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DOSSIÊ: MULHERES E FILOSOFIA

ANO 2017
www.revistasisifo.com
Revista Sísifo – vol. 1, nº 6. Novembro. Ano 2017 - www.revistasisifo.com

Endereço para correspondência. Adress for correspondence:


Revista Sísifo
Site: www.revistasisifo.com / E-mail: sisiforevista@gmail.com
Feira de Santana — Bahia — Brasil

Revista Sísifo – Feira de Santana – v. 1, n. 1 (2014-)


nº 6 novembro 2017
Dossiê: Mulheres e Filosofia
Filosofia – Periódicos I
ISSN: 2359-3121

FEIRA DE SANTANA nº 6 p. 6 – 156 Ano 2017


Revista Sísifo – vol. 1, nº 6. Novembro. Ano 2017 - www.revistasisifo.com

ORGANIZAÇÃO E REVISÃO FINAL DOSSIÊ: MULHERES E FILOSOFIA


Karla Cristhina Soares Sousa
Laiz Fraga Dantas

CORPO EDITORIAL
Yves São Paulo (Editor)
Marcelo Vinicius (Editor)

CONSELHO EDITORIAL
Andreia A. Marin
Bruna Torlay
Denise Kloeckner Sbardelotto
Dinameire Oliveira Carneiro Rios
Eduardo Pellejero
Luciano Donizetti da Silva
Marcos Roberto Nunes Costa
Nildo Viana
Priscila Vieira
Rodrigo Ornelas
Rodrigo Araújo
Tiago Medeiros Araujo
Valdenésio Aduci Mendes
Wanderley C. Oliveira

Os artigos e demais textos publicados nesta revista são de inteira responsabilidade


de seus autores. A reprodução, parcial ou total, é permitida, desde que seja citada
a fonte.
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Sumário
Editorial............................................................................................................................6

DOSSIÊ: MULHERES E FILOSOFIA

LUGONES CONTRA A MODERNIDADE: PELA DECOLONIZAÇÃO DO


GÊNERO
Laiz Fraga Dantas.............................................................................................................9

FILOSOFIA DE SIMONE WEIL: UMA MÍSTICA DA AÇÃO E CONTEMPLAÇÃO


Maria Simone Marinho Nogueira....................................................................................21

EGÉRIA (SÉC. IV/V), A PRIMEIRA ESCRITORA EM LÍNGUA LATINA DA


IDADE MÉDIA
Marcos Roberto Nunes Costa..........................................................................................39

UMA POSSÍVEL ONTOLOGIA DA DOR NA METAFÍSICA DE ANNE CONWAY


Pedro Rhavel Teixeira.....................................................................................................50

MORTE E SUPERAÇÃO, TIBURI E A FILOSOFIA FEMININA


André do Carmo Otoni....................................................................................................59

HANNAH ARENDT E A CONDIÇÃO HUMANA DA PLURALIDADE


Marcus G. M. Santos.......................................................................................................65

FILÓSOFAS: INVISIBILIDADE E SILENCIAMENTO


Joana Tolentino................................................................................................................80

A ATUALIDADE DO PENSAMENTO DE HANNAH ARENDT EM TEMPOS DE


SUBTRAÇÃO DE DIREITOS
Raimundo Expedito dos Santos Sousa
Elielson Martins Ferreira Filho........................................................................................94

ROSWITA DE GANDERSHEIM E O PAPEL PSICO-PEDAGÓGICO DA ARTE


NAS OBRAS DA TEATRÓLOGA MEDIEVAL
Marcos Roberto Nunes Costa........................................................................................107

DIÓTIMA E A CONSTRUÇÃO DA LEGITIMIDADE DO PENSAMENTO DA


DIFERENÇA SEXUAL NO ESPAÇO PÚBLICO
Gigliola Mendes............................................................................................................115

O AMOR E O FEMININO NO DISCURSO DE SÓCRATES-DIOTIMA NO


BANQUETE DE PLATÃO
Felipe Gustavo Soares da Silva.....................................................................................133
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ARTIGO

ESTÉTICA E PENSAMENTO EM MERLEAU-PONTY, OU: SOBRE O SENSÍVEL


E SEUS REBENTOS
Vânia Vicente................................................................................................................143

CRÍTICA

POR QUE AINDA ESTAMOS VIVOS?


José Feres Sabino...........................................................................................................154
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Editorial
A proposta desta edição da Revista Sísifo, ao discutir o trabalho de mulheres que
fizeram filosofia, é propiciar a divulgação de uma história de esquecimento. As
mulheres, apesar da presença na filosofia em toda sua larga tradição e da qualidade das
suas produções, ficaram na marginalidade do Panteão filosófico. Mulheres que, embora
ocupassem essa posição incômoda dentro da filosofia, nunca deixaram de questionar a
configuração tradicional do verbo pensar – estruturado por uma razão patriarcal.

Mesmo que atualmente os trabalhos de mulheres alcançaram maior reconhecimento do


que outrora, as mulheres ainda encontram dificuldade para estabelecerem-se como
pesquisadoras e professoras – sobretudo na área de filosofia no Brasil. O trabalho dessas
pesquisadoras, que compreende as mais diversas áreas da filosofia, enfrenta obstáculos
diários em um espaço acadêmico que, na prática, ainda considera a filosofia um
discurso que emerge de um sujeito de conhecimento cujo gênero, não pronunciado, é
masculino.

O silêncio que se tenta impor sobre estas autoras hoje é o mesmo que já se havia
imposto sobre suas antecessoras, um silêncio contra a igualdade. O silenciamento como
função de sustentação política do poder opressor funciona em duas vias: 1) via do
esquecimento dessas vozes; e 2) via de sufocamento da criação e manutenção de vozes
atuais. Silenciar estas autoras é uma atitude que infringe diretamente a possibilidade da
diversidade de pontos de vistas na filosofia e, por conseguinte, a multiplicidade de
conhecimentos possíveis daí resultantes. Essa história de esquecimento que contamos
nesse dossiê não diverge da tentativa de sufocamento das pesquisas na área de gênero,
nem mesmo da violência que as pesquisas nesse campo de conhecimento vêm sofrendo
recentemente no Brasil.

Apesar de a maioria das autoras de base para os escritos aqui presentes ser estrangeiras,
há um impacto em se importar este pensamento e inseri-lo numa realidade brasileira.
Assistimos atualmente no Brasil um processo violento de depreciação da produção
teórica sobre gênero. Esse processo, que se concretiza na tentativa de censura da
discussão sobre gênero no ensino médio, na censura a produção artística, em ofensas e
demonstrações públicas de ódio contra mulheres que se dedicam aos estudos de gênero.
Atentos à violência que permeia esses atos, gostaríamos que esse dossiê, ainda que de
maneira tímida, seja um ato de reafirmação da liberdade de pensamento e da resistência
contra esse brutal retrocesso ao conservadorismo que nos avizinha.

Consideramos que pesquisas não podem ser censuradas ao gosto de quem delas
discorda. Essa tentativa de silenciamento às pesquisas de gênero – produzidas, em
grande media por mulheres – que presenciamos em tempos recentes em território
nacional parece reforçar que a filosofia não é lugar para elas. Mais uma vez, as
mulheres escrevem, mas não podem mostrar o que produzem publicamente. Para uma

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mulher hoje no Brasil, escrever e refletir sobre sua própria condição é um ato de
coragem.

É preciso fazer a produção das mulheres na filosofia ressoar para além, inclusive, do
debate sobre gênero que vem crescendo atualmente dentro da filosofia, e fazer alcançar
patamar semelhante à dos homens em todos os campos da filosofia. O dossiê aparece
num momento crítico da democracia brasileira, contudo, um tempo que necessita mais
fortemente dessas iniciativas de coragem intelectual. Por isso, deixamos nosso profundo
apoio aos pesquisadorxs brasileirxs no campo de estudo de gênero, bem como
agradecemos à todxs os autores que contribuíram para a constituição deste dossiê e à
contribuição de Luma Flôres e Patrícia Martins, cujos trabalhos ilustram os textos desta
edição.

Karla Cristhina Soares Sousa


Laiz Fraga Dantas
Organizadoras

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Lugones contra a modernidade: pela decolonização do gênero

Laiz Fraga Dantas

RESUMO: Em seu texto ―Heterosexualismandthe colonial moderngender system‖


MaríaLugones propõe uma relação entre colonialismo e gênero apresentando que a ideia
binária de gênero e a heterossexualidade como norma não são dados universais mas, ao
contrário, são frutos da ciência moderna impostos pelo processo de colonização.
Através da ideia de colonialidade do poder de Aníbal Quijano, Lugones desenvolve a
colonialidade do gênero, aprofundando o debate de Quijano sobre a colonialidade, sua
dimensão identitária e racial, para a dimensão de gênero e sexualidade. Pretende-se
apresentar de que forma a modernidade, e sua pretensa universalidade, permeia as
teorias de gênero e quais as consequências do deslocamento desse eixo teórico a partir
da historização de conceitos como ―gênero‖ e ―heterossexualidade‖ no pensamento de
Lugones.

Palavras-chave: Decolonialismo, Feminismo Decolonial, Gênero/sexualidade.

A modernidade é uma questão bastante viva na filosofia contemporânea. O


processo de autocertificação da modernidade – seu significado e seus possíveis
direcionamentos – iniciado por Kant e aprofundado por Hegel, transformou-a em
conceito. Da exaltação doiluminismo como forma de emancipação por Kant à tentativa
dos jovens hegelianos de direcionar a razão metafísica para a prática; e, por fim, até os
esforços para desmascarar a razão e seu caráter totalitário por Nietzsche, Foucault e os
desconstrucionistas, a modernidade permanece uma questão em aberto. Essas filosofias
assumem a modernidade, esse fenômeno europeu por excelência, como conceito
incontornável para a filosofia contemporânea – seja para abandoná-la, seja para mantê-
la. A modernidade tornou-se o eixo em torno do qual se elaboram os debates dessas
várias correntes de pensamento, deslocando-a de sua origem geográfica e histórica,
desprezando suas especificidades, para constituí-la em um conceito universalizável.
Talvez deslocar o eixo do pensamento da Europa produza uma mudança significativa
nos termos desse debate e nos apresente uma questão que pode soar inconveniente para
uma filosofia de bases europeias: seria efetivo, portanto, assumir a modernidade como
conceito-chave para compreender as outras sociedades?

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MaríaLugones1 enfrenta esse problema como um elemento crucial para a


construção do pensamento decolonial. Lugones aprofunda esse debate perguntando até
que ponto esse referencial europeu para o conhecimento penetra alguns
desenvolvimentos teóricos do feminismo que assumem a modernidade e seus elementos
como terreno fundamental para o desenvolvimento de seus conceitos. Compreender as
consequências da escolha – que muitas vezes não é explicitada nem questionada – de
assumir a modernidade como conceito universalizável é uma questão urgente no
pensamento de Lugones.

Lugones propõe o debate sobre a colonialidade do gênero através de um diálogo


com Aníbal Quijano2 em seu texto ―Colonialidad y Modernidad-racionalidad‖. Nesse
texto, Quijano afirma (QUIJANO, 1991. P. 437) que o processo de dominação e
colonização do novo mundo desdobra-se no atual sistema capitalista global de poder.
Apesar da dominação política formal e direta do colonizador sob as colônias ter sido
extinta há algum tempo, para Quijano, esse modelo permanece numa organização social
análoga a anterior através do imperialismo que mantém a hierarquia entre colonizador e
colonizado; a desvalorização sistemática dos povos subalternos; sua identidade e
cultura; em face do discurso do colonizador, compreendido como o discurso universal,
pretensamente neutro, que serve como modelo definidor sobre o que deve ou não ser
legitimado. Para Quijano, o poder eurocêntrico capitalista global é organizado segundo
dois eixos: o colonialismo e a modernidade.

O colonialismo, segundo Quijano, estabeleceu uma classificação hierárquica das


populações mundiais, em termos de raça, justificando as relações de dominação através
de uma naturalização da superioridade de alguns povos e inferioridade de outros. Essa
classificação define a ―Europa‖ em oposição às ―Américas‖ e ―África‖, posicionando a
identidade racial do homem europeu em oposição à dos indígenas e negros. Para o
autor, a invenção dessa divisão racial das populações proporciona a uma mudança no
caráter dos processos de subjugação que não se definem mais em termos de dominação,

1MaríaLugones é uma filósofa argentina, professora associada na BinghamtonUniversity em estudos


sobre América Latina e Caribe. Lugones nasceu na Argentina mas viveu por muitos anos nos Estados
Unidos. Foi uma ativista contra a opressão de latinxs nos Estados Unidos. Lésbica, Lugones também
expôs a homofobia presente tanto na sociedade americana como nas comunidades latinas. O trabalho da
autora dialoga diretamente com sua vida. Lugones se dedicou a temas como gênero, sexualidade e
colonialismo.
2 Aníbal Quijano é um sociólogo peruano, professor na BinghamtonUniversity. O autor tem um influente
trabalho nas áreas de estudos decoloniais.

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mas encontram sua explicação por meio de uma suposta classificação biológica natural
em termos científicos entre povos (QUIJANO, 1991. P. 438). Essa divisão serviu tanto
para justificar os processos de invasão, escravidão, exploração e assassinato de
populações nos processos de colonização, como serve até hoje para os mecanismos de
exploração do capitalismo global. Quijano considera que esse mapa geocultural de
identidades sociais permeia todas as relações, constituindo-se em um mecanismo
eficiente de dominação social, material e intersubjetiva no atual sistema de poder
eurocêntrico capitalista global de caráter mais amplo e que se estende até hoje chamada
por Quijano de colonialidade3.

A modernidade, em relação direta com a colonialidade, é entendida por Quijano


como a produção de uma forma de conhecer racional de um sujeito universal dotado de
razão e produtor por excelência dos discursos científicos e filosóficos. Essa forma de
conhecimento organiza o mundo ontologicamente em termos de categorias homogêneas,
designadas separadamente de acordo com suas diferenças. É próprio a esse modo de
pensar uma lógica categorial, a produção de dicotomias e hierarquias entre os conceitos.

Esses dois eixos constitutivos do modelo capitalista eurocêntrico exercem relação


de dominação e exploração sob os atores sociais que lutam para controlar áreas básicas
da existência humana: o trabalho, a sexualidade, a autoridade coletiva, a gestão de seus
recursos naturais e sua produção. Quijano nos mostra que o colonialismo – dos
processos de colonização até sua atual extensão nas sociedades – atendeu as
necessidades do capitalismo e, em função de atingir esse objetivo, criou formas de
relação de dominação através de uma hegemonia eurocentrada. Assim, o colonialismo
se estende para além do âmbito da raça e permeia a divisão do trabalho, a hegemonia
dos povos, a produção de conhecimento, a formação das subjetividades e as relações
intersubjetivas. Esses eixos também conformam as relações de gênero, o controle sob a
sexualidade e o discurso como se define os corpos dos homens e mulheres colonizados.

Lugones considera o modelo de Quijano crucial para compreender as relações de


poder implicadas no processo de colonialismo. Porém, bastante amplo e incapaz de
delinear com precisão de que forma o processo de colonização influi nas relações de

3 Para Quijano ―colonialismo‖ designa o processo histórico concreto de colonização dos territórios,
subvertido na América Latina no século XIX (em sua maior parte) e na África, no século XX. Por
―colonialidade‖ Quijano entende o processo mais amplo que se estende do evento concreto da invasão e
ocupação dos territórios colonizados, gerando consequências na organização das relações sociais hoje.

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gênero e sexualidade até hoje. Em seu texto ―Heterosexualismandthe colonial


moderngender system‖ Lugones aprofunda a questão sobre qual sistema de gênero foi
constituído pelo colonialismo/modernidade. Lugones, então, pretende aprofundar a
teoria decolonial de Quijano radicalizando a análise sobre gênero, desvelando a suposta
naturalidade e universalidade desses conceitos – tal como ocorreu à noção de
modernidade eurocêntrica. O que Lugones propõe é historicizar o gênero e a
heterossexualidade para entender como esses conceitos se conformaram através das
condições históricas e das relações de poder. Somente levando a sério a questão do
colonialismo é possível pensar o gênero e a sexualidade como elemento indissociável
dos processos de poder estabelecidos pela colonialidade, da conquista das colônias até
hoje.

Lugones pondera que a teoria dos eixos estruturais de Quijano não aborda o
gênero efetivamente. Para Lugones, no modelo de Quijano, o gênero aparece como
constituído e constitutivo da colonialidade do poder, logo, definido em consonância
com raça e sua conformação política. Porém, para a autora, a compreensão da
colonialidade do poder e seus eixos estruturais não é suficiente para caracterizar de
forma eficiente a complexidade do debate sobre gênero. Lugones aponta que o gênero
aparece para o modelo de Quijano como parte das áreas básicas da existência definida
pelo autor como o ―sexo, seus recursos e produtos‖. Lugones, citando Quijano, localiza
onde esses processos aparecem no pensamento do autor;

Quijano caracteriza a "colonialidade das relações de gênero‖, que


diz respeito ao lugar das relações de gênero nos eixos da
colonialidade do poder, como segue:

1.Em todo o mundo colonial as normas e os padrões formais do


comportamento sexual dos gêneros e, consequentemente, dos
padrões de organização familiar dos "europeus", foram
diretamente baseados numa classificação "racial": a liberdade
sexual dos homens e a fidelidade das mulheres era, em todo o
mundo eurocentrado, a contrapartida do livre – isto é, não pago
como na prostituição – acesso de homens brancos às mulheres
"negras" e "índias" nas Américas, as mulheres "negras" na África
e de outras "cores" no resto do mundo submetido ao colonialismo.

2. Na Europa, em vez disso, a prostituição das mulheres era a


contrapartida do padrão familiar burguês.

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3. A unidade e a integração familiar, impostas assim junto com o


modelo da família burguesa no mundo eurocentrado, eram a
contrapartida da contínua desintegração das unidades de pais-
filhos nas "raças" não-brancas", que eram capturados e
distribuídos como propriedade. Não apenas como mercadoria,
mas como "animais". Este foi particularmente o caso dos escravos
"negros", sob quem essa forma de dominação foi mais explícita,
imediata e prolongada.

4. A característica hipocrisia subjacente às normas e aos valores


ideais formais da família burguesa não é, desde então, estranha à
colonialidade do poder. (LUGONES 2017. P. 193/194)4

Quijano, para Lugones, trata o gênero como um elemento derivado do debate mais
amplo sobre raça que o autor realiza. O gênero aparece como parte do gerenciamento e
da dominação da sexualidade e dos recursos dela decorrentes, pelo colonizador e usada
em favor dos seus interesses. O gênero/sexo se definem através da disputa de poderes
para controle desse que é um recurso significativo da existência. Lugones considera que
Quijano nos expõe um cenário em que a disputa pelo controle do sexo é uma disputa
entre homens pelo domínio da sexualidade da mulher. A masculinidade não é pensada
como também um recurso sexual, nem a mulher é pensada como sujeito na disputando
dos recursos sexuais. Para Lugones, o sexo é também compreendido por Quijano como
um atributo biológico que passa a ser elaborado como categoria social através de como
esse recurso é utilizado pelo colonizador. Assim, a teoria de Quijano aceita uma série de
pressupostos não problematizados pelo autor que definem o gênero/sexualidade através
do dimorfismo sexual, da heterossexualidade e da dominação masculina dos poderes.
Disso resulta, para Lugones, um ponto de vista excessivamente biologizante e uma

4 He [Quijano] characterizes the ―coloniality of gender relations,‖ that is, the ordering of gender relations
around the axis of the coloniality of power, as follows: 1. In the whole of the colonial world, the norms
and formal ideal patterns of sexual behavior of the genders and consequently the patterns of familial
organization of ―Europeans‖ were directly founded on the ―racial‖ classification: the sexual freedom of
males and the fidelity of women were, in the whole of the Eurocentered world, the counterpart of the
free—that is, not paid as in prostitution—access of white men to ―black‖ women and ―indians‖ in
America, ―black‖ women in Africa, and other ―colors‖ in the rest of the subjected world. 2. In Europe,
instead, it was the prostitution of women that was the counterpart of the bourgeois family pattern. 3.
Familial unity and integration, imposed as the axes of the model of the bourgeois family in the
Eurocentered world, were the counterpart of the continued disintegration of the parent-children units in
the ―nonwhite‖ ―races,‖ which could be held and distributed as property not just as merchandise but as
―animals.‖ This was particularly the case among ―black‖ slaves, since this form of domination over them
was more explicit, immediate, and prolonged. 4. The hypocrisy characteristically underlying the norms
and formal-ideal values of the bourgeois family are not, since then, alien to the coloniality of power.
(LUGONES 2017. P. 193/194)

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concepção tão generalista de gênero/sexualidade e que passa ao largo de um debate real


sobre a questão.

Lugones aponta que o gênero, muito mais do que um fator biológico definidor que
se impõe como um dado, se delineia através de discursos que definem categorialmente o
que é cada um dos sexos. Esses discursos são anteriores à definição biológica e a
legitima. Lugones considera que o discurso que proporciona uma separação dicotômica
entre homem e mulher como uma diferença natural é fruto da ciência moderna.
Recorrendo a uma série de estudos antropológicos, Lugones nos mostra como a divisão
binária entre gêneros e a heterossexualidade como regra ou norma é um fenômeno
moderno localizado.

Lugones recorre às pesquisas de OyéronkéOyewùmí5 sobre a sociedade Yorubá


na África e de Paula Gunn Allen6 sobre sociedades indígenas das Américas. Segundo
Lugones, Oyewùmí identificou que as sociedades Yorubás compreendiam mais de dois
gêneros, reconheciam a homossexualidade positivamente e não tinham uma organização
social fundada em uma hierarquia entre os gêneros7 Paula Gunn Allen mostra que
muitas tribos indígenas das Américas sustentavam cosmologias ―ginocráticas‖, centrada
na figura feminina e na fertilidade, compreendida como potência primária do universo.
A espiritualidade era um elemento central da organização social desses grupos de modo
e era um elemento definidor para todas as atividades sociais. Além disso, essas tribos
não definiam os papéis de gênero porcritérios biológicos. Esses estudos mostram, para
Lugones, que o sistema binário de gênero homem/mulher e a dominação masculina só
passam a existir para esses grupos através da imposição violenta da ação do colonizador
nessas sociedades. Esse sistema de gênero imposto pelo processo de colonização
institui, além da separação binária entre os gêneros e a hierarquia entre eles, a imposição
de uma organização heteronormativa no âmbito da sexualidade através do cristianismo e

5 Oyewùmí, Oyéronké. 1997. The invention of women: Making an African sense of Western gender
discourses. Minneapolis: University of Minnesota Press.
6 Allen, Paula Gunn. 1986/1992. The sacred hoop: Recovering the feminine in American Indian
traditions. Boston: Beacon Press.
7
Lugones aponta que segundo os estudos deOyewùmí, existiu uma dificuldade de pesquisas em
compreender complexo sistema de gênero da sociedade Yorubá. As palavras ‗okurin‖ e ―obirin‖ foram
traduzidas respectivamente por homem e mulher. Porém, segundo Oyewùmí, os prefixos ―obin‖ e ―okun‖
especificam duas variedades anatômicas, mas não dois gêneros circunscritos a essas anatomias. Oyewùmí
sugere a tradução ―anamasculino‖ (anamale) e ―anafeminino‖ (anafemale). A autora considera que
traduzir essas palavras como homem e mulher significa apagar o sistema de gênero desses sujeitos e
impor o sistema de gênero do colonizador.

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de uma organização patriarcal da divisão das atividades sociais. O processo de


colonização apagou a pluralidade da concepção de gênero dos colonizados e impôs a
heterossexualidade como regra do controle sobre o sexo e seus recursos. Lugones
considera que esses foram eixos cruciais na organização social fruto da colonização,
baseada na dominação masculina e europeia, e expressa como o gênero e a sexualidade
se funde com a raça na implementação da colonialidade do poder.

A imposição do sistema de gênero provocou uma série de mudanças na


organização dessas sociedades que incluíam a exclusão das mulheres da esfera pública,
das lideranças, da administração de propriedades e da economia, assim como um novo
regime de organização da sexualidade, desintegração das relações em comunidade,
esvaziamento dos rituais religiosos, através de um processo violento de inferiorização,
sobretudo da mulher colonizada. Esse sistema, diretamente ligado a subjugação de raça,
não classificava homens e mulheres colonizadas igualmente aos homens e mulheres
brancos. O homem branco era o arquétipo de sujeito ―completo‖ capaz de gerenciar as
atividades públicas, a economia e a produção de conhecimento. As mulheres brancas
eram descritas sob o discurso da fragilidade e da passividade sexual, da natureza branda
e dedicada aos cuidados da casa e família. As mulheres colonizadas e escravizadas,
excluídas do escopo da feminilidade europeia, eram descritas em termos opostos, como
agressivas e com uma sexualidade incontrolável. Os homens colonizados eram
inferiorizados através de um discurso que os destituía do domínio sob sua sexualidade,
eram considerados afeminados e passivos sexualmente. Para caracterizar esse corte
racial dentro do sistema binário de gênero, Lugones afirma que existem dois lados do
sistema de gênero, o lado claro e o lado escuro;

O sistema de gênero tem um lado claro e um escuro. O lado claro


constrói hegemonicamente as relações entre os gêneros que dizem
respeito apenas à vida de homens e mulheres burgueses e brancos,
constituindo o significado moderno/colonial de homens e
mulheres. A pureza sexual e a passividade são características
cruciais das mulheres brancas burguesas, que reproduzem a classe
e perpetuam a posição colonial e racial dos homens burgueses
brancos. Mas, é igualmente importante ressaltar a proibição das
mulheres brancas burguesas nas esferas da autoridade coletiva, da
produção do conhecimento e do controle sobre os meios de
produção. (...) O lado escuro do sistema de gênero foi e é
completamente violento. Há uma profunda redução de pessoas

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―anamasculinos‖, ―anafemininos‖ e "terceiro gênero" de sua


participação onipresente em rituais, tomada de decisão e
economia, à animalidade, ao sexo forçado com colonizadores
brancos e a uma exploração de seu trabalho tão profunda que
muitas vezes levava as pessoas a morrerem de fadiga.
(LUGONES 2007. P. 206)8

Esse modo diferenciado de classificar as mulheres e homens colonizados e


europeus mostra que o sistema de gênero se organiza através de uma hierarquia que
conjuga raça e gênero e sexualidade. Lugones argumenta que, muito mais do que
através da dicotomia homem/mulher, é através da dicotomia humano/não humano que
se estrutura a colonialidadeimplementa seu domínio. Lugones afirma que ―A
consequência semântica da colonialidade do gênero é que ‗mulheres colonizadas‘ é uma
categoria vazia: nenhuma mulher foi colonizada e nenhuma fêmea colonizada era uma
mulher‖9(LUGONES 2010. P. 745). Os sujeitos colonizados, ao serem inseridos no
sistema de gênero europeu, foram destituídas sobretudo de sua humanidade. Essa
desumanização se expressa no papel que ocupam nesse sistema, de corpos animalizados
e hiper-sexualizados e alijados das categorias mulher/homem reservada para
europeus/brancos. Os sujeitos colonizados tornaram-se homens e mulheres via uma
analogia que tomava o homem branco como o entendimento normativo do que é
―homem‖ – no sentido amplo do que é humano – e a ideia de mulher branca,
compreendida como a inversão humana do homem, como conceito normativo para
compreender o que é ser ―mulher‖. Através dessa comparação, os sujeitos colonizados
eram classificados em uma posição que não alcançava nem a categoria de gênero, nem a
de seres humanos.

8The gender system has a light and a dark side. The light side constructs gender and gender
relationshegemonically, ordering only the lives of white bourgeois men and women and constituting the
modern/colonial meaning of men and women. Sexual purity and passivity are crucial characteristics of the
white bourgeois females who reproduce the class and the colonial and racial standing of bourgeois, white
men. But equally important is the banning of white bourgeois women from the sphere of collective
authority, from the production of knowledge, from most control over the means of production. (...)The
dark side of the gender system was and is thoroughly violent. We have begun to see the deep reductions
of anamales, anafemales, and ―third gender‖ people from their ubiquitous participation in rituals, decision
making, and economics; their reduction to animality, to forced sex with white colonizers, to such deep
labor exploitation that often people died working. (LUGONES 2007. P. 206)

9 The semantic consequence of the coloniality of gender is that ‗‗colonized woman‘ is an empty
category: no women are colonized; no colonized females are women‖ (LUGONES 2010. P. 745)

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Para Lugones, é importante observar como o sistema de gênero eurocentrado é


constituído e constitutivo da colonialidade do poder. Ele produz um sistema de gênero e
sexualidade que supõe um complexo entrelaçamento entre a hierarquização da
população segundo uma ideia de raça e a opressão sobre o gênero e a sexualidade dessas
populações. Essa poderosa ficção continua vigente até os dias de hoje – a despeito do
fim dos processos de colonização direta – permanecendo silenciosa sob o véu de
legitimidade que cobre as categorias do pensamento europeizado, sua suposta
universalidade e isenção. O controle colonial sob as áreas da existência que nos mostra
Quijano é generificado em todos os seus aspectos. Lugones desvela o caráter ideológico
dessas categorias na medida em que ashistoriciza e torna aparente os jogos de poder que
as engendram. O sistema de gênero, assim como o de raça, são frutos de um
conhecimento produzido pela modernidade e que serviu aos interesses político de
dominação cultural e material sob os povos colonizados.

Para Lugones, as teorias feministas que desconsideram esse elemento histórico da


constituição do sistema binário de gênero, na medida em que ignoram a colonialidade
do gênero, legitimam seu atual domínio cultural e político. Ao compreender a política
feminista em termos de opressão de homens sob mulheres ignora que essa separação
não é um dado social natural, mas uma construção histórica em termos ideológicos com
fortes implicações políticas. Para uma mulher colonizada, sobretudo para uma mulher
negra, o desafio da luta pelo reconhecimento de sua identidade se aprofunda alguns
graus. Mais do que ser reconhecida em igualdade com os homens, essas mulheres
precisam, antes, reivindicar o reconhecimento de seus corpos como corpos humanos.
Precisam reivindicar a condição de mulher. Lugones considera um feminismo de
mulheres do terceiro mundo deve criticar os resquícios de universalismo no feminismo
e ultrapassar as categorias da modernidade.

Mais do que expor as raízes da colonialidade nos debates sobre gênero, o


pensamento de Lugones é sobretudo um esforço político-prático de fazer emergir novas
forma de resistência à modernidade. Lugones rejeita a caracterização unilateral dos
sujeitos colonizados como sujeitos oprimidos. Para a autora, esses sujeitos encontram-se
imersos em um jogo de forças opostas: os processos de subjetivação (subjectification)
que os moldam segundo os poderes sociais vigentes, e a subjetividade ativa
(activesubjectivity), em que o sujeito, através de sua agência, engendra a si mesmo. Esse
jogo de forças é parte constitutiva da relação ativa e constante entre opressão e

16
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resistência. Esse jogo se expressa principalmente numa infrapolítica das relações


interpessoais, considerando que o acesso à autoridade, voz e visibilidade são negados a
esses sujeitos que estão muitas vezes apartados dos espaços públicos democráticos e das
instituições. Os sujeitos colonizados, para Lugones, são muito mais do que a hegemonia
os torna, são sujeitos diariamente resistentes ao processo de subjetivação a que são
submetidos, confrontando essa imposição através da afirmação de sua agência autêntica.
Lugones se denomina uma teórica da resistência, como escreve a autora, não porque
considera a resistência é o fim ou o objetivo da luta política, mas porque considera a
resistência como o ponto de partida através do qual se deve pensar a política
(LUGONES, 2010. P.746).

A resistência à colonialidade de gênero se faz tornando visível a diferença


colonial (colonial difference). O feminismo decolonial deve historicizar o vocabulário
moderno e apontar a existência de outras cosmologias e vocabulários alternativos a este,
excedendo as dicotomias próprias do pensamento moderno e desfazendo seu processo
de apagamento desses outros modos de pensar, proporcionando uma tensão entre
moderno e não-moderno. Por não-modernoLugones entende aquilo que está fora do
escopo conceitual que a modernidade oferece e que não se encaixa nele. Uma leitura
nos termos da colonialidade de ―não-moderno‖ pode fazer parecer que ao propor
abandonar a modernidade Lugones está realizando um retorno a uma constituição social
ainda intocada pela modernidade e envolta por uma aura romântica. Porém,
compreender aquilo que está fora do moderno como pré-moderno é justamente uma das
facetas da colonialidade do poder e da modernidade e sua imposição como linguagem
universal. Classificar o não-moderno como pré-moderno é assumir a premissa da
colonialidade que impõe o pensamento moderno, apagando a possibilidade de existência
de outros modos de pensar e negando-lhes legitimidade. Nessa leitura, se produz uma
hierarquização em que o não-moderno se subordina ao moderno em posição de
inferioridade. Assumir a lógica categorial da modernidade significa justamente excluir a
possibilidade de resistência à colonialidade, na medida em que impossibilita uma
compreensão múltipla da realidade.

Assim, para Lugones, os sujeitos resistentes à modernidade encontram-se sempre


nas fronteiras (borderlands) em seu processo de resistência: ao mesmo tempo em que
assimilam o mundo do colonizador e que o integram, opõem sua identidade a esse
mundo. É através desse locus conceitual – por natureza fraturado – que emerge esse

17
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pensamento limiar que expõe a diferença colonial. O que o feminismo decolonial


pretende não é a inclusão desses sujeitos na colonialidade do poder: seria, justamente, a
manutenção dessa diferença sem reduzi-la e sem esvaziá-la de sua lógica própria. O que
Lugones nos propõe é uma coalizão (coalition) entre mundos distintos, partindo do
pressuposto que não é possível assimilar completamente todos os mundos, mas que é
possível coordenar essas diferenças e mantê-las vivas em um mundo comum. Nas
palavras de Lugones:

O que proponho no meu trabalho em direção a um feminismo


decolonial é aprender uns sobre os outros como sujeitos
resistentes à colonialidade do gênero através da diferença
colonial, mesmo sem necessariamente fazer parte do mundo
simbólico de onde emerge a resistência à colonialidade. Ou seja, a
tarefa feminista decolonial começa através da compreensão da
diferença colonial e da resistência enfática ao hábito
epistemológico de apagá-la. Ao ver a diferença colonial, se vê o
mundo de uma forma nova e, em seguida, se exige o abandono do
encantamento da ideia de "mulher" como universal. Assim,
começamos a aprender sobre outros sujeitos resistentes através da
diferença colonial. (LUGONES, 2010. P. 753)10

Para Lugones, coalizão é um exercício radical da multiplicidade evitando a


tendência moderna da criação de hierarquias e dicotomias. Esse exercício não é somente
uma tarefa teórica de desvelar as categorias de pensamento europeizadas de sua pretensa
universalidade. Mais do que isso, reverter esse longo processo de subjetivação dos
sujeitos colonizados a partir da adoção da dicotomia homem/mulher como norma para a
constituição da civilidade e cidadania significa um exercício prático de coalizão. Esse
exercício é iminentemente prático de se questionar como é possível aprendemos sobre
outros modos de vida sem reduzir esses outros modos, que podem nos revelar
contradições profundas nos nossos próprios modos de pensar? Como é possível cruzar
essas fronteiras sem pretender assumir controle sobre esses ―novos mundos‖? O

10 What I am proposing in working toward a decolonial feminism is to learn about each other as
resisters to the coloniality of gender at the colonial difference, without necessarly being an insider to the
worlds of meaning from which resistance to the coloniality arises. That is, the decolonial feminist‘s task
begins by her seeing the colonial difference, emphatically resisting her epistemological habit of erasing it.
Seeing it, she sees the world anew, and then she requires herself to drop her enchantment with ‗‗woman,‘‘
the universal, and begins to learn about other resisters at the colonial difference. (LUGONES, 2010. P.
753)

18
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exercício teórico-prático da coalizão possibilita-nos manter a multiplicidade sem uma


tentativa de redução que esconda a diferença colonial. Possibilitar a tensão entre essas
muitas lógicas. A crítica da opressão colonial capitalista e heteronormativa é, para
Lugones, uma forma de transformação viva do social, realizada através de um
feminismo que possibilite que essas mulheres compreendam sua situação de opressão
pela colonialidade do gênero, sem considerar que submeter-se a esta lógica é a única
alternativa possível.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

LUGONES, Maria. Heterosexualismandthe Colonial / ModernGender System. Hypatia


vol. 22, no. 1. P. 186 – 209. Winter, 2007.

____.Methodological Notes toward a Decolonial Feminism. In: Decolonizing


Epistemologies: Latina/o Theology and Philosophy, edited by Ada Mara Isasi-Daz, and
Eduardo Mendieta. FordhamUniversity Press, 2011.

____. On Complex Communication. Hypatia, Vol. 21, No. 3, Feminist Epistemologies


of Ignorance. P. 75-85. Summer, 2006.

____. Pilgrimages/Peregrinajes: Theorizing Coalition Against Multiple Opressions.


Rowman & Littlefiel, 2003.

____.Toward a DecolonialFeminism. Hypatia vol. 25, no. 4 P. 742-759. Fall, 2010.

MIGNOLO, Walter D. PINTO, Júlio Roberto de S. A modernidade é de fato universal?


Reemergência, desocidentalização e opção decolonial. In: Civitas v. 15, p. 381-402. Jul-
set 2015.

QUIJANO, Aníbal. Colonialidad y Modernidad-Racionalidad. In: Los Conquistados


1942 y lapoblación indígena de las Américas. Org. HeraclioBonilla. P. 438 – 447.
EdicioneLibriMundi, 1991.

19
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A filosofia de Simone Weil: uma mística da ação e da contemplação11

Maria Simone Marinho Nogueira12

Resumo: Neste artigo temos como objetivo mostrar um pouco da filosofia de Simone Weil
(1909-1943), buscando reflexões sobre a sua mística que se apresenta revestida profundamente
pela ação e não só pela contemplação. Para tanto, dividimos o texto em três momentos: Percurso
existencial; A experiência na fábrica e o malheur; e A mística -ação e contemplação. No
primeiro momento apresentamos um pouco da vida da filósofa francesa, entendo que sua
filosofia é um reflexo da sua vida. Na segunda parte, sem deixar de lado a vida, apresentamos a
experiência da fábrica e com ela um conceito fundamental na sua filosofia, o de malheur.
Enfim, no terceiro, refletimos sobre a questão da mística no seu pensamento, procurando
relacionar as categorias da ação e da contemplação.

Palavras-chave: Mística, Filosofia, Ação, Contemplação, Simone Weil.

Introdução

Ler os Escritos de Simone Weil (1909-1943) é como receber uma luz quando
se está na escuridão: por um lado, ilumina lugares que não poderiam ser vistos na falta
dela; por outro, temos a sensação incômoda de sermos atingidos por uma luz muito
forte, como o prisioneiro da Alegoria da caverna13, capaz de abalar as nossas certezas.
Neste sentido, não conseguimos ver as ideias dessa filósofa francesa sem algum tipo de
perturbação14. Também, como afirma Pérez: ―A atração e o fascínio que ela costuma
despertar se unem, em alguns casos, a uma negação ou indignação. É um personagem
que não costuma deixar ninguém indiferente e que se torna incômoda por seu
inconformismo e radicalidade‖ (PÉREZ, 2009, p. 76). Desta forma, concordemos ou
não com o que ela nos apresenta, sua filosofia é por demais inquietante, não nos
deixando indiferentes ao seu tom provocativo e sem concessões15.

11
Este artigo é fruto do projeto de pesquisa PIBIC/UEPB, cota 2017-2018
12
Doutora em Filosofia pela Universidade de Coimbra, Professora Efetiva da Graduação em
Filosofia da UEPB e Professora Colaboradora da Pós-Graduação em Filosofia da UFPB. E-
mail: mar.simonem@gmail.com
13
Para usarmos a imagem de um filósofo que é por demais caro a Simone Weil. Cf. PLATÃO, A
República, Livro VII, 514a – 518b.
14
Maria Clara Bingemer, uma das maiores estudiosas da filosofia weiliana no Brasil, diz, em
uma das suas muitas falas sobre Simone Weil, que a primeira vez que leu algo dela (o livro A
gravidade e a graça), se sentiu como se um raio a tivesse atingido. Pensamos que a expressão
usada pela professora Maria Clara diz muito sobre os Escritos da filósofa francesa.
15
O estudioso italiano Paolo Farina abre um dos seus textos sobre Simone Weil com a frase
―Uma filósofa sem concessões‖ (FARINA, 2009, p. 337).
20
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Como há filósofos/filósofas cuja obra não se separa de suas vidas e como a


pensadora em apreço não é muito conhecida ainda nos meios acadêmicos filosóficos no
Brasil16, comecemos nosso artigo fazendo uma síntese da sua vida, procurando, ao
mesmo tempo, projetá-la na sua filosofia17. Talvez em nenhum outro pensador a vida e a
filosofia se relacionem tão estreitamente e de forma tão coerente, pois Simone Weil
escreve aquilo que vive e cobra esta mesma coerência daqueles que escrevem. Assim,
da mesma forma que critica o colonialismo e o capitalismo, critica também o
comunismo e a ideia de revolução18. Na sua busca incessante pelo que ela chama de
verdade, acaba se deparando com a tirania daqueles que sabem e, desta forma, percebe
que só o uso da razão no gabinete de trabalho não é suficiente para entender, por
exemplo, as causas da opressão operária e decide, por isso mesmo, fazer experiências
concretas, como veremos. De qualquer modo, corremos sempre um risco quando lemos
a sua biografia, pois, como afirma Martins:

Apesar da íntima conexão entre pensamento e vida em Simone Weil,


podemos dizer que essa conexão forma uma unidade entre os vários aspectos
contraditórios de sua jornada existencial e intelectual. Conhecer sua
biografia é verdadeiramente fascinante,encanta tanto que pode
facilmente nos levar a ficarmos apenas com seus dados biográficos e
deixarmos de lado a sua reflexão filosófica, que é complexa, erudita,
audaciosa, original e tem muitos elementos contraditórios (MARTINS, 2013,
p. 29, destaque nosso).

Apesar de o fascínio que sua vida exerce sobre aqueles que tomam
conhecimento dela, façamos, como dissemos acima, uma pequena apresentação da sua
jornada existencial, acreditando, como todos os estudiosos do seu pensamento, que a
sua vida nos ajuda a entender a sua obra.

16
Para a filosofia weiliana no Brasil, veja-se BOSI, 2007, p. 67-74. Da mesma autora, um outro
artigo publicado nos Cahiers Simone Weil, 2005, p. 29-33. Também, PUENTE, 2013.
17
Como escreve Pérez: ―[...] Nela se dá sempre uma clara sintonia entre a experiência e a escrita,
entre pensamento e ação ou entre a vida e a obra. Razão que impede de abordar suas
contribuições de forma exclusivamente sistemática e nos obriga a adentrar em sua vida
para compreender sua obra‖ (PÉREZ, 2009, p. 78, destaque nosso). Neste mesmo
direcionamento escreve Martins: ―Em SimoneWeilhá uma inseparável relação entre vida e
pensamento. Não é possível compreender seus escritos sem conhecer sua trajetória
existencial. Sua busca pela verdade passava por um profundo exercício da razão, do trabalho
intelectual, sobre o qual ela diz ser sua vocação, e pelo reflexo coerente disso em sua vida
prática, isto é, em todas as decisões, atitudes e caminhos que trilhava‖ (MARTINS, 2013, p.
28, destaque nosso).
18
Para algumas dessas críticas cf. Écrits de Londres et dernièreslettres;Écritshistoriques et
politiques; La conditionouvrière;Oppression et liberte;L’enracinement.
21
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Percurso existencial

Há uma vasta bibliografia sobre a vida de Simone Weil, mas a Obra de


referência continua sendo aquela escrita por Simone Pétrement, La vie de Simone Weil,
publicada em 197319. Além disso, a própria Simone Weil nos diz muito da sua vida nos
seus textos, sobretudo nas inúmeras cartas que escreve aos seus amigos e aos seus
familiares, como podemos ler na Carta de 17 de abril de 1943, quatro meses antes da
sua morte e endereçada aos pais:

Eu gostaria muito de saber se vocês estão bem de saúde e sem problemas de


dinheiro. Que vocês sejam capazes de gozar verdadeiramente, e plenamente,
do céu azul, do nascer e do pôr do sol, das estrelas, da pradaria, do eclodir
das flores, da folhagem e das crianças. Em todo lugar onde haja uma coisa
bela, pensem que eu estou lá. Eu me pergunto se há rouxinóis americanos?
(WEIL, 1957, p. 234 [nossa tradução])20.

Da doçura e da preocupação com a família, que está em Nova York fugindo do


nazismo21, ao trabalho na escola como professora e também na fábrica como operária,

19
Pétrement foi amiga de Weil e as duas estudaram juntas no Liceu e na Universidade. Para
outras referências biográficas, veja-se NICOLA e DANESE, 2003; FIORI, 2009; e PERRIN e
THIBON, 1953.
20
Simone Weil faz todo um esforço para que os pais não se preocupem com o seu estado de
saúde que não vai nada bem. No entanto, não se pense que nas Cartas que dirige aos pais e ao
irmão André, Simone fale somente de coisas amenas. Continua preocupada com a ocupação
da França pelos nazistas;focada em ajudar algumas pessoas e pede ajuda aos pais; mantém-se
atentaà questão do colonialismo; da opressão proletária; do avanço do nazifacismo e fala do
grupo da resistência francesa que há em Londres e de outros tantos temas que sempre fizeram
parte da sua filosofia. Além disso, orienta os pais sobre a publicação de alguns dos seus textos,
falando de algumas correções que precisam ser feitas ou, no caso da Carta que estamos
citando, vem um P.-S., em que diz: ―Decididamente, não é preciso publicar meus poemas na
América‖ (WEIL, 1957, p. 234 [nossa tradução]) e alega que corrigirá ainda uma ou outra
palavra.
21
Simone só não está com os pais porque embarcou para Inglaterra. Mas antes, quando ainda
estava em Nova York redige uma carta a Maurice Schumann, seu amigo, com quem estudara
no Liceu, que está em Londres, trabalhando com a Resistência, e lhe pede ajuda para ir a
Londres na esperança de entrar na França ocupada e ajudar os franceses. Se sente uma traidora
da França quando vai para Nova York e assim se expressa na Carta de 30 de julho de 1942:
―Me conforta[...], em fazer parte do sofrimento do país. Eu conheço bastante meu tipo
particular de imaginação para saber que a desgraça da França me faria muito mais mal de
longe do que de perto. [...] Além disso, tenho o sentimento que quando embarquei eu cometi
um ato de deserção e eu não posso suportar este pensamento‖ (WEIL, 1957, p. 185 [nossa
tradução]). Em Nova York mesmo ela redige um ―projeto para enfermeiras de primeira linha‖
(que envia a um amigo da família, mas na Carta a Schumann ela já diz que se trata de uma
missão perigosa). A descrição do projeto encontra-se nos seus Écrits de Londres
etdernièreslettres. Segue o que escreve Nicola e Danese sobre isso: ―Sonha vencer o desafio
do totalitarismo não apenas num plano individual, mas com um corpo de mulheres capazes de

22
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passando pela crítica ao marxismo e aos partidos políticos, isso para não falar do seu
interesse pela matemática e pelas ciências, a paixão pelos gregos antigos, a redação de
poemas e tragédias, as leituras da literatura hindu e budista (e também dos mitos e do
folclore de culturas diferentes da sua) até a experiência mística (não esqueçamos as
duras críticas que fez à igreja católica), e a forma intempestiva com que tratava alguns
dos seus contemporâneos, tudo isso constitui, com todas as suas contradições, a filósofa
Simone Weil22.

