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ANO 2017
www.revistasisifo.com
Revista Sísifo – vol. 1, nº 6. Novembro. Ano 2017 - www.revistasisifo.com
CORPO EDITORIAL
Yves São Paulo (Editor)
Marcelo Vinicius (Editor)
CONSELHO EDITORIAL
Andreia A. Marin
Bruna Torlay
Denise Kloeckner Sbardelotto
Dinameire Oliveira Carneiro Rios
Eduardo Pellejero
Luciano Donizetti da Silva
Marcos Roberto Nunes Costa
Nildo Viana
Priscila Vieira
Rodrigo Ornelas
Rodrigo Araújo
Tiago Medeiros Araujo
Valdenésio Aduci Mendes
Wanderley C. Oliveira
Sumário
Editorial............................................................................................................................6
ARTIGO
CRÍTICA
Editorial
A proposta desta edição da Revista Sísifo, ao discutir o trabalho de mulheres que
fizeram filosofia, é propiciar a divulgação de uma história de esquecimento. As
mulheres, apesar da presença na filosofia em toda sua larga tradição e da qualidade das
suas produções, ficaram na marginalidade do Panteão filosófico. Mulheres que, embora
ocupassem essa posição incômoda dentro da filosofia, nunca deixaram de questionar a
configuração tradicional do verbo pensar – estruturado por uma razão patriarcal.
O silêncio que se tenta impor sobre estas autoras hoje é o mesmo que já se havia
imposto sobre suas antecessoras, um silêncio contra a igualdade. O silenciamento como
função de sustentação política do poder opressor funciona em duas vias: 1) via do
esquecimento dessas vozes; e 2) via de sufocamento da criação e manutenção de vozes
atuais. Silenciar estas autoras é uma atitude que infringe diretamente a possibilidade da
diversidade de pontos de vistas na filosofia e, por conseguinte, a multiplicidade de
conhecimentos possíveis daí resultantes. Essa história de esquecimento que contamos
nesse dossiê não diverge da tentativa de sufocamento das pesquisas na área de gênero,
nem mesmo da violência que as pesquisas nesse campo de conhecimento vêm sofrendo
recentemente no Brasil.
Apesar de a maioria das autoras de base para os escritos aqui presentes ser estrangeiras,
há um impacto em se importar este pensamento e inseri-lo numa realidade brasileira.
Assistimos atualmente no Brasil um processo violento de depreciação da produção
teórica sobre gênero. Esse processo, que se concretiza na tentativa de censura da
discussão sobre gênero no ensino médio, na censura a produção artística, em ofensas e
demonstrações públicas de ódio contra mulheres que se dedicam aos estudos de gênero.
Atentos à violência que permeia esses atos, gostaríamos que esse dossiê, ainda que de
maneira tímida, seja um ato de reafirmação da liberdade de pensamento e da resistência
contra esse brutal retrocesso ao conservadorismo que nos avizinha.
Consideramos que pesquisas não podem ser censuradas ao gosto de quem delas
discorda. Essa tentativa de silenciamento às pesquisas de gênero – produzidas, em
grande media por mulheres – que presenciamos em tempos recentes em território
nacional parece reforçar que a filosofia não é lugar para elas. Mais uma vez, as
mulheres escrevem, mas não podem mostrar o que produzem publicamente. Para uma
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mulher hoje no Brasil, escrever e refletir sobre sua própria condição é um ato de
coragem.
É preciso fazer a produção das mulheres na filosofia ressoar para além, inclusive, do
debate sobre gênero que vem crescendo atualmente dentro da filosofia, e fazer alcançar
patamar semelhante à dos homens em todos os campos da filosofia. O dossiê aparece
num momento crítico da democracia brasileira, contudo, um tempo que necessita mais
fortemente dessas iniciativas de coragem intelectual. Por isso, deixamos nosso profundo
apoio aos pesquisadorxs brasileirxs no campo de estudo de gênero, bem como
agradecemos à todxs os autores que contribuíram para a constituição deste dossiê e à
contribuição de Luma Flôres e Patrícia Martins, cujos trabalhos ilustram os textos desta
edição.
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mas encontram sua explicação por meio de uma suposta classificação biológica natural
em termos científicos entre povos (QUIJANO, 1991. P. 438). Essa divisão serviu tanto
para justificar os processos de invasão, escravidão, exploração e assassinato de
populações nos processos de colonização, como serve até hoje para os mecanismos de
exploração do capitalismo global. Quijano considera que esse mapa geocultural de
identidades sociais permeia todas as relações, constituindo-se em um mecanismo
eficiente de dominação social, material e intersubjetiva no atual sistema de poder
eurocêntrico capitalista global de caráter mais amplo e que se estende até hoje chamada
por Quijano de colonialidade3.
3 Para Quijano ―colonialismo‖ designa o processo histórico concreto de colonização dos territórios,
subvertido na América Latina no século XIX (em sua maior parte) e na África, no século XX. Por
―colonialidade‖ Quijano entende o processo mais amplo que se estende do evento concreto da invasão e
ocupação dos territórios colonizados, gerando consequências na organização das relações sociais hoje.
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Lugones pondera que a teoria dos eixos estruturais de Quijano não aborda o
gênero efetivamente. Para Lugones, no modelo de Quijano, o gênero aparece como
constituído e constitutivo da colonialidade do poder, logo, definido em consonância
com raça e sua conformação política. Porém, para a autora, a compreensão da
colonialidade do poder e seus eixos estruturais não é suficiente para caracterizar de
forma eficiente a complexidade do debate sobre gênero. Lugones aponta que o gênero
aparece para o modelo de Quijano como parte das áreas básicas da existência definida
pelo autor como o ―sexo, seus recursos e produtos‖. Lugones, citando Quijano, localiza
onde esses processos aparecem no pensamento do autor;
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Quijano, para Lugones, trata o gênero como um elemento derivado do debate mais
amplo sobre raça que o autor realiza. O gênero aparece como parte do gerenciamento e
da dominação da sexualidade e dos recursos dela decorrentes, pelo colonizador e usada
em favor dos seus interesses. O gênero/sexo se definem através da disputa de poderes
para controle desse que é um recurso significativo da existência. Lugones considera que
Quijano nos expõe um cenário em que a disputa pelo controle do sexo é uma disputa
entre homens pelo domínio da sexualidade da mulher. A masculinidade não é pensada
como também um recurso sexual, nem a mulher é pensada como sujeito na disputando
dos recursos sexuais. Para Lugones, o sexo é também compreendido por Quijano como
um atributo biológico que passa a ser elaborado como categoria social através de como
esse recurso é utilizado pelo colonizador. Assim, a teoria de Quijano aceita uma série de
pressupostos não problematizados pelo autor que definem o gênero/sexualidade através
do dimorfismo sexual, da heterossexualidade e da dominação masculina dos poderes.
Disso resulta, para Lugones, um ponto de vista excessivamente biologizante e uma
4 He [Quijano] characterizes the ―coloniality of gender relations,‖ that is, the ordering of gender relations
around the axis of the coloniality of power, as follows: 1. In the whole of the colonial world, the norms
and formal ideal patterns of sexual behavior of the genders and consequently the patterns of familial
organization of ―Europeans‖ were directly founded on the ―racial‖ classification: the sexual freedom of
males and the fidelity of women were, in the whole of the Eurocentered world, the counterpart of the
free—that is, not paid as in prostitution—access of white men to ―black‖ women and ―indians‖ in
America, ―black‖ women in Africa, and other ―colors‖ in the rest of the subjected world. 2. In Europe,
instead, it was the prostitution of women that was the counterpart of the bourgeois family pattern. 3.
Familial unity and integration, imposed as the axes of the model of the bourgeois family in the
Eurocentered world, were the counterpart of the continued disintegration of the parent-children units in
the ―nonwhite‖ ―races,‖ which could be held and distributed as property not just as merchandise but as
―animals.‖ This was particularly the case among ―black‖ slaves, since this form of domination over them
was more explicit, immediate, and prolonged. 4. The hypocrisy characteristically underlying the norms
and formal-ideal values of the bourgeois family are not, since then, alien to the coloniality of power.
(LUGONES 2017. P. 193/194)
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Lugones aponta que o gênero, muito mais do que um fator biológico definidor que
se impõe como um dado, se delineia através de discursos que definem categorialmente o
que é cada um dos sexos. Esses discursos são anteriores à definição biológica e a
legitima. Lugones considera que o discurso que proporciona uma separação dicotômica
entre homem e mulher como uma diferença natural é fruto da ciência moderna.
Recorrendo a uma série de estudos antropológicos, Lugones nos mostra como a divisão
binária entre gêneros e a heterossexualidade como regra ou norma é um fenômeno
moderno localizado.
5 Oyewùmí, Oyéronké. 1997. The invention of women: Making an African sense of Western gender
discourses. Minneapolis: University of Minnesota Press.
6 Allen, Paula Gunn. 1986/1992. The sacred hoop: Recovering the feminine in American Indian
traditions. Boston: Beacon Press.
7
Lugones aponta que segundo os estudos deOyewùmí, existiu uma dificuldade de pesquisas em
compreender complexo sistema de gênero da sociedade Yorubá. As palavras ‗okurin‖ e ―obirin‖ foram
traduzidas respectivamente por homem e mulher. Porém, segundo Oyewùmí, os prefixos ―obin‖ e ―okun‖
especificam duas variedades anatômicas, mas não dois gêneros circunscritos a essas anatomias. Oyewùmí
sugere a tradução ―anamasculino‖ (anamale) e ―anafeminino‖ (anafemale). A autora considera que
traduzir essas palavras como homem e mulher significa apagar o sistema de gênero desses sujeitos e
impor o sistema de gênero do colonizador.
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8The gender system has a light and a dark side. The light side constructs gender and gender
relationshegemonically, ordering only the lives of white bourgeois men and women and constituting the
modern/colonial meaning of men and women. Sexual purity and passivity are crucial characteristics of the
white bourgeois females who reproduce the class and the colonial and racial standing of bourgeois, white
men. But equally important is the banning of white bourgeois women from the sphere of collective
authority, from the production of knowledge, from most control over the means of production. (...)The
dark side of the gender system was and is thoroughly violent. We have begun to see the deep reductions
of anamales, anafemales, and ―third gender‖ people from their ubiquitous participation in rituals, decision
making, and economics; their reduction to animality, to forced sex with white colonizers, to such deep
labor exploitation that often people died working. (LUGONES 2007. P. 206)
9 The semantic consequence of the coloniality of gender is that ‗‗colonized woman‘ is an empty
category: no women are colonized; no colonized females are women‖ (LUGONES 2010. P. 745)
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10 What I am proposing in working toward a decolonial feminism is to learn about each other as
resisters to the coloniality of gender at the colonial difference, without necessarly being an insider to the
worlds of meaning from which resistance to the coloniality arises. That is, the decolonial feminist‘s task
begins by her seeing the colonial difference, emphatically resisting her epistemological habit of erasing it.
Seeing it, she sees the world anew, and then she requires herself to drop her enchantment with ‗‗woman,‘‘
the universal, and begins to learn about other resisters at the colonial difference. (LUGONES, 2010. P.
753)
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
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Resumo: Neste artigo temos como objetivo mostrar um pouco da filosofia de Simone Weil
(1909-1943), buscando reflexões sobre a sua mística que se apresenta revestida profundamente
pela ação e não só pela contemplação. Para tanto, dividimos o texto em três momentos: Percurso
existencial; A experiência na fábrica e o malheur; e A mística -ação e contemplação. No
primeiro momento apresentamos um pouco da vida da filósofa francesa, entendo que sua
filosofia é um reflexo da sua vida. Na segunda parte, sem deixar de lado a vida, apresentamos a
experiência da fábrica e com ela um conceito fundamental na sua filosofia, o de malheur.
Enfim, no terceiro, refletimos sobre a questão da mística no seu pensamento, procurando
relacionar as categorias da ação e da contemplação.
Introdução
Ler os Escritos de Simone Weil (1909-1943) é como receber uma luz quando
se está na escuridão: por um lado, ilumina lugares que não poderiam ser vistos na falta
dela; por outro, temos a sensação incômoda de sermos atingidos por uma luz muito
forte, como o prisioneiro da Alegoria da caverna13, capaz de abalar as nossas certezas.
Neste sentido, não conseguimos ver as ideias dessa filósofa francesa sem algum tipo de
perturbação14. Também, como afirma Pérez: ―A atração e o fascínio que ela costuma
despertar se unem, em alguns casos, a uma negação ou indignação. É um personagem
que não costuma deixar ninguém indiferente e que se torna incômoda por seu
inconformismo e radicalidade‖ (PÉREZ, 2009, p. 76). Desta forma, concordemos ou
não com o que ela nos apresenta, sua filosofia é por demais inquietante, não nos
deixando indiferentes ao seu tom provocativo e sem concessões15.
11
Este artigo é fruto do projeto de pesquisa PIBIC/UEPB, cota 2017-2018
12
Doutora em Filosofia pela Universidade de Coimbra, Professora Efetiva da Graduação em
Filosofia da UEPB e Professora Colaboradora da Pós-Graduação em Filosofia da UFPB. E-
mail: mar.simonem@gmail.com
13
Para usarmos a imagem de um filósofo que é por demais caro a Simone Weil. Cf. PLATÃO, A
República, Livro VII, 514a – 518b.
14
Maria Clara Bingemer, uma das maiores estudiosas da filosofia weiliana no Brasil, diz, em
uma das suas muitas falas sobre Simone Weil, que a primeira vez que leu algo dela (o livro A
gravidade e a graça), se sentiu como se um raio a tivesse atingido. Pensamos que a expressão
usada pela professora Maria Clara diz muito sobre os Escritos da filósofa francesa.
15
O estudioso italiano Paolo Farina abre um dos seus textos sobre Simone Weil com a frase
―Uma filósofa sem concessões‖ (FARINA, 2009, p. 337).
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Apesar de o fascínio que sua vida exerce sobre aqueles que tomam
conhecimento dela, façamos, como dissemos acima, uma pequena apresentação da sua
jornada existencial, acreditando, como todos os estudiosos do seu pensamento, que a
sua vida nos ajuda a entender a sua obra.
16
Para a filosofia weiliana no Brasil, veja-se BOSI, 2007, p. 67-74. Da mesma autora, um outro
artigo publicado nos Cahiers Simone Weil, 2005, p. 29-33. Também, PUENTE, 2013.
17
Como escreve Pérez: ―[...] Nela se dá sempre uma clara sintonia entre a experiência e a escrita,
entre pensamento e ação ou entre a vida e a obra. Razão que impede de abordar suas
contribuições de forma exclusivamente sistemática e nos obriga a adentrar em sua vida
para compreender sua obra‖ (PÉREZ, 2009, p. 78, destaque nosso). Neste mesmo
direcionamento escreve Martins: ―Em SimoneWeilhá uma inseparável relação entre vida e
pensamento. Não é possível compreender seus escritos sem conhecer sua trajetória
existencial. Sua busca pela verdade passava por um profundo exercício da razão, do trabalho
intelectual, sobre o qual ela diz ser sua vocação, e pelo reflexo coerente disso em sua vida
prática, isto é, em todas as decisões, atitudes e caminhos que trilhava‖ (MARTINS, 2013, p.
28, destaque nosso).
18
Para algumas dessas críticas cf. Écrits de Londres et dernièreslettres;Écritshistoriques et
politiques; La conditionouvrière;Oppression et liberte;L’enracinement.
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Percurso existencial
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Pétrement foi amiga de Weil e as duas estudaram juntas no Liceu e na Universidade. Para
outras referências biográficas, veja-se NICOLA e DANESE, 2003; FIORI, 2009; e PERRIN e
THIBON, 1953.
20
Simone Weil faz todo um esforço para que os pais não se preocupem com o seu estado de
saúde que não vai nada bem. No entanto, não se pense que nas Cartas que dirige aos pais e ao
irmão André, Simone fale somente de coisas amenas. Continua preocupada com a ocupação
da França pelos nazistas;focada em ajudar algumas pessoas e pede ajuda aos pais; mantém-se
atentaà questão do colonialismo; da opressão proletária; do avanço do nazifacismo e fala do
grupo da resistência francesa que há em Londres e de outros tantos temas que sempre fizeram
parte da sua filosofia. Além disso, orienta os pais sobre a publicação de alguns dos seus textos,
falando de algumas correções que precisam ser feitas ou, no caso da Carta que estamos
citando, vem um P.-S., em que diz: ―Decididamente, não é preciso publicar meus poemas na
América‖ (WEIL, 1957, p. 234 [nossa tradução]) e alega que corrigirá ainda uma ou outra
palavra.
21
Simone só não está com os pais porque embarcou para Inglaterra. Mas antes, quando ainda
estava em Nova York redige uma carta a Maurice Schumann, seu amigo, com quem estudara
no Liceu, que está em Londres, trabalhando com a Resistência, e lhe pede ajuda para ir a
Londres na esperança de entrar na França ocupada e ajudar os franceses. Se sente uma traidora
da França quando vai para Nova York e assim se expressa na Carta de 30 de julho de 1942:
―Me conforta[...], em fazer parte do sofrimento do país. Eu conheço bastante meu tipo
particular de imaginação para saber que a desgraça da França me faria muito mais mal de
longe do que de perto. [...] Além disso, tenho o sentimento que quando embarquei eu cometi
um ato de deserção e eu não posso suportar este pensamento‖ (WEIL, 1957, p. 185 [nossa
tradução]). Em Nova York mesmo ela redige um ―projeto para enfermeiras de primeira linha‖
(que envia a um amigo da família, mas na Carta a Schumann ela já diz que se trata de uma
missão perigosa). A descrição do projeto encontra-se nos seus Écrits de Londres
etdernièreslettres. Segue o que escreve Nicola e Danese sobre isso: ―Sonha vencer o desafio
do totalitarismo não apenas num plano individual, mas com um corpo de mulheres capazes de
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passando pela crítica ao marxismo e aos partidos políticos, isso para não falar do seu
interesse pela matemática e pelas ciências, a paixão pelos gregos antigos, a redação de
poemas e tragédias, as leituras da literatura hindu e budista (e também dos mitos e do
folclore de culturas diferentes da sua) até a experiência mística (não esqueçamos as
duras críticas que fez à igreja católica), e a forma intempestiva com que tratava alguns
dos seus contemporâneos, tudo isso constitui, com todas as suas contradições, a filósofa
Simone Weil22.
partilhar o mesmo ideal. Redige por isso um ―Projeto‖ para enfermeiras de primeira linha, de
quem exigir uma virtude moral ―de um gênero que não se adquire‖, ou seja, com a
disponibilidade sem reservas para morrer. Ela própria freqüenta um curso para enfermeiras no
Harlem com essa finalidade. De Gaulle, depois de ter examinado o ―Projeto para as
enfermeiras‖ que Simone lhe envia, sentencia: ―Essa mulher é maluca‖‖ (NICOLA e
DANESE, 2003, p.89).
22
É bom esclarecermos que Simone Weil tinha uma mente privilegiada. Assim, lê Marx em
alemão; os filósofos gregos e o Novo Testamento, em grego; e o BhavagadGita e os
Upanishads, em sânscrito. Além disso, a sua abertura ao diferente, o que antecipa o tema do
diálogo inter-religioso, fez com que ela se interessasse por gregos, hindus, cristãos e egípcios.
23
―Ousava no método de ensino, pois exigia audácia e originalidade de seus alunos. Sua filosofia
não era caracterizada pela construção de um sistema, mas por um método, e no centro de seu
pensamento tinha a ideia do bem como a ideia suprema, de onde nascem todas as outras, e
aquestão da vontade, que leva em si toda a vida do espírito, pois é na vontade que está o
princípio da moral‖ (MARTINS, 2013, p. 47). Mais adiante nos acrescenta: ―Antes de entrar
no Liceu Henri IV, Simone estudou no Liceu Duruy, onde teve aulas com o professor René Le
Senne. [...] um dos pontos-chaves do pensamento de Le Senne era a questão da contradição, e,
graças ao seu ensino, Simone pôde dar atenção e importância à problemática das contradições,
vendo-as como critério de verificação da falsidade ou da validade de todo real‖ (Idem, p. 49).
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Para os pensadores que influenciaram Simone Weil e também para as suas preferências e
rejeições em relação à história da filosofia, leia-se VETÖ, 2011.
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exames para Filosofia Geral e Lógica. Weil fica em primeiro lugar e Beauvoir em
segundo. Antes disso, um dia Simone de Beauvoir resolve se aproximar de Simone Weil
e assim nos relata o encontro:
25
Farina nos conta um outro episódio, desta feita com Claude Lévi-Strauss: ―[...]Claude Lévi-
Strauss, acusado numa entrevista de antifeminismo, reconhece que com algumas mulheres ele
tem dificuldades: ―[...] como com Simone Weil. Nós éramos estudantes na Sorbonne, juntos.
Ela me irritava. Era impossível. Era sempre totalmente segura de ter razão [...]. Era frágil
fisicamente, mas de certo não intelectualmente! Era belicosa. Uma cerebral pura‖‖ (FARINA,
2009, p. 337).
26
Alguns fatos da sua vida comprovam esta afirmação. Aos cinco anos se torna madrinha de um
soldado e se priva dos doces para mandá-los ao front. É deselegante com Simone de Beauvoir,
como já dissemos, pois considera que esta fala de questões secundárias e esquece as mais
importantes, como a fome. Quando consegue o seu primeiro emprego como professora, doa
parte do seu salário àqueles que têm fome. Apesar do gênio intempestivo, quando vai trabalhar
como operária decide viver do seu soldo, que era por produção, como produzia pouco, mal
dava para se alimentar (poderia pedir aos pais, mas queria sentir na pele os que sentem todos
os que passam fome). Na sua experiência como vindimadora, conforme o testemunho do
proprietário, comia pouco e fazia muitas perguntas. Um dia ele lhe ofereceu um pedaço de
queijo e ela recusou dizendo que havia pessoas passando fome. Cf., biografias e comentadores
já citados.
