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PORTO ALEGRE
2016
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
INSTITUTO DE LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
ESTUDOS DA LINGUAGEM
ANÁLISES TEXTUAIS, DISCURSIVAS E ENUNCIATIVAS
PORTO ALEGRE
2016
AGRADECIMENTOS
Dizem as regras que devem constar nos agradecimentos as “pessoas que efetivamente
contribuíram para o trabalho”. Acreditando que uma dissertação não é apenas um trabalho
acadêmico, mas também o resultado de um longo processo do qual não se separa a vida
pessoal, a lista dessas pessoas pode ser maior do que as regras sugeririam.
À presidenta Dilma Vana Rousseff e ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que
muito provavelmente nunca lerão este trabalho, mas que, ao abrirem as portas do Ensino
Superior pra gente preta e pobre como eu, permitiram que ele existisse. Por fazerem de suas
vidas exemplos de resistência e resiliência, por mostrarem novos destinos possíveis para
mulheres sobreviventes da ditadura e retirantes nordestinos, minha gratidão eterna. Ao Partido
dos Trabalhadores, por mostrar que é possível, apesar dos pesares, construir um país mais
justo e igualitário, do qual sinto orgulho de fazer parte.
Às instituições CAPES/FAPERGS, pela bolsa concedida em suporte a esta pesquisa.
À UFRGS, por ter me formado, no sentido amplo do termo.
À minha orientadora, professora Solange Mittmann, que teve a boa vontade de acolher
uma guria perdida que só queria estudar Análise do Discurso (sem saber direito do que se
tratava, mas simpatizando muito com o clima dos SEADs), com uma inacreditável paciência
frente aos meus vacilos e uma confiança em mim por vezes maior do que a minha própria.
Às professoras Maria Cristina Leandro Ferreira e Ana Zandwais, pelas aulas que
exigiram meu melhor. Às professoras Patricia Reuillard e Sandra Loguercio, por terem me
ensinado a ser tradutora e terem incentivado que eu fizesse mestrado. Ao professor Rodrigo
Fonseca, que ministrou minha primeira disciplina de AD lá nos idos da graduação e desde
então seguiu cordialmente disponível, fosse indicando bibliografias pertinentes, fosse
assistindo às minhas apresentações.
À professora e colega de pesquisa Paula Daniele Pavan, pela leitura atenta do meu
projeto e pelo exemplo de dedicação e excelência. Ao amigo do Serviço Social, Guilherme
Gomes Ferreira, pela dissertação inspiradora e pela parceria que começou com os estudos de
gênero e se estendeu aos demais campos da vida (seriam os astros?). À historiadora Camila
Petró, pela solicitude espontânea no compartilhamento de bibliografias.
A todas as colegas do grupo de pesquisa e estudantes de Análise do Discurso que
tornam os eventos da área tão profícuos, diversos e calorosos.
À minha família, que sempre apoiou e ajudou a bancar minhas escolhas, entendendo
ou não, concordando ou não. Especialmente à minha irmã, Lívia, minha metade
complementar, inspiração e porto-seguro, responsável por me lembrar regularmente de que
formação acadêmica importa, sim, mas não é tudo, e assim ajudar a manter minha sanidade e
equilíbrio nos momentos mais complicados.
A todas as amizades que me acompanharam neste período, com menções honrosas:
à minha siamesa de mestrado, Debbie Noble (aka Noblelais), pela parceria que
começou nas disciplinas em que nos perdíamos juntas, se estendeu para trabalhos em
coautoria e culminou numa amizade reconfortante. À minha irmã astrológica, Michele
Passini, pelos tantos momentos de aconselhamentos pessoal e teórico. Às duas juntas, por
formarem comigo um trio de compreensão mútua que se tornou indispensável ao longo da
escrita;
às amigas do Ministério, Bru, Le, Raqueleta e Tai, minhas lexicats, que não
compartilham da minha teoria, mas compartilham das mesmas angústias e praticam comigo
um bonito exercício diário de compreensão à alteridade;
à galera da repartição, por ter segurado minha barra na época da seleção;
especialmente ao Dani e à Simone, que muito me ouviram lamuriar também durante a escrita;
ao Rafael, pelos queijos, goiabadas, pregos, parafusos, expropriações e tantos outros
códigos que compartilhamos no nosso universo tão particular que torna nossas vidas tão
menos solitárias, tão mais tragicômicas, tão mais... vivas, enfim.
Ao acaso, ao destino, ao Universo, ao Deus, aos Orixás, aos astros, ao mercúrio
retrógrado ou seja lá o que(m) for que conduziu aquelas coisas que não dependiam de mim e
mesmo assim deram certo.
Se uma mulher e seu cachorro estão
atravessando a rua e um motorista
embriagado atinge essa senhora e seu cão, o
que vamos encontrar no noticiário é o
seguinte: “Mulher e cachorro são atropelados
por motorista bêbado”. Não é
impressionante? Basta um cachorro para
fazer sumir a especificidade feminina de uma
mulher e jogá-la dentro da forma
supostamente “neutra” do masculino.
– Marcos Bagno
RESUMO
Ce mémoire, ancré sur l’Analyse du Discours pecheutienne, présente une analyse des
discours à propos de la langue et du genre ayant comme corpus des textes issus du contexte
institutionnel et militant. Pour cela, on présente d’abord des notions provenant de l’Analyse
du Discours et du Féminisme. Pendant que l’on se penche sur les notions fondamentales de la
théorie dans laquelle s’est basée l’analyse proposée, on cherche de les articuler au mouvement
féministe et aux études de genre. De ce fait, tant le mouvement féministe que les études de
genre ne sont pas présentés de façon chronologique ou révisionniste, mais si en ce qu’ils aient
en commun avec l’Analyse du Discours. Parmi les notions ainsi mobilisées, on souligne celles
de conditions de production, de sujet et de formation discursive. Ensuite, on propose une
révision de la notion de langue, en présentant quelques-uns de ses déploiements depuis
l’établissement de la Linguistique comme science autonome jusqu’à son état actuel dans
notre champ théorique. Une fois conclue l’exposition théorique, on réalise l’analyse du
corpus. En ce que concerne le contexte institutionnel, sont analysées des séquences
discursives prises des textes suivants : la Loi Fédérale nº 12.605 (BRASIL, 2012), qui prévoit
la flexion de genre dans l’émission de diplômes ; la Loi Régionale nº 14.484 (RIO GRANDE
DO SUL, 2014), qui définit l’utilisation d’un langage non sexiste dans la rédaction des
documents officiels ; le Décret nº 49.994 (RIO GRANDE DO SUL, 2012), qui définit
l’utilisation d’un langage non sexiste dans des actes normatifs, documents et solennités du
Pouvoir Exécutif Régional ; et deux brochures sorties par le Secrétariat de Politiques pour les
Femmes de l’État du Rio Grande do Sul : le Manual para o uso não sexista da Linguagem
[Manuel pour l’Usage Non Sexiste de la Langue] et la Cartilha da Diversidade de Gênero
[Brochure pour la Diversité du Genre]. En ce que concerne le contexte militant, sont analysés
deux articles publiés en ligne, pris de la Revista Geni [Revue Geni] et du blog Batatinhas, et
ses commentaires faits par des cybernautes. En identifiant des contradictions et des retours de
la mémoire discursive et des pré-construits, on arrive à quatre différentes positions de sujet
dans l’analyse, délinées à partir de ses dires sur la langue et le genre et par le mode comme
ses savoirs se marquent, se distancent et se rapprochent dans ce débat. Enfin, on présente
quelques considérations qui, loin d’achever le débat, cherchent d’articuler des points soulevés
dans le croisement entre théorie et analyse.
Mots-clé: Langue et genre. Langage Non Sexiste. Discours Institutionnel. Discours militant.
Féminisme.
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 – Revisando................................................................................................................72
Figura 3 – Delimitações............................................................................................................90
LISTA DE QUADROS
Quadro 4 – Transgênero............................................................................................................75
LISTA DE SIGLAS
SD – Sequência Discursiva
SUMÁRIO
NA PONTA DA LÍNGUA...................................................................................................... 12
REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 96
NA PONTA DA LÍNGUA
Esta dissertação, apresentada em 2016, teve seu início determinado há pelo menos
cinco anos. O ano era 2011 e o Brasil assistia à chegada da primeira mulher à cadeira da
Presidência da República: Dilma Vana Rousseff, eleita pela legenda do Partido dos
Trabalhadores, sucedia Luiz Inácio Lula da Silva, assegurando mais quatro anos do partido na
Presidência. Quanto a mim, um ano depois também assumia uma cadeira até então inédita: em
2012, comecei a atuar como estagiária da Redação Oficial do Gabinete do Governador do
Estado do Rio Grande do Sul. O trabalho consistia em auxiliar na redação, elaboração, revisão
e formatação da correspondência oficial, direcionada tanto à população quanto aos órgãos dos
governos municipal, estadual e federal.
Ainda que todo meu trabalho fosse orientado e supervisionado, eu sentia uma grande
responsabilidade pela redação dessa correspondência. Como feminista, sempre me incomodou
a redação padrão, que supunha o feminino representado pelo masculino, ou, como
conciliadoramente denominado, “neutro”. Como estagiária e recém-chegada, não cabia a mim
questioná-la. Foi com grande satisfação que ouvi que, ao nos referirmos à Dilma Rousseff,
deveríamos chamá-la de presidenta, não de presidente. E com maior satisfação ainda recebi a
notícia, no fim de 2012, da instituição de um Grupo de Trabalho específico para tratar de
linguagem inclusiva dentro dos órgãos do Governo Estadual.
Em 2014, acabou meu contrato com a Redação Oficial e em seguida ingressei no
mestrado, ainda tocada por essas questões. Tendo mantido contato com a equipe com a qual
trabalhava, fui presenteada com o material resultante daquele Grupo de Trabalho, o Manual
para o uso não sexista da Linguagem, acompanhado da Cartilha da Diversidade de Gênero,
ambas publicações da Secretaria de Políticas para as Mulheres. A leitura de ambos os
materiais me inquietou: havia algo que não fechava entre eles, um incômodo que permeava a
leitura, uma primeira impressão não bem delineada, mas certamente digna de análise.
Paralelamente à minha relação com os órgãos oficiais, sempre estive conectada aos
espaços virtuais de militância feminista. E foi neles que observei grafias diferenciadas
daquelas postuladas pela gramática e pela linguagem inclusiva institucional: se estas
recomendavam a escrita de “todas e todos”, na Internet encontrávamos “tod@s”, “todes”,
“todxs”. Em alguns blogs e sites, a escrita era acompanhada por reflexão metalinguística; em
outros, era simplesmente apresentada sem quaisquer explicações; em outros ainda, era
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rechaçada. Esse embate fez brilhar para mim a hipótese de que, em se tratando de língua e
feminismo, não havia consenso, mas havia muitos discursos e poderes em conflito.
Foi daí que nasceu esta dissertação: um ensaio teórico de análise dos discursos sobre
língua que são mobilizados frente à relação entre língua e feminismo pela perspectiva da
teoria materialista do discurso. A quem tiver familiaridade com a teoria o aviso será
desnecessário, mas é importante registrá-lo para quem não tiver: analisar não significa chegar
a um sentido certo ou a uma verdade a respeito do objeto em análise, mas, sim, observar como
se estruturam os sentidos possíveis. É esta a proposta deste trabalho, e para tanto adotei o
percurso a seguir.
O primeiro capítulo tem uma função dupla: ao mesmo tempo em que situo este
trabalho no campo teórico da Análise do Discurso pecheutiana, apresentando os conceitos
fundamentais da teoria que mobilizo para a análise aqui proposta, busco uma articulação cm a
temática do gênero, apontando modos de ler o(s) feminismo(s) a partir da Análise do
Discurso. O segundo capítulo trata de um dos objetos centrais deste estudo: a língua. Parto de
uma breve revisão teórica de como a língua enquanto noção foi elaborada desde o começo do
estabelecimento da Linguística enquanto campo de estudo autônomo, apresento alguns dos
desenvolvimentos pelos quais passou e finalizo com a abordagem dessa noção pelo campo
teórico da Análise do Discurso. É no terceiro capítulo que concentro as análises do corpus,
investigando como se articulam língua e gênero no discurso institucional e no discurso
militante, delimitando as posições-sujeito e os saberes identificáveis no debate. Finalmente,
encerro (ao menos provisoriamente) a reflexão com alguns apontamentos (pretensamente)
conclusivos suscitados pelo cotejamento entre teoria e análise.
Se até aqui estou escrevendo na primeira pessoa do singular, a partir de agora
abandono esta forma por dois motivos principais. O primeiro, mais pragmático, diz respeito
ao rigor do hábito da escrita acadêmica, que postula uma escrita impessoalizada – e dado o
objeto a que me propus analisar, o esforço e a transgressão aqui estão focados em não adotar
ao longo da escrita a neutralidade de gênero pelas formas masculinas. O segundo, mais
teórico, diz respeito à perspectiva da Análise do Discurso: não falo sozinha, não sou a origem
do sentido, e mesmo este texto do qual me julgo autora não me pertence inteiramente. Na
ausência de pronome melhor que dê conta desse modo particular de subjetivação, adoto o
“nós” – cabendo aí também, mas não apenas, a formação discursiva na qual me inscrevo, os
discursos que entrecruzam minha escrita, a ideologia que me faz assumir exatamente o papel
que sou suposta a assumir...
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Não sou una. O assunto que analiso, tampouco. E não podendo dar conta do todo,
propomos aqui um percurso que englobe ao menos parte das inquietações que motivaram esta
escrita.
1 ANÁLISE DO DISCURSO E FEMINISMO: DIÁLOGOS
Uma vez que uma pessoa leiga se atreva a lançar a alguém que se engaja na Análise do
Discurso a simples pergunta “mas o que é discurso?”, corre o risco de se deparar com um
silêncio cheio de constrangimento, ou, em consonância com Orlandi (1997), pleno de
sentidos. A categoria que integra a denominação de nosso campo teórico assumirá diferentes
sentidos nos campos da Antropologia, da Filosofia, da Literatura, da Arte e de tantas outras
teorias que dela se valem. Para a pesquisa aqui desenvolvida, trabalharemos com a noção de
discurso tal qual proposta por Michel Pêcheux.
A definição inicial, que encontramos no texto AAD-69 (PÊCHEUX, [1969] 2010), é
apresentada em contestação aos esquemas reacional e informacional que comumente
representariam o comportamento verbal. O esquema reacional apresenta um estímulo
atingindo um Sujeito, que, em resposta, emite um comportamento. Para Pêcheux ([1969]
2010), esse esquema, ao anular os lugares do produtor do estímulo e do sujeito, só seria
legítimo para representar um estímulo puramente físico. É por isso que o autor descarta o
esquema reacional e prefere basear suas ressalvas no esquema informacional: um destinador
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justamente o espaço de trabalho da AD, que reconhece que os discursos se estabelecem num
processo de desestruturação-reestruturação, não são desprovidos de origem e destino, mas,
sim, estão inscritos em filiações sócio-históricas de identificação, acionando redes de
memória e de dizeres possíveis.
