio de saberes, o acontecimento enunciativo de um novo modo de expressão (seja
escrita, seja falada), que confira destaque linguístico a grupos até então invisibilizados
(mulheres e/ou pessoas não binárias, a depender da posição de sujeito) propõe que se
considere um delineamento diferente: não apenas o que pode e deve ser dito, mas também
como pode e deve ser dito. Nesse sentido, embora o debate seja marcado por pluralidade de
93

saberes e, segundo nossa análise, conte com pelo menos quatro diferentes posições de sujeito,
pensamos que, numa formação discursiva feminista, o como se pode e deve dizer tem se
firmado como um saber que circula lado a lado com aquilo que se pode e se deve dizer.
Independentemente dos pré-construídos que são mobilizados em cada perspectiva
sobre a língua (seja como linguagem inclusiva, seja como língua não binária), entendemos
que o debate é de tamanha pertinência que tem sua importância reconhecida mesmo nas
esferas mais rígidas. No momento em que é sancionada uma Lei Federal que determina a
concordância de gênero na emissão de diplomas, no momento em que uma Secretaria de
Estado assume para si a tarefa de ensinar, normatizar e popularizar uma linguagem inclusiva,
estamos diante de políticas que reconhecem a função social de a equidade de gênero ser
manifestada e pleiteada em todos os níveis possíveis – ou pelo menos naqueles que são
possíveis, afinal, como apresentamos no capítulo 1, ainda temos direitos significativos
negligenciados.
Concordando com Pêcheux (1980) em sua afirmação de que uma certa maneira de
tratar os textos está imbricada em uma certa maneira de fazer política, ousamos parafraseá-lo
para afirmar que isso é verdade também no que se refere a uma certa maneira de tratar a
língua. O fazer político que se imbrica a propostas de linguagem inclusiva, se não dá conta da
diversidade de gênero apontada pela militância, ao menos sinaliza um justo reconhecimento
da existência e da representatividade feminina.
Quanto ao saber metalinguístico implicado nas discussões sobre gênero, a análise das
SDs nos permite afirmar que os sujeitos reconhecem as estruturas sintáticas e morfológicas da
língua, e é isso que permite questioná-las e problematizá-las. O saber metalinguístico, no
debate sobre gênero, é ao mesmo tempo a base e o objeto. Como pré-construído, funciona
legitimando posicionamentos diversos: “sabe-se que” a letra “x” como substituta da vogal de
desinência de gênero não é pronunciável; por outro lado, “sabe-se que” essa forma de grafia
causa um estranhamento que interrompe o automatismo da leitura. Desse modo, os saberes
sobre língua se marcam de forma conflituosa, com cada posição-sujeito defendendo aquilo
que, para si, aparece como verdade sobre a língua: permanente ou modificável, submissa ou
dominadora, ferramenta ou reflexo…
O que identificamos de regular nos dizeres das diferentes posições de sujeito é que a
língua, nesse debate, figura como uma representação do mundo. Assim, novas realidades
exigiriam novas formas de dizer: é o caso, por exemplo, da mídia oficial do governo federal
ao adotar a forma “presidenta” e das leis e manuais que, como discurso institucional,
normatizam a linguagem inclusiva. Se é assim que se propõe escrever na redação oficial, é
94

porque se reconhece a relevância de os ambientes institucionais contarem com mulheres, e