24
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de forma modesta com o seu salário de professora e que doava todos os meses boa parte
do que recebia para os mais pobres, como já dissemos em nota.
Com vinte e cinco anos, e depois de conseguir uma licença de um ano do seu
trabalho como professora de filosofia, ela consegue, com a ajuda de um amigo, o
emprego na fábrica como operária. Naturalmente que a família e os amigos mais
próximos não concordaram com essa ideia, mas a discordância não foi suficiente para
impedir Simone de fazer a experiência da miséria humana. Em princípio a filósofa
francesa queria fazer a experiência da fábrica para responder algumas questões para as
quais o trabalho apenas de gabinete não oferecia soluções, dentre eles, como achar um
equilíbrio entre a organização de uma sociedade industrial com as condições de trabalho
de um proletariado livre. Mas o ser pensante de Simone se esfacela diante das duras
condições de trabalho, como ela nos relata em La conditionouvrière:
27
Segundo Bingemer citando Pétrement: ―Ela devia pensar que ali onde a reflexão teórica não
encontrava solução, o contato com o objeto poderia sugerir uma. O objeto era a miséria à qual
se tratava de encontrar remédio e solução. Mergulhada ela mesma dentro desta miséria, ela
veria melhor que remédios são apropriados para saná-la. E, depois de tudo, era preciso
conhecer tudo aquilo para poder falar sobre isso‖ (BINGEMER, 2007, p.119).
28
Apesar de mal conseguir pensar, resta-lhe ainda algo, mesmo escrevendo num tom
reticente:―Apenas o sentimento de fraternidade, a indignação diante das injustiças infligidas
25
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Parece quase impossível para Simone Weil realizar o que ela queria na fábrica:
pensar sobre as condições do trabalho. O que resta do ser pensante da nossa filósofa são
apenas farrapos de ideias que lhes vem ao final de semana. Na fábrica o ritmo da
produção é acelerado, como ela nos informa em outro trecho de La conditionouvrière.
Muito rápido, cadenciado e, portanto, mecânico, o que a impedia de pensar. O ritmo do
pensar filosófico, por sua vez, é mais lento e é difícil para alguém da filosofia realizar
um trabalho sem reflexão29. Simone Weil não estava habituada a uma ação mecânica:
além de não conseguir pensar, ela também não consegue dar conta do trabalho exigido.
Como nos relata, o trabalho é por peça produzida (consequentemente o salário) e o
ritmo é muito acelerado e pesado para a nossa filósofa: ―Eu não as consigo ainda
realizar, por muitas razões: a falta de hábito, minha falta de jeito natural, que é
considerável, uma certa lentidão natural nos movimentos, as dores de cabeça e uma
certa mania de pensar, da qual não consigo me livrar‖ (WEIL, 1951, p. 24, [tradução
nossa]). Tudo isso faz com que Simone Weil mal ganhe para comer e pior, tudo isso se
reflete no trabalho (também intelectual) que foi realizar na fábrica. Assim, na décima
sexta semana como operária e num tom de desabafo e desânimo ela escreve: ―Sinto
profundamente a humilhação deste vazio imposto ao pensamento‖ (WEIL, 1951, p. 58,
[tradução nossa]).
Apesar deste vazio e do cansaço, termina sendo no seu trabalho como operária
que Simone Weil, de alguma forma, descobre uma das categorias importantes da sua
filosofia: o conceito de malheur. Esta categoria embora seja traduzida para nossa língua
como infelicidade ou desgraça significa mais do podemos entender por esses termos.
Tem a ver com o sofrimento físico, mas é muito mais do que isso. É um
desenraizamento da vida (é quase uma morte). Alguém só é atingido mesmo por esta
infelicidade quando isso o atinge em todas as partes da sua vida: sociais, psicológicas e
físicas. É preciso que haja degradação social ou a angústia de uma tal degradação (cf.,
aos outros subsistem intactos – mas até que ponto tudo isso resistirá?‖(WEIL, 1951, p. 51,
[tradução nossa]).
29
Para ela o trabalho deve ser criativo: ―A grandeza do homem é sempre recriar sua vida.
Recriar o que lhe é dado. Forjar aquilo mesmo que sofre. Pelo trabalho ele produz sua própria
existência natural‖ (WEIL, 1993, p.201). Logo, para ela, o trabalho sem reflexão, sem poesia,
sem luz, é opressão.
26
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WEIL, 2005, passim)30. A pensadora francesa sente na carne, durante sua experiência na
fábrica, o mallheur e assim o relata em uma das Cartas31 ao Pe. Perrin32 quando
esteainda está em Marselha.
33
No seu percurso espiritual, temos, segundo a própria Simone: a experiência do cristianismo
como religião dos escravos, tida na aldeia de pescadores em Portugal; a experiência religiosa
na igreja de Santa Maria degliAngeli, em Assis, na Itália e a experiência deSolesmes, na
França. Respectivamente nos anos de 1935, 1937 e 1938. Cf., WEIL, 2005, passim. Assim ela
nos relata a sua experiência com Cristo, depois de recitar um poema (Love) dado a ela por um
jovem religioso da abadia de Solesmes: ―Foi no decurso de uma dessas recitações que, [...], o
próprio Cristo desceu e me tomou‖. E comenta depois: ―Nos meus raciocínios sobre a
insolubilidade do problema de Deus, não tinha previsto esta possibilidade, um contacto real,
de pessoa a pessoa, aqui neste mundo, entre um ser humano e Deus. [...] Nunca tinha lido os
místicos, porque nunca tinha sentido nada que me ordenasse que os lesse. [...] Deus impedira-
me misericordiosamente de ler os místicos, a fim de que me fosse evidente que não tinha
fabricado esse contacto absolutamente inesperado. No entanto, ainda recusei em parte, não
com o meu amor, mas com a minha inteligência‖ (WEIL, 2005, p. 62).
34
Aliás, são os dois lados de uma mesma moeda na maioria dos místicos, sobretudo as mulheres
que, tanto na Idade Média quanto na Contemporaneidade, demonstram uma forte coerência
entre contemplação e ação. Infelizmente o senso comum e também a Academia, possivelmente
28
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Mas antes de pensarmos um pouco mais sobre isso, terminemos o percurso que
iniciamos sobre a vida de Simone Weil que continua nesta parte do nosso artigo. Depois
da experiência na fábrica, ela inicia sua trajetória mística, como já mostramos um
pouco, não sem fazer outras atividades para além do seu interesse pela mística e
mantendo sempre a sua postura social e política que sempre a marcou. Por exemplo, em
meio a esse percurso espiritual volta a lecionar no Liceu, desta vez no de Bourgues;
passa dois meses em Barcelona, de onde vai depois para o front de Aragon, lutar,
juntamente com os anarquistas, na guerra civil espanhola35. Depois de um ano de
licença por motivos de saúde, ensina no Liceu de Saint-Quentin. Depois dos anos de
1938 vai para a África, precisamente para Casablanca, volta para Paris e daí para
Marselha onde deve pegar um navio com a família para os Estados Unidos36. Depois,
como já dissemos, segue para Londres, onde morre no Sanatório de Ashfordem 24 de
agosto de 1943, aos 34 anos, vítima de tuberculose pulmonar37.
por desconhecimento dos textos dos pensadores místicos, também são da opinião de que a
mística vive fora do mundo concreto.
35
Pega em armas pela primeira vez. Até então era pacifista, mas acaba reconhecendo que não
seria possível vencer o avanço de Hitler com flores. De toda forma, como nos relata, se
decepciona também com os anarquistas.
36
Não esqueçamos que nos anos 1930, Simone viaja para a antiga União Soviética, para
conhecer de perto o comunismo soviético, e à Alemanha, para conhecer o Partido Comunista
Alemão. Num congresso da C.G.T.U critica violentamente a ambos. Depois dessas viagens
redige o texto Allons-nousverslarévolutionprolétarienne?
37
Quanto à causa da morte, ―A certidão de obtido reza: Insuficiência cardíaca... decorrente de
desnutrição e tuberculose pulmonar. A defunta... provocou a morte ao recusar o alimento, por
perturbação do equilíbrio psíquico‖, no entanto, ―não é possível confirmar a ideia de suicídio,
seja porque os próprios pais pensam em outras causas, seja porque conhecemos a desolação de
Simone como um estado constante, seja pela inutilidade da sua vida e pela impossibilidade de
assumir um compromisso concreto, seja pelo fato de que até o fim escreve páginas admiráveis
e lúcidas‖ (NICOLA e DANESE, 2003, p. 111).
29
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Simone Weil foi quase uma não ação, ou seja, já certa de que não voltaria para a sua
terra, ela resolve se alimentar apenas com a quantidade de ração servida aos soldados
franceses que resistiam às tropas de Hitler. Foi a maneira que esta figura indefinível
encontrou de unir o seu sofrimento ao sofrimento dos soldados franceses e de pensar, de
alguma forma, que num gesto como este, ela se esvaziava de si mesma fazendo com que
Deus se afastasse do céu e ela da terra, isto é, une na sua filosofia, por demais
contraditória e desconcertante, a mística da ação e da contemplação.
É esta fraqueza do amor, segundo Weil, que faz com que a criação não seja
uma demonstração de poder, mas de renúncia, e isto faz de Deus não um soberano sem
38
A contradição percorre toda a filosofia de Simone Weil e por isso talvez possamos afirmar que
a sua filosofia é mística. Em A gravidade e a graça lemos: ―As contradições em que o espírito
esbarra, únicas realidades, critério do real [...] A contradição vivida até o âmago do ser é o
dilaceramento, é a cruz. Quando a atenção fixada em alguma coisa nela tornou manifesta a
contradição, produz-se como que um deslocamento. Perseverando nesse caminho, chega-se ao
desapego.[...] Assim também toda verdade encerra uma contradição‖ (WEIL, 1993, p.107).
30
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O ato da criação não é um ato de poder. É uma abdicação. Por este ato se
estabelece um outro reino em relação ao reino de Deus. A realidade deste
mundo é constituída pelo mecanismo da matéria e da autonomia das
criaturas racionais. É um reino de onde Deus se retirou. Deus, tendo
renunciado a ser o rei, não pode aqui voltar senão como mendicante (WEIL,
1957, p.184, [tradução nossa]).
39
Lembremos que nossa pensadora viveu no período de entreguerras, que viu o crescimento do
nazifacismo e de outros totalitarismos. Além disso, sente na pele, na sua experiência como
operária, a brutalidade dos que estão no comando. Logo, um Deus opressor, capaz de odiar
aquilo que cria, não faz parte da ―construção sobre o divino‖ em Simone Weil. O próprio
Cristo é apresentado por ela como uma vítima do império da força.
40
Como afirma Simone Weil: ―Mas a vida inteira de todo um povo pode ser impregnada por
uma religião que seja inteiramente orientada para a mística. Essa orientação unicamente
distingue a religião da idolatria‖ (WEIL, 1957, p. 103, [tradução nossa]).
31
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mendicante. Renunciar a ser rei implica, aqui, em não ser um tirano, em não se impor
pela força. Como nos mostra muito bem Nicola e Danese:
Quando dois seres humanos têm que fazer juntos, e quando nenhum tem o
poder de impor ao outro seja o que for, é necessário que se entendam.
Examina-se então a justiça, pois apenas a justiça tem o poder de fazer
coincidir duas vontades. Ela é a imagem desse amor que em Deus une o Pai
e o Filho, o pensamento comum daqueles que pensam separadamente. Mas
quando há um forte e um fraco, não há necessidade alguma de unir duas
vontades. Não há senão uma vontade, a do forte. O fraco obedece. Tudo se
passa como quando um homem manipula a matéria. Não há duas vontades a
fazer coincidir. O homem quer e a matéria sujeita-se, o fraco é como uma
coisa (WEIL,2005, p.149-150).
32
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compaixão41 por meio da qual ação e contemplação se unem nas categorias do vazio, da
atenção e da descriação. Como ela escreve em A espera de Deus: ―Aquele que, ao ver
um infeliz, transporta até ele o seu ser, faz nascer nele por amor, ao menos por um
momento, uma existência independente da infelicidade‖(WEIL, 2005, p. 134). Ora,
fazer essa ―transferência‖ só é possível se aquele que transporta o seu ser se esvaziar de
si mesmo, como Simone Weil deixa claro na sequência quase imediata da citação
acima: ―Esses, ao transportarem o seu próprio ser até ao infeliz que socorrem,
introduzem nele, de facto, não o seu próprio ser, porque não o têm mais, mas Cristo ele
mesmo‖ (WEIL, 2005, p. 134).
Considerações finais
41
Escreve Simone em La connaissancesurnaturelle: ―Esse infeliz jazia na rua, meio morto de
fome. Deus tem dele misericórdia, mas não pode lhe enviar o pão. Mas eu que estou aqui,
felizmente eu não sou Deus. Eu posso lhe dar um pedaço de pão. É minha única superioridade
sobre Deus‖ e acrescenta: ―A misericórdia preenche este abismo que a criação estabeleceu
entre Deus e a criatura‖ (WEIL, 1950, p. 294 e 54, respectivamente, [tradução nossa]). Sobre o
tema mística da compaixão, cf., BINGEMER, 2015.
42
―A atenção criadora consiste em prestar realmente atenção ao que não existe. A humanidade
não existe na carne anónima e inerte à beira da estrada. O samaritano que se detém e olha,
presta, todavia, atenção a essa humanidade ausente, e os actos que se seguem testemunham
que se trata de uma atenção real‖ (WEIL, 1957, p. 103).
33
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34
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basta para justificarmos a sua mística como uma mística da contempl(ação)43. É preciso
analisar a sua escrita (os seus textos) para podermos comprovar a ação e a contemplação
como movimentos que caminham juntos e formam o todo da sua mística de forma
indissociável (o que aqui apenas introduzimos). Ora, o que a literatura sobre este tema
nos mostra é que a mística ilumina a sua ação política e social e que esta, por sua vez,
esclarece elementos do seu pensar místico. No entanto, não se trata apenas de ver a obra
de Simone Weil do final para o início, no sentido de ler seus primeiros textos à luz dos
últimos (em que se intensifica a sua vertente mística), mas de encontrar, já nos
primeiros textos, aspectos místicos que serão melhor desenvolvidos nos textos mais
especificamente dedicados à mística. Logo, o que procuramos aqui, ainda que de forma
introdutória, além de dar a conhecer um pouco mais do pensamento de Simone Weil, foi
deixar elementos para reflexão deque sua filosofia se realiza, também, como uma
mística da ação,como podemos ler nas palavras weilianas com as quais encerramos
nosso texto:―Que o homem não só saiba o que faz, mas se possível, que ele perceba o
uso – que ele perceba a natureza modificada por ele. Que, para cada um, seu próprio
trabalho seja um objeto de contemplação‖ (WEIL, 1996, p. 89).
REFERENCIAS
BEAUVOIR, S. Mémoiresd’unejeunefillerangée. Paris: Gallimard, 1958.
BINGEMER, M. C. L. Simone Weil.MysticofPassionandCompassion. Trad. de Karen
Kraft. USA: WipfandStokPublishers, 2015.
______. ―Simone Weil e o terrível privilégio da vocação intelectual‖. In: BINGEMER,
M. C. L. (org.).Mounier, Weil e Silone:testemunhas do século XX. Rio de Janeiro:
UAPÊ/Editora PUC/Rio, 2007, p.113-130.
BOSI, E. Cahiers Simone Weil. Paris: La Association, 2005, p. 29-33.
______. ―Simone Weil na Universidade de São Paulo‖. In: BINGEMER, M. C. L.
(org.).Mounier, Weil e Silone:testemunhas do século XX. Rio de Janeiro: UAPÊ/Editora
PUC/Rio, 2007, p. 67-74.
FARINA, P. ―Simone Weil: a razoável loucura do amor‖. In: BINGEMER, M. C. L.
(org.).Simone Weil e o encontro entre as culturas. Rio de Janeiro: Editora PUC/Rio e
Paulinas, 2009, p. 337-356.
FIORI, G. Simone Weil:uma Donna assoluta. Milão: La Tartaruga, 2009.
GONÇALVES, J. M.P. Apresentação. In: WEIL, Simone. A espera de Deus. Lisboa:
Assírio & Alvim, 1985, p. 9-20.
43
Algumas vezes estamos grafando o nome contempl(ação) desta forma com o objetivo
de mostrar que a ideia de ação já está contida na de contemplação, não só pela forma
da grafia portuguesa, mas pelo sentido etimológico do termo contemplação, bastando
para isso buscarmos o seu correspondente em grego.
35
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36
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37
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Fonte: http://smalltalkwitht.wordpress.com/
Não se sabe exatamente em que data e onde viveu Egéria (ou Etéria) e até
mesmo seu nome é construído a partir dos títulos que seus escritos receberam ao longo
da história.
O que se sabe é que, por volta de 680, uma cópia [transcrição] de sua obra foi
enviada aos monges da comunidade de São Pedro de Montes, fundada por São Frutuoso
de Braga, em Bierzo, província de Astorga. No início do século XI, por razão
44
Doutor em Filosofia pela PUCRS, Pós-doutorado em Filosofia pela Universidade do
Porto. Professor da Graduação e Pós-Graduação (Mestrado e Doutorado) em
Filosofia da UFPE. E-mail: marcosnunescosta@hotmail.com
38
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45
Cf. a introdução à tradução brasileira: NOVAK, Maria da Glória. Intodução. In:
EGÉRIA, 1977, p. 9-10 e VALLE, 2008, p. 30.
46
A esse respeito diz Maria Filomena Coelho: ―Esta é a primeira impressão que chegou
até nós do itinerarium que Egéria percorreu na Terra Santa, entre os anos 381 e 384
d.C. O manuscrito que registra as memórias da viagem desta mulher, infelizmente, não
sobreviveu na sua forma integral e hoje acredita-se que se tenham perdido cerca de
dois terços. Não sabemos ao certo de onde ela saiu, quais são as suas origens, o que a
empurrou à peregrinação. Devido ao desaparecimento da primeira parte do
manuscrito, subimos a bordo da memória de Egéria já em plena caminhada, no meio
da península do Sinai‖ (2011, p. 353).
47
Cf. CID LÓPEZ, 2010, p. 11.
48
VALLE, 2008, p. 32 e CID LÓPEZ, 2010, p. 11.
49
A referida carta foi descoberta por Dom Mário Férotin que levou ao público num
artigo: ―Le véritable auteur de la Peregrinatio Silviae, la vierge espagnole Éthérie.
Revue des Questions Historiques, v. 74, p. 367-397, 1903 – pondo em dúvida a autoria
de Silvia até então aceita‖ (NOVAK, Maria da Glória. Intodução. In: EGÉRIA, 1977,
p. 10).
50
Segundo Rosa Manuela Barbosa Oliveira, Valerius ―morreu em 695, no mosteiro de S.
Pedro dos Montes, onde viveu uma vida monacal e de eremita, durante mais de
quarenta anos‖ (2014, p. 70), justamente o mosteiro onde havia uma cópia completa
dos manuscritos de Égeria, os quais foram transferidos depois para outos ligares até se
fixar definitivamente na Biblioteca della Fraternità dei Laici, de Arezzo.
51
Ou seja, ―muito antes de Gamurinni descobrir, em 1884, o Códice de Arezzo, já
sabíamos que uma dama da ‗Provincia Gallaeciae‘, no noroeste da Espanha, havia
percorrido, durante três anos, no século IV, os países que hoje chamamos Oriente
39
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preparada, desta feita com o título: Peregrinatio [ou Itinerarium] Aetheriae ad Loca
Sancta (Peregrinação [ou Viagem] de Etéria a Terra Santa), que com o passar dos
tempos seriam abreviadas simplesmente por Itinerário (ou Viagem, ou Peregrinação)
de Etéria (ou Egéria).
Entretanto, vale salientar, nos supracitados manuscritos o nome da autora é escrito
de diversas formas, como, por exemplo, Etheria, Heteria, Egeria, Eiheria, Echeria, das quais
prevalecem duas delas: Aetheriae e Egeria, “mas modernamente a forma Egeria tem logrado
maior aceitação”52, daí preferirmos esta nomemclatura aqui.
Próximo, e que nos havia deixado a descrição desses países num Itinerarium que um
monge de Bierzo, Valério, da mesma região da Espanha, que teve entre suas mãos, no
século VII, dando-nos a conhecer pela primeira vez a exitênciadesse Itinerarium e o
nome de sua aurora‖ (ARCE, Agustín. Prologo. In: EGERIA, 2010, p. XIII). Cf.
também, FREIRE, 1987, p. 273-274. Mas, como ressalva David Manuel Mieiro, ainda
ssim há quem continua com a nomemclaruta antiga, como é o caso de Jarecki, que
―continuava a dizer que Egéria ou Etéria não era uma figura histórica. permanecendo
na ideia primordial de que seria Sílvia ou Silviana. A sua ligação a altas autoridades,
como o imperador Teodósio, e o facto de ter feito uma peregrinação aos lugares
santos, em meados do século IV, induz imediatamente a ela como autora [...]. Vingará
a novidade, melhor fundamentada, de que Egéria é a verdadeira autora do itinerário‖
(2013, p. 41-42).
52
VALLE, 2008, p. 34.
53
cf. por exemplo, EGERIA. Peregrinação de Etéria. XIX, 5, 1977, p. 69-70, que diz: “O santo bispo da
cidade, homem verdadeiramente religioso, monge e confessor, disse-me, acolhendo-me de boa
vontade: ‘vejo, filha, que pela religião te impususte tão grande labor que, dos confins da terra,
chegaste a estas paragens; se, pois, te der prazer, nós te mostraremos todos os lugares que são, aquí,
agradáveis de ver para os cristãos’. Então, pois, dando graças a Deus em primeiro lugar, e também a
ele, pedi-lhe muitíssimo se dignasse fazer o que dizia”.