Considerar o discurso nessa perspectiva, rompendo com as noções de literalidade e de
evidência do sentido, é justamente o que marca a posição epistemológica da AD dentro do
terreno da Linguística. Portanto, quando falarmos em discurso, estaremos falando a todo
momento de um processo que se inscreve, é claro, num comportamento linguístico, mas não
apenas: trata-se também de uma inscrição subjetiva, histórica e ideológica.
1
Não estão dentro do escopo de nossa pesquisa as demandas feministas das culturas orientais, bastante
particulares e culturalmente distintas das aqui apresentadas.
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homogeneidade do feminismo a partir da inclusão das demandas das mulheres negras. Sempre
segundo Hemmings (2009), esse modo de narrar o feminismo estabelece uma linha
cronológica evolutiva que sugere que, ao chegar na década de 90, o feminismo assumiu um
caráter pós-estruturalista baseado na diferença (o que permite o surgimento da vertente queer,
por exemplo).
A crítica da autora à narrativa que foi estabelecida a respeito do feminismo concerne a
esta pesquisa por exemplificar como alguns discursos são tomados como legítimos em
detrimento de outros e como o deslocamento discursivo consagra alguns sentidos e silencia
outros. Em nossa perspectiva teórica, reconhecemos a fragilidade das revisões que sugerem
uma linearidade temporal: ora, a história não se desenvolve de modo homogêneo, e descrever
um movimento social numa sucessão cronológica apresenta o risco de silenciar suas
contradições e estabilizar seus sentidos como já postos e não construídos. É em Althusser
(1978) que nos baseamos para afirmar que a história é um processo sem sujeito nem fim, e
que aqueles sujeitos que julgamos os porta-vozes de dados movimentos só o são porque as
condições históricas assim o permitiram. Esses movimentos não são resultado da inspiração
pontual de um indivíduo autônomo, mas de um processo histórico que eclodirá na irrupção de
um acontecimento.
Isso vai ao encontro do que Orlandi (1990) apresenta sobre o discurso sobre: como
discurso relatado de fora, ele age na institucionalização dos sentidos, buscando a linearidade e
a homogeneidade, representando geralmente lugares de autoridade. Nesse sentido,
identificamos, na narrativa vigente sobre o movimento feminista, um significativo jogo de
forças que regula quais saberes serão reconhecidos e quais serão silenciados: são reconhecidas
sobretudo as classificações polarizadas e são silenciadas as contradições, numa tentativa de
apaziguar academicamente a efervescência característica da militância.
Voltando agora nosso olhar para o feminismo que toca mais diretamente a nossa
pesquisa, aquele que se desenvolveu em solo brasileiro, é em Pinto (2003) que nos apoiamos
para relacioná-lo a uma manifestação de classe. Para a autora, que situa as primeiras
manifestações feministas brasileiras em alinhamento ao movimento sufragista, as condições
de existência excepcionais da porta-voz dessa fase, Bertha Lutz, foram determinantes para o
desenvolvimento de uma militância bem comportada. Filha de uma elite econômica e
intelectual, com parte dos estudos concluídos no exterior, Lutz transitava de modo confortável
na elite política da época e “lutava pelos direitos negados pelo Estado brasileiro à mulher, mas
ao mesmo tempo era representante oficial desse mesmo Estado em conferências
internacionais” (PINTO, 2003, p.23). Pinto ressalta que o pleito pelo direito ao voto
19
(conquistado em 1932), em consonância com os países centrais, não desafiava as bases das
relações patriarcais, agindo no limite da pressão intraclasse: buscava a inclusão, não a ruptura.
Coisa muito diferente acontecia quanto ao feminismo anarquista, que, sempre segundo
Pinto (2003), antecipava, já na década de 1920, uma percepção que só conquistaria um terreno
significativo no final do século: ao afirmarem que as opressões são sofridas de modo
específico, que abrangem não apenas gênero, mas também classe e raça, as feministas
anarquistas plantavam as sementes do que seria consagrado na década de 1980 como o
feminismo da diferença. Era assim que o movimento se dirigia principalmente às operárias e
artesãs, à classe trabalhadora, separadamente do debate que Lutz promovia entre mulheres
com acesso à educação formal. Essa vertente, que Pinto designa de feminismo mal
comportado, instaura uma ruptura também dentro do próprio movimento anarquista ao
defender que o problema da dominação da mulher é diferente do da dominação de classe,
reconhecendo inclusive o gênero como um dos elementos estruturantes da desigualdade nas
relações de trabalho.
A apresentação de Pinto dessas vertentes polarizadas sugere que o discurso do
movimento feminista é marcado desde suas condições de produção iniciais por uma
heterogeneidade de demandas e de estratégias, atestado pelo protagonismo de sujeitos em
lugares sociais bastante distintos. Assim, sua movimentação na rede de sentidos dará
continuidade a essa heterogeneidade, o que podemos identificar no atual debate sobre
linguagem inclusiva: não seriam algumas das propostas (apresentadas no capítulo 3) um
retorno da polarização “feminismo bem comportado” versus “feminismo mal comportado”?
Podemos pensar esse aspecto à luz do que Courtine (2009) propõe para pensar as
condições de produção, relacionando-as às formações discursivas. O autor lança uma crítica
às dificuldades que a noção conforme proposta por Pêcheux apresenta, especialmente no que
se refere à marcação de uma abordagem específica da AD. Para o autor, a definição que
relaciona lugares objetivamente definidos às suas representações subjetivas dá margem a
interpretações que apagam as determinações objetivas características do processo discursivo.
Dessa forma, não é efetuado um rompimento efetivo da noção de condições de produção para
o quadro teórico da AD com a noção em seu viés psicossociológico.
Courtine (2009) demonstra que a definição da noção de condições de produção do
discurso, sem conseguir se afastar da noção da situação de enunciação, é empírica,
heterogênea e instável. Sua argumentação é exemplificada pela relação que o autor estabelece
entre o processo de constituição dos corpora em AD e o modo como este problematiza a
noção de condições de produção. Para o autor, a própria seleção do corpus discursivo já
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É assim que, ainda que permeadas por uma mesma formação discursiva, as condições
de produção de um feminismo bem ou mal comportado serão diferentes conforme se alinhem
mais ou menos aos saberes de uma formação discursiva dominante ou aos deformações
discursivas dominadas. Salientamos, nesse sentido,a noção de interdiscurso para Pêcheux
([1975] 2009, p. 148-149), que diz respeito ao “‘todo complexo com dominante’ das
formações discursivas”, o que lemos como a coexistência de diferentes formações discursivas
que se embrenham em jogos de forças nos quais umas delimitam as outras, havendo uma que
permanece em dominância. Uma vez que o feminismo bem comportado, sem a pretensão de
destruir as bases patriarcais, conquistou com o apoio do Estado o direito pleiteado,
identificamos em suas condições de produção uma inscrição dos saberes da formação
discursiva dominante.
ideologia o é. Para Althusser ([1971] 1985, p. 85), “a eternidade do inconsciente não deixa de
ter relação com a eternidade da ideologia em geral”. É nesses termos que o autor, tal qual
Freud propôs uma teoria do inconsciente em geral, propõe uma teoria da ideologia em geral.
Quanto às duas teses da segunda proposição, estas tratam da representação das condições de
existência na ideologia (para Althusser, não são representadas as condições reais, mas sim as
imaginárias, fruto da relação do indivíduo com as condições) e da materialidade da ideologia
(Althusser propõe que ela pertence ao campo das práticas).
A terceira proposição, que nos interessa especialmente devido à sua repercussão no
campo da AD, trata de uma relação constitutiva recíproca entre sujeito e ideologia: só existe
ideologia quando existem sujeitos, e só existem sujeitos porque existe ideologia. É a ideologia
que interpela indivíduos em sujeitos, e dizer sujeito, portanto, é dizer sujeito ideológico, pois
ele vive espontaneamente na ideologia. Nesse ponto, Althusser ([1971] 1985, p. 94) traz o
conceito de “efeito ideológico elementar”, que trata da evidência de que todo mundo é sujeito,
e, enquanto sujeito, é único, insubstituível e idêntico a si mesmo. Evidência que, por sua vez,
consiste no principal trabalho da ideologia: ela impõe as evidências de modo que não venham
a ser questionadas.
É assim que Pêcheux ([1975] 2009) sustenta que a constituição do sentido se une à
constituição do sujeito, dado o papel central que tem a ideologia tanto em uma quanto em
outra: é pela interpelação ideológica que se dá a identificação do sujeito com a formação
discursiva. Como efeitos dessa interpelação, trazemos o que Pêcheux denominou de
esquecimentos inerentes ao discurso: o primeiro, que tem relação com o inconsciente, diz
respeito ao fato de o sujeito não poder se situar fora de sua formação discursiva; o segundo
diz respeito ao fato de o sujeito poder selecionar dentro de sua formação discursiva dizeres e
enunciados que se encontram em relação parafrástica, optando2 por um em detrimento de
outro, ainda que este outro também esteja dentro do terreno de dizeres autorizados por aquela
formação discursiva.
Magalhães e Mariani (2010), por sua vez, afirmam que a entrada do sujeito na
linguagem o submete ao mesmo tempo a uma estrutura linguística e a sentidos já pré-
estabelecidos na historicidade e na memória. Desse modo, para compreender o funcionamento
do sistema de significantes, é preciso considerar que este se marca por uma negatividade e por
uma descontinuidade: “há uma distância entre um significante e outro, e nessa distância
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Importante salientar que não se trata de escolha e opção conscientes e autônomas, mas resultantes da
interpelação à qual o sujeito está sempre-já submetido.
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São justamente as diferentes modalidades de opressão que são levantadas por Costa
(2002) para afirmar que os sujeitos do movimento feminista, ainda que plurais, partem de
lugares específicos que delimitam a forma como se representarão e serão representados (ou
não). Por isso a autora defende que a difícil condição do feminismo é lidar com esse jogo de
de-limitações do que é dito com o que não é dito, dos lugares e das ausências desses espaços
de fala.
A fim de pensarmos o sujeito do feminismo junto à noção de sujeito da AD, é
produtivo trabalhar antes a noção de formação discursiva, para então refletirmos sobre a
inscrição na sua rede desse sujeito interpelado e afetado, compactuando com seus saberes e
dizeres, podendo reproduzi-los ou contestá-los de acordo com as diferentes modalidades de
identificação do sujeito.
3
Embora trabalhemos com essa cronologia, salientamos que ela é contestada por Baronas (2004), que sugere
uma “paternidade compartilhada” do termo, alegando que este apareceu primeiro num texto de Pêcheux, para
somente um ano depois ser usado por Foucault.
26
ideológica comporta diferentes formações discursivas, com a semelhança de que não há ponto
pacífico em nenhuma delas: tanto a formação ideológica quanto a formação discursiva são
permeadas por conflitos, de posições de classes, como estabelecido na formulação dos
autores, mas não apenas. Uma vez que partimos dos pressupostos de que os enunciados
deslizam, os saberes se compartilham, os sentidos não são fixos e a alteridade está presente
desde a entrada do sujeito na linguagem, compreendemos os conflitos como inerentes a
qualquer formação.
É assim que Courtine (2009, p. 73) relaciona as noções de formação ideológica,
formação discursiva e interdiscurso: para o autor, as relações contraditórias das formações
discursivas, dependentes das formações ideológicas, são inscritas na materialidade mesmo
dessas formações discursivas, “isto é, em sua materialidade linguística”. Essa inscrição traz à
tona uma questão fundamental referente à formação discursiva, qual seja, a luta pelos
sentidos: a formação discursiva é responsável por determinar os sentidos das palavras, visto
que estas “mudam de sentido segundo as posições sustentadas por aqueles que as empregam”
(PÊCHEUX, [1975] 2009, p. 146-147). Pêcheux enfatiza que a mesma expressão pode
receber sentidos diferentes e igualmente evidentes a depender da formação discursiva em que
são pronunciadas, e isso reforça a não transparência e não univocidade do sentido, em
consonância com a concepção de língua pela perspectiva teórica da AD (conforme capítulo
2).
Para compreendê-la, é necessário retomar o papel central da ideologia e seu
consequente efeito de evidência: por um lado, a evidência do sujeito como “único,
insubstituível e idêntico a si mesmo” (PÊCHEUX, [1975] 2009, p. 141); por outro, a
evidência do sentido, que faz com que “uma palavra ou um enunciado ‘queiram dizer o que
realmente dizem’ e que mascaram, assim, sob a ‘transparência da linguagem’, aquilo que
chamaremos o caráter material do sentido” (PÊCHEUX, [1975] 2009, p. 146).
Se reconhecemos o caráter material do sentido e atribuímos à ideologia, não apenas ao
sistema linguístico, a evidência do sentido, cai por terra a possibilidade de um sistema
linguístico pautado exclusivamente na divergência de valores entre signos. A respeito disso,
Pêcheux postula que a língua é a base comum para diferentes processos discursivos. Assim, a
ênfase retorna novamente ao discurso, sendo a materialidade linguística sua forma de acesso,
mas não a detentora soberana dos sentidos. Pelo contrário, uma mesma materialidade
linguística pode significar de modos completamente distintos se estiver inserida em diferentes
formações discursivas, evidenciando a dependência que o sentido tem com a história e as
formações sociais. A partir daí a língua pode ser repensada por uma abordagem materialista,
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Se até agora falávamos em desdobramento, Indursky (2008) propõe que, mais do que
isso, se trate de uma fragmentação. Essa diferente perspectiva se deve à multiplicidade de
posições-sujeito que a forma-sujeito pode assumir: desdobrá-la em apenas três modalidades
não daria conta de todas elas, que se multiplicam à medida que o sujeito se aproxima ou se
afasta da forma-sujeito que organiza os saberes daquela FD. É em Indursky (2008), portanto,
que nos baseamos para pensar na heterogeneidade e na porosidade da FD, que permitem que
outros saberes ali adentrem e reverberem, repercutindo no modo como os sujeitos com ela se
identificam e alimentando os espaços de contradição. O que determina o surgimento de uma
nova formação discursiva é a irrupção, dentro dessa possível mobilidade entre as diferentes
posições, de uma nova forma-sujeito, que não mais se identifica com os saberes de sua FD e
passa a dizer aquilo que, dentro dessa FD, com suas diferentes posições-sujeito, não pode ser
dito.
Sendo porosas as fronteiras que delimitam as formações discursivas e sendo possível a
coexistência de diferentes posições-sujeitos, cabem algumas considerações a respeito da
noção de contradição, que assume papel central frente a uma forma-sujeito fragmentada (e,
daí, multiplicada).
1.3.1 Contradição
Nesse sentido, o autor considera os estudos linguísticos como uma tomada de posição na luta
de classes: para Pêcheux, o modo de pensar a língua se liga ao modo de pensar a história.
Retomando Schons e Mittmann (2009), salientamos que, uma vez que a constituição
das formações ideológicas se dá de modo desigual e contraditório, não é possível pensar na
FD como um só discurso para todos, mas antes como dois ou mais discursos em um único. No
mesmo sentido, Indursky (2005) defende que a formação discursiva seja considerada “desde
sempre já ideológica e contraditória”. Considerar o aspecto contraditório inerente às
formações discursivas, juntamente à diversidade das posições-sujeito, evita que leiamos
ruptura e irrupção de uma nova formação discursiva onde o que na verdade se manifesta é a
contradição constitutiva – o que virá à tona quando da análise do discurso institucional, por
exemplo.