Nasce em Paris em 3 de fevereiro de 1909, numa família burguesa de judeus


não praticantes e como ela mesma diz em uma das suas cartas, foi criada num completo
agnosticismo. Seu pai era médico e sua mãe dona de casa, ambos se responsabilizaram
pela educação inicial dos filhos devido aos anos instáveis da primeira guerra mundial.
Simone tinha um irmão, André, que se tornou um matemático eminente. Na juventude
Simone Weil entra para o Liceu Henri IV e estuda com o famoso professor e filósofo
ÉmileChartier23, que adotou o pseudônimo de Alain e este desenvolveu um papel
importante e determinante na forma como Simone fazia filosofia 24. Depois ela vai
estudar na Sorbonne, onde também estudava uma outra Simone, de Beauvoir. Ambas
tiveram o mesmo orientador no trabalho deagrégation, Leon Brunschwing, mas Weil
estudou Descartes e Beauvoir, Leibniz. Em 1927 a França abre a possibilidade de as
mulheres fazerem parte do corpo docente dos Liceus e as duas Simone(s) prestam

partilhar o mesmo ideal. Redige por isso um ―Projeto‖ para enfermeiras de primeira linha, de
quem exigir uma virtude moral ―de um gênero que não se adquire‖, ou seja, com a
disponibilidade sem reservas para morrer. Ela própria freqüenta um curso para enfermeiras no
Harlem com essa finalidade. De Gaulle, depois de ter examinado o ―Projeto para as
enfermeiras‖ que Simone lhe envia, sentencia: ―Essa mulher é maluca‖‖ (NICOLA e
DANESE, 2003, p.89).
22
É bom esclarecermos que Simone Weil tinha uma mente privilegiada. Assim, lê Marx em
alemão; os filósofos gregos e o Novo Testamento, em grego; e o BhavagadGita e os
Upanishads, em sânscrito. Além disso, a sua abertura ao diferente, o que antecipa o tema do
diálogo inter-religioso, fez com que ela se interessasse por gregos, hindus, cristãos e egípcios.
23
―Ousava no método de ensino, pois exigia audácia e originalidade de seus alunos. Sua filosofia
não era caracterizada pela construção de um sistema, mas por um método, e no centro de seu
pensamento tinha a ideia do bem como a ideia suprema, de onde nascem todas as outras, e
aquestão da vontade, que leva em si toda a vida do espírito, pois é na vontade que está o
princípio da moral‖ (MARTINS, 2013, p. 47). Mais adiante nos acrescenta: ―Antes de entrar
no Liceu Henri IV, Simone estudou no Liceu Duruy, onde teve aulas com o professor René Le
Senne. [...] um dos pontos-chaves do pensamento de Le Senne era a questão da contradição, e,
graças ao seu ensino, Simone pôde dar atenção e importância à problemática das contradições,
vendo-as como critério de verificação da falsidade ou da validade de todo real‖ (Idem, p. 49).
24
Para os pensadores que influenciaram Simone Weil e também para as suas preferências e
rejeições em relação à história da filosofia, leia-se VETÖ, 2011.
23
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exames para Filosofia Geral e Lógica. Weil fica em primeiro lugar e Beauvoir em
segundo. Antes disso, um dia Simone de Beauvoir resolve se aproximar de Simone Weil
e assim nos relata o encontro:

[...] Ela me intrigava, por causa de sua grande reputação de inteligência e de


sua maneira estranha de se vestir; [...] Uma grande fome acabava de devastar
a China e tinham me contado que, sabendo desta notícia, ela havia soluçado:
estas lágrimas forçaram meu respeito mais ainda que seus dons filosóficos.
Eu invejava um coração capaz de bater através do universo inteiro. Consegui
um dia aproximar-me dela. Não sei mais como a conversa aconteceu; ela
declarou com um tom cortante que uma só coisa contava hoje sobre a terra: a
revolução que daria de comer a todo mundo. Eu retruquei, de maneira não
menos peremptória, que o problema não era fazer a felicidade dos homens,
mas encontrar um sentido para sua existência. Ela me cortou: ―Bem se vê
que você jamais teve fome‖ disse ela. Nossas relações pararam aí. Eu
compreendi que ela me havia catalogado como ―uma pequena burguesa
espiritualista‖, e isso me irritou... Eu me acreditava alforriada de minha
classe (BEAUVOIR apud BINGEMER, 2007, p. 117)25.

O testemunho de Beauvoir mostra-nos uma Weil intempestiva, mas, ao mesmo


tempo, capaz de uma grande compaixão pela dor alheia, independente de pertencer ou
não a sua cultura: o problema da fome é uma questão social que acompanha desde
muito cedo o pensamento weiliano26. Além disso, e apesar da ―suposta arrogância‖ com
que foi tratada, Beauvoir reconhece em Weil um coração capaz de bater através do
universo inteiro, e isso ela invejava/admirava, pois sabia do seu ascetismo, da sua
coragem e dos seus pequenos gestos em favor dos menos favorecidos. Sabia, por
exemplo, que apesar de nascer numa família de boas condições financeiras, Weil vivia

25
Farina nos conta um outro episódio, desta feita com Claude Lévi-Strauss: ―[...]Claude Lévi-
Strauss, acusado numa entrevista de antifeminismo, reconhece que com algumas mulheres ele
tem dificuldades: ―[...] como com Simone Weil. Nós éramos estudantes na Sorbonne, juntos.
Ela me irritava. Era impossível. Era sempre totalmente segura de ter razão [...]. Era frágil
fisicamente, mas de certo não intelectualmente! Era belicosa. Uma cerebral pura‖‖ (FARINA,
2009, p. 337).
26
Alguns fatos da sua vida comprovam esta afirmação. Aos cinco anos se torna madrinha de um
soldado e se priva dos doces para mandá-los ao front. É deselegante com Simone de Beauvoir,
como já dissemos, pois considera que esta fala de questões secundárias e esquece as mais
importantes, como a fome. Quando consegue o seu primeiro emprego como professora, doa
parte do seu salário àqueles que têm fome. Apesar do gênio intempestivo, quando vai trabalhar
como operária decide viver do seu soldo, que era por produção, como produzia pouco, mal
dava para se alimentar (poderia pedir aos pais, mas queria sentir na pele os que sentem todos
os que passam fome). Na sua experiência como vindimadora, conforme o testemunho do
proprietário, comia pouco e fazia muitas perguntas. Um dia ele lhe ofereceu um pedaço de
queijo e ela recusou dizendo que havia pessoas passando fome. Cf., biografias e comentadores
já citados.
24
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de forma modesta com o seu salário de professora e que doava todos os meses boa parte
do que recebia para os mais pobres, como já dissemos em nota.

Quando começa a ensinar filosofia no Liceu de Puy tem os seus primeiros


contatos com os sindicatos e logo se solidariza com os mineiros de Saint-Etienne e com
os desempregados. Participa de manifestações em favor deles e chega a ir à Prefeitura
exigir a criação de um fundo para ajudá-los. Não demora muito é transferida de escola.
Antes disso, porém, na folga das aulas, se dirige aos operários e dá aulas para eles
gratuitamente. Nas férias, vai com os pescadores para o alto mar e dá aulas para estes
também. Como o ensino de Simone não agrada e como também tem uma saúde frágil,
acaba passando por vários Liceus, sem deixar de lado os movimentos sociais e sempre
alimentando a ideia de ser operária27.

A experiência na fábrica e o malheur

Com vinte e cinco anos, e depois de conseguir uma licença de um ano do seu
trabalho como professora de filosofia, ela consegue, com a ajuda de um amigo, o
emprego na fábrica como operária. Naturalmente que a família e os amigos mais
próximos não concordaram com essa ideia, mas a discordância não foi suficiente para
impedir Simone de fazer a experiência da miséria humana. Em princípio a filósofa
francesa queria fazer a experiência da fábrica para responder algumas questões para as
quais o trabalho apenas de gabinete não oferecia soluções, dentre eles, como achar um
equilíbrio entre a organização de uma sociedade industrial com as condições de trabalho
de um proletariado livre. Mas o ser pensante de Simone se esfacela diante das duras
condições de trabalho, como ela nos relata em La conditionouvrière:

O esgotamento termina por me fazer esquecer as verdadeiras razões da


minha estadia na fábrica.Torna quase invencível para mim a tentação, a mais
forte que comporta esta vida: aquela de não mais pensar, único meio de não
mais sofrer. É somente no sábado à tarde e no domingo que me retornam as
lembranças, farrapos de ideias, que eu me lembro de que também sou um ser
pensante (WEIL, 1951, p. 51, [tradução nossa])28.

27
Segundo Bingemer citando Pétrement: ―Ela devia pensar que ali onde a reflexão teórica não
encontrava solução, o contato com o objeto poderia sugerir uma. O objeto era a miséria à qual
se tratava de encontrar remédio e solução. Mergulhada ela mesma dentro desta miséria, ela
veria melhor que remédios são apropriados para saná-la. E, depois de tudo, era preciso
conhecer tudo aquilo para poder falar sobre isso‖ (BINGEMER, 2007, p.119).
28
Apesar de mal conseguir pensar, resta-lhe ainda algo, mesmo escrevendo num tom
reticente:―Apenas o sentimento de fraternidade, a indignação diante das injustiças infligidas

25
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Parece quase impossível para Simone Weil realizar o que ela queria na fábrica:
pensar sobre as condições do trabalho. O que resta do ser pensante da nossa filósofa são
apenas farrapos de ideias que lhes vem ao final de semana. Na fábrica o ritmo da
produção é acelerado, como ela nos informa em outro trecho de La conditionouvrière.
Muito rápido, cadenciado e, portanto, mecânico, o que a impedia de pensar. O ritmo do
pensar filosófico, por sua vez, é mais lento e é difícil para alguém da filosofia realizar
um trabalho sem reflexão29. Simone Weil não estava habituada a uma ação mecânica:
além de não conseguir pensar, ela também não consegue dar conta do trabalho exigido.
Como nos relata, o trabalho é por peça produzida (consequentemente o salário) e o
ritmo é muito acelerado e pesado para a nossa filósofa: ―Eu não as consigo ainda
realizar, por muitas razões: a falta de hábito, minha falta de jeito natural, que é
considerável, uma certa lentidão natural nos movimentos, as dores de cabeça e uma
certa mania de pensar, da qual não consigo me livrar‖ (WEIL, 1951, p. 24, [tradução
nossa]). Tudo isso faz com que Simone Weil mal ganhe para comer e pior, tudo isso se
reflete no trabalho (também intelectual) que foi realizar na fábrica. Assim, na décima
sexta semana como operária e num tom de desabafo e desânimo ela escreve: ―Sinto
profundamente a humilhação deste vazio imposto ao pensamento‖ (WEIL, 1951, p. 58,
[tradução nossa]).

Apesar deste vazio e do cansaço, termina sendo no seu trabalho como operária
que Simone Weil, de alguma forma, descobre uma das categorias importantes da sua
filosofia: o conceito de malheur. Esta categoria embora seja traduzida para nossa língua
como infelicidade ou desgraça significa mais do podemos entender por esses termos.
Tem a ver com o sofrimento físico, mas é muito mais do que isso. É um
desenraizamento da vida (é quase uma morte). Alguém só é atingido mesmo por esta
infelicidade quando isso o atinge em todas as partes da sua vida: sociais, psicológicas e
físicas. É preciso que haja degradação social ou a angústia de uma tal degradação (cf.,

aos outros subsistem intactos – mas até que ponto tudo isso resistirá?‖(WEIL, 1951, p. 51,
[tradução nossa]).
29
Para ela o trabalho deve ser criativo: ―A grandeza do homem é sempre recriar sua vida.
Recriar o que lhe é dado. Forjar aquilo mesmo que sofre. Pelo trabalho ele produz sua própria
existência natural‖ (WEIL, 1993, p.201). Logo, para ela, o trabalho sem reflexão, sem poesia,
sem luz, é opressão.
26
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WEIL, 2005, passim)30. A pensadora francesa sente na carne, durante sua experiência na
fábrica, o mallheur e assim o relata em uma das Cartas31 ao Pe. Perrin32 quando
esteainda está em Marselha.

Depois do meu primeiro ano de fábrica, antes de retomar o ensino, os meus


pais levaram-me a Portugal, e aí separei-me deles para ir sozinha a uma
pequena aldeia. Tinha, de algum modo, a alma e o corpo em pedaços.
Aquele contacto com a infelicidade havia matado a minha juventude.
Até essa altura, não tinha tido a experiência da infelicidade, senão da
minha própria, que, sendo minha, me parecia de pouca importância, e que
ademais era apenas uma semi-infelicidade, pois era biológica e não social.
Sabia bem que havia muita infelicidade no mundo, estava obcecada por isso,
mas nunca o tinha constatado através de um contacto prolongado. Na
fábrica, confundida aos olhos de todos e a meus próprios olhos com a
massa anônima, a infelicidade dos outros entrou na minha carne e na
30
Como ela escreve no seu texto O amor de Deus e a infelicidade, que se encontra no livro
Espera de Deus: ―O grande enigma da vida humana não é o sofrimento, é a infelicidade. [...]
Aqueles sobre quem se abate um desses golpes depois dos quais uma pessoa se contorce no
solo como um verme meio esmagado, esses não têm palavras para exprimir o que lhes
acontece. De entre quem os encontra, aqueles que, mesmo tendo sofrido muito, nunca tiveram
contacto com a infelicidade propriamente dita não fazem a menor ideia do que ela é. É algo de
específico, irredutível a qualquer outra coisa, como os sons de que nada pode dar a mais
pequena ideia a um surdo-mudo. E aqueles que foram eles próprios mutilados pela infelicidade
não se encontram em condições de socorrer seja quem for e estão até quase incapazes de o
desejar. Assim, a compaixão para com os infelizes é uma impossibilidade. Quando ela se
produz realmente, é um milagre mais surpreendente do que a caminhada sobre as águas, acura
dos doentes e mesmo a ressurreição de um morto‖ (WEIL, 2005, p.109-110)
31
Esta Carta é considerada a Autobiografia espiritual de Simone Weil.
32
Sobre Pe. Perrin nos esclarece Nicola e Danese: ―[...] Pe. Perrin é o superior do convento,
quase totalmente cego, dotado de grande sensibilidade humana e de vastos conhecimentos
teológicos. Ele faz do convento um lugar de encontro de numerosos refugiados políticos,
católicos e judeus. Simone está curiosa devido ao que disseram alguns amigos,[...] Logo se
sente à vontade com ele. Simone visita o convento sempre que pode e pe.Perrin, mesmo
depois da transferência para Montpellier, volta com frequência a Marselha para poder
encontrá-la, antes que ela parta para a América do Norte. Ele é capaz de reconhecer a grande
alma que se esconde naquele corpo frágil sob um vestuário deliberadamente desleixado. Nasce
uma relação de fecunda amizade que une as almas no plano intelectual e espiritual e que nos
deixou cartas entre as mais significativas e belas da história da literatura desse gênero. Sem as
ler, ficamos alheios ao núcleo da experiência humana e mística de Simone‖ (NICOLA e
DANESE, 2003, p. 76). Lembremos que Pe. Perrin é um dos responsáveis pela publicação de
parte da obra de Simone Weil. Os outros dois são Gustave Thibon, que acolhe Simone em sua
vindima e Albert Camus que em 1949 declara: ―Parece-me impossível imaginar um renascer
para a Europa que não tenha em conta as exigências definidas por Simone Weil‖
(GONÇALVES apud CAMUS, 1985, p. 9). Toda Obra da pensadora francesa foi publicada
postumamente com a autorização da sua família (com exceção de alguns artigos que publicou
em vida). Ao Pe. Perrin, além das Cartas que trocaram, Simone deixa alguns textos que ele
publica (juntamente com as Cartas) sob o título AttenteDieu. A Thibon, Simone confia parte
dos seus Cahiers e ele os publica sob o título La pesanteuretlagrace. O restante dos seus
textos foi publicado por Camus, numa coleção intitulada Espoir, da editora Gallimard. Os
textos organizados por Pe. Perrin e Thibon foram publicados em português, respectivamente:
A espera de Deus e A gravidade e a graça.
27
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minha alma. Nada me separava dela, porque tinha realmente esquecido o


meu passado, não aguardava qualquer futuro e dificilmente conseguia
imaginar a possibilidade de sobreviver àquelas fadigas. O que aí sofri
marcou-me de forma tão duradoura que, ainda hoje, quando um ser
humano, seja ele qual for, e não importa em que circunstâncias, me fala
sem brutalidade, não consigo deixar de pensar que se deve ter enganado
e que o engano vai certa e infelizmente desfazer-se. Recebi aí e para
sempre a marca da escravatura, como a marca do ferro em brasa que os
romanos impunham na fronte dos seus escravos mais desprezados. Depois
disso, passei a olhar-me sempre como escrava (WEIL, 2005, p. 59-60
[destaques nossos]).

Como podemos perceber, somente quando a infelicidade dos outros entra no


seu ser, quando ela se sente parte de uma massa anônima, e tem consciência disso, pode
afirmar a dor do malheur, ou seja, ela própria já dissera, trata-se de uma profunda
degradação física (sente o malheur do outro), social (não se existe mais, posto que se
faz parte da massa anônima dos invisíveis do mundo) e psicológica (se tem a
consciência da degradação, no sentido mais profundo do termo). No entanto, o que nos
anos anteriores e durante a sua experiência na fábrica parece ser visto aparentemente
sob o aspecto social, começa a ser enxergado, também, sobretudo nos últimos anos de
sua vida e principalmente depois do que ela chama seu encontro com Cristo33, por um
viés fortemente místico. Entendamos, não se trata de fazer uma análise social e depois
uma análise mística, como se de duas dimensões irredutíveis se tratasse. Nossa leitura
em relação à autora exposta é de que ação (normalmente atribuída ao engajamento
social) e contemplação (atribuída normalmente à mística) são os dois lados de uma
mesma moeda na filosofia weiliana34. Assim, como afirma Silva: ―A mística iluminava

33
No seu percurso espiritual, temos, segundo a própria Simone: a experiência do cristianismo
como religião dos escravos, tida na aldeia de pescadores em Portugal; a experiência religiosa
na igreja de Santa Maria degliAngeli, em Assis, na Itália e a experiência deSolesmes, na
França. Respectivamente nos anos de 1935, 1937 e 1938. Cf., WEIL, 2005, passim. Assim ela
nos relata a sua experiência com Cristo, depois de recitar um poema (Love) dado a ela por um
jovem religioso da abadia de Solesmes: ―Foi no decurso de uma dessas recitações que, [...], o
próprio Cristo desceu e me tomou‖. E comenta depois: ―Nos meus raciocínios sobre a
insolubilidade do problema de Deus, não tinha previsto esta possibilidade, um contacto real,
de pessoa a pessoa, aqui neste mundo, entre um ser humano e Deus. [...] Nunca tinha lido os
místicos, porque nunca tinha sentido nada que me ordenasse que os lesse. [...] Deus impedira-
me misericordiosamente de ler os místicos, a fim de que me fosse evidente que não tinha
fabricado esse contacto absolutamente inesperado. No entanto, ainda recusei em parte, não
com o meu amor, mas com a minha inteligência‖ (WEIL, 2005, p. 62).
34
Aliás, são os dois lados de uma mesma moeda na maioria dos místicos, sobretudo as mulheres
que, tanto na Idade Média quanto na Contemporaneidade, demonstram uma forte coerência
entre contemplação e ação. Infelizmente o senso comum e também a Academia, possivelmente
28
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o seu envolvimento político e este transportava para a mística a densidade do sofrimento


humano, sempre numa grande e rigorosa ascese no caminho da verdade em direcção a
Deus‖ (SILVA, 2009, p.7).

Mas antes de pensarmos um pouco mais sobre isso, terminemos o percurso que
iniciamos sobre a vida de Simone Weil que continua nesta parte do nosso artigo. Depois
da experiência na fábrica, ela inicia sua trajetória mística, como já mostramos um
pouco, não sem fazer outras atividades para além do seu interesse pela mística e
mantendo sempre a sua postura social e política que sempre a marcou. Por exemplo, em
meio a esse percurso espiritual volta a lecionar no Liceu, desta vez no de Bourgues;
passa dois meses em Barcelona, de onde vai depois para o front de Aragon, lutar,
juntamente com os anarquistas, na guerra civil espanhola35. Depois de um ano de
licença por motivos de saúde, ensina no Liceu de Saint-Quentin. Depois dos anos de
1938 vai para a África, precisamente para Casablanca, volta para Paris e daí para
Marselha onde deve pegar um navio com a família para os Estados Unidos36. Depois,
como já dissemos, segue para Londres, onde morre no Sanatório de Ashfordem 24 de
agosto de 1943, aos 34 anos, vítima de tuberculose pulmonar37.

De saúde frágil e se alimentando mal, Simone não consegue realizar o seu


objetivo vindo para Londres que era o de voltar para a França ocupada e lutar junto com
os seus compatriotas. Mesmo assim, como já dissemos, se junta à Resistência Francesa
em Londres, mas se limita a fazer um trabalho muito burocrático, o que era muito difícil
para alguém que sempre se recusou em ser uma filósofa apenas de gabinete. Assim, em
forma de compaixão para com aqueles que ela deixou na França, a última ação de

por desconhecimento dos textos dos pensadores místicos, também são da opinião de que a
mística vive fora do mundo concreto.
35
Pega em armas pela primeira vez. Até então era pacifista, mas acaba reconhecendo que não
seria possível vencer o avanço de Hitler com flores. De toda forma, como nos relata, se
decepciona também com os anarquistas.
36
Não esqueçamos que nos anos 1930, Simone viaja para a antiga União Soviética, para
conhecer de perto o comunismo soviético, e à Alemanha, para conhecer o Partido Comunista
Alemão. Num congresso da C.G.T.U critica violentamente a ambos. Depois dessas viagens
redige o texto Allons-nousverslarévolutionprolétarienne?
37
Quanto à causa da morte, ―A certidão de obtido reza: Insuficiência cardíaca... decorrente de
desnutrição e tuberculose pulmonar. A defunta... provocou a morte ao recusar o alimento, por
perturbação do equilíbrio psíquico‖, no entanto, ―não é possível confirmar a ideia de suicídio,
seja porque os próprios pais pensam em outras causas, seja porque conhecemos a desolação de
Simone como um estado constante, seja pela inutilidade da sua vida e pela impossibilidade de
assumir um compromisso concreto, seja pelo fato de que até o fim escreve páginas admiráveis
e lúcidas‖ (NICOLA e DANESE, 2003, p. 111).
29
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Simone Weil foi quase uma não ação, ou seja, já certa de que não voltaria para a sua
terra, ela resolve se alimentar apenas com a quantidade de ração servida aos soldados
franceses que resistiam às tropas de Hitler. Foi a maneira que esta figura indefinível
encontrou de unir o seu sofrimento ao sofrimento dos soldados franceses e de pensar, de
alguma forma, que num gesto como este, ela se esvaziava de si mesma fazendo com que
Deus se afastasse do céu e ela da terra, isto é, une na sua filosofia, por demais
contraditória e desconcertante, a mística da ação e da contemplação.

A mística: ação e contemplação

Passemos agora, depois de apresentarmos a vida de Simone Weil, mesmo


acreditando que já a projetamos na sua filosofia, enveredar por alguns aspectos da sua
mística no intuito de demonstrarmos um pouco mais o aspecto contempl(ativo) do seu
pensamento, já que muito da sua ação já foi demonstrada. Comecemos, pois, definindo
a mística: ―A mística é a passagem para além da esfera onde o bem e o mal se opõem, e
isto pela união da alma com o bem absoluto‖ (WEIL,1957, p.184, [tradução nossa]). A
mística de todos os tempos e de todas as culturas é sempre a união do humano com o
divino, independente de que forma esse divino seja nomeado. Além disso, foge da ideia
de bem e mal, no sentido de que está sempre além dessas formatações, não só porque
dois se tornam um e este um está no plano daquilo que nos ultrapassa, como também
porque é preciso transgredir os limites de uma certa linguagem, aquela própria do
princípio de não-contradição. Assim, num outro texto, A espera de Deus, Simone afirma
que a linguagem dos místicos é a do amor: ―É também muito injusto que se censure, por
vezes, aos místicos o emprego da linguagem amorosa. São eles seus legítimos
proprietários. Os outros não têm direito senão de tomá-las de empréstimo‖ (WEIL,2005,
p. 175). A linguagem dos místicos está no plano da lógica do amor, onde os
contraditórios coincidem e, assim, Deus é humano e divino, uno e trino, forte e fraco
(segundo Simone, a força de Deus está na fraqueza do seu amor)38.

É esta fraqueza do amor, segundo Weil, que faz com que a criação não seja
uma demonstração de poder, mas de renúncia, e isto faz de Deus não um soberano sem

38
A contradição percorre toda a filosofia de Simone Weil e por isso talvez possamos afirmar que
a sua filosofia é mística. Em A gravidade e a graça lemos: ―As contradições em que o espírito
esbarra, únicas realidades, critério do real [...] A contradição vivida até o âmago do ser é o
dilaceramento, é a cruz. Quando a atenção fixada em alguma coisa nela tornou manifesta a
contradição, produz-se como que um deslocamento. Perseverando nesse caminho, chega-se ao
desapego.[...] Assim também toda verdade encerra uma contradição‖ (WEIL, 1993, p.107).
30
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obrigações, todo-poderoso, mas um mendicante que o aproxima dos miseráveis do


mundo (ou por isso os miseráveis do mundo se aproximam de Deus), como podemos ler
nesse passo dos Écrits de Londres e dernièreslettres:

O ato da criação não é um ato de poder. É uma abdicação. Por este ato se
estabelece um outro reino em relação ao reino de Deus. A realidade deste
mundo é constituída pelo mecanismo da matéria e da autonomia das
criaturas racionais. É um reino de onde Deus se retirou. Deus, tendo
renunciado a ser o rei, não pode aqui voltar senão como mendicante (WEIL,
1957, p.184, [tradução nossa]).

Ou ainda, como aparece em A espera de Deus:

A criação é da parte de Deus um acto não de expansão de si, mas de


retraimento, de renúncia. Deus e todas as criaturas, isso é menos do que
Deus apenas. Esvaziou-se desde então nesse acto da sua divindade; [...] Deus
permitiu que existissem outras coisas, coisas distintas dele e valendo
infinitamente menos do que Ele. Pelo acto criador, Ele negou-se a si mesmo,
tal como Cristo nos prescreveu que nos neguemos a nós mesmos. Deus
negou-se em atenção a nós para nos dar a possibilidade de nos negarmos por
Ele. Esta resposta, este eco, cuja recusa depende de nós, é a única
justificação possível para a loucura de amor do acto criador. (WEIL, 2005,
p.152, [tradução nossa]).

Ora, a abdicação de Deus é, ao mesmo tempo, um fenômeno místico e político.


Místico porque o termo, relacionado a outras categorias como vazio,distância, atenção,
despojamento, amor, nos faz compreender um deus que não se impõe às suas criaturas e
que até, pelo seu amor, pode ser mais fraco do que elas, quando Simone afirma que nós
podemos odiar a Deus, mas Ele não pode nos odiar e, nisso, infelizmente, nós somos
mais fortes do que ele39. O que ela também nega com a ideia do vazio ou da abdicação é
a ideia de um Deus-Objeto (objetivável) tão comum em algumas religiões e dificilmente
aceito pela mística40. Daí a frase de Mestre Eckhart, caro ao pensamento de Simone,
peço a Deus que me livre de Deus. Do ponto de vista político, a abdicação de Deus
significa a ideia de um Deus que renuncia ao poder de ser rei e por isso se torna

39
Lembremos que nossa pensadora viveu no período de entreguerras, que viu o crescimento do
nazifacismo e de outros totalitarismos. Além disso, sente na pele, na sua experiência como
operária, a brutalidade dos que estão no comando. Logo, um Deus opressor, capaz de odiar
aquilo que cria, não faz parte da ―construção sobre o divino‖ em Simone Weil. O próprio
Cristo é apresentado por ela como uma vítima do império da força.
40
Como afirma Simone Weil: ―Mas a vida inteira de todo um povo pode ser impregnada por
uma religião que seja inteiramente orientada para a mística. Essa orientação unicamente
distingue a religião da idolatria‖ (WEIL, 1957, p. 103, [tradução nossa]).
31
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mendicante. Renunciar a ser rei implica, aqui, em não ser um tirano, em não se impor
pela força. Como nos mostra muito bem Nicola e Danese:

Simone viu melhor que qualquer outro a contradição principal da fraqueza


do Onipotente. [...] Ela serve de ajuda para a descoberta de um Deus fraco
por amor, inaceitável para as culturas dos lugares e dos homens fortes da
história. Anuncia, por isso, não o fim da religião, mas do Deus proprietário.
[...] O Deus com semblantes humildes muda a imagem da soberania na Cruz
na qual é pregado o Onipotente derrotado pelas violências do mundo. Trata-
se do mistério que atinge especialmente a época contemporânea, a qual, ao
exaltar a força, fica atordoada diante do poder da fragilidade. [...] Essa
imagem exprime bem a aspiração à recusa da força, seja ela do Estado, com
os seus aparatos de poder, seja da razão, com os seus paradigmas, seja da fé,
com os seus dogmatismos (NICOLA e DANESE, 2003, p. 242-243).

Conhecemos bem a crítica weiliana a todo e qualquer tipo de poder que


oprime, por isso, como diz Nicola e Danese, somente um Deus alternativo à lógica do
poder que domina o mundo atrai Simone, e nós acrescentamos que esse Deus é o Deus
apresentado na sua mística, é o Deus que ela ―define‖ paradoxalmente como
infinitamente pequeno. Une, o que nos parece ser uma tendência na sua filosofia, a ação
e a contemplação quando escreve: ―[...] A diferença é infinitamente pequena entre um
regime de trabalho que abre aos homens a beleza do mundo e um outro que fecha, mas
esse infinitamente pequeno é o real‖ (WEIL, 1957, p.104, [tradução nossa]). Faz
questão de nos apresentar um Deus que mostra a sua presença na sua ausência e
consequentemente na sua fragilidade diante das dores do mundo. Mesmo assim um
Deus de justiça, posto que esta é para Simone a coincidência de duas vontades, como
lemos no passo a seguir:

Quando dois seres humanos têm que fazer juntos, e quando nenhum tem o
poder de impor ao outro seja o que for, é necessário que se entendam.
Examina-se então a justiça, pois apenas a justiça tem o poder de fazer
coincidir duas vontades. Ela é a imagem desse amor que em Deus une o Pai
e o Filho, o pensamento comum daqueles que pensam separadamente. Mas
quando há um forte e um fraco, não há necessidade alguma de unir duas
vontades. Não há senão uma vontade, a do forte. O fraco obedece. Tudo se
passa como quando um homem manipula a matéria. Não há duas vontades a
fazer coincidir. O homem quer e a matéria sujeita-se, o fraco é como uma
coisa (WEIL,2005, p.149-150).

É exatamente contra a coisificação do ser humano, sobretudo dos miseráveis


(os atingidos pelo malheur) que vemos na filosofia weiliana uma mística da

32
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compaixão41 por meio da qual ação e contemplação se unem nas categorias do vazio, da
atenção e da descriação. Como ela escreve em A espera de Deus: ―Aquele que, ao ver
um infeliz, transporta até ele o seu ser, faz nascer nele por amor, ao menos por um
momento, uma existência independente da infelicidade‖(WEIL, 2005, p. 134). Ora,
fazer essa ―transferência‖ só é possível se aquele que transporta o seu ser se esvaziar de
si mesmo, como Simone Weil deixa claro na sequência quase imediata da citação
acima: ―Esses, ao transportarem o seu próprio ser até ao infeliz que socorrem,
introduzem nele, de facto, não o seu próprio ser, porque não o têm mais, mas Cristo ele
mesmo‖ (WEIL, 2005, p. 134).

Mas, para que ocorra este esvaziamento, é necessário um exercício de atenção.


Esta é colocada por Simone como um esforço, porém um esforço negativo, já que o
pensamento não deve procurar nada, mas deve estar pronto a receber. É o que a
pensadora francesa chama também de atenção criadora e que consiste em se prestar
atenção ao que não existe42, ou seja, aos miseráveis do mundo. É também contra os
rótulos e, portanto, contra a tirania da objetivação que ela se coloca, nos mostrando, ao
mesmo tempo, que o malheur (a infelicidade, a desgraça) pode atingir qualquer um de
nós:

A plenitude do amor ao próximo é simplesmente ser capaz de lhe perguntar:


«Qual é o teu tormento?» É saber que o infeliz existe, não como uma
unidade numa coleção, não como um exemplar da categoria social etiquetada
«infelizes», mas enquanto homem exatamente semelhante a nós, que foi um
dia atingido e marcado com uma marca inimitável pela infelicidade. Para
isso é suficiente, mas indispensável, saber pousar sobre ele um certo olhar.
Este olhar é em primeiro lugar um olhar atento, em que a alma se esvazia tal
como ele é, em toda a sua verdade. Disto só é capaz aquele que é capaz de
atenção (WEIL, 2005, p. 105-106).

Considerações finais

41
Escreve Simone em La connaissancesurnaturelle: ―Esse infeliz jazia na rua, meio morto de
fome. Deus tem dele misericórdia, mas não pode lhe enviar o pão. Mas eu que estou aqui,
felizmente eu não sou Deus. Eu posso lhe dar um pedaço de pão. É minha única superioridade
sobre Deus‖ e acrescenta: ―A misericórdia preenche este abismo que a criação estabeleceu
entre Deus e a criatura‖ (WEIL, 1950, p. 294 e 54, respectivamente, [tradução nossa]). Sobre o
tema mística da compaixão, cf., BINGEMER, 2015.
42
―A atenção criadora consiste em prestar realmente atenção ao que não existe. A humanidade
não existe na carne anónima e inerte à beira da estrada. O samaritano que se detém e olha,
presta, todavia, atenção a essa humanidade ausente, e os actos que se seguem testemunham
que se trata de uma atenção real‖ (WEIL, 1957, p. 103).
33
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Do exposto, procuramos apresentar a filosofia de Simone Weil como sendo


também uma mística e mostrar que esta mística, por sua vez, se revela como um todo
composto de dois momentos indissociáveis: ação e contemplação. Isso, por si só, se
configura em vários problemas. O primeiro deles consiste em fazer uma reflexão da
filosofia como mística ou da mística como filosofia, quando, na própria história da
filosofia há quem acolha e há quem rejeite a mística. Para os mais cartesianos ou
aristotélicos – não necessariamente para Descartes e Aristóteles – a mística deve ser
rejeitada, pois não se presta a grandes sistemas, tem uma linguagem paradoxal e parece
dizer coisas sem sentido. Se, por um lado, este comportamento mais defensivo é
compreensível, posto que a filosofia nasce sob o signo da razão em contraposição ao
mito; por outro, não se justifica na sua plenitude pelo simples fato de a filosofia, desde o
seu nascimento, buscar a visão do todo e isso deve incluir também, dentre outras coisas,
pensamentos assistemáticos, linguagens simbólicas, paradoxais e, principalmente a ideia
de que o ser humano (consequentemente aquilo que ele pensa) é um todo, composto não
só de razão, mas também de sensibilidade.

A mística weiliana – e não só a dela – valoriza todos esses últimos aspectos,


sem desmerecer, naturalmente, a razão. Mas de que razão nos fala Simone e os místicos
de todos os tempos? De uma razão não instrumental, isto é, de uma razão que não
necessita da fraqueza do outro para demonstrar a sua força. Assim, a mística da nossa
autora é uma forma de pensar que se coloca contra todas as tiranias, inclusive a da razão
enquanto instrumento de dominação. Neste sentido, a mística de Simone é transgressora
e a transgressão é uma característica marcante da filosofia. Logo, por mais rejeição que
haja na história da filosofia em relação à mística, pensamos ser possível falar de uma
filosofia que se realiza enquanto mística, entendendo que esta pode ser vista muito mais
do que apenas sob seu aspecto religioso. Os que acolhem a mística na história da
filosofia, por exemplo, enxergam nela uma alternativa de superação da metafísica, assim
como um abalo das certezas das suas razões, fazendo da mística um pensamento muito
mais coerente quando se trata do homem contemporâneo do que o que nos ofereceu a
filosofia das luzes na modernidade.

Já no que diz respeito à ação e à contemplação na mística weiliana, entendemos


que, apesar da sua trajetória existencial nos oferecer elementos suficientes para justificar
o seu engajamento social e a sua luta em favor dos menos favorecidos, isso apenas não

34
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basta para justificarmos a sua mística como uma mística da contempl(ação)43. É preciso
analisar a sua escrita (os seus textos) para podermos comprovar a ação e a contemplação
como movimentos que caminham juntos e formam o todo da sua mística de forma
indissociável (o que aqui apenas introduzimos). Ora, o que a literatura sobre este tema
nos mostra é que a mística ilumina a sua ação política e social e que esta, por sua vez,
esclarece elementos do seu pensar místico. No entanto, não se trata apenas de ver a obra
de Simone Weil do final para o início, no sentido de ler seus primeiros textos à luz dos
últimos (em que se intensifica a sua vertente mística), mas de encontrar, já nos
primeiros textos, aspectos místicos que serão melhor desenvolvidos nos textos mais
especificamente dedicados à mística. Logo, o que procuramos aqui, ainda que de forma
introdutória, além de dar a conhecer um pouco mais do pensamento de Simone Weil, foi
deixar elementos para reflexão deque sua filosofia se realiza, também, como uma
mística da ação,como podemos ler nas palavras weilianas com as quais encerramos
nosso texto:―Que o homem não só saiba o que faz, mas se possível, que ele perceba o
uso – que ele perceba a natureza modificada por ele. Que, para cada um, seu próprio
trabalho seja um objeto de contemplação‖ (WEIL, 1996, p. 89).

REFERENCIAS
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GONÇALVES, J. M.P. Apresentação. In: WEIL, Simone. A espera de Deus. Lisboa:
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43
Algumas vezes estamos grafando o nome contempl(ação) desta forma com o objetivo
de mostrar que a ideia de ação já está contida na de contemplação, não só pela forma
da grafia portuguesa, mas pelo sentido etimológico do termo contemplação, bastando
para isso buscarmos o seu correspondente em grego.
35
Revista Sísifo – vol. 1, nº 6. Novembro. Ano 2017 - www.revistasisifo.com

MARTINS, A. A. A pobreza e a graça: experiência de Deus em meio ao sofrimento em


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Revista Sísifo – vol. 1, nº 6. Novembro. Ano 2017 - www.revistasisifo.com

Possui Doutorado em Filosofia pela Universidade de Coimbra, Mestrado em Filosofia


pela Universidade Federal da Paraíba e Graduação em Filosofia e em Letras pela
Universidade Federal do Rio Grande do Norte. É professora Efetiva do Curso de
Filosofia da Univerdade Estadual da Paraíba e professora Colaboradora do Programa de
Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal da Paraíba. É líder do
Principium– Núcleo de Estudo e Pesquisa em Filosofia Medieval (UEPB/CNPq) e
Pesquisadora do Apophatiké– Grupo de Estudos Interdisciplinares em Mística
(UFF/CNPq). Desenvolve diversos Projetos de Pesquisa e Extensão e atualmente tem
trabalhado com a produção feminina na História na Filosofia.

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Revista Sísifo – vol. 1, nº 6. Novembro. Ano 2017 - www.revistasisifo.com

Egéria (sec. IV/V), a primeira escritora em língua latina da Idade


Média

Marcos Roberto Nunes Costa44

Fonte: http://smalltalkwitht.wordpress.com/

Resumo: Não obstante as dificuldades em precisar a data, local e verdadeiro nome


Egéria, pois e até mesmo seu nome é construído a partir dos títulos que seus escritos
receberam ao longo da história, pesquisas recentes apontam esta mulher como ―a
primeira escritora em língua latina da Idade média‖, autora de uma importante obra
conhecida por ―Itinerarium ad Loca Sancta (Intinerário ou Peregrinação a Terra
Santa), que como o próprio título indica é um ―relato ou diário‖ de uma viagem
(peregrinação) que a autora fez a Terra Santa. Mas, mais do que um simples relato de
caráter pessoal, a referida obra apresenta-se como um manual de catequese, dirigido as
comunidades religiosas de seu tempo, o qual traz em seu bojo uma visão de mundo,
além de ser um documentário, por seu rico manancial de dados histórico-culturais e
políticos das comunidades por onde passou. Bem como, a obra de Egéria é muito
estudada hoje em dia por linguistas, por trazer elementos importantes para compreensão
das origens e formação da língua latina arcaica.

Palavras-chave: Égeria, Peregrinação, Língua Latina.

Não se sabe exatamente em que data e onde viveu Egéria (ou Etéria) e até
mesmo seu nome é construído a partir dos títulos que seus escritos receberam ao longo
da história.
O que se sabe é que, por volta de 680, uma cópia [transcrição] de sua obra foi
enviada aos monges da comunidade de São Pedro de Montes, fundada por São Frutuoso
de Braga, em Bierzo, província de Astorga. No início do século XI, por razão

44
Doutor em Filosofia pela PUCRS, Pós-doutorado em Filosofia pela Universidade do
Porto. Professor da Graduação e Pós-Graduação (Mestrado e Doutorado) em
Filosofia da UFPE. E-mail: marcosnunescosta@hotmail.com
38
Revista Sísifo – vol. 1, nº 6. Novembro. Ano 2017 - www.revistasisifo.com

desconhecidas, os manuscritos foram trasladados para o mosteiro de Montecassino, por


Ambrósio Rastrellini, abade deste monastério de 1599 a 1602, finalmente, em 1810, no
perpíodo das guerras napoleônicas, por questões de segurança, foram transportados para
Biblioteca della Fraternità dei Laici, de Arezzo45.
Ali - em Montecassino -, em 1884, os manuscritos foram redescobertos pelo italiano
Gian Francesco Gamurrini, que a esta altura o já estava incompleto: faltando-lhe uma pequena
parte inicial e uma grande parte no final46. Três anos depois, em 1887, o referido italiano fez a
primeira publicação da obra, que apareceu com o título: Peregrinatio ad Loca Sancta S. Silviae
Aquintanae ad Loca Sancta (Peregrinação de Santa Silvia de Aquitana a Terra Santa)47. Ou seja,
a obra foi atribuída a Santa Silvia de Aquitana, que segundo Rosalvo do Valle era “irmã de
Flávio Rufino da Aquitânia, gaulês, contemporâneo de Teodósio Magno, a qual nos fins do
século IV teria feito uma peregrinação à Terra Santa”48.

Mas, em 1903, a descoberta de uma carta49 do referido monge Valerius de


Bierzo aos monges de Montecassino, datada do século VII, o qual havia conhecido a
cópia completa dos manuscritos na Comunidade de São Pedro de Montes 50, revelou a
identidade da verdadeira autora51, de forma que, em 1910, uma nova edição fora

45
Cf. a introdução à tradução brasileira: NOVAK, Maria da Glória. Intodução. In:
EGÉRIA, 1977, p. 9-10 e VALLE, 2008, p. 30.
46
A esse respeito diz Maria Filomena Coelho: ―Esta é a primeira impressão que chegou
até nós do itinerarium que Egéria percorreu na Terra Santa, entre os anos 381 e 384
d.C. O manuscrito que registra as memórias da viagem desta mulher, infelizmente, não
sobreviveu na sua forma integral e hoje acredita-se que se tenham perdido cerca de
dois terços. Não sabemos ao certo de onde ela saiu, quais são as suas origens, o que a
empurrou à peregrinação. Devido ao desaparecimento da primeira parte do
manuscrito, subimos a bordo da memória de Egéria já em plena caminhada, no meio
da península do Sinai‖ (2011, p. 353).
47
Cf. CID LÓPEZ, 2010, p. 11.
48
VALLE, 2008, p. 32 e CID LÓPEZ, 2010, p. 11.
49
A referida carta foi descoberta por Dom Mário Férotin que levou ao público num
artigo: ―Le véritable auteur de la Peregrinatio Silviae, la vierge espagnole Éthérie.
Revue des Questions Historiques, v. 74, p. 367-397, 1903 – pondo em dúvida a autoria
de Silvia até então aceita‖ (NOVAK, Maria da Glória. Intodução. In: EGÉRIA, 1977,
p. 10).
50
Segundo Rosa Manuela Barbosa Oliveira, Valerius ―morreu em 695, no mosteiro de S.
Pedro dos Montes, onde viveu uma vida monacal e de eremita, durante mais de
quarenta anos‖ (2014, p. 70), justamente o mosteiro onde havia uma cópia completa
dos manuscritos de Égeria, os quais foram transferidos depois para outos ligares até se
fixar definitivamente na Biblioteca della Fraternità dei Laici, de Arezzo.
51
Ou seja, ―muito antes de Gamurinni descobrir, em 1884, o Códice de Arezzo, já
sabíamos que uma dama da ‗Provincia Gallaeciae‘, no noroeste da Espanha, havia
percorrido, durante três anos, no século IV, os países que hoje chamamos Oriente
39
Revista Sísifo – vol. 1, nº 6. Novembro. Ano 2017 - www.revistasisifo.com

preparada, desta feita com o título: Peregrinatio [ou Itinerarium] Aetheriae ad Loca
Sancta (Peregrinação [ou Viagem] de Etéria a Terra Santa), que com o passar dos
tempos seriam abreviadas simplesmente por Itinerário (ou Viagem, ou Peregrinação)
de Etéria (ou Egéria).
Entretanto, vale salientar, nos supracitados manuscritos o nome da autora é escrito
de diversas formas, como, por exemplo, Etheria, Heteria, Egeria, Eiheria, Echeria, das quais
prevalecem duas delas: Aetheriae e Egeria, “mas modernamente a forma Egeria tem logrado
maior aceitação”52, daí preferirmos esta nomemclatura aqui.

Se quanto ao nome da autora do Itinerário há controvérsias, mais ainda é


quanto a sua origem familiar e posição social.
Quando a sua posição social, três elementos que se interligam levam os
comentadores a falar de Egéria como “monja e/ou nobre”. Primeiro, por seu prestígio junto a
Igreja institucional da época. Em seus relatos de viagens, Égeria mostra que por onde passava
era muito bem acolhida nos mosteiros e pelas autoridades eclesíasticas: padres, bispos, etc53.
Motivo pelo qual o monge Valerius de Bierzo, na supracitada carta aos monges de
Montecassino (em 680), logo no início se referir a Egeria como uma monja, conforme vemos
no trecho da referida carta, que diz:

Quando consideramos os feitos e virtudes de varrões fortíssimos e santos,


consideramos mais digna de admiração a constantíssima prática da virtude
na debilidade de uma mulher, a qual se refire a nobilíssima história da bem-

Próximo, e que nos havia deixado a descrição desses países num Itinerarium que um
monge de Bierzo, Valério, da mesma região da Espanha, que teve entre suas mãos, no
século VII, dando-nos a conhecer pela primeira vez a exitênciadesse Itinerarium e o
nome de sua aurora‖ (ARCE, Agustín. Prologo. In: EGERIA, 2010, p. XIII). Cf.
também, FREIRE, 1987, p. 273-274. Mas, como ressalva David Manuel Mieiro, ainda
ssim há quem continua com a nomemclaruta antiga, como é o caso de Jarecki, que
―continuava a dizer que Egéria ou Etéria não era uma figura histórica. permanecendo
na ideia primordial de que seria Sílvia ou Silviana. A sua ligação a altas autoridades,
como o imperador Teodósio, e o facto de ter feito uma peregrinação aos lugares
santos, em meados do século IV, induz imediatamente a ela como autora [...]. Vingará
a novidade, melhor fundamentada, de que Egéria é a verdadeira autora do itinerário‖
(2013, p. 41-42).
52
VALLE, 2008, p. 34.
53
cf. por exemplo, EGERIA. Peregrinação de Etéria. XIX, 5, 1977, p. 69-70, que diz: “O santo bispo da
cidade, homem verdadeiramente religioso, monge e confessor, disse-me, acolhendo-me de boa
vontade: ‘vejo, filha, que pela religião te impususte tão grande labor que, dos confins da terra,
chegaste a estas paragens; se, pois, te der prazer, nós te mostraremos todos os lugares que são, aquí,
agradáveis de ver para os cristãos’. Então, pois, dando graças a Deus em primeiro lugar, e também a
ele, pedi-lhe muitíssimo se dignasse fazer o que dizia”.