40
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aventurada Egéria, mais forte do que todos os homens do século *…+. Esta
bem-aventurada monja Egéria, inflamada pelo desejo da divina graça e
ajudada pela virtude da majestade do Senhor, empreendeu com intrépido
coração e com todas as suas forças uma languíssima viagem por toda a
região...54.
A partir daí, quase todos os comentadores falam com a maior naturalidade de Egéria
como uma monja55, mas, ressalva Maria Rosa Cid López, há quem discorde de que ela fosse
uma monja, como é o caso de Hagith Sivant, para quem
não é fácil aceitar que uma mulher, celibatária, com deveres no monastério,
pudesse viajar e estar fora por tanto tempo, gozando de tal liberdade de
movimentos. A situação seria ainda mais estranha no caso de se tratar de
uma abadessa. Precisamente, esta larga permanência fora de seu lugar e da
facilidade com que se trasladava leva a pensar em uma mulher não atada por
votos religiosos56.
Monja ou não, no sentido restrito da palavra, o certo é que Egéria estaba ligada a um
certo grupo de mulheres religiosas, as quais são as destinatárias diretas de seus escritos, pois
por diversas vezes fala de algumas “domnae – senhoras”, a quem dirige suas palavras, com as
quais tem certo compromisso religioso, de forma que, caso viesse a falacer antes de retornar,
seus escritos deveriam ser destinados a elas. Isto vemos claramente no seguinte trecho do
Itinerarium ad loca sancta:
Daí, senhoras, minha luz, dedicando à vossa bondade esta narrativa, era já
meu propósito, em nome de Cristo, nosso Deus, dirigir-me à Asia - a Éfeso,
para rezar no martyrium do santo e bem-aventurado apóstolo João. Se,
depois disso ainda estiver viva e ainda puder conhecer alguns outros sítios,
54
VELERIUS de Berza. Epistola laude Etheriae virginis, 1.10.11 In: EGERIA, 2010, p. 9
(grifo nosso).
55
LIMA, 2012, p. 240, diz: ―No século IV, há uma mulher a percorrer um Itinerrium
escrito em forma de carta, num diálogo conservado em letras. É a viagem realizada
pela monja Egéria desde a província romaa da Gallaecia até à Terra Santa‖.
56
SIVANT apud CID LÓPEZ, 2010, p. 25.
57
NOVAK, Maria da Glória. Intodução. In: EGÉRIA, 1977, p. 12.
41
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58
O expressão ―lumnen meum – minha luz‖, que aparece aqui por duas vezes, é
substituída em outros momentos por outros termos igualemente afetuosos, como:
―venerabilis soroles – veneráveis irmãs‖ (III, 8) e ―dominae animae meae – senhoras
de minha alma‖ (XIX, 19), que denotam sempre proximidade, respeito, compromisso,
etc.
59
EGERIA. Peregrinação de Etéria. XXIII, 10, 1977, p. 79.
60
PASCAL, 2005, p. 452, observa que, “falar da monja Egeria (perdão por adiantar o nome, rompendo a
intriga) é um despropósito. Pela expressão reiteradamente empregada dominae et sorores, não pode
deduzir-se que se trata de monjas - e desde logo, o contexto geral é outro, como em seguida veremos
-. Desde muito antes de que nascera Egéria, a expressão soror, empregada coloquialmente, tinha uma
mera conotação de efeto [...]. A interpelação a umas dominae et sorores havia de traduzir-la, para ser
fierl ao espírito da letra, como ‘respeitáveis amigas’, ou ‘queridas amigas’”.
61
MARIANO, Alexandra B. Intodução. In: EGÉRIA, 1998, p. 16-17. Nesta intodução a
comentadora insister, por diversas vezes, no caráter epistolar na obra de Egéria.
62
A comentadora Angelika Ritter-Grepl, diz que, “partiendo desde o norte da Espanha e dirigindo-se até
o Oriente, desde o ano 381aol 384 percorreu cerca de 9.000 kilômetros por terra, atravessando o
continente até Constantinopla, para chegar depois aos lugares da Biblia. todos los lugares indicados en
su guía, la Biblia. Durante um tempo se fixou em em Jerusalén, logo prosseguiu a peregrinação até o
Egito e subiu ao Monte Sinai. Por último, chegou ao lugar mais ao leste do seu itinerário, ou seja, ao
Harán, na Siria, pátria de Abraham” (2010, p. 35).
42
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como observa Alexandra de Brito Mariano, “uma viagem de tal envergadura exigiria,
certamente, a mobilização de meios consideráveis, mesmo segundo os padrões da nossa
época”63, a não ser que fosse de família aristocrata, e, segundo, pelo apóio que recebia das
autoridades imperiais, que lhe colocavam a sua disposição casa e até soldados romanos para
auxiliar-lhe nas viagens, conforme consta em seus retatos de viagens:
Tal era o pretígio de Egéria junto à Igreja e ao Império, que José Eduardo López
Pereira chega a se perguntar:
Monja ou não, contando com tantos meio a sua disposição, não seria da
família de Teodosio, que naqueles anos era Imperador, galego de origem,
segundo nos recorda o historiador quase contemporâneo, Hidacio, bispo de
Chaves? Alguns investigadores, como A. Lambert, a supõe irmã de Gala
63
MARIANO, 2007, p. 121.
64
EGÉRIA. Peregrinação de Egéria. VII, 2, 1977, p. 53.
65
Ibid., IX, 3, 1977, p. 56.
66
CID LÓPEZ, 2010, p. 24. Mas a própria comentadora ressalta que outros autores, e cita o caso de
Hagith Sivant, “têm questionado a pertência de Egéria a tais círculos da elite social, baseando-se no
latim que utilizava, muito popular, e não próprio das mulheres da aristocracia do momento. Por sua
vez, se enfatiza que não conhecia o grego, o que seria estranho para uma dama bem educada da
época” (SIVANT apud CID LÓPEZ, 2010, p. 24-25).
43
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67
LÓPEZ PEREIRA, 2010, p. 47. Cf. também CID LÓPEZ, 2010, p. 21, que diz: “Por razões das conotações
um tanto patrióticas, Egéria tem sido apresentada como uma mulher galega, de elevada posição
social, ao que se buscou, inclusive, parentesco com a família de Teodosio”. O franciscano Agustín Arce,
por exemplo, destaca o parentesco, mas enfatiza os laços de amizade ao dizer, inclusive, que
“podemos, pois, supor que Teodósio e Egéria partiram juntos do NO da Espanha: Teodósio para
defender o Império contra os bárbaros invasores; Egeria para venerar os santuários da Palestina e
visitar os monastérios de Siria e Egipto” (ARCE, Agustín. Introdución. In: EGERIA, 2010, p. 9).
68
LÓPEZ PEREIRA, 2010, p. 44. Cf. também, NOVAK, Maria da Glória. Intodução.
In: EGÉRIA, 1977, p. 11 e MARIANO, Alexandra B. Intodução. In: EGÉRIA, 1998,
p. 28-31.
69
Cf. MIEIRO, 2013, p. 45.
70
Ibid.
71
NOVAK, Maria da Glória. Intodução. In: EGÉRIA, 1977, p. 12.
44
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cronológicas de 383-385, mas é com Paul Devos72 que a data do último ano da viagem é
fixada em 384‖73.
Finalmente, mais um porto controverso acerca de Egéria é quanto a sua
capacidade intelectual, ao ponto de se colocar em questão o fato do Itinerarium Egeriae
(Viagem de Egeria) ter sido escrito por uma mulher ―capaz de escrever em latim‖74.
Mais do que isso, e já respondendo a questão, não só escreveu em latim, mas, segundo
José Eduardo López pereira, foi a primeira escritora em língua latina da Idade Média:
Falar de Egéria escritora latina, quase nos permite falar da primeira mulher
que escreve em latim, cuja obra chegou até nós, porque muito pouco há de
Proba no Cento virgilianus que ela escreveu, e muito pouco também de
75
Perpetua no Passio Perpetuae .
72
Cf. DEVOS, Paulo. La data du voyage d‘Égeria. Analecta Bollondiana, v. 85, p. 165-
194, 1967.
73
MARIANO, Alexandra B. Intodução. In: EGÉRIA, 1998, p. 16-17.
74
Ibid., p. 44.
75
Ibid., p. 45
76
Dentre os estudiosos mais importantes, indicamos aqui apenas três, para falar apenas de linguistas
brasileiros: BECHARA, Avanildo. Estudos sobre a sintaxe nominal na Peregrinatio Aetheriae. Trabalho
apresentado para o concurso de provimento da Cátedra de Filologia Românica da Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras da Universidade do Estado da Guanabara, Rio de Janeiro, 1963, 45 p. ; Idem.
A carta de Valério sobre Etéria. Revista Romanitas. Rio de Janeiro, v. 6-7, 1965 e FONDA, Enio Aloisio.
A síntese orgânica do “Itinerarium Aetheriae”. Assis: Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de
Assis, 1966, 190 p., que foi sua tese de doutoramento em Língua e Literatura Latina, na Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, em 1961. E mais recentemente, a tese de livre-docência, despois
publicada: VALLE, Rosalvo do. Considerações sobre a Peregrinatio Aetheriae. Rio de Janeiro: Botelho
Editora, 2008, especialmente o capítulo II - O latim da Peregrinatio Aetheriae (p. 47-70) e a
dissertação defendida no Mestrado em Liguistica da UNICAMP: MARTINS, Maria Cristina da Silva. Os
locativos na Peregrinatio Eatheriae. Campinas: UNICAMP, 1996. 139 p. Igualmente há estudos acerca
de Égeria que a analisam à luz de uma visão “feminista”, buscando encontrar em seus eecritos traços
de uma “escrita feminina”, mas que não entraremos no mérito da questão aqui. Para um maior
aprufundamento desta questão indicamos os artigos: LIMA, Filomena. Viajar no feminino: as imagns
das palavras – peregrinação de Egéria à Terra Santa – no século IV. In: LOPES, Maria José et al. (orgs.).
Narrativas do poder feminino. Braga: Universidade Católica Portuguesa, 2012, p. 239-25 e PACHECO,
Maria Cândida Monteiro. Itinerarium ad loca sancta, de Egéria: uma escrita feminina? In: FERREIRA,
Maria Luísa Ribeiro (org.). Também há mulheres filósofas. Lisboa: Editorial Caminho, 2001, p. 71-82.
45
Revista Sísifo – vol. 1, nº 6. Novembro. Ano 2017 - www.revistasisifo.com
77
O texto a que se refere aqui é o Itinerarium Burdigalense, escrito cerca de 50 anos antes de Egéria.
78
MARIANO, 2007, p. 122. A mesma comentadora acrescenta que antes de Egéria, “conhecem-se, é
certo, outras damas que teriam empreendido peregrinações ao Oriente. Destacamos, por exemplo,
Melânia-a-Velha viúva de um prefeito de Roma, em 373 (Jerónimo, Epist., 4 – PL, t. 22, col. 336), Paula
de uma nobre família romana e Eustóquio, em 385 (Idem, Epist., 108 – PL, t. 22, col. 878-906) e
Poemenia, parente de Teodósio,em 390 (Paládio, Hist. Laus., 35 – PL, t. 74) (p. 122, nota 4), mas
nenhuma delas escreveu suas experiências de viegens, já são conhecidas pelos relatod de outros.
79
Cf. VALLE, 2008, p. 26-27.
80
Ibid., p. 28-29.
81
Ibid., p. 38.
46
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ressalta Gilberto Figueiredo Martins, suas recorrentes referências aos monastérios e igrejas,
seus depoimentos sobre as práticas religiosas ocorridas nestes locais, etc.,
Referências
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siglo IV. ARENAL, v. 17, n. 1, p. 5-31, 2010.
DEVOS, Paulo. La data du voyage d’Égeria. Analecta Bollondiana, v. 85, p. 165-194, 1967.
______. Viagem do Ocidente à terra Santa, no séc. IV (Itinerarium ad loca sancta). Estudo e
tradução de Alexandra M. L. B. Mariano e Aires A. Nascimento. Lisboa: Edições Colibri, 1998.
283 p.
82
MARTINS, 2011a, p. 12.
83
NOVAK, Maria da Glória. Intodução. In: EGÉRIA, 1977, p. 14.
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documentos auxiliares, planos y notas por Agustín Arce. Madrid: La Editorial Católica/BAC,
2010, p. 360 p.
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accedere, collun, pullus. In: Actas do Colóquio sobre o Ensino de Latim. Lisboa: Faculdade de
Letras, 1987, p. 173-282
LIMA, Filomena. Viajar no feminino: as imagns das palavras – peregrinação de Egéria à Terra
Santa – no século IV. In: LOPES, Maria José et al. (orgs.). Narrativas do poder feminino. Braga:
Universidade Católica Portuguesa, 2012, p. 239-257.
LÓPEZ PEREIRA, José Eduardo. Egeris, primera escritora y peregrina a Tierra Santa. In:
GONZÁLEZ PAZ, Carlos Andrés (ed.). Mujeres y peregrinación em la Galicia medieval. Santiago
de Compostela: Instituto de Estudios Gallegos, 2010, p. 39-54 (livro da FLUP)
MARIANO, Alexandra de Brito. In eo quod amatur aut non laboratur aut et labor amatur:
esforço e satisfação no Itinerarium de Egéria. In: NOGUEIRA, Adriana Freire. Otium et
regotium: as antíteses na antiguidade. Actas do IV Colóquio da APEC. Lisboa: Nova Veja, 2007,
p. 121-131.
MIEIRO, David Manuel Martins. Ecclesia in strata: a peregrinação de Egéria como itinerário
espiritual. Lisboa: Universidade Católica Portuguesa, 2013, 125 f. Dissertação (Mestrado em
Teologia).
OLIVEIRA, Rosa Manuela Barbosa. O itinerário de Egéria (séc, IV): olhares sobre um olhar.
Lisboa: Universidade Aberta, 2014, 98 f. Dissertação (Mestrado em Estudos Portugueses
Multidisciplinares).
PASCUAL, Carlos. Egeria, la Dama Peregrina. Arbor, v. CLXXX, 711-712, p. 451-464, 2005.
VALLE, Rosalvo do. Considerações sobre a Peregrinatio Aetheriae. Rio de Janeiro: Botelho
Editora, 2008. 178 p. CD-ROM.
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Resumo: Em seu único livro Os Princípios da Mais Antiga a Moderna Filosofia, Anne
Conway apresenta uma ontologia da dor. No capítulo sétimo de seu trabalho, a filósofa
inglesa escreve que “toda dor e tormento estimula a vida ou o espírito que existe em
tudo o que sofre (...) isso tem de acontecer necessariamente porque através da dor e do
sofrimento, toda e qualquer rudeza ou densidade contraída pelo espírito ou pelo corpo
se atenua.” PFMAM C. 7 S. 185.. O objetivo final dos seres é atingir à perfeição junto a
Deus. O propósito deste artigo é mostrar como a metafísica de Anne Conway depende
da experiência da dor para assegurar a unidade entre corpo e alma contrariando o
tradicional dualismo psicofísico cartesiano. A dor também assegura a tese da harmonia
pré-estabelecida que Conway compõe e é retomada por Leibniz com algumas
diferenças. Com efeito, será necessário esclarecer algumas teses presentes na obra da
autora, tal como o finalismo, o vitalismo monista, a ideia de Deus como emanação e por
fim a harmonia pré-estabelecida. Quer-se mostrar que Conway de fato estabelece uma
ontologia da dor, e não uma ontologia a partir da dor como defende Maria Luísa Ribeiro
(Uma Ontologia a Partir da Dor, Lisboa: 2010), e que a dor é a chave central de
compreensão para a filosofia de Anne Conway.
Abstract: In her only book The Principles of the Most Ancient and Modern Philosophy,
Anne Conway presents us an ontology of pain. In the seventh chapter of her work she
writes “all pain and torment stimulates the life of spirit existing in everything which
suffers. (...) this must necessarily happen because through pain and suffering whatever
grossness or crassness contracted by the spirit or body is diminished.‖ PMAMP C. 7.
S.1. The final goal of beings is to achieve perfection among god. The purpose of this
article is to show how Anne Conway's metaphysics depends on the experience of pain
to assure the conception of unity between body and spirit contradicting the traditional
Cartesian dualism, securing then the consistence of pre-established harmony which
Leibniz will use in his works with another approach. In fact, it is necessary to clarify
some of these questions present in the author's work, such as finalism, monistic
vitalism, the idea of God as emanation and, finally, pre-established harmony. It is
wanted to show that Conway, in fact does, an ontology of pain, and not an ontology
from pain as defended by Maria Luisa Ribeiro (An Ontology from Pain, Lisbon: 2010),
which is a major key of understanding for Anne Conway‘s philosophy.
84
Bacharel em Filosofia pela UFRJ, Mestre em Filosofia pelo PPGF-UFRJ e Doutorando em Filosofia
pela PPGF-IFCS. Bolsista CAPES.
85
Não há consenso sobre a forma de citar a obra de Anne Conway. Optou-se pela escolha do
capítulo e seção em detrimento de páginas da tradução. A sigla se refere ao título traduzido para o
português Os Princípios da Filosofia Mais Antiga e Moderna.
49
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50
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O texto original foi lançado em latim. Logo em seguida, teve outra edição numa
tradução inglesa. O texto que se tem acesso atualmente consiste em uma tradução para
língua inglesa feita a partir da retradução para o latim. Tal como o texto de filósofos
antigos, a obra de Conway que se tem acesso é uma cópia da cópia. E uma tradução da
tradução. Imagina-se, portanto, que o conteúdo tenha sofrido alterações. Neste aspecto,
é importante ressaltar que seu texto também é incompleto, não foi revisado e a cópia
mais antiga é feita a partir de um manuscrito encontrado no espólio da autora
(HUTTON, 2004.).
De acordo com Israel, é na modernidade iluminista radical que se criam os
saraus de filosofia. Encontros onde se discutiam temas do conhecimento humano fora
da academia (2002.). Graças a tais eventos é que muitas mulheres podiam iniciar sua
educação no que diz respeito a gama de saberes que compunha a filosofia. Anne
Conway se difere das poucas outras mulheres de sua época por ter se educado ainda na
infância. Através da biblioteca de sua família e posteriormente da biblioteca de seu
marido, a viscondessa aprendeu hebraico. Estudou as escrituras judaicas e sobretudo a
cabala. Ressalta-se às constantes citações a Kabbalah Denutada, uma obra de
hermetismo escrita e publicada em 1677-78. Nesta obra há uma tentativa de conciliar
alguns elementos da mística judaica com o cristianismo como, por exemplo, as três
sefirot superiores representarem a trindade. É então a partir de uma cabala cristianizada
que Conway tem acesso aos conhecimentos de mística judaica que influenciam a sua
obra.
Conforme dito, apesar do tratado de Lady Conway ter sido lançado
anonimamente, sua autoria era reconhecida por parte dos filósofos da época. Leibniz
teve acesso a obra de Anne Conway através de van Helmont. Vê-se que o filósofo
deixou ao menos dois registros sobre o conhecimento do documento prestando-lhe
homenagens póstumas.
Os meus [sentimentos] em filosofia aproximam-se mais dos
da falecida Condessa Conway, e defendem uma posição
mediadora entre Platão e Demócrito, porque acredito que
tudo ocorre mecanicamente como Demócrito e Descartes
afirmam, contra a opinião de Henry More e de seus
seguidores, e no entanto [também defendo] que tudo ocorre
de acordo vitalmente e segundo causas finais, estando tudo
cheio de vida e de percepção, contrariamente à opinião dos
atomistas. 86
86
C. I. Gerhardt (ed.). Die Philosophischen Schriften von G. W. Leibniz (7 vols., Berlin, 1875-90;
rpt.Hildesheim, Olms, 1962), vol. 3, p. 217.
51
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87
LEIBNIZ. Novos Ensaios Sobre o Entendimento Humano. Tradução de Luiz João Baraúna.
Nova Cultural: São Paulo, 1996.
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mas de maneiras pela qual o Criador se manifesta, ou melhor, são seus próprios modos
como bondade e sabedoria.
O terceiro estatuto ontológico ou elemento elaborado por Anne Conway é a sua
concepção de Messias (PFMAM, C.1, Nota 3.). Para a autora, o Messias é o logos, do
qual as coisas passaram a existir pela palavra. Aqui, a filósofa alude ao mito judaico de
Adam que nomeou os animais e as coisas do mundo. A partir da palavra, que para ela é
o mesmo que uma ideia só que posta, externada, Adam elabora o mundo. O Messias,
contudo, não se trata de uma pessoa, mas do próprio logos. O que os cristãos entendem
por Jesus, os hebreus entendem por Adam. Esclarece ela na Nota 7 que Deus é a
trindade na medida em que ele é o próprio infinito (primeiro elemento ontológico), o
logos, no sentido que é palavra nomeadora, e o terceiro que são as criaturas, ou melhor,
está presente nelas ainda que distinto. A natureza de Deus é essência distinta das suas
criaturas, o Messias possui uma natureza intermediária, já as criaturas possuem uma
natureza material que se transforma.
A metafísica de Conway é perpassa a noção de mutabilidade. As criaturas estão
sempre disponíveis para a perfeição, isto é, em vias de transformação por possuírem
uma natureza mutável em parte. Deus é imutável e o Messias, o logos, conjuga ambos:
mutável e imutável. Mas como reparar em uma contradição acerca do conceito de
Messias? Conway irá esboçar uma idealização não dualista, a de que corpo e alma não
são substâncias distintas, e sim diferenças gradativas. Sendo assim, uma extensão da
substância é mutável, o corpo, e outra parte imutável, a saber, a alma ou mônada. Sendo
assim, o Messias possui o elemento imutável do Criador, o que significa a sua própria
natureza enquanto logos, na medida em que é palavra proferida ou ideia. A mônada
seria então a parte divina, ou melhor, a unidade da substância que emana diretamente de
Deus. Já a parte mutável dispõe de uma natureza mais rude, a saber o corpo.