estas não podem mais ser invisibilizadas por formas (supostamente) neutras.
Da mesma forma, também novas identidades clamam por novos modos de dizer: a
linguagem inclusiva sugerida pela esfera institucional, que atenderia ao propósito de incluir
mulheres e homens, parece não ser suficiente para abarcar uma identidade de gênero não
binária, que não é ela nem ele, nem todas nem todos. O movimento transfeminista, que milita
por pautas específicas, propõe que se evitem formas linguísticas de invisibilização das
identidades trans*. No discurso institucional, essa identidade é brevemente reconhecida, mas
não é apresentada qualquer proposta que dê conta de torná-la linguisticamente visível.
Atravessando a disputa sobre como se deve dizer, identificamos então uma disputa sobre
quema língua deve representar. E é pelos distintos atravessamentos desses saberes, comoe
quem, que as posições de sujeito se diferenciam e se confrontam no que diz respeito à
articulação entre gênero e língua dentro da formação discursiva feminista.
Ao mesmo tempo que podemos identificar nessas posições de sujeito uma
reivindicação para que a língua seja uma representaçãoda realidade, identificamos também,
no discurso institucional, uma demanda para que a língua modifique a realidade (como foi
apresentada em 3.3.2). À correspondência entre realidade e língua é acrescentada a mudança,
num confuso movimento de causa e consequência: é porque a realidade muda que a língua
muda, mas é também a mudança na língua que pode vir a promover a mudança na realidade.
Na análise das SDs concernentes a essa posição, nos deparamos com um raciocínio circular na
descrição da linguagem inclusiva, que, ao tentar justificar sua importância, acaba por
confundir sua prática com seus objetivos. Quanto ao discurso militante, este parece tomar as
modificações linguísticas sobretudo como ferramenta de resistência, de marcação de
identidade e de posicionamento, não havendo nas SDs analisadas pistas que apontem para um
possível funcionamento da língua enquanto ferramenta de intervenção sobre a realidade.
Se as propostas aqui analisadas são controversas, é justamente essa particularidade que
as torna tão produtivas de serem analisadas. Nossa análise identificou sobretudo um jogo de
forças constante entre o pré-construído, aquilo que já está posto sobre a língua (as normas
gramaticais, a neutralidade de gênero, o binarismo) e o acontecimento enunciativo, aquele
novo que se tenta incorporar (o não binarismo, a linguagem inclusiva, as transgressões à
sintaxe e à morfologia). Um jogo a respeito do qual não seríamos capazes de estabelecer se
haveria um lado da vitória e um lado da derrota, mas no qual podemos observar a língua em
sua autonomia deslizando sorrateiramente e com igual poder entre todos os lados. Dela não se
foge. A ela não se cerceia. Ela resiste. Sem ela não se é sujeito (binário ou não). Aceitando
95

que quanto a ela não há fechamento, também não tentamos fechar nossa reflexão: contamos
que as inquietações aqui abordadas sigam ressoando em seus característicos movimentos de
constante tensão e enfrentamento, produzindo efeitos que não cessem de questionar os
sentidos supostamente estabilizados.
96

REFERÊNCIAS

ACHARD, Pierre. (1983) Memória e produção discursiva do sentido In: ACHARD, Pierre et
al. (Orgs.) Papel da memória. Tradução de José Horta Nunes.Campinas: Pontes, 1999.

ALCOFF, Linda. Cultural Feminism versus Poststructuralism: The Identity Crisis in Feminist
Theory. Signs,v. 13, n. 3, 1988.

ALTHUSSER, Louis. (1971) Aparelhos Ideológicos de Estado: nota sobre os aparelhos


ideológicos de Estado (AIE). Tradução de Walter José Evangelista e Maria Laura Viveiros de
Castro. 2ª ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1985.

______. Observação sobre uma categoria: processo sem sujeito nem fim(s). In: ______.
Posições-1. 2ª ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1978.

______. Resposta a John Lewis. In: ______. Posições-1. 2ª ed. Rio de Janeiro: Edições Graal,
1978b.

AUROUX, Sylvain. A revolução tecnológica da gramatização. Tradução de Eni Puccinelli


Orlandi. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1992.

AUTHIER-REVUZ, Jacqueline. Hétérogéneité montrée et hétérogéneité constitutive:


élémentspour une approche de l’autredanslediscours. DRLAV – Revue de linguistique, n.
26, Paris, Centre de recherche de l’Université de Paris VIII, 1982

BARONAS, Roberto Leiser. Formação discursiva: vale a pena lutar por ela. Estudos
Linguísticos, v. 01, p. 10-25, 2004.

BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. Tradução de Sérgio Milliet. Rio de Janeiro:
Editora Nova Fronteira, 2009 ([1949] 2009)

BECHARA, Evanildo. Moderna gramática portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,


2009, 37ª edição revisada..

BENVENISTE, Émile. Problemas de linguística geral I. Tradução de Maria da Glória


Novak e Maria Luisa Neri. Campinas: Pontes Editores, 2005, 5ª edição.