Analisar o movimento feminista pelo viés da Análise do Discurso permite uma leitura
particular sobre a problemática questão do sujeito do feminismo: podem ser vários, ou
melhor, podem se apresentar diversas posições de sujeito. O que desejamos nesta seção é, a
partir do que entendemos do movimento feminista, esboçar uma proposta de delineamento de
uma formação discursiva feminista que dê conta da multiplicidade de saberes e posições de
sujeito que a constituem.
Deste modo, partindo da definição inicial de Pêcheux, pensamos sobre o que pode e
deve ser dito no âmbito de uma formação discursiva feminista. Procurando uma similitude
entre as demandas que variaram de época a época – o direito ao voto; a autonomia sobre o
corpo e os direitos reprodutivos; a inserção sem ônus no mercado de trabalho; a
representatividade da diversidade, dos diferentes modos de ser mulher; o direito de escolha
(PINTO, 2003, 2010; PEDRO, 2005; MARTINS, 2015) –, estabelecemos a luta pelos direitos
das mulheres como saber central e, assim, constituinte da forma-sujeito dessa formação
discursiva. Quais direitos e quais mulheres, questão espinhosa já apresentada em 1.2.2, será a
questão que delineará as diferentes posições de sujeito.
Toquemos, por exemplo, na questão dos direitos reprodutivos e sexuais. No Brasil, a
pílula anticoncepcional começou a ser comercializada na década de sessenta, acompanhando a
chegada do método no mercado de países como Alemanha e Estados Unidos. Já a legislação
referente ao aborto caminha a passos lentos: o aborto é permitido, mas apenas em casos de
estupro e risco de vida à gestante (BRASIL, 2005) ou, mais recentemente, de anencefalia do
32
Mas o que é gênero? A exclusão desse termo das referidas leis mostra que o assunto
não é pacífico. Para Butler (2013), uma das principais referências da teoria queer, “o gênero
não é um substantivo, mas tampouco é um conjunto de atributos flutuantes, pois vimos que
seu efeito substantivo é performativamente produzido e imposto pelas práticas reguladoras da
coerência do gênero”. Não se trata da destruição da noção de gênero, mas de uma
relativização de suas possibilidades: para a autora, uma vez que o gênero é parte performado e
parte imposto, a identidade de gênero não estabelece uma relação direta com a configuração
biológica dos indivíduos. Nesse ponto, cai por terra a noção de binarismo, já que duas
categorias estanques como feminino e masculino não dariam conta das amplas possibilidades
de performatividade implicadas na noção butleriana de gênero como performatividade, que
33
4
Conforme apontado em Jesus e Alves (2012) e Jesus (2013), o transfeminismo é inicialmente inspirado no
feminismo negro e intersecional.
34
encontrará suas bases nem suas ferramentas na noção de flexão de gênero conforme proposta
pela gramática.
Nesse sentido, retornando ao terreno da AD, observamos que a forma-sujeito da
formação discursiva feminista se fragmenta em posições de sujeito cujas demandas se
distanciam bastante daquelas que fundaram o movimento. Se as demandas continuam girando
ao redor de “direitos para as mulheres”, reconhecemos que são demandas muito diferentes o
direito ao voto, por exemplo, e o direito à representação na língua. É por isso que, para
atender ao objetivo de nossa pesquisa, propomos inicialmente duas posições de sujeito
principais na formação discursiva feminista: uma binarista, que propõe a divisão de gêneros
entre o masculino e o feminino, e uma não binarista, que propõe que os gêneros possam se
apresentar em mais de duas configurações. Esse delineamento inicial é baseado nos saberes
feministas que se relacionam mais diretamente ao objeto de nossa pesquisa e não desconsidera
a existência de contradição nem a coexistência de posições outras, delineáveis a partir da
análise do corpus.
Tendo reconhecido alguns saberes inscritos na formação discursiva feminista, cabe
que nosso olhar se volte agora para o recorte que essa formação efetua no interdiscurso, visto
que não podemos apreendê-lo em sua totalidade, e a interpelação ideológica efetua parte desse
recorte. Também não podemos apreender aquilo a que não temos acesso, portanto, refletimos
aqui sobre o papel da memória como possibilitadora desse acesso.
Tal qual no caso da formação discursiva, é de Foucault que partimos para trabalhar a
noção de memória. É importante ressaltar desde o início que a memória de que trataremos
aqui não é a memória cognitiva nem a memória individual, mas, sim, aquela relacionada aos
processos discursivos. Em Foucault (1999) é possível vislumbrá-la na descrição dos
procedimentos de controle do discurso: o autor reconhece que, ao mesmo tempo em que
existem discursos que tendem ao esquecimento no próprio momento em que enunciados, há
uma outra espécie de discursos, que originam novos discursos e “para além de sua
formulação, são ditos, permanecem ditos e estão ainda por dizer” (FOUCAULT, 1999, p. 22).
A memória, em Foucault, está relacionada às noções de enunciado e de rede de formulações,
sendo a formulação definida como o ato que possibilita o surgimento de um grupo de signos
produzidos a partir de uma língua natural (FOUCAULT, 1995). Este grupo de signos, se
36
dotado de certas características, será considerado um enunciado. Para ser enunciado, não basta
haver uma sequência de elementos linguísticos; é preciso que dada série de signos tenha uma
relação específica com “outra coisa”, referindo-se a ela mesma e tendo as margens povoadas
por outros enunciados, de modo que o enunciado emerge como um elemento singular dentro
do campo enunciativo no qual está imerso. Para o autor (FOUCAULT, 1995), o enunciado
não é uma estrutura, mas uma função de existência.
Nesse sentido, Courtine (2009) considera a noção de memória discursiva subjacente na
Arqueologia do Saber (FOUCAULT, 1995) no que se refere ao domínio associado das
formulações, ou seja, ao campo de concomitância – formulações coexistentes – e ao de
antecipação – formulações posteriores. O autor lança a hipótese de que a inserção da noção de
memória discursiva no campo da Análise do Discurso põe em jogo sua articulação com a
pesquisa histórica em suas formas contemporâneas. Essa inserção se dá por Pêcheux ([1983]
1999, p. 52), para quem a noção de memória discursiva é definida como:
aquilo que, face a um texto que surge como acontecimento a ler, vem restabelecer os
“implícitos” (quer dizer, mais tecnicamente, os pré-construídos, elementos citados e
relatados, discursos-transversos, etc.) de que sua leitura necessita: a condição do
legível em relação ao próprio legível.
5
O referido texto de Pêcheux é um balanço feito a respeito de uma mesa-redonda da qual Achard participou.
37
acontecimento seja integrado à memória, absorvido e dissolvido, mas também uma força para
que a rede regularizada dos implícitos seja perturbada. O acontecimento pode escapar à
inscrição na memória, ser por ela absorvido como se não tivesse ocorrido, ou ainda causar
ruptura. É por isso que, nessa perspectiva, não consideramos a memória discursiva como um
espaço homogêneo, bem delimitado e estabilizado, mas, sim, como “um espaço móvel de
divisões, de disjunções, de deslocamento e de retomadas, de conflitos de regularização...”
(PÊCHEUX, [1983] 1999, p. 56).
É com base em Pêcheux ([1983] 1999) que Indursky (2003) caracteriza o
acontecimento discursivo como uma ruptura da inscrição na ordem da repetibilidade. Por
ordem da repetibilidade entendemos a linearização dos saberes que o sujeito efetua em seu
discurso, gerando uma formulação própria e trabalhando, na mobilização da memória
discursiva, com o repetível. O acontecimento discursivo, rompendo essa ordem, instaura um
novo sentido, até então impossível; “faz trabalhar a memória do dizer, a estrutura, o repetível,
provocando um reordenamento no que pode ser dito” (INDURSKY, 2003, p.115). Ao mesmo
tempo, a ordem da repetibilidade permanece lá, ressoando, pois não é possível apagar nem a
memória nem o sentido-outro. A autora, contextualizando sua reflexão no cenário político
brasileiro, indica que é possível que um acontecimento histórico permaneça um período em
suspenso antes de ser discursivizado: sua discursivização não é imediata. É apenas quando
dizeres sobre esse acontecimento histórico começam a circular, a mobilizar sentidos, que esse
acontecimento é discursivizado.
Em texto posterior, Indursky (2008) apresenta uma diferenciação entre o
acontecimento discursivo, que, como vimos, estabelece uma ruptura e a emergência de novas
forma-sujeito e formação discursiva, e acontecimento enunciativo. Para a autora, o
acontecimento enunciativo se dá quando novos saberes, até então interditados em dada FD,
adentram em seu domínio, provocando a irrupção de uma nova posição de sujeito em conflito
com a forma-sujeito daquela FD. A autora frisa que o acontecimento enunciativo está
relacionado ao afrontamento e à fragmentação da forma-sujeito; uma nova posição de sujeito
não será um acontecimento enunciativo se seus saberes não forem anteriormente interditados
por aquela FD. Esse acontecimento, então, promove não uma ruptura, mas uma coexistência
tensa e conflitante.
Se identificamos na noção de memória discursiva uma semelhança com a já citada
noção de interdiscurso, conforme definida por Pêcheux ([1975] 2009), cabe não confundi-las.
Nesse sentido, Leandro Ferreira (2012, p. 145) propõe uma distinção que atribui à memória os
já-ditos, o dizível, os sentidos possíveis já-lá, enquanto no interdiscurso existem também os
38
pré-construídos, o discurso transverso e todos os sentidos: “já-ditos, não ditos e por dizer”.
Essas noções se relacionam intimamente porque é determinada pelo interdiscurso que a
memória discursiva faz um recorte dos sentidos possíveis de serem atualizados na linguagem.
A autora destaca também que não se separa a memória do seu revés, qual seja, o
esquecimento: ao acionar alguns sentidos na memória, é preciso que se esqueçam outros
justamente para que aqueles possam irromper. Se não se pode dizer tudo, tampouco se pode
lembrar tudo. Entre os fatores determinantes deste jogo entre memória e esquecimento, estão
as condições histórico-sociais de emergência dos enunciados, ao que a autora acrescenta que a
memória implica “uma relação da linguagem com a história e pensá-la requer observar as
relações conflituosas dos aspectos de historicidade com os processos da linguagem”
(LEANDRO FERREIRA, 2012, p. 147).
Courtine (2009), por sua vez, pensa a memória relacionada à constituição dos corpora
de análise: tomando uma sequência discursiva como ponto de referência (denominada pelo
autor como sequência discursiva de referência, ou simplesmente sdr), é ao redor dela que
serão organizados os elementos do corpus. A memória então aparece na noção de domínio de
memória (que o autor salienta não ser um conceito fixo, dado por antecipação, mas, sim,
construído quando da constituição do corpus), definido como “conjunto de sequências
discursivas que pré-existem à sdr” (COURTINE, 2009, p. 111). É a partir dele que os
funcionamentos discursivos que articulam pré-construídos aos enunciados podem ser
apreendidos, o que lhe confere o papel de representar o interdiscurso “como instância de
constituição de um discurso transverso” (COURTINE, 2009, p. 112), em consonância com o
que vimos até aqui sobre a relação entre memória e interdiscurso e a irrupção do
acontecimento. O ponto de divergência, pensamos, diz respeito à proposição de Achard
([1983] 1999) quanto à impossibilidade de se encontrar como discurso autônomo os
implícitos que possibilitam a memória discursiva: para Courtine (2009), o domínio de
memória, ainda que não aponte um começo do processo discursivo, é o lugar que permite
determinar o surgimento dos enunciados que constituem os elementos do saber próprios da
formação discursiva em análise.
O que encontramos de regular na noção de memória na teoria é que ela permite a
articulação de noções primordiais, reforçando que estamos tratando de noções em rede e
permitindo compreender que a retomada de certos enunciados em certas condições dentro de
certas formações discursivas não se dá ao acaso.
sexo oprimido não são limitadas por nenhum destino biológico, mas por práticas que
asseguram a manutenção da opressão. Desse modo, apesar da nomenclatura “sexo”, hoje em
desuso para esse sentido, a problematização de Beauvoir, centrada nas relações de
desigualdade e exploração, partiam de uma leitura sobre as relações entre os gêneros.
No entanto, a vigente classificação do feminismo em vertentes situa Butler e Beauvoir
em posições quase opostas dentro do movimento: enquanto Beauvoir é posicionada dentro do
feminismo radical, marxista, moderno, essencialista, Butler figura como teórica queer, pós-
moderna, desconstrutivista, antiessencialista. A memória discursiva acionada nessa
classificação recorta do interdiscurso apenas aqueles saberes nos quais as teóricas se
diferenciam e que assim permitem essa classificação polarizada, sendo esquecido que,
respeitadas as particularidades de cada momento histórico, ambas as autoras estão tratando de
problematização do gênero.
Antes de passarmos da teoria às análises onde articulamos as noções até aqui
estudadas, cabe um capítulo para nos debruçarmos sobre uma outra noção, que estará no cerne
dessa análise: a língua.
2 ALGUNS DIZERES SOBRE LÍNGUA
Antes de iniciarmos a reflexão quanto aos discursos sobre língua, não poderíamos
deixar de nos deter numa questão primordial: que língua? Tentando nos desviar do efeito de
evidência que garante que “todo mundo saiba” o que é língua, o que propomos neste capítulo
é, inicialmente, uma breve revisão teórica de como esse conceito tem sido trabalhado pela
Linguística. Em seguida, nosso olhar se voltará para o referencial teórico aqui adotado, qual
seja, a Análise do Discurso de linha francesa, em relação à(s) língua(s), de modo que, quando
falarmos de língua nos capítulos subsequentes, estaremos falando da língua tal qual
apresentada nessa perspectiva, sem com isso ignorar a existência (e a repercussão) de
perspectivas diversas.
Salientamos que, ainda que algumas noções das teorias aqui apresentadas não se
relacionem diretamente ao nosso objeto de pesquisa, retomá-las é fundamental por possibilitar
uma visualização de seu desdobramento ao longo das diferentes leituras desenvolvidas a
respeito da língua.
6
Rascunhos encontrados após a morte de Saussure foram compilados e publicados com o título de Escritos de
Linguística Geral (2002), trazendo novas perspectivas sobre seu pensamento.
41
fundadora dos Estudos Linguísticos e que serve até hoje como base introdutória, sem com
isso pretender dar conta de toda a perspectiva saussuriana sobre língua.
Em sua proposta de definir o objeto da Linguística, Saussure define que esta deve se
centrar no estudo da língua, não da linguagem nem da fala. Esse corte é significativo: ao
afirmar que a linguagem é “multiforme e heteróclita” (SAUSSURE, 2012, p. 41) e a fala é “a
parte individual da linguagem” (SAUSSURE, 2012, p. 51), Saussure reconhece uma
necessidade de “colocar-se primeiramente no terreno da língua e tomá-la como norma de
todas as outras manifestações da linguagem”. (SAUSSURE, 2012, p. 41). Nesse sentido, é
proposta uma separação clara entre língua e fala, a primeira bifurcação no estabelecimento da
Linguística como objeto de estudo, servindo a fala, no CLG, fundamentalmente como
exemplo distintivo para explicar os fenômenos da língua. Assim, enquanto a língua é definida
como “um produto social da faculdade de linguagem e um conjunto de convenções
necessárias”, “algo adquirido e convencional” (SAUSSURE, 2012, p. 41), a fala é “um ato
individual de vontade e inteligência”, “acessório e mais ou menos acidental” (SAUSSURE,
2012, p. 45).