40
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aventurada Egéria, mais forte do que todos os homens do século *…+. Esta
bem-aventurada monja Egéria, inflamada pelo desejo da divina graça e
ajudada pela virtude da majestade do Senhor, empreendeu com intrépido
coração e com todas as suas forças uma languíssima viagem por toda a
região...54.

A partir daí, quase todos os comentadores falam com a maior naturalidade de Egéria
como uma monja55, mas, ressalva Maria Rosa Cid López, há quem discorde de que ela fosse
uma monja, como é o caso de Hagith Sivant, para quem

não é fácil aceitar que uma mulher, celibatária, com deveres no monastério,
pudesse viajar e estar fora por tanto tempo, gozando de tal liberdade de
movimentos. A situação seria ainda mais estranha no caso de se tratar de
uma abadessa. Precisamente, esta larga permanência fora de seu lugar e da
facilidade com que se trasladava leva a pensar em uma mulher não atada por
votos religiosos56.

Já Maria da Glória Novak, em sua intodução à tradução brasileira, pondera as


posições opostas, ao dizer:

Não há certeza de que Etéria fosse monja, apesar da indicação de


Limonges. Valério diz virgo e sanctimonialis (1,2; 4,4); objeta-se que não
haveria monjas na Galiza no século IV, mas, na verdade, parece que havia lá
virgens consagradas a Deus, e virgo e sanctimonialis tanto podem referir-se
a monjas como às virgens leigas consagradas à vida ascéticas57.

Monja ou não, no sentido restrito da palavra, o certo é que Egéria estaba ligada a um
certo grupo de mulheres religiosas, as quais são as destinatárias diretas de seus escritos, pois
por diversas vezes fala de algumas “domnae – senhoras”, a quem dirige suas palavras, com as
quais tem certo compromisso religioso, de forma que, caso viesse a falacer antes de retornar,
seus escritos deveriam ser destinados a elas. Isto vemos claramente no seguinte trecho do
Itinerarium ad loca sancta:

Daí, senhoras, minha luz, dedicando à vossa bondade esta narrativa, era já
meu propósito, em nome de Cristo, nosso Deus, dirigir-me à Asia - a Éfeso,
para rezar no martyrium do santo e bem-aventurado apóstolo João. Se,
depois disso ainda estiver viva e ainda puder conhecer alguns outros sítios,

54
VELERIUS de Berza. Epistola laude Etheriae virginis, 1.10.11 In: EGERIA, 2010, p. 9
(grifo nosso).
55
LIMA, 2012, p. 240, diz: ―No século IV, há uma mulher a percorrer um Itinerrium
escrito em forma de carta, num diálogo conservado em letras. É a viagem realizada
pela monja Egéria desde a província romaa da Gallaecia até à Terra Santa‖.
56
SIVANT apud CID LÓPEZ, 2010, p. 25.
57
NOVAK, Maria da Glória. Intodução. In: EGÉRIA, 1977, p. 12.
41
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eu mesma, se Deus se dignar permitir, os descreverei a vossa bondade; ou,


ao menos, se decidir outra coisa, vo-lo comunicarei por escrito. Vós,
senhoras, minha luz58, dignai-vos lembrar-vos de mim, quer eu esteja neste
corpo ou fora dele (2Cor 12,2-3)59.

Portanto, há um claro compromisso religioso para com certas “domnae – senhoras”,


que não eran necessáriamente monjas60, o que dá um caráter epistolar ao Itinerarium ad loca
sancta, conforme palavras de Alexandra B. Mariano, em sua introdução à tradução portuguesa
desta obra:

Uma característica do Itinerário, fácilmente deduzida a partir da leitura, é a


forma marcadamente dilogística do discurso, que o aproxima, em termos
de estrutura, do registro epistolar ou para-epistolar e que pressupõe a
existencia de um eu que se dirige a um tu/vós (Vos 23,10), destinatário
ausente mas real. No caso preciso, o texto é dirigido a um grupo de
mulheres (domnae/dominae), com quem existe uma relação próxima, que a
narradora insiste em explicitar *…+61.

E este é o principal motivo da viagem de Egéria: levar a suas “irmãs” o testemunho


ocular dos lugares santos, uma missão que ela própria acredita ser o fruto de uma inspiração
divina.

Quanto ao outro ponto - sua nobreza, inferi-se, primeiro, pelo questionamento de


como uma mulher dispunha dos recursos necessários para empreender longas viagens62, pois,

58
O expressão ―lumnen meum – minha luz‖, que aparece aqui por duas vezes, é
substituída em outros momentos por outros termos igualemente afetuosos, como:
―venerabilis soroles – veneráveis irmãs‖ (III, 8) e ―dominae animae meae – senhoras
de minha alma‖ (XIX, 19), que denotam sempre proximidade, respeito, compromisso,
etc.
59
EGERIA. Peregrinação de Etéria. XXIII, 10, 1977, p. 79.
60
PASCAL, 2005, p. 452, observa que, “falar da monja Egeria (perdão por adiantar o nome, rompendo a
intriga) é um despropósito. Pela expressão reiteradamente empregada dominae et sorores, não pode
deduzir-se que se trata de monjas - e desde logo, o contexto geral é outro, como em seguida veremos
-. Desde muito antes de que nascera Egéria, a expressão soror, empregada coloquialmente, tinha uma
mera conotação de efeto [...]. A interpelação a umas dominae et sorores havia de traduzir-la, para ser
fierl ao espírito da letra, como ‘respeitáveis amigas’, ou ‘queridas amigas’”.
61
MARIANO, Alexandra B. Intodução. In: EGÉRIA, 1998, p. 16-17. Nesta intodução a
comentadora insister, por diversas vezes, no caráter epistolar na obra de Egéria.
62
A comentadora Angelika Ritter-Grepl, diz que, “partiendo desde o norte da Espanha e dirigindo-se até
o Oriente, desde o ano 381aol 384 percorreu cerca de 9.000 kilômetros por terra, atravessando o
continente até Constantinopla, para chegar depois aos lugares da Biblia. todos los lugares indicados en
su guía, la Biblia. Durante um tempo se fixou em em Jerusalén, logo prosseguiu a peregrinação até o
Egito e subiu ao Monte Sinai. Por último, chegou ao lugar mais ao leste do seu itinerário, ou seja, ao
Harán, na Siria, pátria de Abraham” (2010, p. 35).

42
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como observa Alexandra de Brito Mariano, “uma viagem de tal envergadura exigiria,
certamente, a mobilização de meios consideráveis, mesmo segundo os padrões da nossa
época”63, a não ser que fosse de família aristocrata, e, segundo, pelo apóio que recebia das
autoridades imperiais, que lhe colocavam a sua disposição casa e até soldados romanos para
auxiliar-lhe nas viagens, conforme consta em seus retatos de viagens:

Há, pois, de Clisma - isto é, do Mar Vermelho - até à cidade de Arábia,


quatro pousadas através do deserto: tanto é de fato pelo deserto, que há,
em cada acampamento, um posto com soldados e oficiais que nos
acampanharam, sempre, de um forte a outro64.

E mais adiante diz:

A partir daí, dispensamos os soldados que nos havia auxiliado em nome


dos príncipes romanos, enquanto andáramos por regiões perigosas; agora,
porém, visto que a estrada que atravessa a cidade de Arábia, isto é, a que
conduz da Tebaida a Pelúsio, é pública através do Egito, não mais se fazia
necessário molestá-los65.

Portanto, como conclui Rosa Maria Cid López:

Egéria devia pertenecer aos grupos aristocráticos e possuir uma fortuna


considerável, absolutamente imprescindível para empreender uma viaje
com estas características [...]. De igual maneira, se alude ao fato de ser
recebida pelas autoridades eclesiásticas, e não só por monges, ou o fato de
receber a proteção de destacamentos militares [...].Tudo isso não sería
mais que a manifestação evidente de sua elevada posição social66.

Tal era o pretígio de Egéria junto à Igreja e ao Império, que José Eduardo López
Pereira chega a se perguntar:

Monja ou não, contando com tantos meio a sua disposição, não seria da
família de Teodosio, que naqueles anos era Imperador, galego de origem,
segundo nos recorda o historiador quase contemporâneo, Hidacio, bispo de
Chaves? Alguns investigadores, como A. Lambert, a supõe irmã de Gala

63
MARIANO, 2007, p. 121.
64
EGÉRIA. Peregrinação de Egéria. VII, 2, 1977, p. 53.
65
Ibid., IX, 3, 1977, p. 56.
66
CID LÓPEZ, 2010, p. 24. Mas a própria comentadora ressalta que outros autores, e cita o caso de
Hagith Sivant, “têm questionado a pertência de Egéria a tais círculos da elite social, baseando-se no
latim que utilizava, muito popular, e não próprio das mulheres da aristocracia do momento. Por sua
vez, se enfatiza que não conhecia o grego, o que seria estranho para uma dama bem educada da
época” (SIVANT apud CID LÓPEZ, 2010, p. 24-25).

43
Revista Sísifo – vol. 1, nº 6. Novembro. Ano 2017 - www.revistasisifo.com

Plácida, a mulher de Teodosio. Outro, E. Bouvy, partindo da forma Eucheria


do nome, a considera relacionada com Eucherius, um tio de Teodosio67.

Outro ponto controverso na história de Egéria é quanto ao local em que nasceu


e viveu - sua pátria -, de forma que
foi tida como francesa, italiana ou hispânica, ainda hoje os mais e mais fortes
argumentos levam a pensar que era originária da Gallaecia, segundo o
espaço que compreendia no século IV esta província romana, antes da
reforma de Deoclesiano, que chegava desde o Sul até o rio Duoro e se
alargava pelo Leste, seguindo a linha deste rio, até terminar no mar
Cantábrico, limitando com o País Basco [...] por isso quando dizemos que
Egéria era uma escritora galega, há que se entender dentro da divisão
territorial da época em que viveu, já que bem poderia ser da zona de Astorga
ou de Braga, onde estavam os dois centros culturais mais importantes do
momento, o que poderia explicar que no século IV, no ‗finis terrae‘, possa
viver uma mulher capaz de escrever em latim68.

Relacionada à questão do período em que viveu, está a dificuldade de datação


da viagem/escrita da obra de Égéria, tendo sido levantadas várias hipóteses, algumas das
quais apresentaremos aqui, em ordem decrescentes:
A data mais tardia, entre 533-430, fora defendida por Karl Meister, que
influenciará, mas tarde, Bruyne (1909)69. Já ―Aimé Lambert (1938) propõe 414-416 e
Dekkers 415-418 (1948), na tentativa de conciliar estes anos com a celebração do
quadragésimo dia depois da Páscoa em Belém‖70. Dom Férotin e Dom Leclerq, defendem
que a ―a viagem se faria relizado por volta de 395-396, e não depois disso uma vez que
Etéria não menciona orignismo, heresia derivada do priscilianismo e logo depois
difindida na palestina‖71. ―A. Baumstark foi o primeiro a avançar as balizas

67
LÓPEZ PEREIRA, 2010, p. 47. Cf. também CID LÓPEZ, 2010, p. 21, que diz: “Por razões das conotações
um tanto patrióticas, Egéria tem sido apresentada como uma mulher galega, de elevada posição
social, ao que se buscou, inclusive, parentesco com a família de Teodosio”. O franciscano Agustín Arce,
por exemplo, destaca o parentesco, mas enfatiza os laços de amizade ao dizer, inclusive, que
“podemos, pois, supor que Teodósio e Egéria partiram juntos do NO da Espanha: Teodósio para
defender o Império contra os bárbaros invasores; Egeria para venerar os santuários da Palestina e
visitar os monastérios de Siria e Egipto” (ARCE, Agustín. Introdución. In: EGERIA, 2010, p. 9).
68
LÓPEZ PEREIRA, 2010, p. 44. Cf. também, NOVAK, Maria da Glória. Intodução.
In: EGÉRIA, 1977, p. 11 e MARIANO, Alexandra B. Intodução. In: EGÉRIA, 1998,
p. 28-31.
69
Cf. MIEIRO, 2013, p. 45.
70
Ibid.
71
NOVAK, Maria da Glória. Intodução. In: EGÉRIA, 1977, p. 12.
44
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cronológicas de 383-385, mas é com Paul Devos72 que a data do último ano da viagem é
fixada em 384‖73.
Finalmente, mais um porto controverso acerca de Egéria é quanto a sua
capacidade intelectual, ao ponto de se colocar em questão o fato do Itinerarium Egeriae
(Viagem de Egeria) ter sido escrito por uma mulher ―capaz de escrever em latim‖74.
Mais do que isso, e já respondendo a questão, não só escreveu em latim, mas, segundo
José Eduardo López pereira, foi a primeira escritora em língua latina da Idade Média:

Falar de Egéria escritora latina, quase nos permite falar da primeira mulher
que escreve em latim, cuja obra chegou até nós, porque muito pouco há de
Proba no Cento virgilianus que ela escreveu, e muito pouco também de
75
Perpetua no Passio Perpetuae .

Muito embora alguns comentadores acusem de se tratar de um ―latim vulgar‖,


ponto este que geraria longos e intermináves debates entre os linguistas e/ou latinistas
ao longo dos tempos, e que, por ser um assunto muito técnico, não entraremos no mérito
da questão aqui, mas tão somente indicar alguns trabalhos que tratam da questão76.
Afora as controvérsias até aqui elencadas, o certo é que “o texto é o segundo
testemunho escrito de uma peregrinação ao Oriente (viagem empreendida cerca de 50 anos

72
Cf. DEVOS, Paulo. La data du voyage d‘Égeria. Analecta Bollondiana, v. 85, p. 165-
194, 1967.
73
MARIANO, Alexandra B. Intodução. In: EGÉRIA, 1998, p. 16-17.
74
Ibid., p. 44.
75
Ibid., p. 45
76
Dentre os estudiosos mais importantes, indicamos aqui apenas três, para falar apenas de linguistas
brasileiros: BECHARA, Avanildo. Estudos sobre a sintaxe nominal na Peregrinatio Aetheriae. Trabalho
apresentado para o concurso de provimento da Cátedra de Filologia Românica da Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras da Universidade do Estado da Guanabara, Rio de Janeiro, 1963, 45 p. ; Idem.
A carta de Valério sobre Etéria. Revista Romanitas. Rio de Janeiro, v. 6-7, 1965 e FONDA, Enio Aloisio.
A síntese orgânica do “Itinerarium Aetheriae”. Assis: Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de
Assis, 1966, 190 p., que foi sua tese de doutoramento em Língua e Literatura Latina, na Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, em 1961. E mais recentemente, a tese de livre-docência, despois
publicada: VALLE, Rosalvo do. Considerações sobre a Peregrinatio Aetheriae. Rio de Janeiro: Botelho
Editora, 2008, especialmente o capítulo II - O latim da Peregrinatio Aetheriae (p. 47-70) e a
dissertação defendida no Mestrado em Liguistica da UNICAMP: MARTINS, Maria Cristina da Silva. Os
locativos na Peregrinatio Eatheriae. Campinas: UNICAMP, 1996. 139 p. Igualmente há estudos acerca
de Égeria que a analisam à luz de uma visão “feminista”, buscando encontrar em seus eecritos traços
de uma “escrita feminina”, mas que não entraremos no mérito da questão aqui. Para um maior
aprufundamento desta questão indicamos os artigos: LIMA, Filomena. Viajar no feminino: as imagns
das palavras – peregrinação de Egéria à Terra Santa – no século IV. In: LOPES, Maria José et al. (orgs.).
Narrativas do poder feminino. Braga: Universidade Católica Portuguesa, 2012, p. 239-25 e PACHECO,
Maria Cândida Monteiro. Itinerarium ad loca sancta, de Egéria: uma escrita feminina? In: FERREIRA,
Maria Luísa Ribeiro (org.). Também há mulheres filósofas. Lisboa: Editorial Caminho, 2001, p. 71-82.

45
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depois da do peregrino de Bordéus, que já referimos77) e o primeiro que se conhece redigido


por uma mulher”78. A primeira parte, com 23 capítulos (I-XXIII), descreve os lugares sagrados e
pontos geográficos em suas viagens, e está dividido em quatros etapas da viagem:

1ª) Peregrinação ao Monte Sinai e a volta a Jerusalém (cap. I-IX);

2ª) Subida ao Monte Nebo (X-XII);

3ª) Saída de Jerusalém e visita ao túmulo de Jó, em Cárneas ou Denaba, cidade de


Ausítide (XIII-XVI);

4ª) Depois de três anos em Jerusalém (cf. XVI,7 e XVII,1), peregrinação à


Mesopotamia Syriae (XVI-XXI) e o regresso a Constantinopla, de onde partira
(XXI-XXIII)79.

Na segunda parte, 26 capítulos (XXIV-LIX), Egéria detalha as práticas litúrgicas e


eclasiásticas da Igreja em Jerusalém, onde

não faltam informações sobre os santuários, numerosos, e alguns


suntuosíssimos, construídos principalmente nos ‘lugares sagrados’ e onde
se realizaram as cerimônias acima referidas: a Basílica do Santo Sepulcro
(com a Anastasis, o Calvário e o Martiyrium ou Ecclesia Maior), o santuário
do Cenáculo de Sião, os três santuários do Monte das Oliveiras (Imbomon,
Eleona e Getsemani), a basílica de Belém e duas igrejas na Betânia, uma das
quais é a chamada Lazarium80.

E a julgar pela linguagem e fundamentação bíblica encontrada na obra, tudo leva a


crer que sejam verdadeiras as hipóteses de que Egéria fosse realmente uma mulher culta, o
que leva Rosalvo do Valle a concluir: “O certo é que dessa peregrinação de cerca de três anos
essa mulher satis curiosa nos legou uma preciosa fonte de informações linguísticas, históricas
e litúrgicas”81. Ou seja, ao narrar suas viagens, Egéria acabou por fazer História, pois, como

77
O texto a que se refere aqui é o Itinerarium Burdigalense, escrito cerca de 50 anos antes de Egéria.
78
MARIANO, 2007, p. 122. A mesma comentadora acrescenta que antes de Egéria, “conhecem-se, é
certo, outras damas que teriam empreendido peregrinações ao Oriente. Destacamos, por exemplo,
Melânia-a-Velha viúva de um prefeito de Roma, em 373 (Jerónimo, Epist., 4 – PL, t. 22, col. 336), Paula
de uma nobre família romana e Eustóquio, em 385 (Idem, Epist., 108 – PL, t. 22, col. 878-906) e
Poemenia, parente de Teodósio,em 390 (Paládio, Hist. Laus., 35 – PL, t. 74) (p. 122, nota 4), mas
nenhuma delas escreveu suas experiências de viegens, já são conhecidas pelos relatod de outros.
79
Cf. VALLE, 2008, p. 26-27.
80
Ibid., p. 28-29.
81
Ibid., p. 38.
46
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ressalta Gilberto Figueiredo Martins, suas recorrentes referências aos monastérios e igrejas,
seus depoimentos sobre as práticas religiosas ocorridas nestes locais, etc.,

além de auxiliarem futuros peregrinos em suas viagens [...] acabam por


fornecer informações essenciais acerca da situação na qual, à época,
encontravam-se os lugares e monumentos bíblicos. Por isso, os
comentadores têm destacado a importância central do relato da
Peregrinação de Etéria para o conhecimento histórico dos percursos e
percalços da expansão da fé cristã na Idade Média82.

Além disso, os escritos de Egéria revelam que ela tinha um grande


conhecimento das Sagradas Escrituras, cuja versão, pelas citações que fez em seu
diário, para a comentadora Maria da Glória Novak, ―assemelhava-se mais a uma das
versões latinas partidas da Septuagenta, portanto à Vetus Latina, do que à Vulgara, que
São Jerônimo traduziu pelos fins do século IV. Por outro lado, estudos minunciosos
levam à afirmação de que a peregrina conhecia também uma tradução latina do
Onomastikon de Eusébio‖83.

Referências

CID LÓPEZ, Rosa Maria. Egeria, peregrina y aventurera: relato de um viaje a Tierra Santa en el
siglo IV. ARENAL, v. 17, n. 1, p. 5-31, 2010.

COELHO, Maria Filomena. Viagem e peregrinação na antiguidade tardia: narrativa do


conhecido. Projeto História – Revista da Pós-graduação em História da PUCSP. São Paulo, v.
42, p. 331-349, 2011

DEVOS, Paulo. La data du voyage d’Égeria. Analecta Bollondiana, v. 85, p. 165-194, 1967.

EGÉRIA. Peregrinação de Egéria: liturgia e catequese em Jerusalém no século IV. Trad. de


Maria da Glória Novak. Comentário de Alberto Beckhãuser. Petrópolis: Vozes, 1977. 127 p.

______. Viagem do Ocidente à terra Santa, no séc. IV (Itinerarium ad loca sancta). Estudo e
tradução de Alexandra M. L. B. Mariano e Aires A. Nascimento. Lisboa: Edições Colibri, 1998.
283 p.

______. Intinerario de la virgem Egeria (381-384); Constatinopla – Asia Menor – Palestina –


Sinai – Egito – Arabia. Edicion critica del texto latino, variantes, tradución anotada,

82
MARTINS, 2011a, p. 12.
83
NOVAK, Maria da Glória. Intodução. In: EGÉRIA, 1977, p. 14.
47
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documentos auxiliares, planos y notas por Agustín Arce. Madrid: La Editorial Católica/BAC,
2010, p. 360 p.

FREIRE, José Carlos. A proximidade de um texto – três notas sobre a origem de Egéria:
accedere, collun, pullus. In: Actas do Colóquio sobre o Ensino de Latim. Lisboa: Faculdade de
Letras, 1987, p. 173-282

LIMA, Filomena. Viajar no feminino: as imagns das palavras – peregrinação de Egéria à Terra
Santa – no século IV. In: LOPES, Maria José et al. (orgs.). Narrativas do poder feminino. Braga:
Universidade Católica Portuguesa, 2012, p. 239-257.

LÓPEZ PEREIRA, José Eduardo. Egeris, primera escritora y peregrina a Tierra Santa. In:
GONZÁLEZ PAZ, Carlos Andrés (ed.). Mujeres y peregrinación em la Galicia medieval. Santiago
de Compostela: Instituto de Estudios Gallegos, 2010, p. 39-54 (livro da FLUP)

MARIANO, Alexandra de Brito. In eo quod amatur aut non laboratur aut et labor amatur:
esforço e satisfação no Itinerarium de Egéria. In: NOGUEIRA, Adriana Freire. Otium et
regotium: as antíteses na antiguidade. Actas do IV Colóquio da APEC. Lisboa: Nova Veja, 2007,
p. 121-131.

MARTINS, Gilberto Figueiredo. A narrativa da peregrinação – experiência e forma (uma leitura


do Itinerarium Aetheriae). Kalíope. São Paulo, ano 7, n. 14, p. 07-15, 2011.

MIEIRO, David Manuel Martins. Ecclesia in strata: a peregrinação de Egéria como itinerário
espiritual. Lisboa: Universidade Católica Portuguesa, 2013, 125 f. Dissertação (Mestrado em
Teologia).

OLIVEIRA, Rosa Manuela Barbosa. O itinerário de Egéria (séc, IV): olhares sobre um olhar.
Lisboa: Universidade Aberta, 2014, 98 f. Dissertação (Mestrado em Estudos Portugueses
Multidisciplinares).

PASCUAL, Carlos. Egeria, la Dama Peregrina. Arbor, v. CLXXX, 711-712, p. 451-464, 2005.

RITTER-GREPL, Angelika. La peregrinación de Egeria. Ordo Equestris Sancti Sepulcri


Hierosolymitani. Ciudad del Vaticano, p. 35-37, 2010.

VALLE, Rosalvo do. Considerações sobre a Peregrinatio Aetheriae. Rio de Janeiro: Botelho
Editora, 2008. 178 p. CD-ROM.

48
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Uma possível ontologia da dor na metafísica de Anne Conway


Pedro Rhavel Teixeira84

Resumo: Em seu único livro Os Princípios da Mais Antiga a Moderna Filosofia, Anne
Conway apresenta uma ontologia da dor. No capítulo sétimo de seu trabalho, a filósofa
inglesa escreve que “toda dor e tormento estimula a vida ou o espírito que existe em
tudo o que sofre (...) isso tem de acontecer necessariamente porque através da dor e do
sofrimento, toda e qualquer rudeza ou densidade contraída pelo espírito ou pelo corpo
se atenua.” PFMAM C. 7 S. 185.. O objetivo final dos seres é atingir à perfeição junto a
Deus. O propósito deste artigo é mostrar como a metafísica de Anne Conway depende
da experiência da dor para assegurar a unidade entre corpo e alma contrariando o
tradicional dualismo psicofísico cartesiano. A dor também assegura a tese da harmonia
pré-estabelecida que Conway compõe e é retomada por Leibniz com algumas
diferenças. Com efeito, será necessário esclarecer algumas teses presentes na obra da
autora, tal como o finalismo, o vitalismo monista, a ideia de Deus como emanação e por
fim a harmonia pré-estabelecida. Quer-se mostrar que Conway de fato estabelece uma
ontologia da dor, e não uma ontologia a partir da dor como defende Maria Luísa Ribeiro
(Uma Ontologia a Partir da Dor, Lisboa: 2010), e que a dor é a chave central de
compreensão para a filosofia de Anne Conway.

Palavras-chave: Filosofia Moderna, Ontologia, Metafísica.

Abstract: In her only book The Principles of the Most Ancient and Modern Philosophy,
Anne Conway presents us an ontology of pain. In the seventh chapter of her work she
writes “all pain and torment stimulates the life of spirit existing in everything which
suffers. (...) this must necessarily happen because through pain and suffering whatever
grossness or crassness contracted by the spirit or body is diminished.‖ PMAMP C. 7.
S.1. The final goal of beings is to achieve perfection among god. The purpose of this
article is to show how Anne Conway's metaphysics depends on the experience of pain
to assure the conception of unity between body and spirit contradicting the traditional
Cartesian dualism, securing then the consistence of pre-established harmony which
Leibniz will use in his works with another approach. In fact, it is necessary to clarify
some of these questions present in the author's work, such as finalism, monistic
vitalism, the idea of God as emanation and, finally, pre-established harmony. It is
wanted to show that Conway, in fact does, an ontology of pain, and not an ontology
from pain as defended by Maria Luisa Ribeiro (An Ontology from Pain, Lisbon: 2010),
which is a major key of understanding for Anne Conway‘s philosophy.

Keywords: Modern Philosophy, ontology, metaphysics.

No que tange a presença de mulheres na história da filosofia, há um vasto


silêncio. Vozes não ouvidas. Quando estudadas, as mulheres na filosofia estão presentes

84
Bacharel em Filosofia pela UFRJ, Mestre em Filosofia pelo PPGF-UFRJ e Doutorando em Filosofia
pela PPGF-IFCS. Bolsista CAPES.
85
Não há consenso sobre a forma de citar a obra de Anne Conway. Optou-se pela escolha do
capítulo e seção em detrimento de páginas da tradução. A sigla se refere ao título traduzido para o
português Os Princípios da Filosofia Mais Antiga e Moderna.

49
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e elencadas nos estudos de gênero, estudos feministas ou estudos da mulher. Os campos


tradicionais de pensamento filosófico ocidental, a saber, ontologia, ética, política,
estética e epistemologia carregam e perpetuam a supremacia masculina do saber. Um
grande número de autores homens é ainda estudado. Não que devam ser abandonados
ou esquecidos. A pergunta então pela presença feminina ganha uma dupla conotação:
ora epistemológica, ora também política. Por tais motivos se justifica o estudo de uma,
senão a primeira, mulher a escrever um tratado filosófico completo (HUTTON, 2009.).
Anne Conway ou Anne Finsch foi uma filósofa inglesa de inspiração neoplatônica. Sua
obra Os Princípios da Filosofia Mais Antiga e Moderna foi escrita durante o século
XVII. Propõe-se como uma refutação do cartesianismo, hobbesianismo, espinosismo e
outras doutrinas filosóficas que, de acordo com a autora, poderiam ser lidas como
heréticas ou contrárias a crença na bondade divina.
O tratado de Anne Conway é um dos muitos trabalhos que surgem na época
sobre a existência de Deus, assegurando sua bondade e perfeição. A obra se inicia com a
seguinte proposta: ―Deus e seus atributos divinos e como a trindade poderia ser
concebida em Deus de modo a não escandalizar judeus, muçulmanos ou quaisquer
outros povos.‖ (PFMAM. C.1, S.1.). Sua proposta metafísica, distinta da de Leibniz que
propunha pôr um fim às disputas entre católicos e protestantes, é abrangente a uma
concepção de paz entre as três religiões abraâmicas.
Antes de iniciar a investigação acerca do conteúdo do tratado de Conway, é
prudente apresentar alguns fatos históricos acerca do lançamento e da recepção do texto
da autora. Em 1690 foi lançado na Holanda o segundo volume de três Opuscula
philosophica. Conway era amiga de Franciscus van Helmont, médico que apresentou o
texto a Leibniz e Henry More — mentor intelectual da filósofa que, como mulher, não
frequentara a universidade. Os Princípios da Filosofia Mais Antiga e Moderna é
publicado sem autor, ou melhor, sem autora. Dois anos depois, em 1692 é lançada uma
tradução inglesa com um indício de autoria: ―Foi escrito não muitos anos atrás, por uma
certa condessa inglesa, uma mulher erudita para além de seu sexo.‖ (HUTTON, p. 1,
2004.). A tradução da obra de Anne Conway foi recebida pelo público como escrita por
uma anônima, salvo a quem conhecia previamente a autora e a intenção de escrever um
tratado filosófico. Este anonimato, contudo, não se deu totalmente uma vez que Anne
Conway era reconhecida entre seus pares da filosofia apesar de seu gênero, e os indícios
relacionados ao local de origem e a posição social deixavam clara a autoria do trabalho.

50
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O texto original foi lançado em latim. Logo em seguida, teve outra edição numa
tradução inglesa. O texto que se tem acesso atualmente consiste em uma tradução para
língua inglesa feita a partir da retradução para o latim. Tal como o texto de filósofos
antigos, a obra de Conway que se tem acesso é uma cópia da cópia. E uma tradução da
tradução. Imagina-se, portanto, que o conteúdo tenha sofrido alterações. Neste aspecto,
é importante ressaltar que seu texto também é incompleto, não foi revisado e a cópia
mais antiga é feita a partir de um manuscrito encontrado no espólio da autora
(HUTTON, 2004.).
De acordo com Israel, é na modernidade iluminista radical que se criam os
saraus de filosofia. Encontros onde se discutiam temas do conhecimento humano fora
da academia (2002.). Graças a tais eventos é que muitas mulheres podiam iniciar sua
educação no que diz respeito a gama de saberes que compunha a filosofia. Anne
Conway se difere das poucas outras mulheres de sua época por ter se educado ainda na
infância. Através da biblioteca de sua família e posteriormente da biblioteca de seu
marido, a viscondessa aprendeu hebraico. Estudou as escrituras judaicas e sobretudo a
cabala. Ressalta-se às constantes citações a Kabbalah Denutada, uma obra de
hermetismo escrita e publicada em 1677-78. Nesta obra há uma tentativa de conciliar
alguns elementos da mística judaica com o cristianismo como, por exemplo, as três
sefirot superiores representarem a trindade. É então a partir de uma cabala cristianizada
que Conway tem acesso aos conhecimentos de mística judaica que influenciam a sua
obra.
Conforme dito, apesar do tratado de Lady Conway ter sido lançado
anonimamente, sua autoria era reconhecida por parte dos filósofos da época. Leibniz
teve acesso a obra de Anne Conway através de van Helmont. Vê-se que o filósofo
deixou ao menos dois registros sobre o conhecimento do documento prestando-lhe
homenagens póstumas.
Os meus [sentimentos] em filosofia aproximam-se mais dos
da falecida Condessa Conway, e defendem uma posição
mediadora entre Platão e Demócrito, porque acredito que
tudo ocorre mecanicamente como Demócrito e Descartes
afirmam, contra a opinião de Henry More e de seus
seguidores, e no entanto [também defendo] que tudo ocorre
de acordo vitalmente e segundo causas finais, estando tudo
cheio de vida e de percepção, contrariamente à opinião dos
atomistas. 86

86
C. I. Gerhardt (ed.). Die Philosophischen Schriften von G. W. Leibniz (7 vols., Berlin, 1875-90;
rpt.Hildesheim, Olms, 1962), vol. 3, p. 217.

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Há também um agradecimento em Novos Ensaios Sobre o Entendimento Humano:


Vejo até onde os céticos tinham razão investindo contra os
sentidos; vejo como os animais são realmente autômatos
segundo Descartes, e como, no entanto, têm almas e
sentimento, segundo a opinião do gênero humano; vejo
como se deve explicar racionalmente os que enxergaram
vida e perfeição em todas as coisas, como Cardan,
Campanella, e mais do que eles falecida Senhora Condessa
de Conway, platônica, e o nosso amigo, o falecido
Franciscus van Helmont.87
O reconhecimento de Leibniz da influência de Conway em sua filosofia é
evidência da pregnância de sua obra. Contudo, essa relação merece um estudo à parte.
As citações apresentadas demonstram elementos da metafísica conwayniana e por isso
comecemos por examinar o seu elemento primário, isto é, Deus e seus atributos divinos.
Conforme escrito no Capítulo primeiro, Seção 1: ―Deus é espírito, luz e vida.
infinitamente sábio, bom, justo, forte, omnisciente, omnipresente, omnipotente, criador
e autor de todas as coisas visíveis e invisíveis.‖. A ideia de Deus no tratado da filósofa
inglesa, portanto, é um estatuto ontológico acerca do criador e seus atributos únicos e
indefinidos. A noção de infinito, tal como aparece é prova da existência de Deus a partir
de Descartes. Em seus Princípios da Filosofia, Descartes mostra como esta ideia é
inata, ou seja, advém não da experiência, mas da reflexão e justamente por não ter
nenhuma representação possível no mundo fenomênico só pode ser inata, ao contrário
da noção de indefinido. (Princípio 26).
Não há tempo e tão pouco espaço em Deus (PFMAM, C. 1, S.1.). Dele se difere
as criaturas, sendo de essência distinta — embora não estejam Dele separadas. O
conceito de Deus que aqui começa a ser desenhado é a de Deus como emanação, isto é,
uma espécie de força primária do qual os outros entes, ou mônadas, emanam e dele são
dependentes. É como a gravidade que controla os objetos no universo, que os atrai e os
mantém em uma determinada suspensão. Embora distinta das criaturas, há uma conexão
primordial e necessária. Sendo assim, o segundo estatuto ontológico da filosofia de
Anne Conway é o das criaturas, sendo o primeiro o do Criador. A essência ou
substância das criaturas derivam de Deus, porque ele, com sua bondade e sabedoria
infinitas, deseja que tais coisas existam dessa maneira. A sabedoria e a bondade são,
portanto, modos ou propriedades distintas de uma mesma substância, a saber, o Criador
(PFMAM, C. 1. S. 7.). É pela ideia de modos e propriedades que Conway propõe
solucionar o problema da trindade, mostrando que não se trata de fato de três pessoas,

87
LEIBNIZ. Novos Ensaios Sobre o Entendimento Humano. Tradução de Luiz João Baraúna.
Nova Cultural: São Paulo, 1996.

52
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mas de maneiras pela qual o Criador se manifesta, ou melhor, são seus próprios modos
como bondade e sabedoria.
O terceiro estatuto ontológico ou elemento elaborado por Anne Conway é a sua
concepção de Messias (PFMAM, C.1, Nota 3.). Para a autora, o Messias é o logos, do
qual as coisas passaram a existir pela palavra. Aqui, a filósofa alude ao mito judaico de
Adam que nomeou os animais e as coisas do mundo. A partir da palavra, que para ela é
o mesmo que uma ideia só que posta, externada, Adam elabora o mundo. O Messias,
contudo, não se trata de uma pessoa, mas do próprio logos. O que os cristãos entendem
por Jesus, os hebreus entendem por Adam. Esclarece ela na Nota 7 que Deus é a
trindade na medida em que ele é o próprio infinito (primeiro elemento ontológico), o
logos, no sentido que é palavra nomeadora, e o terceiro que são as criaturas, ou melhor,
está presente nelas ainda que distinto. A natureza de Deus é essência distinta das suas
criaturas, o Messias possui uma natureza intermediária, já as criaturas possuem uma
natureza material que se transforma.
A metafísica de Conway é perpassa a noção de mutabilidade. As criaturas estão
sempre disponíveis para a perfeição, isto é, em vias de transformação por possuírem
uma natureza mutável em parte. Deus é imutável e o Messias, o logos, conjuga ambos:
mutável e imutável. Mas como reparar em uma contradição acerca do conceito de
Messias? Conway irá esboçar uma idealização não dualista, a de que corpo e alma não
são substâncias distintas, e sim diferenças gradativas. Sendo assim, uma extensão da
substância é mutável, o corpo, e outra parte imutável, a saber, a alma ou mônada. Sendo
assim, o Messias possui o elemento imutável do Criador, o que significa a sua própria
natureza enquanto logos, na medida em que é palavra proferida ou ideia. A mônada
seria então a parte divina, ou melhor, a unidade da substância que emana diretamente de
Deus. Já a parte mutável dispõe de uma natureza mais rude, a saber o corpo.
A diferença entre em corpo e alma não seria então uma distinção, mas sim uma
diferença de graus ou de modos. A forma como a substância se exprime. Deste modo, a
metafísica de Conway explica a diferença entre os entes existentes. Estão todos numa
diferença de grau. A ideia apresentada possui uma conexão direta com outra concepção
da filósofa, a saber, o finalismo. Todo corpo é mutável. De que modo essa
transformação ocorre? Ora, se considerarmos como a autora que a natureza dos corpos é
mais rude, enquanto a do espírito mais tênue, o corpo necessariamente se transforma a
partir do momento que perde a sua rudeza. Na metafísica de Anne Conway isto ocorre
na e através da dor rumo à perfeição (PFMAM C. 7 S. 1). Neste ponto a dor, o

53
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finalismo, o anticartesianismo expresso numa recusa do dualismo estão imbricados


numa mesma experiência, especificamente em uma ontologia da própria dor.
O finalismo, de inspiração aristotélica, é o conceito de que seres possuem um
telos, esta finalidade, na obra da viscondessa diz respeito a perfeição. O fim dos seres é
a perfeição junto a Deus. Sendo Deus o criador de todas as coisas, das quais as coisas
emanam e o tempo todo estão sob sua influência, o retorno à sua perfeição aparece
como uma causa final. (PFMAM C. 3 S. 6.). O conceito de causa final foi recusado por
outros pensadores, como Descartes, porque aparentemente poderia inibir a ideia de um
livre arbítrio uma vez que obrigaria um fim determinado das coisas. Conway, tal como
Leibniz, recusa a essa proposição (Discurso da Metafísica, XIX.). Para o filósofo, tal
como para Lady Conway, ao banirem as causas finais em uma perspectiva mecanicista
da realidade os filósofos assim propuseram caminhos ou sistemas perigosos na medida
em que recusam a existência necessária de um Deus que continua a agir sobre as
criaturas, formulação que Conway reafirma em sua ideia de Deus como emanação,
segundo porque isto põe em xeque o sentido de um aprimoramento moral e ético que
ocorre a partir da visão de aperfeiçoamento. Em suma, o bem deixa de ser a vontade
pela qual Deus age e determina as coisas. Como filósofa cristã, Conway está
preocupada em manter a noção de Deus como infinitamente bom e justo, não
permitindo a presença de um ateísmo em sua filosofia.
O finalismo, nesse caso, portanto, mais que uma hipótese meramente filosófica é
um fundamento teológico. Sua manutenção se deve a uma recusa do ateísmo como
possibilidade. O elemento religioso não deve ser motivo para o abandono da filosofia de
Conway. A crença em um Deus transcendente está posta e justificada em toda a História
da Filosofia. Tendo sido esboçado brevemente o finalismo, e após demonstrar a sua
íntima relação com a experiência do aperfeiçoamento e do corpo, podemos apresentar a
noção própria de dor colocada por Anne Conway. ―Toda dor e tormento estimula a vida
ou o espírito que existe em tudo o que sofre (...) isso tem de acontecer necessariamente
porque através da dor e do sofrimento, toda e qualquer rudeza ou densidade contraída
pelo espírito ou pelo corpo se atenua.‖ (PFMAM C. 7 S. 1.). Ressaltaremos como neste
trecho Conway não elabora meramente uma ontologia a partir da dor, mas uma
ontologia própria da dor que inclusive justifica a experiência dolorosa.
A dor é o mecanismo pelo qual o ser se livra de sua rudeza e se torna mais
perfeito na medida em que se torna mais espiritual. A vida, aqui entendida como uma
força interior fonte do movimento, é movida através da dor. A mudança de grau, ou

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seja, a perfeição é estimulada através dessa experiência inexorável. A filosofia de


Conway responde ao dilema colocado a Descartes por Elisabeth da Boêmia. A filósofa
germânica pergunta ao escritor de Discurso do Método sobre a natureza da dor. Se a dor
é meramente física porque ela afeta tanto a alma? Descartes nunca respondeu a pergunta
(CONWAY, p. XVI e XVII, 1996.). Sua doutrina dualista não permite elaborar uma
razão suficiente para apreender uma resposta razoável. Na verdade, o dualismo
psicofísico impõe outra pergunta: como um Deus puramente espiritual ativo pode ter
querido criar um mundo meramente passivo e físico? A resposta para a indagação se dá
através da diferença gradativa entre Criador e criatura. Apesar de infinitamente
separados, a noção de perfeição é perseguida pelas criaturas. O aprimoramento ocorre
na e pela dor, sua característica essencial é diminuir a rudeza e a densidade dos entes.
Nesse contexto surge a indagação sobre a natureza de Deus, e a resposta de Conway
ocorre logo no capítulo 2 seção 5, onde a filósofa afirma que a característica essencial
de Deus é ser o criador.
A harmonia pré-estabelecida na obra de Conway aparece justamente a
partir da natureza mutável dos corpos, e da característica essencial de Deus como
substância espiritual. É o conceito elaborado por ela que salvaguarda a comunicação
entre os seres e a existência de Deus. Deus aqui aparece como o ser necessário sem o
qual as criaturas não existem, sendo causa de si e causa de todas as outras existências
que seriam contingentes. Contudo, para manter a crença de que Deus age no mundo é
preciso estabelecer que toda comunicação, todo o afeto, e todo o encontro entre seres se
dá unicamente por intermédio dele. Não há assim causa e efeito entre corpos e sim o
agir de Deus através de sua bondade infinita.
A dor, ao contrário de ser uma experiência negativa, seria fruto da bondade
infinita do criador que deseja que suas criaturas possam alcançar a perfeição e concede a
criação tal capacidade. Esta foi a forma que Conway encontrou para conciliar sua crença
religiosa com sua experiência pessoal com a dor crônica de que padecia. Lady Conway
sofria terríveis enxaquecas que a fizeram procurar procedimentos cirúrgicos
rudimentares. Como um Deus bondoso poderia condenar um ser a tal sofrimento? O
tratado de Anne Conway tenta responder essa indagação pessoal. É curioso que séculos
antes da medicina e da ciência pensarem a psicossomática, uma filósofa mulher na
modernidade já procurava compreender o fenômeno da dor para além de um simples
sintoma físico ou mesmo emocional que aflige a alma. Sua justificativa apesar de

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religiosa é capaz de atribuir algum sentido para além do mero mecanicismo do


sofrimento.
A metafísica de Anne Conway possui ainda, caráter político. Como dito, ela
inicia sua única obra com a seguinte questão no capítulo primeiro: Deus e seus atributos
divinos e como a trindade poderia ser concebida em Deus de modo a não escandalizar
judeus, muçulmanos ou quaisquer outros povos88. Apesar de não ter conseguido
sucesso em seu intento, há de se admirar uma tentativa conciliatória em três crenças,
que apesar de se fundamentarem no monoteísmo, mantém-se em constante tensão e
conflito. Conway advoga por uma paz entre os povos, enquanto Leibniz parecia querer
apenas reunir as nações cristãs.
O significado que se pode dar à obra de Conway é de um amor mundi e a
tentativa de amenizar os conflitos entre diferentes povos, fugindo da proposta de
estabelecer uma mera estrutura política ou um estado mais forte através de uma
reunificação da religião cristã como em Leibniz. A filosofia de Conway demonstra um
aspecto não muito estudado na modernidade: uma filosofia ginocêntrica. Sem apelar
para quaisquer ideias de um ente essencialmente feminino, mas sim de um ser que tem
em suas ideias clara influência do papel social que designa dentro de seu tempo. Este
ponto de vista feminino da modernidade ainda carece de estudos, carece mesmo da
própria fundamentação de se poder falar em uma filosofia designada por gênero, uma
vez que o discurso filosófico se propõe neutro e universal, Conway pode evidenciar a
falácia da neutralidade por sua perspectiva distinta. A experiência sensível tem
fundamental importância em sua obra, na verdade, foi uma espécie de 'primeiro motor'
de seu pensamento. Não se trata de uma perspectiva empirista de pensamento, mas da
tentativa de dar significado a uma experiência que pode ou não estar no âmbito
fenomênico. No caso de Conway, a resposta parece ser negativa, uma vez que ela
rejeitaria a concepção de interação entre os corpos, tal como Leibniz. O ser se
constituiria junto a noção de progresso a partir da dor rumo a perfeição do criador. Seu
pensamento por mais religioso que possa parecer, não carece de justificativa em sua
filosofia.

Bibliografia

88
CONWAY, Anne. Os Princípios da filosofia mais antiga e moderna. Centro de filosofia da
Universidade de Lisboa: Lisboa, 2010, cap. I, s. 1.

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Revista Sísifo – vol. 1, nº 6. Novembro. Ano 2017 - www.revistasisifo.com

CONWAY, Anne. Os Princípios da filosofia mais antiga e moderna. Centro de filosofia


da Universidade de Lisboa: Lisboa, 2010.
______. Principia Philosophiae Antiquissimæ & Recentissimæ de Deo, Christo &
Creatura, id est de Spiritu & Materia in Genere. Amsterdã: 1690.
_____. The Principles of the Most Ancient and Modern Philosophy. Cambridge
University Press: Cambridge, 1992.
COUDERT, A. P. Leibniz and The Kabbalah. Springer: Nova Iorque, 1995.
DESCARTES, René. DESCARTES, René. Œuvres de Descartes. Tomos VIII e IX.
Paris: L. Cerf, 1904.
FERREIRA, Maria Luisa Ribeiro. Anne Conway, uma ontologia a partir da dor in Os
Princípios da filosofia mais antiga e moderna. Centro de filosofia da Universidade de
Lisboa: Lisboa, 2010.
HUTTON, Sarah. Anne Conway: a woman philosopher. Cambridge University Press:
Cambridge, 2006.
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1650-1750. Oxford University Press: Londres, 2002.
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______. C. I. Gerhardt (ed.). Die Philosophischen Schriften von G. W. Leibniz (7 vols.,
Berlin, 1875-90; rpt.Hildesheim, Olms, 1962), vol. 3.