A diferença entre em corpo e alma não seria então uma distinção, mas sim uma
diferença de graus ou de modos. A forma como a substância se exprime. Deste modo, a
metafísica de Conway explica a diferença entre os entes existentes. Estão todos numa
diferença de grau. A ideia apresentada possui uma conexão direta com outra concepção
da filósofa, a saber, o finalismo. Todo corpo é mutável. De que modo essa
transformação ocorre? Ora, se considerarmos como a autora que a natureza dos corpos é
mais rude, enquanto a do espírito mais tênue, o corpo necessariamente se transforma a
partir do momento que perde a sua rudeza. Na metafísica de Anne Conway isto ocorre
na e através da dor rumo à perfeição (PFMAM C. 7 S. 1). Neste ponto a dor, o
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Bibliografia
88
CONWAY, Anne. Os Princípios da filosofia mais antiga e moderna. Centro de filosofia da
Universidade de Lisboa: Lisboa, 2010, cap. I, s. 1.
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Morte e Superação
Tiburi e a Filosofia Feminina.
I. RESUMO
Este dossiê se propõe a apontar a necessidade de uma filosofia que inclua as mulheres.
Desde a antiguidade, as mulheres têm entrado na filosofia como meras coadjuvantes. A
restrição feminina passa por uma violência velada de homens que as determinam como
objeto. Neste sentido a mulher se diferentemente do homem a morte de uma mulher não
é heroica, e a partir dela se revela seu valor. A luz de alguns trabalhos de Márcia Tiburi,
apontamos como a mulher é retratada a partir de sua morte e a possibilidade de
superação deste cenário.
II. INTRODUÇÃO
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como obscura e puramente masculina, mas deve ser responsável por trazer as outras
pessoas uma forma alegre de tratar as coisas da realidade.
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desenrolar da obra, a personagem ganha destaque, combate junto aos seus e desperta um
amor proibido (ROSA, 1994) em relação ao personagem Riobaldo. Este se sente
culpado por amar a outro homem, mas que consegue perdão de seu desejo ao descobrir
que se tratava de Diadorim. Conforme nos aponta Tiburi (1970), ela apenas consegue
prestigio por parte dos homens por ser considerada um deles. Como ela mesma contata:
A negação da homossexualidade é paralela à armadilha antifeminista:
a isca é o corpo de uma mulher que só pode aparecer como mulher
enquanto morta. Ou de um homem que, ao ser morto, aparece como
mulher. O corpo de uma mulher morta é, nesse caso, o desfecho de
uma lei a ser cumprida (TIBURI, 2013, p. 159).
60
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corpo. A morte legitima a necessidade o controle, como uma forma de punição a quem
descumpre as regras.E por esse aspecto podemos considerar que o surgimento de
movimentos revolucionários, totalitarismos e a passagem de duas guerras
provavelmente fizeram com que a crise entre feminino e masculino tivesse uma
reviravolta.
Assim, principalmente nos anos 60, mulher inicia o processo de libertação frente
ao homem, posicionando-se. Porem, em nome de uma família nuclear, em que pai, mãe
e filhos mantêm uma relação aparentemente solidificada, o modelo tenha permanecido.
A figura feminina ainda é deixada de lado das decisões. A morte talvez pudesse ser o
fenômeno que trouxesse a mulher para o centro da casa, pois enquanto isso:
Sendo assim, comoa citação sugere, a mulher continua a ser apenas um prato
exótico ao marido. A partir da sensação de perda provocada pela morte ela ganha voz.
Mas, esse sistema de controle da mulher se destaca não apenas dentro de sua casa, mas
também em outros espaços. A esfera privada de tratamento da mulher apenas revela o
que na sociedade se expõe de forma velada. A insegurança provocada pelo
comportamento machista faz com que a mulher tenha que recorrer a agentes externos
para justificar seu comportamento. Essa insegurança não seria uma insegurança apenas
por parte da mulher fragilizada, mas do próprio homem como uma necessidade de
afirmação (TIBURI, 2010, p. 125).
A mulher se torna objeto ao homem, posse. Contudo, não é apenas o homem que
faz isso, mas toda uma sociedade. Veja por outro ângulo que, até mesmo na mídia esse
controle se legitima: não se vê uma campanha publicitária de materiais domésticos para
homens, por ser essa atividade uma atividade quase exclusivamentefeminina. A morte
da mulher não necessariamente aponta para a morte de seu corpo físico, mas também a
morte de seus projetos e ideais. As teorias politicas de controle do século XX sejam elas
desenvolvidas por Freud, Foucault, Smith, entre outros demonstram a insegurança
humana diante de tempos de crise. Fatores esse desenvolvidos na estrutura social.
Não deveríamos falar em superação para um problema que não deveria existir. No
caso estamos nos referindo ao problema da morte da mulher frente ao pensamento
existente. Seja no campo da filosofia ou nas demais áreas do conhecimento ainda é
necessário que a mulher tenha um espaço para expor o que pensa.
Falar em soberania por parte do feminino, conforme constata Tiburi (2010, p.
112), seria como falar de uma espécie de outra violência. Quando falamos de violência
não falamos apenas da violência feminina, mas também da violência que afeta a todos.
61
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Assim como Hannah Arendt (2004, p. 4-5), Tiburi constata que a violência é uma forma
de destruição do poder, exposto a partir de sua constatação simbólica.
Neste sentido, superadas as formas de separação entre pensar masculino e
feminino a filosofia não tivesse de falar sobre a violência. Esta violência surge das mais
diversas formas, e sua prática se determina pela necessidade de afirmação daquele que a
pratica. Enquanto houver atrocidades contra o discurso feminino ou enquanto não
aceitarmos as mulheres, teremos que procurar justificação para as atrocidades em
relação ao feminino.
Na prática, nada justifica a violência contra qualquer indivíduo, sua origem está
na falta de diálogo. Embora sejamos pessoas aptas a este diálogo, nem sempre ocorre
desta forma. Em nome do amor se acometem as maiores atrocidades contra a vida, se
pratica a intolerância ou se justifica a morte. Não existe uma forma própria para a
superação deste processo, mas existem caminhos.
Tiburi, entretanto, indica caminhos consideráveis para a superação da violência
patriarcal. A primeira delas é uma desconstrução do modelo patriarcal a partir de seus
argumentos. A superioridade masculina frente à feminina não deve se basear em
características de gênero, nem mesmo em aspectos isolados do indivíduo, como a
necessidade de reconhecimento. Esse reconhecimento vai desde um impulso biológico,
até a efetiva atitude. Entendamos também que o discurso acerca do biológico deve ser
anulado. Homens e mulheres podem desenvolver as mesmas atividades físicas e
intelectuais. Talvez por medo ou insegurança ainda seja preciso lutar contra o
preconceito.
Já em uma segunda possibilidade de superação, Tiburi (2010) nos convida a uma
espécie de reinvenção das coisas, ou seja, um novo olhar sobre a mulher e suas
capacidades. A imagem da mulher submissa que pertence a seu marido, que apenas
cuida dos afazeres da casa, deve ser readequada para a imagem da mulher livre. E a essa
liberdade podemos incluir a capacidade de não entender a mulher como um
instrumento, objeto, mas apta a realizar suas próprias escolhas.
Por fim, devemos falar da própria filosofia. Ainda falamos pouco da relação das
mulheres e o pensamento filosófico. O intelectual deve reconhecer que está errado
quanto à mulher. Falar da mulher dentro da história da filosofia significa reconhecer
uma dívida histórica. Assim é necessário que a mulher entre na filosofia pela porta da
frente, não sendo mero coadjuvante no processo filosófico. Ela, a mulher, vai nos dizer
Tiburi (2010), salva o sujeito de outra forma, dele mesmo. Até aqui, o que se constata é
que as mulheres dentro da filosofia foram silenciadas e oprimidas. E de acordo com as
perspectivas de Tiburi (2003), cabe a nós não repararmos os erros do passado, mas sim
fazer diferente o futuro.
AUTOR
62
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REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo: fatos e mitos. Tradução: Sérgio Milliet. 4.
ed.. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1970.
DA MATTA, Roberto. O Que faz do Brasil, Brasil? Rio de Janeiro: Rocco, 1986.
ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: veredas. 1. ed.. São Paulo: Nova Aguilar,
1994.
TIBURI, Marcia. “As mulheres e a filosofia como ciência do esquecimento”. In. Com
Ciência, Campinas, dez.2003. Disponível em: http://www.comciencia.br/dossies-1-
72/reportagens/mulheres/15.shtml. Acesso em: 10 de Outubro de 2017.
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Marcus G. M. Santos
Karl Jaspers
1. INTRODUÇÃO
89 Hannah Arendt, nascida em Linden, 1906, foi uma pensadora alemã de origem judaica. Uma das
pensadoras mais influentes do seculo XX. Estudou desde muito cedo filosofia, tendo começado sua
vida acadêmica na Universidade de Marburg, onde foi aluna de Martin Heidegger. Estudou ainda em
Freiburg sob a orientação de Edmund Husserl e em Heidelberg, onde se formou com sob a tutoria de
Karl Jaspers. Deixou a Alemanha em 1934 às vésperas da Segunda Guerra Mundial, mudando-se para
Paris, de onde conseguiu escapar em 1941 após a tomada da capital francesa pelo regime nazista,
mudando-se definitivamente para os Estados Unidos, onde lecionou na Universidade de Chicago e
posteriormente na New School for Social Research, onde se manteve até sua morte em 1975.
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Neste sentido, fazer o exercício espiritual de pensar com ela a condição humana; o
trabalho, a obra e a ação; a natalidade e a mortalidade; a vida, o mundo e a pluralidade (objeto,
mais especificamente, deste escrito); deve sempre – caso importe, como acreditamos importar,
fazer jus ao pensamento e a obra da autora em questão – ter como chão onde firmamos os pés e
realidade à qual nos reportamos, o mundo presente onde de fato existimos e apenas em vista do
qual o passado é relevante e o futuro horizonte.
Cabe ressaltar ainda, de antemão, que um aspecto dos mais importantes para a
arquitetura do pensamento arendtiano é sem dúvida a noção de que a nossa tradição se nos
apresenta com o fio condutor roto. Nas palavras do poeta francês René Char que aparecem
como epígrafe da coletânea de ensaios Entre o passado e o futuro (2012): ―nossa herança não é
precedida por nenhum testamento‖. O fato é que para Arendt nos encontramos num momento
límbico entre um passado que nos lega categorias de pensamento já sem força testamental e um
futuro, portanto, sem perspectiva. Se, por um lado, a situação é amplamente desesperadora e a
reação mais comumente adotada pareça ser a de agarrar-se a qualquer pedaço da tradição que
apesar de em desmoronamento nos pareça mais solido relativamente aos demais; por outro, são
particularmente nesses momentos que a atividade de pensar emerge como um apelo urgente não
mais apenas para filósofxs e intelectuais em geral, mas para toda e qualquer pessoa aturdida
pelo desmantelamento das ―verdades‖ que lhe serviam de referência para pensar e agir no
mundo.
Tudo isso dito e as considerações preliminares feitas, permitam-nos agora passar mais
propriamente ao assunto que nos traz aqui à baila, que nos faz, como diria o professor
Emmanuel Carneiro Leão, participar da ―capoeira do pensamento‖.
65
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funda centralmente, uma vez que é esta atividade humana o fenômeno que responde
apropriadamente à condição da pluralidade, no estudo e compreensão da ação.
De acordo com Hannah Arendt, os seres humanos, desde que temos noticias de sua
trajetória, têm estabelecido neste planeta certas atividades fundamentais. Tais atividades –
apesar de não serem fixas nem imutáveis, mas terem, pelo contrário, ao longo do percurso
histórico do ocidente, sofrido diversas transformações e inversões de hierarquia – respondem,
entretanto, a certas condições. Condições que, conquanto não sejam também fixas e imutáveis
ao ponto de darem corpo a uma ideia justificada de ―natureza humana‖ como foi o intento
metafísico tradicional inverso de derivar tais condições de alguma natureza tal imutável – dos
antigos aos modernos –, permanecem com relativa estabilidade ao longo da existência humana
neste planeta, urgindo para si respostas constantes e condizentes para com seu apelo. É mediante
uma tal consideração que é possível falar, de acordo com o pensamento de Hannah Arendt, de
uma condição humana. E é o fato de responderem a tal condição que nos permite dar a tais
atividades o epiteto de fundamentais.
As condições as quais nos referimos são, entre outras, pois, sem pretensão de
esgotamento: o próprio planeta Terra, até onde sabemos o único ambiente capaz de gestar e
suportar, sem esforço ou artifício, em um nível tal de complexidade orgânica a vida e a
experiencia humanas de mundo; a natalidade, o fato de que constantemente novos seres
humanos, ―recém-chegados‖, nascem para a vida e para o mundo; a mortalidade, antigamente
talvez a mais profundamente reconhecida destas condições, que traçava, desde ao menos a
Grécia do período homérico, a linha distintiva tanto entre seres humanos e deuses, quanto entre
os seres humanos e a natureza terrena; a vida mesma em sua penosa urgência material; o mundo
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É, fundamentalmente, a esta última condição, o fato de que não o ser humano, mas os
seres humanos no plural vivemos na terra e habitamos um mundo comum (ARENDT, 2014, p.
8), a que respondemos quando, por meio de palavras e atos, discurso e ação, tomamos iniciativa
e, ao atuarmos em meio publicidade do mundo, nos revelamos enquanto agentes.
Buscaremos então refletir aqui sobre este fato a muito negligenciado: de que somos,
enquanto seres humanos, ontologicamente condicionados pela pluralidade de nossa existência.
Essa pluralidade, contudo, se apresenta em nós constelada por estrelas únicas e de brilho
singular. Pretende-se, portanto, mais que nada, elucidar as peculiaridades da condição humana
da pluralidade e sua relação com a revelação do agente através do discurso e da ação,
compreendendo assim, nesse aspecto específico – nem de longe suficiente para entendermos em
profundidade a própria atividade da ação em toda sua importância para a teoria política e
filosófica desta autora –, o mais fielmente possível a leitura arendtiana dessa inalienável
atividade humana à qual a nossa tradição ocidental de pensamento político, com raríssimas
exceções, tão danosamente virou as costas.
O milagre humano, afinal, o fato de que nossa vida, nosso mundo, nossa existência, é
capaz de ter sentido antes que este possa ser colhido em pensamento, advém, em última
instância, da capacidade que temos de agir e expressar-nos via discurso. E é mediante ação e
discurso, portanto, que rompemos com os automatismos e condicionamentos inerentes à
natureza e ao mundo físico. Para tanto, dependemos, como veremos, sobretudo, da presença de
outros seres humanos. Para nós, por conseguinte, seres plurais por excelência, Ser corresponde a
Aparecer; e a realidade só nos é concedida via o mundo e a pluralidade de agentes e de seus
pontos de vista.
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É, de fato, verdade que não há no mundo duas pedras de ametista completamente iguais,
nem tampouco duas rosas idênticas, mas tal distinção entre seres do mesmo tipo ou espécie é
bastante diversa daquele modo de singularidade propriamente humano. Enquanto as distinções
do primeiro tipo são, ou quantitativas, relativas à proporção compositiva dos seres inorgânicos,
ou dadas mediante qualidades objetivas, observáveis, passíveis de classificação, como no caso
dos seres vivos em geral; as que dizem respeito à pluralidade humana, apesar de abarcarem
também em si tais distinções qualitativas, se expressam de maneira ―indeterminável‖ e
―incristalizável‖ em sua essência através do discurso e da ação em meio a publicidade do mundo
humano comum.
Se, portanto, o discurso e a ação, palavras e atos, são os modos propriamente humanos
de responder à uma condição tal de pluralidade, é através destas atividades que o ―quem‖ do
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agente aparece, é ―revelado‖, em meio à trama de ações e palavras que conformam o que
Hannah Arendt chama de a ―textura dos assuntos humanos‖. Precisássemos, pois, distinguir o
mais originariamente possível os animais em geral dos seres humanos, deveríamos dizer que
estes últimos são, ademais, nos termos da pluralidade estabelecidos até aqui, seres de ação. E
isso porque, por mais coletivo que possa parecer o comportamento de certos seres não-humanos,
não se tece entre eles, a partir de seus atos singulares, um ―entremundo‖ próprio, onde as coisas
ganham sentido comum e os agentes correm o risco e colhem a potência, intrínsecos e
imprevisíveis, de ter ativamente o seu ―quem‖ revelado.
A ação humana só tem sentido pluralmente relevante se revela um agente a quem se lha
atribui. Para que tal agente venha a ser revelado é preciso que para além de um ―realizador de
feitos‖ seja também um ―pronunciador de palavras‖. É, pois, o discurso que ilumina os feitos,
aferindo-lhes um sentido comum, e nele, portanto, que a ação ganha relevância política e o
agente se revela. A singularidade do agente humano precisa então, para tornar-se pública, do
discurso. É através dele que, para além de certas identidades físicas singulares observáveis
(tonalidade da pele e dos olhos, altura, timbre da voz, etc) – um ―quê‖ – e modificáveis é
verdade, mas originalmente dadas, uma outra dimensão de identidades, pessoais e únicas – seu
―quem‖ – emergem do privado ao público, aparecem.
90 Gostaríamos aqui de fazer notar que o termo usado por Arendt “linguagem de signos” nenhuma
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E portanto:
Dessa forma, o poder humano político, assim como o espaço da aparência, mantêm
sempre seu caráter potencial, pois existe enquanto possibilidade onde quer que os seres
humanos se congreguem, mas mostra sua efetividade apenas onde esta reunião se faz sentir na
modalidade da ação e do discurso, e de tal forma que ―as palavras não sejam vazias‖, usadas
para ludibriar, e ―os atos não sejam brutais‖, usados para violentar e destruir. Atos e palavras
não podem divorciar-se, aqueles devem sempre ser o engendramento da realidade que estas vêm
revelar.
relação tem com linguagens de sinais como por exemplo a LIBRAS (Língua Brasileira de Sinais). E
que, portanto, a distinção que se estabelece é entre o discurso enquanto esteio possibilitador de
qualquer língua que colha sentido vivo da realidade, e portanto seja capaz de expressão espontânea,
seja ela oral-auditiva como é o caso do português e do inglês, ou visual-espacial como é o caso da
LIBRAS e da ASL (American SignLanguage); e uma linguagem de símbolos, precisos e não
ambíguos, preocupada apenas com a exatidão e acurácia informacional típica das máquinas
executoras de tarefas programadas (a redução da física à matemática atende, por exemplo a tais
propósitos). Quisemos aclarar este ponto pois poderia a leitora ou leitor desavisado(a) incorrer,
devido à similaridade dos termos, numa má interpretação e crer que a autora estava imbuída de
preconceitos acerca das línguas de sinais. Não é, como vemos, o caso.
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São essas as condições sem as quais não há revelação do agente. Sem as quais o
discurso se torna ―mera conversa‖, ilusória ou propagandística, ou ainda, como vimos
anteriormente, informação imprecisa, deixando de colher o sentido da pluralidade do intercurso
humano; e a ação perde espaço para a violência muda. Em todos estes casos o que se perde é o
caráter espontâneo do agir e falar humanos, pois o discurso tomado como um meio para
determinado fim ou bem é um instrumento impreciso que pode ser substituído por uma
linguagem de símbolos mais unívocos, ou, por mais eficiente que seja enquanto propaganda,
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nada revela, mas pelo contrário, esconde e distorce; e a ação é tão ineficiente como meio para
fins práticos que é nestes casos sempre preterida seja em relação à violência muda e tirânica,
seja em relação aos aparatos burocráticos. Nos diz Arendt:
Tais estórias, que se mostram muito mais àquele que observa do que àquele que age,
formam, retrospectivamente reunidas, a estória de vida de determinada pessoa, sua biografia, da
qual foi o ator, porque agiu e foi orador de si mesmo. Essas estórias, entretanto, não possuem
um autor. Se o tivessem, então minha pessoa seria algo do qual eu disporia como uma qualidade
objetiva, e isso significaria que eu poderia desimplicadamente inventar ou criar, e este parece
ser o sentido que se deu à liberdade em toda a tradição hegemônica de pensamento político,
minha própria estória de vida. Para tanto, é evidente que o sujeito teria que ser algo alijado da
Terra, do mundo e da ―teia de relações humanas‖, um ego transcendente, substancia pensante
por natureza, um puro cogito como queria Descartes, ou ainda uma alma racional ideal presa ao
corpo como queria Platão e mesmo toda a tradição medieval hegemônica. Para Arendt, estas não
passam entretanto de tentativas filosóficas de, por meio da adoção de uma lógica própria à
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atividade do artífice, afastar do âmbito dos assuntos humanos, da política, sua intrínseca
incerteza – mas tratar disso exigiria sem dúvida um outro trabalho e reflexão mais específicos.
Aqui, o que vale a pena destacar é a diferença entre uma estória inventada, ―criada‖
[madeup], obra de determinado autor; e as estórias reais resultantes da ação e do discurso
humanos, encenadas pelos atores no fluxo vivo do agir e falar da vida real, guardando sempre
algo de incerteza, imprevisão e improviso. Não é, mostra Arendt, por acaso que a arte grega do
drama (do verbo gregoδρᾶν[dran], ou no nominativo presente singular δράω, ―agir‖)
tragediográfico seja a melhor forma de representar, ―reificar‖, não através do coro, mas da
imitação [μίμησις (mimẽsis)] das estórias, a ação, dando forma ao ―quem‖ dos, sob esta
condição, ditos personagens. É que a ―essência viva da pessoa humana‖ não fica bem
representada apenas na letra morta do roteiro, e é por isso que ―a peça teatral só adquire plena
existência ao ser encenada no teatro‖ (ARENDT, 2014, p. 234).