Para o que nos interessa aqui, investigar como a língua foi definida nessa obra
fundadora (definição que viria a perpassar todas as posteriores escolas da Linguística), chama-
nos atenção uma proposição quase aforística a respeito da língua, apresentada ainda na
introdução da obra, que acreditamos ser capaz de, se bem analisada, condensar a concepção
de Saussure sobre este conceito: “A língua é um sistema de signos que exprimem ideias”
(SAUSSURE, 2012, p. 47). É sobre as noções de sistema e de signo que se apoia a concepção
de língua saussuriana. Visto que um conceito invoca o outro, trataremos de ambos
conjuntamente, buscando com isso uma visão geral da teoria saussuriana conforme
apresentada no CLG.
Para Saussure, “O signo linguístico une não uma coisa e uma palavra, mas um
conceito e uma imagem acústica” (SAUSSURE, 2012, p. 106). Essa definição marca os
estudos linguísticos de forma significativa porque vai de encontro à concepção de língua
como uma nomenclatura, uma lista de palavras correspondendo a referentes determinados.
Mais do que isso, constata que a língua não é uma representação fiel do mundo, na qual cada
item da lista encontraria uma representação, mas é ela mesma uma forma de recortar o mundo
e viabilizar pensamentos (que, sem a língua, não passariam de uma massa amorfa) que não
dependem de referentes reais.
O signo, na teoria saussuriana, não se limita à palavra, podendo designar qualquer
unidade linguística dotada de um conceito e de uma imagem acústica – inclusive as unidades
42
gramaticais, como flexão de número. Saussure apresenta uma crítica ao que comumente se
entendia por essa nomenclatura: signo, no uso corrente, designaria apenas a imagem acústica.
É por isso que ele propõe a distinção entre signo (a combinação do conceito com a imagem
acústica), significado (o conceito) e significante (a imagem acústica)7. A partir daí, são
apresentados os dois princípios do signo.
Um deles é o caráter linear do significante, que diz respeito ao fato de os significantes
acústicos disporem apenas da linha do tempo, de forma que seus elementos, apresentados um
após o outro, formam uma cadeia. A explanação sobre esse princípio no CLG é deveras
sucinta, de forma que não nos deteremos nela. Interessa-nos o outro princípio, que terá
importância na compreensão da língua como sistema e se relacionará à investigação aqui
proposta: a arbitrariedade do signo linguístico.
Por arbitrário entende-se que não há nenhuma relação natural ou logicamente
explicável que justifique a união de dado significado com dado significante, o que é
exemplificado, no CLG, pelo modo como diferentes línguas denominam referentes universais,
tais como sol e mar. Isso não significa que caiba ao falante definir os signos, visto que estes
são dados de antemão e passivamente assimilados. Aí retorna uma característica da língua:
devido ao seu caráter social, qualquer ação individual sobre ela seria insignificante, pois
apenas na coletividade os signos são estabelecidos e compreendidos. Essa característica se
relaciona às propriedades de imutabilidade e mutabilidade do signo. Seu caráter arbitrário
limita-se à união entre significante e significado, ocorrendo um processo diferente quanto se
trata da relação entre signo e massa social. Desse modo,
Diz-se à língua: “Escolhe!”, mas acrescenta-se: “O signo será este, não outro.” Um
indivíduo não somente seria incapaz, se quisesse, de modificar em qualquer ponto a
escolha feita, como também a própria massa não pode exercer sua soberania sobre
uma única palavra: está atada à língua tal qual é. (SAUSSURE, 2012, p. 111).
A língua figura aqui como um sistema imposto, rígido, herdado de gerações anteriores,
com signos fixos, que não dependem nem da massa social nem do indivíduo falante. A língua,
nessa perspectiva, é soberana, pois a arbitrariedade de seus signos e a complexidade do seu
sistema lhe protegem das modificações. Para questionar, seria preciso que houvesse uma
norma razoável que a regesse, mas a língua, sendo “sistema de signos arbitrários”
(SAUSSURE, 2012, p. 113), carece dessa base.
7
Cabe salientar que, embora a terminologia pareça bem estabelecida neste momento, ao longo do CLG é
possível notar certa flutuação terminológica, com termos e definições sendo referidos de forma contraditória.
Isso se deve, especula-se, à forma como o livro foi organizado.
43
Naquilo que se designa como corte saussuriano, vimos que a atividade do sujeito
falante ficou reservada à fala, cabendo à Linguística estudar a língua em sua organização
enquanto sistema. No entanto, teóricos diversos se dedicaram ao estudo da atividade do
sujeito, trazendo a subjetividade para dentro da discussão nos Estudos Linguísticos. Seguindo
nosso percurso através das teorias que fundamentaram o que se pode considerar como língua,
44
Para Bréal (1992), a subjetividade na linguagem não é um acessório, mas uma parte
essencial em torno da qual o restante de seus elementos se organizou. O autor defende que o
produtor da linguagem não se limita a descrever os fatos, mas imprime a eles reflexões e
sentimentos pessoais, hipótese confirmada por uma breve revisão a respeito da gramática e
suas diferentes possibilidades de expressar o que Bréal designa de aspecto subjetivo da
linguagem: verbos, advérbios, pronomes.
Assim, os advérbios, que, segundo o autor, estão presentes em todas as línguas,
permitem que sejam expressas as impressões dos interlocutores. Um dos exemplos que ele
apresenta é a construção “a esta hora, sem dúvida, ele já chegou” (BRÉAL, 1992, p. 158), na
qual “sem dúvida” não diz respeito a ele ter chegado sem dúvida, mas ao emissor, que não
tem dúvida de que ele chegou. Não se trata, portanto, de mera descrição, mas também de
opiniões (e, portanto, de subjetividade) que frequentemente lhe são atreladas, e isso permite a
Bréal (1992) afirmar que entre as palavras que servem para expor os fatos e as palavras que
dizem respeito ao aspecto subjetivo da linguagem há uma união tão íntima que uma parte
significativa da gramática é dela originária.
Nesse sentido, Bréal apresenta o exemplo dos verbos e dos modos verbais, nos quais
essa união se mostraria de forma mais evidente. Partindo da análise da gramática grega e
latina, o autor explica que em ambas a distinção entre os modos não era muito clara: é o caso
dos modos optativo e subjuntivo, no grego antigo, e do futuro, do subjuntivo e do optativo, no
latim. Bréal considera que falar de algo no futuro está intimamente ligado a desejá-lo ou crer
naquilo, o que é confirmado pela semelhança entre os referidos modos. Essa lógica teria se
mantido nas línguas modernas, como no caso do francês, em que o modo condicional teria
hoje nuances dos antigos subjuntivo e optativo. Quanto ao modo imperativo, seria neste que o
elemento subjetivo mais fortemente se marcaria, visto que une a ideia da vontade daquele que
fala à ideia de ação.
Na análise dos pronomes, por sua vez, são demonstrados os diferentes níveis de
participação atribuídos pelas três pessoas do verbo. Ao considerar que a primeira pessoa serve
para que o falante marque uma oposição de sua individualidade frente ao resto do universo e
que a segunda tem como principal função ser interpelada pela primeira, Bréal afirma que
45
apenas a terceira pessoa representaria uma porção objetiva da linguagem, sendo as outras duas
reservadas à subjetividade.
A análise dos elementos gramaticais que expressam subjetividade permitiu a Bréal
propor um ponto de vista que partisse do falante e de seu agenciamento da linguagem,
sustentando que os primeiros empregos da linguagem diziam respeito a desejos, ordens,
posses, o que colocava a subjetividade como elemento central. Essa proposta não invalida o
corte saussuriano entre língua e fala, tampouco a proposição de língua como sistema, mas
sugere que se passe a estudar a fala, e portanto o sujeito, de forma conjunta ao estudo da
língua. É em parte nesse estudo conjunto que consiste a teoria da enunciação elaborada por
Émile Benveniste, como veremos a seguir.
8
Respeitamos aqui a terminologia adotada pelo autor [“C’estunhommeparlant que noustrouvonsdansle monde,
unhommeparlant à unautrehomme, et lelangageenseigneladéfinitionmême de l’homme”] e por sua tradutora,
porém, não podemos evitar o adendo de que um dos tópicos de análise desta dissertação é justamente a
invisibilidade da diversidade de gênero promovida pela adoção do masculino como neutro. Assim, como na
tradução consultada consta a palavra “homem” para se referir ao conjunto da espécie humana, mantivemos essa
terminologia, frisando que ela nos desagrada pessoal e teoricamente.
46
9
Ainda que Benveniste proponha que não se trate de uma pessoa (pessoas, em sua teoria, são apenas aquelas que
enunciam ou para quem se enuncia, dentro da relação intercambiável eu-tu, nunca o objeto referente da
enunciação), é este o termo tradicionalmente adotado.
47
Benveniste avança em sua reflexão apontando que a linguagem não pode ser
comparada a uma ferramenta que se utilize, visto que as ferramentas foram criadas pelo
homem, ao passo que a linguagem está na natureza do homem. O autor propõe que “é na
linguagem e pela linguagem que o homem se constitui como sujeito” (BENVENISTE, 2005,
p. 286), pois somente através da linguagem se fundamenta o conceito de “ego”. Por outro
lado, se a linguagem é condição para existência do sujeito, ela mesma só é possível porque
cada locutor, referindo-se a si mesmo como eu, apresenta-se como sujeito do seu discurso,
numa relação que mescla polaridade (eu de um lado, tu de outro), contraste (sou eu porque
não sou tu, e vice-versa) e reversibilidade (agora eu, logo mais posso ser tu, de acordo com
quem assumir a locução). É por essas peculiaridades que Benveniste afirma que a condição do
homem na linguagem é única, sem paralelo.
Se até aqui adotamos frequentemente o termo linguagem para tratar dos fenômenos de
língua, é porque o autor reconhece que as línguas particulares concordam e testemunham os
fatos da linguagem. É impossível conceber uma língua que não disponha de um modo de
expressão da pessoa justamente porque a linguagem é marcada pela subjetividade ao mesmo
tempo em que permite que esta exista. Nesse sentido, a teoria de Benveniste nos é cara
porque, ao se valer do conceito de língua de Saussure enquanto sistema de signos, apresenta
neste mesmo sistema os elementos que comprovam a subjetividade como uma característica
comum a todas as línguas.
Para Haroche, Pêcheux e Henry ([1971] 2007), a separação teórica entre língua e
linguagem conforme proposta por Saussure não foi obstante para evitar que esses conceitos,
nas teorias linguísticas subsequentes, acabassem por ser confundidos. Ademais, a ruptura
saussuriana não impediu que nos estudos de semântica se manifestasse o empirismo renovado
48
pelo formalismo. O próprio termo “semântica” não está presente no CLG, mas as definições
gerais a respeito do que poderia ser esta teoria, sim. No entanto, a linguística recobriria apenas
uma parte da semântica, cujo estudo necessitaria de uma mudança de terreno ou de
perspectiva.
Os autores iniciam a crítica ao CLG pelo conceito de analogia, que, para Saussure, é o
que explica a aparição de novas formas, tratando-se de um processo gramatical e sincrônico.
Saussure, ratificando sua separação entre língua e fala, considerou a analogia no terreno da
fala, visto que seria inicialmente uma criação individual, para em seguida acrescentar que esta
só é possível se a língua oferece as condições linguísticas necessárias. A ideia subjacente à
analogia seria totalmente subjetiva, justificando a associação desse conceito ao sujeito
individual.
O que Haroche, Pêcheux e Henry ([1971] 2007) apontam sobre essa relação entre ideia
e analogia é que ela baseia a hierarquização saussuriana entre valor e significação. Para
Saussure, o valor domina a significação, subordinação que os autores classificam de centro da
ruptura saussuriana: “do ponto de vista da língua, só conta o valor e não a significação”
(HAROCHE; PÊCHEUX; HENRY, [1971] 2007, p. 18, grifos dos autores). No entanto,
quando se procura abordar o assunto por uma perspectiva semântica, esbarra-se com o fato de
que as palavras podem mudar de sentido segundo as posições de quem as emprega, o que
coloca problemas que não podem ser regrados apenas em termos de valor, sistema e
subsistemas.
Nesse sentido, os autores postulam que “o laço que une as ‘significações’ de um texto
às suas condições sócio-históricas não é meramente secundário, mas constitutivo das próprias
significações” (HAROCHE, PÊCHEUX; HENRY, [1971] 2007, p. 20), reconhecendo que
essa questão não está presente na problemática saussuriana, visto que dizem respeito à fala
(que, separada da língua pelo autor, não é seu objeto de estudo). Mesmo essa separação é
criticada por Haroche, Pêcheux e Henry ([1971] 2007), que, embora reconheçam sua
necessidade para o estabelecimento da linguística como ciência, criticam o posicionamento de
Saussure quanto à sociologia, especialmente no que diz respeito às concepções de criação que
embasam a teorização sobre a analogia.
Ora, falar em criação é falar em subjetividade. E a subjetividade adotada pela
perspectiva saussuriana, sempre segundo Haroche, Pêcheux e Henry, baseia-se numa
ideologia individualista e subjetiva da criação, da qual (como exposto no capítulo 1),
sabemos, a AD discorda veementemente. Se o sujeito não é pleno, não é mestre de si mesmo e
muito menos da língua, não podemos esperar que as significações lhe ocorram como criações
49
individuais descoladas das condições sócio-históricas de produção. E é por isso que, ainda que
as reflexões saussurianas sobre valor e significação tenham sido válidas para o
estabelecimento dos estudos linguísticos, elas não são suficientes para embasar reflexões
linguísticas que se proponham a um ponto de vista semântico.
Assim, Haroche, Pêcheux e Henry ([1971] 2007) propõem uma mudança de terreno
que supra as necessidades de combate ao empirismo (e sua reflexão centrada no indivíduo) e
ao formalismo (e sua confusão entre a língua, objeto da linguística, e a linguagem). Para tanto,
é proposta uma semântica discursiva, que daria conta de analisar os processos característicos
de uma formação discursiva, considerando conjuntamente as formações ideológicas e sociais.
Quanto à enunciação, Pêcheux e Gadet ([1977] 2008) a interpretam como uma terceira
via entre o logicismo (que foca no estudo da língua enquanto sistema, procurando sua
autonomia, seus universais) e o sociologismo (que foca no estudo do indivíduo na situação da
língua, ganhando ares de interdisciplinaridade). O que as três têm em comum é que todas elas
recobrem a contradição fundamental relacionada ao sujeito e denegam a política, interditando
a possibilidade de um ponto de vista materialista sobre a língua.
Nesse sentido, nosso objeto de análise, articulando saberes que vêm de áreas rígidas
como a gramática e fluidas como os estudos de gênero, encontrando espaço tanto em espaços
institucionais quanto em espaços militantes, deve ser trabalhado justamente nesse ponto de
vista que esmiuça a contradição e considera a língua em seu aspecto político, conforme
veremos em 2.4.