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Revista Sísifo – vol. 1, nº 6. Novembro. Ano 2017 - www.revistasisifo.com

Morte e Superação
Tiburi e a Filosofia Feminina.

André do Carmo Otoni – UFBA*

I. RESUMO
Este dossiê se propõe a apontar a necessidade de uma filosofia que inclua as mulheres.
Desde a antiguidade, as mulheres têm entrado na filosofia como meras coadjuvantes. A
restrição feminina passa por uma violência velada de homens que as determinam como
objeto. Neste sentido a mulher se diferentemente do homem a morte de uma mulher não
é heroica, e a partir dela se revela seu valor. A luz de alguns trabalhos de Márcia Tiburi,
apontamos como a mulher é retratada a partir de sua morte e a possibilidade de
superação deste cenário.

Palavras Chave: Feminino Morte Violência


Superação

II. INTRODUÇÃO

Dentro da história da humanidade e de seu pensamento, existe uma relação quase


excludente com relação à mulher e seu papel formativo. O falar feminino sempre foi um
tabu dentro da filosofia. De Aristótelesaosnossos dias, a mulher tem um papel inferior
ao do homem. E as grandes questões acerca da realidade são determinadas por um
debate exclusivamente masculino.
É nesse contexto que surge o modelo patriarcal como nós conhecemos. Sendo
assim a mulhernão tem espaço para falar de suas questões sobre a vida e até mesmo a
realidade que a cerca. Ela não pode expressar nada acerca de seu posicionamento
contrário a ou a favor do masculino. Falando especificamente do Brasil, Roberto da
Matta (1986) nos exemplifica que a cultura fez da mulher um objeto manipulado pelo
homem e, não somente isso, ela vem sendo tratada, única e exclusivamente como uma
espécie de prato exótico, erótico e prazeroso ao paladar sexual de ‗seu‘
homem.Portanto,justificam-se vários tipos de agressão, sejam elas morais ou físicas.
Embora o livro de Da Matta tenha sido escrito ainda nos anos 80, época em que
questões como essas aparecem de maneira mais frequente. Pouco avanço temem relação
a este sistema de desigualdade, como tantos outros. Evidentemente, algumas leis vêm
surgindo para tentar mudar essa situação. Assim, evidentemente a filosofia deve se
tornar pratica e postular por um meio igualitário.
No que consiste de trabalho frente a isso, o trabalho de Marcia Tiburi um viés que
constata a ‗morte anunciada‘ da mulher ainda no contexto atual.Sua filosofia é uma
busca por igualar a mulher intelectualmente ao homem e reconhece-la como agente,
considerando sua maneira de pensar em particular. A filosofia não deve ser encarada

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como obscura e puramente masculina, mas deve ser responsável por trazer as outras
pessoas uma forma alegre de tratar as coisas da realidade.

II. FALAR DO FEMININO A PARTIR DA MORTE

A questão do feminino dentro da filosofia é marcada uma estranha carga de


autoridade. Por essa autoridade, qualificamos a pressão masculina pelo que representa o
feminino. Tamanha carga negativa se deve ao fato da autoridade masculina ser exercida
duramente não somente contra a mulher, mas contra todas as formas que se opõe a seu
pensamento. A mulher, em especial, não pode ser reconhecida como autônomaao que
diz respeito ao homem, porque poderia significar que ela não precisa necessariamente
dele para ser o que de fato é. Assim, a dependência da mulher poderia permanecer
limitada exclusivamente à função sexual em relação homem.
Desde os primórdios, tem sido desta forma que as coisas acontecem, e mais uma
vez a mulher é vista como objeto. Para justificarmos aparentemente esse
conteúdoreportamos a imagens arbitrárias, como a própria imagem da história da
criação divina, retratada por obras de arte e pela própria Bíblia. De fato negar a
religiosidade de um povo é perigoso. Perigoso por trabalhar com questões delicadas da
tradição. Porém esse apelo à cultura garante que a mulher permaneça inferior ao homem
e dependa dele para quase tudo. A dívida da mulher é histórica. Se na história da criação
a mulher fora a responsável pelo mal ocorrido ao homem, esta deve pagar ficando
confinada a ele. E neste mesmo sentido se desenvolve a premissa de que o homem deve
suprir as necessidades da mulher, da casa e da família. Enquanto isso a mulher é
deixada de lado, a única função que cabe a ela é o cuidado do lar e dos filhos. Também,
não pode ser considerada como herói, mesmo que tenha dado sua vida em prol de algo
muito maior.
Apostando neste sentido, é que autores como João Guimarães Rosa, revelam uma
mulher que pode sim ser equiparada ao homem. Como no caso de Diadorim, guerreira
que luta bravamente no sertão, mas que somente é reconhecida quando de sua morte
(ROSA, 1994). Da literatura ao cinema, a figura da mulher é expressa como portadora
de algo destruidor, capaz de despertar a fúria animal do homem. Essa, chamada de
animalidade é motivo de orgulho para o homem que, como nos recorda Simone de
Beauvoir (BEAUVOIR, 1970, p.25), ser ‗macho‘ é denominar-se com orgulho,
enquanto se autodenominar ‗fêmea‘, corresponde a algo pejorativo, pois permanece
confinado a pulsão sexual.
Uma vez confinadas ao sexo, existe a perda de uma característica do afeto
feminino, a ‗delicadeza ou docilidade‘, pois esta pertence como característica a mulher.
Quanto ao homem, este deve ser bruto e responsável por suprir as necessidades da
família.
Apesar de seus grandes feitos, a mulher é marginalizada. O heroísmo de qualquer
ato é deixado de fora e se considera o sexo da pessoa que praticou tão nobre ato. No
caso do de Guimarães (TIBURI, 2013), em Grande Sertão Veredas, acontece com
Diadorim. Para quem conhece a obra sabe que essa personagem trabalha o tempo todo
em prol de um povo também marginalizado e, na batalha perde sua vida. No entanto, ao

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desenrolar da obra, a personagem ganha destaque, combate junto aos seus e desperta um
amor proibido (ROSA, 1994) em relação ao personagem Riobaldo. Este se sente
culpado por amar a outro homem, mas que consegue perdão de seu desejo ao descobrir
que se tratava de Diadorim. Conforme nos aponta Tiburi (1970), ela apenas consegue
prestigio por parte dos homens por ser considerada um deles. Como ela mesma contata:
A negação da homossexualidade é paralela à armadilha antifeminista:
a isca é o corpo de uma mulher que só pode aparecer como mulher
enquanto morta. Ou de um homem que, ao ser morto, aparece como
mulher. O corpo de uma mulher morta é, nesse caso, o desfecho de
uma lei a ser cumprida (TIBURI, 2013, p. 159).

A hipótese de que a homossexualidade traga para o mundo um sujeito mais ou


menos macho, faz com que ambos os sistemas de exclusão caminhem juntos. Neste
sentido, em uma relação entre homens, o lado mais fraco desta, será em quase todos os
momentos igualados ao ato delicado de uma mulher. A fragilidade feminina não
constata que o homem possa ser rígido, mas sustenta ambas as posições de que a mulher
e o homossexual devem morrer, pois fogem ao ato heroico. Isso também se evidencia
como uma forma de controle sobre os corpos.
Ainda é preciso destacar que a obra de Guimarães Rosa não é a unida a retratar
mulher por meio da observação de sua morte. Também em autores como Shakespeare
isso pode ser verificado. O fato de Riobaldo ter uma paixão velada por Diadorim pode
ser supostamente justificado pela causa de sua morte (TIBURI, 2013), dependendo do
fato ocorrido, a mulher apenas encontrou seu destino, já o homem entrou para a história.
Talvezesta seja essa a única forma devalorização do ato da mulher. Ainda assim, as
várias formas de se matar um ser humano, como exposta por Tiburi (2013) seja uma das
mais eficientes constatações. A imagem de um corpo sem vida da mulher representa não
um corpo sem vida, mas sua trajetória de vida, seus ideais e crenças.Enquanto isso a
figura do homem segue sendo apresentada como herói.
Mas porque então a figura da mulher adquire o aspecto de heroísmo a partir de
sua morte? A resposta desta questão pode estar mais próxima de nós. Provavelmente em
vista da manutenção de um ‗status‘ social. É quase certo que tendo em vista a
necessidade de proteção, e em nome deste ‗status‘ a mulher tenha se sujeitado ao
homem para permanecer viva. Porém, em certos casos, viver significa arrisco, perda da
liberdade, daprópria opinião. Além disso, em uma sociedade marcada por antagonismos
se torna legitimo toda a ação de controle do corpo. Essa manutenção de status perpassa
um estado de controle não unicamente do pensamento, mas também pelo controle do
próprio corpo. Principalmente no século XX constatamosesse tipo de política de
controle, seja social ousexual. É neste século quese desenvolvem os grandes
mecanismos de controle do corpo.E assim a necessidade de controle da mulher se torna
ainda mais presente.
As chamadas ‗bio-politicas‘, como apontadas por Foucault no volume I de
‗História da Sexualidade‘ (1999)contribuem para o aumento da desigualdade entre
homens e mulheres. Pelo termo bio-politicas, podemos entender uma ação que se dá
sobre corpos com armas que vão da linguagem à ação (TIBURI, 2010). A partir disso a
ideia da morte, ou a real possibilidade dela fez com que se legitimasse o poder sobre o

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corpo. A morte legitima a necessidade o controle, como uma forma de punição a quem
descumpre as regras.E por esse aspecto podemos considerar que o surgimento de
movimentos revolucionários, totalitarismos e a passagem de duas guerras
provavelmente fizeram com que a crise entre feminino e masculino tivesse uma
reviravolta.
Assim, principalmente nos anos 60, mulher inicia o processo de libertação frente
ao homem, posicionando-se. Porem, em nome de uma família nuclear, em que pai, mãe
e filhos mantêm uma relação aparentemente solidificada, o modelo tenha permanecido.
A figura feminina ainda é deixada de lado das decisões. A morte talvez pudesse ser o
fenômeno que trouxesse a mulher para o centro da casa, pois enquanto isso:

Ao longo dos séculos as mulheres foram representadas de modo


pequeno e inferior, não sendo concedida a elas capacidade racional e
intelectual, deixando-as reclusas em espaços restritos onde eram
impedidas de exercer qualquer atividade ligada ao intelecto e ao bem
público. Deste modo, elas não tiveram oportunidade de mostrar que
suas capacidades e habilidades transgrediam o núcleo dos afazeres
domésticos. (PACHECO, J (org.), 2015, p. 15)

Sendo assim, comoa citação sugere, a mulher continua a ser apenas um prato
exótico ao marido. A partir da sensação de perda provocada pela morte ela ganha voz.
Mas, esse sistema de controle da mulher se destaca não apenas dentro de sua casa, mas
também em outros espaços. A esfera privada de tratamento da mulher apenas revela o
que na sociedade se expõe de forma velada. A insegurança provocada pelo
comportamento machista faz com que a mulher tenha que recorrer a agentes externos
para justificar seu comportamento. Essa insegurança não seria uma insegurança apenas
por parte da mulher fragilizada, mas do próprio homem como uma necessidade de
afirmação (TIBURI, 2010, p. 125).
A mulher se torna objeto ao homem, posse. Contudo, não é apenas o homem que
faz isso, mas toda uma sociedade. Veja por outro ângulo que, até mesmo na mídia esse
controle se legitima: não se vê uma campanha publicitária de materiais domésticos para
homens, por ser essa atividade uma atividade quase exclusivamentefeminina. A morte
da mulher não necessariamente aponta para a morte de seu corpo físico, mas também a
morte de seus projetos e ideais. As teorias politicas de controle do século XX sejam elas
desenvolvidas por Freud, Foucault, Smith, entre outros demonstram a insegurança
humana diante de tempos de crise. Fatores esse desenvolvidos na estrutura social.

III. A SUPERAÇÃO DA VISÃO DE MORTE

Não deveríamos falar em superação para um problema que não deveria existir. No
caso estamos nos referindo ao problema da morte da mulher frente ao pensamento
existente. Seja no campo da filosofia ou nas demais áreas do conhecimento ainda é
necessário que a mulher tenha um espaço para expor o que pensa.
Falar em soberania por parte do feminino, conforme constata Tiburi (2010, p.
112), seria como falar de uma espécie de outra violência. Quando falamos de violência
não falamos apenas da violência feminina, mas também da violência que afeta a todos.
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Assim como Hannah Arendt (2004, p. 4-5), Tiburi constata que a violência é uma forma
de destruição do poder, exposto a partir de sua constatação simbólica.
Neste sentido, superadas as formas de separação entre pensar masculino e
feminino a filosofia não tivesse de falar sobre a violência. Esta violência surge das mais
diversas formas, e sua prática se determina pela necessidade de afirmação daquele que a
pratica. Enquanto houver atrocidades contra o discurso feminino ou enquanto não
aceitarmos as mulheres, teremos que procurar justificação para as atrocidades em
relação ao feminino.
Na prática, nada justifica a violência contra qualquer indivíduo, sua origem está
na falta de diálogo. Embora sejamos pessoas aptas a este diálogo, nem sempre ocorre
desta forma. Em nome do amor se acometem as maiores atrocidades contra a vida, se
pratica a intolerância ou se justifica a morte. Não existe uma forma própria para a
superação deste processo, mas existem caminhos.
Tiburi, entretanto, indica caminhos consideráveis para a superação da violência
patriarcal. A primeira delas é uma desconstrução do modelo patriarcal a partir de seus
argumentos. A superioridade masculina frente à feminina não deve se basear em
características de gênero, nem mesmo em aspectos isolados do indivíduo, como a
necessidade de reconhecimento. Esse reconhecimento vai desde um impulso biológico,
até a efetiva atitude. Entendamos também que o discurso acerca do biológico deve ser
anulado. Homens e mulheres podem desenvolver as mesmas atividades físicas e
intelectuais. Talvez por medo ou insegurança ainda seja preciso lutar contra o
preconceito.
Já em uma segunda possibilidade de superação, Tiburi (2010) nos convida a uma
espécie de reinvenção das coisas, ou seja, um novo olhar sobre a mulher e suas
capacidades. A imagem da mulher submissa que pertence a seu marido, que apenas
cuida dos afazeres da casa, deve ser readequada para a imagem da mulher livre. E a essa
liberdade podemos incluir a capacidade de não entender a mulher como um
instrumento, objeto, mas apta a realizar suas próprias escolhas.
Por fim, devemos falar da própria filosofia. Ainda falamos pouco da relação das
mulheres e o pensamento filosófico. O intelectual deve reconhecer que está errado
quanto à mulher. Falar da mulher dentro da história da filosofia significa reconhecer
uma dívida histórica. Assim é necessário que a mulher entre na filosofia pela porta da
frente, não sendo mero coadjuvante no processo filosófico. Ela, a mulher, vai nos dizer
Tiburi (2010), salva o sujeito de outra forma, dele mesmo. Até aqui, o que se constata é
que as mulheres dentro da filosofia foram silenciadas e oprimidas. E de acordo com as
perspectivas de Tiburi (2003), cabe a nós não repararmos os erros do passado, mas sim
fazer diferente o futuro.

AUTOR

* André do Carmo Otoni é atualmente aluno de Mestrado em Filosofia pela


Universidade Federal da Bahia (UFBA), bolsista pela CAPES. Possui Especialização

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em Projetos Culturais pela PUC/MINAS e Graduação em filosofia pela Faculdade São


Luiz de Brusque – SC. E-mail: aotoni6@gmail.com.

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

ARENDT, Hannah. Da violência. Brasília, DF: Ed. da UnB, 1985

BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo: fatos e mitos. Tradução: Sérgio Milliet. 4.
ed.. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1970.

DA MATTA, Roberto. O Que faz do Brasil, Brasil? Rio de Janeiro: Rocco, 1986.

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade: a vontade desaber. Tradução de Maria


T. C. Albuquerque. 13. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1999.

PACHECO, Juliana (Org.). Mulher & Filosofia: as relações de gênero no pensamento


filosófico. 1.ed.. Porto Alegre: Editora Fi, 2015.

ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: veredas. 1. ed.. São Paulo: Nova Aguilar,
1994.

TIBURI, Marcia. “As mulheres e a filosofia como ciência do esquecimento”. In. Com
Ciência, Campinas, dez.2003. Disponível em: http://www.comciencia.br/dossies-1-
72/reportagens/mulheres/15.shtml. Acesso em: 10 de Outubro de 2017.

________. Diadorim:biopolítica e gênero na metafísica do Sertão. Revista Estudos


Feministas (UFSC. Impresso), v. 21, p. 191-207, 2013.

________.“Marias Bonitas: entre a mulher mítica e as mulheres reais, uma fratura


no sertão”. In: QUEIROZ, André. Arte & Pensamento: a reinvenção do Nordeste.
Fortaleza: SESC,2010. p. 111-125.

________.Ofélia morta: do discurso à imagem. Revista Estudos Feministas (UFSC.


Impresso), v. 18, p. 301-318, 2010.

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HANNAH ARENDT89 E A CONDIÇÃO HUMANA DA PLURALIDADE

Marcus G. M. Santos

RESUMO: Discutimos aqui a noção arendtiana de pluralidade enquanto condição constituinte


daquilo que vem a ser a humanidade do humano. A pluralidade como a pensa Hannah Arendt
não é meramente uma condição contextual posterior em meio a qual nos inserimos e com a qual
lidamos desde a substancialidade de uma ―natureza humana‖ já pré-constituída. É, pelo
contrário, um fator determinante mesmo para aquelas atividades que, aparentemente apenas, têm
precedência por comporem o domínio interno do indivíduo como p. ex. a vontade e o
pensamento. Trata-se então neste escrito de, primeiro, compreender como, para o pensamento
político desta autora, a noção de pluralidade (à qual respondemos por meio da atividade humana
fundamental da ação) funciona como um baluarte; e, segundo, de perlustrar através das lentes da
crítica arendtiana da nossa tradição de pensamento político que possíveis caminhos de
pensamento e ação se abrem para nós em meio ao mundo em que nos toca viver, suas crises e
suas catástrofes em curso.

Palavras-chave: pluralidade, política, condição humana, singularidade, Hannah Arendt.

―Não almejar nem os que passaram nem os que virão.


Importa ser de seu próprio tempo.‖

Karl Jaspers

1. INTRODUÇÃO

Se levamos a sério as supracitadas palavras de KarlJaspers, que não atoamente são


aquelas escolhidas por Arendt para abrir As origens do totalitarismo (2012), podemos talvez
vislumbrar, como é típico da função exercida por epígrafes, pela fresta intuitiva de uma porta
entreaberta, a dimensão de algo que ainda não compreendemos em toda sua magnitude. A saber,
no contexto aqui em jogo: a profunda atualidade do pensamento de Hannah Arendt, suadiligente
preocupação, ainda quando envolvida em investigações de cunho metafísico, com o
rastreamento dos problemas e acontecimentos de nossa era e de nosso mundo.

89 Hannah Arendt, nascida em Linden, 1906, foi uma pensadora alemã de origem judaica. Uma das
pensadoras mais influentes do seculo XX. Estudou desde muito cedo filosofia, tendo começado sua
vida acadêmica na Universidade de Marburg, onde foi aluna de Martin Heidegger. Estudou ainda em
Freiburg sob a orientação de Edmund Husserl e em Heidelberg, onde se formou com sob a tutoria de
Karl Jaspers. Deixou a Alemanha em 1934 às vésperas da Segunda Guerra Mundial, mudando-se para
Paris, de onde conseguiu escapar em 1941 após a tomada da capital francesa pelo regime nazista,
mudando-se definitivamente para os Estados Unidos, onde lecionou na Universidade de Chicago e
posteriormente na New School for Social Research, onde se manteve até sua morte em 1975.

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Neste sentido, fazer o exercício espiritual de pensar com ela a condição humana; o
trabalho, a obra e a ação; a natalidade e a mortalidade; a vida, o mundo e a pluralidade (objeto,
mais especificamente, deste escrito); deve sempre – caso importe, como acreditamos importar,
fazer jus ao pensamento e a obra da autora em questão – ter como chão onde firmamos os pés e
realidade à qual nos reportamos, o mundo presente onde de fato existimos e apenas em vista do
qual o passado é relevante e o futuro horizonte.

Cabe ressaltar ainda, de antemão, que um aspecto dos mais importantes para a
arquitetura do pensamento arendtiano é sem dúvida a noção de que a nossa tradição se nos
apresenta com o fio condutor roto. Nas palavras do poeta francês René Char que aparecem
como epígrafe da coletânea de ensaios Entre o passado e o futuro (2012): ―nossa herança não é
precedida por nenhum testamento‖. O fato é que para Arendt nos encontramos num momento
límbico entre um passado que nos lega categorias de pensamento já sem força testamental e um
futuro, portanto, sem perspectiva. Se, por um lado, a situação é amplamente desesperadora e a
reação mais comumente adotada pareça ser a de agarrar-se a qualquer pedaço da tradição que
apesar de em desmoronamento nos pareça mais solido relativamente aos demais; por outro, são
particularmente nesses momentos que a atividade de pensar emerge como um apelo urgente não
mais apenas para filósofxs e intelectuais em geral, mas para toda e qualquer pessoa aturdida
pelo desmantelamento das ―verdades‖ que lhe serviam de referência para pensar e agir no
mundo.

De tal forma que, a nossa esperança aqui ao propormo-nos a apresentar e discutir a


noção de pluralidade como a pensa Arendt, tem como pressuposto a crença, que pretendemos
justificar ao longo do texto, de que a noção arendtiana de política, centrada na condição humana
da pluralidade à qual respondemos com a atividade fundamental da ação, é de algum modo
propicia e frutífera para que reflitamos sobre o nosso atual estágio civilizacional moderno e suas
consequências para a condição humana e o modo próprio que temos de a ela responder. Trata-
se, portanto, assim como afirma Hannah Arendt no prólogo de A condição humana (2014) sobre
o que viria a seguir, de ―pensar o que estamos fazendo‖.

Tudo isso dito e as considerações preliminares feitas, permitam-nos agora passar mais
propriamente ao assunto que nos traz aqui à baila, que nos faz, como diria o professor
Emmanuel Carneiro Leão, participar da ―capoeira do pensamento‖.

Nossa problemática central gira em torno da noção de pluralidade enquanto condição


humana fundamental tanto à constituição quanto à compreensão daquilo que venha a ser a a
humanidade do humano, o modo de ser próprio deste ser que somos. O caminho, entretanto, a
ser trilhado entre a noção de pluralidade e a de humanidade do humano perpassa, ou melhor, se

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funda centralmente, uma vez que é esta atividade humana o fenômeno que responde
apropriadamente à condição da pluralidade, no estudo e compreensão da ação.

Assim, pois, o desenvolvimento central do texto perpassará: em 2. (A condição


humana e a atividade da ação), por avaliar dentro do contexto mais amplo da condição
humana a relação entre a atividade da ação e sua condição específica, a pluralidade; em 3. (
Essa “paradoxal pluralidade de seres únicos”), por melhor explicitar os pormenores da noção
de pluralidade humana como a entende Hannah Arendt; e em 4. (O grande teatro das
narrativas humanas), pelo enfrentamento da problemática relativa a como, por que meios, a
ação humana, ao constituir um “entremundo” intersubjetivo intangível e pluralmente
relevante via a capacidade narrativa, logra instaurar sentido e fazer-se trampolim para toda
sorte de atividades intelectivas. Sendo pois, esta atividade, a pedra de toque para a distinção
daquilo que é o modo de ser próprio do humano, sua humanidade.

2. A CONDIÇÃO HUMANA E A ATIVIDADE DA AÇÃO

De acordo com Hannah Arendt, os seres humanos, desde que temos noticias de sua
trajetória, têm estabelecido neste planeta certas atividades fundamentais. Tais atividades –
apesar de não serem fixas nem imutáveis, mas terem, pelo contrário, ao longo do percurso
histórico do ocidente, sofrido diversas transformações e inversões de hierarquia – respondem,
entretanto, a certas condições. Condições que, conquanto não sejam também fixas e imutáveis
ao ponto de darem corpo a uma ideia justificada de ―natureza humana‖ como foi o intento
metafísico tradicional inverso de derivar tais condições de alguma natureza tal imutável – dos
antigos aos modernos –, permanecem com relativa estabilidade ao longo da existência humana
neste planeta, urgindo para si respostas constantes e condizentes para com seu apelo. É mediante
uma tal consideração que é possível falar, de acordo com o pensamento de Hannah Arendt, de
uma condição humana. E é o fato de responderem a tal condição que nos permite dar a tais
atividades o epiteto de fundamentais.

As condições as quais nos referimos são, entre outras, pois, sem pretensão de
esgotamento: o próprio planeta Terra, até onde sabemos o único ambiente capaz de gestar e
suportar, sem esforço ou artifício, em um nível tal de complexidade orgânica a vida e a
experiencia humanas de mundo; a natalidade, o fato de que constantemente novos seres
humanos, ―recém-chegados‖, nascem para a vida e para o mundo; a mortalidade, antigamente
talvez a mais profundamente reconhecida destas condições, que traçava, desde ao menos a
Grécia do período homérico, a linha distintiva tanto entre seres humanos e deuses, quanto entre
os seres humanos e a natureza terrena; a vida mesma em sua penosa urgência material; o mundo

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em sua mundanidade relativamente durável; e a pluralidade característica de seres únicos e


biograficamente identificáveis no tempo.

É, fundamentalmente, a esta última condição, o fato de que não o ser humano, mas os
seres humanos no plural vivemos na terra e habitamos um mundo comum (ARENDT, 2014, p.
8), a que respondemos quando, por meio de palavras e atos, discurso e ação, tomamos iniciativa
e, ao atuarmos em meio publicidade do mundo, nos revelamos enquanto agentes.

Buscaremos então refletir aqui sobre este fato a muito negligenciado: de que somos,
enquanto seres humanos, ontologicamente condicionados pela pluralidade de nossa existência.
Essa pluralidade, contudo, se apresenta em nós constelada por estrelas únicas e de brilho
singular. Pretende-se, portanto, mais que nada, elucidar as peculiaridades da condição humana
da pluralidade e sua relação com a revelação do agente através do discurso e da ação,
compreendendo assim, nesse aspecto específico – nem de longe suficiente para entendermos em
profundidade a própria atividade da ação em toda sua importância para a teoria política e
filosófica desta autora –, o mais fielmente possível a leitura arendtiana dessa inalienável
atividade humana à qual a nossa tradição ocidental de pensamento político, com raríssimas
exceções, tão danosamente virou as costas.

O milagre humano, afinal, o fato de que nossa vida, nosso mundo, nossa existência, é
capaz de ter sentido antes que este possa ser colhido em pensamento, advém, em última
instância, da capacidade que temos de agir e expressar-nos via discurso. E é mediante ação e
discurso, portanto, que rompemos com os automatismos e condicionamentos inerentes à
natureza e ao mundo físico. Para tanto, dependemos, como veremos, sobretudo, da presença de
outros seres humanos. Para nós, por conseguinte, seres plurais por excelência, Ser corresponde a
Aparecer; e a realidade só nos é concedida via o mundo e a pluralidade de agentes e de seus
pontos de vista.

3. ESSA ―PARADOXAL PLURALIDADE DE SERES ÚNICOS‖

Para Arendt, ―a pluralidade é a lei da Terra‖(ARENDT, 1981, p. 19) e ―a Terra é a


própria quintessência da condição humana‖(ARENDT, 2014, p. 2). Duas afirmações das quais o
sentido se enraíza na própria experiencia que o ser humano faz de si mesmo, de outros, do
mundo em sua mundanidade e da relação íntima, constitutiva, e até o momento irrevogável, que
entabula com a natureza terrena em sua totalidade. Em última análise, todas as atividades
humanas, mesmo aquelas de um caráter fenomênico interno como o pensar, ainda que não sejam
diretamente condicionadas por este fator, guardam alguma relação com a condição da
pluralidade.

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Assim, quando consideramos a pluralidade do ponto de vista da existência humana, nos


deparamos com as mais fortes consequências dessa realidade. O fato de que os seres humanos
não são meramente distintos uns dos outros, mas que têm a capacidade de distinguirem
ativamente a si próprios é um dos condicionantes da existência humana. De forma que, para
citar alguns exemplos particulares, os seres humanos não vivem na Terra e habitam o mundo da
mesma maneira que o fazem os ―bem-te-vis‖, os pés de ―capim limão‖ ou as pedras de ametista.

É, de fato, verdade que não há no mundo duas pedras de ametista completamente iguais,
nem tampouco duas rosas idênticas, mas tal distinção entre seres do mesmo tipo ou espécie é
bastante diversa daquele modo de singularidade propriamente humano. Enquanto as distinções
do primeiro tipo são, ou quantitativas, relativas à proporção compositiva dos seres inorgânicos,
ou dadas mediante qualidades objetivas, observáveis, passíveis de classificação, como no caso
dos seres vivos em geral; as que dizem respeito à pluralidade humana, apesar de abarcarem
também em si tais distinções qualitativas, se expressam de maneira ―indeterminável‖ e
―incristalizável‖ em sua essência através do discurso e da ação em meio a publicidade do mundo
humano comum.

Diante dessa possibilidade ativa de autodiferenciação, aquela mera distinção objetiva


dos minerais, vegetais e animais em geral, é em grande medida insuficiente para compreender
em seu âmago a pluralidade humana.

Ao lermos em suas minúcias a seção 24 de A condição humana,podemos notar que


Arendt distingue entre três grandes níveis em que se mostra na terra tal lei da pluralidade. O
mais amplodeles, característico de tudo aquilo que existe, é a alteridade, por meio da qual é
possível dizer que nem mesmo a multiplicidade inorgânica de um mesmo objeto seja idêntica
entre si – não existem na Terra duas coisas completamente idênticas entre si. O nível que se
segue, em ordem decrescente de amplitude, é a distinção característica da pluralidade existente
entre a vida orgânica, característica responsável pelo fato de que, como já mostramos acima por
meio de exemplos, mesmo dois seres pertencentes a uma mesma espécie podem ser distinguidos
entre si. A pluralidade, porém, trazida ao nível da experiência propriamente humana neste
planeta nos fala de uma singularidade e unicidade ativa dos indivíduos a ser revelada através do
discurso e da ação. E assim:

No homem, a alteridade, que ele partilha com tudo o que existe, e a


distinção, que ele partilha com tudo o que vive, tornam-se unicidade, e
a pluralidade humana é a paradoxal pluralidade de seres únicos
(ARENDT, 2014, p. 220).

Se, portanto, o discurso e a ação, palavras e atos, são os modos propriamente humanos
de responder à uma condição tal de pluralidade, é através destas atividades que o ―quem‖ do

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agente aparece, é ―revelado‖, em meio à trama de ações e palavras que conformam o que
Hannah Arendt chama de a ―textura dos assuntos humanos‖. Precisássemos, pois, distinguir o
mais originariamente possível os animais em geral dos seres humanos, deveríamos dizer que
estes últimos são, ademais, nos termos da pluralidade estabelecidos até aqui, seres de ação. E
isso porque, por mais coletivo que possa parecer o comportamento de certos seres não-humanos,
não se tece entre eles, a partir de seus atos singulares, um ―entremundo‖ próprio, onde as coisas
ganham sentido comum e os agentes correm o risco e colhem a potência, intrínsecos e
imprevisíveis, de ter ativamente o seu ―quem‖ revelado.

Se nos atemos, porém, somente ao aspecto, inerente a esta pluralidade, da diferença,


teremos apenas uma parte dessa dinâmica, uma vez que, por outro lado, é a igualdade, mediante
a qual dizemos ―seres humanos‖, que nos dá o próprio esteio mútuo onde uma possível relação
de comunicabilidade, entendimento e gestação de sentido comum pode se dar. Neste sentido,
um dos aspectos mais marcantes da complexidade da condição humana é certamente o caráter
―paradoxal‖ dessa ―pluralidade de seres únicos‖, desse ―viver como um ser distinto e único
entre iguais‖(ARENDT, 2014, p. 223).

Tal paradoxo, permanente até enquanto não venha a transformar-se radicalmente a


própria condição humana, é a pedra de toque para a compreensão da íntima relação entre
discurso e ação, assim como para o entendimento do agente em seu aparecimento revelador e
suas capacidades de iniciador de novos processos.

A ação humana só tem sentido pluralmente relevante se revela um agente a quem se lha
atribui. Para que tal agente venha a ser revelado é preciso que para além de um ―realizador de
feitos‖ seja também um ―pronunciador de palavras‖. É, pois, o discurso que ilumina os feitos,
aferindo-lhes um sentido comum, e nele, portanto, que a ação ganha relevância política e o
agente se revela. A singularidade do agente humano precisa então, para tornar-se pública, do
discurso. É através dele que, para além de certas identidades físicas singulares observáveis
(tonalidade da pele e dos olhos, altura, timbre da voz, etc) – um ―quê‖ – e modificáveis é
verdade, mas originalmente dadas, uma outra dimensão de identidades, pessoais e únicas – seu
―quem‖ – emergem do privado ao público, aparecem.

O discurso, apesar de contar entre seus empregos corriqueiros, a utilidade prática


comunicativa, seu caráter informativo, não tem aí sua residencia mais cara, nem é para tanto o
melhor instrumento. Para tal, nos mostra Arendt, seria deveras mais proveitoso, devido à
eficiência da precisão, fazer uso de uma linguagem de signos, como é o caso já na matemática e
em grande parte um direcionamento comum nas ciências90. Do mesmo modo, no que tange à

90 Gostaríamos aqui de fazer notar que o termo usado por Arendt “linguagem de signos” nenhuma

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vitaactiva, âmbito das atividades ―exteriores‖ do indivíduo, as outras atividades humanas


fundamentais, por mais que façam, por vezes, uso do discurso, prescindem dele. De forma que,
sendo a ação a ―única atividade que ocorre diretamente entre os homens, sem a mediação das
coisas ou da matéria‖(ARENDT, 2014, p. 8), ―nenhuma outra realização humana precisa tanto
do discurso quanto a ação‖(ARENDT, 2014, p. 224).

E portanto:

A ação e o discurso são tão intimamente relacionados porque o ato


primordial e especificamente humano deve conter ao mesmo tempo,
resposta à pergunta que se faz a todo recém-chegado: ―Quem
és?‖(ARENDT, 2014, p. 223)

É, pois, fundamentalmente do fato da pluralidade que emanam a ação e o discurso


humanos. É única e exclusivamente em meio à publicidade e à visibilidade constituída pelo
espaço da aparência que se forma do estar junto dos seres humanos que os nossos ditos e feitos
podem colher sentido da experiência de serem vistos e ouvidos e darem corpo às estórias que
além de fazerem surgir, situado em nós, um ―quem‖, são capazes de engendrar no mundo a
novidade de que somos capazes pelo simples fato de termos nascido.

Dessa forma, o poder humano político, assim como o espaço da aparência, mantêm
sempre seu caráter potencial, pois existe enquanto possibilidade onde quer que os seres
humanos se congreguem, mas mostra sua efetividade apenas onde esta reunião se faz sentir na
modalidade da ação e do discurso, e de tal forma que ―as palavras não sejam vazias‖, usadas
para ludibriar, e ―os atos não sejam brutais‖, usados para violentar e destruir. Atos e palavras
não podem divorciar-se, aqueles devem sempre ser o engendramento da realidade que estas vêm
revelar.

Não é, portanto, sempre que existe uma pluralidade humana e consequentemente um


espaço da aparência que a ação humana ―mostra as caras‖. A existência de um tal espaço da
aparência nos dá sim a ação em potência, mas sua atualização depende intrinsecamente de uma
igualdade de possibilidades participativas dos agentes envolvidos que aos nossos ouvidos já
calejados por um passado histórico e um presente político marcado por relações amplas e

relação tem com linguagens de sinais como por exemplo a LIBRAS (Língua Brasileira de Sinais). E
que, portanto, a distinção que se estabelece é entre o discurso enquanto esteio possibilitador de
qualquer língua que colha sentido vivo da realidade, e portanto seja capaz de expressão espontânea,
seja ela oral-auditiva como é o caso do português e do inglês, ou visual-espacial como é o caso da
LIBRAS e da ASL (American SignLanguage); e uma linguagem de símbolos, precisos e não
ambíguos, preocupada apenas com a exatidão e acurácia informacional típica das máquinas
executoras de tarefas programadas (a redução da física à matemática atende, por exemplo a tais
propósitos). Quisemos aclarar este ponto pois poderia a leitora ou leitor desavisado(a) incorrer,
devido à similaridade dos termos, numa má interpretação e crer que a autora estava imbuída de
preconceitos acerca das línguas de sinais. Não é, como vemos, o caso.

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diversas de opressão e índices exorbitantes de desigualdades socioeconômicas soa, não sem


razão, extremamente irrealista. Ergue-se então um primeiro problema: não seria a descrição
arenditana da ação, apesar de muito belamente centrada na pluralidade da existência humana,
toldada pela incompatibilidade de suas exigências com a nossa desigual estrutura social?
Queremos argumentar que não, mas devemos nos reportar mais adiante a este problema.
Busquemos agora ainda uma melhor compreensão da dimensão própria desse espaço da
aparência que é para Arendt palco da individualidade humana e espaço próprio da política a
partir de sua capacidade ilimitada de produzir relações e narrativas.

4. O GRANDE TEATRO DAS NARRATIVAS HUMANAS

Gostaríamos de fazer notar a grande espontaneidade presente no conceito de ação


arendtiano – e o mesmo vale para o discurso, que não deixa de ser um modo do agir humano, e
de fato o mais comum, uma vez que, a grande maioria das ações são realizadas na forma de
discurso. A gratuidade, pois, espontânea da ação fica clara na distinção da autora entre as três
formas tipicamente humanas de experienciar a pluralidade, a saber: estando a favor (―pró‖)dos
outros, estando ―contra” eles, ou estando simplesmente com as pessoas. Esta última é a única
que suporta a existência de ação no sentido aqui empregado. É a única, portanto, em que a
pluralidade é realmente levada em conta em seus múltiplos pontos de vista. Isso porque as
outras duas disposições para com a pluralidade citadas aqui, são em verdade formas
extremamente solitárias de existência imediata entre seres humanos – pois são várias as formas
em que se pode estar só, e muitas vezes nos encontramos extremamente desamparados em meio
à maior das multidões. A primeira delas, característica do agente realizador de boas obras, o
―benfeitor‖, exige deste uma negação do si-mesmo (self), um anonimato, uma recusa a revelar
sua pessoa, seu ―quem‖. A segunda, típica do criminoso, ou ―malfeitor‖, exige mais ainda do
agente um esgueirar-se e esconder-se da visibilidade do espaço público que também rechaça a
experiencia própria da pluralidade e da revelação do agente. É, então, apenas estando com os
outros, ―no puro estar junto dos homens‖, ―nem ―pró‖ nem ―contra‖‖ eles, e, portanto,
espontaneamente, que ―essa qualidade reveladora do discurso e da ação passa a um primeiro
plano‖(ARENDT, 2014, p. 225).

São essas as condições sem as quais não há revelação do agente. Sem as quais o
discurso se torna ―mera conversa‖, ilusória ou propagandística, ou ainda, como vimos
anteriormente, informação imprecisa, deixando de colher o sentido da pluralidade do intercurso
humano; e a ação perde espaço para a violência muda. Em todos estes casos o que se perde é o
caráter espontâneo do agir e falar humanos, pois o discurso tomado como um meio para
determinado fim ou bem é um instrumento impreciso que pode ser substituído por uma
linguagem de símbolos mais unívocos, ou, por mais eficiente que seja enquanto propaganda,

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nada revela, mas pelo contrário, esconde e distorce; e a ação é tão ineficiente como meio para
fins práticos que é nestes casos sempre preterida seja em relação à violência muda e tirânica,
seja em relação aos aparatos burocráticos. Nos diz Arendt:

Sem o desvelamento do agente no ato, a ação perde seu caráter


específico e torna-se um feito como outro qualquer. Na verdade, passa
a ser um meio de atingir um fim, tal como a fabricação é um meio de
produzir um objeto. Isso acontece sempre que se perde o estar junto
dos homens (…) (ARENDT, 2014, p. 225).

O ponto crucial da distinção está em que a ação e o discurso humanos –


diferentemente do trabalho, que tem como ambiente de inserção a natureza terrena e produz
bens de consumo, fúteis mas relativamente sólidos e observáveis durante seu curto
aparecimento; e da obra, que tem como ambiente característico um espaço-entre [in-between]
mundano de coisas fisicamente interpostas entre os seres humanos e produz objetos de uso,
estes propriamente tangíveis – não nos dá nenhum objeto de consistência e solidez observável,
mas apenas algo de extrema intangibilidade. A ação e o discurso têm, em falta de uma palavra
mais adequada, como ―resultado‖, apenas estórias, passíveis de serem contadas e até mesmo
reificadas, mas que apesar de terem majoritariamente como referência o espaço-entre mundano
de coisas que ―inter-essam‖ [inter-est] mutuamente os agentes em questão, habitam e co-
constroem em verdade uma terceira ambiência, intangível e de consequências incertas: a
complexa teia de relações humanas. Existem, pois, para Hannah Arendt, além, obviamente, da
Terra, que não está aqui em questão, dois outros tipos de espaço-entre nos quais se desenrola a
existência humana: um espaço-entre tangível de coisas mundanas e por isso objetivo; e um
outro espaço-entre intangível e subjetivo, pois inter-relaciona por meio das estórias encenadas
sujeitos humanos.

Tais estórias, que se mostram muito mais àquele que observa do que àquele que age,
formam, retrospectivamente reunidas, a estória de vida de determinada pessoa, sua biografia, da
qual foi o ator, porque agiu e foi orador de si mesmo. Essas estórias, entretanto, não possuem
um autor. Se o tivessem, então minha pessoa seria algo do qual eu disporia como uma qualidade
objetiva, e isso significaria que eu poderia desimplicadamente inventar ou criar, e este parece
ser o sentido que se deu à liberdade em toda a tradição hegemônica de pensamento político,
minha própria estória de vida. Para tanto, é evidente que o sujeito teria que ser algo alijado da
Terra, do mundo e da ―teia de relações humanas‖, um ego transcendente, substancia pensante
por natureza, um puro cogito como queria Descartes, ou ainda uma alma racional ideal presa ao
corpo como queria Platão e mesmo toda a tradição medieval hegemônica. Para Arendt, estas não
passam entretanto de tentativas filosóficas de, por meio da adoção de uma lógica própria à

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atividade do artífice, afastar do âmbito dos assuntos humanos, da política, sua intrínseca
incerteza – mas tratar disso exigiria sem dúvida um outro trabalho e reflexão mais específicos.

Aqui, o que vale a pena destacar é a diferença entre uma estória inventada, ―criada‖
[madeup], obra de determinado autor; e as estórias reais resultantes da ação e do discurso
humanos, encenadas pelos atores no fluxo vivo do agir e falar da vida real, guardando sempre
algo de incerteza, imprevisão e improviso. Não é, mostra Arendt, por acaso que a arte grega do
drama (do verbo gregoδρᾶν[dran], ou no nominativo presente singular δράω, ―agir‖)
tragediográfico seja a melhor forma de representar, ―reificar‖, não através do coro, mas da
imitação [μίμησις (mimẽsis)] das estórias, a ação, dando forma ao ―quem‖ dos, sob esta
condição, ditos personagens. É que a ―essência viva da pessoa humana‖ não fica bem
representada apenas na letra morta do roteiro, e é por isso que ―a peça teatral só adquire plena
existência ao ser encenada no teatro‖ (ARENDT, 2014, p. 234).

Há, portanto, considerados estes pontos, uma frustração fundamental inerente ao campo
da ação humana relacionada ainda com o tipo de revelação do agente que está aqui em jogo. Se
por um lado a ação deve, para ter relevância plural, revelar o agente, por outro essa revelação se
dá de forma extremamente intangível. A ―essência viva da pessoa humana‖ não se dá a conhecer
com a mesma solidez dos objetos do mundo, e isso porque esse ―quem‖ que a pessoa é, se faz e
habita, como vimos, não o mundo objetivo das coisas, mas cada ato e cada palavra vêm a fazer
parte de uma teia de relações intersubjetivas intangível preexistente e na qual cada ação possui
uma relação em rede, um verdadeiro ―enredo‖, portanto, no qual se enredam, inserindo-se com
palavras e atos, e mutuamente influenciando suas estórias de vida, os mais diversos agente
singulares. A frustração na revelação consiste em que por mais exaustivamente que tentemos
dizer com palavras ―quem‖ alguém é, devido à generalidade própria da linguagem humana, que
opera por distinções e noções comuns, e à contrastante unicidade característica destes seres, o
fracasso de uma tal empresa, caso esteja em jogo aqui uma definição fixa e estável, é cristalino.

É ainda oportuno ressaltar, com base no que vimos, a grande peculiaridade deste
conceito de ação, muito mais restrito do que aquele a que estamos acostumados a usar
cotidianamente. Feitos e ações não são para Arendt exatamente a mesma coisa. Todas as ações
são feitos, mas, no entanto, a recíproca não é verdadeira. As ações, em meio ao universo
conceitual arendtiano, são um tipo específico de feito, realizado diretamente entre seres
humanos, no plural, e o discurso um dos modos desse agir humano, onde ao mesmo tempo fica
exposto, com toda a carga ambígua do termo, o sujeito91.

91 A palavra, no sentido usado por Arendt, não deve tomar a tonalidade da correlação sujeito-objeto
cunhada no bojo da Era Moderna pela filosofia cartesiana. Pelo contrário, está animada de um
espírito de superação daquela correlação como ela se estabeleceu na ontologia moderna. O sujeito

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Assim:

Embora todos comecem a própria vida inserindo-se no mundo


humano por meio da ação e do discurso, ninguém é autor ou produtor
de sua própria estória de vida. Em outras palavras, as estórias,
resultado da ação e do discurso, revelam um agente, mas esse agente
não é nem autor nem produtor. Alguém as iniciou e delas é o sujeito,
na dupla acepção da palavra, seu ator e seu paciente, mas ninguém é
seu autor (ARENDT, 2014, p. 230).

O fato é que a ação humana se insere através das relações que produz entre agentes
numa cadeia de ações ilimitadas e em rede, onde a imprevisibilidade e a irreversibilidade
ameaçam qualquer empreitada. Um verdadeiro ―efeito borboleta‖ dos assuntos humanos está em
jogo, pintado, contudo, pelas trágicas consequências que pode vir a ter, com a tonalidade
sombria da negatividade do adágio popular conhecido como ―a lei de Murphy‖.

Vemos, então, como a ação aqui descrita coloca o agente expressamente como um
refém de si mesmo, opacas que são as consequências de seus atos para si próprio. Ergue-se
parece um segundo grande problema: não seria demasiado perigosa a ação pensada em meio a
tamanha espontaneidade e imprevisibilidade? Muitos perguntarão: a quem responsabilizaremos
pelos erros que possam brotar dessa ação plural?