Há, portanto, considerados estes pontos, uma frustração fundamental inerente ao campo
da ação humana relacionada ainda com o tipo de revelação do agente que está aqui em jogo. Se
por um lado a ação deve, para ter relevância plural, revelar o agente, por outro essa revelação se
dá de forma extremamente intangível. A ―essência viva da pessoa humana‖ não se dá a conhecer
com a mesma solidez dos objetos do mundo, e isso porque esse ―quem‖ que a pessoa é, se faz e
habita, como vimos, não o mundo objetivo das coisas, mas cada ato e cada palavra vêm a fazer
parte de uma teia de relações intersubjetivas intangível preexistente e na qual cada ação possui
uma relação em rede, um verdadeiro ―enredo‖, portanto, no qual se enredam, inserindo-se com
palavras e atos, e mutuamente influenciando suas estórias de vida, os mais diversos agente
singulares. A frustração na revelação consiste em que por mais exaustivamente que tentemos
dizer com palavras ―quem‖ alguém é, devido à generalidade própria da linguagem humana, que
opera por distinções e noções comuns, e à contrastante unicidade característica destes seres, o
fracasso de uma tal empresa, caso esteja em jogo aqui uma definição fixa e estável, é cristalino.
É ainda oportuno ressaltar, com base no que vimos, a grande peculiaridade deste
conceito de ação, muito mais restrito do que aquele a que estamos acostumados a usar
cotidianamente. Feitos e ações não são para Arendt exatamente a mesma coisa. Todas as ações
são feitos, mas, no entanto, a recíproca não é verdadeira. As ações, em meio ao universo
conceitual arendtiano, são um tipo específico de feito, realizado diretamente entre seres
humanos, no plural, e o discurso um dos modos desse agir humano, onde ao mesmo tempo fica
exposto, com toda a carga ambígua do termo, o sujeito91.
91 A palavra, no sentido usado por Arendt, não deve tomar a tonalidade da correlação sujeito-objeto
cunhada no bojo da Era Moderna pela filosofia cartesiana. Pelo contrário, está animada de um
espírito de superação daquela correlação como ela se estabeleceu na ontologia moderna. O sujeito
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Assim:
O fato é que a ação humana se insere através das relações que produz entre agentes
numa cadeia de ações ilimitadas e em rede, onde a imprevisibilidade e a irreversibilidade
ameaçam qualquer empreitada. Um verdadeiro ―efeito borboleta‖ dos assuntos humanos está em
jogo, pintado, contudo, pelas trágicas consequências que pode vir a ter, com a tonalidade
sombria da negatividade do adágio popular conhecido como ―a lei de Murphy‖.
Vemos, então, como a ação aqui descrita coloca o agente expressamente como um
refém de si mesmo, opacas que são as consequências de seus atos para si próprio. Ergue-se
parece um segundo grande problema: não seria demasiado perigosa a ação pensada em meio a
tamanha espontaneidade e imprevisibilidade? Muitos perguntarão: a quem responsabilizaremos
pelos erros que possam brotar dessa ação plural?
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Até aqui, pudemos fixar talvez que Hannah Arendt nos apresenta um conceito de ação
altamente centrado na noção de pluralidade. Ademais, que tal pluralidade não se reduz à uma
multiplicidade uniforme, mas compõe-se de seres únicos, singulares. E assim, que a
singularidade humana não é algo pré ou antipolítico, resguardada no espaço privado, mas que,
pelo contrário, é modo próprio da pluralidade humana e constituinte, em sua revelação no
espaço da aparência, do ―entremundo‖ subjetivo dos assuntos humanos.
aqui, muito longe de ser coisa pensante apartada do mundo, configura-se enquanto ser não apenas no
mundo, mas sempre do mundo, ativo, de pensamento, mas também de trabalho, de obra e, no que
vem ao caso, de ação. Cf. Hannah Arendt, The Life oftheMind, 1981, p. 19-20. Ademais, nem mesmo
enquanto ser de ação tem as pretensões de controle e domínio sobre si e sobre o mundo que se
depreendia da proposta cartesiana. Pelo contrário, age sim ativamente, mas isso, aqui, quer dizer
também espontaneamente.
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Assim, a ação e o discurso, os dois grandes pilares do exercício político, são mais que
nada respostas a essa esfera da condição humana que nos coloca em contato direto com outros
seres tão capazes de agir e desencadear processos novos e ilimitados quanto nós próprios.
Retomemos, pois, o primeiro problema com o qual nos deparamos no meio do percurso:
não seria a descrição arenditana da ação toldada pela incompatibilidade de suas exigências com
relação à nossa desigual estrutura social?
Para uma resposta a tal questionamento precisamos antes ter em mente que quando
Arendt busca fazer a descrição fenomenológica da atividade humana da ação esta é parte de
uma descrição mais ampla da vida ativa do indivíduo humano em suas três grandes dimensões,
as relações que entabula biologicamente com a natureza; as relações que estabelece com os
artefatos, instrumentos e objetos de uso; e as relações que diretamente perfazem-se entre seres
humanos. Ora, essas três dimensões existem cristalinamente na existência cotidiana de cada um
de nós, e é à última delas a que diz respeito a ação.
A condição da pluralidade é, portanto, um fato, e seja por meio de uma ação plural onde
os agente estão em par de igualdade, seja de outra forma qualquer, urge de nós uma resposta. O
que sem dúvida tem o poder de embaçar a boa visibilidade da questão é que, muito por causa do
segundo problema que nos assola (a grande ilimitabilidade, impresciência e irreversibilidade dos
resultados dessa atividade), decidimos historicamente optar pela redução drástica do poder da
ação humana. Se isso foi feito consciente ou inconscientemente é irrelevante ao menos para o
escopo deste escrito.
A redução a que nos referimos se deu, numa modalidade mais tradicional, por meio da
substituição da ação pela fabricação no âmbito político (o que significa traçar uma verticalidade
estabilizadora em meio às relações humanas, a típica relação governante – governados); ou
ainda, mais contemporaneamente, a partir da adoção de fins últimos econômicos e vitalistas,
tidos por inquestionáveis, para as decisões tomadas no domínio público. Tratamos, assim, seja
por sincero medo das consequências da ação livre, seja por imiscuídos interesses aristocráticos,
tradicionalmente e contemporaneamente, a ação, respectivamente, ou a partir do modelo da
obra, pensando os corpos políticos e as relações humanas como um produto acabado da maestria
de um profissional apto; ou, ademais e não por substituição, através de lentes naturalistas
características da atividade humana do trabalho. Essa é, linhas gerais e no que tange aqui os
aspectos diretamente relacionados com as questões que abordamos, a leitura que faz Arendt das
transformações modernas da hierarquia das atividades humanas no âmbito da vida ativa quando
nos fala em A condição humana de uma vitória do homo faber (o ser humano enquanto um
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fabricante), seguida de uma ascensão do animal laborans (o ser humano enquanto parte da
natureza terrena)92.
Não nos é possível tratar aqui das consequências de todo esse processo de negação da
ação humana política livre (e consequentemente da pluralidade!), mas podemos quiçá indicar
comparativamente as formas de contraponto às quais assinala Hannah Arendt. Ora, não nos é
permitido manter ao mesmo tempo a liberdade política (oposta a noção de soberania!)93,
relações horizontais, e não arcar ao menos em certa medida com a incerteza do futuro e a
irreversibilidade do passado no âmbito dos assuntos humanos. Mas, temos no próprio âmbito da
ação, sem precisarmos recorrer a expedientes daninhos à existência humana plural, duas
capacidades ativas verdadeiramente milagrosas e sanadoras nesse quesito. Tais remédios
possíveis para as vicissitudes características e inerentes aomodus operandi da pluralidade
humana são, nos diz Arendt, a promessa e o perdão. Aquela dando-nos a ―capacidade de dispor
do futuro como se fosse o presente‖(ARENDT, 2014, p. ; 305); e esta a de sermos ―liberados
das consequências daquilo que fizemos‖, sem o que ―nossa capacidade de agir ficaria, por assim
dizer, limitada a um único ato do qual jamais nos recuperaríamos; seríamos para sempre vítimas
de suas consequências‖(ARENDT, 2014, p. 295).
Explicamos melhor: são, em linhas gerais, duas as possibilidade que temos de assentar
corpos políticos, de viver em comunidades, escapando à grande imprevisibilidade do agir
humano e à irreversibilidade de suas consequências. Neste sentido, ou bem permitimos que a
força vinculante da promessa, dos tratados e alianças, ou, em última instância, da confiança e da
fé mútuas, estabeleçam seus ―marcos de confiabilidade‖ para o futuro e que o perdão de alguma
forma forneça parâmetros para o não aprisionamento dos sujeitos às consequências de seus atos
passados; ou, negando a pluralidade em sua dimensão radical (mas usando-a entretanto como
meio e mera multiplicidade massiva), recusamos a necessidade de ter que confiar na palavra
alheia e permitindo a fixação de uma hierarquia, qualquer que seja o critério pelo qual é ela
nutrida, verticalizamos as relações humanas e estabelecemo-nos sob relação de governo e
soberania (há ainda, certamente, o problema mais recente da ampla adoção política,
institucionalizada e tudo, dos anseios do animal laborans que citamos anteriormente, mas que
segue também deste ponto de vista a mesma linha de negação da pluralidade).
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A grande armadilha embutida nesta última opção está, para usar uma metáfora, em que,
talvez cansados de debater-nos perante as vicissitudes do agir humano, estejamos deitando a
descansar nossa existência sob o leito oferecido por Procusto.
Assim, o ponto está em perceber que a ação humana de que se trata aqui é algo bastante
peculiar e extraordinário, que, entretanto, a partir da conformação histórica de comunidades
políticas tornou-se um componente diário da ―vida‖ desses corpos políticos, apenas por meio da
qual sua sustentação se faz no tempo. Em oposição a ela, existe o que poderíamos chamar de
―ação determinada‖, condicionada por motivos e fins, guiada pelo domínio interno do indivíduo
e entendida como um meio de realização deste. Esta é particular e cada um pode e deve ser
devidamente culpado das que venham a causar dano; aquela, sem embargo, é plural e diz
respeito à comunidade em geral que se vincula e mantêm unida sob a égide de promessas
mútuas em relação um mesmo propósito, e é por meio dela que escrevemos a história (que nada
mais é do que o grande livro de estórias encenadas da humanidade) nas linhas do tempo.
De tal forma que, se perguntamos pela culpa de um ato ofensivo para com as promessas
que estabelecemo-nos mutuamente enquanto comunidade política, esta caberá àquelx que assim
individualmente agiu; mas se, entretanto, o que queremos saber, é realmente sobre a quem
imputar a responsabilidade pelas nossas ações e decisões políticas, ou mesmo às omissões: claro
está que a responsabilidade é coletiva. Não adianta imputá-la aos ―políticos profissionais‖(coisa
que em si mesma já é uma contradição em termos e deve a qualquer indivíduo ciente da fonte de
onde emana a política, a saber: a pluralidade, soar talvez tão esdrúxula quanto ―triangulo
redondo‖), ou mesmo aos educadores em termos de qualidade de educação, ou ainda aos
médicos em termos de acesso à a saúde, todas as mazelas relativas a organização destes campos
fundamentalmente plurais, serão sempre parte daquilo que compõe nossa responsabilidade
enquanto pertencentes a uma mesma comunidade política.
Sempre que um problema ou uma pergunta tiver, no mínimo calcanhar que seja, do
ponto de vista prático, um cunho político, nenhum indivíduo isolado será suficientemente capaz
de respondê-la. É que uma resposta a essas questões depende sempre da reunião, participação e
consideração recorrente de muitas e nunca pode ser dada por ―políticos profissionais‖ ou
teóricos de qualquer área que seja. Não é uma questão de técnica ou habilidade, não é uma
questão de força ou audácia, mas de pluralidade e responsabilidade.
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René Char
AUTOR:
REFERÊNCIAS:
ARENDT, H.; A condição humana. Rio de Janeiro: Editora Forense Universitária, 2014.
___________; Between Past and Future; Eight Exercises in Polítical Thought. London:
Penguin Books, 2006.
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Filosofia e colonialidade
A filosofia constitui muito de sua identidade em contraposição aos preconceitos
e ao senso comum, apresentando-se associada a uma atitude filosófica de espanto e
admiração, enquanto atitudes de desnaturalização do que é histórico e construído. Ao
colocar-se em busca do saber, superando a ignorância, não aceitando passivamente que
as coisas simplesmente sejam como são, a filosofia instaura a dúvida, questiona, nos
propõe olhar sob outras perspectivas. Esse corolário que fundamenta o fazer e o saber
filosóficos poderia constituir-se como uma rara unanimidade no âmbito dos que
praticam a filosofia, seja na academia ou em espaços alternativos: quem haveria de
duvidar do caráter investigador e questionador da filosofia?
Em contradição a esse corolário questionador que poderia sugerir liberdade de
pensamento, o que identificamos na instauração da tradição filosófica e seus saberes
legitimados e canonizados, tal como denunciam teóricas e teóricos da descolonização,
são práticas que corroboram com o senso comum de um projeto de poder que tem a
Europa como centro radial e o mundo norte-ocidental como seu modelo a ser
94
Professora do departamento de filosofia do Colégio Pedro II, doutora em filosofia pelo
PPGF-UFRJ.
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que instauram-se em nós como hábitos e o hábito funciona tal qual uma segunda
natureza, já nos afirmava Aristóteles. Justamente por isso faz-se ainda mais
indispensável não só o reconhecimento da violência dos processos de colonialidade do
cânone filosófico, como também sua desconstrução, além de ações de reparação, bem
como o fomento de filosofias e intelectuais militantes na construção de discursos
contra-hegemônicos. A negligência quanto a essas ações é ressaltada pela filósofa
indiana GayatriSpivak ao afirmar que ―essa exclusão da necessidade da difícil tarefa de
realizar uma produção ideológica contra-hegemônica não tem sido salutar.‖ (2014,
p.36).
Essas ações se somariam no sentido de abrir caminho para o esgarçamento e a
implosão da tradição excludente da filosofia e seus silenciamentos – assim tambémem
outros saberes, por reverberação e afecção mútua - cujos efeitos são verdadeiros
epistemicídios de etnia, cultura, gênero. Essas ações se somariam, ainda, no sentido da
superação, por cada subjetividade, de tais hábitos. Com essa afirmação objetivo destacar
e ressaltar em relação ao hábito dois elementos conjugados: i) primeiramente a
insistência na necessidade de desnaturalização desses processos e sua identificação
como históricos, algo que pode parecer para lá de óbvio – mas vivemos em tempos em
que têm sido necessário, se não indispensável, dizer o óbvio.
Aliás, a ideia de um ‗instinto‘ criador deve ser abandonada, como a do
‗eterno feminino‘, no velho armário das generalizações. (...) Quanto
ao argumento que se tira do exame da história, acabamos de ver o que
se deve pensar. O fato histórico não pode ser considerado como
definindo uma verdade eterna; traduz apenas uma situação, que se
manifesta precisamente como histórica porque está mudando.
(BEAUVOIR, Simone, 2009, p.916)
ii) em segundo lugar, mas não menos importante, recupero a noção de hábito também
para ressaltar sua dimensão pessoal. Este último elemento com a finalidade de sublinhar
que, a despeito das características sistêmicas e estruturais, também está na esfera de
cada subjetividade sua parcela de responsabilidade sobre a reprodução e a perpetuação
dessas estruturas históricas e seus lugares de privilégio.
Nessa perspectiva, o racismo não é problema de negros, indígenas ou
‗chincanos‘, ao contrário, é um crime da branquitude, com o qual todos os brancos e
brancas, de diferentes períodos históricos e lugares geográficos, em algum momento
tiveram ou terão que fazer seu ajuste de contas. Ainda que esse ajuste seja sempre
precário e insuficiente, posto que a escravização dos povos não-brancos, especialmente
dos africanos, foi um projeto e uma política global e com consequências nefastas até os
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dias de hoje, portanto, requer ações macropolíticas globais. Ainda assim, enfoco a
importância das ações singulares, nas esferas micropolíticas, por serem capazes de
operar reparações localizadas que muito influenciam na vida cotidiana das pessoas.
Reparações capazes de, na perspectiva das mutualidades, inscrever re-existências–
outros modos de existir, resistindo às opressões, criando outras formas de se relacionar
consigo mesmo e com o outro no mundo.
As sociedades que vieram a constituir a chamada América Latina
foram as herdeiras históricas das ideologias de classificação social
(racial e sexual) e das técnicas jurídico-administrativas das metrópoles
ibéricas. Racialmente estratificadas, dispensaram formas abertas de
segregação, uma vez que as hierarquias garantem a superioridade dos
brancos enquanto grupo dominante. (GONZALEZ, Lélia, 1988, p.73)
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95
Se houver interesse no aprofundamento deste conceito ver: LUGONES, María. Colonialidad y gênero.
Tabula Rasa. Bogotá - Colombia, n.9, julio-diciembre 2008.
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viviam livres, sem famílias tradicionais nucleares, em especial aquelas que possuíam
terras, fato social que ocorreu principalmente no interior dos limites geográficos da
Europa. Isso aconteceu na mesma época dos enclousers que, com sua política de
cercamentos, pôs fim às terras comunais e expulsou muitos camponeses livres do
campo, estabelecendo definitivamente o modelo de família nuclear burguesa96.
É nessa esteira que pesquisadoras dos estudos da mulher, de diferentes áreas,
como também da filosofia, vão defender a relação intrínseca entre gênero e
colonialidade, interseccionando os eixos de opressão de gênero, raça, classe e
sexualidade. Objetivam, dessa forma, instrumentar-se para melhor compreender e
interpretar o modelo de opressões de gênero que vivenciamos nos últimos séculos, no
qual estamos inseridas desde o advento do projeto colonial europeu moderno, cuja
faceta atual majoritária se mostra no modo do imperialismo capitalista da globalização.
Por um lado a consideração de gênero como imposição colonial – a
colonialidade de gênero em sentido complexo (...). Por outro lado, (...)
chegar a entender a profundidade e o alcance da imposição colonial.
Mas não podemos fazer um sem o outro. E, no entanto, é importante
entender até queponto aimposição deste sistema de gênero foi tanto
constitutiva da colonialidade do poder como a colonialidade do poder
foi constitutiva deste sistema de gênero. A relação entre eles segue
uma lógica de constituição mútua. (...) Penso que o que é novo aqui é
minha abordagem da lógica da interseccionalidade e meu
entendimento da mutualidade na construção da colonialidade do poder
e do sistema de gênero colonial/moderno. Creio que ambos os
modelos epistêmicos são necessários, mas só a lógica da construção
mútua é a que dá lugar para a inseparabilidadeda raça e do gênero.
(LUGONES, María, 2008, p.93)
96
A esse respeito ver FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e
acumulação primitiva. São Paulo: Elefante, 2017.
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quando ela afirma que ―deve-se, não obstante, insistir que o sujeito subalterno
colonizado é irremediavelmente heterogêneo.‖ (2014, p.73). María Lugones salienta que
a maioria desses grupos culturais adotava relações de gênero horizontais, não
hierarquizadas, diferenciadas em suas atividades, sim, mas não pré-determinadas
biologicamente (poderiam até mesmo ser escolhidas através de desejos, sensações,
sonhos). Tampouco tinham suas atividades desqualificadas ao serem identificadas com
um dos gêneros – evidenciando a não-hierarquização. Assim, cozinhar, limpar a casa ou
o conjunto dos trabalhos domésticos era, em geral, atribuição das mulheres nestas
culturas. A diferença é que tais atividades não eram consideradas desprezíveis a ponto
de sequer terem a sua mais-valia remunerada, em um mundo capitalista cuja estrutura se
baseia – ainda que só para alguns – na remuneração, via salário, pela venda da força de
trabalho, configurando não mais trabalho escravo ou servil, porém assalariado. María
Lugones relata, ainda, que muitos desses grupos culturais trabalhavam com a ideia de
‗terceiro gênero‘, que significaria não mais um gênero definido, mas sim gênero
indefinido, isto é, diferentes possibilidades de configurações de gênero baseadas na
indefinição. Desse modo, pareciam contar com a abertura para múltiplas possibilidades
de vivenciar a identificação de gênero, impensadas até então. Toda essa gama de
possibilidades alternativas de conceber e se inserir no mundo, de outras formas de
existência, se romperam com o projeto hegemônico e excludente da modernidade.
Assim podemos dimesionar
(...) o alcance das mudanças na estrutura social que foram impostas
pelos processos constitutivos do capitalismo
eurocentrado/colonial/moderno. Essas transformações introduziram,
através de processos heterogêneos, descontínuos, lentos, totalmente
permeados pela colonialidade do poder, que violentamente
inferiorizaram as mulheres colonizadas. Entender o lugar do gênero
nas sociedades precolombianas nos muda o eixo de compreensão da
importância e da magnitude do gênero na desintegração das relações
comuns e igualitárias, do pensamento ritual, da autoridade e de um
processocoletivo de tomada de decisões e da economia. (LUGONES,
María, 2008, p.92-93)
No percurso que faz, a filósofa argentina nos mostra o quanto as práticas coloniais
instauraram as categorias binárias estratificadas e hierarquizadas de gênero masculino e
feminino – que nem faziam sentido serem adotadas anteriormente – em muito como
estratégia de dominação colonial. Assim, via fragmentação social, cindiam os grupos
comunitários, enfraqueciam a força cosmopolítica das mulheres e suas importantes
vozes nos conselhos, assim como das deusas a elas identificadas (da caça, da fertilidade,
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É o que nos propõe a filósofa argentina Alcira Bonilla, lançando outra acepção possível
para o termo ‗universal‘, tão caro à tradição filosófica. Em sua criação conceitual, a
filósofa latino americana o resgata num sentido intercultural que reconhece seu valor
enquanto universal, mas um universal situado, alargado, ampliado a ponto de ser capaz
de comportar a existência de outros universais, configurando-se, portanto, em um
universal aberto ou em uma ‗universalidade de horizonte‘, valendo-me das palavras da
filósofa supra-citada.