A revisão até aqui apresentada não teve por intuito apresentar uma linearidade
evolutiva que desembocasse na Análise do Discurso, mas, sim, apresentar o que diferentes (e
não por isso menos válidas) vertentes dos estudos linguísticos teorizaram a respeito da língua,
bem como os motivos pelos quais nossa perspectiva teórica se distancia delas. Passamos
agora às especificidades da língua tal qual estudada pela Análise do Discurso pecheutiana em
suas diferentes abordagens.
reflexão, ele se vale da relação sintática estabelecida pelo pronome “que”, que alterna entre
explicação e determinação.
Revisando pressupostos da Lógica e da Linguística, Pêcheux conclui que estruturas
como “aquele que” autorizam uma espécie de esvaziamento do objeto a partir da função. O
exemplo com que o autor trabalha traz novamente a referência a Paul Henry, desta vez para
lidar com a relação entre construído (modificável) e pré-construído (permanente): Henry
propõe o termo “pré-construído” para caracterizar uma construção anterior, algo que fala
externa e independentemente. Em paralelo ao pré-construído, teríamos aquilo que é
construído no enunciado, como no exemplo de Pêcheux (2009, p. 89), em que o enunciado
“aquele que morreu na cruz nunca existiu” relaciona um pré-construído cristão (aquele que
morreu na cruz) com uma construção discursiva ateia (nunca existiu).
Além de identificar as relações entre o modificável e o permanente, interessa a
Pêcheux compreender a língua enquanto materialidade do discurso, trabalhando-a em sua
contradição e historicidade. Nesse sentido, trazemos sua reflexão com Gadet, que, analisando
a história da linguística a partir de uma perspectiva discursiva, apresenta noções caras a um
estudo materialista da língua.
Para Gadet e Pêcheux ([1981] 2010), as línguas naturais são providas de marcas
sintáticas que lhes permitem deslocamentos, transgressões, reorganizações. Se essas marcas,
provando que as línguas não se organizam segundo uma ordem lógico-matemática, dificultam
seu estudo, concomitantemente permitem que as línguas naturais sejam capazes de fazer
política. Ao revisar o modo como diferentes regimes políticos trabalharam a questão da
língua, Gadet e Pêcheux ([1981] 2010, p. 37) postulam que esta é “uma questão de Estado,
com uma política de invasão, de absorção e de anulação das diferenças”. É a essa política que
as diferentes línguas metaforizadas pelos autores servem, seja como instrumento, seja como
exemplo.
A língua metálica, por exemplo, é relacionada às máquinas lógicas, que fabricam suas
próprias memórias para apagarem a dos povos e, por que não, a própria historicidade da
língua. É uma língua fascista, lógica, sem aspecto exterior. A língua de madeira, por sua vez,
associada ao campo do Direito e do Estado, é uma língua de classe a qual nem todos têm
acesso, “na qual ‘para bom entendedor’ meia palavra basta” (GADET; PÊCHEUX, [1981]
2010, p. 24), representando a maneira política de denegar a política. Já a língua de vento,
52
Paul Henry, tendo desenvolvido parte de suas reflexões em parceria com Pêcheux,
inscreve igualmente o estudo da língua em sua inevitável relação com a divisão e a luta de
classes. Para Henry (1992), praticar uma ciência significa trabalhar sua contradição
específica, e é nesse sentido que a categoria da contradição, conforme elaborada por Marx, é
aproximada dos Estudos Linguísticos. A ciência que Henry (1992) se propõe a trabalhar, para
marcar que a língua não se limita nem à ideologia nem ao formalismo, delineia o conceito de
discurso.
Henry (1992) contesta uma semântica da língua que se apoie na significação literal,
afirmando que a questão do sentido faz ressurgir a questão do sujeito. Assim, é proposta uma
articulação entre sentido e forma-sujeito: o sentido da língua não está “nas palavras, no texto
ou no discurso de um indivíduo, mas na relação desse texto, dessas palavras, desse discurso
individual com outros textos, outras palavras, outros discursos, relação na qual esse sentido se
constitui enquanto efeito ideológico” (HENRY, 1992, p. 140).
É isso que nos permite afirmar que, assim como para Pêcheux, para Henry a língua é
igualmente um objeto histórico e ideológico. Nesse sentido, o que destacamos é o
53
A reflexão de Leandro Ferreira sobre a língua nos é cara por dar continuidade à
exploração desse espaço não categorizável, de onde eclodem a falha, a ruptura, a falta. A
autora, sustentando a evidência do sentido e do sujeito como decorrentes do efeito de
evidência da língua, trabalha com a língua enquanto “sistema instável e heterogêneo”
(LEANDRO FERREIRA, 2000, p. 24), reconhecendo que nela há um espaço que escapa à
gramatização, a uma “estruturação lógico-matemática categórica” (LEANDRO FERREIRA,
2000, p. 28). Esse espaço seria o lugar de resistência da língua, espaço que põe em questão o
ideológico, bem como seu efeito de evidência (LEANDRO FERREIRA, 1996). Um aspecto
considerado pela autora como uma evidência ideológica diz respeito aos efeitos de
completude e explicitude da língua, uma tentativa de assegurar a transparência que acaba,
pelo contrário, comprometendo a nitidez: “a língua ao se mostrar, esconde” (LEANDRO
FERREIRA, 2000, p. 65).
O estatuto de equivocidade da língua, por suavez, é reconhecido “como um princípio
constitutivo que deixa marcas na forma como ela se organiza e como incorpora para o seu
âmbito o que lhe é próprio” (LEANDRO FERREIRA, 1996, p. 49). A língua, voltada ao
equívoco, apresenta contradição no próprio modo como está ligada à história e aos sujeitos
falantes. Se concordamos anteriormente que a língua é um objeto histórico, Leandro Ferreira
(2000) ratifica que a história está na língua, e mais: retomando Gadet e Pêcheux, assume que
o equívoco é o ponto de união entre língua e história. Nesse sentido, o equívoco, rejeitado por
parte dos estudos linguísticos sob o negativo rótulo da “ambiguidade”, assume aqui uma
parceria com a ambivalência, deixando ambos sua denegada posição periférica em troca de
um papel central.
Isso implica a não-separação entre língua e discurso, contrariamente ao que ocorre
quando se trabalha com o conceito de ambiguidade (LEANDRO FERREIRA, 2000). Implica
também a perda da pretensão de resolver ou de evitar as contradições e o reconhecimento de
que os sentidos também são feitos pela falta e pela falha. Além disso, o que comumente se
classifica como pontos de dúvida, de indefinição, mau uso, má compreensão, pode aqui ser
interpretado como “formas de resistência” (LEANDRO FERREIRA, 2000, p. 67): assume-se
55
línguas, e que a formação de uma consciência linguística dá-se a partir da experiência. Nesse
sentido, é proposto um percurso histórico que abrange a formação do português como língua
nacional no Brasil (ORLANDI, 2007b). No que nos diz respeito aqui, focamos no processo de
gramatização da língua brasileira iniciado no século XIX.
Para Orlandi (2007b), a criação das primeiras gramáticas no Brasil, ainda que
seguissem denominadas como referentes à língua portuguesa – e não língua brasileira –
permitia aos gramáticos que as escreviam assumir uma posição de autor, um lugar de
autoridade: a autoridade de dizer como é essa língua em suas especificidades desenvolvidas
no Brasil. Nesse sentido, é possível identificar processos que ressignificam e historicizam
tanto o saber sobre a língua quanto a sua constituição e a visibilidade que lhe é permitida. A
autoria de uma gramática redigida no Brasil é uma forma de, ao gramatizar uma língua,
permitir a emergência de um sujeito nacional, constituído por uma língua que lhe é própria,
num processo de individualização não apenas da língua e dos saberes a ela relacionados, mas
também do país, de seus sujeitos e de suas instituições (ORLANDI, 2007b).
No mesmo sentido, Mittmann (2010), em análise de gramáticas fundadoras e
contemporâneas, constata que o trabalho sobre a língua funciona como uma marca identitária:
é preciso marcar a língua de um para especificar que esta não se trata da língua do outro – e,
assim, que se trata de dois sujeitos distintos com suas distintas identidades. Delimita-se, desse
modo, uma fronteira entre nacionalidades – fronteira que lemos em concordância com Cazarin
(2010), para quem a fronteira não se trata de uma separação divisória estática, mas de um
espaço de entrecruzamento e entrelaçamento. Importante frisar que se, num primeiro
momento, o estabelecimento de gramáticas permitiu que através da língua se estabelecesse
uma distinção entre o sujeito brasileiro e o sujeito português, ele permitiu também que essa
noção de sujeito fosse refratada por graus de conhecimento. Assim, distinguem-se os sujeitos
que sabem a língua corretamente daqueles que não sabem. Nesse sentido, Mittmann (2010)
identifica uma oscilação das gramáticas contemporâneas entre o apego à norma culta,
vinculada à escrita, e a abertura para uma variação vulgar, vinculada à fala, num
enfrentamento constante entre tradição e contemporaneidade.
É também sobre uma relação de enfrentamento que podemos pensar o que Orlandi
(2009) propõe como distinção entre língua imaginária e língua fluida: para a autora, temos em
nosso imaginário a impressão de uma língua “estável, com unidade, regrada, sobre a qual,
através do conhecimento de especialistas, podemos aprender, termos controle” (ORLANDI,
2009, p.18), fixada em regras, fórmulas e sistematizações. Seria esta a língua imaginária. Já a
língua fluida é a língua em movimento, em mudanças contínuas, sem limites, “que podemos
57
Neste capítulo apresentaremos nosso exercício de análise dos discursos sobre língua e
gênero em espaços institucionais e em espaços de militância feminista on-line. Para tanto,
iniciamos com uma breve reflexão e apresentação do corpus discursivo e da metodologia de
análise, para em seguida apresentar as sequências discursivas e respectivas análises.
podemos assegurar que os textos selecionados para esta pesquisa são baseados, permeados e
costurados por incômodos. O incômodo, por exemplo, de questionar a evidência da língua,
afinal, a questão do gênero já estaria resolvida na gramática! O incômodo de questionar a
visibilidade e representatividade feminina, afinal, mulheres já têm direito ao voto, até à
Presidência! O incômodo de problematizar as amarras de gênero, afinal, existe homem e
existe mulher, qual é a grande questão em cima disso?
Desse modo, o corpus aqui apresentado poderia ser definido como um conjunto de
textos incômodos/incomodados versando sobre um mesmo tema (qual seja, a relação entre
língua, gênero e feminismo) que circularam em diferentes ambientes desde o ano de 2012.
Para a análise, foi feita a divisão entre discurso institucional e discurso militante, ao que
julgamos primordial acrescentar que esta serve apenas a fins analíticos e não pretende separar
de forma categórica o que se passa em cada esfera, como se fossem polos opostos e
incomunicáveis entre si. No entanto, por se constituírem de materialidades diversas e que
partem de esferas de saber bastante distintas entre si, julgamos produtivo analisá-las
separadamente para só num segundo momento compará-las em suas similitudes e
discrepâncias. É também em Courtine (2009) que nos apoiamos para constituir esse corpus de
diferentes materialidades: se a crítica do autor se dirigia à possibilidade de as condições de
produção filtrarem a constituição do corpus, aqui tentamos ampliá-lo para que as sequências
discursivas abrangessem a heterogeneidade e a contradição características das atuais
condições históricas de produção.
Assim, são apresentados fragmentos de textos produzidos num momento histórico no
qual a participação política feminina não pode mais ser ignorada, mas não apenas: é um
momento em que, conforme vimos no capítulo 1, até mesmo as antes rígidas fronteiras de
feminino e masculino são problematizadas. E esse conflito, como não poderia deixar de ser,
eclode na língua, sobre o que se foca nossa análise.
No dia 1º de janeiro de 2011, Dilma Rousseff tomava posse como... sendo a primeira
mulher a assumir a Presidência da República no Brasil, presidenta, portanto? Ao menos esta
era a palavra adotada pela mídia oficial do governo. No entanto, a simples flexão de gênero da
palavra “presidente” para “presidenta” mobilizou uma discussão (ainda hoje, 2016, não
encerrada) na qual tomaram parte linguistas, jornalistas, profissionais da educação e pessoas
62
leigas. Afinal, faria sentido essa flexão de gênero num substantivo comum de dois gêneros,
ou, termo igualmente adotado pela gramática, “neutro”?
A alternância entre “presidente” e “presidenta” marca um aspecto gramatical que
retornará em diversos momentos da análise do corpus: a questão do morfema, entendido pela
gramática como “unidade mínima significativa ou dotada de significado que integra a
palavra” (BECHARA, 2009, p. 334). O que destacamos quanto à vogal de desinência de
gênero “- a” enquanto morfema é que as gramáticas não entraram em consenso quanto à sua
classificação: ele é apresentado ora como morfema categórico, ora como morfema
derivacional (FERREIRA DA SILVA, 2005). É por isso que neste trabalho, não sendo nosso
objetivo a classificação de morfemas, vamos nos deter sobre sua característica de significar,
referindo-nos inicialmente a esse morfema como “vogal de desinência de gênero” –
nomenclatura que poderá ser repensada ao longo das análises.
10
Secretaria criada em 2011, durante o governo de Tarso Genro (PT), e extinta no ano de 2015, durante o
governo de José Ivo Sartori (PMDB).
63
A relação entre língua e gênero, portanto, parecia estar no centro do debate tanto em
nível estadual quanto em nível federal. Para analisar os possíveis funcionamentos desse
debate, trazemos três sequências discursivas recortadas das leis e do decreto:
SD1:
Lei Nº 12.605
Determina o emprego obrigatório da flexão de gênero para nomear profissão ou grau em diplomas.
A PRESIDENTA DA REPÚBLICA Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a
seguinte Lei:
Art. 1oAs instituições de ensino públicas e privadas expedirão diplomas e certificados com a flexão de
gênero correspondente ao sexo da pessoa diplomada, ao designar a profissão e o grau obtido. (BRASIL,
2012).
Na SD1 não há referência explícita à questão da língua, ainda que o assunto seja
tangenciado pela flexão de gênero. Identificamos nessa SD um pré-construído que se adere
aos saberes da gramática, que prevê nas estruturas de flexão de gênero da língua a visibilidade
profissional feminina. E assim como na gramática, há uma correspondência entre sexo e
gênero que não problematiza a questão nem pelo viés da identidade nem pelo viés da língua: o
gênero corresponde ao sexo, e essa correspondência deve ser respeitada na emissão dos
diplomas, dando ênfase à distinção (ainda que binária) entre feminino e masculino.
SD2:
Decreto Nº 49.994
Art. 1º Fica instituído o uso da linguagem inclusiva de gênero nos atos normativos, no que couber, nos
documentos e nas solenidades do Poder Executivo Estadual.
Art. 2º Entende-se por linguagem inclusiva:
I - a utilização de vocábulos que designem o gênero masculino apenas para referir-se ao homem, sem
que seu alcance seja estendido à mulher; e
II - nos textos escritos ou falados, toda referência à mulher deverá ser feita expressamente utilizando-se,
para tanto, o gênero feminino.
Art. 3º A menção aos cargos deverá observar o gênero de seu ou de sua ocupante, respeitada a condição
feminina ou masculina. (RIO GRANDE DO SUL, 2012).
participação feminina, por outro, ao destacar os gêneros masculino e feminino, não se abre
brecha para questionar o binarismo de gênero, que figura não como identidade, mas como
“condição”.