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Até aqui, pudemos fixar talvez que Hannah Arendt nos apresenta um conceito de ação
altamente centrado na noção de pluralidade. Ademais, que tal pluralidade não se reduz à uma
multiplicidade uniforme, mas compõe-se de seres únicos, singulares. E assim, que a
singularidade humana não é algo pré ou antipolítico, resguardada no espaço privado, mas que,
pelo contrário, é modo próprio da pluralidade humana e constituinte, em sua revelação no
espaço da aparência, do ―entremundo‖ subjetivo dos assuntos humanos.

aqui, muito longe de ser coisa pensante apartada do mundo, configura-se enquanto ser não apenas no
mundo, mas sempre do mundo, ativo, de pensamento, mas também de trabalho, de obra e, no que
vem ao caso, de ação. Cf. Hannah Arendt, The Life oftheMind, 1981, p. 19-20. Ademais, nem mesmo
enquanto ser de ação tem as pretensões de controle e domínio sobre si e sobre o mundo que se
depreendia da proposta cartesiana. Pelo contrário, age sim ativamente, mas isso, aqui, quer dizer
também espontaneamente.

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Assim, a ação e o discurso, os dois grandes pilares do exercício político, são mais que
nada respostas a essa esfera da condição humana que nos coloca em contato direto com outros
seres tão capazes de agir e desencadear processos novos e ilimitados quanto nós próprios.

Retomemos, pois, o primeiro problema com o qual nos deparamos no meio do percurso:
não seria a descrição arenditana da ação toldada pela incompatibilidade de suas exigências com
relação à nossa desigual estrutura social?

Para uma resposta a tal questionamento precisamos antes ter em mente que quando
Arendt busca fazer a descrição fenomenológica da atividade humana da ação esta é parte de
uma descrição mais ampla da vida ativa do indivíduo humano em suas três grandes dimensões,
as relações que entabula biologicamente com a natureza; as relações que estabelece com os
artefatos, instrumentos e objetos de uso; e as relações que diretamente perfazem-se entre seres
humanos. Ora, essas três dimensões existem cristalinamente na existência cotidiana de cada um
de nós, e é à última delas a que diz respeito a ação.

A condição da pluralidade é, portanto, um fato, e seja por meio de uma ação plural onde
os agente estão em par de igualdade, seja de outra forma qualquer, urge de nós uma resposta. O
que sem dúvida tem o poder de embaçar a boa visibilidade da questão é que, muito por causa do
segundo problema que nos assola (a grande ilimitabilidade, impresciência e irreversibilidade dos
resultados dessa atividade), decidimos historicamente optar pela redução drástica do poder da
ação humana. Se isso foi feito consciente ou inconscientemente é irrelevante ao menos para o
escopo deste escrito.

A redução a que nos referimos se deu, numa modalidade mais tradicional, por meio da
substituição da ação pela fabricação no âmbito político (o que significa traçar uma verticalidade
estabilizadora em meio às relações humanas, a típica relação governante – governados); ou
ainda, mais contemporaneamente, a partir da adoção de fins últimos econômicos e vitalistas,
tidos por inquestionáveis, para as decisões tomadas no domínio público. Tratamos, assim, seja
por sincero medo das consequências da ação livre, seja por imiscuídos interesses aristocráticos,
tradicionalmente e contemporaneamente, a ação, respectivamente, ou a partir do modelo da
obra, pensando os corpos políticos e as relações humanas como um produto acabado da maestria
de um profissional apto; ou, ademais e não por substituição, através de lentes naturalistas
características da atividade humana do trabalho. Essa é, linhas gerais e no que tange aqui os
aspectos diretamente relacionados com as questões que abordamos, a leitura que faz Arendt das
transformações modernas da hierarquia das atividades humanas no âmbito da vida ativa quando
nos fala em A condição humana de uma vitória do homo faber (o ser humano enquanto um

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fabricante), seguida de uma ascensão do animal laborans (o ser humano enquanto parte da
natureza terrena)92.

Não nos é possível tratar aqui das consequências de todo esse processo de negação da
ação humana política livre (e consequentemente da pluralidade!), mas podemos quiçá indicar
comparativamente as formas de contraponto às quais assinala Hannah Arendt. Ora, não nos é
permitido manter ao mesmo tempo a liberdade política (oposta a noção de soberania!)93,
relações horizontais, e não arcar ao menos em certa medida com a incerteza do futuro e a
irreversibilidade do passado no âmbito dos assuntos humanos. Mas, temos no próprio âmbito da
ação, sem precisarmos recorrer a expedientes daninhos à existência humana plural, duas
capacidades ativas verdadeiramente milagrosas e sanadoras nesse quesito. Tais remédios
possíveis para as vicissitudes características e inerentes aomodus operandi da pluralidade
humana são, nos diz Arendt, a promessa e o perdão. Aquela dando-nos a ―capacidade de dispor
do futuro como se fosse o presente‖(ARENDT, 2014, p. ; 305); e esta a de sermos ―liberados
das consequências daquilo que fizemos‖, sem o que ―nossa capacidade de agir ficaria, por assim
dizer, limitada a um único ato do qual jamais nos recuperaríamos; seríamos para sempre vítimas
de suas consequências‖(ARENDT, 2014, p. 295).

Explicamos melhor: são, em linhas gerais, duas as possibilidade que temos de assentar
corpos políticos, de viver em comunidades, escapando à grande imprevisibilidade do agir
humano e à irreversibilidade de suas consequências. Neste sentido, ou bem permitimos que a
força vinculante da promessa, dos tratados e alianças, ou, em última instância, da confiança e da
fé mútuas, estabeleçam seus ―marcos de confiabilidade‖ para o futuro e que o perdão de alguma
forma forneça parâmetros para o não aprisionamento dos sujeitos às consequências de seus atos
passados; ou, negando a pluralidade em sua dimensão radical (mas usando-a entretanto como
meio e mera multiplicidade massiva), recusamos a necessidade de ter que confiar na palavra
alheia e permitindo a fixação de uma hierarquia, qualquer que seja o critério pelo qual é ela
nutrida, verticalizamos as relações humanas e estabelecemo-nos sob relação de governo e
soberania (há ainda, certamente, o problema mais recente da ampla adoção política,
institucionalizada e tudo, dos anseios do animal laborans que citamos anteriormente, mas que
segue também deste ponto de vista a mesma linha de negação da pluralidade).

92 Para um compreensão mais pormenorizada de todo esse desenvolvimento cf. capítulos V e VI de A


condição humana, 2014.
93 Sobre a noção de uma ―liberdade em condição de não-soberania‖, característica do conceito
arendtiano de ação e por conseguinte de toda a teoria política arendtiana, cf. o ensaio Whatisfreedom?
In: Between Past and Future; Eight Exercises in Political Thought, 2006.

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A grande armadilha embutida nesta última opção está, para usar uma metáfora, em que,
talvez cansados de debater-nos perante as vicissitudes do agir humano, estejamos deitando a
descansar nossa existência sob o leito oferecido por Procusto.

Assim, o ponto está em perceber que a ação humana de que se trata aqui é algo bastante
peculiar e extraordinário, que, entretanto, a partir da conformação histórica de comunidades
políticas tornou-se um componente diário da ―vida‖ desses corpos políticos, apenas por meio da
qual sua sustentação se faz no tempo. Em oposição a ela, existe o que poderíamos chamar de
―ação determinada‖, condicionada por motivos e fins, guiada pelo domínio interno do indivíduo
e entendida como um meio de realização deste. Esta é particular e cada um pode e deve ser
devidamente culpado das que venham a causar dano; aquela, sem embargo, é plural e diz
respeito à comunidade em geral que se vincula e mantêm unida sob a égide de promessas
mútuas em relação um mesmo propósito, e é por meio dela que escrevemos a história (que nada
mais é do que o grande livro de estórias encenadas da humanidade) nas linhas do tempo.

De tal forma que, se perguntamos pela culpa de um ato ofensivo para com as promessas
que estabelecemo-nos mutuamente enquanto comunidade política, esta caberá àquelx que assim
individualmente agiu; mas se, entretanto, o que queremos saber, é realmente sobre a quem
imputar a responsabilidade pelas nossas ações e decisões políticas, ou mesmo às omissões: claro
está que a responsabilidade é coletiva. Não adianta imputá-la aos ―políticos profissionais‖(coisa
que em si mesma já é uma contradição em termos e deve a qualquer indivíduo ciente da fonte de
onde emana a política, a saber: a pluralidade, soar talvez tão esdrúxula quanto ―triangulo
redondo‖), ou mesmo aos educadores em termos de qualidade de educação, ou ainda aos
médicos em termos de acesso à a saúde, todas as mazelas relativas a organização destes campos
fundamentalmente plurais, serão sempre parte daquilo que compõe nossa responsabilidade
enquanto pertencentes a uma mesma comunidade política.

Sempre que um problema ou uma pergunta tiver, no mínimo calcanhar que seja, do
ponto de vista prático, um cunho político, nenhum indivíduo isolado será suficientemente capaz
de respondê-la. É que uma resposta a essas questões depende sempre da reunião, participação e
consideração recorrente de muitas e nunca pode ser dada por ―políticos profissionais‖ ou
teóricos de qualquer área que seja. Não é uma questão de técnica ou habilidade, não é uma
questão de força ou audácia, mas de pluralidade e responsabilidade.

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―Em cada refeição que fazemos juntxs, a liberdade é


convidada a sentar-se. A cadeira permanece vazia,
mas o lugar está estabelecido.‖

René Char

AUTOR:

* Marcus G. M. Santos é graduando em Filosofia pela Universidade Federal da Bahia.

REFERÊNCIAS:

ARENDT, H.; A condição humana. Rio de Janeiro: Editora Forense Universitária, 2014.

___________; As origens do totalitarismo. São paulo: Companhia das Letras, 2012.

___________; Between Past and Future; Eight Exercises in Polítical Thought. London:
Penguin Books, 2006.

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Revista Sísifo – vol. 1, nº 6. Novembro. Ano 2017 - www.revistasisifo.com

Filósofas: invisibilidade e silenciamento


Profa. Dra. Joana Tolentino94
Resumo:
A filosofia identifica-se com um saber crítico de superação do senso comum. Assim,
podem causar estranhamento os inúmerossilenciamentos e invisibilizações operados
pela tradição filosófica ocidental e disseminados por seu ensino. A filosofia segue uma
longa trajetória histórica de exclusões de gênero, grupos étnicos, localidades
geográficas. Estas práticas são produto dacolonialidade de saberes e poderes,
imbricados com a colonialidade do ser, que nega existência às subjetividades
historicamente objetificadassob eixos de opressão como raça, gênero, classe,
sexualidade. O objetivo deste escrito é propor o reconhecimento desta violência do
cânone filosófico como prática epistemicida, em especial no que se refere ao recorte de
gênero e sua relação com a colonialidade. A história dessa exclusão, ao negar existência
epistêmica aoutras matrizes de produção filosófica, retirando seus lugares de fala,
deslegitima saberes e ratifica um padrão hegemônico eurocentrado. Adota-se aqui a
interlocução com algumasfilósofas, em especial latino-americanas, a fim de evidenciar a
violência com que opera o cânone filosófico, responsável peloepistemicídio de
mulheres, africanos, lationamericanos, indígenas. Este escritovaloriza práticas
educativas descolonizadoras, que tensionemo cânone filosófico, como potentes para
abrirfissuras e inscreverreexistências, no campo das micro-resistências localizadas.

Palavras-chave: filósofas, feminismo, cânone filosófico, epistemicídio.

Filosofia e colonialidade
A filosofia constitui muito de sua identidade em contraposição aos preconceitos
e ao senso comum, apresentando-se associada a uma atitude filosófica de espanto e
admiração, enquanto atitudes de desnaturalização do que é histórico e construído. Ao
colocar-se em busca do saber, superando a ignorância, não aceitando passivamente que
as coisas simplesmente sejam como são, a filosofia instaura a dúvida, questiona, nos
propõe olhar sob outras perspectivas. Esse corolário que fundamenta o fazer e o saber
filosóficos poderia constituir-se como uma rara unanimidade no âmbito dos que
praticam a filosofia, seja na academia ou em espaços alternativos: quem haveria de
duvidar do caráter investigador e questionador da filosofia?
Em contradição a esse corolário questionador que poderia sugerir liberdade de
pensamento, o que identificamos na instauração da tradição filosófica e seus saberes
legitimados e canonizados, tal como denunciam teóricas e teóricos da descolonização,
são práticas que corroboram com o senso comum de um projeto de poder que tem a
Europa como centro radial e o mundo norte-ocidental como seu modelo a ser

94
Professora do departamento de filosofia do Colégio Pedro II, doutora em filosofia pelo
PPGF-UFRJ.
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expandido. A já conhecida imbricação entre poderes e saberes. Porém parece que


absorvemos esse conhecimento somente enquanto teoria, pois concordamos com as
evidências e os argumentos que o fundamentam, mas simplesmente o catalogamos em
alguma pasta de ‗verdades‘ em nossa mente, já tão cheia de informações. Dificilmente
nos preocupamos em identificar as promiscuidades dessa imbricação na prática, esse
conhecimento teórico da imbricação entre saberes e poderes não se transforma em
conhecimento prático, raramente se torna alvo de nossas lutas efetivas – ação, denúncia,
resistência. Isso apenas se acentua quando essa prática ocorre em nossa área de trabalho,
talvez pela ausência do mínimo de distanciamento, que borra e distorce a própria visão
das coisas.
O que até aqui foi dito em nada destoa da produção epistêmica eurocentrada e
excludente em outras áreas de saber, como a astronomia, a antropologia, a medicina, a
física, a geografia. Mas aqui nos interessa perguntar sobre nosso campo de atuação:
coaduna com o fazer filosófico e sua atitude filosófica crítica essa prática epistemicida,
via silenciamentos e invisibilizações? Qualquer área do saber pode arrogar-se uma
pseudo neutralidade ao compor seus recortes curriculares e de pesquisa, ao eleger certos
autores, geralmente em detrimento das autoras, mas sabemos que essa neutralidade não
existe e que somos perpassadas a todo instante por linhas de força e jogos de poder que
silenciam ou excluem certas vozes e conteúdos, na mesma medida em que reificam ou
canonizam outras.
O que vemos na filosofia, sua tradição e ensino é a hipervalorização da produção
filosófica oriunda do continente europeu, vocacionado para a filosofia mais
especificamente em sua porção central e ao norte, com foco na Alemanha, França e
Inglaterra - não surpreende o quanto isso reforça o eixo dos países europeus dominantes
desde a alta modernidade. Foi no projeto da modernidade que se consolidou a produção
filosófica européia do conhecimento, após seu desenvolvimento europeu na Grécia
antiga, posterior pólo cultural fomentador e nutridor da sociedade judaico-cristã, alguns
séculos antes do advento do cristianismo. Foi na esteira desse projeto de modernidade,
baseado na expansão colonial, pilhagem, domínio de territórios e extermínio de seus
povos originários, que a filosofia (aliada a outras ciências que neste momento se
especializavam e demarcavam seus limites no interior da cultura européia), passa a
integrar todo um simbólico que sustenta, legitima e justifica as práticas de
colonialidade. Este simbólico é voltado para a expansão de um padrão hegemônico que
até hoje coloca à margem formas distintas de ser e de viver, para além do modelo

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europeu exportado e globalizado em distintos momentos dos processos de


colonialidade– urbanizado, industrial, branco, capitalista, patriarcal, judaico-cristão,
heteronormativo (monogâmico, monoteísta, monocromático, em suma, monótono).
Sabemos que [n]o colonialismo europeu (...) o racismo se constituía
como a ‗ciência‘ da superioridade eurocristã (branca e patriarcal), na
medida em que se estruturava o modelo arianoque viria a ser não só o
referencial das classificações triádicas do evolucionismo positivista
das nascentes ciências do homem, como ainda hoje direciona o olhar
da produção acadêmica ocidental. Vale notar que tal processo se
desenvolveu no terreno fértil de toda uma tradição etnocêntrica pré-
colonialista (séc.XV–séc.XIX) que considerava absurdas,
supersticiosas ou exóticas as manifestações culturais dos povos
‗selvagens‘. Daí a ‗naturalidade‘ com que a violência etnocida e
destruidora da força do pré-colonialismo europeu se fez abater sobre
esses povos. No decurso da segunda metade do séc. XIX, a Europa
transformaria tudo isso numa tarefa de explicação racional dos (a
partir de então) ‗costumes primitivos‘, numa questão de racionalidade
administrativa de suas colônias. Agora, em face à resistência dos
colonizados, a violência assumirá novos contornos, mais sofisticados;
chegando, às vezes, a não parecer violência, mas ‗verdadeira
superioridade‘. Os textos de um Fanon ou de um Memmi demonstram
os efeitos de alienação que a eficácia da dominação colonial exerceria
sobre os colonizados. (GONZALEZ, Lélia, 1988, p.71)

É travestido da ‗verdadeira superioridade‘ proveniente de sua gênese européia,


branca e heteropatriarcal (matriz, metrópole, centro do poder colonial) que os discursos
filosóficos europeus modernos atingem sua máxima eficácia de dominação, via
alienação, sua legitimidade e validade universais. Isso ocorre via mitificação, com dois
aspectos relevantes: i) o aspecto religioso-cristão: com uma representação e a força, pela
primeira vez na Europa, de uma divindade monoteísta, branca, masculina e
antropomórfica, excluindo natureza, contradizendo toda a tradição anterior politeísta
que relacionava a natureza às deusas, ao feminino, tanto na tradição grega antiga, pagã,
como as tradições celtas e vikings, entre outras (isso sem falar na grande pacha mama
que, como gaia, se confunde com a terra, comum às tradições dos territórios americanos
indígenas pre-colombianos); ii) o aspecto racionalista universal: a racionalidade era
atributo associado especificamente ao homem branco europeu ‗civilizado‘,
‗desenvolvido‘ e constituía o cerne da legitimação de sua percepção de si mesmo
enquanto superior – à natureza e aos demais seres, às mulheres, aos seres de outras
culturas,a outras tradições (que até questionavam se eram realmente humanos) – até
mesmo superiores aos povos do oriente que haviam dominado o território europeu por
séculos no medievo, após a queda do Império Romano.

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Esse aspecto de mitificação da racionalidade logofalocentrada, enquanto única


racionalidade possível, excluindo saberes e epistemologias diversas como ‗outras‘,
míticas, estranhas, ―absurdas, supersticiosas ou exóticas as manifestações culturais dos
povos ‗selvagens‘‖, para usar as palavras, destacadas acima, da filósofa brasileira negra
Lélia Gonzalez. Todas essas estratégias interligadas remetem à valorização da suposta
universalidade desses juízos de valor travestidos em conceitos, sistemas,verdades. Em
última instância, valorizam e legitimam a universalidade do próprio ser, baseada em
uma suposta neutralidade mitificada dos saberes (no princípio era o verbo – entendido
como linguagem, logos, razão – assim começa a bíblia, o livro sagrado dessa tradição).
O que essa mitificação escamoteia, via universalismos, é o apagamento do lugar de fala
e das particularidades do como, onde e por quem são proferidos esses saberes que se
pretendem universais e absolutos - sem tempo nem espaço, sem lugar nem sujeito, sem
geografia ou política, produzidos de maneira ‗desinteressada‘.
Não se trata de uma descrição de ‗como as coisas realmente eram‘ ou
de privilegiar a narrativa da história como imperialismo como a
melhor versão da história. Trata-se, ao contrário, de oferecer um relato
de como uma explicação e uma narrativa da realidade foram
estabelecidas como normativas. (SPIVAK, Gayatri, 2014, p.61-62).

É nessa máscara de neutralidade e universalidade, associadas à racionalidade tal como


limitada por esse projeto colonizador de poder (e saber), que identifico a maior
perversidade do cânone filosófico, na tentativa de construir saberes não-situados,
discursos proferidos por sujeitos abstratos - logo, desinteressados, neutros, sem sotaque.
No privilégio de processos des-historicizantesdos saberes, posto que universais,
atemporais, acima do bem e do mal, processos que perversamente os desligam dos
poderes que lhes são inerentes. Ou então no esforço por historicizá-los em termos
progressivos de uma história única e ascendente, tal como o projeto hegeliano de
evolução e progresso do ocidente, tendo à frente o norte da Europa (quanta
coincidência!) - o que garantiria atingir os mesmos objetivos hegemônicos,reducionistas
da diversidade.
Já de há muito sabemos o quanto isso é fruto de um constructo social e histórico.
Mas é justamente porque somos seres humanos, instrinsecamente espaço-temporais,
culturais e históricos, que esses traços construídos socialmente nos constituem em
tamanha radicalidade. ―(...) a humanidade é coisa diferente de uma espécie: é um devir
histórico; define-se pela maneira pela qual assume a facticidade natural.‖(BEAUVOIR,
Simone, 2009, p.919). Assim, os traços culturais são internalizados tão profundamente

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que instauram-se em nós como hábitos e o hábito funciona tal qual uma segunda
natureza, já nos afirmava Aristóteles. Justamente por isso faz-se ainda mais
indispensável não só o reconhecimento da violência dos processos de colonialidade do
cânone filosófico, como também sua desconstrução, além de ações de reparação, bem
como o fomento de filosofias e intelectuais militantes na construção de discursos
contra-hegemônicos. A negligência quanto a essas ações é ressaltada pela filósofa
indiana GayatriSpivak ao afirmar que ―essa exclusão da necessidade da difícil tarefa de
realizar uma produção ideológica contra-hegemônica não tem sido salutar.‖ (2014,
p.36).
Essas ações se somariam no sentido de abrir caminho para o esgarçamento e a
implosão da tradição excludente da filosofia e seus silenciamentos – assim tambémem
outros saberes, por reverberação e afecção mútua - cujos efeitos são verdadeiros
epistemicídios de etnia, cultura, gênero. Essas ações se somariam, ainda, no sentido da
superação, por cada subjetividade, de tais hábitos. Com essa afirmação objetivo destacar
e ressaltar em relação ao hábito dois elementos conjugados: i) primeiramente a
insistência na necessidade de desnaturalização desses processos e sua identificação
como históricos, algo que pode parecer para lá de óbvio – mas vivemos em tempos em
que têm sido necessário, se não indispensável, dizer o óbvio.
Aliás, a ideia de um ‗instinto‘ criador deve ser abandonada, como a do
‗eterno feminino‘, no velho armário das generalizações. (...) Quanto
ao argumento que se tira do exame da história, acabamos de ver o que
se deve pensar. O fato histórico não pode ser considerado como
definindo uma verdade eterna; traduz apenas uma situação, que se
manifesta precisamente como histórica porque está mudando.
(BEAUVOIR, Simone, 2009, p.916)

ii) em segundo lugar, mas não menos importante, recupero a noção de hábito também
para ressaltar sua dimensão pessoal. Este último elemento com a finalidade de sublinhar
que, a despeito das características sistêmicas e estruturais, também está na esfera de
cada subjetividade sua parcela de responsabilidade sobre a reprodução e a perpetuação
dessas estruturas históricas e seus lugares de privilégio.
Nessa perspectiva, o racismo não é problema de negros, indígenas ou
‗chincanos‘, ao contrário, é um crime da branquitude, com o qual todos os brancos e
brancas, de diferentes períodos históricos e lugares geográficos, em algum momento
tiveram ou terão que fazer seu ajuste de contas. Ainda que esse ajuste seja sempre
precário e insuficiente, posto que a escravização dos povos não-brancos, especialmente
dos africanos, foi um projeto e uma política global e com consequências nefastas até os

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dias de hoje, portanto, requer ações macropolíticas globais. Ainda assim, enfoco a
importância das ações singulares, nas esferas micropolíticas, por serem capazes de
operar reparações localizadas que muito influenciam na vida cotidiana das pessoas.
Reparações capazes de, na perspectiva das mutualidades, inscrever re-existências–
outros modos de existir, resistindo às opressões, criando outras formas de se relacionar
consigo mesmo e com o outro no mundo.
As sociedades que vieram a constituir a chamada América Latina
foram as herdeiras históricas das ideologias de classificação social
(racial e sexual) e das técnicas jurídico-administrativas das metrópoles
ibéricas. Racialmente estratificadas, dispensaram formas abertas de
segregação, uma vez que as hierarquias garantem a superioridade dos
brancos enquanto grupo dominante. (GONZALEZ, Lélia, 1988, p.73)

No mesmo sentido, o patriarcalismo e a misoginia não são ‗problema de mulher‘,


mas sim um conjunto de símbolos, significados e práticas criminosas perpetrado por
alguns, mas perpetuados por todos aqueles que, de algum modo, ontem e hoje,
reproduzem essas estruturas e delas se beneficiam – seja obtendo mais reconhecimento
social e tendo mais acesso a oportunidades, seja recebendo maiores remunerações
salariais para realizar os mesmos trabalhos, seja em sua maior liberdade de ser e de
viver. Os efeitos nocivos dessas práticas criminosas são evidentes, como podemos
identificar na histórica e reincidente opressão de determinados grupos sociais até os dias
de hoje – como é o caso de mulheres, negros, indígenas,dentre inúmeros outros.

Colonialidade e gênero: invisibilização da produção filosófica das mulheres


Adoto neste texto um pequeno recorte no interior da temática de gênero, bastante
ampla, propondo a afirmação e a valorização da presença das mulheres na filosofia,
tanto na produção atual quanto em seu reconhecimento e inserção na tradição histórica
da filosofia. Assim, proponho ampliar o lugar de fala das mulheres na filosofia através
do ensino e difusão do pensamento das filósofas – e aqui, em especial, de filósofas
latinoamericanase a dupla opressão e silenciamento sofridos, tanto no eixo de gênero
quanto na exclusão geográfica/racial/colonial.
Com esse intuito, proponho apontarmos as clássicas questões críticas filosóficas
também para aprópriafilosofia e nos perguntarmos: por que muito pouco ou quase nada
estudamos das mulheres que filosofam ou filosofaram ao longo da história canonizada
da filosofia? Por que nós, filósofas e filósofos da latinoamérica, pretensamente
esclarecidos, em pleno séc. XXI, aprendemos, pesquisamos e ensinamos um saber

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filosófico quase que totalmente falo-euro-branco-centrado (lembrando aqui que as


exceções, raras que são, apenas confirmam a regra)? O quanto temos de nos alienar de
nós mesmas – enquanto mulheres e latino americanas, muitas de nós ‗mujeres de
color‘95 (mulheres historicamente oprimidas como mulheres não-brancas), nos
desidentificando com o que somos, para conseguirmos nos identificar com esse saber
hegemônico, branco, heteronormativo, patriarcal, que é o cânone filosófico? O que há
de opressor nisso – e de auto-opressor posto que reproduzimos as opressões contra nós
mesmas? Ainda mais se pensarmos que, ao reproduzirmos essa perspectiva da filosofia
colonial-patriarcal como hegemônica em nossos escritos e em nossas aulas, somos
agentes importantes para sua transmissão, enraizamento e perpetuação. O quanto, dessa
maneira, contribuímos, nós, professoras e professores de filosofia, para a manutenção de
um senso comum de desvalorização da mulher, de sua capacidade e de seus feitos, ao
longo da história pública comum?Podemos facilmente constatar como e quanto essa
tradição filosófica contribui (e nós também enquanto seus agentes), em última instância,
para a misoginia entranhada nas nossas sociedades, evidenciada pela cultura do estupro
sob a qual vivemos, alicerçada no assédio sexual e moral das mulheres, culminando na
violência e na objetificação de seus corpos e de suas vidas.
Ainda que, enquanto professoras e professores de filosofia jamais tenhamos
desqualificado a capacidade das alunas para a aprendizagem filosófica, seja na educação
básica ou na formação superior, o quanto alimentamos as opressões de gênero ao
transmitirmos um saber que parece interditado às mulheres, posto que não as escutamos,
totalmente identificado com o sucesso de mais de vinte séculos de misoginia epistêmica.
Isto é, do genocídio epistêmico das mulheres, operado ao longo de toda a história norte-
ocidental unívoca heteropatriarcal hegemônica, através do apagamento e da total
desqualificação da capacidade das mulheres de produzir conhecimento. Elas foram
assim restringidas e reduzidas ao nível do privado, do familiar, excluídas do âmbito
público, político e epistêmico, aprisionadas na doxa, reduzidas ao senso comum. Ainda
que possamos, enquanto filósofas e filósofos, ao estudar e ensinar o pensamento dos
filósofos homens clássicos da tradição nos atenhamos a alguns possíveis aspectos mais
libertários de suas teorias, se sequer mencionamos o patriarcalismo inerente a muitos de
seus escritos, estamos contribuindo para a naturalização das opressões de gênero – a

95
Se houver interesse no aprofundamento deste conceito ver: LUGONES, María. Colonialidad y gênero.
Tabula Rasa. Bogotá - Colombia, n.9, julio-diciembre 2008.

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manutenção da hegemonia de um binarismo predeterminado, heteronormativo,


falocêntrico. Afinal, em algum momento a/o estudante que está lendo Kant, Nietzsche,
Platão poderá acessar suas falas patriarcais e até mesmo misóginas, ainda que o estudo
esteja voltado, por exemplo, para o conceito de liberdade ou de maioridade, em Kant –
algo que o filósofo alemão, com esforço, concede ser passível de acontecer (pasme!) até
mesmo às mulheres.
É impossível precisar e delimitar o quanto xs alunes se aprofundam em suas
leituras a partir de seu interesse pessoal – mesmo que se esteja focando no valor da
natureza ou da experiência, para Aristóteles, ou ainda na crítica da desigualdade entre os
homens, em Rousseau. É impossível prever quando se terá acesso, por exemplo, às
partes do Emílio em que Rousseau descreve a educação das mulheres sob uma
perspectiva bastante misógina, que o filósofo iluminista defende neste livro largamente
utilizado nas disciplinas de filosofia da educação, porém raramente questionado em sua
misoginia. Não defendo aqui que se exclua esses autores da tradição filosófica, mas que
capacitemos as novas gerações, através de práticas educativas decoloniais, para que,
inserindo os filósofos em seus contextos, possam analisar, entender, discutir e criticar
seus discursos. Não se pode manter a invisibilização das filósofas no interior do cânone
filosófico, na história da filosofia, na mesma medida em que não é mais possível ‗jogar
para debaixo do tapete‘ toda a enorme sujeira de séculos e mais séculos de misoginia
epistêmica, patriarcalismo, opressões binárias de gênero. É também através de nossas
ações que corremos o risco de manter, sendo cúmplices, a opressão histórica de gênero
contra as mulheres, cujo efeito são os elevados e crescentes índices de sofrimento de
seus corpos, com elevadíssimas estatísticas que configuram o feminicídio em nossas
sociedades, na contemporaneidade, em pleno séc.XXI, no interior de um modelo de
capitalismo que se diz ‗avançado‘.
É bem verdade que a invisibilização da produção das mulheres não é algo que se
possa datar e circunscrever ao projeto eurocentrado capitalista colonial, urbano-
industrial da modernidade. Porém, o que muitas teóricas feministas têm demonstrado
em seus estudos é que a intensidade da exclusão política, econômica e epistêmica da
mulher das sociedades, bem como a padronização unívoca, hierárquica e opressora da
relação binária de gênero entre homens e mulheres são elementos identificados em
práticas que remontam ao longo período de acumulação primitiva de capital,
coadunando-se com o projeto científico-tecnológico-filosófico-colonial. É nessa época
que se registra a caça às ‗bruxas‘ – perseguição sem antecedentes das mulheres que

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viviam livres, sem famílias tradicionais nucleares, em especial aquelas que possuíam
terras, fato social que ocorreu principalmente no interior dos limites geográficos da
Europa. Isso aconteceu na mesma época dos enclousers que, com sua política de
cercamentos, pôs fim às terras comunais e expulsou muitos camponeses livres do
campo, estabelecendo definitivamente o modelo de família nuclear burguesa96.
É nessa esteira que pesquisadoras dos estudos da mulher, de diferentes áreas,
como também da filosofia, vão defender a relação intrínseca entre gênero e
colonialidade, interseccionando os eixos de opressão de gênero, raça, classe e
sexualidade. Objetivam, dessa forma, instrumentar-se para melhor compreender e
interpretar o modelo de opressões de gênero que vivenciamos nos últimos séculos, no
qual estamos inseridas desde o advento do projeto colonial europeu moderno, cuja
faceta atual majoritária se mostra no modo do imperialismo capitalista da globalização.
Por um lado a consideração de gênero como imposição colonial – a
colonialidade de gênero em sentido complexo (...). Por outro lado, (...)
chegar a entender a profundidade e o alcance da imposição colonial.
Mas não podemos fazer um sem o outro. E, no entanto, é importante
entender até queponto aimposição deste sistema de gênero foi tanto
constitutiva da colonialidade do poder como a colonialidade do poder
foi constitutiva deste sistema de gênero. A relação entre eles segue
uma lógica de constituição mútua. (...) Penso que o que é novo aqui é
minha abordagem da lógica da interseccionalidade e meu
entendimento da mutualidade na construção da colonialidade do poder
e do sistema de gênero colonial/moderno. Creio que ambos os
modelos epistêmicos são necessários, mas só a lógica da construção
mútua é a que dá lugar para a inseparabilidadeda raça e do gênero.
(LUGONES, María, 2008, p.93)

Assim como evidencia a citação acima destacada, a filósofa argentina MaríaLugones


nos desafia a compreender as relações entre colonialidade e gênero em um sentido mais
complexo, propondo a lógica da construção mútua para entendermos a inseparabilidade
das opressões de raça e gênero no projeto colonial e nas práticas de colonialidade
enraizadas, com pequenas variações, até a atualidade.
Esta filósofa trabalha, no texto Colonialidad y género, com narrativas sobre
diversos grupos de povos originários das Américas e com pesquisas da cultura africana
Yorubá (fazendo menção aos estudos, respectivamente, de Paula Gunn Allen e
OyéronkéOyewùmi), a fim de provar a diversidade de relações de gênero que havia
nesta pluralidade de matrizes culturais. Desse modo, corrobora com Gayatri,Spivak,

96
A esse respeito ver FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e
acumulação primitiva. São Paulo: Elefante, 2017.
87
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quando ela afirma que ―deve-se, não obstante, insistir que o sujeito subalterno
colonizado é irremediavelmente heterogêneo.‖ (2014, p.73). María Lugones salienta que
a maioria desses grupos culturais adotava relações de gênero horizontais, não
hierarquizadas, diferenciadas em suas atividades, sim, mas não pré-determinadas
biologicamente (poderiam até mesmo ser escolhidas através de desejos, sensações,
sonhos). Tampouco tinham suas atividades desqualificadas ao serem identificadas com
um dos gêneros – evidenciando a não-hierarquização. Assim, cozinhar, limpar a casa ou
o conjunto dos trabalhos domésticos era, em geral, atribuição das mulheres nestas
culturas. A diferença é que tais atividades não eram consideradas desprezíveis a ponto
de sequer terem a sua mais-valia remunerada, em um mundo capitalista cuja estrutura se
baseia – ainda que só para alguns – na remuneração, via salário, pela venda da força de
trabalho, configurando não mais trabalho escravo ou servil, porém assalariado. María
Lugones relata, ainda, que muitos desses grupos culturais trabalhavam com a ideia de
‗terceiro gênero‘, que significaria não mais um gênero definido, mas sim gênero
indefinido, isto é, diferentes possibilidades de configurações de gênero baseadas na
indefinição. Desse modo, pareciam contar com a abertura para múltiplas possibilidades
de vivenciar a identificação de gênero, impensadas até então. Toda essa gama de
possibilidades alternativas de conceber e se inserir no mundo, de outras formas de
existência, se romperam com o projeto hegemônico e excludente da modernidade.
Assim podemos dimesionar
(...) o alcance das mudanças na estrutura social que foram impostas
pelos processos constitutivos do capitalismo
eurocentrado/colonial/moderno. Essas transformações introduziram,
através de processos heterogêneos, descontínuos, lentos, totalmente
permeados pela colonialidade do poder, que violentamente
inferiorizaram as mulheres colonizadas. Entender o lugar do gênero
nas sociedades precolombianas nos muda o eixo de compreensão da
importância e da magnitude do gênero na desintegração das relações
comuns e igualitárias, do pensamento ritual, da autoridade e de um
processocoletivo de tomada de decisões e da economia. (LUGONES,
María, 2008, p.92-93)

No percurso que faz, a filósofa argentina nos mostra o quanto as práticas coloniais
instauraram as categorias binárias estratificadas e hierarquizadas de gênero masculino e
feminino – que nem faziam sentido serem adotadas anteriormente – em muito como
estratégia de dominação colonial. Assim, via fragmentação social, cindiam os grupos
comunitários, enfraqueciam a força cosmopolítica das mulheres e suas importantes
vozes nos conselhos, assim como das deusas a elas identificadas (da caça, da fertilidade,

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da terra, da abundância), o que possibilitou a aliança com os homens e o genocídio real


e/ou epistêmico desses povos, numa clássica prática de guerra baseada no ‗fragmentar
para dominar‘.
Alinhavando considerações finais: voz e visibilidade das filósofas latino-
americanas em práticas decoloniais no ensino de filosofia
Este texto, em seu viés teórico-crítico, objetivou denunciar as práticas
epistemicidas e em especial a misoginia epistêmica da tradição filosófica patriarcal,
heteronormativa, branca, europeia. Em um viés mais prático, em parceria com algumas
filósofas e adotando a perspectiva dos estudos decoloniais, esse escrito visa o
empoderamento das mulheres que atuam tanto na filosofia e seu ensino, como também
na filosofia da educação, a partir da proposição de ações práticas de descolonização
simbólica no campo educativo. Assim, adotamos como perspectiva para as aulas de
filosofia, seja na educação básica ou no ensino superior, a valorização de práticas de
educação descolonizadoras que atuam no sentido da desconstrução do cânone filosófico
excludente, dando voz e visibilidade, no interior do recorte de gênero, às mulheres
filósofas, em sua diversidade cultural, histórica e geográfica. Nesse sentido, incluímos
também – naquilo que se convencionou considerar tradição filosófica – as filosofias
orientais, indígenas, africanas, entre outras tradições historicamente marginalizadas.
Desse modo, intenta-se retirar da esfera da colonialidade tais produções de saberes
historicamente oprimidas e desqualificadas, recuperando e legitimando através de
pesquisas, publicações, organização de eventos a existência desses saberes, nomeando-
os e ratificando-os como filosóficos.
(...) se sustenta a necessária inclusão no polífono filosófico das
variáveis do poder e adominação que nos países da América, Ásia e
África se determinaram como ‗condição colonial e pós-colonial‘ desde
um logos étnico - yandrocêntrico, como tem ocorrido com Elas -
devem impregnar hoje a filosofia e as ciências sociais, incluída toda a
teoria sobre a cidadania, para evitar que as teorias sejam novamente
vítimas da 'violência epistemológica‘ exercida por um saber
pretensamente hegemônico que trata de impor seu paradigma.
(BONILLA, Alcira, 2010, p.19).

Assim, faz-se necessário e urgente o tensionamento em recortes curriculares e


programas de curso, planejamentos de aulas, publicações e suas temáticas, pela inclusão
definitiva da produção das filósofas, ao longo da história da filosofia, bem como da
difusão e ensino das filosofias consideradas pelo crivo colonial como ‗marginais‘ (leia-
se, de matriz africana, oriental, dos povos originários – relegados a serem ‗outros‘

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saberes, ‗outras‘ epistemologias). Essa é uma atitude de resistência aos processos de


colonialidade e seus silenciamentos. Mas é também uma ação no sentido do
fortalecimento de reexistências, de contribuições para uma educação libertária que
possa inserir na existência e no simbólico das subjetividades presentes nas novas
gerações, olhares e interpretações de mundo plurais, baseadas na diversidade, no
diálogo intercultural, para além das bordas da moldura da colonialidade. ―(...) as
alternativas à epistemologia dominante partem, em geral, do princípio [de] que o mundo
é epistemologicamente diverso e que essa diversidade, longe de ser algo negativo,
representa um enorme enriquecimento das capacidades humanas‖ (SANTOS, B. e
MENESES, Maria Paula, 2010, p.18).
Ressalta-se aqui a importância do compartilhamento de saberes baseados no
diálogo e na troca horizontal, no modo da interculturalidade, de conhecimentos, cuja
potência está reconhecida na própria diversidade sobre a qual se baseiam e
na busca por uma universalidade aberta, horizontal.
Este modelo de filosofia intercultural concebe a filosofia segundo a
metáfora da ‗tradução‘, talvez a operação humana que maiores trocas
tenha gerado. Com esta metáfora grávidase representa a filosofia, mais
que como diálogo às vezes dissimétrico entre mestres e discípulo,
como polífono de razões possíveis entre discursos situados e
contextuais de diversa índole que, pretendendo cada um deles
universalidade, aspiram deste modo a uma universalidade aberta, a
que a autora deste texto denomina ‗universalidade de horizonte‘.
Desde esta perspectiva, os critérios de verdade não estão dados a
priori pela filosofia europeia no continente primeiro y depois nos
países coloniais. (BONILLA, Alcira, 2010, p.19).

É o que nos propõe a filósofa argentina Alcira Bonilla, lançando outra acepção possível
para o termo ‗universal‘, tão caro à tradição filosófica. Em sua criação conceitual, a
filósofa latino americana o resgata num sentido intercultural que reconhece seu valor
enquanto universal, mas um universal situado, alargado, ampliado a ponto de ser capaz
de comportar a existência de outros universais, configurando-se, portanto, em um
universal aberto ou em uma ‗universalidade de horizonte‘, valendo-me das palavras da
filósofa supra-citada.
Nessa mesma seara, ousamos propor a reinvenção de práticas de ensino de
filosofia que a façam ir além da leitura, explicação e repetição de argumentos dos
mesmos textos já canonizados, focando na valorização de discursos e epistemologias
alternativas, diversas e potencializadoras. Propondo-nos também a travar diálogos
horizontais, plurais e instigantes entre discípulos e mestres, flertando com a arte,

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criando relações entre ciência, filosofia e arte, sem hierarquizações, implodindo os


limites entre os saberes, fora das gavetas e suas binárias docotomias, ampliando
linguagens e interseções.

REFERENCIAS:

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Aires: Miño y D‘Ávila; UNSAM Edita, 2015.

BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo. São Paulo: Nova Fronteira, 2009.

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http://www.goethe.de/mmo/priv/15259710-standard.pdf [último acesso em 20-07-2017]

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SPIVAK, Gayatri. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014.

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Pequena biografia da autora:

Docente-pesquisadora do departamento de filosofia do Colégio Pedro II (instituto da


rede federal da educação básica técnica e tecnológica). Graduadaem filosofia pela
UFRJ, mestre e doutora em filosofiapelo PPGF-UFRJ. Defendeutese de doutorado
sobre filosofia e ensino, focada na crítica à colonialidade do cânone filosófico.
Coordenadora adjunta do Grupo de Pesquisa Filosofias Decoloniais (CP2-CNPq), é
também membro do GT Filosofar e ensinar a filosofar, da ANPOF. É mãe de Teo e
Morgana e militante do coletivo feminista de educadoras Escola sem machismo. Tem
atuado no campo dos estudos decoloniais, com o compromisso das pesquisas ativistas,
na interface entre gênero e colonialidade.

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A atualidade do pensamento de Hannah Arendt em tempos de


subtração de direitos

Raimundo Expedito dos Santos Sousa97


Elielson Martins Ferreira Filho98

A essência dos Direitos Humanos é o direito a ter direitos


Hannah Arendt

RESUMO: Este artigo examina as contribuições de Hannah Arendt para a noção de


direitos humanos em face da violação perpetrada contra estes na conjuntura de
austeridade econômica imposta aos brasileiros nos últimos anos. Ao enfocarmos
algumas das proposições da hermenêutica arendtiana acerca das relações de poder
travadas no interior do Estado-nação, notadamente o totalitarismo, discutimos a
aproximação entre temas candentes tanto para o campo da Filosofia quanto para a seara
do Direito, tomando como eixo a noção de direitos humanos. Desse modo, examinamos
em que medida a pensadora lança luzes sobre questões contemporâneas como a
subtração de direitos na atual política de austeridade adotada pelo atual governo no
Brasil.

Palavras-chave: Hannah Arendt, Direitos humanos, Austeridade.

Introdução

A globalização econômica emergiu como promessa de avanço na consolidação


dos direitos humanos na medida em que a acessibilidade mais ampla aos mercados
internos beneficiaria os Estados e fomentaria a concretização de direitos econômicos e
sociais mediante desenvolvimento de programas estatais que assegurariam aos cidadãos
benefícios como trabalho, saúde, educação e outros bens e serviços essenciais. Todavia,
os efeitos colaterais da globalização se fizeram notar no modo como a hybris
desenvolvimentista que se lhe seguiu instigou a rapina de grupos hegemônicos sobre
outros por meio da própria globalização, instrumentalizada como tecnologia de controle.
Noutros termos, países economicamente periféricos se tornaram mais dependentes dos
centrais, em razão da importância assumida pela exportação e, por conseguinte, mais
vulneráveis às contingências dos mercados internacionais.

97
Doutorando em Teoria da Literatura e Literatura Comparada (Universidade Federal de
Minas Gerais).
98
Mestre em Educação (Universidade Federal do Rio de Janeiro). Coordenador do curso
de Administração da Faculdade do Centro Educacional Mineiro (FACEM).
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A recessão econômica mundial, em curso desde 2008, exerce sobre esses países,
dentre os quais o Brasil, forte empecilho para a consolidação de direitos devido não
apenas a flutuações do mercado externo, mas, também, a medidas como controversos
ajustes fiscais. A austeridade, adotada pelos governos como panaceia para o ―mal
humor‖ do mercado, tem como imperiosa contraparte a inobservância aos direitos
humanos, uma vez que a obsessão estatal por estabilidade financeira implica subtração
de recursos para áreas já historicamente sacrificadas, como saúde e educação.
Em face desse panorama, este artigo visa à compreensão da confluência
epistemológica entre Filosofia e Direito mediante exame das reflexões de Hannah
Arendt sobre a noção de direitos humanos, cara a ambos os campos epistêmicos e
particularmente imperativa como tópico de discussão em nosso contexto histórico.
Nesse cotejamento, interessa-nos revisitar algumas contribuições da filósofa alemã para
pensarmos questões contemporâneas candentes, como a subtração de direitos na atual
política de austeridade econômica adotada pelo atual governo no Brasil.