BRASIL. Lei Nº 13.104, de 9 de março de 2015. Altera o art. 121 do Decreto-Lei no 2.848, de
7 de dezembro de 1940 - Código Penal, para prever o feminicídio como circunstância
qualificadora do crime de homicídio, e o art. 1o da Lei no 8.072, de 25 de julho de 1990, para
incluir o feminicídio no rol dos crimes hediondos. Casa Civil. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/Lei/L13104.htm>. Acesso em:
10 jan. 2016.
97

______.Projeto de Lei Nº5.069, de 2013. Acrescenta o art. 127-A ao Decreto-Lei nº 2.848, de


7 de dezembro de 1940–Código Penal. Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania.
Disponível em:
<http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=B9C94B89D09
2825E08192AF42999B2B0.proposicoesWeb2?codteor=1402444&filename=Parecer-CCJC-
21-10-2015>. Acesso em: 10 jan. 2016.

_____. Lei Nº 12. 605, de 3 de abril de 2012. Determina o emprego obrigatório da flexão de
gênero para nomear profissão ou grau em diplomas. Casa Civil. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12605.htm>. Acesso em: 10
jan. 2016.

______. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 54. 12 de abril de 2012.


Supremo Tribunal Federal. Disponível em: <http://s.conjur.com.br/dl/acordao-interrupcao-
gravidez-anencefalo.pdf>. Acesso em: 10 jan. 2016.

______. Lei Nº 12.015, de 7 de agosto de 2009. Altera o Título VI da Parte Especial do


Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, e o art. 1o da Lei no 8.072,
de 25 de julho de 1990, que dispõe sobre os crimes hediondos, nos termos do inciso XLIII do
art. 5o da Constituição Federal e revoga a Lei no 2.252, de 1o de julho de 1954, que trata de
corrupção de menores. Casa Civil. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/lei/l12015.htm>. Acesso em: 10
jan. 2016.

______. Lei Nº 11.340, de 7 de agosto de 2006. Cria mecanismos para coibir a violência
doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8o do art. 226 da Constituição Federal,
da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e
da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher;
dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera
o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras
providências. Casa Civil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-
2006/2006/lei/l11340.htm>. Acesso em: 10 jan. 2016.

______. Portaria Nº 1.508, de 1º de setembro de 2005.Dispõe sobre o Procedimento de


Justificação e Autorização da Interrupção da Gravidez nos casos previstos em lei, no âmbito
do Sistema Único de Saúde-SUS. Ministério da Saúde. Disponível em:
<http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2005/prt1508_01_09_2005.html>. Acesso em:
10 jan. 2016.

BRÉAL, Michel. O elemento subjetivo. In: Ensaio de Semântica: ciência das significações.
Tradução de Aída Ferrás et al. São Paulo: Pontes, 1992.

BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução de


Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013.

CASTELLS, Manuel. A galáxia da Internet: reflexões sobre a Internet, os negócios e a


sociedade. Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2003
98

CAZARIN, Ercília Ana. Gestos interpretativos na configuração metodológica de uma FD.


Organon, v. 24, p. 103-118, 2010.

COSTA, Claudia de Lima. O sujeito no feminismo: revisitando os debates. Cadernos Pagu,


n. 19, p. 59-90, 2002. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-
83332002000200004&lng=en>. Acesso em: 12 jan. 2016.

COURTINE, Jean-Jacques. Análise do discurso político: o discurso comunista endereçado


aos cristãos. Tradução de Cristina de Campos Velho Bircket al. São Carlos: EdUFSCar, 2009.

______. Metamorfoses do discurso político: derivas da fala pública. Tradução de Carlos


Piovezani Filho e Nilton Milanez. São Carlos: Claraluz, 2006.

DALTOÉ, Andréia da Silva. As metáforas de Lula: a deriva dos sentidos na língua política.
2011. 219f. Tese (Doutorado em Estudos da Linguagem) – Programa de Pós-Graduação em
Letras, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2011.

FERREIRA DA SILVA, Alexsandra. Considerações sobre o morfema de gênero '-a'. In: II


Congresso de Letras da UERJ, 2005, São Gonçalo. Anais do II CLUERJ-SG, 2005.

FOUCAULT, Michel. O que é um autor? Tradução de António Fernando Cascais e Eduardo


Cordeiro. 7ª ed. Lisboa: Nova Vega, 2009.

______. A ordem do discurso. Aula Inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de


dezembro de 1970. 11ª ed. São Paulo: Edições Loyola, 2004.

______. A arqueologia do saber. Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves. 4ª ed. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 1995.