SD3:
Lei Nº14.484
Parágrafo único. Para os efeitos desta Lei, entende-se por linguagem inclusiva de gênero o uso de
vocábulos que designem o gênero feminino em substituição a vocábulos de flexão masculina para se
referir ao homem e à mulher.
Art. 2.ºPara os fins do disposto nesta Lei, são objetivos da linguagem inclusiva:
I - a inclusão dos gêneros feminino e masculino, com as respectivas concordâncias, na designação, geral
ou particular, dos cargos, dos empregos e das funções públicas e dos postos, patentes e graduações;
II - a não predominância, na elaboração de quaisquer documentos, mídias e outros veículos de
divulgação, de um gênero sobre o outro, ainda que sustentada em uso do costume ou das regras
gramaticais da língua portuguesa;
III - a disseminação do uso dos dois gêneros, para os casos de pluralização, ao invés do uso do gênero
masculino;
IV - a utilização do gênero feminino para toda referência à mulher;
V - a não utilização do termo “homem”, para fins de referência a pessoas de ambos os sexos,
substituindo pela forma inclusiva “homem e mulher”; e
VI - contribuirpara uma cultura de igualdade de gênero, por meio da linguagem inclusiva. (RIO
GRANDE DO SUL, 2014).
3.3.2 Manual para Uso não Sexista da Linguagem: entre o reflexo e a ferramenta
Partimos agora para a apresentação do Manual para uso não sexista da linguagem: o
que bem se diz bem se entende11. A publicação foi elaborada a partir do manual da Red de
Educación Popular entre Mujeres de Latinoamérica y Caribe. Sua versão em língua brasileira,
O mesmo manual foi analisado em Zoppi-Fontana (2015), Garcia (2015) e Garcia e Sousa (2014).
11
66
Manual o que se distingue é a forma de uso da língua (ela é uma só, passível de ser utilizada
de diferentes maneiras).
Neste ponto cabem algumas palavras a respeito da distinção entre língua e linguagem.
Pela análise do corpus como apresentada até aqui, entendemos que, quando se fala em
linguagem inclusiva ou não sexista, o que entra em confronto são concepções diversas a
respeito da língua, bem como seus diferentes modos de expressão – como apontado na análise
da SD3, em que línguas imaginária e fluida se confrontam. Identificamos uma oscilação na
qual em alguns momentos língua e linguagem não são diferenciadas e, em outros, língua12 diz
respeito ao sistema e linguagem à prática desse sistema. O que se mantém é que, mesmo que
se fale em linguagem, é em torno da língua que se concentram os saberes e pré-construídos
mobilizados. Assim, salientamos que língua e linguagem não são sinônimas, mas, nesta
pesquisa, ali onde o corpus por vezes diz linguagem, podemos ler questões de língua, ou, de
modo mais adequado ao objetivo da pesquisa, discursos sobre língua.
Partindo para as sequências do Manual, trazemos duas SDs recortadas do capítulo 1, O
papel da linguagem como agente socializante de gênero, no qual são introduzidas as
primeiras questões relacionando língua e gênero.
SD4:
É que a língua, ao ser o reflexo da sociedade que a utiliza, transmite a ideologia imperante nela, pois
reflete e reforça as desigualdades derivadas das discriminações exercidas contra as mulheres por meio
do androcentrismo e do sexismo (RIO GRANDE DO SUL, 2014c, p. 24).
SD5:
a língua em si não é sexista como sistema, mas o que é sexista é o mau uso que se faz dela, uso
consolidado, aceito e promovido pela sociedade (RIO GRANDE DO SUL, 2014c, p.26).
12
Lembramos que, na perspectiva da AD, a língua é a materialidade do discurso.
68
SD6:
Estamos plenamente convencidas de que será a influência social que fará possível que as palavras
representem devidamente a diversidade existente e que mude a representação das mulheres no mundo e
a imagem estereotipada, minimizada ou desvalorizada que ainda hoje reproduzimos ao falar (embora
seja sem intenção, sem interesse e sem pensar, ou simplesmente por falta de informação) do mesmo
modo que conceitos e ideias evoluiram mediante uma mudança em nossa forma de falar e escrever (RIO
GRANDE DO SUL, 2014c, p. 51).
A contradição que marcava a relação entre as SDs4 e 5 retorna na SD6, de modo que é
difícil compreender em que se sustentaria a argumentação: são as palavras que efetuam a
mudança social ou as palavras mudam para acompanhar a sociedade que mudou? As palavras,
nesta SD, como fragmentos da língua, ao mesmo tempo em que representam, mudam a
representação, num jogo em que a influência é ora exercida, ora sofrida. Trata-se aqui de uma
língua versátil que não se limita à passividade ou à atividade, mas que joga entre as duas
possibilidades, mudando e sendo mudada, representando e sendo representada.
Chama-nos atenção aqui o adendo sobre a minimização feminina na língua não ser
intencional. Isso nos conduz aos esquecimentos constitutivos do sujeito: duplamente
interpelado, crê que suas palavras sejam fruto de seu interesse e sua intenção, assim como vê
uma possibilidade de alterá-las a partir da informação. Na SD4 a língua é apresentada como
transmissão da ideologia imperante na sociedade, o que poderia trazer a ideologia para ser
pensada conjuntamente às propostas de linguagem inclusiva. No entanto, reconhecer que a
sociedade é dominada por dada ideologia não significa reconhecê-la no seu próprio discurso,
tampouco reconhecer que escapar de uma ideologia (no caso a dominante) implica
necessariamente ser interpelado por outra (que podemos chamar, provisoriamente, de
69
resistente). Assim, o sujeito que defende a linguagem inclusiva não ignora a existência da
interpelação ideológica (ainda que não se refira a ela por esses termos) na naturalização de
uma linguagem sexista, mas, ao tratarda linguagem inclusiva, esta noção é deixada de lado em
detrimento de outras como intenção, interesse e falta de informação – talvez porque o
ideológico pareça ser sempre aquilo que vem do lado de lá, enquanto do lado de cá o que
falamos seria apenas a verdade...
Em se tratando de um material distribuído por uma Secretaria de Estado, é tentador
identificar, mais uma vez, nessa alternância entre o que se reconhece e o que não se reconhece
como ideológico, a língua de madeira conforme descrita por Gadet e Pêcheux ([1981] 2010).
É a língua que denega a política e, no caso em análise, o faz relacionando-a à alteridade: não é
que a ideologia não faça parte do debate, ela apenas estaria do outro lado.
As duas sequências seguintes, também retiradas do Manual, tratam igualmente da
possível relação entre língua, intenção e mudanças:
SD7:
A linguagem, a forma de comunicação entre homens e mulheres, não está isenta desta forma de
construção e foram elaboradas [sic], não só como diz Simone de Beauvoir, a partir dos interesses dos
homens, mas está carregada de uma clara intencionalidade por remarcar o caráter negativo do sexo
feminino e supervalorizar o sexo masculino (RIO GRANDE DO SUL, 2014c, p. 37).
SD8:
Posto que as palavras definem a realidade modelando-a, e que também a realidade tem uma grande
carga no significado que se dá às palavras, podemos impulsar propostas dirigidas a mudá-las mediante
um uso não sexista das palavras e, com isto, conseguir a sua modificação.
A linguagem cria consciência, cultura, ideologia e modifica o pensamento das pessoas. Podemos,
portanto, ao mudar a forma de falar e escrever, modificar a mentalidade das pessoas, suas condutas e
como consequência a própria sociedade (RIO GRANDE DO SUL, 2014c, p. 42).
sendo refletido, uma resposta provisória se apresenta na SD8: mudando o reflexo, o que se
reflete muda junto.
Nesse sentido, as SDs até aqui apresentadas trabalham com um funcionamento da
língua que é heterogêneo e marcado por contradições: ela é causa e consequência, é feito e
efeito, é reflexo e ferramenta, é permanente e modificável. De forma alguma consideramos a
contradição como um aspecto negativo; é antes constitutivo. Desse modo, a análise do corpus
caminha em convergência com a língua que postulamos na AD: quando se tenta aprisioná-la,
ela escapa; quando se tenta dominá-la, ela resiste; quando se tenta modificá-la, ela demonstra
sua autonomia. Sobretudo, numa relação de elaboração entre língua e sujeito, este tropeça na
ideologia que interpela a ambos, sem conseguir se isentar de seus efeitos e sendo carregado
por ela ali mesmo onde tenta evitá-la.
Até agora trouxemos SDs que tratavam do aspecto “teórico” da linguagem não sexista;
os quadros abaixo apresentarão algumas das propostas práticas de aplicação dessa linguagem
de acordo com o Manual.
Esses quadros são apresentados como alternativas que tiram o foco do masculino ao
utilizar termos genéricos, abrangentes ou referentes à coletividade. No entanto, evitar o
destaque do masculino não significa destacar ou reconhecer o feminino. É por isso que no
capítulo seguinte, que trata especificamente de profissões exercidas por mulheres, uma
estratégia diferente é apresentada:
Figura 1 – Revisando
O que destacamos da figura é que os itens A e B dialogam entre si, bem como os C e
D. Vejamos: enquanto A propõe que as mulheres sejam visibilizadas, B propõe uma inversão
da ordem sintática usual, trazendo o feminino como elemento primário e o masculino como
secundário. Já nos itens C e D temos abordada a questão da invisibilidade: esta só é aceita
como recurso último por economia de tempo ou trabalho, caso em que são recomendados os
genéricos, como vimos no Quadro I. O que se prefere, no entanto, é que o feminino seja
claramente expresso: não apenas as estratégias tradicionais como barras e parênteses são
criticadas, mas também as pouco convencionais e não gramaticalizadas, como a substituição
das vogais pelo símbolo @ ou pela letra x. Estes, de acordo com o Manual, não são
verdadeiramente representações do feminino, ao que lançamos a pergunta: seriam, então,
representação do quê?
A questão poderia ser deixada em suspenso se pacificamente aceitássemos que o
Manual publicado pela Secretaria frisa apenas a visibilização feminina sem ampliar o debate
para a problematização de gênero. No entanto, no mesmo ano, foi distribuída pela mesma
Secretaria uma Cartilha intitulada Direitos iguais nas diferenças: Cartilha da Diversidade de
Gênero. Embora o material não tenha como objetivo refletir sobre questões de linguagem, a
73
publicação quase simultânea da Cartilha e do Manual nos intriga no sentido de que a Cartilha
levanta a possibilidade de um debate até então silenciado pelo Manual: as relações de poder
não se estabelecem apenas entre homens e mulheres, binariamente, mas estão presentes
também na diversidade de gênero.
Ora, se uma publicação postula que é preciso reconhecer as mulheres pelo uso de uma
linguagem não sexista e se na outra são reivindicados direitos iguais nas diferenças, é o caso
de questionarmos: como a diversidade de gênero e seus direitos, reconhecidos pela Secretaria,
são (ou não) perpassados pela linguagem não sexista que a própria Secretaria propõe?
Assim como o Manual, a Cartilha define gênero como construção social. No entanto,
como vemos na Figura 2, ao falar em identidade de gênero, abre-se a possibilidade de não
binarismo: “gênero masculino, feminino ou de alguma combinação dos dois, independente
de seu sexo biológico”. Além disso, aborda didaticamente a questão da transgeneridade13,
conforme segue:
Quadro 4 – Transgênero
13
As definições apresentadas na Cartilha não estão de acordo com as defendidas pelo movimento transfeminista.
Para conhecê-las, consultar Jesus (2012).
76
no entanto, não é mantida, e o artigo masculino aparece tanto se referindo à grande classe (“os
transgêneros”) quanto às especificidades “os travestis, transhomens e transexuais”.
O que identificamos neste breve cotejamento entre Manual e Cartilha é que a proposta
de uma linguagem não sexista parece se limitar a incluir e destacar as mulheres por meio da
sintaxe e da concordância nominal sem oferecer alternativas que deem conta da diversidade
de gênero. E mesmo as propostas apresentadas não encontram correspondência na Cartilha,
como podemos observar na sequência abaixo, recortada do capítulo que trata sobre violência
de gênero:
SD9:
Desde que o bullying entrou pelos portões das escolas, pedagogos (as), pesquisadores (as) e advogados
(as) receberam o desafio de identificar, combater e, principalmente, prevenir essa prática (RIO
GRANDE DO SUL, 2014b, p.20).
Identificamos aqui uma contradição entre a teoria postulada num material e a prática
apresentada em outro. No Manual (conforme Figura 1), recomenda-se que não se usem
parênteses ou barras diagonais;na Cartilha, a vogal de desinência do gênero feminino é
apresentada justamente entre parênteses. Nesse sentido, retomamos a imagem construída no
Manual da língua enquanto ferramenta: até podemos tentar tomá-la como tal, mas essa ilusão
não se sustenta porque não temos seu domínio. Se resistimos à ideologia dominante pela
tentativa de novos modos de dizer, a língua resiste com igual força em sentido contrário,
impondo sem que percebamos os modos de dizer que tentamos refutar. Mais do que uma
autonomia relativa, a língua tem também história e ideologia, e estas reforçam e naturalizam
padrões nos quais é possível recair mesmo (e talvez principalmente) tentando evitá-los. Se
algo fala antes, não fala de qualquer modo: o antes que fala aqui carrega uma tradição de
subordinação feminina ao masculino que é marcada na língua e se impõe com a força de um
aprisionamento.
Ora, se a língua da política é a de madeira, restrita a quem tem condições de acessá-la,
é justo que não esperemos que partam dela a mobilidade e a mudança. O discurso
institucional se apresenta pontuado por contradições que dificultam o delineamento de
posições claras e de Formações Discursivas: partindo de uma mesma Secretaria, a contradição
entre os materiais vai ao encontro de nossa perspectiva teórica, mostrando que o sujeito não é
soberano nem da língua (seja ela sexista ou não) nem dos discursos (que se relacionam por
jogos de forças nos quais se estabelece um dominante). Da análise empreendida até aqui,
concluímos provisoriamente que o sexismo em sua manifestação linguística é um discurso
77
dominante, com tamanha força que se marca mesmo (e talvez principalmente) quando se tenta
fugir dele. As iniciativas da Secretaria, ainda que tentem padronizar uma linguagem não
sexista, esbarram tanto na interpelação ideológica quanto na autonomia relativa da língua.
Ainda que goze de maior legitimidade e aceitabilidade social, o discurso institucional
não é o único que problematiza as questões envolvendo língua e gênero. É por isso que
trazemos agora fragmentos que intitulamos de discurso militante, dado que foram em sua
maioria retirados de espaços virtuais de militância feminista e/ou de gênero.
As relações que se estabelecem nos espaços virtuais podem ser pensadas tanto dentro
de nossa perspectiva teórica quanto a partir de contribuições outras. Assim, traremos
inicialmente algumas reflexões de Castells (2003) para pensarmos a respeito desse modo
específico de organização, para, em seguida, voltarmos ao nosso referencial com base em
Gallo, pensando a textualização nessa plataforma.
Para Castells (2003), a Internet pode ser caracterizada como um meio que permite
comunicação horizontal e livre expressão. Tendo sido apropriada pela prática social, exerce
efeitos específicos sobre esta, pois não se trata da construção de uma realidade virtual, e sim
da “extensão da vida como ela é, em todas as suas dimensões e sob todas as suas
modalidades” (CASTELLS, 2003, p. 100). Desse modo, ainda que dotada de algumas
particularidades, a vida on-line não se distingue tão completamente da off-line. Uma das
semelhanças reside na formação de redes e comunidades, cujas formações, com o intermédio
da Internet, podem ser dissociadas de apenas uma forma material; assim, públicos específicos
formam redes específicas on-line de acordo com seus interesses e necessidades.