Os direitos humanos

Em explanações sobre a nomenclatura ―direitos humanos‖, conceituações as


mais distintas são utilizadas conforme as especificidades históricas e culturais que
balizam as matrizes epistêmicas. De início, bastava-se a acepção de direitos naturais,
porquanto se lhe imputavam tanto universalidade quanto fixidez, quer devido à
natureza humana ser moldada à imagem e semelhança de Deus, quer devido à
percepção de ser ela ontologicamente racional. À proporção que se medravam novos
direitos em consonância com o transcurso da história, regimes jurídicos ocidentais
tenderam à adoção do termo direitos do homem, tal como definido quando da
Revolução Francesa. Todavia, em meados no século XX, a expressão foi proscrita em
favor de uma terceira, direitos humanos, mais universalizante porque despojada de
conotação androcêntrica. Malgrado essa terminologia seja suscetível a críticas, quer
porque todos os direitos são necessariamente humanos, quer porque tão-somente os
seres humanos têm personalidade jurídica, seu emprego é conceptualmente operacional
para designar o conjunto de direitos fundamentais necessários a uma vida digna.
Para fins didáticos, é aceitável o emprego colateral das nomenclaturas direitos
humanos fundamentais e direitos humanos, visto que, sem embargo de tratarem de
mesma matéria, apresentam ligeira distinção perceptual, pois ―a fórmula

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direitoshumanos, por suas raízes históricas, [é] adotada para referir-se aos direitos da
pessoa humana antes de sua constitucionalizaçãoou positivação nos ordenamentos
nacionais‖, ao passo que ―direitosfundamentaisdesignam os direitos humanos quando
trasladados para os espaços normativos‖ (BONAVIDES, 2002, p. 234). Em que pese a
terminologia empregada, o conjunto de direitos inerentes à pessoa humana é o
fundamento de todos os direitos, já que o ser humano deve pairar acima de toda e
qualquer organização social, política, econômica, cultural ou religiosa. Nesta acepção,
todos os direitos, quer sejam inerentes à espécie humana, quer sejam corolários de
conquistas logradas no curso da humanidade, são considerados direitos humanos.
Todavia, circunscrever o que são direitos humanos também constitui desafio
complexo. Doutrinadores se lhe definem, grosso modo, como o conjunto de instâncias
institucionais que paulatinamente consubstanciam, em cada período histórico,
demandas de determinados grupos por dignidade, isonomia e liberdade que devem ser
incorporadas por ordenamentos jurídicos tanto nacionais quanto internacionais (PÉREZ
LUÑO, 2002). Desse modo, enquanto filósofos e doutrinadores de inflexão
jusnaturalista proposta por Locke e Montesquieu sustentam que os direitos humanos
são apenas os direitos naturais, isto é, aqueles inerentes à própria qualidade de pessoa
humana enquanto membro de uma espécie, outros tantos concebem os direitos humanos
sob envergadura mais ampla, de sorte a não passar ao largo dos direitos resultantes de
evoluções de toda sorte por que a humanidade tem passado. Afinal, os direitos, longe de
medrados num vácuo temporal e constitutivamente imutáveis, possuem historicidade e,
por isso, caracterizam-se pela mobilidade. ―Os direitos do homem, por mais
fundamentais que sejam, são direitos históricos‖, explica Bobbio (1996, p. 45), porque
―nascidos em certas circunstâncias, caracterizados por lutas em defesa de novas
liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e
nem de uma vez por todas‖.
Formalmente, a história dos direitos humanos se fundou com o balizamento do
poder do Estado pela Lei. Contudo, essa perspectiva institucionalista desconsidera o
legado de povos que não conheceram a técnica de limitação do poder do Estado, mas,
desde tempos imemoriais, privilegiavam a pessoa humana em seus costumes e
instituições. No curso da história, diversas iniciativas sugerem a existência de
cometimento com os direitos inerentes à pessoa humana, haja vista o Código de
Hamurabi (Babilônia, século XVIII a.C.); o pensamento de Amenófis IV (Egito, século

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XIV a.C.); a Filosofia de Mêncio (China, século IV a.C.); a República de Platão


(Grécia, século IV a.C.); e o Direito Romano (HERKENHOFF, 1994).
Entretanto, a solidificação dos direitos humanos no Ocidente adquiriu realmente
musculatura sob impacto das revoluções estadunidense (1776) e francesa (1789). Com
a Declaração de Independência dos Estados Unidos da América, todos os estados do
país estabeleceram organização própria, assentada num conjunto de princípios com
vistas à salvaguarda dos direitos humanos. Por seu lado, a Revolução Francesa fundou
suas bases no Iluminismo, perspectiva filosófica cujos talantes incluíam o uso da razão
como forma de desafiar as autoridades eclesial e monárquica. Até então, bem o
sabemos, vigorava o Ancien Régime, no qual a ascensão dinástica se impunha sob
pretexto de que o Rei era representante humano de desígnios divinos transcendentes.
Com o desmantelamento desse regime pela república, cuja denominação de origem
latina res publica (coisa pública) denota sua configuração como governo do povo e
para o povo, propalava-se a garantia, a todos os homens, do exercício da cidadania, sob
a égide dos princípios iluministas de Liberté, Igualité e Fraternité. Uma das principais
contribuições da Revolução Francesa para os direitos humanos consistiu, ainda em sua
primeira dentição, na Déclaration des Droits de l’Homme et du Citoyen, de 1789, cujo
preâmbulo anunciava os ideais libertários e liberais e os direitos fundamentais da
humanidade. Pela primeira vez, estabeleceu-se distinção entre homem (detentor de
direitos naturais e inalienáveis) e cidadão (possuidor de direitos descritos em lei e
garantidos pelo direito positivo). A reverberação desse manifesto teve forçoso impacto
na concretização dos direitos humanos, visto que inspirou diversas constituições.
Entre o anoitecer do século XIX e o alvorecer do XX emergiram, juntamente
com a eclosão da Primeira Guerra Mundial, os primeiros precedentes históricos para a
internacionalização dos direitos humanos, assinalados pelo engendramento dos Direitos
Humanitários, da Liga das Nações e da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
Se bem que esses institutos hajam concorrido para o processo de internacionalização
dos direitos humanos, não foi antes de meados do século XX, quando da Segunda
Guerra Mundial e com o escopo de resguardar os indivíduos das atrocidades do
Holocausto e das formas de violência cometidas pelos nazistas contra os judeus, que se
enrobusteceram as preocupações em torno da proteção internacional aos direitos
humanos (COMPARATO, 2003). Assim, sob influxo da Declaração dos Direitos do
Homem e do Cidadão se fez, em 1948, a Declaração Universal dos Direitos Humanos,
anunciada pela Organização das Nações Unidas (ONU), estabelecida havia três anos. A

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Declaração lograria tal importância que representaria o ápice do humanismo político da


liberdade:

Trata-se de um documento de convergência e ao mesmo passo de uma


síntese. Convergência de anseios e esperanças, porquanto tem sido,
desde sua promulgação, uma espécie de carta de alforria para os povos
que a subscreveram, após a guerra de extermínio dos anos 30 e 40,
sem dúvida o mais grave duelo da liberdade com a servidão em todos
os tempos. Síntese, também, porque no bronze daquele monumento se
estamparam de forma lapidar direitos e garantias que nenhuma
Constituição insuladamente lograra ainda congregar ao redor de um
consenso universal (BONAVIDES, 2002, p. 527).

Ou, no dizer de Bobbio, com a Declaração Universal

os direitos do homem nascem como direitos naturais universais,


desenvolvem-se como direitos positivos particulares, para finalmente
encontrarem sua plena realização como direitos positivos universais.
A Declaração Universal contém em germe a síntese de um movimento
dialético, que começa pela universalidade abstrata dos direitos
naturais, transfigura-se na particularidade concreta dos direitos
positivos, e termina na universalidade não mais abstrata, mas também
ela concreta, dos direitos positivos universais (BOBBIO, 2004, p. 30).

Não obstante, os direitos humanos estão inscritos num combate de ideias na


medida em que sua matéria não se desenvolveu de forma linear e contínua, mas em
movimentos descontínuos que expressam os conflitos e lutas políticas presentes na sua
definição e consolidação. Portanto, merece relevo a atualidade das ponderações
filosóficas de Hannah Arendt, pensadora de origem judia cujo testemunho dos horrores
de seu tempo impactou largamente suas reflexões em torno dos direitos humanos.

Hannah Arendt e os direitos humanos

Como sabemos, Arendt publicou obras respeitáveis sobre filosofia política, tais
como As Origens do Totalitarismo e A Condição Humana, que, dentre outros de
menorrelevo, renderam-lhe deferência perante os intelectuais do pensamento político
ocidental. Graças à sua contribuição para o pensamento filosófico e político do século
XX, tornou-se conhecida pela alcunha de pensadora da liberdade, status erigido sobre
uma consistente carreira filosófica baseada em ponderações nas quais une pensamento e
experiência. No largo escopo de seu legado escritural, a filósofa judia-alemã se propôs
a compreender o totalitarismo do século XX não pela reconstrução histórica dos fatos,

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mas, sobretudo, por uma reflexão filosófica sobre o poder, o direito e a condição
humana.Essa tríade conceitual é plasmada pela noção de igualdade, tão cara às
digressões de Arendt, que, numa de suas obras seminais, ressalta:

A igualdade, em contraste com tudo o que se relaciona com a mera


existência, não nos é dada, mas resulta da organização humana,
porquanto é orientada pelo princípio da justiça. Não nascemos iguais:
tornamo-nos iguais como membros de um grupo por força da nossa
decisão de nos garantirmos direitos reciprocamente iguais (ARENDT,
1989, p. 335).

A noção de igualdade se atrela, por evidente, à concepção de cidadania,


porquanto somente dessa conjunção se estabelece efetivamente a democracia como
regime político. Com efeito, na filosofia arendtiana, a cidadania só é medrada, em sua
plenitude, mediante participação isonômica dos concidadãos na res publica, de sorte
que o acesso de todos à isegoria é conditio sine qua non para a consubstanciação de um
Estado democrático. Afinal, não é senão por meio da palavra e da agência que nos
inserimos no mundo e afirmamos, a um só tempo, nossa igualdade e nossa diferença.
Noutros termos, somos iguais na medida em que partilhamos dos mesmos direitos e
diferentes porque mesmo a concepção de uma coletividade una e indivisa não deve
proscrever a individualidade de cada membro como indivíduo dotado de personalidade
singular. Assim,

já que o país é grande demais para que todos nós nos unamos para
determinar nosso destino, precisamos de um certo número de espaços
públicos dentro dele. As cabines em que depositamos as cédulas são,
sem sombra de dúvida, muito pequenas, pois ali só há lugar para um.
Os partidos são completamente impróprios; nele, a maior parte de nós
é apenas o eleitorado manipulado. Mas se apenas dez de nós
estivermos sentados em volta de uma mesa, cada um expressando sua
opinião, cada um ouvindo a opinião dos outros, então uma formação
racional da opinião pode ter lugar através da troca de opiniões. Lá
também ficará claro qual de nós é o mais indicado para apresentar
nossos pontos de vista diante do mais alto conselho seguinte, onde
nossos pontos de vista serão esclarecidos pela influência de outros
pontos de vista, revisados, ou seus erros demonstrados (ARENDT,
2010, p. 200).

Um tema perpassa toda a obra da filósofa e constitui sua preocupação nuclear,


qual seja, o homem e os efeitos por ele sofridos em regimes políticos autocráticos ou
etnocêntricos e em sociedades balizadas pela massificação. Esses elementos refletem as
experiências vividas por Arendt, como, por exemplo, a fuga do regime nazista alemão,

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sua experiência no auxílio a refugiados na França e seu exílio nos Estados Unidos.
Essas situações lhe propiciaram alinhavar reflexões acerca, sobretudo da existência e da
efetividade dos direitos humanos.Para Arendt, os direitos humanos, na forma que foram
idealizados século XVIII, já trazem consigo um problema em sua concepção, na
medida em que se tinha em mira um ser humano ―abstrato‖. Os trágicos eventos
ocorridos na primeira metade do século XX assinalavam que a concepção de direitos
humanos, fincada na presumida existência de um ser humano como tal, colapsaria no
momento mesmo em que os quantos lhe haviam rendido alvíssaras eram agora
confrontados com pessoas que, de fato, encontravam-se despojadas de todos os
atributos possíveis, exceto o fato de ainda serem humanos. A seu ver, há um direito
universal que deve ser respeitado por todos, independentemente de sua condição etno-
racial, geográfica ou religiosa e que não deve ser mensurado por qualquer outro juízo,
exceto pelo critério de ser humano: o ―direito de ter direitos‖. Sob esse prisma, ao passo
que outros direitos sofrem mutações conforme circunstâncias históricas, há um direito
que não germina no interior da nação e, portanto, carece de mais do que garantias
nacionais (ARENDT, 1949).
Essa preocupação da filósofa estava ligada, possivelmente, à condição dos
judeus na Alemanha nazista e nos fluxos migratórios em busca de liberdade e melhores
condições de vida em outros países. Ao refletir sobre a situação de apátridas no período
entre as duas guerras mundiais, Arendt demonstra que a proscrição dos direitos legais
de todo um grupo humano fora prefigurada pelo tratamento de minorias e apátridas por
países europeus após a Primeira Guerra. Uma vez despossuídos de um governo que os
protegesse, tais grupos foram relegados à completa ilegalidade. Donde a condição
paradoxal dos direitos humanos: se, em termos principiológicos, são inalienáveis e
inequívocos porque presumivelmente existentes sem embargo de pertencimento grupal,
em termos práticos, precisamente quando seres humanos são privados de um governo
próprio e, desta feita, não podem se socorrer de nenhum recurso que não os seus
direitos ―naturais‖, encontraram-se de todo desamparados de direitos. Reduzidos à
condição humana mais ínfima, não mais usufruem da salvaguarda de nenhuma
autoridade efetiva (ARENDT, 1989). A filósofa ensina, pois, que um aspecto a ser
considerado pelo ordenamento jurídico é a dimensão totalizante da expressão direitos
humanos, quando o que se tem observado é que a luta de grupos minoritários (como
negros, mulheres e homossexuais) põe em questão a homogeneidade do termo
―humano‖. Conforme veremos, a ponderação arendtiana sobre os direitos humanos

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contribui para refletirmos sobre a atual violação de direitos duramente conquistados em


nosso país.

Arendt e os direitos humanos em tempos de austeridade

O fato de, ainda no século XXI, haver clamores pelos direitos humanos
evidencia que suas garantias não foram concretizadas de todo. Como é sabido, os
direitos humanos são fundamentais para a dignidade da pessoa humana e sua plena
participação na sociedade, incluindo-se aí o direito à vida, à alimentação, à saúde, à
moradia, à educação, à segurança, à liberdade e à igualdade, que devem ser tratados
conjuntamente como interdependentes, indivisíveis, complementares, universais,
inalienáveis e imprescritíveis. Contudo, esses direitos são existentes de jure, mas, por
vezes, não se consubstanciam de facto, em razão de circunstâncias como, por exemplo,
medidas governamentais totalitárias. Tal descompasso dá claras mostras de que o
direito à cidadania não é uniformemente conferido a todos os indivíduos, porque o
abismo entre discurso e práxis nos remete ao alerta de Arendt a respeito do quão
abstrato o conceito de direitos humanos pode se tornar quando descolado da
materialidade das relações:

O paradoxo da perda dos direitos humanos é que essa perda coincide


com o instante em que a pessoa se torna um ser humano em geral –
sem uma profissão, sem uma cidadania, sem uma opinião, sem uma
ação pela qual se identifique e se especifique – e diferente em geral,
representando nada além da sua individualidade absoluta e singular,
que, privada da expressão e da ação sobre um mundo comum, perde
todo o seu significado (ARENDT, 1989, p. 336).

O desrespeito aos direitos constitui violação de conquistas da sociedade civil,


uma vez que, antes de serem transcritos nas constituições ou em textos jurídicos, os
direitos humanos emergiram de movimentos sociais, que proporcionaram uma
revolução na maneira de sentir e pensar da sociedade, principalmente no que diz
respeitos às lutas contra o poder. Notável exemplo em nossos dias consiste na política
econômica de austeridade, cujo corte de gastos públicos restringe o acesso a benefícios
que, em princípio, caberiam a todos os seres humanos. No Brasil, tal política tem
implicado ampla e brusca redução de investimentos em programas sociais, bem como
nos âmbitos da saúde e da educação. Some-se a isso a tributação excessiva e a

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implementação de reformas trabalhistas, que vulnerabilizam ainda mais o empregado


enquanto parte hipossuficiente nas relações laborais, e previdenciárias, que prolongam
a espera de trabalhadores braçais pelo benefício da aposentadoria.Como resultado da
refutação de direitos, tem-se, no Brasil de nossos dias, uma sociedade cuja cisão entre
abundância e escassez fere mortalmente a acepção de direitos humanos, na medida em
que tais direitos se destinariam, em tese, às partes mais vulneráveis nas dinâmicas de
poder:

O direito dos Direitos Humanos não rege as relações entre iguais;


opera precisamente em defesa dos ostensivamente mais fracos. Nas
relações entre desiguais, posiciona-se em favor dos mais necessitados
de proteção. Não busca um equilíbrio abstrato entre as partes, mas
remediar os efeitos do desequilíbrio e das disparidades (CANÇADO
TRINDADE, 1997, p. 25).

A esse propósito, convém retomarmos as concepções de poder e totalitarismo


tecidas por Arendt em reflexão sobre a violência causada por um regime que mutila o
homem de sua humanidade. Para a filósofa, não deveria haver uma relação lógica entre
poder e violência, pois o poder nunca poderá ser propriedade de um indivíduo, na
medida em que pertencerá sempre a um grupo que, todavia, só conseguirá mantê-lo se
permanecer unido. Desse modo, afirmar que uma pessoa está ―no poder‖ significa, na
concepção arendtiana, que esta foi empossada por um grupo para agir em seu nome,
pois o poder emerge do debate entre concidadãos a fim de construir uma comunidade
livre, de sorte que seja dispensável, dessa maneira, a utilização da violência:

O poder corresponde à habilidade humana não apenas para agir, mas


para agir em concerto. O poder nunca é propriedade de um indivíduo;
pertence a um grupo e permanece em existência apenas na medida em
que o grupo conserva-se unido. Quando dizemos que alguém está ‗no
poder‘, na realidade nos referimos ao fato de que ele foi empossado
por um certo número de pessoas para agir em seu nome. A partir do
momento em que o grupo, do qual se originara o poder desde começo
desaparece, ‗seu poder‘ também desaparece (ARENDT, 1989, p. 289).

Arendt observou que o Estado-nação, ao estabelecer direitos aos cidadãos, não


contemplou sujeitos destoantes das categorias jurídicas concebidas. Por conseguinte, os
direitos humanos foram negados às minorias marginalizadas do acesso à cidadania. Se a
humanidade dos homens se concretiza na esfera política, uma sociedade na qual boa
parte dos indivíduos não possui direitos de cidadania e formam uma massa de sub-
homens é fruto do totalitarismo e, ao mesmo tempo, um espaço livre para a
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autolegitimação do regime totalitário. Conforme vimos anteriormente, a preocupação


de Arendt acerca dos direitos humanos gravita em torno, portanto, da proteção do
indivíduo contra Estados totalitários e, em dimensão transnacional, contra a intolerância
pela diferença. A seu ver, o idealismo em torno do qual os direitos humanos estavam
enredados não se convertia em realidade devido à precarização da vida em sociedade,
principalmente das condições ―subumanas‖ a que determinados grupos são relegados:

Uma concepção da lei que identifica o direito com a noção do que é


bom – para o indivíduo, ou para a família, ou para o povo, ou para a
maioria – torna-se inevitável quando as medidas absolutas e
transcendentais da religião ou da lei da natureza perdem a sua
autoridade. E essa situação de forma alguma se resolverá pelo fato de
ser a humanidade a unidade a qual se aplica o que é ‗bom‘. Pois é
perfeitamente concebível, e mesmo dentro das possibilidades políticas
práticas, que, um belo dia, uma humanidade altamente organizada e
mecanizada chegue, de maneira democrática – isto é, por decisão da
maioria –, à conclusão de que, para a humanidade como um todo,
convém liquidar certas partes de si mesma (ARENDT, 1989, p. 306).

Não é demais lembrar que outro tema largamente tratado por Arendt consiste na
condição dos apátridas, grupos humanos que, expulsos do país de origem, não eram
bem-vindos em lugar nenhum, além de haverem perdido qualquer possibilidade de
tutela jurídica do Estado. Ao não terem cidadania, acabavam por não ter existência
formal por não constituírem personalidade jurídica. Esses indivíduos ficavam à margem
do direito porque, em suma, eram despossuídos do ―direito a ter direitos‖ (ARENDT,
1989). Ora, podemos afirmar, em nível metafórico, que há apátridas no interior de suas
próprias nações: os sujeitos destituídos ou subtraídos de sua cidadania mediante, por
exemplo, a conversão de direitos em serviços perpetrada por medidas como a
privatização de benefícios públicos como a saúde e a educação.
Quando se coloca em questão os direitos humanos, coloca-se também em
questão a participação política do sujeito enquanto agente na polis, inscrito num regime
democrático. Discutir direitos humanos implica, pois, discutir a condição, dada ou
negada ao ser humano, de ter acesso aos mesmos direitos e prerrogativas de seus
coetâneos. Nesse ponto, a Filosofia e o Direito se encontram, na medida em que aquela
busca refletir acerca da condição humana e da politização da vida em sociedade e este
visa assegurar aos indivíduos o pleno exercício da cidadania. Exercício cujo acesso se
torna mais e mais restrito sob um governo de cariz totalitário.
O fato de Arendt focalizar regimes totalitários de sua época, como o nazismo e o
stalinismo, não significa que sua teoria não tenha validade hoje. O não cumprimento
102
Revista Sísifo – vol. 1, nº 6. Novembro. Ano 2017 - www.revistasisifo.com

dos direitos de Liberdade, Igualdade e Fraternidade para todos indica que a filosofia de
Arendt é relevante por alertar sobre a periculosidade do regime de poder que não
oferece isonomia a todos. A filósofa nos ensina, dentre tantas outras coisas, a ver na
cidadania o direito a ter direitos, uma vez que a igualdade não é um dado, mas um
work-in-process forjado no espaço público, que constitui, neste caso, uma arena de
resistência à opressão:

Arendt talvez nos mostre a chave para a compreensão de experiências


totalitárias, negadoras dos mínimos direitos da população, ao
mencionar que, no início dos movimentos nazistas e stalinistas,
existiam pessoas [...] eram percebidas [...] como seres supérfluos,
seres despidos de qualquer utilidade. O totalitarismo nasce, então, em
virtude da própria condição de animal laborans do homem moderno:
um homem que apenas sobrevive, cujos valores se encontram em
descrédito, que tem dificuldade para pensar e formular um conceito de
mundo e, por isso, pode ser manipulado, não possuindo sua opinião,
se isolada, maior importância num mundo em que ele não compartilha
com os outros, onde ele representa o acréscimo de mais um na massa
de outros seres igualmente anônimos (FIORATI, 1999, p. 62).

Como as medidas de austeridade adotadas pelo governo brasileiro possuem


feição inequivocamente liberal, vale mencionar o posicionamento de Arendt em torno
do liberalismo. Conforme seu juízo, o fosso entre o ideal de igualdade jurídica formal e
o alargamento das desigualdades sociais no capitalismo são contradições inerentes à
comunidade política das democracias liberais modernas, nas quais o liberalismo, longe
de cumprir suas promessas, avigora o totalitarismo (ARENDT, 1989). Uma vez que a
austeridade, pautada em medidas impopulares, de cariz draconiano, colide frontalmente
com os direitos humanos, o principal ponto de encontro entre o legado filosófico de
Arendt e o campo do Direito reside noimperativo de uma política que faça valer
efetivamente a democracia. Para tanto, torna-se premente a inserção de grupos
relegados à margem da sociedade para que o totalitarismo ceda lugar à democracia.

Considerações finais

Este artigo evidenciou, mediante análise do pensamento filosófico de Hannah


Arendt, que é no interior do debate político, em sentido lato, que a condição humana
pode alcançar sua plenitude. A principal crítica dessa filósofa, no que concerne à
intersecção entre Filosofia e Direito, dirige-se, portanto, ao Estado – mais precisamente
às formas com que o Estado gerencia os cidadãos sob sua égide. Não é por outra razão

103
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que a obra de Arendt nos parece forçosa para pensarmos a conjuntura política, social e
econômica do Brasil, sobretudo no que toca à necessidade de garantir proteção jurídica
às minorias sociais, étnicas e sexuais a possibilidade de exercer cidadania numa
conjuntura de austeridade balizada pela sistemática retirada de direitos e fornecimento
de benesses. Afinal, é a massa populacional despossuída de privilégios e, por isso
mesmo, dependente de serviços públicos como saúde e educação que, à semelhança do
que observou a filósofa noutro contexto, tem sido vítima de contundente desrespeito à
dignidade humana.
As ponderações de Arendt, cuja totalidade este trabalho não pretendeuexaurir,
convergem para uma preocupação central a respeito da condição humana frente às
injunções políticas, sociais, econômicas e culturais. Desse modo, sua obra se caracteriza
por uma aguda percepção das relações, não raro conflituosas, entre o homem e o espaço
que habita. Por isso sua atualidade para pensarmos a anomia política por que passa o
Brasil sob um governo de transição cuja estratégia econômica de austeridade como
forma de ajuste das contas públicas tem levado a injustiças sociais, abusos de poder e
negação de direitos. Que as lições arendtianas nos inspirem na luta para que os ideais
que balizaram o advento da república não se tornem um discurso vazio,
desacompanhado de uma práxis que lhe dê significação.

AUTORES

Raimundo Expedito dos Santos Sousa é doutorando em Teoria da Literatura e Literatura


Comparada na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), com financiamento da
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG).
raimundo_sousa@terra.com.br

Elielson Martins Ferreira Filho é mestre em Ciências da Educação pela Universidade


Federal do Rio de Janeiro. Atualmente coordena o curso de Administração da Faculdade
do Centro Educacional Mineiro (FACEM).
elielsonbh@hotmail.com

Referências bibliográficas

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24-37, Summer 1949.
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Companhia das Letras, 1989.
ARENDT, Hannah. Crises da república. Trad. José Wolkmann. São Paulo:
Perspectiva, 2010.

104
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BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico. São Paulo: Ícone, 1996.


BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. São Paulo: Campus, 2004.
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. São Paulo: Malheiros, 2002.
CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Tratado de Direito Internacional
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FIORATI, Jete. Os direitos do homem e a condição humana no pensamento de Hannah
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Direitos Humanos. Guarulhos: Acadêmica. 1994.
PÉREZ LUÑO, Antonio Enrique. Derechos Humanos, Estado de Derecho y
Constitución. Madri: Tecnos, 2002.

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Roswita de Gandersheim e o papel psico-pedagógico da arte nas obras


da teatróloga medieval

Marcos Roberto Nunes Costa99

Resumo
É sabido que toda produção intelectual medieval tinha como objetivo imprimir no
homem o desejo por alcançar Deus, de infundir no seu coração ou na sua alma o ―amor
ordenado‖, de prepará-lo para captar, no cosmo, as marcas inteligíveis de Deus, as
quais, uma vez seguidas retamente, o fazem viver feliz aqui na terra e alcançar a
―verdadeira felicidade‖, na vida eterna. Dentro deste espírito, a arte medieval assume
um caráter psico-pedagógico, enquanto artifício ou método de explicitação ou
elucidação das verdades ocultas reveladas através das Sagradas Escrituras ou da vida
dos santos, pois, sendo o povo, na sua maioria, rude, aquilo que não podiam entender
nas Escrituras ou através delas, deveria ser apreendido através das artes. É dentro deste
contexto que vamos enquadrar a rica produção intelectual da teatróloga medieval
Roswita de Gandersheim.

Palavras-chave: Roswita, Arte, Idade Média.

Fonte: http://en.wikipedia.org/wiki/Hrotsvitha

Roswita100 von Gandersheim, grande nome da literatura de fundamentação cristã em


terras germânicas, sendo conhecida como a primeira poetisa de origem germânica na Idade

99
Doutor em Filosofia pela PUCRS, Pós-doutorado em Filosofia pela Universidade do
Porto. Professor da Graduação e Pós-Graduação (Mestrado e Doutorado) em Filosofia
da UFPE. E-mail: marcosnunescosta@hotmail.com
100
Segundo Bernard Pautrat “existem pelo menos 22 denominações de seus nomes, entre as quais
podemos encontrar variadas formas como Hrotsuit, Hrosvitha, Hroswitha, Hrotsvitha Hrotsvithae,
Roswitha” (apud BOVOLIM, 2005, p. 13). Segundo Elisabeth Reinhardt, “há diversas teorias sobre o

106
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Média, nasceu provavelmente por volta do ano 935, uma vez que, alguns anos depois, por
volta de 959, quando Gerberga, filha do duque Henrique da Baviera e sobrinha do Imperador
Otto I, foi eleita abadessa do mosteiro beneditino de Gandersheim - Leste da Saxônia, ela
também já era cônega101 desse mosteiro (Cf. ISABELLA, 2007, p. 36).

No mosteiro de Gandersheim, sob a orientação de Rikkardis, que ela cita como


grande mestra, e da abadessa Gerberga, Roswita recebeu uma boa educação102, tendo lido os
clássicos da Antiguidade, visto que, na época, a abadia de Gandersheim tinha uma grande
biblioteca103, o que lhe permitiu “educar-se, atuar como educadora e tornar-se conhecida por
sua produção literária, tanto no campo religioso como secular. E pertencer a um grupo de
mulheres e monjas medievais detentoras do conhecimento, situação pouco comum na época”
(BOVOLIM; OLIVEIRA, 2012, p. 1007). Os escritos de Roswita von Gandersheim dão provas de
que ela estava familiarizada com as obras dos Pais da Igreja, como Santo Agostinho, e com a
poesia clássica, ainda em vigor na época dela, incluindo as obras de Virgílio, Horácio, Ovídio,
Terêncio e outros, que são citados em suas obras104. Na comédia Sabedoria, por exemplo, que

significado do nome, por exemplo, Rosa Branca” (1999, p. 600, nota 3). Já ORTUÑO ARREGUI, 2016, p.
54, nota 34, diz que “é mais provável que tenha o significado dado por ela mesma a seu nome,
quando no Prefácio das seis comédias se denomina a si mesma Ego,Clamor Validus Gandershemensis
(a etimologia alemã é "hruot"= clamor y "sui(n)d"= validus)”.
101
Para Diana Arauz Macedo, Roswita não era propriamente uma monja, mas uma cônega, o que
significa dizer que “as cônegas da mencionada abadia, diferentemente das monjas, faziam votos de
castidade e obediência, mas não de pobreza, de forma que podiam dispor e administrar seus bens,
fato que as mantinha em uma rotina mais dinâmica com o mundo exterior, diferetemente do
enclausuramento exigido as outras religiosas” (2005, p. 2004, nota 3). Isso fazia com que Roswita,
como oriunda da classe nobre, mantivesse contato com a Corte e com os meios intelectuais do seu
tempo, com quem dialogava. Traz esta mesma informação ORTUÑO ARREGUI, 2016, p. 55.
102
Peter Dronke insinua que Roswita, que abraçou a vida monástica já com certa idade, iniciou sua
formação intelectual antes de sua entrada no mosteiro, quando diz: “Roswita talvez chegou a canonisa
com uma idade não tão jovem, depois de haver passado por uns bons anos de formação cultural e
social em meio a um ambiente refinado e cosmopolita da Corte dos Ottos, onde deve ter
compartilhado das aspirações literárias, artísticas e políticas destes últimos titulares autênticos do
Império romano*...+” (apud BOVOLIM, 2005, p. 83). Defende este mesma tese Diana Arauz Macedo,
quando diz que “Hrotsvitha passou grande parte de sua juventude no ambiente da Corte, onde se
nutriu de uma rica Biblioteca baseada em autores clássicos e medievais” (2005, p. 204).
103
A esse respeito diz Andrés López: ―Os grandes mosteiros da Alemanha, no século X,
inclusive Gandersheim, estavam repletos de obras de autores clássicos, personalidades
literárias e autores culturais reconhecidos, que desempenharam um papel importante
na formação das mulheres nobres e das religiosas que frequentavam os mosteiros da
Alemanha‖ (LÓPEZ apud BOVOLIM; OLIVEIRA, 2012, p. 107).
104
A propósito diz WEMPLE In: DUBY; PERROT, 1990, p. 264: ―Hrotsvita conhecia
bem muitos autores, mas na primeira linha dos seus favoritos estavam Virgílio e
107
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narra o martírio das santas virgens Fé, Esperança e Caridade, supostamente acontecido no
tempo do Imperador romano Adriano, a personagem principal - a mãe Sabedoria - é
apresentada como uma mulher extremamente sábia que, além de ministrar a educação
religiosa cristã, transmite, também, conceitos importantes para a formação intelectual laica,
como, por exemplo, da matemática105. Segundo Jean Lauand, esses conceitos foram extraídos
do De Arithmetica, de Bóecio (Cf. LAUAND, 1986, p. 41), de forma que podemos afirmar que,
“além de exaltar os ideais religiosos, ela transmitiu aos ocupantes dos mosteiros ensinamentos
mínimos sobre a civilização clássica e sobre as artes liberais: o trivium (gramática, retórica e
dialética) e o quadrivium (aritmética, geometria, música e astronomia)” (BOVOLIM, 2005, p.
15).

Por isso, embora procurasse se autorretratar como uma mulher humilde, o que era
típico das mulheres místicas medievais106, Roswita era conhecida como “a voz forte da abadia
de Gandersheim”.

Terêncio. Virgílio serviu de modelo aos seus escritos épicos e as suas peças foram
escritas com o sentido de humor malicioso de Terêncio, embora o seu argumento se
baseie nas legendas de santos e nada tenha de terenciano‖.
105
MARTINS, 2011, p. 88, comentando acerca do simbolismo nas obras de Roswita,
chama a atenção para a grande quantidade de números na supracitada peça, como, por
exemplo, ―a menina Fé morre com 12 anos, chicoteada por 12 centuriões‖; no instante
em que Caridade morre ―quem olhasse atentamente veria 3 jovens radiosos de
claridade que a acompanhavam, etc.‖. Para um maior detalhamento dos conceitos
matemáticos trabalhados por Roswita, ver: NASCIMENTO In: 2012. p. 11-15.
106
Para muitos comentadores, muitas escritoras medievais apresentavam-se como
mulheres humildes como estratégia pedagógica para se fazerem ouvir em meio a uma
sociedade elitista e machista. Mas, por trás dessa aparente humildade, ou nas
entrelinhas de seus escritos, principalmente das personagens femininas por elas
protagonizadas, apresentavam-se como mulheres fortes e sábias, em condições de
discutir em pé de igualdade com os homens, o que deixava entrever certa
―teologia/filosofia feminina‖ em defesa da igualdade de gênero. Daí, para BOVOLIM,
2005, p. 88, ―Roswita manifestava uma atitude muito sábia perante o sexo oposto, ela
procurava agradar destacando a debilidade da mulher e, ao mesmo tempo, exaltando
toda força, inteligência, coragem e o conhecimento que ela possuía‖. Em seus
diálogos acabavam sempre por vencer os homens. Igualmente reforça essa tese Luiz
Jean Lauand. que, na introdução à sua tradução do Dulcício de Roswita, diz: ―[...] no
Dulcício, os papéis ridículos e grotescos são reservados aos homens, enquanto as
personagens femininas são as heroínas, cheias de força e determinação‖ (LAUAND,
1998, p. 170) e BRAGANÇA JÚNIOR; RESENDE MARQUES, 2013, p. 49-50,
assim concluem seu texto: ―Em sua arte dramaturga, cujas obras são de caráter
educador e evangelizador, Roswita von Gandersheim dramatiza a vida dos santos e
mártires da Igreja justamente com nomes e elementos da História, com a intenção de
criar um modelo de comportamento voltado ao público feminino das congregações
conventuais e, poderíamos também dizer, para a sociedade cristã [...]. Mas do que
108
Revista Sísifo – vol. 1, nº 6. Novembro. Ano 2017 - www.revistasisifo.com

A produção literária de Roswita, escrita em latim, como era habitual para a época,
divide-se em três grupos:

1 - os poemas, que por sua vez estão divididos em dois tipos:

- os poemas religiosos (em número de oito) em versos leoninos: um versa sobre a


Virgem Maria (a partir do evangelho apócrifo de São Tiago, o irmão de nosso
Senhor), outro sobre a Ascensão do Senhor e os outros seis sobre as vidas de
alguns santos (Gandolph, Pelágio, Theophilus, Basilius, Denis, Agnes) (Cf.
REINHARDT, 1999, p. 602). Esses poemas parecem ter sido projetados para
leitura em voz alta ou a recitação pelas monjas do mosteiro, ou seja, como
instrumento educacional, o que era uma novidade na época, pois antes, durante
os primeiros séculos da Idade Média, o teatro, nomeadamente aquele de cunho
cômico, foi condenado pela Igreja, o que levou o comentador Fernando Peixoto
a dizer que “a princípio a Igreja proíbe o teatro e ameaça os atores com o fogo
do inferno, mas logo em seguida passa a utilizá-lo como celebração religiosa ou
ensinamento” (PEIXOTO apud CAETANO, 2011, p. 165).

- os poemas épicos, que são histórias rimadas, um dos quais a vida do Imperador
Otto I, por isso intitulado Gesta Ottonis (As obras de Otto). É também chamado
de Panagyric Ottonum, e foi apresentado pela autora em 968, ao mesmo tempo
ao velho Imperador e ao seu filho (então já coroado como) Otto II. Segundo
Giovanni Isabella, “trata-se de um poema épico com cerca de 1500 versos, que
se propõe a recontar as ações políticas e militares (esse o sentido próprio do
termo gesta) de Otto I da Sassonia” (ISABELLA, 2007, p. 34).

2 - as comédias, dramas ou peças (em número de seis), de cunho moral, que tratam
da vitória da fé e da pureza sobre o poder e a sedução: Gallicanus (Conversão de Galicano,
general dos exércitos); Dulcitius (Dulcício ou Martírio das santas virgens Ágape, Quiônia e Irene
– que simbolizam respectivamente a Caridade, a Pureza e a Paz)107; Callimachus (Ressurreição

isso, Roswita mostra como seu teatro, no qual os personagens femininos são os
protagonistas, que a mulher medieval pode ser tanto (ou mais) forte que o homem
quando se trata de manter sua fé inabalável‖.
107
Da peça Dulcício, temos uma tradução para o português, com introdução e comentários de Luiz Jean
Lauand In: LAUAND, 1998, p. 171-190, o qual assim resume o enredo da peça: “Martírio das santas
virgens Ágape, Quiônia e Irene. Na calada da noite, o governador Dulcício aproximou-se secretamente
do lugar em elas estavam encarceradas, ardendo em desejos de abraçá-las. Mas, acometido de súbita
demência, enganou-se e começou a abraçar e beijar panelas e caldeirões de cozinha, tomando-as

109
Revista Sísifo – vol. 1, nº 6. Novembro. Ano 2017 - www.revistasisifo.com

de Drusiana e Calímaco); Abraham (Caída e conversão de Maria, sobrinha do eremita


Abraão);Paphnutius (Conversão da meretriz Taíde) e Sapientia (Martírio das virgens santas: Fé,
Esperança e Caridade)108. Tais comédias tomam como modelo as comédias de Terêncio, o
dramaturgo romano cujas obras, em tom de irreverência e humor, foram escritas entre os
anos 170-160 aC. Muitos de seus manuscritos sobreviveram até a Idade Média. Daí o ensaísta
do Dicionário Internacional de Teatro afirmar que as peças de Roswita tinham “um travesso
uso da ironia", embora o mesmo comentador ache que certas passagens, "como os dois longos
didáticos discursos sobre matemática e a harmonia cósmica, são intrigantes em sua dramática
função, mas em outros lugares há ampla comédia situacional e vicário sensacionalismo para
fazer seu apelo de entretenimento óbvio" (DICIONÁRIO Internacional de Teatro apud
HROTSVITHA..., 2012).

Mas, como cônega, apesar de tocar em temas sensuais ou de trazer para suas obras
os pontos “indecentes” do poeta pagão Terêncio, a poetisa teve de adaptá-los à moral cristã
da época, conforme narra a própria Roswita:

Muitas vezes enrubesci por ter de escrever a respeito da detestável loucura


dos amores ilícitos e de inconvenientes colóquios amorosos, coisas às quais
não devemos prestar atenção. Mas se, envergonhada, eu não tratasse desses
assuntos, não conseguiria atingir meu objetivo, que é o de celebrar o louvor
das almas inocentes. Na verdade, quanto maior parece a sedução dos
amantes, tanto maior a glória do auxílio divino (HOSWITA apud LAUAND,
1986, p. 31).

E uma das formas ou instrumento pedagógico usado por Roswita para falar de temas
proibidos ou tabus era exatamente transformá-los em dramas e/ou comédias jocosas ou
lúdicas, enquadrando-se ela, assim, na tradição medieval criada nos tempos do Imperador
Carlos Magno, quando seu mestre, o filósofo e pedagogo Alcuíno de York, que tinha como

pelas moças, até que ficou com o rosto e as vestes impregnados de uma horrível pretume. Depois, as
virgens foram entregues a Sinísio, para que as torturasse, mas, milagrosamente, por ele também
foram enganadas. Por fim, Ágape e Quiônia foram queimadas e Irene, trespassada por uma flecha”.
108
Da comédia Sapientia, temos uma tradução para o português, com introdução e comentários de Luiz
Jean Lauan In: Textos antigos e medievais traduzidos. Coord. e seleção de Ricardo da Costa. Disponível
em: http://www.ricardocosta.com/textos/textosmed.htm Acesso em: 30.03.2012. Em linhas gerais,
nesta peça, “cuja ação decorre no início da era cristã, durante o império de Adriano, as personagens
Sabedoria e suas três filhas – Fé, Esperança e Caridade – são estrangeiras que, chegadas a Roma,
vêem-se denunciadas ao imperador pelo severo Antíoco, por ameaçar a ordem do Estado e a
‘concórdia do povo’, ao difundir ‘a divergência de culto’, e induzir à disrupção social pela ‘prática da
religião cristã’” (LAUAND, 1986, 46-47). Já segundo MARTINS, 2011, p. 83, “as crianças (Fé, Esperança
e Caridade) alegorizam, antes, as três virtudes teologais, enquanto a personagem da mãe (Sabedoria)
pode se referir à própria Verdade sagrada revelada nos evangelhos”.

110
Revista Sísifo – vol. 1, nº 6. Novembro. Ano 2017 - www.revistasisifo.com

orientação pedagógica o ensinar brincando, utilizava-se de anedotas, brincadeiras, enigmas e


charadas. Tempos depois, esse método atingiu os mosteiros, onde o lúdico ou jocoso passou a
ter, além do caráter motivacional, outra função pedagógica: aguçar a inteligência dos jovens. E
é aí que se enquadra Roswita, conforme chama a atenção Eliana Lucci, ao comentar uma
passagem de uma de suas peças - Sabedoria:

No mosteiro beneditino de Gandersheim - na época dessa nossa educadora


(em torno do ano 1000), um importante centro cultural, onde havia monjas
de cultura esplendorosa - Roswita, após um hiato de séculos, re-inventa o
teatro, re-introduz a composição teatral no Ocidente. E compõe 6 peças de
caráter educativo (Sapientia, por exemplo, traz embutida toda uma aula de
matemática!) - que combinam drama e comédia. Entre inúmeras outras
situações cômicas, destacamos aqui a hilariante sequência de cenas IV a VII
da peça Dulcício:
O governador pagão, Dulcício, está encarregado da impossível tarefa de
demover 3 virgens cristãs – Ágape, Quiônia e Irene - de sua fé. Confiante
em seu poder de sedução e atraído pela beleza das moças, manda
trancafiá-las na despensa ao lado da cozinha do palácio, e, de noite -
enquanto elas cantam hinos a seu Deus -, Dulcício vai invadir a despensa,
mas tomado de súbita loucura, equivoca-se e entra na cozinha e acaba,
sofregamente, abraçando e beijando os caldeirões e panelas, tomando-as
pelas prisioneiras que o espiam pelas frestas e veem-no cobrir-se de
fuligem etc.
Só quem ignora o papel do lúdico na pedagogia medieval pode-se
surpreender que uma mulher, uma monja, numa composição devota, para ser
encenada no mosteiro, inclua uma cena "escabrosa" como essa (LUCCI,
2012).

Não se sabe ao certo se tais esboços dramáticos foram alguma vez representados, se
ela os escreveu apenas como exercício literário, utilizado somente para a distração de suas
companheiras do convento, ou se tiveram um público maior, com encenação propriamente
dita. Alguns comentadores consideram que tenham sido realmente encenados, principalmente
as peças com papéis infantis, pois em sua época crianças eram mandadas para os conventos
para serem educadas. Por exemplo, na peça Sapientia, na qual Roswita tem a preocupação de
escrever as falas de acordo com a idade das personagens, as crianças mais novas (as
personagens infantis têm 8, 10 e 12 anos) recebiam menos falas, mais curtas e mais fáceis.
Mas, para outros comentadores, é impossível que as peças de Roswita tenham sido
encenadas.

De qualquer forma, por ter “escrito todos as suas obras em latim, é considera a
primeira pessoa desde a Abntiguidade tardia a compor obras de teatro nessa língua” (ORTUÑO
ARREGUI, 2016, p. 55).

111
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3 - prosas, que são crônicas, como o De primordiis et fundatoribus coenobii


Gandersheimensis (Sobre os primórdios e os fundadores do mosteiro de Gandersheim), em que
narra a história de sua abadia, desde as origens até o ano 919.

Todas as obras de Roswita foram reunidas em um único documento chamado Codex


Bayerische Staatsbibliothek Clm 14485, que segundo Manuel Ortuño Arregui, “foi escrito por
várias mão em Gandersheim no final do século X e início do XI. Foi descoberto pelo humanista
Conrad Celtis em 1493-1494, na abadia de San Emerano em Ratisbona [...] que o editou por
ordem do Príncipe eleito de Sajonia, Federico III (ORTUÑO ARREGUI, 2016, p. 56).

Roswita faleceu em 05 de setembro de 1002, mas,

ao contrário de muitas escritoras de seu tempo, a obra de Hrotsvitha de


Gandersheim tem sido conhecida, divulgada e interpretada através da
história: pouco depois de sua morte, foi copiada num único manuscrito a
totalidade de sua obra; no século XVI, os humanistas alemães se
encarregaram de destacar seu talento [...] refletindo uma euforia
nacionalista por sua primeira poetisa sajonia; posteriormente, em meados do
século XIX, apareceria a primeira tradução para o Francês de seu teatro,
enquanto alguns historiadores positivistas da ordem beneditina se
apropriavam dos textos da autora, assumindo suas próprias interpretações.
Na atualidade, seguimos estudando desde distintas disciplinas as
contribuições desta excelente escritora, cuja imagem e palavra parecem
inesgotáveis no tempo, pois suas inquietações e preocupações levantadas
naquele tempo têm se mantido no curso da história e seguem vigentes neste
século, manifestando-se através de diversos discursos (ARAUZ MACEDO,
2005, p. 207).

Referências

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113
Revista Sísifo – vol. 1, nº 6. Novembro. Ano 2017 - www.revistasisifo.com

Diótima e a construção da legitimidade do pensamento da diferença


sexual no espaço público109
Resumo

O artigo apresenta uma análise inicial da filosofia feminista elaborada por


Diótima, destacando o processo de construção de suas bases teóricas e os desafios e
estratégias, para ampliar, no espaço público, a legitimidade do pensamento filosófico
pautado no conceito de diferença sexual. O texto oferecebrevestaxonomias dos
feminismos da diferença,formando um panorama conceitual que contextualiza o
feminismo de Diótima,seus principais grupos e influências. Do feminismo construído
por Diótima, procura-sedestacar sua concepção de diferença sexual e seu esforço para
delimitar uma ordem simbólica feminina, que pudesse referenciar as produções teóricas
e as ações éticas e políticas das mulheres. Para concluir, mostra-secomo as escolhas
teóricas e práticas do feminismo da diferença italiano permitem que Diótima desenvolva
um método para o pensamento sexuado: um caminhoque pode ser interessante para
mulheres, em outros contextos, compreenderem suas especificidades e elaborarem
estratégias para suas lutas.