Nessa mesma seara, ousamos propor a reinvenção de práticas de ensino de
filosofia que a façam ir além da leitura, explicação e repetição de argumentos dos
mesmos textos já canonizados, focando na valorização de discursos e epistemologias
alternativas, diversas e potencializadoras. Propondo-nos também a travar diálogos
horizontais, plurais e instigantes entre discípulos e mestres, flertando com a arte,
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REFERENCIAS:
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Aires: Miño y D‘Ávila; UNSAM Edita, 2015.
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SPIVAK, Gayatri. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014.
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Introdução
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Doutorando em Teoria da Literatura e Literatura Comparada (Universidade Federal de
Minas Gerais).
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Mestre em Educação (Universidade Federal do Rio de Janeiro). Coordenador do curso
de Administração da Faculdade do Centro Educacional Mineiro (FACEM).
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A recessão econômica mundial, em curso desde 2008, exerce sobre esses países,
dentre os quais o Brasil, forte empecilho para a consolidação de direitos devido não
apenas a flutuações do mercado externo, mas, também, a medidas como controversos
ajustes fiscais. A austeridade, adotada pelos governos como panaceia para o ―mal
humor‖ do mercado, tem como imperiosa contraparte a inobservância aos direitos
humanos, uma vez que a obsessão estatal por estabilidade financeira implica subtração
de recursos para áreas já historicamente sacrificadas, como saúde e educação.
Em face desse panorama, este artigo visa à compreensão da confluência
epistemológica entre Filosofia e Direito mediante exame das reflexões de Hannah
Arendt sobre a noção de direitos humanos, cara a ambos os campos epistêmicos e
particularmente imperativa como tópico de discussão em nosso contexto histórico.
Nesse cotejamento, interessa-nos revisitar algumas contribuições da filósofa alemã para
pensarmos questões contemporâneas candentes, como a subtração de direitos na atual
política de austeridade econômica adotada pelo atual governo no Brasil.
Os direitos humanos
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direitoshumanos, por suas raízes históricas, [é] adotada para referir-se aos direitos da
pessoa humana antes de sua constitucionalizaçãoou positivação nos ordenamentos
nacionais‖, ao passo que ―direitosfundamentaisdesignam os direitos humanos quando
trasladados para os espaços normativos‖ (BONAVIDES, 2002, p. 234). Em que pese a
terminologia empregada, o conjunto de direitos inerentes à pessoa humana é o
fundamento de todos os direitos, já que o ser humano deve pairar acima de toda e
qualquer organização social, política, econômica, cultural ou religiosa. Nesta acepção,
todos os direitos, quer sejam inerentes à espécie humana, quer sejam corolários de
conquistas logradas no curso da humanidade, são considerados direitos humanos.
Todavia, circunscrever o que são direitos humanos também constitui desafio
complexo. Doutrinadores se lhe definem, grosso modo, como o conjunto de instâncias
institucionais que paulatinamente consubstanciam, em cada período histórico,
demandas de determinados grupos por dignidade, isonomia e liberdade que devem ser
incorporadas por ordenamentos jurídicos tanto nacionais quanto internacionais (PÉREZ
LUÑO, 2002). Desse modo, enquanto filósofos e doutrinadores de inflexão
jusnaturalista proposta por Locke e Montesquieu sustentam que os direitos humanos
são apenas os direitos naturais, isto é, aqueles inerentes à própria qualidade de pessoa
humana enquanto membro de uma espécie, outros tantos concebem os direitos humanos
sob envergadura mais ampla, de sorte a não passar ao largo dos direitos resultantes de
evoluções de toda sorte por que a humanidade tem passado. Afinal, os direitos, longe de
medrados num vácuo temporal e constitutivamente imutáveis, possuem historicidade e,
por isso, caracterizam-se pela mobilidade. ―Os direitos do homem, por mais
fundamentais que sejam, são direitos históricos‖, explica Bobbio (1996, p. 45), porque
―nascidos em certas circunstâncias, caracterizados por lutas em defesa de novas
liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e
nem de uma vez por todas‖.
Formalmente, a história dos direitos humanos se fundou com o balizamento do
poder do Estado pela Lei. Contudo, essa perspectiva institucionalista desconsidera o
legado de povos que não conheceram a técnica de limitação do poder do Estado, mas,
desde tempos imemoriais, privilegiavam a pessoa humana em seus costumes e
instituições. No curso da história, diversas iniciativas sugerem a existência de
cometimento com os direitos inerentes à pessoa humana, haja vista o Código de
Hamurabi (Babilônia, século XVIII a.C.); o pensamento de Amenófis IV (Egito, século
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Como sabemos, Arendt publicou obras respeitáveis sobre filosofia política, tais
como As Origens do Totalitarismo e A Condição Humana, que, dentre outros de
menorrelevo, renderam-lhe deferência perante os intelectuais do pensamento político
ocidental. Graças à sua contribuição para o pensamento filosófico e político do século
XX, tornou-se conhecida pela alcunha de pensadora da liberdade, status erigido sobre
uma consistente carreira filosófica baseada em ponderações nas quais une pensamento e
experiência. No largo escopo de seu legado escritural, a filósofa judia-alemã se propôs
a compreender o totalitarismo do século XX não pela reconstrução histórica dos fatos,
97
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mas, sobretudo, por uma reflexão filosófica sobre o poder, o direito e a condição
humana.Essa tríade conceitual é plasmada pela noção de igualdade, tão cara às
digressões de Arendt, que, numa de suas obras seminais, ressalta:
já que o país é grande demais para que todos nós nos unamos para
determinar nosso destino, precisamos de um certo número de espaços
públicos dentro dele. As cabines em que depositamos as cédulas são,
sem sombra de dúvida, muito pequenas, pois ali só há lugar para um.
Os partidos são completamente impróprios; nele, a maior parte de nós
é apenas o eleitorado manipulado. Mas se apenas dez de nós
estivermos sentados em volta de uma mesa, cada um expressando sua
opinião, cada um ouvindo a opinião dos outros, então uma formação
racional da opinião pode ter lugar através da troca de opiniões. Lá
também ficará claro qual de nós é o mais indicado para apresentar
nossos pontos de vista diante do mais alto conselho seguinte, onde
nossos pontos de vista serão esclarecidos pela influência de outros
pontos de vista, revisados, ou seus erros demonstrados (ARENDT,
2010, p. 200).
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sua experiência no auxílio a refugiados na França e seu exílio nos Estados Unidos.
Essas situações lhe propiciaram alinhavar reflexões acerca, sobretudo da existência e da
efetividade dos direitos humanos.Para Arendt, os direitos humanos, na forma que foram
idealizados século XVIII, já trazem consigo um problema em sua concepção, na
medida em que se tinha em mira um ser humano ―abstrato‖. Os trágicos eventos
ocorridos na primeira metade do século XX assinalavam que a concepção de direitos
humanos, fincada na presumida existência de um ser humano como tal, colapsaria no
momento mesmo em que os quantos lhe haviam rendido alvíssaras eram agora
confrontados com pessoas que, de fato, encontravam-se despojadas de todos os
atributos possíveis, exceto o fato de ainda serem humanos. A seu ver, há um direito
universal que deve ser respeitado por todos, independentemente de sua condição etno-
racial, geográfica ou religiosa e que não deve ser mensurado por qualquer outro juízo,
exceto pelo critério de ser humano: o ―direito de ter direitos‖. Sob esse prisma, ao passo
que outros direitos sofrem mutações conforme circunstâncias históricas, há um direito
que não germina no interior da nação e, portanto, carece de mais do que garantias
nacionais (ARENDT, 1949).
Essa preocupação da filósofa estava ligada, possivelmente, à condição dos
judeus na Alemanha nazista e nos fluxos migratórios em busca de liberdade e melhores
condições de vida em outros países. Ao refletir sobre a situação de apátridas no período
entre as duas guerras mundiais, Arendt demonstra que a proscrição dos direitos legais
de todo um grupo humano fora prefigurada pelo tratamento de minorias e apátridas por
países europeus após a Primeira Guerra. Uma vez despossuídos de um governo que os
protegesse, tais grupos foram relegados à completa ilegalidade. Donde a condição
paradoxal dos direitos humanos: se, em termos principiológicos, são inalienáveis e
inequívocos porque presumivelmente existentes sem embargo de pertencimento grupal,
em termos práticos, precisamente quando seres humanos são privados de um governo
próprio e, desta feita, não podem se socorrer de nenhum recurso que não os seus
direitos ―naturais‖, encontraram-se de todo desamparados de direitos. Reduzidos à
condição humana mais ínfima, não mais usufruem da salvaguarda de nenhuma
autoridade efetiva (ARENDT, 1989). A filósofa ensina, pois, que um aspecto a ser
considerado pelo ordenamento jurídico é a dimensão totalizante da expressão direitos
humanos, quando o que se tem observado é que a luta de grupos minoritários (como
negros, mulheres e homossexuais) põe em questão a homogeneidade do termo
―humano‖. Conforme veremos, a ponderação arendtiana sobre os direitos humanos
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O fato de, ainda no século XXI, haver clamores pelos direitos humanos
evidencia que suas garantias não foram concretizadas de todo. Como é sabido, os
direitos humanos são fundamentais para a dignidade da pessoa humana e sua plena
participação na sociedade, incluindo-se aí o direito à vida, à alimentação, à saúde, à
moradia, à educação, à segurança, à liberdade e à igualdade, que devem ser tratados
conjuntamente como interdependentes, indivisíveis, complementares, universais,
inalienáveis e imprescritíveis. Contudo, esses direitos são existentes de jure, mas, por
vezes, não se consubstanciam de facto, em razão de circunstâncias como, por exemplo,
medidas governamentais totalitárias. Tal descompasso dá claras mostras de que o
direito à cidadania não é uniformemente conferido a todos os indivíduos, porque o
abismo entre discurso e práxis nos remete ao alerta de Arendt a respeito do quão
abstrato o conceito de direitos humanos pode se tornar quando descolado da
materialidade das relações:
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Não é demais lembrar que outro tema largamente tratado por Arendt consiste na
condição dos apátridas, grupos humanos que, expulsos do país de origem, não eram
bem-vindos em lugar nenhum, além de haverem perdido qualquer possibilidade de
tutela jurídica do Estado. Ao não terem cidadania, acabavam por não ter existência
formal por não constituírem personalidade jurídica. Esses indivíduos ficavam à margem
do direito porque, em suma, eram despossuídos do ―direito a ter direitos‖ (ARENDT,
1989). Ora, podemos afirmar, em nível metafórico, que há apátridas no interior de suas
próprias nações: os sujeitos destituídos ou subtraídos de sua cidadania mediante, por
exemplo, a conversão de direitos em serviços perpetrada por medidas como a
privatização de benefícios públicos como a saúde e a educação.
Quando se coloca em questão os direitos humanos, coloca-se também em
questão a participação política do sujeito enquanto agente na polis, inscrito num regime
democrático. Discutir direitos humanos implica, pois, discutir a condição, dada ou
negada ao ser humano, de ter acesso aos mesmos direitos e prerrogativas de seus
coetâneos. Nesse ponto, a Filosofia e o Direito se encontram, na medida em que aquela
busca refletir acerca da condição humana e da politização da vida em sociedade e este
visa assegurar aos indivíduos o pleno exercício da cidadania. Exercício cujo acesso se
torna mais e mais restrito sob um governo de cariz totalitário.
O fato de Arendt focalizar regimes totalitários de sua época, como o nazismo e o
stalinismo, não significa que sua teoria não tenha validade hoje. O não cumprimento
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dos direitos de Liberdade, Igualdade e Fraternidade para todos indica que a filosofia de
Arendt é relevante por alertar sobre a periculosidade do regime de poder que não
oferece isonomia a todos. A filósofa nos ensina, dentre tantas outras coisas, a ver na
cidadania o direito a ter direitos, uma vez que a igualdade não é um dado, mas um
work-in-process forjado no espaço público, que constitui, neste caso, uma arena de
resistência à opressão:
Considerações finais
103
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que a obra de Arendt nos parece forçosa para pensarmos a conjuntura política, social e
econômica do Brasil, sobretudo no que toca à necessidade de garantir proteção jurídica
às minorias sociais, étnicas e sexuais a possibilidade de exercer cidadania numa
conjuntura de austeridade balizada pela sistemática retirada de direitos e fornecimento
de benesses. Afinal, é a massa populacional despossuída de privilégios e, por isso
mesmo, dependente de serviços públicos como saúde e educação que, à semelhança do
que observou a filósofa noutro contexto, tem sido vítima de contundente desrespeito à
dignidade humana.
As ponderações de Arendt, cuja totalidade este trabalho não pretendeuexaurir,
convergem para uma preocupação central a respeito da condição humana frente às
injunções políticas, sociais, econômicas e culturais. Desse modo, sua obra se caracteriza
por uma aguda percepção das relações, não raro conflituosas, entre o homem e o espaço
que habita. Por isso sua atualidade para pensarmos a anomia política por que passa o
Brasil sob um governo de transição cuja estratégia econômica de austeridade como
forma de ajuste das contas públicas tem levado a injustiças sociais, abusos de poder e
negação de direitos. Que as lições arendtianas nos inspirem na luta para que os ideais
que balizaram o advento da república não se tornem um discurso vazio,
desacompanhado de uma práxis que lhe dê significação.
AUTORES
Referências bibliográficas
ARENDT, Hannah. The Rights of Man: What Are They? Modem Review, v. 3, n. 1, p.
24-37, Summer 1949.
ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. Trad. Roberto Raposo. São Paulo:
Companhia das Letras, 1989.
ARENDT, Hannah. Crises da república. Trad. José Wolkmann. São Paulo:
Perspectiva, 2010.
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Resumo
É sabido que toda produção intelectual medieval tinha como objetivo imprimir no
homem o desejo por alcançar Deus, de infundir no seu coração ou na sua alma o ―amor
ordenado‖, de prepará-lo para captar, no cosmo, as marcas inteligíveis de Deus, as
quais, uma vez seguidas retamente, o fazem viver feliz aqui na terra e alcançar a
―verdadeira felicidade‖, na vida eterna. Dentro deste espírito, a arte medieval assume
um caráter psico-pedagógico, enquanto artifício ou método de explicitação ou
elucidação das verdades ocultas reveladas através das Sagradas Escrituras ou da vida
dos santos, pois, sendo o povo, na sua maioria, rude, aquilo que não podiam entender
nas Escrituras ou através delas, deveria ser apreendido através das artes. É dentro deste
contexto que vamos enquadrar a rica produção intelectual da teatróloga medieval
Roswita de Gandersheim.
Fonte: http://en.wikipedia.org/wiki/Hrotsvitha
99
Doutor em Filosofia pela PUCRS, Pós-doutorado em Filosofia pela Universidade do
Porto. Professor da Graduação e Pós-Graduação (Mestrado e Doutorado) em Filosofia
da UFPE. E-mail: marcosnunescosta@hotmail.com
100
Segundo Bernard Pautrat “existem pelo menos 22 denominações de seus nomes, entre as quais
podemos encontrar variadas formas como Hrotsuit, Hrosvitha, Hroswitha, Hrotsvitha Hrotsvithae,
Roswitha” (apud BOVOLIM, 2005, p. 13). Segundo Elisabeth Reinhardt, “há diversas teorias sobre o
106
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Média, nasceu provavelmente por volta do ano 935, uma vez que, alguns anos depois, por
volta de 959, quando Gerberga, filha do duque Henrique da Baviera e sobrinha do Imperador
Otto I, foi eleita abadessa do mosteiro beneditino de Gandersheim - Leste da Saxônia, ela
também já era cônega101 desse mosteiro (Cf. ISABELLA, 2007, p. 36).
significado do nome, por exemplo, Rosa Branca” (1999, p. 600, nota 3). Já ORTUÑO ARREGUI, 2016, p.
54, nota 34, diz que “é mais provável que tenha o significado dado por ela mesma a seu nome,
quando no Prefácio das seis comédias se denomina a si mesma Ego,Clamor Validus Gandershemensis
(a etimologia alemã é "hruot"= clamor y "sui(n)d"= validus)”.
101
Para Diana Arauz Macedo, Roswita não era propriamente uma monja, mas uma cônega, o que
significa dizer que “as cônegas da mencionada abadia, diferentemente das monjas, faziam votos de
castidade e obediência, mas não de pobreza, de forma que podiam dispor e administrar seus bens,
fato que as mantinha em uma rotina mais dinâmica com o mundo exterior, diferetemente do
enclausuramento exigido as outras religiosas” (2005, p. 2004, nota 3). Isso fazia com que Roswita,
como oriunda da classe nobre, mantivesse contato com a Corte e com os meios intelectuais do seu
tempo, com quem dialogava. Traz esta mesma informação ORTUÑO ARREGUI, 2016, p. 55.
102
Peter Dronke insinua que Roswita, que abraçou a vida monástica já com certa idade, iniciou sua
formação intelectual antes de sua entrada no mosteiro, quando diz: “Roswita talvez chegou a canonisa
com uma idade não tão jovem, depois de haver passado por uns bons anos de formação cultural e
social em meio a um ambiente refinado e cosmopolita da Corte dos Ottos, onde deve ter
compartilhado das aspirações literárias, artísticas e políticas destes últimos titulares autênticos do
Império romano*...+” (apud BOVOLIM, 2005, p. 83). Defende este mesma tese Diana Arauz Macedo,
quando diz que “Hrotsvitha passou grande parte de sua juventude no ambiente da Corte, onde se
nutriu de uma rica Biblioteca baseada em autores clássicos e medievais” (2005, p. 204).
103
A esse respeito diz Andrés López: ―Os grandes mosteiros da Alemanha, no século X,
inclusive Gandersheim, estavam repletos de obras de autores clássicos, personalidades
literárias e autores culturais reconhecidos, que desempenharam um papel importante
na formação das mulheres nobres e das religiosas que frequentavam os mosteiros da
Alemanha‖ (LÓPEZ apud BOVOLIM; OLIVEIRA, 2012, p. 107).
104
A propósito diz WEMPLE In: DUBY; PERROT, 1990, p. 264: ―Hrotsvita conhecia
bem muitos autores, mas na primeira linha dos seus favoritos estavam Virgílio e
107
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narra o martírio das santas virgens Fé, Esperança e Caridade, supostamente acontecido no
tempo do Imperador romano Adriano, a personagem principal - a mãe Sabedoria - é
apresentada como uma mulher extremamente sábia que, além de ministrar a educação
religiosa cristã, transmite, também, conceitos importantes para a formação intelectual laica,
como, por exemplo, da matemática105. Segundo Jean Lauand, esses conceitos foram extraídos
do De Arithmetica, de Bóecio (Cf. LAUAND, 1986, p. 41), de forma que podemos afirmar que,
“além de exaltar os ideais religiosos, ela transmitiu aos ocupantes dos mosteiros ensinamentos
mínimos sobre a civilização clássica e sobre as artes liberais: o trivium (gramática, retórica e
dialética) e o quadrivium (aritmética, geometria, música e astronomia)” (BOVOLIM, 2005, p.
15).
Por isso, embora procurasse se autorretratar como uma mulher humilde, o que era
típico das mulheres místicas medievais106, Roswita era conhecida como “a voz forte da abadia
de Gandersheim”.
Terêncio. Virgílio serviu de modelo aos seus escritos épicos e as suas peças foram
escritas com o sentido de humor malicioso de Terêncio, embora o seu argumento se
baseie nas legendas de santos e nada tenha de terenciano‖.
105
MARTINS, 2011, p. 88, comentando acerca do simbolismo nas obras de Roswita,
chama a atenção para a grande quantidade de números na supracitada peça, como, por
exemplo, ―a menina Fé morre com 12 anos, chicoteada por 12 centuriões‖; no instante
em que Caridade morre ―quem olhasse atentamente veria 3 jovens radiosos de
claridade que a acompanhavam, etc.‖. Para um maior detalhamento dos conceitos
matemáticos trabalhados por Roswita, ver: NASCIMENTO In: 2012. p. 11-15.
106
Para muitos comentadores, muitas escritoras medievais apresentavam-se como
mulheres humildes como estratégia pedagógica para se fazerem ouvir em meio a uma
sociedade elitista e machista. Mas, por trás dessa aparente humildade, ou nas
entrelinhas de seus escritos, principalmente das personagens femininas por elas
protagonizadas, apresentavam-se como mulheres fortes e sábias, em condições de
discutir em pé de igualdade com os homens, o que deixava entrever certa
―teologia/filosofia feminina‖ em defesa da igualdade de gênero. Daí, para BOVOLIM,
2005, p. 88, ―Roswita manifestava uma atitude muito sábia perante o sexo oposto, ela
procurava agradar destacando a debilidade da mulher e, ao mesmo tempo, exaltando
toda força, inteligência, coragem e o conhecimento que ela possuía‖. Em seus
diálogos acabavam sempre por vencer os homens. Igualmente reforça essa tese Luiz
Jean Lauand. que, na introdução à sua tradução do Dulcício de Roswita, diz: ―[...] no
Dulcício, os papéis ridículos e grotescos são reservados aos homens, enquanto as
personagens femininas são as heroínas, cheias de força e determinação‖ (LAUAND,
1998, p. 170) e BRAGANÇA JÚNIOR; RESENDE MARQUES, 2013, p. 49-50,
assim concluem seu texto: ―Em sua arte dramaturga, cujas obras são de caráter
educador e evangelizador, Roswita von Gandersheim dramatiza a vida dos santos e
mártires da Igreja justamente com nomes e elementos da História, com a intenção de
criar um modelo de comportamento voltado ao público feminino das congregações
conventuais e, poderíamos também dizer, para a sociedade cristã [...]. Mas do que
108
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A produção literária de Roswita, escrita em latim, como era habitual para a época,
divide-se em três grupos:
- os poemas épicos, que são histórias rimadas, um dos quais a vida do Imperador
Otto I, por isso intitulado Gesta Ottonis (As obras de Otto). É também chamado
de Panagyric Ottonum, e foi apresentado pela autora em 968, ao mesmo tempo
ao velho Imperador e ao seu filho (então já coroado como) Otto II. Segundo
Giovanni Isabella, “trata-se de um poema épico com cerca de 1500 versos, que
se propõe a recontar as ações políticas e militares (esse o sentido próprio do
termo gesta) de Otto I da Sassonia” (ISABELLA, 2007, p. 34).