A formação dessas redes pode ser pensada à luz do questionamento proposto pelo
autor quando da análise da política da Internet: a rede é apenas uma possibilidade de
expressão ou se torna ela mesma uma ferramenta modificadora com poder de transformar o
78
jogo político-social? No que nos interessa nesta pesquisa, esse questionamento se aproxima
ao que já apontamos quanto à língua: ela é ferramenta ou reflexo?
Pensamos, por exemplo, no símbolo @, que foi tomado justamente do domínio da
informática e foi de tal modo popularizado como proposta de linguagem inclusiva que não
pode deixar de ser reconhecido (ainda que contestado) pelo discurso institucional (conforme
Figura 1). É um caso em que os saberes específicos das redes se interseccionam com o mundo
off-line, tornando as fronteiras que delimitam o dentro e o fora difíceis de identificar, visto
que os debates que se iniciam na Internet encontram continuidade off-line. Além disso, o
meio on-line, possibilitando a formação de redes por interesses sem barreiras físicas,
possibilita também que uma pluralidade mais heterogênea de sujeitos assumam posições num
mesmo debate: diferentemente do que ocorre no discurso institucional, no qual os lugares de
enunciação são mais rigidamente determinados, o discurso das redes tende a apresentar maior
fluidez, já que teoricamente bastaria ter acesso à Internet para tomar parte no debate.
No entanto, Castells (2003) salienta que o acesso à Internet não é homogêneo nem
igualitário, sofrendo um recorte de classe tanto no que se refere à possibilidade de acesso
quanto no uso que é feito desse acesso. Assim, ainda que a Internet permita uma abrangência
de posições maior do que a de uma Secretaria de Estado, por exemplo, devemos manter em
mente que sua abrangência não é universal e passa longe de representar uma totalidade das
posições possíveis dentro de um debate.
Outra particularidade que gostaríamos de ressaltar dialoga com o que Gallo (2008)
teoriza a respeito do discurso da escrita e do discurso da oralidade. Para a autora, o discurso
da escrita é caracterizado por sua determinação institucional e seu efeito de fechamento,
sendo imbuído da função-autor e não estando relacionado ao fato de ser ou não grafado – uma
manifestação de uma personalidade política, por exemplo, vocalizada, pode estar inscrita no
discurso da escrita, desde que tenha assegurado esse efeito de finalização. O discurso da
oralidade, pelo contrário, é caracterizado pela sua abertura permanente, o que equivale a dizer
que neste não há uma função-autor do qual o sujeito se valha. É o discurso da dispersão, em
que os sentidos não se estabilizam nem provisória nem aparentemente.
A autora inclui ainda uma terceira categoria, necessária para a análise de espaços
discursivos próprios da Internet: a escritoralidade, que reúne elementos tanto do discurso da
escrita quanto do discurso da oralidade (GALLO, 2012). Esse modo específico de
discursividade caracteriza a especificidade de um discurso cujo sentido é fechado, mas
provisório; a autoria pode ser assumida, mas submetida à perecibilidade do espaço virtual,
onde os textos podem sumir instantes após terem sido publicados. No que se refere à escrita,
79
Gallo (2008, p. 48) salienta que “a escrita gráfica, na sua constituição, mobiliza os sons da
linguagem articulada, mas não é uma representação dessa linguagem. Os efeitos de sentido
dessa produção (escrita gráfica) são específicos e próprios dela unicamente”. Essa perspectiva
fornece suporte para pensar a relação da escrita com a oralidade, reconhecendo que nessa
relação são retomados pré-construídos que repercutem no debate aqui analisado e convidam
os sujeitos a tomarem posição em uma formação discursiva.
Na análise que apresentamos anteriormente sobre o discurso institucional,
identificamos sobretudo o discurso da escrita, visto que eram textos com efeito de
fechamento, sinalizado inclusive pelo tom normativo de algumas SDs. Nas SDs que
apresentaremos, retiradas de textos on-line, esse efeito não é predominante, havendo espaço
também para o discurso da oralidade, marcado pela abertura, pelo retorno, pelo debate. Isso
não significa que a cada ambiente (institucional ou virtual) corresponda diretamente um tipo
de discurso, mas que identificamos uma tendência de correspondência relacionado ao
ambiente de veiculação dos textos de onde recortamos as SDs, o que ficará mais bem
exemplificado com a análise que segue.
No Manual era brevemente pontuada uma discordância quanto às formas que inseriam
x ou @ no lugar das vogais, demonstrando que essa estratégia já goza de certa popularização
e não é ignorada nem mesmo pelas instituições. Nesse sentido, buscamos na rede (onde a
estratégia nasceu, cresceu e se popularizou) alguns dos discursos que a reiteram, a refutam e a
debatem.
Nosso corpus se constitui de dois textos publicados em diferentes plataformas on-line
com alguns dos respectivos comentários. O texto Minimanual dx guerrilheirx linguísticx
(doravante Texto 1) é assinado por Marcos Visnadi e foi publicado em setembro de 2013 na
Revista Geni14, que se apresenta como “uma revista virtual independente sobre gênero,
sexualidade e temas afins”. O segundo texto, Deixando o X para trás na linguagem neutra de
gênero (doravante Texto 2), é assinado por Juno e foi publicado em agosto de 2013, com
atualizações em setembro e novembro de 2014, no blog Batatinhas15, que se apresenta como
“Perspectivas trans fora da binária”.
14
Disponível em: <http://revistageni.org/>. Acesso em: 25 fev. 2016.
15
Disponível em: <https://naobinario.wordpress.com/>. Acesso em: 25 fev. 2016.
80
SD10:
Um dos muitos debates que temos na Geni, desde que começamos a pensar na revista, lá em fevereiro
deste ano, é o do uso da linguagem. Não poderia ser diferente: a maior parte do nosso conteúdo é em
texto escrito, e todo ele, em português. A pergunta que nos fazemos é: como lutar contra todas as
opressões utilizando uma língua que carrega nela mesma as marcas da opressão, em particular a do
binarismo de gênero?
Linguisticamente, a questão é cabeluda, e, não sendo linguista, não vou me meter nela. Uma ideia que
parece recorrente e bem aceita no debate científico é a de que o português não se divide entre os gêneros
masculino e feminino, mas sim entre a ausência de marcação de gênero (uma espécie de neutro, que
coincide com o que chamamos de masculino) e a marcação de gênero propriamente dita (o que
chamamos de feminino). [...]
Politicamente falando, a palavra “neutro” dá arrepios em qualquer pessoa que não a use a seu favor.
Atribui-se ao arcebispo sul-africano Desmond Tutu uma frase que me parece certeira: “Se você é neutrx
em situações de injustiça, você escolhe o lado dx opressorx”. A confusão que faço entre o “neutro”
linguístico e o “neutro” político é proposital, porque os dois se confundem mesmo. A linguística, como
ramo da moderna ciência de matriz europeia, geralmente pressupõe uma neutralidade da observação que
a gente precisa questionar, sobretudo porque o neutro costuma coincidir, não por acaso, com o
masculino (e branco, e heterossexual, e burguês etc.). (VISNADI, 2013)
Nesta sequência, o discurso sobre língua difere daquele apresentado no Manual: se lá,
sexista era apenas o uso que se podia fazer da língua, na SD10 se manifesta o posicionamento
de que a língua carrega por si só as marcas de opressão. É assim que se instaura um conflito
entre o que se quer fazer com a língua (textos que não oprimam) e o que a língua em sua
autonomia relativa permite (concordância binária de gênero). Esse conflito é pontuado por
resistência, já que, ainda que se reconheçam os argumentos teóricos que pautam esse
binarismo, eles são contestados com base no questionamento à neutralidade: de que
neutralidade estamos falando? A quem serve essa neutralidade? A posição marcada aqui é a
de contestação: na sequência da explicação da regra gramatical, que apresenta uma distinção
entre a ausência da marcação de gênero e a “marcação de gênero propriamente dita”, a própria
regra já é contestada pela escrita em “Se você é neutrx em situações de injustiça, você escolhe
o lado dx opressorx”. O uso do x, nesta SD, marca que já foi assumido um lado: se o “o” é
neutro – linguístico e político – e se a neutralidade é a opção pela opressão, o x seria a opção
pelo oprimido. Não se aceita a neutralidade, e se é na língua que ela se marca, é também na
língua que ela será combatida, mesmo que isso custe a quebra de regras básicas do sistema
gramatical.
Nesse sentido, gostaríamos de problematizar a relação que Pêcheux ([1975] 2009)
apresenta entre língua e formação discursiva: para o autor, como já vimos no capítulo 1, o
sistema da língua é o mesmo, o que muda o sentido das palavras e expressões é a formação
81
SD11:
Graficamente, a substituição da arroba pelo xis tem muita razão de ser. O símbolo da arroba, composto
de um A e um O (ou seja, as duas marcas mais evidentes de designação de gênero em português), ainda
é binário – e, diz a Lia Urbini, flagrantemente machista, pois o O envolve o A.
Já o xis é praticamente uma rasura, uma negação explícita desse binarismo machista. Ele causa um baita
estranhamento, dificulta, trava a leitura. E é justamente essa a intenção! Interromper o automatismo do
nosso olhar, mexer na zona de conforto é um jeito de chamar a atenção para relações de violência que
passam despercebidas, que são legitimadas sob a carapuça da naturalidade – ou da neutralidade.
(VISNADI, 2013).
escrita, anuncia a permanência de uma abertura: aqui, nesta posição do discurso militante, não
se fecha com a neutralidade, mas com o questionamento e a transgressão.
O texto é seguido por pouco mais de uma dezena de comentários de internautas, dos
quais recortamos as SDs seguintes:
SD12:
A questão que se coloca é: ao aplicarmos o X não estamos, mais uma vez, suprimindo o feminino? E se
colocarmos no feminino todas as palavras?
Outra questão é: na comunicação oral: tanto o X quanto o @ são impronunciáveis. Como fica?
No mais, nenhum sujeito é neutro, portanto, acredito que a utilização dos artigos no feminino ainda é o
melhor caminho.
SD13:
nao concordo em colocar tudo no feminino, porque entaoexcluimos o masculino. sem falar que o xis,
como esta dito no artigo, vem pra causar incomodo e quebrar o binarismo. nao acho que afasta ninguem
da causa feminista nao. sou feminista recente e estou me acostumando com o xis.
que deve combater? O discurso sobre língua identificado no Manual se repete na SD12,
caminhando no mesmo sentido de reprovação às transgressões morfológicas e não
problematização de gênero: existem mulheres e homens, e todas e todos devem e podem ser
representadas e representados por uma linguagem não sexista, visto que a língua em sua
sistematização atual disponibiliza flexões de gênero suficientes e necessárias para essa
representação. A SD13, pelo contrário, aponta para uma problematização de gênero que é
silenciada pela flexão de gênero tradicional: existem possibilidades não binárias de gênero
que não encontram representação numa flexão binária.
Nesse ponto poderíamos tender a identificar, de forma quase polarizada, no discurso
institucional sobre língua um alinhamento aos saberes do feminismo bem comportado (que
até permite a inclusão feminina, desde que não transgrida as bases do sistema vigente) e no
discurso militante um alinhamento aos saberes do feminismo mal comportado (que não se
limita a incluir as demandas femininas no sistema, mas a reconstruir esse próprio sistema),
com base no posicionamento frente ao (não) binarismo da língua e, por consequência, da
identidade de gênero. No entanto, as seguintes sequências, recortadas do Texto 2 e de seus
comentários, nos sugerem que a delimitação não é tão simples. Antes de apresentarmos as que
tratam especificamente sobre língua, apresentamos as que teorizam sobre gênero e não
binarismo, conforme segue:
SD 14:
os gêneros das pessoas não-binárias costumam ser muito mais difíceis de explicar às pessoas, de forma
que “não ser”, “ser nenhum dos dois”, ou ser qualquer um deles de forma não-normativa (bigênera,
multigênera, pangênera, etc) será algo encarado como uma invenção, uma tolice, etc, porque estas
experiências são apagadas, e estão sempre na margem. É certamente mais complicado explicar a alguém
que você não é nem homem, nem mulher do que explicar que você é homem ou mulher, apesar de não
assim terem te designado no nascimento.
Estas dificuldades demonstram no geral como o sistema está orientado no sentido de preservar uma
estrutura rígida, de dois gêneros. Todas as práticas que retornam a estas afirmações são dificuldades
encaradas porque organizamos o mundo ao redor destas duas categorias.
Por todos esses motivos, é importante perceber que construções neutras de gênero são importantes para
tornar o mundo mais vivível às pessoas trans* não-binárias, e que elas ocupam um local importante
nesta discussão sobre neutralidade e sobre o uso da linguagem demarcada. Em nossos cotidianos, as
marcações de gênero e as tentativas de torná-las neutras ou melhores frequentemente falham nesse
quesito específico, como em “todas e todos”, “homens e mulheres”, “senhoras e senhores”, “masculino
e feminino”, “todos/as”, “srs(as)” etc. (JUNO, 2013).
SD15:
Utilize generosamente termos neutros como “pessoa”, “indivíduo”, etc. para retirar o gênero marcado
diretamente. Coloquialmente, qualquer palavra serve.
Ela partiu > A pessoa partiu / essa pessoa partiu
A casa dela > A casa da pessoa
Todas as presentes> Todas as pessoas presentes
Quantas temos aqui? >Quantas pessoas temos aqui?
[...]
Minha irmã > A pessoa minha irmã
Tua irmã > A pessoa sua irmã / A pessoa que é sua irmã
Nossa irmã > A pessoa nossa irmã
(Nota: O português provavelmente não oferece uma forma melhor de fazer isso com palavras como a
acima. O que podemos fazer é literalmente sugerir a desgenerificação ao propor que “irmã” se refere
a “pessoa”. Como a construção não é usual, ela já impõe um motivo.)
Aquelas que ganharam estão liberadas para ir > Quem ganhou pode ir / Aquelas pessoas que ganharam
estão liberadas para ir. (JUNO, 2013).
SD16:
Eu gosto muito do hábito que vem se disseminando entre alguns círculos do uso do “e” (do exemplo
que vc deu, de “linde”), pq ele é fácil, substitui uma terminação numa estrutura que já existe, e não
precisa de nenhum artíficio, rodeio ou pensamento mais elaborado para aplicar. Quero dizer, nada fica
mais difícil de dizer com ele, é só substituir sempre e falar da mesma maneira. Mas concordo que a
coisa não é nada simples, que precisa partir de nós mesmes e que SEMPRE vai gerar estranhamento.
85
SD17:
Preocupo-me bastante com essa questão, mas ainda é difícil ver soluções. Quanto ao uso do X,
concordo com seus argumentos para não usá-lo, mas não concordo com as soluções alternativas. Vez ou
outra funcionam, mas todas elas buscam contornar a língua, assim como o X. O resultado é que o texto
pode ficar empobrecido, cheio de repetições de pronomes, sacrificando legibilidade ou fluidez para que
o texto não se torne sexista ou binário. Se todos os textos não-sexistas acabarem caindo em qualidade
por conta disso, vejo essas medidas como um atraso. A língua muda constantemente e naturalmente,
mas quando aplicamos novas regras nós mesmos, o nosso uso da língua pode se tornar hermético e as
mudanças serão no máximo provisórias e condicionais.
palavras só significam porque ativam a memória discursiva, mobilizando o que lhes é possível
vir a significar.