Palavras-chave: feminismo da diferença, filosofia feminista, diferença sexual, práxis,


ordem simbólica.
Introdução
A partir de 1983, primeiro em uma casa privada, e, em seguida, na Universidade
de Verona, na Itália, constituiu-se uma comunidade filosófica feminina, denominada
Diótima110 – reportando-se à suposta origem feminina da filosofia grega –, em que
professoras universitárias e secundárias de filosofia e/ou ativistas feministas decidiram
se lançar ao desafio de ―‗ser mulheres e pensar filosoficamente‘, rompendo, assim, com

109
Autoria:Gigliola Mendes, doutoranda do Programa de Pós-graduação em Filosofia da
UNB. Orientador: Dr. Alex Sandro Calheiros.
110
Diotima de Mantineia teria sido uma sacerdotisa, filósofa e mestre na Atenas
Clássica. A referência à sua existência ocorre apenas no diálogo O Banquete de Platão,
quando Sócrates, ao realizar o seu discurso em honra ao amor, afirma que versará sobre
ensinamentos, teóricos e metodológicos, que lhe foram dados por Diotima. Apesar de
Platão se referir explicitamente à sábia estrangeira no diálogo e de sempre utilizar
figuras históricas como personagens em suas obras, muitos de seus comentadores
colocam em dúvida sua existência histórica.
114
Revista Sísifo – vol. 1, nº 6. Novembro. Ano 2017 - www.revistasisifo.com

a presumida e prescrita universalidade e neutralidade do discurso filosófico‖111


(DIÓTIMA, 2017).
A comunidade, em atividade desde então, corresponde a uma tentativa
duradoura e consistente de refundação da filosofia como práxis112, ou seja, como uma
perspectiva teórica e ético-política, a partir de uma nova gênese: um feminino
originário. Suas integrantes realizam a empreitada inserindo-se no âmbito do feminismo
da diferença italiano e em suas lutas peculiares, que buscam caminhos para romper as
barreiras sócio-culturais às ações políticas e intelectuais das mulheres, no espaço
público e institucional, da Itália.

Feminismo da diferença – um breve panorama


Para se desenvolver uma análise cuidadosa do feminismo da diferença italiano,
em especial daquele desenvolvido por Diótima, é importante compreendê-lo em relação
aos feminismos produzidos em outras partes do mundo. Dessa forma, o primeiro passo
desta reflexão, é construir uma breve taxonomia dos feminismos da diferença, desde o
período histórico definido como a segunda onda do feminismo – que inclui
principalmente propostas das feministas anglo-americanas, do Norte ocidental.
A cientista política Mary Dietz (2003) apresenta uma revisão teórica destes
feminismos, partindo de uma compreensão atenta e ampla dos feminismos da diferença,
a partir dos quais, segundo a autora, derivaram-se todas as construções e debates
teóricos subsequentes. Ela mostra que ―de todas as preocupações que têm acompanhado
a conceitualização de gênero nas últimas décadas, nenhuma tem produzido maiores
divisões teóricas que o esforço por repensar o significado da diferença de gênero, ou a
ideia do feminino dentro da diferença sexual, como um fenômeno social, histórico,
cultural e psicossimbólico‖ (DIETZ, 2003, p. 402).
A reflexão acerca da diferença permeia todas as construções teóricas do
feminismo, porque buscam compreender e dar respostas à questão da existência de dois
―sexos‖ ou corpos sexuados (e as inúmeras formas de significá-los) e à hierarquia que
historicamente se constrói a partir disso. Para facilitar a análise e indicar os caminhos

111 Todas as citações literais contidas neste texto foram traduzidas livremente pela
autora.
112
Conceito fundamental para o pensamento italiano de tradição marxista – remetendo
mais especificamente aos filósofos Benedeto Croce e Antonio Gramsci – e para
Françoise Collin, filósofa do feminismo da diferença francês, cujas obras influenciaram
a filosofia de Diótima.
115
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que a reflexão sobre a diferença trilhou, Dietz classifica o feminismo da diferença em


duas grandes categorias: o primeiro, o feminismo da diferença social – desenvolvido
principalmente pelas teóricas anglo-americanas – que se fundamenta na oposição sexo-
gênero e na definição deste segundo como uma construção social e condição
psicológica; o segundo, o simbólico – desenvolvido principalmente pelas teóricas
francesas – que se apoia no conceito de diferença sexual e na estrutura psicossimbólica
que o acompanha.
Os problemas desenvolvidos pelo feminismo da diferença, com uma perspectiva
social, compreendem uma construção que vem desde Simone de Beauvoir e traça um
caminho crítico à biologia como destino113. Nesse sentido, apresenta-se a perspectiva da
dicotomia entre sexo e gênero, em que este representaria uma construção social (e/ou
psicológica) acerca daquele. A diferença se encontraria na revelação do percurso sócio-
histórico que conduziu à definição de papéis sociais (e subjetividades) diferenciados
para homens e mulheres, através da consolidação de relações de poder assimétricas,
tanto no espaço público como no privado: as mulheres estando sujeitas à dominação
masculina e destinadas a ocupar o ambiente doméstico. Nessa perspectiva, constitui-se a
compreensão das mulheres como uma categoria (cujo gênero é parte de sua identidade),
que deve buscar caminhos teóricos e políticos para enfrentar o seu processo de
sociabilidade comum, em que elas são oprimidas pelos homens em uma sociedade
patriarcal, sexista e machista. Mas o aprofundamento sobre a diferença nessa
perspectiva leva à revelação da diversidade das mulheres dentro do próprio movimento
feminista –o que resultou no desmembramento da suposta unidade (e da automática
solidariedade entre elas) e, em seguida, na revelação de múltiplas identidades femininas
desenvolvidas, principalmente, a partir da raça e/ou etnia, sexualidade e classe, que
configuraram novos coletivos de luta, demandando novos sujeitos e novas
epistemologias, transformando-se no feminismo da diversidade.
Para a outra categoria, o feminismo da diferença sexual psicossimbólica, Dietz
destaca as construções teóricas de autoras francófonas, que investigam ―a diferença

113
Dietz define o feminismo da diferença social como uma categoria multidisciplinar,
incluindo toda uma tradição de autoras (desde Beauvoir até os anos 80), que
desenvolveram suas teorias em diferentes campos do conhecimento. Essa pesquisadora
enumeraos feminismos e as autoras iniciais dessa categoria: ―o feminismo existencial de
Beauvoir (1949), o feminismo liberal de Friedan (1963), o feminismo radical de Millet
(1970), o feminismo socialista-marxista de Rowbotham (1972), o feminismo
psicoanalítico de Michel (1973) e outras escritoras da ‗libertação da mulher‘ dos anos
sessenta e princípio dos setenta‖ (DIETZ, 2003, p. 404).
116
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sexual como um conceito em primeiro lugar crítico analítico e uma ontologia


fundamental da existência humana‖ (DIETZ, 2003, p. 406). Tal conceito é abordado
com uma dupla função (epistemologicamente negativa e positiva): a primeira, criticar o
que foi produzido teoricamente sobre a origem simbólica dos seres humanos; a segunda,
pensar/propor um novo caminho para compreender a origem do humano, revelando o
feminino oculto nas estruturas simbólicas, políticas e sociais. O pensamento feminista
francês se constitui principalmente em diálogo com a filosofia, a linguística e a
psicanálise (de Freud e Lacan) e, por isso, pensa a diferença sexual e o feminino em
conexão com tais áreas do conhecimento, buscando encontrar a natureza, as estruturas e
as leis da diferença sexual.
As filósofas Julia Kristeva e LuceIrigaray são as figuras icônicas desse
feminismo da diferençapsicossimbólico, classificado por Dietz
(2003).Ambasdesenvolvem uma abordagem a partir desse duplo percurso
epistemológico: com um primeiro momento crítico (negativo), que conduz,
sucessivamente, ao momento positivo de afirmação da diferença, quando buscam
revelar conceitualmente o feminino escondido na estrutura psicanalítica de Lacan. Para
isso, trabalham com a dualidade dos sexos a partir dos papéis maternos e paternos,
como já aparece na psicanálise, mas buscando uma nova compreensão dos códigos que
fundamentam a lei fálica ou lei do pai, estruturante da significação da linguagem e do
sentido das relações. Em suma, as filósofas buscam ultrapassar tanto teórica quanto
politicamente uma perspectiva reformista, de mera inclusão do feminino no mundo (em
especial, no espaço público e nos direitos individuais), tal como foi
construído,focandoemcompreender e repensar a raiz do sistema de opressão ao
feminino, para construir outras estruturas simbólicas, sociais e políticas que possam
abarcá-lo.

Feminismo da diferença italiano – a construção de um pensamento radical


Para uma reflexão sobre o feminismo da diferença, na Itália, parece fazer-se
necessária uma pergunta inicial: por que tal feminismo não está presente (ou está pouco
presente) nas análises que buscam organizar conceitualmente as correntes teóricas do
feminismo? Uma resposta contundente demandaria uma demorada análise, impossível
no espaço deste artigo. Entretanto, inspirando-se em Negri (2005), é possível aventar
uma hipótese para o pouco acesso ao feminismo da diferença italiano (ou aos
feminismos da diferença), em especial o que se desenvolveu entre a década de 1970 e a

117
Revista Sísifo – vol. 1, nº 6. Novembro. Ano 2017 - www.revistasisifo.com

de 2000. Seria o fato de possuir um arranjo bastante peculiar, colado à realidade


histórico social da Itália, e um dinamismo na criação ou utilização de conceitos – muitos
deles decorrentes da tradição conceitual dos feminismos franco e anglófono –, que
ganham novos significados na pesquisa/prática das italianas e novas estratégias prático-
políticas para a abertura daquele país ao feminino.
O feminismo italianopossui raízes comuns com aqueles emergentes em muitas
partes do mundo, nos anos 60, quais sejam: separatismo, expressado em encontros para
elevação da consciência entre mulheres (naquele contexto, realizados em pequenos
coletivos e nomeados, por Carla Lonzi, encontros de autoconsciência); produção de
Manifestos; engajamento com agendas e lutas dos movimentos sociais, por direitos e
reconhecimento, cujo marco temporal mais representativo é 1968. No entanto, a
experiência da Itália extrapola as semelhanças iniciais, encontrando novas
possibilidades – às vezes convergentes às vezes dissonantes – com o que estava sendo
produzido pelos feminismos que ganharam mais força nos espaços de saber
constituídos. Constrói-se em conformidade com a realidade histórico política italiana,
em que há tanto um movimento cultural potente, contraditoriamente incentivado pelo
fascismo – mas que reforça,nas propagandas oficiais, o estereótipo feminino como
esposa e mãe e a infantilização da mulher –, quanto um ambiente de luta e organização
política com hegemonia do método marxista, que configura os movimentos sociais
desse período.A Itália, embora predominantemente rural até a década de 50, constrói um
movimento político e um espaço público muito fecundos (NEGRI, 2005).
As mulheres estiveram engajadas nas lutas políticas, mas encontravam
dificuldades, nos espaços institucionais dos partidos, movimentos sociais,
universidades, jornais, em pautar efetivamente questões relacionadas à sua situação, na
Itália. Dessa forma, iniciaram uma militância feminista paralela às organizações de lutas
oficiais, que ocupavam o espaço público, em que prevalecia a perspectiva unificadora
da classe social, da luta contra o capitalismoe o fascismo. Predominavam locais e
grupos, com lideranças masculinas e com pouca disponibilidade para a fala das
mulheres (suas visões de mundo e necessidades), não tendo espaço para temas que
poderiam ―desarticular a luta principal‖.
Na década de 70, muitas feministas vão conciliar a organização de coletivos
separatistas com sua militância em partidos políticos e organizações de esquerda,
lutando por meio desses espaços pelos direitos das mulheres pela igualdade social
(conquistando reformas sociais, tais como a lei do aborto de 1978). Mas é nos coletivos

118
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feministas, espalhados por muitas cidades italianas, que as reflexões e ações políticas se
tornam férteis. É o que Lauretis (1990) chama de dupla militância feminista. Nesses
espaços, fora das instituições e muitas vezes conduzidos em locais privados, começam a
ser gestadas as análises sobre a diferença sexual e as necessidades ―específicas‖ das
mulheres. Isso porque,ali,elas encontram umlocusem que era possívelter voz e expor
suas pautas, fazer formação política, elaborar manifestos, criar jornais, revistas eeditoras
para estimular a escrita feminina e a circulação das obras produzidas.

Teresa de Lauretis (1990), no prefácio à edição inglesa do livro


SexualDifference da Livraria das Mulheres de Milão114, apresenta uma taxonomia do
feminismo italiano, definindo-o como uma revolução simbólica, ou seja, ―um processo
de compreensão crítica e mudança sócio-cultural através do qual as mulheres passam a
ocupar a posição de sujeitos‖ (LAURETIS, 1990, p. 5). Nesse processo, ocorre a
consolidação do feminismo da diferença, em que crítica e construção teórica sobre a
diferença sexual são empreendidas, por necessidade do próprio contexto do movimento
feminista italiano, para fundamentar a prática política e social das mulheres, a partir do
questionamento da separaçãoentre público e privado e dos espaços restritos à atuação e
produção femininas.
O ponto de partida da classificação de Lauretis (1990)é o Manifesto do grupo
Demau (sigla de Demistificazione dell'autoritarismo patriarcale), de 1966, considerado
o primeiro documento do feminismo italiano. O grupo tinha filiação marxista,mas
questionoua limitação de tal perspectiva, por analisar as mulheres como objetos, nas
pesquisas e nas pautas políticas,ao apresentar suas questões nos termos: ―a condição da
mulher‖. Dessa forma, afirmaram a necessidade de alteraro estatuto científico delas, de
objeto para sujeito do próprio conhecimento, como um ponto fundamental para sua luta
e para a compreensão ativa de suas demandas. Com isso, abriu-se o caminho para a
mudança epistemológica e política da ―condição das mulheres‖, como tema específico
da reflexão mais ampla sobre a cultura e as estratégias políticas, para a construção e
consolidação das mulheres como sujeitos do conhecimento; que significou o gatilho
para a reflexão sobre a diferença sexual.

114
Primeiro um coletivo de mulheres fundado, em 1975 (hoje uma empresa feminista), de
onde vieram as fundadoras de Diótima, em especial LuisaMuraro. A Livraria é uma referência
do feminismo da diferença italianoe atua no apoio da escritura das mulheres, com atividade
editorial, ponto de venda e divulgação das obras produzidas por mulheres, ao longo da
história.
119
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Tal reflexão ganha força e consistência teórica, a partir do final da década de


1960, com a pensadora e militante feminista Carla Lonzi(1931-1982) e as produções do
coletivo separatista RivoltaFemminile, a que pertencia.Ela foi um ícone do feminismo
italiano, por suas obras que denunciaram tanto a dominação masculina presente na
sexualidade hegemônica (reflexão construída em diálogo com a psicanálise), quanto a
exclusão das mulheres do espaço público, (re)fundamentada pela filosofia política
moderna. No livro O contrato sexual, Pateman (1993) afirma que Hegel seria o
principal crítico do contrato social e sua tradição, mas que ainda assim não supera a
exclusão (justificada filosoficamente) das ―mulheres da liderança da família, da
participação na sociedade ou no Estado (PATEMAN, 2013, p. 57)‖. Já em 1970, em
Sputiamosu Hegel (Cuspimos em Hegel), Lonzi denunciava o filósofo alemão por
reafirmar a dicotomia entre público e privado, fundamentando a inferioridade da
mulher, como justificativa para sua interdição ao espaço público. Ela (2014) mostra que,
em Princípios da Filosofia do Direito, Hegelsustenta que as mulheres ―não são feitas
para atividades que exigem uma capacidade universal, como a ciência mais avançada, a
filosofia e certas formas de produção artística, nem sabem agir de acordo com
exigências da universalidade, mas de acordo com inclinações e opiniões arbitrárias‖
(LONZI, 2014, p. 21).
Lonzi questiona Hegel porque o considera o responsável pela perpetuação
contemporânea da exclusão e do apagamento do feminino. Isto porque a lógica desse
filósofo, com o método dialético, se perpetuano marxismo, hegemônico em sua época:
―o marxismo tem-se movido no interior de uma dialética senhor-escravo‖ (LONZI,
2014, p.23). Então, seria necessário enfrentar pelo menos três obstáculos que a filosofia
hegeliana apresentava às mulheres: primeiro, a fundamentação de sua inferioridade–
inapropriação ao universal – e interdição ao espaço público; segundo, a sua
consideração como outro e, terceiro, o fato de que a mulher, mesmo considerada outro,
ser excluída da perspectiva emancipatória da dialética senhor-escravo, em que este
último, no processo histórico, poderia superar sua alienação. Nesse ponto, ela dialoga
com Beauvoir, que igualmente apóia-se na dialética hegeliana, para construir seu debate
sobre a mulher, construído como outro. No entanto, a autora italiana desenvolve sua
reflexão cuspindo nesta dialética, tanto porque exclui a mulher da possibilidade de viver
o processo de transcendência e imanência do espírito (o processo de universalização),
que conduz à liberdade, como porque seus instrumentos foram construídos
desconsiderando que a ―cultura (...) excluía o ponto de discriminação essencial da

120
Revista Sísifo – vol. 1, nº 6. Novembro. Ano 2017 - www.revistasisifo.com

humanidade‖(LONZI, 2014, p. 11): a da mulher pelo patriarcado. Dessa forma, não


seria suficiente pensar a perspectiva das mulheres no âmbito da dialética senhor-
escravo, da qual deriva a lógica adotada na perspectiva de classe (dominante-
dominado). Para ela, a relação de poder e hierarquia entre homens e mulheres exigiria
outra lógica de superação, que não se compreende simplesmente em termos de
contradição (dominante-dominado), porque nessa perspectiva não é possível eliminar os
primeiros para que as segundas existissem com liberdade: ―se o método revolucionário
pode acolher as etapas da dinâmica social, não há dúvida alguma que a libertação da
mulher não pode se encaixar dentro dos mesmos esquemas: no plano mulher-homem
não existe uma solução que elimine o outro.‖ (LONZI,2014, p.1).
Por conseguinte, Lonzi apontará para um feminismo radical, que deveria atingir
a raiz das estruturas ditas patriarcais, inclusive o estado.Uma ação ampla de desmentir a
cultura e suas instituições, que significaria ―desmentir a avaliação dos feitos que
constituem a base do poder‖ (LONZI, 2014, p.39). Para seu feminismo da diferença, a
sociedade, da forma como era constituída, não se mostrava capaz de permitir que as
mulheres expressassem seu sentido de existência (as marcas da diferença), mesmo com
direitos igualitários. O feminismo da diferença que surge na Itália questionou a luta de
outras correntes do movimento feminista pela conquista da igualdade, porque
considerava que não bastava oferecer às mulheres igualdade jurídica e a mesma
liberdade de transitar entre espaço público e privado possuída pelos homens. Segundo
Lonzi:

O mundo da igualdade é o mundo da opressão legalizada, do


unidimensional; o mundo da diferença é o mundo onde (...) a opressão
se rende ao respeito da diversidade e da multiplicidade da vida. A
igualdade entre os sexos é a veste em que hoje se mascara a
inferioridade da mulher. (LONZI, 2014, p. 21)

Pensar a diferença implicaria repensar as estruturas sociais e criar novas práticas


políticas (ações, estratégias) capazes de abarcar o(s) feminino(s) e a multiplicidade que
ele implicava.Por isso, a proposta de se criar outras formas de associação, outras
relações políticas, em coletivos de mulheres, estabelecidos fora das instituições.
Desse processo de ruptura com as lutas institucionais, que não davam espaço
para o feminino afirmar sua existência, surge o separatismo radical italiano – os
pequenos grupos de autoconsciência feminista– de onde partiu o impulso fundante da
opção política de certo feminismo, em investigar e afirmar a diferença sexual. Segundo

121
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Lauretis (1990), a política separatista feminista, na Itália, foi quase sinônimo do próprio
feminismo. Isto porque, por meio dela,que as mulheres puderam construir laços
consistentes entre si, formar sua consciência política, definir suas pautas e criar a
identidade do feminismo ao longo de toda a década de 70.
Com o tempo, no entanto, a estratégia de autoconsciência precisou extrapolar a
ação privada para se concretizar ação política no mundo. O ―separatismo estático‖ e
radical apresentou seus limites: como não alterou a estrutura tradicional de divisão entre
público e privado para mulheres, mas, ao contrário, a corroborou, as novas relações
experimentadas nos coletivos, não encontrou espaço para se reproduzir socialmente, e o
novo conhecimento crítico das mulheres não obteve legitimidade nos círculos de
produção intelectual (LAURETIS. 1990). Assim, a partir da compreensão desta ―derrota
social e simbólica das mulheres‖, nos anos de separatismo, tornou-se necessário
modificar a estrutura do feminismo, na Itália, para superar os desafios reais que o
presente lhes apresentava; o que permitiu pensar a diferença sexual, em termos mais
complexos.
No contexto de necessário avanço da autoconsciência para outras ações políticas
e de formação, legitimadas no espaço público, apresentaram-se duas iniciativas
potentes: a primeira,do coletivo Livraria das Mulheres de Milão, em que suas
integrantes dedicaram-se conceitualmente à diferença sexual como uma teoria da prática
social-simbólica e, a segunda, da comunidade filosófica feminina Diótima (criada em
1983), com o foco no pensamento da diferença sexual.

Diotima e o pensamento da diferença sexual


Em 1983, Luisa Muraro, então integrante do coletivo de Milão, tem a iniciativa
de se reunir com outras mulheres, quase todas filósofas, para discutir coletivamente o
panfleto Piúdonnecheuomini, da Livraria de Milão.A preocupação inicial é aprofundar
as reflexões sobre as novas estratégias políticas feministas, mas, devido à formação das
integrantes do grupo, são as questões filosóficas sobre ―a insignificância simbólica de
ser mulheres no discurso filosófico, nos seus códigos e conceitos transmitidos pela
tradição masculina‖ (ZAMBONI, 2015, p. 1), que vão ganhando relevância. Dessa
forma, com o objetivo de enfrentar os desafios para superar a insignificância filosófica e
política das mulheres, em 1984, surge Diótima. Transfere-se do espaço privado de
encontros entre mulheres, para a Universidade de Verona, onde algumas de suas
integrantes eram docentes. Simbolicamente, tal ato significava a superação do

122
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separatismo e a ocupação do espaço institucional da Academia, mesmo ainda não


representando uma entrada oficial na instituição, porque as atividades da comunidade
aconteceriam paralelamente às atividades ―oficiais‖ das professoras. Diótima desejava,
antes de tudo, ―abrir no interior da instituição a contradição de uma presença feminina
pensante e autônoma e ver concretamente o que se modificaria na própria instituição‖
(ZAMBONI, 2015, p. 1).
Para o desvelamento do novo passo do feminismo da diferença italiano,suas
fundadoras decidem aprofundar caminhos apontados por duas autoras (além do
aprofundamento em termos de método apresentado pelo coletivo de Milão). Irigaray,
que havia estabelecido que ―a diferença sexual era uma questão a ser pensada pela
filosofia‖ (SARTORI, 2001, p. 4), e Lonzi (2014),que mostrava a importância de se
buscar as raízes da opressão feminina, pensando tal diferença e não lutando pela
igualdade, porque a igualdade não é filosófica, mas política(ou apenas política). Assim,
as mulheres de Diótima definem como sua tarefa, na luta dos coletivos feministas, o
engajamento na produção teórico-filosófica feminista, porque avaliam que a teoria
feminista italiana ainda não possuía fundamentos filosóficos sistematizados – com
conceitos e categorias. Para elas, era necessário superar as abordagens já derrotadas na
luta política das mulheres, tais como, igualdade, emancipação e vitimização, inspiradas
por análises amparadas pelas categorias do pensamento político da modernidade e pela
perspectiva do contrato social, para produzir uma teoria que representasse o ser mulher
e as relações que estavam construindo ali.
Para pensara complexa relação entre mulheres e filosofia, não bastava considerar
o fato de que elas, que durante séculos foram alijadas do âmbito do pensamento, agora
tivessem acesso a ele. Era preciso construir, criar, a forma de ser mulher e pensar
filosoficamente. Segundo Lauretis (1990, p. 12), a tarefa da filosofia feminista, entre
outras coisas, é justamente enfrentar um paradoxo: pensar a diferença sexual por meio
de categorias de um pensamento que é sustentado pelo não pensamento da diferença em
si mesma. Diótima precisou encarar o desafio apontado por Lauretis, dedicando-se a
conceitos chaves da filosofia, para metodologicamente ser possível construir seu
caminho teórico sobre a diferença sexual. Adriana Cavarero(1991), integrante da
comunidade nesse período,ressalta que o percurso das pensadoras pela seara da filosofia
– para legitimar o que estavam construindo – significou uma invasão do pensamento
filosófico com as ferramentas do próprio pensamento filosófico. Muraca sintetiza:

123
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A partir da crítica do sujeito neutro supostamente universal da


filosofia moderno-ocidental e em contraposição ao feminismo da
igualdade, o feminismo da diferença elaborado por Diótima coloca a
diferença entre os sexos como uma diferença fundamental e
assimétrica, ao mesmo tempo em que recusa uma concepção a-
histórica e essencialista dessa diferença, que a identifique com a
divisão sexual dos papeis sociais. (MURACA, 2015)

O conceito filosófico constitui-se com o objetivo de ser abstrato, universal e


neutro, transcendendo os ―acidentes‖ da individualidade e da diferença sexual. Mas ele
esconde, atrás de si, o sexo que historicamente pôde construí-lo e o modus operandi de
excluir tudo que é excessivo, acidental, e que, na verdade, corresponderia ao outro
simbólico – o sexo feminino. Assim, o que é universalizado éo masculino, o
hegemônico, sem que se apresente sua perspectiva parcial. Cavarero (1991) ressalta que,
quando a mulher filósofa decide filosofar, ela se submete a essa falsa imparcialidade ou
dupla neutralização, que a exige se tornar uma pensadora neutra de uma neutralidade
parcial. Esse processo exclui sua diferença enquanto pensadora (pensando tanto no
feminino em geral, produzido simbolicamente, quanto na mulher real) e retira do objeto
pensado e do conceito construído a possibilidade de representar a diferença. Então, para
enfrentar a falsa neutralidade – já que não é possível admitir o neutro, se há
multiplicidade de existências – definiu-se como necessária a construção deum
pensamento sexuado. ―Esse pensamento teria que se transformar na potência
representativa do e para o sujeito feminino, capaz de nomear e pensar por ele mesmo,
tendo como ponto de partida sua originária e irredutível diferença sexual‖
(CAVARERO, p. 183). Em suma, de ponto de partida, a diferençase configura tanto em
conceito quanto em fundamento de um pensamento, que busca a representação do
feminino na filosofia (busca uma ordem simbólica feminina) e possibilita à filósofa
expressar-se e pensar a partir de seu gênero, afirmando seu ser real, existente,
sexualizado e corporal.
A libertação das mulheres deve considerar pelo menos três aspectos presentes na
experiência das italianas: a superação da injustiça; a manifestação de uma dimensão de
relação com o mundo omitida até aquele momento (COLLIN, 2009) e a criação de um
pensamento que fundamente e dê suporte à prática (transformadora) de mulheres
enquanto sujeitos. Por isso, Diótima não se empenhou em apenas criar um ponto de
vistahistórico-cultural novo – construído após a apreensão de categorias de sistemas de
pensamento já constituídos (tais como a psicanálise e o marxismo) –, retirando das
fissuras da história o feminino escondido. Mas, sem desconsiderar as revisões culturais
124
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e produções coletivas do movimento feminista, em especial do italiano e do francês,


lança-se à atitude revolucionária de criação do pensamento da diferença sexual, que
demandou novos conceitos e práticas inovadoras no fazer filosofia115.No livro Il
pensierodelladifferenzasessuale, de 1987, as autoras apresentam o processo de criação
desse novo pensamento e os conceitos e práticas que permearam tal intento, construído
em conformidade com as necessidades subjetivas e históricas do movimento a que
pertenciam.
O pensamento da diferença sexualconsidera a mulher como sujeito e objeto da
sua ação política e teórica. Busca eliminar a dualidade excludente entre público e
privado, trazendo para o ato de pensar – e para o local oficial da produção filosófica
com legitimidade – o modelo das práticas feministas de raciocínio oral – produzido no
presente, no encontro real entre mulheres e no páthos da diferença sexual –, que antes se
restringiam ao espaço privado. E sustentar todo o processo de pesquisa e criação, como
apresenta Cavarero (1991),em um feminino simbólico: um quadro de referências capaz
de garantir a necessária auto representação simbólica das mulheres enquanto sujeitos,
para que elas mesmas possam conhecer sua imagem e então encontrar-se e reconhecer-
se.
Com L'ordinesimbolicodella madre de 1991,Muraro leva a investigação sobre a
diferença à sua raiz, com seu esforço filosófico (seguindo a vocação da filosofia pela
busca dos princípios primeiros) em criar e fundamentar o conceito de ordem simbólica
da mãe: o feminino simbólico, que representaria o esforço por uma mudança cultural,
conceitual e linguística, que deslegitimasse a exclusão das mulheres de qualquer espaço
de atuação e/ou reflexão. Para isso, não focou em criticar toda a filosofia, mostrando seu
machismo e misoginia, mas em definir a origem que representa e dá suporte ao
feminino e que pode abrir caminhos para se pensar outras percepções do mundo e das
relações. A ordem simbólica da mãe é um pensamento estrutural – dialoga com a
psicanálise e com a linguística – e define como sua estrutura: ―a relação da filha com

115
As muitas publicações da comunidade, desde sua fundação até os dias atuais, se
dedicam a fundamentar os conceitos e as práticas, que têm a diferença sexual como fio
condutor para se pensar a luta das mulheres, tais como: a) dicotomia entre público e
privado, com foco na Filosofia; b) uma nova compreensão de autoridade; c) a
diferenciação fundamental entre política (pode ser conduzida através da diferença) e
poder (se configuraria pela perspectiva política simbolicamente masculina); d) uma
ordem simbólica e social feminina; e) corpo, presença e vivência como centrais na ação
política das mulheres e f) a escrita das mulheres ou escritura feminista como um
elemento marcante para a luta política.
125
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sua mãe concreta e pessoal‖ (MURARO, 1994), resgatando, da concretude,seu potencial


simbólico.
Já que seu foco é encontrar uma figura de autorização feminina, capaz de
legitimar a diferença sexual feminina como uma diferença humana originária, pensa na
filha em sua relação com a mãe e na ressignificação da filha – desprestigiada na família
patriarcal –, através da valorização da linhagem feminina. O sentido da relação entre
elaspode ser explicado como um amor ao saber, retomando o significado filosófico do
amor– apresentado a Sócrates por Diotima, no diálogo O Banquete116 –, mas com uma
nova origem que potencializa o feminino. Ela afirma a importância de definir o amor ao
saber como um ―saber amar a mãe‖, em reconhecimento à vida (à origem) e à língua
gratuitamente recebidas, realizando um movimento, simbólico, contrário àquele dos
filhos homens que – pensando na lei fálica da psicanálise – ―encobrem com
fundamentos ideais a origem de seu saber. Amam uma mãe muda, cuja obra apresentam
como uma imagem e uma aproximação da sua (obra), invertendo a ordem das coisas".
(MURARO, 1994, p. l2 e 13).
A Estrutura abordada por Muraro não teria um caráter moral, mas simbólico. A
ordenação, para a filósofa italiana, seria compreendida não como uma prescrição que
deve ser cumprida (lei moral de amor à mãe), mas como a tomada de consciência e o
nomear da relação da filha com a mãe, para o reconhecimento de sua origem.
Ressaltando a imanência e a presença corporal, a filósofa cunha uma origem
material117para a filosofia. Esta se fundamentaria no vínculo, rompendo com a
perspectiva da dualidade, que se expressa em dicotomias como sujeito-objeto, mente-
corpo (público-privado), natureza-cultura, às quais desconsideram o materno e afirmam

116
Diotima ensina a Sócrates a especificidade de Eros, que se encontra, enquanto
daimon, na posição intermediária entre os deuses – que possuem o bem e o belo, ou
seja, a sabedoria – e os humanos – que estão privados do bem e do belo. Sua natureza
intermediária possui uma origem mítica: é fruto da união entre a mãe mortal Penia
(Pobreza) e o pai divino Poros (Engenho). Daquela, herda sua condição de falta, de
carência de algo, o estado de aporia, e, deste, a capacidade de superar a falta e alcançar
a euporia. A união das características herdadas de ambos (a peculiaridade do amor
erótico) constituiria a especificidade do filósofo e do pensamento ao qual poderia se
dedicar – philia à sabedoria. No diálogo OBanquete de Platão, ―se estabelecem a
natureza, as finalidades e os limites da atividade filosófica‖ (FERRARI, 2012, p. 9).
117
A palavra matéria deriva etimologicamente de mater-tris, que significa mãe. No
feminismo da diferença de Diótima, mas já desde Lonzi, há um resgate do conceito de
matéria e o desenvolvimento de um materialismo, que se apoia na relação com a mãe,
com a terra, com a fonte material da vida. Cito Lonzi: ―a mulher é a outra cara da terra‖
(LONZI, 2014, p. 45).
126
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o paterno, fundamentando-se na relação simbólica de separação (dicotomia) entre o


filho e a mãe, que a vê de fora, abstrata. Supera-se a concepção de natureza enquanto
fonte ―apenas‖ de outros seres, mas não de cultura.
À ordem simbólica patriarcal faltaria uma estrutura elementar aonde o ser
pudesse se nutrir – que unisse o natural e o cultural – e que permitisse reconhecer a
origem do dar a vida como uma criação, em que fazem parte a mulher criadora (à qual é
necessário reconhecer a autoria) e a mulher criada (que continua a criação sustentada
pelo vínculo). O patriarcado, para a filósofa, é o responsável por essencializar as
mulheres. Ele se estrutura na maternidade como modelo a-histórico e idealizado, que
destinaria ―naturalmente‖ a mulher à vida privada (pré-política) e ao cuidado,ao romper
seu laço com a cultura (invizibilizando-a na estrutura que ordena a linguagem118 e seus
significados).―Falar de essencialismo é falar de dentro do patriarcado, que considera que
somente o pai é o fundamento de cultura, porque não é autor de vida‖ (RIVERA, 1994,
p. IX).
A ordem simbólica da mãe – o reconhecimento da dependência como origem
das relações entre mulheres – representaria a força, conceitual e política, necessária para
elas atingirem a autonomia que estavam buscando. Mas uma autonomia amparada por
uma dependência, compreendida a partir de uma nova perspectiva: como aliança ou
vínculo simbólico (um vínculo ético de confiança) capaz de sustentar, teórica e
praticamente, um contrato social entre mulheres diferentes (mãe-filha) e de
ultrapassaras dicotomias (e seus juízos de valor e hierarquias) e o paradigma liberal da
autonomia – do indivíduo constituído como sujeito de direitos isolado e abstrato. É a
abertura para se pensar alternativas à construção política e social – fundamentalmente o
liberalismo filosófico e político – que se tornou hegemônica, a partir da modernidade.
Em suma, a investigação sobre a diferença sexual, que decorre do
questionamento da dicotomia entre público e privado, nesse contexto italiano,
corresponderia à busca por uma origem, por um fundamento, que legitimasse o
feminino como sujeito, para que tivesse a possibilidade de construir outras bases sociais
que o representasse. Em Diótima, busca-se um fundamento estrutural para se pensar a

118
É importante destacar que, para Luiza Muraro e para o feminismo da diferença italiano, a linguagem e
as produções simbólicas são também corporais, materiais. Dessa forma, realmente não faz sentido para
essas reflexões a dicotomia natureza-cultura. Segundo Esposito, ―o feminismo italiano, inicialmente
engajado numa redescoberta da linguagem simbólica, começa a perceber a inadequação do horizonte
linguístico em relação a algo de irredutivelmente corpóreo, que desborda dos seus confins, sejam eles
metafóricos ou metonímicos" (ESPOSITO, 2010, p.10).

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política da diferença sexual, um princípio que legitime a existência originária da


diferença sexual e que possa apoiar a reflexão desenvolvida por mulheres.
Conclusão
No artigo, apresentei um percurso argumentativo para que fosse possível
compreender e contextualizar o pensamento feminista desenvolvido por Diótima. Como
panos de fundo para a condução desta análise, pautei-me em dois problemas teóricos
feministas, quais sejam: a dicotomia entre espaço público e privadoe a oposição entre
igualdade e/ou diferença, que são fundamentos teóricos, para definir os caminhos
políticos das lutas das mulheres contra os limites, concretos e legais,impostos a elas.
Apoiando-me em Okin (2008), optei por operar com noções paradigmáticas (e
igualmente gerais) de público e privado, não evitando as ambiguidadesque surgem
nessa compreensão, quando não se define especificamente o que cada pensadora ou
cada coletivo compreende de tal dicotomia.Além disso, associo à reflexão sobre público
e privado, uma noção geral da divisão sexual de trabalho, que historicamente também se
define por essa perspectiva, oque permite associar homens à esfera da vida econômica,
política e filosófica e mulheres à esfera privada da domesticidade e da reprodução
(OKIN, 2008).
Para pensar a especificidade da luta das italianas contra os limites impostos pela
separação entre público e privado e os papéis sociais definidos por ela, fez sentido
utilizar definições mais gerais. Os coletivos feministas encontraram dificuldades de
romper com o espaço priva do que, no contexto analisado, corresponde a uma
perspectiva de espaço doméstico ampliado, que abarca grande parte das lutas políticas
das mulheres. Pelas persistentes dificuldades de se estabelecer legitimamente no âmbito
ampliado do político, do filosófico, do econômico e suas respectivas instituições –
mesmo quando eram membros delas –, as pensadoras/militantes decidem ultrapassar a
perspectiva universalista da igualdade, inspirada ou pela luta liberal por direitos
individuais ou pela luta marxista pela eliminação da divisão de classe. Desenvolvem,
portanto, o caminho de afirmação da diferença, para que pudessem lutar por
transformações estruturais mais profundas (ou até radicais), que permitissem abarcar
amplamente uma existência feminina (das mulheres concretas às elaborações
simbólicas).
Para as italianas, sem uma mudança cultural e simbólica que fundamentasse a
existência do feminino como diferença, a luta política pela igualdade poderia dar acesso
a direitos, mas manter a subordinação feminina a princípios universalistas que negam a

128
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concretude material dos corpos e de suas experiências diferenciadas no mundo. Como


sintetiza Negri, para as feministas italianas é a ―ânsia de reconstrução que move a
afirmação mesma da diferença (...).Diferença é resistência: rompimento com a ordem da
reprodução, contra a validade universal da obediência feminina ao patriarcado‖
(NEGRI, 2005 p. 22).
Dessa forma, inspiradas pelas construções coletivas e conquistas históricas do
feminismo da diferença, as integrantes de Diótima desenvolvem seu pensamento da
diferença sexual, agregando suas experiências concretas, enquanto filósofas, mulheres e
pertencentes a uma comunidade filosófica feminina, parcialmente incluída no espaço
público. Buscam não ignorar quem são e o contexto em que estão e a partir daí
constroem uma teoria que represente isso: que fundamente – de forma sistemática e
rigorosa – suas ações e relações na sociedade (relações entre elas mesmas eentre elas e
os homens, no espaço privado e no espaço público).
O ponto chave da tentativa de Diótima de legitimar as experiências diversas no
mundo (as possibilidades que surgem da diferença sexual) foi a preocupação em
encontrar conceitos capazes de desconstruir a inferiorização do feminino no discurso
filosófico, ou melhor, na fundamentação simbólica da opressão e da hierarquia entre
masculino e feminino. Para isso, adotam uma atitude de ousadia e criatividade na
produção ou ressignificação de conceitos, para que possam melhor traduzir o que vivem
(a filósofa real, com sua diferença e a forma como sentem – páthos – essa diferença),
para o projeto de sociedade que almejam para si, enquanto mulheres italianas.
Em Diótima, a diferença sexual corresponde a uma práxis transformadora da
experiência das mulheres. Uma transformação da realidade para que mulheres reais
pudessem ser filósofas de um pensamento sexuado, que vence os limites teóricos e
práticos da neutralidade filosófica. A diferença sexual deixa de ser um conceito, uma
afirmação conceitual da diferença, para se tornar o fundamento material, de onde partem
todas as reflexões práticas e teóricas das mulheres, de um pensamento sexuado (que
afirma a possibilidade da multiplicidade existencial).
O método desenvolvido por Diótima, cunhado na multiplicidade da vida e nos
desafios das experiências, aborda a diferença sexual como práxis, oferecendo
ferramentas originais para analisar as demandas das diferentes mulheres a partir de suas
vidas, isto é, a partir do páthos que as mobiliza conforme contextos históricos, políticos,
culturais e territoriais específicos. Dessa forma, a produção e a trajetóriadessa
comunidade podem ser fecundas para pensar o feminismo contemporâneo – em

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diferentes contextos, principalmente nos países subalternizados ou no que se denomina


sul global –, que deve ser, em alguma medida, interseccional. Ou seja, estar atento a
como são múltiplas as mulheres e a como suas condições, e suas produções teóricas e
práticas, deveriam se alterar conforme as múltiplas opressões – gênero, raça, etnia,
classe, sexualidade, geração, território etc. – que as posicionam socialmente.

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O AMOR E O FEMININO NO DISCURSO DE SÓCRATES-DIOTIMA NO


BANQUETE DE PLATÃO.

Felipe Gustavo Soares da Silva

RESUMO

O presente trabalho analisa o discurso de Sócrates-Diotima no Banquete de Platão


buscando demonstrar como a passagem dá ênfase ao aprendizado de Sócrates com
Diotima acerca do amor. Para tanto, fizemos a leitura da narrativa no trecho específico
do diálogo em que ocorre o relato da cena, e buscamos uma chave de leitura
considerando o feminino como modelo de amor nas relações humanas, afim de
responder porque, num diálogo que demonstra a supremacia dada ao masculino na
sociedade grega, Platão usa a figura feminina como mestra de Sócrates, ensinando-o,
afinal, o que é o amor.

Palavras-chave: Mulher; Amor; Erótica; Aprendizagem.

ABSTRACT

The present work analyzes the discourse of Socrates-Diotima in Plato's Banquet trying
to demonstrate how the passage emphasizes the learning of Socrates with Diotima about
love. To do so, we read the narrative in the specific section of the dialogue in which the
story of the scene occurs, and we search for a key of reading considering the feminine
as a model of love in human relations, in order to respond why, in a dialogue that
demonstrates the supremacy given to the male in Greek society, Plato uses the female
figure as the teacher of Socrates, teaching him, after all, what love is.

Key-words: Woman; Love; Erotic; Learning.

Introdução

O Banquete de Platão, conhecido também por Simpósio - ζσμπόζιον - é uma das


obras mais conhecidas do autor, normalmente é estudada na Filosofia119, na Educação e
na Psicologia, visto o conteúdo que apresenta sobre a temática do amor na antiguidade.
O cenário da obra é a celebração do triunfo de Agatão no teatro no ano de 416 a. C.
A obra é composta por sete discursos sobre o amor (Eros). Cada personagem
fala de Eros a partir de uma perspectiva particular, cada discurso é uma expressão
particular da personagem que revela um aprendizado, um contexto e uma prática
cultural atrelada ao perfil de quem fala: poeta, médico, guerreiro, filósofo, são

119
Escolhemos a tradução seguinte: PLATÃO. Simpósio. Tradução de Carlos Alberto Nunes. – 3ª ed. –
Belém: ed. UFPA 2011. Para citá-la, abreviamos como Symp.

132
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exemplos das funções desenvolvidas na cidade e que se fazem presente na mesa. Mas o
que nos chama atenção e convida a escrita deste trabalho é a fala de Sócrates: ele usa a
figura feminina de Diotima para explicar como aprendeu o seu conceito clássico de
amor. O recurso a uma mulher causa espanto visto que, numa sociedade onde a mulher
era notadamente diminuída frente a importância política e educativa do homem e, ainda
mais, na Filosofia de Platão, onde o feminino não é um lugar de destaque, considerar
Diotima mestra de Sócrates nas coisas do amor é no mínimo estranho e talvez queira
revelar algum fundamento específico sobre a figura da mulher ou sobre a essência do
amor a partir da figura feminina.
Platão não defende exatamente uma postura que condene a mulher em sua obra,
mas essa visão é um tanto ambígua e cheia de argumentos prós e a favor 120; Em síntese,
Jaeger, (2011, p,815), demonstra como Platão concebia a mulher frente à sua época.
Platão acredita na capacidade da mulher para cooperar criadoramente
na vida da comunidade, mas não é onde parece que devia busca-la, na
família, que ele procura esta cooperação. Não partilha a opinião
dominante no seu país, segundo a qual a mulher é destinada pela
natureza exclusivamente a conceber e a criar filhos e a governar a
casa. (...) reconhece que a mulher é em geral mais fraca que do que o
homem.

Jaeger, referindo-se claramente à presença da mulher na República, tende mais


a considerar que Platão defende ideia de que a mulher seja colaboradora do homem no
121
projeto da cidade. Outra visão sobre esta questão, seria a de Capriglione (1990) , que
considera que Platão deprecia a figura da mulher em suas obras e, esta visão, tende a
concordar de maneira mais ampla com os conceitos de educação (παιδεία) da
antiguidade.
Outro fator importante é que não é suficientemente claro que na Grécia antiga a
mulher fosse objeto do amor (θιλíα) mas tinha apenas uma função social bastante
inferior a do homem, lhe servindo por meios de serviços domésticos e artesanatos de
pequeno porte, além é claro, do dever de geração dos filhos. O amor grego como tal era
objeto de relações masculinas, a chamada pederastia. A pederastia era um processo

120
Sobre esta questão especificamente, recomendamos a leitura de PRIETO, Maria
Helena Urenã. Breves interrogações sobre a condição feminina na obra de Platão.
HVMANITAS — Vol. XLVII, 1995 P. 343-356. A autora mostra como é problemático
a postura de Platão diante da relação homem-mulher em sua obra. Dentre as quetões que
a autora investiga, está o fato de que a mulher é ou não objeto de Philia na concepção
platônica.
121
CAPRIGLIONE, Jolanda C. La passione amorosa nella città «senta» donne. —
Ética e Prassi Politica, Nápoles, Nuove Edizioni Tempi Moderni, 1990.
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educativo que envolvia a relação de um homem mais velho com um mais novo e nela
aprendia-se e ensinava-se todos os elementos que preparariam o jovem para sua vida na
pólis. A mulher estava fora desse projeto, o que apenas soma elementos para o
pressuposto de que a figura feminina não era relevante nem no contexto histórico grego,
senão por gerar filhos, nem tão pouco na Filosofia de Platão, onde, há uma certa
indecisão do autor em considerar a mulher num nível hierárquico inferior ao do homem,
seja pela natureza mesmo seja pelas atividades desenvolvidas.
O que consideramos aqui é que, Platão não é claro em relação à sua
interpretação da figura da mulher em suas obras, talvez nos coloque em uma de suas
aporias mais uma vez ao colocar a figura da mulher no Banquete de uma maneira
bastante positiva e sugestiva à uma interpretação de que ela tenha um papel muito
importante na vida do homem. Examinar o Banquete é uma alternativa de encontrar
uma saída ou um argumento que possa ser utilizado para falar de uma defesa ou uma
função da mulher nas questões do amor, ainda que, defendamos aqui, que existiria um
amor feminino ou pelo menos uma experiência das mulheres que ajuda a compreender o
conceito de amor como um todo, no Banquete. Como todas as experiências gregas, o
amor necessita ser aprendido e ensinado: na narração da experiência com Diotima, é
Sócrates que reconhece a necessidade de aprender sobre o amor com um mestre -
διδαζκάλων - (Symp.206d).
Podemos aqui levantar a hipótese de um apelo educativo ao amor onde a mulher
seria o modelo mais primário e ao mesmo tempo mais importante para falarmos o que é
o amor. Sócrates dá testemunho de um aprendizado de sucesso nas coisas do amor, cena
esta que ganha contraste frente ao fracasso de Alcibíades, relato da cena posterior a de
Sócrates. Ora, só se aprende a amar com as mulheres? Ou seria a mulher o modelo de
amor? Qual a importância então pode ser inferida da figura feminina a partir do
Banquete? Estas perguntas podem ser respondidas se considerarmos o fato de que o
amor no Banquete aparece como um aprendizado, e Platão talvez de fato, encontre em
sua obra, um espaço para mostrar a importância da figura da mulher como educadora da
intimidade do homem: o amor é uma forma profunda e que nos liga à todas as coisas.
Os próprios relatos do Banquete mostram que o amor é um deus poderoso (quem fala),
um princípio que está em todas as coisas (Erixímaco) e um princípio restaurador da
condição humana (mito dos andróginos).