GADET, Françoise; PÊCHEUX, Michel. (1981) A língua inatingível: o discurso na história


da linguística. Tradução de Bethania Mariani e Maria Elizabeth Chaves. 2ª ed. Campinas:
Editora RG, 2010.

GALLO, Solange Leda. Novas fronteiras para a autoria. Organon, n. 53, julho-dezembro,
2012, p. 53-64

______. Autoria: questão enunciativa ou discursiva? Linguagem em (Dis)curso, Tubarão, v.


1, n.2, p. 61-70, 2001

______.Como o texto se produz: uma perspectiva discursiva. Blumenau: Nova Letra, 2008.

______. Autoria: função do sujeito e efeito do discurso. In: TASSO, Ismara. Estudos do
texto e do discurso. São Carlos: Claraluz, 2008
99

GARCIA, Dantielli Assumpção. A manualização do saber linguístico e a constituição de uma


linguagem não sexista. In: Caderno de Resumos do IX Congresso Internacional da
Abralin. Belém: Abralin, 2015. v. 1. p. 149-149

GARCIA, Dantielli Assumpção; SOUSA, Lucília Maria Abrahão. “Manual para o uso não
sexista da linguagem”: uma política linguística?. In: RJ, R. Preto, S. Maria. Encontro de
Laboratórios em cooperação: relações entre Brasil e França, 2014.

HAROCHE, Claudine; PÊCHEUX, Michel; HENRY, Paul.(1971) ASemântica e o corte


saussuriano: língua, linguagem, discurso. Tradução de Roberto LeiserBaronas e Fábio Cesar
Montanheiro. In: BARONAS, Roberto Leiser. Análise do Discurso: apontamentos para uma
história da noção-conceito de formação discursiva. São carlos, SP: Pedro & João Editores,
2007, p. 13 - 32.

HENRY, Paul. (1977) A ferramenta imperfeita: língua, sujeito e discurso. Tradução de


Maria Fausta Pereira de Castro. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1992.

HEMMINGS, Clare. Contando estórias feministas. Tradução de Ramayana Lira. Revista


Estudos Feministas, v.17, n.1. Florianópolis, 2009. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-026X2009000100012>.
Acesso em: 16 jan. 2016.

INDURSKY, Freda. Unicidade, Desdobramento, Fragmentação: Trajetória da noção de


sujeito em Análise do Discurso. In: MITTMANN, Solange; GRIGOLETTO, Evandra;
CAZARIN, Ercília (Orgs.). Práticas discursivas e identitárias: sujeito e língua. 1ª ed. Porto
Alegre: Nova Prova, 2008, p. 9-33.

______. Remontando de Pêcheux a Foucault: uma leitura em contraponto. In: ______;


LEANDRO FERREIRA,Maria Cristina. (Orgs.). Michel Pêcheux e a análise do Discurso:
uma relação de nunca acabar. 1ª ed. São Carlos: Clara Luz, 2005,p. 183-194.

______. Lula lá: estrutura e acontecimento. Organon, Porto Alegre: UFRGS, v. 17, n. 35, p.
101-121, 2003.

JESUS, Jaqueline Gomes. Feminismo e identidade de gênero: elementos para a construção da


teoria transfeminista. In: Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2013

______. Orientações sobre identidade de gênero: conceitos e termos. Ser-Tão, dez. 2012.
Disponível em: <http://www.sertao.ufg.br/pages/42117>. Acesso em: 10 dez. 2015.

JESUS, Jaqueline Gomes; ALVES, Hailey. Feminismo transgênero e movimentos de


mulheres transexuais. Revista Cronos, [S.l.], v. 11, n. 2, nov. 2012.

JUNO. Deixando o X para trás na linguagem neutra de gênero. In: Batatinhas, agosto, 2013.
Disponível em: <https://naobinario.wordpress.com/2014/11/01/deixando-o-x-para-tras-na-
linguagem-neutra-de-genero/>. Acesso em 18 dez. 2015.
100

LEANDRO FERREIRA, Maria Cristina. Memóriadiscursiva em funcionamento. In:


ROMÃO,Lucília Maria Souza; CORREA, Fernanda Silveira. Conceitos discursivos em
rede. São Carlos: Pedro & João Editores, 2012.