2 - as comédias, dramas ou peças (em número de seis), de cunho moral, que tratam
da vitória da fé e da pureza sobre o poder e a sedução: Gallicanus (Conversão de Galicano,
general dos exércitos); Dulcitius (Dulcício ou Martírio das santas virgens Ágape, Quiônia e Irene
– que simbolizam respectivamente a Caridade, a Pureza e a Paz)107; Callimachus (Ressurreição
isso, Roswita mostra como seu teatro, no qual os personagens femininos são os
protagonistas, que a mulher medieval pode ser tanto (ou mais) forte que o homem
quando se trata de manter sua fé inabalável‖.
107
Da peça Dulcício, temos uma tradução para o português, com introdução e comentários de Luiz Jean
Lauand In: LAUAND, 1998, p. 171-190, o qual assim resume o enredo da peça: “Martírio das santas
virgens Ágape, Quiônia e Irene. Na calada da noite, o governador Dulcício aproximou-se secretamente
do lugar em elas estavam encarceradas, ardendo em desejos de abraçá-las. Mas, acometido de súbita
demência, enganou-se e começou a abraçar e beijar panelas e caldeirões de cozinha, tomando-as
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Mas, como cônega, apesar de tocar em temas sensuais ou de trazer para suas obras
os pontos “indecentes” do poeta pagão Terêncio, a poetisa teve de adaptá-los à moral cristã
da época, conforme narra a própria Roswita:
E uma das formas ou instrumento pedagógico usado por Roswita para falar de temas
proibidos ou tabus era exatamente transformá-los em dramas e/ou comédias jocosas ou
lúdicas, enquadrando-se ela, assim, na tradição medieval criada nos tempos do Imperador
Carlos Magno, quando seu mestre, o filósofo e pedagogo Alcuíno de York, que tinha como
pelas moças, até que ficou com o rosto e as vestes impregnados de uma horrível pretume. Depois, as
virgens foram entregues a Sinísio, para que as torturasse, mas, milagrosamente, por ele também
foram enganadas. Por fim, Ágape e Quiônia foram queimadas e Irene, trespassada por uma flecha”.
108
Da comédia Sapientia, temos uma tradução para o português, com introdução e comentários de Luiz
Jean Lauan In: Textos antigos e medievais traduzidos. Coord. e seleção de Ricardo da Costa. Disponível
em: http://www.ricardocosta.com/textos/textosmed.htm Acesso em: 30.03.2012. Em linhas gerais,
nesta peça, “cuja ação decorre no início da era cristã, durante o império de Adriano, as personagens
Sabedoria e suas três filhas – Fé, Esperança e Caridade – são estrangeiras que, chegadas a Roma,
vêem-se denunciadas ao imperador pelo severo Antíoco, por ameaçar a ordem do Estado e a
‘concórdia do povo’, ao difundir ‘a divergência de culto’, e induzir à disrupção social pela ‘prática da
religião cristã’” (LAUAND, 1986, 46-47). Já segundo MARTINS, 2011, p. 83, “as crianças (Fé, Esperança
e Caridade) alegorizam, antes, as três virtudes teologais, enquanto a personagem da mãe (Sabedoria)
pode se referir à própria Verdade sagrada revelada nos evangelhos”.
110
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Não se sabe ao certo se tais esboços dramáticos foram alguma vez representados, se
ela os escreveu apenas como exercício literário, utilizado somente para a distração de suas
companheiras do convento, ou se tiveram um público maior, com encenação propriamente
dita. Alguns comentadores consideram que tenham sido realmente encenados, principalmente
as peças com papéis infantis, pois em sua época crianças eram mandadas para os conventos
para serem educadas. Por exemplo, na peça Sapientia, na qual Roswita tem a preocupação de
escrever as falas de acordo com a idade das personagens, as crianças mais novas (as
personagens infantis têm 8, 10 e 12 anos) recebiam menos falas, mais curtas e mais fáceis.
Mas, para outros comentadores, é impossível que as peças de Roswita tenham sido
encenadas.
De qualquer forma, por ter “escrito todos as suas obras em latim, é considera a
primeira pessoa desde a Abntiguidade tardia a compor obras de teatro nessa língua” (ORTUÑO
ARREGUI, 2016, p. 55).
111
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Referências
ARAUZ MERCADO, Diana. Imagen y palabra a través de las mujeres medievales (siglos IX-XV).
Primera parte: Mujeres medievales del Occidente europeo. Escritura e Imagen, v. 1, p. 199-
220, 2005.
112
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113
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Autoria:Gigliola Mendes, doutoranda do Programa de Pós-graduação em Filosofia da
UNB. Orientador: Dr. Alex Sandro Calheiros.
110
Diotima de Mantineia teria sido uma sacerdotisa, filósofa e mestre na Atenas
Clássica. A referência à sua existência ocorre apenas no diálogo O Banquete de Platão,
quando Sócrates, ao realizar o seu discurso em honra ao amor, afirma que versará sobre
ensinamentos, teóricos e metodológicos, que lhe foram dados por Diotima. Apesar de
Platão se referir explicitamente à sábia estrangeira no diálogo e de sempre utilizar
figuras históricas como personagens em suas obras, muitos de seus comentadores
colocam em dúvida sua existência histórica.
114
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111 Todas as citações literais contidas neste texto foram traduzidas livremente pela
autora.
112
Conceito fundamental para o pensamento italiano de tradição marxista – remetendo
mais especificamente aos filósofos Benedeto Croce e Antonio Gramsci – e para
Françoise Collin, filósofa do feminismo da diferença francês, cujas obras influenciaram
a filosofia de Diótima.
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Dietz define o feminismo da diferença social como uma categoria multidisciplinar,
incluindo toda uma tradição de autoras (desde Beauvoir até os anos 80), que
desenvolveram suas teorias em diferentes campos do conhecimento. Essa pesquisadora
enumeraos feminismos e as autoras iniciais dessa categoria: ―o feminismo existencial de
Beauvoir (1949), o feminismo liberal de Friedan (1963), o feminismo radical de Millet
(1970), o feminismo socialista-marxista de Rowbotham (1972), o feminismo
psicoanalítico de Michel (1973) e outras escritoras da ‗libertação da mulher‘ dos anos
sessenta e princípio dos setenta‖ (DIETZ, 2003, p. 404).
116
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feministas, espalhados por muitas cidades italianas, que as reflexões e ações políticas se
tornam férteis. É o que Lauretis (1990) chama de dupla militância feminista. Nesses
espaços, fora das instituições e muitas vezes conduzidos em locais privados, começam a
ser gestadas as análises sobre a diferença sexual e as necessidades ―específicas‖ das
mulheres. Isso porque,ali,elas encontram umlocusem que era possívelter voz e expor
suas pautas, fazer formação política, elaborar manifestos, criar jornais, revistas eeditoras
para estimular a escrita feminina e a circulação das obras produzidas.
114
Primeiro um coletivo de mulheres fundado, em 1975 (hoje uma empresa feminista), de
onde vieram as fundadoras de Diótima, em especial LuisaMuraro. A Livraria é uma referência
do feminismo da diferença italianoe atua no apoio da escritura das mulheres, com atividade
editorial, ponto de venda e divulgação das obras produzidas por mulheres, ao longo da
história.
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Lauretis (1990), a política separatista feminista, na Itália, foi quase sinônimo do próprio
feminismo. Isto porque, por meio dela,que as mulheres puderam construir laços
consistentes entre si, formar sua consciência política, definir suas pautas e criar a
identidade do feminismo ao longo de toda a década de 70.
Com o tempo, no entanto, a estratégia de autoconsciência precisou extrapolar a
ação privada para se concretizar ação política no mundo. O ―separatismo estático‖ e
radical apresentou seus limites: como não alterou a estrutura tradicional de divisão entre
público e privado para mulheres, mas, ao contrário, a corroborou, as novas relações
experimentadas nos coletivos, não encontrou espaço para se reproduzir socialmente, e o
novo conhecimento crítico das mulheres não obteve legitimidade nos círculos de
produção intelectual (LAURETIS. 1990). Assim, a partir da compreensão desta ―derrota
social e simbólica das mulheres‖, nos anos de separatismo, tornou-se necessário
modificar a estrutura do feminismo, na Itália, para superar os desafios reais que o
presente lhes apresentava; o que permitiu pensar a diferença sexual, em termos mais
complexos.
No contexto de necessário avanço da autoconsciência para outras ações políticas
e de formação, legitimadas no espaço público, apresentaram-se duas iniciativas
potentes: a primeira,do coletivo Livraria das Mulheres de Milão, em que suas
integrantes dedicaram-se conceitualmente à diferença sexual como uma teoria da prática
social-simbólica e, a segunda, da comunidade filosófica feminina Diótima (criada em
1983), com o foco no pensamento da diferença sexual.
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As muitas publicações da comunidade, desde sua fundação até os dias atuais, se
dedicam a fundamentar os conceitos e as práticas, que têm a diferença sexual como fio
condutor para se pensar a luta das mulheres, tais como: a) dicotomia entre público e
privado, com foco na Filosofia; b) uma nova compreensão de autoridade; c) a
diferenciação fundamental entre política (pode ser conduzida através da diferença) e
poder (se configuraria pela perspectiva política simbolicamente masculina); d) uma
ordem simbólica e social feminina; e) corpo, presença e vivência como centrais na ação
política das mulheres e f) a escrita das mulheres ou escritura feminista como um
elemento marcante para a luta política.
125
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Diotima ensina a Sócrates a especificidade de Eros, que se encontra, enquanto
daimon, na posição intermediária entre os deuses – que possuem o bem e o belo, ou
seja, a sabedoria – e os humanos – que estão privados do bem e do belo. Sua natureza
intermediária possui uma origem mítica: é fruto da união entre a mãe mortal Penia
(Pobreza) e o pai divino Poros (Engenho). Daquela, herda sua condição de falta, de
carência de algo, o estado de aporia, e, deste, a capacidade de superar a falta e alcançar
a euporia. A união das características herdadas de ambos (a peculiaridade do amor
erótico) constituiria a especificidade do filósofo e do pensamento ao qual poderia se
dedicar – philia à sabedoria. No diálogo OBanquete de Platão, ―se estabelecem a
natureza, as finalidades e os limites da atividade filosófica‖ (FERRARI, 2012, p. 9).
117
A palavra matéria deriva etimologicamente de mater-tris, que significa mãe. No
feminismo da diferença de Diótima, mas já desde Lonzi, há um resgate do conceito de
matéria e o desenvolvimento de um materialismo, que se apoia na relação com a mãe,
com a terra, com a fonte material da vida. Cito Lonzi: ―a mulher é a outra cara da terra‖
(LONZI, 2014, p. 45).
126
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É importante destacar que, para Luiza Muraro e para o feminismo da diferença italiano, a linguagem e
as produções simbólicas são também corporais, materiais. Dessa forma, realmente não faz sentido para
essas reflexões a dicotomia natureza-cultura. Segundo Esposito, ―o feminismo italiano, inicialmente
engajado numa redescoberta da linguagem simbólica, começa a perceber a inadequação do horizonte
linguístico em relação a algo de irredutivelmente corpóreo, que desborda dos seus confins, sejam eles
metafóricos ou metonímicos" (ESPOSITO, 2010, p.10).
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131
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RESUMO
ABSTRACT
The present work analyzes the discourse of Socrates-Diotima in Plato's Banquet trying
to demonstrate how the passage emphasizes the learning of Socrates with Diotima about
love. To do so, we read the narrative in the specific section of the dialogue in which the
story of the scene occurs, and we search for a key of reading considering the feminine
as a model of love in human relations, in order to respond why, in a dialogue that
demonstrates the supremacy given to the male in Greek society, Plato uses the female
figure as the teacher of Socrates, teaching him, after all, what love is.
Introdução
119
Escolhemos a tradução seguinte: PLATÃO. Simpósio. Tradução de Carlos Alberto Nunes. – 3ª ed. –
Belém: ed. UFPA 2011. Para citá-la, abreviamos como Symp.
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exemplos das funções desenvolvidas na cidade e que se fazem presente na mesa. Mas o
que nos chama atenção e convida a escrita deste trabalho é a fala de Sócrates: ele usa a
figura feminina de Diotima para explicar como aprendeu o seu conceito clássico de
amor. O recurso a uma mulher causa espanto visto que, numa sociedade onde a mulher
era notadamente diminuída frente a importância política e educativa do homem e, ainda
mais, na Filosofia de Platão, onde o feminino não é um lugar de destaque, considerar
Diotima mestra de Sócrates nas coisas do amor é no mínimo estranho e talvez queira
revelar algum fundamento específico sobre a figura da mulher ou sobre a essência do
amor a partir da figura feminina.
Platão não defende exatamente uma postura que condene a mulher em sua obra,
mas essa visão é um tanto ambígua e cheia de argumentos prós e a favor 120; Em síntese,
Jaeger, (2011, p,815), demonstra como Platão concebia a mulher frente à sua época.
Platão acredita na capacidade da mulher para cooperar criadoramente
na vida da comunidade, mas não é onde parece que devia busca-la, na
família, que ele procura esta cooperação. Não partilha a opinião
dominante no seu país, segundo a qual a mulher é destinada pela
natureza exclusivamente a conceber e a criar filhos e a governar a
casa. (...) reconhece que a mulher é em geral mais fraca que do que o
homem.
120
Sobre esta questão especificamente, recomendamos a leitura de PRIETO, Maria
Helena Urenã. Breves interrogações sobre a condição feminina na obra de Platão.
HVMANITAS — Vol. XLVII, 1995 P. 343-356. A autora mostra como é problemático
a postura de Platão diante da relação homem-mulher em sua obra. Dentre as quetões que
a autora investiga, está o fato de que a mulher é ou não objeto de Philia na concepção
platônica.
121
CAPRIGLIONE, Jolanda C. La passione amorosa nella città «senta» donne. —
Ética e Prassi Politica, Nápoles, Nuove Edizioni Tempi Moderni, 1990.
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educativo que envolvia a relação de um homem mais velho com um mais novo e nela
aprendia-se e ensinava-se todos os elementos que preparariam o jovem para sua vida na
pólis. A mulher estava fora desse projeto, o que apenas soma elementos para o
pressuposto de que a figura feminina não era relevante nem no contexto histórico grego,
senão por gerar filhos, nem tão pouco na Filosofia de Platão, onde, há uma certa
indecisão do autor em considerar a mulher num nível hierárquico inferior ao do homem,
seja pela natureza mesmo seja pelas atividades desenvolvidas.
O que consideramos aqui é que, Platão não é claro em relação à sua
interpretação da figura da mulher em suas obras, talvez nos coloque em uma de suas
aporias mais uma vez ao colocar a figura da mulher no Banquete de uma maneira
bastante positiva e sugestiva à uma interpretação de que ela tenha um papel muito
importante na vida do homem. Examinar o Banquete é uma alternativa de encontrar
uma saída ou um argumento que possa ser utilizado para falar de uma defesa ou uma
função da mulher nas questões do amor, ainda que, defendamos aqui, que existiria um
amor feminino ou pelo menos uma experiência das mulheres que ajuda a compreender o
conceito de amor como um todo, no Banquete. Como todas as experiências gregas, o
amor necessita ser aprendido e ensinado: na narração da experiência com Diotima, é
Sócrates que reconhece a necessidade de aprender sobre o amor com um mestre -
διδαζκάλων - (Symp.206d).
Podemos aqui levantar a hipótese de um apelo educativo ao amor onde a mulher
seria o modelo mais primário e ao mesmo tempo mais importante para falarmos o que é
o amor. Sócrates dá testemunho de um aprendizado de sucesso nas coisas do amor, cena
esta que ganha contraste frente ao fracasso de Alcibíades, relato da cena posterior a de
Sócrates. Ora, só se aprende a amar com as mulheres? Ou seria a mulher o modelo de
amor? Qual a importância então pode ser inferida da figura feminina a partir do
Banquete? Estas perguntas podem ser respondidas se considerarmos o fato de que o
amor no Banquete aparece como um aprendizado, e Platão talvez de fato, encontre em
sua obra, um espaço para mostrar a importância da figura da mulher como educadora da
intimidade do homem: o amor é uma forma profunda e que nos liga à todas as coisas.
Os próprios relatos do Banquete mostram que o amor é um deus poderoso (quem fala),
um princípio que está em todas as coisas (Erixímaco) e um princípio restaurador da
condição humana (mito dos andróginos).
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Eros vulgar, ou amor vulgar: era assim que se considerava o amor feminino e
Pausânias acaba por defender a pederastia grega como forma de amor superior. O
predomínio do amor masculino garante que se possa amar belamente e corretamente. O
amor feminino ou o amor ao gênero feminino era considerado frágil e débil pelos
motivos que já apresentamos. A virilidade, da qual a mulher não participava, garantia a
realização política do jovem educando e dos adultos da pólis. A cidade grega era
masculina e viril, amar era cuidar das relações com as quais os cidadãos da pólis
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Ἀθροδίηη – Afrodite, deusa do amor, nascida da espuma (ἀθρός) do mar e de Urano.
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lidavam. A preocupação do homem grego era, portanto, em não ser escravo de ninguém,
nem de si, nem de outro. A escravidão aos desejos era retrato de uma forma de amor
feminina e promíscua, desprovida de moderação e cuidado.
A fala de Pausânias será superada pela de Sócrates quando este último unificar o
desejo (Eros) em seu discurso falando da natureza desse desejo. A duplicidade de Eros
apontada na escala erótica narrada por Sócrates como etapas de gradação do desejo até
contemplar o Belo em si. Desta forma, para nosso trabalho a fala de Pausânias torna-se
relevante apenas por mostrar, de certa forma, a condição da concepção do amor às
mulheres como um amor inferior e desligado da atividade intelectual tão preconizada na
pólis. Platão parece-nos de propósito situar este discurso como uma premissa antes de
demonstrar seu aprendizado com uma mulher. Talvez o discurso exista e recorra a uma
figura feminina para contextualizar o uso de Diotima como mestra de Sócrates.
Vejamos porque, nas coisas do amor, Sócrates foge a regra do aprendizado masculino
123
Sobre o assunto do amor Platônico pode-se consultar o recente trabalho: O que é o
amor Platônico? Uma resposta a partir da relação erótica entre Sócrates e Alcibíades no
Simpósio de Platão. In. Hélade. Dossiê: homoerotismo na antiguidade. Vol.2. n. 3, 2016
P.42-48 disponível em: http://www.helade.uff.br/volume2_numero3_2016.html
136
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124
NUSSBAUM. Martha C. A fragilidade da bondade. Fortuna e ética na filosofia
grega. São Paulo, Martins fontes. 2009, p.155
125
OLIVEIRA, Richard Romeiro. Éros, natureza humana e Filosofia no Banquete de
Platão. HYPNOS, São Paulo, v. 36, 1º sem., 2016.
137
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126
Grifos nossos.
127
REEVE, C.D.C. Eros e amizade em Platão. In Platão. Hugh e Benson e
colaboradores. Tradução Marco Zingano – Porto Alegre, Artmed, 2011. P. 282
138
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atitude que recebe uma espécie de crítica de Diotima quando diz ―conforme creem‖
(Symp.208e) o que nos parece demonstrar uma falta de credibilidade destinada aos
amantes dos corpos (femininos).
No ritmo dialético, Platão conduz o leitor do diálogo ao ápice da obra, a
chamada Scala amoris – Escala do amor. Vejamos
É o seguinte, disse: quem quiser percorrer nessas questões o
verdadeiro caminho, deve começar desde a infância a procurar belos
corpos. De Início, se dispuser de um guia seguro, amará apenas um
corpo, ocasião propícia de gerar belos discursos. De seguida,
compreenderá que a beleza de um determinado corpo é irmã da beleza
de outro qualquer, e que, se ele tiver de empenhar-se em pós da ideia
do belo, fora o cúmulo da insensatez deixar de perceber que a beleza
de todos os corpos é uma só. Alcançado este ponto, tornar-se-á
apaixonado de todos os corpos belos e relaxará, por outro lado, a
violência do amor de um único corpo, que passará a desprezar, por
haver reconhecido a sua insignificância. Daí por diante, terá de achar
que a beleza da alma é muito mais preciosa do que a do corpo, de
forma que uma alma de dotes excepcionais, até mesmo cum corpo
carecente de viço, é quanto lhe basta para amá-la e dela cuidar, e gerar
belos discursos, cultivando, de preferência, os temas que contribuem
para a formação dos jovens. Passando dai para contemplação da
beleza dos costumes e das leis, compreenderá que a beleza é uma só
em todos os casos, para concluir, afinal, pelo nenhum valor da beleza
corpórea. Dos costumes, passará para o estudo das ciências, afim de
contemplar, também, sua beleza muito própria, e abrangendo, assim,
num único lance d‟olhos o âmbito tão vasto da beleza, não se deixará
prender servilmente à beleza de um único objeto, a de um adolescente,
por exemplo, de alguma pessoas ou ocupação isolada, à maneira de
escravo sem préstimo e de poucas falas, porém voltado para o vasto
oceano de belezas e, dominando-o com a vista, gerará belos e
magníficos discursos, com o que brotarão pensamentos em barda de
seu inesgotável amor à sabedoria, até que, robustecido e aperfeiçoado,
alcance o conhecimento único do belo que passarei a relatar-te.