Orlandi propõe que o autor é “função da forma-sujeito e dos modos de individuação
sócio-historicamente determinados” (ORLANDI, 1996, p. 73), duplamente determinado pelo
Outro e pelo outro (retomaremos essa dupla determinação quando tratarmos da autoria pela
concepção de Gallo, que se vale da distinção estabelecida por Authier-Revuz). Além disso,
Orlandi (1993) afirma que o sujeito está inscrito no texto que produz: os diferentes modos de
inscrição atestariam diferentes funções enunciativo-discursivas. É proposta uma distinção
hierárquica entre as funções de locutor, enunciador e autor, postulando que é nesta última que
o sujeito falante se encontra mais afetado pelo contato com o social e suas coerções. A autora
afirma ainda que “o autor é a instância em que haveria maior ‘apagamento’ do sujeito”
(ORLANDI, 1993, p. 78), instância na qual se deve corresponder a um modo de dizer
institucionalizado, padronizado. É por causa dessa exigência que a autoria pode ser vista
também como uma forma de controle social sobre a relação do sujeito com a língua.
Gallo (2008), reconhecendo a Análise do Discurso como uma proposta de
interpretação, parte do pressuposto de que o outro é parte constitutiva do dizer. A partir da
leitura de Authier-Revuz (1982), Gallo (2001) distingue a heterogeneidade constitutiva
(relacionada ao Outro e ao esquecimento nº1) da heterogeneidade mostrada (relacionada ao
outro e ao esquecimento nº2), que pode ser marcada ou não marcada. Gallo (2001) traz como
exemplo de heterogeneidade marcada as glosas enunciativas, e de não marcadas as ironias e
imitações. Essa distinção diz respeito à heterogeneidade enunciativa; o que Gallo (2001)
propõe é que se trabalhe com uma heterogeneidade discursiva. Isso nos interessa
especialmente porque é a partir dessa distinção que a autora desenvolverá suas reflexões a
respeito da autoria.
Para a autora, a heterogeneidade discursiva seria permanente e não denegada, já que o
sujeito contaria com ela para fazer sentido, para se identificar e para conferir unidade e limites
ao seu discurso. Nesse sentido, Gallo (2001) relaciona a função-autor à heterogeneidade
enunciativa e propõe uma nova noção para ser pensada em relação à heterogeneidade
discursiva: o efeito-autor. Para Gallo (2001, p. 67), este é o “efeito do confronto de formações
discursivas, cuja resultante é uma nova formação dominante”. Ele é pensado em relação à
heterogeneidade discursiva porque é ela que permite que diferentes formações discursivas se
confrontem, possibilitando que desse confronto surja um novo sentido, o que caracterizaria o
efeito-autor, “verificável em alguns acontecimentos discursivos, mas não em todos” (GALLO,
2001, p. 69). Quanto à possibilidade de produção do efeito-autor, Gallo(2001) propõe chamá-
87
diferentemente conforme o lugar social de quem fala. O que importa quanto ao nome de autor
é que “tal nome permite reagrupar um certo número de textos, delimitá-los, deles excluir
alguns, opô-los a outros.” (FOUCAULT, 2009, p. 45), repercutindo tanto sobre a leitura
quanto sobre a legitimidade do texto, recortando-o, caracterizando-o, apontando suas
possibilidades. É assim que uma lei sancionada pela presidenta ou uma cartilha publicada por
uma Secretaria de Estado gozarão de uma legitimidade de que um texto postado num blog de
militância não goza. Nesse sentido, mesmo a gramática parece figurar como um nome de
autor, ao redor do qual se concentram saberes sobre a língua que são legitimados pelo simples
fato de serem gramaticais – como vimos com Auroux (1992) sobre a circularidade que se
estabelece no processo de gramatização. Seriam esses documentos institucionalizados,
legitimados, dotados de função-autor, se adotamos a perspectiva de Foucault, para quem esta
função não se exerce em todos os textos.
Quanto aos textos oriundos da militância on-line, estes parecem ser dotados de uma
função-autor se assumimos a perspectiva de Orlandi (1996), já que, ainda que não detendo
tanta legitimidade quanto um texto institucional, são interpretáveis e inscritos no
interdiscurso. Mais do que isso, as propostas da militância no que se refere a uma língua que
inclua e represente pessoas não binárias pode ser lida como um modo de autoria não apenas
sobre o texto, mas também sobre o próprio sistema da língua, seja pela morfologia, seja pela
sintaxe. Se temos uma função-autor socialmente legitimada consagrando a língua em
gramáticas e manuais, existe uma em confronto, dotada de menos legitimidade mas tão
presente quanto, pleiteando uma língua que contemple a diversidade para além do binarismo
gramatical. Isso não significa, no entanto, que se chegue a um efeito-autor, já que, embora os
sujeitos envolvidos no debate detenham maior ou menor legitimidade, ainda estamos lidando
com saberes circunscritos numa mesma formação discursiva, a feminista. Não há um
confronto que leve a uma nova formação dominante. Pelo contrário: podemos até pensar, em
paralelo com Pinto (2003), que exista uma posição de sujeito alinhada ao feminismo bem
comportado, que, legitimada pelo Estado enquanto nome de autor, exerce uma dominância
sobre as posições alinhadas a um feminismo mal comportado, que pleiteia mudanças
estruturais.
É assim que, no discurso institucional, a curta problematização a respeito da
identidade de gênero é silenciada pelo reforço linguístico do binarismo mulheres-homens. A
língua em si não é identificada como machista, basta que saibamos usá-la, manipulando as
possibilidades que ela apresenta. A língua é em parte dominante (pois suas estruturas devem
ser respeitadas) e em parte dominada (pois seu uso pode ser modificado para atender a certos
89
propósitos). No entanto, exemplos deste uso são marcados pela contradição, como analisamos
pelo cotejamento entre as SDs que instruem a uma linguagem inclusiva e as SDs que reforçam
modos subordinantes (como o recurso aos parênteses para a vogal de desinência de gênero
feminina) de se referir às mulheres. Nessa contradição, identificamos o furo da língua, o
escape, o não sistematizável. Delineamos, assim, pelo menos duas posições neste discurso,
que chamaremos de Institucional Binária (PS-IB) e Institucional Não Binária (PS-INB),
diferenciadas pelo tratamento do gênero.
No discurso militante, o não binarismo de gênero aparece como pré-construído, e
parece haver consenso quanto ao papel da língua (seja ela referida como não binária ou
neutra) de fugir do binarismo ao se referiràs pessoas. No entanto, cada posição aponta para
uma sugestão diferente, todas elas refutadas por posições contrárias. Delineando que o
discurso militante sobre língua se agita em torno do não binarismo e que a heterogeneidade se
manifesta quanto às diferentes possibilidades de atingi-lo, propomos que neste discurso
tenhamos duas posições principais: vamos chamá-las de Militante de Transgressão
Morfológica (PS-MTM) e Militante de Transgressão Sintática (PS-MTS).
Ainda que os discursos aqui analisados apresentem significativas diferenças entre si,
não os localizamos em diferentes formações discursivas, visto que todos compartilham de
saberes feministas; as divergências podem ser explicadas pelas singularidades características
do próprio feminismo, conforme visto no capítulo 1. Assim, trata-se de posições-sujeito mais
ou menos identificadas com dados saberes da formação discursiva que aqui denominaremos
de feminista, conforme a figura abaixo:
90
Figura 3 – Delimitações
manutenção das regras sintáticas e morfológicas, transgride apenas dentro dos limites da
sintaxe, de modo que sua contestação ao binarismo de gênero só pode ser percebida no
conjunto da frase, contrariamente à PS-MTM, que a marca em cada substantivo.
A PS-INB, representada pelo círculo azul, aparece muito brevemente na análise, mas
não pode deixar de ser citada: é a posição que, dentro do discurso institucional, reconhece a
existência do não binarismo de gênero, mas não o articula à língua, mantendo as regras
sintáticas e morfológicas e as formas binárias.
A PS-IB, representada pelo círculo verde, é a que melhor representa o discurso
institucional. Embora impulsionada por uma proposta de linguagem inclusiva, não se afasta
do binarismo de gênero, propondo uma língua que inclua homens e mulheres – apenas.
Marcada por contradição, essa posição oscila entre uma proposta de transgressão das regras
sintáticas no momento em que teoriza sobre a linguagem inclusiva e a manutenção das
mesmas regras no fluir da escrita. Desse modo, disfarçada por uma intenção de inclusão,
reproduz os saberes tradicionais de binarismo de gênero e subordinação feminina.
Delineadas essas quatro posições, identificamos, com base em Indursky (2008), um
acontecimento enunciativo a partir das posições de sujeito identificadas como militantes, visto
que inserem na formação discursiva feminista saberes que não se contentam com a inclusão
da mulher (ao contrário, por exemplo, da PS-IB), postulando o não binarismo. Esse
acontecimento problematiza a relação que Pêcheux ([1975] 2009) pontua a respeito da língua
(como sistema relativamente autônomo) com a formação discursiva (como lugar de onde as
palavras recebem seu sentido). A análise nos permite considerar que exista pelo menos uma
posição de sujeito (PS-MTM) que contraria essa relação, criando uma língua rasurada pela
história, que sinaliza seu sentido e seu pertencimento ideológico na própria superfície
linguística, por meio da vogal (ou consoante) de (não) desinência de gênero, e questionando a
autonomia do sistema linguístico. Desse modo, a emergência de novos discursos sobre língua
e gênero causaria a emergência de novas formas linguísticas (provisórias ou não), que, por sua
vez, agiriam na reorganização dos saberes e posições dentro da formação discursiva na qual se
inscrevem.
PAPAS NA LÍNGUA
O trajeto teórico e analítico que percorremos até aqui, não tendo como objetivo chegar
a uma conclusão ou a uma resposta a respeito dos discursos sobre língua e gênero, permitiu
que pensássemos a relação conflituosa que se estabelece entre esses dois elementos. Desse
modo, retomamos algumas questões apresentadas ao longo do trabalho para articulá-las aos
resultados da análise.
A língua gramaticalizada serviria ainda hoje como modo de marcação de autoridade?
A análise das sequências discursivas aponta para a constante presença dessa língua: seus
saberes e normatizações, presentes como pré-construído, acionados pela memória discursiva,
são apresentados como uma realidade que ora é contestada, ora é obedecida, mas sempre uma
realidade. E, como realidade, poderia ser modificada a depender das ações e intenções dos
sujeitos. Assim, nos recortes analisados, identificamos sobretudo um enfrentamento contra
essa suposta autoridade, num ensaio de agenciamento dos sujeitos sobre uma língua que
deveria obedecê-los, e não o contrário.
Essa ilusão de agenciamento cai por terra quando pensada junto à interpelação
ideológica: se é possível tentar afrontar a autoridade da língua, o mesmo não ocorre quanto à
ideologia. O sujeito que se depara com uma proposta de alteração linguística, não podendo se
situar fora de sua formação discursiva, parece esbarrar sempre nesse funcionamento: não
escrevemos como/o que conscientemente queremos escrever, mas como/o que a ideologia nos
interpela a escrever. Em nosso corpus, esse funcionamento foi marcado principalmente nas
sequências discursivas onde identificamos contradição: onde existe um esforço, uma
resistência para evitar linguisticamente as marcas de subordinação feminina, existe também a
interpelação de uma ideologia dominante, da qual não se consegue escapar substituindo
estruturas morfológicas ou sintáticas.
Se o próprio da formação discursiva é delinear o que pode e deve ser dito dentro do
seu domínio de saberes, o acontecimento enunciativo de um novo modo de expressão (seja
escrita, seja falada), que confira destaque linguístico a grupos até então invisibilizados
(mulheres e/ou pessoas não binárias, a depender da posição de sujeito) propõe que se
considere um delineamento diferente: não apenas o que pode e deve ser dito, mas também
como pode e deve ser dito. Nesse sentido, embora o debate seja marcado por pluralidade de
93
saberes e, segundo nossa análise, conte com pelo menos quatro diferentes posições de sujeito,
pensamos que, numa formação discursiva feminista, o como se pode e deve dizer tem se
firmado como um saber que circula lado a lado com aquilo que se pode e se deve dizer.
Independentemente dos pré-construídos que são mobilizados em cada perspectiva
sobre a língua (seja como linguagem inclusiva, seja como língua não binária), entendemos
que o debate é de tamanha pertinência que tem sua importância reconhecida mesmo nas
esferas mais rígidas. No momento em que é sancionada uma Lei Federal que determina a
concordância de gênero na emissão de diplomas, no momento em que uma Secretaria de
Estado assume para si a tarefa de ensinar, normatizar e popularizar uma linguagem inclusiva,
estamos diante de políticas que reconhecem a função social de a equidade de gênero ser
manifestada e pleiteada em todos os níveis possíveis – ou pelo menos naqueles que são
possíveis, afinal, como apresentamos no capítulo 1, ainda temos direitos significativos
negligenciados.
Concordando com Pêcheux (1980) em sua afirmação de que uma certa maneira de
tratar os textos está imbricada em uma certa maneira de fazer política, ousamos parafraseá-lo
para afirmar que isso é verdade também no que se refere a uma certa maneira de tratar a
língua. O fazer político que se imbrica a propostas de linguagem inclusiva, se não dá conta da
diversidade de gênero apontada pela militância, ao menos sinaliza um justo reconhecimento
da existência e da representatividade feminina.
Quanto ao saber metalinguístico implicado nas discussões sobre gênero, a análise das
SDs nos permite afirmar que os sujeitos reconhecem as estruturas sintáticas e morfológicas da
língua, e é isso que permite questioná-las e problematizá-las. O saber metalinguístico, no
debate sobre gênero, é ao mesmo tempo a base e o objeto. Como pré-construído, funciona
legitimando posicionamentos diversos: “sabe-se que” a letra “x” como substituta da vogal de
desinência de gênero não é pronunciável; por outro lado, “sabe-se que” essa forma de grafia
causa um estranhamento que interrompe o automatismo da leitura. Desse modo, os saberes
sobre língua se marcam de forma conflituosa, com cada posição-sujeito defendendo aquilo
que, para si, aparece como verdade sobre a língua: permanente ou modificável, submissa ou
dominadora, ferramenta ou reflexo…
O que identificamos de regular nos dizeres das diferentes posições de sujeito é que a
língua, nesse debate, figura como uma representação do mundo. Assim, novas realidades
exigiriam novas formas de dizer: é o caso, por exemplo, da mídia oficial do governo federal
ao adotar a forma “presidenta” e das leis e manuais que, como discurso institucional,
normatizam a linguagem inclusiva. Se é assim que se propõe escrever na redação oficial, é
94
que quanto a ela não há fechamento, também não tentamos fechar nossa reflexão: contamos
que as inquietações aqui abordadas sigam ressoando em seus característicos movimentos de
constante tensão e enfrentamento, produzindo efeitos que não cessem de questionar os
sentidos supostamente estabilizados.
96
REFERÊNCIAS
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dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera
o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras
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