______. Da ambigüidade ao equívoco: a resistência da língua nos limites da sintaxe e do


discurso. 1ª ed. Porto Alegre: Editora da Universidade-UFRGS, 2000

______.O estatuto de equivocidade da língua. In: Lima, Marília dos Santos e Guedes, Paulo.
(Org.). Estudos da linguagem. 01ed. Porto Alegre: Sagra-Luzzatto, 1996, v. 10, p. 39-50.

MAGALHÃES, Belmira; MARIANI, Bethania. Processos de subjetivação e identificação:


ideologia e inconsciente. Linguagem em (Dis)curso. Palhoça, SC, v.10, n.2, maio/ago, 2010,
p.391-408.

MARTINS, Ana Paula Antunes. O Sujeito “nas ondas” do Feminismo e o lugar do corpo na
contemporaneidade. Café com Sociologia, 2015, v. 4, n. 1, p. 231-245.

MITTMANN, Solange. Formação discursiva e autoria na produção e circulação de arquivos.


Conexão Letras, v. 9, 2014, p. 31-40.

______. Língua, gramática e normatização em discursos de arquivo. In: ABREU, Sabrina P.


de. (Org.). Reflexões linguísticas e redação no vestibular. Porto Alegre: Editora da UFRGS,
2010, p. 63-83.

ORLANDI, EniPulcinelli. Língua brasileira e outras histórias. Discurso sobre a língua e a


escola no Brasil. Campinas: Editora RG, 2009.

______. Há palavras que mudam de sentido, outras... demoram mais. In: ______(Org.)
Política linguística no Brasil. Campinas, SP: Pontes Editores, 2007a.

______. Teorias da linguagem e discurso do multilinguismo na contemporaneidade. In:


______(Org.) Política linguística no Brasil. Campinas, SP: Pontes Editores, 2007b.

______. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. 4ª ed. Campinas, SP: Editora da
UNICAMP, 1997.

______. Autoria e interpretação. In: ______. Interpretação: autoria, leitura e efeitos do


trabalho simbólico. Petrópolis: Vozes, 1996.

______. Nem escritor, nem sujeito: apenas autor. In: ______. Discurso e leitura. São Paulo:
Cortez; Campinas: Unicamp, 1993

______.Terra à Vista. São Paulo: Cortez Editora, 1990


101

PÊCHEUX, Michel. (1973) A aplicação dos conceitos da Linguística para a melhoria das
técnicas de análise de conteúdo. Tradução de Carolina Rodríguez-Alcalá. In: ORLANDI, Eni
Puccinelli (Org.). Análise de Discurso: Michel Pêcheux. 3ª ed. Campinas: Pontes Editores,
2012.

______(1969) Análise automática do discurso (AAD-69). Tradução de EniPulcinelliOrlandi.


In: GADET, Françoise; HAK, Tony (Orgs.) Por uma análise automática do discurso: uma
introdução à obra de Michel Pêcheux. 4ª ed. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2010.

______. (1975) Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Tradução de Eni
Puccinelli Orlandi, Lourenço Chacon Jurado Filho, Manoel Luiz Gonçalves Corrêa e Silvana
Mabel Serrani. Campinas, Ed. Pontes, 2009.

______. (1983) O discurso: estrutura ou acontecimento. Tradução de Eni Puccinelli Orlandi.


4ª ed. Campinas, SP: Pontes Editores, 2006.

______. (1983) Papel da memória. In: ACHARD, Pierre et alii. Papel da memória. Tradução
de José Horta Nunes. Campinas: Pontes, 1999

______. (1982) Ler o arquivo hoje. Tradução de Maria das Graças L. Morim do Amaral. In:
ORLANDI, Eni Puccinelli. Gestos de leitura: da história no discurso. Campinas: Unicamp,
1994.

______. Remontémonos de Foucault a Spinoza. In: TOLEDO, Mario Monforte (org.). El


discurso político. México: Nueva Imagen, 1980.

PÊCHEUX, Michel; FUCHS, Catherine. (1975) A propósito da análise automática do


discurso: atualização e perspectivas (1975). Tradução de Péricles Cunha. In: GADET,
Françoise; HAK, Tony (Orgs.) Por uma análise automática do discurso: uma introdução à
obra de Michel Pêcheux. 4ª ed. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2010.

PÊCHEUX, Michel; GADET, Françoise. (1977) Há uma via para a linguística fora do
logicismo e sociologismo? Escritos: Discurso e Política, n.3, p. 6-13, 1998.