(Symp. 210 a- 211)
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Nossa ideia é aceitar em parte essa regra do amor grego. Parece-nos que pode-se
admitir que a mulher grega não faça Filosofia naquele contexto mas entender o que é
um amor que desprende-se do corpo pode ser uma alternativa para entendermos porque
Platão usa de uma mulher para dizer o que é o verdadeiro conceito de amor. A
existência de Diotima não é um problema para nossa questão, o fato é que se Platão a
coloca no diálogo é porque talvez queira ou pelo menos pensava que a mulher pudesse
fazer parte da escala erótica, obviamente, se chega às últimas etapas isso não é evidente,
mas que ela compreende o processo de dessexualização do amor, parece-nos que pode
ser uma aposta de Platão sobre o assunto. Vale ressaltar que apesar de concluir o
conceito do amor como contemplação do Belo e restringir aos homens essa tarefa, o
próprio diálogo nos mostra que não há garantia alguma da realização desse projeto,
veja-se a cena seguinte à fala de Sócrates no diálogo, a de Alcibíades (Symp 212d).
Diotima, dessexualizada?
A mulher pode ensinar o que é o amor talvez por amar sem reciprocidade. Platão
fala do amor entre homens, por ora crítica o amor de homens por mulheres, mas silencia
quando o amor das mulheres pelos homens. Diotima pode representar a necessária
dessexualização que a mulher é obrigada a praticar visto que o amor do homem era
direcionado a outros homens na pederastia, a mulher devia apenas servir de receptáculo
e gerar os filhos: por isso uma sacerdotisa dessexualizada fala tão bem do amor. Ora, a
concepção de amor em Platão é um caminho de esforço individual do homem que
consiste em superar o amor pelo corpo e atinge por essa via de dessexualização a visão
do que há de mais Belo, tornando-se assim um amor espiritual. Deixar o corpo é
ascender espiritualmente pela via do amor, e esta será a expressão mais clara e evidente
da natureza do desejo filosófico. Diotima, apesar de não ser um homem, mas uma figura
feminina, parece ter conseguido, percorrido o caminho de aprendizado do amor.
Apesar das mulheres gregas não participarem do processo educativo da mesma
maneira dos homens, parece-nos que a inclusão de Diotima revela como um ser
dessexualizado é então capaz de falar o que é o amor. Essa compreensão do conceito de
amor só é possível para quem conseguir desprender-se do que é corporal. Obviamente,
se considerarmos a cultura grega em torno da mulher podemos deduzir a existência
meramente fictícia de Diotima, todavia, se crermos que no silêncio em torno da
experiência amorosa da mulher, apenas ligada ao amor pelo corporal, existe uma
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Biografia
141
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De início
Move-me a este tema uma atenção a algo que poderia ter como núcleos
basilares, o que se chamaria algo assim como (i) cidadania intelectuale (ii) dilatação dos
lugares por onde a verdade do Ser – isto é: do que somos – se manifesta. Ou, ainda, se
quisermos: partilha da razão e direito ao verdadeiro – como direito a um lugar na
verdade, como expressividade e, na mesma medida, direito a ser via de acesso a esta.
Trata-se, pois, de uma atenção que se volta para a liberação da verdade, o que implicaria
uma igualdade na expressão do verdadeiro, seja no que se mostra, seja no modo pelo
qual se mostra – os caminhos vários da linguagem – mesmo que, por vezes, a verdade
que se nos mostre seja aquela de qualquer coisa que não apreciamos ou aprovamos ou
desejamos. Tal disposição compreensiva da existência em seu acontecimento múltiplo e
simultâneo seria, entretanto, o solo primeiro a partir do qual fazemos nossas escolhas,
empreendemos decisões, abrimo-nos ética e politicamente no mundo da vida.
De resto, uma interrogação perdura na atenção aos núcleos a que nos referimos,
é ela: uma efetiva conduta interrogativa que tome o sensível como solo nos leva a uma
revisão daquilo que habitualmente entendemos por filosofia e, ainda, haverá em tal
conduta um significado ético?
Como a perscrutação de tais questões – verdade, sensível, pensamento ou, se
quisermos, filosofia – nos leva a cotejar outras correlatas, pelo menos na tematização a
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que estamos nos propondo, posto guardarem uma ligação intrínseca seja no modo da
afinidade, seja naquele da oposição, aqui faremos referências a alguns termos – tais
como metafísica, arte etc. – sem propriamente aprofundá-los conceitualmente. Peço
licença ao leitor ou leitora para isto.
O tema mesmo
Pois bem, ao propor resumidamente este artigo, disse que nos voltaríamos – e
quando escrevo nos estou me referindo a mim que escrevo e a você que lê – para o
mundo sensível como solo do pensamento e que tomaria como referência a filosofia de
Merleau-Ponty. Disse também que com tal afirmação já se poderia ver que, na
abordagem que se segue, a estética de que nos ocuparemos não será aquela da tradição
cunhada no séc. XVIII – uma terminologia clássica tal qual a temos no interior dos
estudos ou campos de conhecimentos filosóficos cunhada num movimento de
pensamento que identifica a (i) verdade com a lógica, (ii) a beleza com a estética ou
juízo de gosto do espectador; e toma, a princípio, a arte como cópia, imitação, aparência
–, mas uma estética interpretada em seu sentido radical, na perspectiva em que a
experiência do ser é estética originariamente, sem o compromisso apriorístico com as
noções de arte e do belo.
A estética, tal como concebida na metafísica clássica – pensamento que abarca o
que acabamos de referir ao fazermos menção à concepção cunhada no séc. XVIII –,
diz-nos Nunes (1969, p. 52),
representa uma posição interpretativa em face do belo e da obra de
arte, posição que criou a tradição e que nos impôs, sob uma pauta
comum de pensar, certas categorias de que até hoje nos servimos
para falar da arte e da sua essência. Ela encerra uma experiência
sedimentada na qual se acha resumido todo um ciclo histórico do
pensamento. Esse ciclo abrange o conceito platônico de Belo, a
teoria da imitação de Aristóteles, o sentido da palavra tekne para os
gregos, os transcendentais da escolástica, as ideias de belo natural,
de arte como artifício ou como produção da beleza, de contemplação
desinteressada, de representação, de vivência.
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É, aliás, nesta perspectiva que, para Merleau-Ponty (2011, p. 42), a obra de arte
―contribui para definir nosso acesso ao ser‖. Quando evoca as artes em seus textos ou
preleções, não é à definição de um conceito desta ou daquela que quer chegar, mas às
tramas do ser abertas por todas e cada uma delas. O lugar da arte no pensamento de
Merleau-Ponty é, pois, aquele de uma subversão: não é tencionando atestar a verdade da
arte que o filósofo francês a toma em suas reflexões, como se esta dependesse de uma
demonstração mediada pela racionalidade em sua potência de representação límpida, ou
da autenticação do crítico que, muitas vezes, tece eruditas e sofisticadas considerações
nos fazendo parecer que esta ou aquela obra não viesse ao mundo senão para caber em
seus arcabouços de conceitos a priori – isto é: para ilustrá-los. Pelo contrário, a
pergunta que acompanha Merleau-Ponty em suas meditações é: que verdade a arte nos
dá? É essa a questão que o acompanha quando da apreciação da pintura, da literatura, do
cinema ou da música em sua obra.i
Mas,não nos detenhamos à tematização disto aqui. Se fazemos cá estas
considerações, é apenas para proceder com cuidado ao pensamento de Merleau-Ponty
que, como dissemos de início, é uma das fontes da tematização de que agora nos
ocupamos – e que, vimo-lo há pouco, não fará qualquer referência às categorias
estéticas tal qual a tradição, propondo, ao contrário, uma reabilitação ontológica do
sensível que nos dá elementos para reelaborar o próprio conceito de estética. E o
fazemos também para divisar a estética de que estamos falando – aquela do mundo da
vida a que estamos dispostos sensivelmente, que fecunda todo pensamento e toda
palavra dita ou silenciada e que a todos lança ao crivo de um entrecruzamento sem fim,
dando-nos a uma ―sorte de inerência do eu ao mundo e do eu a outrem‖: um corpo
nunca é só (MERLEAU-PONTY, 1996, p.74).
Explico. O sensível, cujo emblema é o nosso corpo, nos estende a uma
multiplicidade e entrelaçamento impossível de redução. Trata-se de uma continuidade
entre as coisas, os homens e o mundo, cuja reversibilidade – tocar é ser tocado, ver é ser
visto, perceber é ser percebido – ―remete-me a um único sensível carnal que de outro ou
de outros também é‖ (NUNES, 2004, p. 280). Donde haver, para Merleau-Ponty, ―um
tecido comum do qual somos feitos‖ (MERLEAU-PONTY, 2009, p. 253). Trata-se,
pois, de uma totalidade que não tem posse total de si mesma, adesão que se sabe além
da prova, coesão sem conceito, nos termos de Merleau-Ponty; aderência resguardada
no silêncio e aberta/prolongada em toda palavra, todo pensamento e toda ação. Isto nos
leva ao que poderíamos chamar de gênese ou nascimento continuado, a um processo de
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abertura sem fim – melhor: coabertura. Em tal movimento aberto pelo sensível estamos
todos imersos. Nisto somos iguais.
É nesta perspectiva que a estética guarda o sentido de vida em movimento e,
como tal, elemento comum: existir é já ser disposto esteticamente no mundo da vida.
Ora, se a existência sensível é elemento comum e se o que buscamos explorar neste
artigo é o sensível como lugar originário do pensamento, isto é: como lugar desde onde
o pensamento pensa, desde onde se dilata como indagação, tal empreendimento terá que
levar em sua lida pelo menos duas questões entrecruzadas: uma, diz respeito ao estatuto
da verdade; outra à divisão hierárquica engendrada pelo dualismo ontológico da
tradição no que toca à experiência da verdade e às formas de conhecimento.
No seio de tal questão, poderíamos nos voltar, a título de exemplo, para Artaud,
Cézanne e, em certo sentido, Lima Barretoii e tantos outros, cujas existências foram
perpassadas pelo esforço da expressão em meio à fugacidade dos instantes de clareza,
de fazer o ―sentindo existir expressamente‖ (MERLEAU-PONTY, 2008, p. 85); pela
não adequação à forma e seus preceitos normativos em direção à perfeição estatuída e
pelo sofrimento que entremeava tal esforço e a não adesão ao instituído. É que para eles,
seus estilos, suas obras eram ―o emblema de uma maneira de habitar o mundo, de tratá-
lo, de interpretá-lo (...) em suma, de uma certa relação ao ser‖ (p. 87). Eles tomavam a
expressão – cada um à sua maneira – no fluxo das suas próprias existências e, nesse
sentido, buscando ser coerentes com o que viam e sentiam e pensavam, traziam em suas
obras as fendas de que eram feitas, a ausência da cisão lógica que conferia exatidão à
forma e, nesse movimento, deformavam coerentemente o simplesmente dado – nisto
consistia o ato criador. Deste modo, não tendo suas obras reconhecidas no meio em que
viviam, eram suas próprias existências que estavam em jogo, isto é: que eram negadas...
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Pois sim, ―a coisa mais certa de todas as coisas / Não vale um caminho sob o
sol‖ (VELOSO, 1978). O caminho nos dá à experiência imediata da totalidade: a
―simplicidade de um passo‖, dirá Merleau-Ponty(2008, p. 106), ―efetua (...) um
somatório infinito de espaços e instantes‖.Caminhando, por vezes, indagamos nossas
certezas, transformamo-las – elas também inseridas no tempo dos nossos passos. E,
parece-me, o encontro autêntico com outrem é o motivo da transformação: uma flor,
uma dor, um amor, em resumo, outrem, qualquer um que encontro me dá a mim mesma
e (dando-me a mim) existe, é presença ativa, isto é: ecoa em meus esforços de
compreensão; dá-me, por vezes, a certos deslocamentos.
É, decerto, a partir de tal compreensão que Castoriadis(1990), em elogio a
Merleau-Ponty, diz podermos afirmar que o pensamento―não é um; diz-se
multiplamente e é multiplamente‖ (p. 77). Isto nos lembra a afirmação de Merleau-
Ponty(1989), no Elogio da Filosofia, de que não há um ―lugar da verdade, onde dever-
se-ia ir procurá-la a todo o custo, quebrando até as relações humanas e os laços de vida
e de história. A nossa relação com a verdade passa pelos outros. Ou procuramos a
verdade com eles, ou não é para o verdadeiro que nos dirigimos‖ (p. 37).Tal perspectiva
coloca em questão um sentido de poder fundado na inteligibilidade absoluta: poder do
eu puro e auto-centrado; poder de fechar-se - na pretensão de plenitude -, ser em si, a
despeito do mundo e dos outros; poder de absolutização da verdade e, com isso, de
prescrição absoluta, totalizadora; enfim, interpela os preceitos da consciência
transcendental e do pensamento objetivo quando da pretensão de suficiência dos seus
alcances.
Decorrem deste vício operativo da reflexão disposições, muitas vezes bem
intencionadas, que acabam por colocar uma ideia inexistente e insistir nela contra uma
sociedade real, isto é, submeter o existente a fim de poder sustentar uma ideia que possa
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totalizá-lo numa explicação. Tais disposições – sejam elas conformadas num indivíduo,
num grupo ou numa organização –, sempre entusiasmadas demais em afirmar a absoluta
verdade e eficácia daquilo que propõem, na maioria das vezes preferem chamar de
fracas – ou imaturas, por não terem feito ainda a devida reflexão – aquelas disposições
dissonantes que, assentadas na complexidade de que é feita a vida, não se alinham a
certas vias (únicas) de prescrição – do sentido, do pensamento, da ação. Ah! De
costume, aquelas também clamam submissão – de um sentido a outro, de um
pensamento a outro, de uma ação a outra, de uma organização a outra. É que existe uma
ordem hierárquica em suas formulações.
A retomada crítica das perspectivas do pensamento clássico em relação ao
sensível, porém, não pretende afirmar que a tradição o tenha negado (negado a
corporeidade) por uma ―decisão‖. Mas busca compreendê-la como desdobramento do
acontecer do próprio Ocidente com bases na metafísica clássica de que falamos
rapidamente acima.
De fato, para o pensamento clássico, o sensível não é desprovido de qualquer
possibilidade de sentido, não é radicalmente negado, mas o que se coloca em marcha é a
sua destituição como o lugar originário de sentido e acesso à verdade, a qual se poderia
tomar como fonte e norte dos nossos pensamentos, interpelações e ações. Ou seja, o
pensamento clássico reconhece o sensível, e com ele a contingência e a mutabilidade,
mas para corrigi-los. Portanto, os apreende negativamente com a esperança de
ultrapassá-los, ainda que seja ao modo da moderação – a esperança aqui pode ser
tomada como desejo, porque enveredada racionalmente, e, em última instância, como
um certo delírio (ou fantasia), porque desejo de ultrapassamento do inexorável. Esta
maneira de pensar vai conformar, de diferentes modos, mas sob a mesma égide, um
longo percurso na tentativa, frente a novas interrogações, de dar resposta a questões
basilares que nos transpassam vida afora: a contingência e a permanência; o amor, o
poder, a experiência da obra de arte, a necessidade, o milagre da coexistência e a
morte...
A dualidade e sua consequente dicotomia assumem conotações valorativas: a
força, a virtude – numa palavra, a verdade – estará naquele que exerce o curioso feito de
―isolamento‖ do corpo, do seu chamariz ao efêmero, às paixões, às coisas inseguras e
múltiplas – porque não se deixam segurar, pulsam, e quando pulsam acendem-nos uma
clareira que nos faz ver e ver-nos imersos num entrelace sem fim, do qual não temos
posse total e pelo qual se tem que responder o tempo todo, não nos deixa descansar: há
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sempre algo a fazer, a querer viver, a morrer, a nos fazer decair, nos desestabilizar –;
naquele, pois, que se desocupa das coisas miúdas, díspares e dissonantes às quais o
corpo insiste em nos lembrar. Segue-se que da ontologia dualista se dará ao sensível
uma conotação, no mais das vezes, de pouca importância – frágil, por assim dizer – no
que se refere à tarefa do pensamento, à ocupação com a verdade.
Com Merleau-Ponty (2002, p. 34-35), podemos dizer, o motivo desta concepção é
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interrogativa que tome o sensível como solo nos levaria a uma revisão daquilo que
habitualmente entendemos por filosofia e se haveria em tal conduta um significado
ético, digo-lhes que sim. Tomemos como referência para tal afirmação a própria
filosofia de que aqui nos ocupamos, aquela de Merleau-Ponty.
Ao acompanharmos o percurso desencadeado pelo filósofo francês, suas
interpelações e sua démarche, vemos uma filosofia cuja essência, isto é, os traços sem
os quais não existiria, é o pensamento da experiência, e com isso a abertura; a memória
– que faz tomar a tradição e a reinterpretar -; e o diálogo – em cujo cerne a verdade
habita. Isto nos remete ao reexame da própria filosofia: a vida da filosofia e, com isso, a
sua dessacralização, seu deslocamento de pretensos lugares fixos. ―A filosofia [dirá] é
uma atitude no mundo, não uma abstenção, ela não está reservada, de forma alguma, ao
filósofo de profissão, e ele a manifesta fora dos seus livros‖ (MERLEAU-PONTY,
2000, p. 307).
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em que está aquém da norma expressa. Uma ética implícita na criação e na abertura
temporal ou, doutro modo, na indeterminação. Estas são a sua condição, posto ser a
criação e a abertura temporal as ondulações da existência pelas quais a diferença vige,
vive – donde falarmos em coexistência. Ora, é precisamente a coexistência a
circunscrição ontológica da dimensão ética. Neste sentido, a experiência do ser é ética
sem ser normativa, assim como – para retomar uma preleção de Franklin Leopoldo – é
estética originariamente, sem o compromisso com as noções de arte e do belo cunhadas
no séc. XIII.
Tratar-se-ia, tal ética indireta, do apelo mudo, do apelo do mundo tal qual
compreendido em Merleau-Ponty(2009, p. 71): ―apelo renovado e insistente de um
mistério familiar [isto é, comum a todos] e inexplicável de uma luz que, aclarando o
resto, conserva sua origem na obscuridade‖– solo comum onde radica toda linguagem,
todo pensamento e toda ação. Nesta perspectiva, a inscrição ontológica, originária, da
conduta ética diz respeito, em última instância, a uma intuição – um horizonte de
compromisso – e o que dela decorre implica ação – melhor: ela inspira ação. E sendo tal
disposição ética não um dado, mas uma tarefa, ela é radicada na história, portanto no
inacabamento. Tais traços não lhe são impedimentos, mas, ao contrário, condição.
Mas isso requer maior aprofundamento e está em via de investigação. Por ora
fiquemos por aqui.
i
A este respeito apontamos as seguintes obras de Merleau-Ponty: Le Roman et la métaphysique (1945),
Le doute de Cézanne (1945), Le Cinéma et la nouvelle psychologie (1947), Le langage indirect et les voix
du silence (1952), e L’Oeil et l’esprit (1961).
ii
Lima Barreto ―em certo sentido‖, porque o seu sofrimento – e a sua loucura – se deveu,
sobretudo, àauto-compreensão de que a rejeição da sua obra literária se enraizava na sua
cor e na sua classe dissonantes do locus onde a literatura tinha o seu domínio – e isso
implicaria outras considerações.
Referências bibliográficas
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Se todo livro pede um leitor que o complete e o reescreva segundo suas buscas,
reescrevo nestas linhas uma pergunta que, embora nascida da leitura do livro de contos
Romance negro e outras histórias,de Rubem Fonseca, parece percorrer sua vasta obra.
A leitura de seus contos, novelas e romances parece sempre erguer esta questão:
onde está a vida? Estamos, na verdade, diante de uma narrativa que nos apresenta o
desaparecimento da vida, podendo ser compreendida num duplo sentido: desaparece a
ambiência onde a vida aparece; desaparece a linguagem em que a vida é evocada.
Um dos contos do livro – ―A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro‖ – apresenta
esse duplo desaparecimento. Nele o personagem-escritor, ao ganhar na loteria, pede
demissão da companhia de águas e esgoto, aluga um sobrado no centro da cidade, troca
o nome (antes Epifânio, agora Augusto) e se põe a escrever um livro.
Augusto não sai em viagem pelo país, mas perambula pelo centro da cidade
observando os prédios, os cartazes e ―principalmente as pessoas‖. Desloca-se para
―encontrar uma arte e uma filosofia peripatéticas que o ajudem a estabelecer uma
melhor comunhão com a cidade‖.
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Igreja de Jesus Salvador dasAlmas. De manhã, é o templo onde o pastor vende a fé; à
tarde, exibe filme pornô.
Uma das atividades que o escritor do conto faz, além de caminhar pela cidade e
escrever, é alfabetizar as putas. Após ter alfabetizado 27 putas, inicia seu curso com
uma nova puta, a Kelly. E depois de ela aprender a ler, acompanhá-lo pela cidade,
conviver com ele, diante da quase indiferença desse professor, ela, chorando e gritando,
pede a Augusto que a toque. Perplexo, sem saber o que fazer com ela, procura o velho e
pergunta: por que as pessoas querem continuar vivas?
O velho responde que vive porque não sente muitas dores no corpo, gosta de
comer e tem boas lembranças. Também ficaria vivo se não tivesse lembrança alguma.
Augusto só tem lembranças horríveis, quer viver para escrever seu livro, porque adora
as árvores, mas já pensou em se matar. Quando Kelly o abraçou chorando, ficou com
vontade de morrer. Sai, então, em direção ao cais. Lá encontra não o mar aberto, mas
fedendo.
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