PEDRO, Joana Maria. Traduzindo o debate: o uso da categoria gênero na pesquisa histórica.
História, v. 24, n.1, 2005

PINTO, Céli Regina Jardim. Feminismo, história e poder. Revista deSociologia e Política,
Curitiba, v. 18, n. 36, jun. 2010, p. 15-23.

______. Uma história do feminismo no Brasil. São Paulo: Editora Fundação Perseu
Abramo, 2003.
102

RIO GRANDE DO SUL. Lei Estadual Nº 14.484, de 30 de janeiro de 2014. Dispõe sobre a
utilização da linguagem inclusiva de gênero no âmbito da Administração Pública Estadual.
Assembleia Legislativa. Disponível em:
<http://www.al.rs.gov.br/filerepository/repLegis/arquivos/LEI%2014.484.pdf>. Acesso em:
10 jan. 2016.

______. Direitos iguais nas diferenças: cartilha da diversidade de gênero. Secretaria de


Políticas para as Mulheres. 2014b.

______. Manual para o uso não sexista da linguagem: o que bem se diz bem se entende.
Secretaria de Políticas para as Mulheres. 2014c.

______. Decreto Nº 49.994, de 27 de dezembro de 2012. Estabelece a utilização da linguagem


inclusiva de gênero nos atos normativos, nos documentos e nas solenidades do Poder
Executivo Estadual. Assembleia Legislativa. Disponível em:
<http://www.al.rs.gov.br/legis/M010/M0100099.ASP?Hid_Tipo=TEXTO&Hid_TodasNorma
s=58884&hTexto=&Hid_IDNorma=58884>. Acesso em: 10 jan. 2016.

______. Decreto Nº 49.995, de 27 de dezembro de 2012. Institui Grupo de Trabalho com a


finalidade de discutir e propor medidas para a utilização da linguagem inclusiva de gênero nos
atos normativos, nos documentos e nas solenidades do Poder Executivo Estadual. Assembleia
Legislativa. Disponível em:
<http://www.al.rs.gov.br/legis/M010/M0100099.ASP?Hid_Tipo=TEXTO&Hid_TodasNorma
s=58886&hTexto=&Hid_IDNorma=58886>. Acesso em: 10 jan. 2016.

RODRIGUES, Marlon Leal. Flexão nominal: problemas de gênero e grau, algumas


considerações. Revista do Curso de Letras da UNEMAT, nº3, agosto, 2004.

RODRIGUES DA SILVA, Elizabete. Feminismo Radical - pensamento e movimento.


Textura, Cruz das Almas-BA, ano 3, nº 1, p. 24-34, Jan./Jul., 2008.

SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Linguística Geral. BALLY, Charles e SECHEHAYE,


Albert (Orgs.).Tradução de Antônio Chelini, José Paulo Paes e IzidoroBlikstein. 28. ed. São
Paulo: Cultrix, 2012.

______. Escritos de Linguística Geral. BOUQUET, Simon e ENGLER, Rudolf (Orgs.).


Tradução de Carlos Augusto Leuba Salum e Ana Lucia Franco. São Paulo: Editora Cultrix,
2002.

SCOTT, Joan Wallach. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação &
Realidade. Porto Alegre, v. 20, n. 2, jul./dez. 1995, p. 71-99.

SCHONS, Carme Regina; MITTMANN, Solange. A contradição e a


(re)produção/transformação na/pela ideologia. In: INDURSKY, Freda; FERREIRA, Maria
Cristina Leandro; MITTMANN, Solange. O discurso na contemporaneidade: materialidades e
fronteiras. São Carlos: Claraluz, 2009. p. 295-304.
103

VISNADI, Marcos. Minimanualdxguerilheirxlinguísticx. In: Revista Geni, n. 3, setembro de


2013. Disponível em: <http://revistageni.org/09/minimanual-dx-guerrilheirx-linguisticx/>.
Acesso em: 21 dez. 2015.

ZOPPI FONTANA, Mónica Graciela. Língua oficial e políticas públicas de equidade de


gênero. Línguas e instrumentos linguísticos. n. 36, p. 221-243, jul-dez 2015.

______. O português do Brasil como língua transnacional. In: ______. (Org.) O português
do Brasil como língua transnacional. Campinas, SP: Editora RG, 2009.

Você também pode gostar