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Contexto do amor feminino: o discurso de Pausânias e a defesa da pederastia grega

A figura feminina aparece no discurso de Pausânias, antecedendo a fala de


Sócrates, mas de maneira ambígua: apesar de defender o amor dirigido a alma e não ao
corpo ele se usa da figura feminina da deusa do amor Afrodite 122 para representar uma
duplicidade de Eros. São dois Eros assim como são duas Afrodites. ―Uma, a mais velha
sem dúvida, não tem mãe e é filha de Urano, e a ela é que chamamos de Urânia, a
Celestial; a mais nova, filha de Zeus e de Dione, chamamo-la de Pandêmia, a Popular‖
(Symp. 180 d-e) O fato de usar Afrodite é uma recorrência ao mito para fazer seu louvor
a Eros. Ele apesar de usar dessa figura mítica não demonstra em seu discurso nenhum
contributo dela para o problema do amor. Ele faz comparações do amor terreno,
corporal e inferior à Afrodite Pandêmia e do amor celeste e virtuoso à Afrodite Urânia.
O amor corporal, somente, inferior, seria o amor das mulheres ou pelas mulheres, visto
a impossibilidade dessas atingir o amor intelectual, dos homens.
O amor feminino era um problema educativo: a mulher era escrava das próprias
paixões, considerada débil e associada a toda desmedida possível. Portanto, a distinção
de amor celeste e terreno era necessária para mostrar o contexto grego em que a mulher
estava inserida, ademais, era necessário, portanto, negar uma forma de amor associada
ou que representasse o feminino. Neste contexto, observa ROJAS (2004, p.294) o
discurso de Pausânias, apesar de recorrer à figura da deusa Afrotide, pode e deve ser
considerado
(...) negação do feminino, que se revela nesta duplicidade do Eros e é
também a negação da sensualidade, do descontrole, a paixão
propriamente feminina do amor, a tudo que vincula a Dionísio com as
mulheres e que se ausenta deste erotismo. (...) O feminino é, de certa
forma, por sua natureza, um desafio a essas regulações que sancionam
a quietude, e a seriedade do amor celeste.

Eros vulgar, ou amor vulgar: era assim que se considerava o amor feminino e
Pausânias acaba por defender a pederastia grega como forma de amor superior. O
predomínio do amor masculino garante que se possa amar belamente e corretamente. O
amor feminino ou o amor ao gênero feminino era considerado frágil e débil pelos
motivos que já apresentamos. A virilidade, da qual a mulher não participava, garantia a
realização política do jovem educando e dos adultos da pólis. A cidade grega era
masculina e viril, amar era cuidar das relações com as quais os cidadãos da pólis

122
Ἀθροδίηη – Afrodite, deusa do amor, nascida da espuma (ἀθρός) do mar e de Urano.
135
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lidavam. A preocupação do homem grego era, portanto, em não ser escravo de ninguém,
nem de si, nem de outro. A escravidão aos desejos era retrato de uma forma de amor
feminina e promíscua, desprovida de moderação e cuidado.
A fala de Pausânias será superada pela de Sócrates quando este último unificar o
desejo (Eros) em seu discurso falando da natureza desse desejo. A duplicidade de Eros
apontada na escala erótica narrada por Sócrates como etapas de gradação do desejo até
contemplar o Belo em si. Desta forma, para nosso trabalho a fala de Pausânias torna-se
relevante apenas por mostrar, de certa forma, a condição da concepção do amor às
mulheres como um amor inferior e desligado da atividade intelectual tão preconizada na
pólis. Platão parece-nos de propósito situar este discurso como uma premissa antes de
demonstrar seu aprendizado com uma mulher. Talvez o discurso exista e recorra a uma
figura feminina para contextualizar o uso de Diotima como mestra de Sócrates.
Vejamos porque, nas coisas do amor, Sócrates foge a regra do aprendizado masculino

O discurso de Sócrates- Diotima

O discurso de Sócrates é considerado o ápice da obra não apenas por narrar a


experiência de uma figura central da Filosofia antiga, não apenas por mostrar como o
mestre de Platão aprendeu e revelou-se aprendiz nas coisas do amor, mas, sem dúvida,
pelo conteúdo filosófico que o discurso carrega acerca do amor123 e da natureza do
desejo (filosófico).
O que se sabe sobre Diotima é no Banquete de Platão, o que pode sugerir que ela
seja uma personagem do filósofo para ilustrar o conceito de amor, todavia, todos os
personagens de Platão correspondem a convivas de Platão. Nails (2002 p.137), fala de
falta de provas para defender a existência histórica da personagem, de fato, não há
recorrência dela em outras obras de Platão até o presente momento, entretanto, seu
aparecimento no Banquete serve-nos para então defender a ideia de que Platão parece
provocar a presença de uma mulher para demonstrar a origem do amor em seu conceito
mais apurado, conforme demonstra. Nussbaum (2009), define Diotima como
personagem fictício:
(...)somos levados a perguntar sobre o seu nome e porque Platão deve
tê-lo escolhido. O nome significa ―honra de Zeus‖. Alcibíades tinha

123
Sobre o assunto do amor Platônico pode-se consultar o recente trabalho: O que é o
amor Platônico? Uma resposta a partir da relação erótica entre Sócrates e Alcibíades no
Simpósio de Platão. In. Hélade. Dossiê: homoerotismo na antiguidade. Vol.2. n. 3, 2016
P.42-48 disponível em: http://www.helade.uff.br/volume2_numero3_2016.html
136
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uma concubina, uma cortesã cujo nome registrado pela história é


Timandra. Esse nome significa ―honra do homem‖. Aqui, pois,
também Sócrates toma uma concubina: uma sacerdotisa em lugar de
uma cortesã, uma mulher que prefere o intercurso da mente pura aos
prazeres do corpo, que honra (ou é honrada por) o divino em lugar do
meramente humano.124
A cena do contrato de Sócrates com Diotima inicia-se pelo reconhecimento do
filósofo de que ouviu um discurso sobre o amor com uma mulher (γσναικὸς) de
Mantinéia (Symp. 201d). Segundo ele, Diotima (Διοηίμας) era entendida (ζοθὴ) nas
coisas do amor (Symp. 201d). A primeira constatação, em reconhecer uma figura
feminina como entendida já demonstra uma certa credibilidade que ele oferece a ela. O
motivo, talvez seja esclarecido quando mais à frente descrever a escala erótica.
O passo do diálogo entre Sócrates e Diotima cumpre definir Eros como
intermediário, carente, mediador entre os homens e os deuses (Symp. 202e).
Prosseguindo, demonstra, com recurso ao mito, a genealogia de Eros (Symp. 203b-
204a) Veja que, de fato, o aprendizado de Sócrates parece ter sido profundo e frutuoso:
Diotima mostra-se entendida sobre o amor na sua origem e por isso consegue falar de
sua natureza o que, posteriormente, será utilizado para definir Eros como filósofo. Na
interpretação de Oliveira, (2016 p.32)
na fala de Diotima, a proclamação ousada de que existe uma
associação intrínseca entre éros e o exercício da atividade filosófica e
de que a filosofia, através de uma correta utilização da pederastia ou
do amor aos jovens (tò orthôs paiderastân) (Symp.211b), eleva nossa
alma paulatinamente acima de tudo aquilo que é ordinário ou vulgar,
em direção à visão de uma beleza inefável.125

A racionalidade que girava em torno do amor aos homens na pederastia


constituía um caminho filosófico conhecido e apresentado por Diotima. Uma figura
feminina entende e determina que é no amor masculino que se encontra a verdadeira
Sabedoria. A constatação de Diotima, longe de um simples reconhecimento, pode ser
interpretada como elemento de profundo entendimento (ζοθὴ) sobre o que é o amor.
Só quem ama verdadeiramente sabe dizer o que é o amor. Mais a frente, Diotima irá
demonstrar que amar será a procura da metade ou do todo que lhe falta considerando
que essa metade ou todo seja bom (Symp. 205e). Esta passagem pode ser encarada
como mais uma defesa da pederastia como a relação excelente. A educação (amorosa)

124
NUSSBAUM. Martha C. A fragilidade da bondade. Fortuna e ética na filosofia
grega. São Paulo, Martins fontes. 2009, p.155
125
OLIVEIRA, Richard Romeiro. Éros, natureza humana e Filosofia no Banquete de
Platão. HYPNOS, São Paulo, v. 36, 1º sem., 2016.

137
Revista Sísifo – vol. 1, nº 6. Novembro. Ano 2017 - www.revistasisifo.com

entre homens garantia o sucesso político do jovem e mantinha uma sociedade de


homens com funções nas quais não se encaixavam as mulheres. Não há espaço para
amar mulheres enquanto se busca o ser Bom. Este ser bom exige o reconhecimento de
uma capacidade intelectual desenvolvida da qual não participam as mulheres.
A questão pode ser aprofunda quando Diotima distingue fecundidade na alma e
no corpo e vemos o amor feminino diminuído em importância no projeto do amor
masculino. O amor masculino era o cenário do amor espiritual do qual as mulheres
estariam excluídas. Assim relata Sócrates ter aprendido com a sacerdotisa:
Os indivíduos, prosseguiu, cuja força fecundante reside apenas no
corpo, voltam-se de preferência para as mulheres – é a sua maneira
peculiar de amar – a fim de gerar filhos e, por esse modo, assegurar
para si próprios, conforme creem, a imortalidade, ventura e renome
duradouro. Os fecundos na alma...Sim, porque há também pessoas, me
falou, cuja força fecundante reside na alma, muito mais ativa do que a
do corpo, com relação às coisas que convém à alma conceber e
procriar. E que lhes convém conceber? A sabedoria e as demais
virtudes de que, precisamente, os poetas são os pais, e o s artistas
dotados de espírito inventivo. A porção mais importante e bela da
sabedoria, continuou, é a referente ao governo das cidades e à
organização da família, o que recebeu o nome de prudência e justiça.
Quando a alma de um desses homens divinos encerra essa virtude
fecundante e, na idade própria, sente desejos de fecundar e procriar,
põe-se também, segundo creio, a procurar por toda a parte o belo para
nele procriar, o que jamais poderia dar-se na fealdade. Essa a razão de
deleitar-se muito mais com os corpos belos do que com os feios, por
querer procriar; e se coincide encontrar uma alma bela, generosa bem
nascida, alegra-se sobremodo com essa dupla beleza, a do corpo e da
alma. Na presença de tal criatura, ocorrem-lhe, de pronto, as mais
elevadas expressões sobre o valor da virtude, os deveres e as
aspirações dos homens bons e, de imediato, procura doutriná-la.
(Symp. 208e-209b)126

A distinção é bastante clara entre os amores ao corpo (feminino) e à alma


(masculino). Mais uma vez justifica-se a pederastia grega, mais uma vez o amor
feminino é diminuído frente ao masculino. Segundo Reeve, (2011) ―Como a pederastia
Ateniense, Diotima reconhece dois tipos fundamentalmente diferentes de amor, duas
variedades fundamentalmente diferentes do desejo de dar à luz na beleza.‖127 A essência
do amor, masculino por excelência, consiste em amar à alma e nela gerar beleza, o que
entendemos educar para as virtudes e para a pólis. É o amor da educação masculina ao
qual Diotima se dirige. Gerar no corpo, apenas, dirigir-se para as mulheres, é uma

126
Grifos nossos.
127
REEVE, C.D.C. Eros e amizade em Platão. In Platão. Hugh e Benson e
colaboradores. Tradução Marco Zingano – Porto Alegre, Artmed, 2011. P. 282
138
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atitude que recebe uma espécie de crítica de Diotima quando diz ―conforme creem‖
(Symp.208e) o que nos parece demonstrar uma falta de credibilidade destinada aos
amantes dos corpos (femininos).
No ritmo dialético, Platão conduz o leitor do diálogo ao ápice da obra, a
chamada Scala amoris – Escala do amor. Vejamos
É o seguinte, disse: quem quiser percorrer nessas questões o
verdadeiro caminho, deve começar desde a infância a procurar belos
corpos. De Início, se dispuser de um guia seguro, amará apenas um
corpo, ocasião propícia de gerar belos discursos. De seguida,
compreenderá que a beleza de um determinado corpo é irmã da beleza
de outro qualquer, e que, se ele tiver de empenhar-se em pós da ideia
do belo, fora o cúmulo da insensatez deixar de perceber que a beleza
de todos os corpos é uma só. Alcançado este ponto, tornar-se-á
apaixonado de todos os corpos belos e relaxará, por outro lado, a
violência do amor de um único corpo, que passará a desprezar, por
haver reconhecido a sua insignificância. Daí por diante, terá de achar
que a beleza da alma é muito mais preciosa do que a do corpo, de
forma que uma alma de dotes excepcionais, até mesmo cum corpo
carecente de viço, é quanto lhe basta para amá-la e dela cuidar, e gerar
belos discursos, cultivando, de preferência, os temas que contribuem
para a formação dos jovens. Passando dai para contemplação da
beleza dos costumes e das leis, compreenderá que a beleza é uma só
em todos os casos, para concluir, afinal, pelo nenhum valor da beleza
corpórea. Dos costumes, passará para o estudo das ciências, afim de
contemplar, também, sua beleza muito própria, e abrangendo, assim,
num único lance d‟olhos o âmbito tão vasto da beleza, não se deixará
prender servilmente à beleza de um único objeto, a de um adolescente,
por exemplo, de alguma pessoas ou ocupação isolada, à maneira de
escravo sem préstimo e de poucas falas, porém voltado para o vasto
oceano de belezas e, dominando-o com a vista, gerará belos e
magníficos discursos, com o que brotarão pensamentos em barda de
seu inesgotável amor à sabedoria, até que, robustecido e aperfeiçoado,
alcance o conhecimento único do belo que passarei a relatar-te.
(Symp. 210 a- 211)

A scala amoris é a descrição de como pode-se atingir um amor verdadeiro a


partir do desligamento de tudo que é corporal. O amor foi ensinado por Diotima a
Sócrates por uma experiência que acreditamos ser típica da mulher: a renúncia ao corpo
do seu marido e do seu próprio. O prazer cultivado pelo homem grego está na relação
homo e não na hétero. Numa sociedade onde a mulher era menosprezada, cabendo-lhe
apenas procriar e servir em atividades de pequeno porte, amar era quase uma proibição.
Mas será que elas não amavam? Todavia, o amor ao Belo, aspiração apresentado como
centro da atividade filosófica no Banquete, não era objeto do amor das mulheres, cridas
como incapaz de ascender filosoficamente a este nível de aspiração.

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Nossa ideia é aceitar em parte essa regra do amor grego. Parece-nos que pode-se
admitir que a mulher grega não faça Filosofia naquele contexto mas entender o que é
um amor que desprende-se do corpo pode ser uma alternativa para entendermos porque
Platão usa de uma mulher para dizer o que é o verdadeiro conceito de amor. A
existência de Diotima não é um problema para nossa questão, o fato é que se Platão a
coloca no diálogo é porque talvez queira ou pelo menos pensava que a mulher pudesse
fazer parte da escala erótica, obviamente, se chega às últimas etapas isso não é evidente,
mas que ela compreende o processo de dessexualização do amor, parece-nos que pode
ser uma aposta de Platão sobre o assunto. Vale ressaltar que apesar de concluir o
conceito do amor como contemplação do Belo e restringir aos homens essa tarefa, o
próprio diálogo nos mostra que não há garantia alguma da realização desse projeto,
veja-se a cena seguinte à fala de Sócrates no diálogo, a de Alcibíades (Symp 212d).

Diotima, dessexualizada?

A mulher pode ensinar o que é o amor talvez por amar sem reciprocidade. Platão
fala do amor entre homens, por ora crítica o amor de homens por mulheres, mas silencia
quando o amor das mulheres pelos homens. Diotima pode representar a necessária
dessexualização que a mulher é obrigada a praticar visto que o amor do homem era
direcionado a outros homens na pederastia, a mulher devia apenas servir de receptáculo
e gerar os filhos: por isso uma sacerdotisa dessexualizada fala tão bem do amor. Ora, a
concepção de amor em Platão é um caminho de esforço individual do homem que
consiste em superar o amor pelo corpo e atinge por essa via de dessexualização a visão
do que há de mais Belo, tornando-se assim um amor espiritual. Deixar o corpo é
ascender espiritualmente pela via do amor, e esta será a expressão mais clara e evidente
da natureza do desejo filosófico. Diotima, apesar de não ser um homem, mas uma figura
feminina, parece ter conseguido, percorrido o caminho de aprendizado do amor.
Apesar das mulheres gregas não participarem do processo educativo da mesma
maneira dos homens, parece-nos que a inclusão de Diotima revela como um ser
dessexualizado é então capaz de falar o que é o amor. Essa compreensão do conceito de
amor só é possível para quem conseguir desprender-se do que é corporal. Obviamente,
se considerarmos a cultura grega em torno da mulher podemos deduzir a existência
meramente fictícia de Diotima, todavia, se crermos que no silêncio em torno da
experiência amorosa da mulher, apenas ligada ao amor pelo corporal, existe uma

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possibilidade de vivência de um amor dessexualizado, pode-se então justificar a


inclusão de Diotima como mestra de Sócrates.

Referências

BRANDÃO, Junito de Souza. Dicionário Mítico-etimológico da Mitologia grega. São


Paulo, Vozes, 2014.

CAPRIGLIONE, Jolanda C. La passione amorosa nella città «senta» donne. — Ética


e Prassi Politica, Nápoles, Nuove Edizioni. Tempi Moderni, 1990.

DA SILVA, F.G.S O que é o amor Platônico? Uma resposta a partir da relação erótica
entre Sócrates e Alcibíades no Simpósio de Platão. In. Hélade. Dossiê: homoerotismo
na antiguidade. Vol.2. n. 3, 2016. P. 42-48.

JAEGER, Werner. Paideia: a formação do homem grego. 5ª edição. São Paulo: Martins
fontes. 2011.

OLIVEIRA, Richard Romeiro. Éros, natureza humana e Filosofia no Banquete de


Platão. HYPNOS, São Paulo, v. 36, 1º sem., 2016, p. 25-64.
PLATÃO. Simpósio. Tradução de Carlos Alberto Nunes. – 3ª ed. – Belém: ed. UFPA
2011.

_______. A República: [ou sobre a justiça, diálogo político]. Tradução: Anna Lia
Amaral de Almeida Prado. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

PRIETO, Maria Helena Urenã. Breves interrogações sobre a condição feminina na


obra de Platão. HVMANITAS — Vol. XLVII, 1995. P. 343-356.

REEVE, C.D.C. Eros e amizade em Platão. In Platão. Hugh e Benson e colaboradores.


Tradução Marco Zingano – Porto Alegre, Artmed, 2011.

Biografia

Prof. Ms. Felipe Gustavo Soares da Silva. Doutorando em Filosofia (UFPE-UFPB-


UFRN), Mestre em Filosofia (UFPE).

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Estética e pensamento em Merleau-Ponty


Ou: sobre o sensível e seus rebentos
Resumo
O artigo versa sobre o mundo sensível como solo do pensamento e tomará como
referência a filosofia de Merleau-Ponty. Vê-se, pois, que em nossa abordagem a estética
de que nos ocuparemos não será aquela da tradição cunhada no séc. XVIII,
comprometida com as noções de arte e de belo, mas uma estética interpretada, em seu
sentido radical,comologossensível.A estética, pois, será a vida em movimento e, como
tal, elemento comum: existir é já ser disposto esteticamente no mundo da vida. Voltar-
nos-emos, a partir de tal ancoragem,para o que daí decorre em relação à experiência do
pensamento e sua relação com a verdade – experiência estatomada no crivo da
comunhão e da multiplicidade –, desembocando, por fim, na perspectiva de uma ética
intrínseca à filosofia merleau-pontiana, sem, no entanto, aqui tematizá-la.

Palavras-chave: Sensível, Pensamento, Merleau-Ponty, Coexistência.

De início

Move-me a este tema uma atenção a algo que poderia ter como núcleos
basilares, o que se chamaria algo assim como (i) cidadania intelectuale (ii) dilatação dos
lugares por onde a verdade do Ser – isto é: do que somos – se manifesta. Ou, ainda, se
quisermos: partilha da razão e direito ao verdadeiro – como direito a um lugar na
verdade, como expressividade e, na mesma medida, direito a ser via de acesso a esta.
Trata-se, pois, de uma atenção que se volta para a liberação da verdade, o que implicaria
uma igualdade na expressão do verdadeiro, seja no que se mostra, seja no modo pelo
qual se mostra – os caminhos vários da linguagem – mesmo que, por vezes, a verdade
que se nos mostre seja aquela de qualquer coisa que não apreciamos ou aprovamos ou
desejamos. Tal disposição compreensiva da existência em seu acontecimento múltiplo e
simultâneo seria, entretanto, o solo primeiro a partir do qual fazemos nossas escolhas,
empreendemos decisões, abrimo-nos ética e politicamente no mundo da vida.
De resto, uma interrogação perdura na atenção aos núcleos a que nos referimos,
é ela: uma efetiva conduta interrogativa que tome o sensível como solo nos leva a uma
revisão daquilo que habitualmente entendemos por filosofia e, ainda, haverá em tal
conduta um significado ético?
Como a perscrutação de tais questões – verdade, sensível, pensamento ou, se
quisermos, filosofia – nos leva a cotejar outras correlatas, pelo menos na tematização a

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que estamos nos propondo, posto guardarem uma ligação intrínseca seja no modo da
afinidade, seja naquele da oposição, aqui faremos referências a alguns termos – tais
como metafísica, arte etc. – sem propriamente aprofundá-los conceitualmente. Peço
licença ao leitor ou leitora para isto.

O tema mesmo

Pois bem, ao propor resumidamente este artigo, disse que nos voltaríamos – e
quando escrevo nos estou me referindo a mim que escrevo e a você que lê – para o
mundo sensível como solo do pensamento e que tomaria como referência a filosofia de
Merleau-Ponty. Disse também que com tal afirmação já se poderia ver que, na
abordagem que se segue, a estética de que nos ocuparemos não será aquela da tradição
cunhada no séc. XVIII – uma terminologia clássica tal qual a temos no interior dos
estudos ou campos de conhecimentos filosóficos cunhada num movimento de
pensamento que identifica a (i) verdade com a lógica, (ii) a beleza com a estética ou
juízo de gosto do espectador; e toma, a princípio, a arte como cópia, imitação, aparência
–, mas uma estética interpretada em seu sentido radical, na perspectiva em que a
experiência do ser é estética originariamente, sem o compromisso apriorístico com as
noções de arte e do belo.
A estética, tal como concebida na metafísica clássica – pensamento que abarca o
que acabamos de referir ao fazermos menção à concepção cunhada no séc. XVIII –,
diz-nos Nunes (1969, p. 52),
representa uma posição interpretativa em face do belo e da obra de
arte, posição que criou a tradição e que nos impôs, sob uma pauta
comum de pensar, certas categorias de que até hoje nos servimos
para falar da arte e da sua essência. Ela encerra uma experiência
sedimentada na qual se acha resumido todo um ciclo histórico do
pensamento. Esse ciclo abrange o conceito platônico de Belo, a
teoria da imitação de Aristóteles, o sentido da palavra tekne para os
gregos, os transcendentais da escolástica, as ideias de belo natural,
de arte como artifício ou como produção da beleza, de contemplação
desinteressada, de representação, de vivência.

E, como tal, guarda já consigo os preceitos do dualismo clássico entre sensível e


inteligível, corpo e alma, mundo e pensamento. Na radicalidade da filosofia merleau-
pontiana em direção ao sensível, melhor: em direção à indivisão ontológica entre

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sensível e inteligível, entretanto, vê-se uma retomada da metafísica em outra


perspectiva. Nela

o que existe de metafísico no homem não pode mais ser remetido a


qualquer além de seu ser empírico – a Deus, à Consciência –, é no
seu ser mesmo, nos seus amores, nos seus ódios, na sua história
individual ou coletiva que o homem é metafísico, e a metafísica não
é mais, como dizia Descartes, o assunto de algumas horas por mês;
ela está presente, como o pensava Pascal, no menor movimento do
coração (MERELAU-PONTY, 1996, P.36).

A via de pensamento que levará Merleau-Ponty a se opor à metafísica clássica,


apresentando-nos as ondulações metafísicas do Ser imbricadas à própria experiência
sensível, é a mesma que levou o filósofo ao distanciamento da estética tal qual
compreendida no interior da metafísica que ele recusa:

O âmbito da estética, naquele que é o seu sentido convencional,


encontra-se arredado da reflexão pontiana. Merleau-Ponty não
pretende constituir uma estética, nem visa o estético enquanto tal: os
seus textos dispensam qualquer referência às categorias estéticas,
nunca mencionando o belo, o sublime, o gosto, ou a caracterização
do objeto e da experiência estéticos. O que encontramos é, no
interior de uma ontologia que se faz na dinâmica da vida de toda a
realidade, uma estésica. A primazia atribuída à experiência do corpo
estende-se a uma profunda reflexão sobre o papel dos sentidos, da
sensorialidade e da própria sensibilidade (MATOS DIAS, 2002,
345).

É decerto a partir deste solo de compreensão que para Merleau-Ponty, lembra-


nos Eliane Escoubas (1992, p. 126), ―a obra de arte é estética, mas sob a condição de
reelaborar o conceito de estética‖, isto é, de se dirigir para a dimensão ontológica do
sensível como lugar do sentido, donde uma interpretação da estética em sua acepção
radical, originária, ―como estésica – aisthésis – melhor, estesiologia,‖dirá Isabel Matos
Dias, ―no sentido de um ‗logos sensível‘, ou como expressão do Logos du monde
sensible, na terminologia da La Prose Du Monde‖ (p. 345).Com efeito, segue
dizendoMatos Dias (2002, p. 345),

Merleau-Ponty acompanha Paul Valéry, em Discurso sobre a


Estética, de 1937, quando afirma que ―se me fosse dado escolher
entre saber como e por quê uma coisa é bela e saber o que é sentir,
escolheria o sentir, na certeza de que este me devolveria de imediato
todos os segredos da arte.

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É, aliás, nesta perspectiva que, para Merleau-Ponty (2011, p. 42), a obra de arte
―contribui para definir nosso acesso ao ser‖. Quando evoca as artes em seus textos ou
preleções, não é à definição de um conceito desta ou daquela que quer chegar, mas às
tramas do ser abertas por todas e cada uma delas. O lugar da arte no pensamento de
Merleau-Ponty é, pois, aquele de uma subversão: não é tencionando atestar a verdade da
arte que o filósofo francês a toma em suas reflexões, como se esta dependesse de uma
demonstração mediada pela racionalidade em sua potência de representação límpida, ou
da autenticação do crítico que, muitas vezes, tece eruditas e sofisticadas considerações
nos fazendo parecer que esta ou aquela obra não viesse ao mundo senão para caber em
seus arcabouços de conceitos a priori – isto é: para ilustrá-los. Pelo contrário, a
pergunta que acompanha Merleau-Ponty em suas meditações é: que verdade a arte nos
dá? É essa a questão que o acompanha quando da apreciação da pintura, da literatura, do
cinema ou da música em sua obra.i
Mas,não nos detenhamos à tematização disto aqui. Se fazemos cá estas
considerações, é apenas para proceder com cuidado ao pensamento de Merleau-Ponty
que, como dissemos de início, é uma das fontes da tematização de que agora nos
ocupamos – e que, vimo-lo há pouco, não fará qualquer referência às categorias
estéticas tal qual a tradição, propondo, ao contrário, uma reabilitação ontológica do
sensível que nos dá elementos para reelaborar o próprio conceito de estética. E o
fazemos também para divisar a estética de que estamos falando – aquela do mundo da
vida a que estamos dispostos sensivelmente, que fecunda todo pensamento e toda
palavra dita ou silenciada e que a todos lança ao crivo de um entrecruzamento sem fim,
dando-nos a uma ―sorte de inerência do eu ao mundo e do eu a outrem‖: um corpo
nunca é só (MERLEAU-PONTY, 1996, p.74).
Explico. O sensível, cujo emblema é o nosso corpo, nos estende a uma
multiplicidade e entrelaçamento impossível de redução. Trata-se de uma continuidade
entre as coisas, os homens e o mundo, cuja reversibilidade – tocar é ser tocado, ver é ser
visto, perceber é ser percebido – ―remete-me a um único sensível carnal que de outro ou
de outros também é‖ (NUNES, 2004, p. 280). Donde haver, para Merleau-Ponty, ―um
tecido comum do qual somos feitos‖ (MERLEAU-PONTY, 2009, p. 253). Trata-se,
pois, de uma totalidade que não tem posse total de si mesma, adesão que se sabe além
da prova, coesão sem conceito, nos termos de Merleau-Ponty; aderência resguardada
no silêncio e aberta/prolongada em toda palavra, todo pensamento e toda ação. Isto nos
leva ao que poderíamos chamar de gênese ou nascimento continuado, a um processo de

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abertura sem fim – melhor: coabertura. Em tal movimento aberto pelo sensível estamos
todos imersos. Nisto somos iguais.
É nesta perspectiva que a estética guarda o sentido de vida em movimento e,
como tal, elemento comum: existir é já ser disposto esteticamente no mundo da vida.
Ora, se a existência sensível é elemento comum e se o que buscamos explorar neste
artigo é o sensível como lugar originário do pensamento, isto é: como lugar desde onde
o pensamento pensa, desde onde se dilata como indagação, tal empreendimento terá que
levar em sua lida pelo menos duas questões entrecruzadas: uma, diz respeito ao estatuto
da verdade; outra à divisão hierárquica engendrada pelo dualismo ontológico da
tradição no que toca à experiência da verdade e às formas de conhecimento.
No seio de tal questão, poderíamos nos voltar, a título de exemplo, para Artaud,
Cézanne e, em certo sentido, Lima Barretoii e tantos outros, cujas existências foram
perpassadas pelo esforço da expressão em meio à fugacidade dos instantes de clareza,
de fazer o ―sentindo existir expressamente‖ (MERLEAU-PONTY, 2008, p. 85); pela
não adequação à forma e seus preceitos normativos em direção à perfeição estatuída e
pelo sofrimento que entremeava tal esforço e a não adesão ao instituído. É que para eles,
seus estilos, suas obras eram ―o emblema de uma maneira de habitar o mundo, de tratá-
lo, de interpretá-lo (...) em suma, de uma certa relação ao ser‖ (p. 87). Eles tomavam a
expressão – cada um à sua maneira – no fluxo das suas próprias existências e, nesse
sentido, buscando ser coerentes com o que viam e sentiam e pensavam, traziam em suas
obras as fendas de que eram feitas, a ausência da cisão lógica que conferia exatidão à
forma e, nesse movimento, deformavam coerentemente o simplesmente dado – nisto
consistia o ato criador. Deste modo, não tendo suas obras reconhecidas no meio em que
viviam, eram suas próprias existências que estavam em jogo, isto é: que eram negadas...

Retomemos o fiar do que dizíamos antes: falávamos da existência sensível como


(i) elemento comum e (ii) lugar originário do pensamento e nos voltávamos para o que
daí decorre em direção à verdade, bem como à divisão hierárquica engendrada pelo
dualismo ontológico da tradição no que toca às formas de conhecimento e à experiência
da verdade. Na perspectiva perseguida por Merleau-Ponty (1996, p. 61), apreendo-me
―não como um sujeito constituinte transparente para si mesmo e que desfralda a
totalidade dos objetos de pensamento e de experiências possíveis, mas como um
pensamento particular, um pensamento engajado em certos objetos, um pensamento em
ato, e é a este título que estou certo de mim mesmo‖. Nestes termos, nenhum

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pensamento terá consigo o invólucro da exatidão, da explicação exaustiva do que quer


que seja: haverá sempre uma diferença entre o dizer e a coisa dita. E nisto também
somos iguais: na impossibilidade do dizer com fins de explicação total, de adequação
duradoura (seria preciso dar um pulo fora do tempo e, decerto, sermos sós, estarmos
mortos. Motivos pelos quais tais empreendimentos – a explicação total e a adequação
duradoura – não existem); tanto quanto, somos iguais, na disposição para a fantasia,
para a ilusão quando dos nossos impulsos de suficiência explicativa – e de contenção do
tempo, que é a trama do sensível que se move.

Pois sim, ―a coisa mais certa de todas as coisas / Não vale um caminho sob o
sol‖ (VELOSO, 1978). O caminho nos dá à experiência imediata da totalidade: a
―simplicidade de um passo‖, dirá Merleau-Ponty(2008, p. 106), ―efetua (...) um
somatório infinito de espaços e instantes‖.Caminhando, por vezes, indagamos nossas
certezas, transformamo-las – elas também inseridas no tempo dos nossos passos. E,
parece-me, o encontro autêntico com outrem é o motivo da transformação: uma flor,
uma dor, um amor, em resumo, outrem, qualquer um que encontro me dá a mim mesma
e (dando-me a mim) existe, é presença ativa, isto é: ecoa em meus esforços de
compreensão; dá-me, por vezes, a certos deslocamentos.
É, decerto, a partir de tal compreensão que Castoriadis(1990), em elogio a
Merleau-Ponty, diz podermos afirmar que o pensamento―não é um; diz-se
multiplamente e é multiplamente‖ (p. 77). Isto nos lembra a afirmação de Merleau-
Ponty(1989), no Elogio da Filosofia, de que não há um ―lugar da verdade, onde dever-
se-ia ir procurá-la a todo o custo, quebrando até as relações humanas e os laços de vida
e de história. A nossa relação com a verdade passa pelos outros. Ou procuramos a
verdade com eles, ou não é para o verdadeiro que nos dirigimos‖ (p. 37).Tal perspectiva
coloca em questão um sentido de poder fundado na inteligibilidade absoluta: poder do
eu puro e auto-centrado; poder de fechar-se - na pretensão de plenitude -, ser em si, a
despeito do mundo e dos outros; poder de absolutização da verdade e, com isso, de
prescrição absoluta, totalizadora; enfim, interpela os preceitos da consciência
transcendental e do pensamento objetivo quando da pretensão de suficiência dos seus
alcances.
Decorrem deste vício operativo da reflexão disposições, muitas vezes bem
intencionadas, que acabam por colocar uma ideia inexistente e insistir nela contra uma
sociedade real, isto é, submeter o existente a fim de poder sustentar uma ideia que possa

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totalizá-lo numa explicação. Tais disposições – sejam elas conformadas num indivíduo,
num grupo ou numa organização –, sempre entusiasmadas demais em afirmar a absoluta
verdade e eficácia daquilo que propõem, na maioria das vezes preferem chamar de
fracas – ou imaturas, por não terem feito ainda a devida reflexão – aquelas disposições
dissonantes que, assentadas na complexidade de que é feita a vida, não se alinham a
certas vias (únicas) de prescrição – do sentido, do pensamento, da ação. Ah! De
costume, aquelas também clamam submissão – de um sentido a outro, de um
pensamento a outro, de uma ação a outra, de uma organização a outra. É que existe uma
ordem hierárquica em suas formulações.
A retomada crítica das perspectivas do pensamento clássico em relação ao
sensível, porém, não pretende afirmar que a tradição o tenha negado (negado a
corporeidade) por uma ―decisão‖. Mas busca compreendê-la como desdobramento do
acontecer do próprio Ocidente com bases na metafísica clássica de que falamos
rapidamente acima.
De fato, para o pensamento clássico, o sensível não é desprovido de qualquer
possibilidade de sentido, não é radicalmente negado, mas o que se coloca em marcha é a
sua destituição como o lugar originário de sentido e acesso à verdade, a qual se poderia
tomar como fonte e norte dos nossos pensamentos, interpelações e ações. Ou seja, o
pensamento clássico reconhece o sensível, e com ele a contingência e a mutabilidade,
mas para corrigi-los. Portanto, os apreende negativamente com a esperança de
ultrapassá-los, ainda que seja ao modo da moderação – a esperança aqui pode ser
tomada como desejo, porque enveredada racionalmente, e, em última instância, como
um certo delírio (ou fantasia), porque desejo de ultrapassamento do inexorável. Esta
maneira de pensar vai conformar, de diferentes modos, mas sob a mesma égide, um
longo percurso na tentativa, frente a novas interrogações, de dar resposta a questões
basilares que nos transpassam vida afora: a contingência e a permanência; o amor, o
poder, a experiência da obra de arte, a necessidade, o milagre da coexistência e a
morte...
A dualidade e sua consequente dicotomia assumem conotações valorativas: a
força, a virtude – numa palavra, a verdade – estará naquele que exerce o curioso feito de
―isolamento‖ do corpo, do seu chamariz ao efêmero, às paixões, às coisas inseguras e
múltiplas – porque não se deixam segurar, pulsam, e quando pulsam acendem-nos uma
clareira que nos faz ver e ver-nos imersos num entrelace sem fim, do qual não temos
posse total e pelo qual se tem que responder o tempo todo, não nos deixa descansar: há

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sempre algo a fazer, a querer viver, a morrer, a nos fazer decair, nos desestabilizar –;
naquele, pois, que se desocupa das coisas miúdas, díspares e dissonantes às quais o
corpo insiste em nos lembrar. Segue-se que da ontologia dualista se dará ao sensível
uma conotação, no mais das vezes, de pouca importância – frágil, por assim dizer – no
que se refere à tarefa do pensamento, à ocupação com a verdade.
Com Merleau-Ponty (2002, p. 34-35), podemos dizer, o motivo desta concepção é

que eles estão convencidos de que existe um homem rematado


destinado a ser ―senhor e possuidor‖ da natureza, como dizia
Descartes, capaz assim, por princípio, de penetrar até o ser das
coisas, de constituir um conhecimento soberano, de decifrar todos os
fenômenos e não somente os de natureza física, mas ainda aqueles
que a história e a sociedade humanas nos mostram, de explicá-los
por suas causas e finalmente de encontrar, em algum acidente de seu
corpo, a razão das anomalias que mantêm a criança, o primitivo, o
louco, o animal à margem da verdade. (...) Numa tal perspectiva, as
anomalias de que falamos não podem ter senão o valor de
curiosidades psicológicas, às quais, com condescendência, cede-se
um lugar num canto da psicologia e da sociologia ―normais‖.

Agora, a caminho do fim, retomemos Cézanne, a quem fizemos uma breve


referência há pouco. E o façamos agora no intento de uma vez mais nos voltarmos para
a recusa merleau-pontyana da cisão entre sensível e inteligível correlata ao dualismo
ontológico e epistemológico, da arte como representação menor ou do sensível como
inferior ao conceito. Cézanne, dirá Merleau-Ponty(1996, p. 18-19) em referência à
dúvida – e à escolha – do artista,
não acreditou ter que escolher entre a sensação e o pensamento,
como entre o caos e a ordem. Ele não quer separar as coisas fixas
que aparecem ao nosso olhar e sua maneira fugaz de aparecer, quer
pintar a matéria em via de se formar, a ordem nascendo por uma
organização espontânea. Não estabelece um corte entre ―os sentidos‖
e a ―inteligência‖, mas entre a ordem espontânea das coisas
percebidas e a ordem humana das ideias e das ciências. (...) Cézanne
não quis ―pintar como um bruto‖, mas colocar a inteligência, as
ideias, as ciências, a perspectiva, a tradição novamente em contato
com o mundo natural que elas estão destinadas a compreender,
confrontar com a natureza, como ele diz, as ciências ―que saíram
dela‖.

Dos rebentos de um tema assim

Por fim, retomando a indagação que lá no início dissemos acompanhar a


tessitura destas ligeiras reflexões, qual seja, aquela que pergunta se uma efetiva conduta

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interrogativa que tome o sensível como solo nos levaria a uma revisão daquilo que
habitualmente entendemos por filosofia e se haveria em tal conduta um significado
ético, digo-lhes que sim. Tomemos como referência para tal afirmação a própria
filosofia de que aqui nos ocupamos, aquela de Merleau-Ponty.
Ao acompanharmos o percurso desencadeado pelo filósofo francês, suas
interpelações e sua démarche, vemos uma filosofia cuja essência, isto é, os traços sem
os quais não existiria, é o pensamento da experiência, e com isso a abertura; a memória
– que faz tomar a tradição e a reinterpretar -; e o diálogo – em cujo cerne a verdade
habita. Isto nos remete ao reexame da própria filosofia: a vida da filosofia e, com isso, a
sua dessacralização, seu deslocamento de pretensos lugares fixos. ―A filosofia [dirá] é
uma atitude no mundo, não uma abstenção, ela não está reservada, de forma alguma, ao
filósofo de profissão, e ele a manifesta fora dos seus livros‖ (MERLEAU-PONTY,
2000, p. 307).

Ao contemplarmos o sentido que o filósofo atribui à tarefa filosófica, tanto


quanto às noções de pertencimento, coexistência e mundo comum engendradas na sua
filosofia e consumadas no exame que faz do corpo e da percepção, vemos que o sentido
do novo encaminhamento dado às questões que concernem a estes núcleos de
tematização guarda implicações éticas. Com isto dizemos que há na filosofia merleau-
pontianauma ética intrínseca na medida em que o filósofo assume as consequências da
radicalidade dos seus núcleos basilares de investigação – pertencimento, coexistência e
mundo comum – em sua própria conduta filosófica – chamemos a isto de uma ética
latente. Ao tempo que, noutra inscrição – aquela da tematização conceitual –,
compreendemos que tais núcleos nos dão elementos para a tematização de uma ética de
caráter não normativo, não apriorística, e que se alarga, por assim dizer, para além do
plano antropológico, dando-nos a pensar a sua dimensão ontológica, originária.
As compreensões (e mudanças de acento) desencadeadas por Merleau-Ponty no
que toca a núcleos conceituais caros à filosofia moderna têm implicações na
tematização de uma ética a partir da sua filosofia. Pensamos, por exemplo, que o sentido
da ontologia indireta empreendida por ele– nos termos da irredutibilidade do Ser (do
fluxo da vida) ao dito, em suma – guarda relações com uma ética originária e tem
consequências caras na perscrutação do não apriorismo normativo que a caracteriza.
Aqui – mas se trata de uma questão a ser melhor examinada – poderíamos mesmo falar
de uma ética indireta, no sentido em que não pode ser expressa diretamente, no sentido

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em que está aquém da norma expressa. Uma ética implícita na criação e na abertura
temporal ou, doutro modo, na indeterminação. Estas são a sua condição, posto ser a
criação e a abertura temporal as ondulações da existência pelas quais a diferença vige,
vive – donde falarmos em coexistência. Ora, é precisamente a coexistência a
circunscrição ontológica da dimensão ética. Neste sentido, a experiência do ser é ética
sem ser normativa, assim como – para retomar uma preleção de Franklin Leopoldo – é
estética originariamente, sem o compromisso com as noções de arte e do belo cunhadas
no séc. XIII.

Tratar-se-ia, tal ética indireta, do apelo mudo, do apelo do mundo tal qual
compreendido em Merleau-Ponty(2009, p. 71): ―apelo renovado e insistente de um
mistério familiar [isto é, comum a todos] e inexplicável de uma luz que, aclarando o
resto, conserva sua origem na obscuridade‖– solo comum onde radica toda linguagem,
todo pensamento e toda ação. Nesta perspectiva, a inscrição ontológica, originária, da
conduta ética diz respeito, em última instância, a uma intuição – um horizonte de
compromisso – e o que dela decorre implica ação – melhor: ela inspira ação. E sendo tal
disposição ética não um dado, mas uma tarefa, ela é radicada na história, portanto no
inacabamento. Tais traços não lhe são impedimentos, mas, ao contrário, condição.

Mas isso requer maior aprofundamento e está em via de investigação. Por ora
fiquemos por aqui.

i
A este respeito apontamos as seguintes obras de Merleau-Ponty: Le Roman et la métaphysique (1945),
Le doute de Cézanne (1945), Le Cinéma et la nouvelle psychologie (1947), Le langage indirect et les voix
du silence (1952), e L’Oeil et l’esprit (1961).
ii
Lima Barreto ―em certo sentido‖, porque o seu sofrimento – e a sua loucura – se deveu,
sobretudo, àauto-compreensão de que a rejeição da sua obra literária se enraizava na sua
cor e na sua classe dissonantes do locus onde a literatura tinha o seu domínio – e isso
implicaria outras considerações.

Referências bibliográficas

CASTORIADIS, C. Le dicible et l’indicible. In: L‘Arc - Merleau-Ponty.Paris, nº 46,


1990, p. 67-79.

ESCOUBAS, E. La question de l’oeuvre d’art: Merleau-Ponty et Heidegger. In:


RICHIR, M. e TASSIN, E. (Org.). Merleau-Ponty: phénoménologie et expériences.
Paris: Millon, 1992, p. 123-137.

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MATOS DIAS, I.Fenomenologia, arte e sentir. In: SANTOS, J. M., ALVES, P. M. S. e


BARATA, A. (Coord.). A fenomenologia hoje: Actas do primeiro congresso
internacional da Associação Portuguesa de Filosofia Fenomenológica.Lisboa:
Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2002, p. 335-346.
MERLEAU-PONTY, M.Le visible et l’invisible. Paris: Gallimar, 2009.
____________. L’oeil et l’esprit. Paris: Gallimard, 2011.

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____________. Causeries. Paris: Seuil, 2002.

____________. Parcours deux: 1951-1961. Paris: Verdier, 2000.

____________. Sens et non-sens. Paris: Gallimard, 1996a.

____________. Le Primat de la Perception et ses Conséquences Philosophiques. Paris:


Verdier, 1996b.

____________. Éloge de la philosophie. Paris: Gallimard, 1989.

NUNES, B. O dorso do tigre. São Paulo: Perspectiva, 1969.


__________. Physis, natura – Heidegger e Merleau-Ponty.In:Natureza Humana. São
Paulo, vol.6, no.2, 2004, p. 271-287.
VELOSO, Caetano. Força estranha. In: COSTA, Gal. Gal Tropical. Manaus: Universal
Music, 1979.

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Por que ainda estamos vivos?

José Feres Sabinoii

Se todo livro pede um leitor que o complete e o reescreva segundo suas buscas,
reescrevo nestas linhas uma pergunta que, embora nascida da leitura do livro de contos
Romance negro e outras histórias,de Rubem Fonseca, parece percorrer sua vasta obra.

A leitura de seus contos, novelas e romances parece sempre erguer esta questão:
onde está a vida? Estamos, na verdade, diante de uma narrativa que nos apresenta o
desaparecimento da vida, podendo ser compreendida num duplo sentido: desaparece a
ambiência onde a vida aparece; desaparece a linguagem em que a vida é evocada.

Um dos contos do livro – ―A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro‖ – apresenta
esse duplo desaparecimento. Nele o personagem-escritor, ao ganhar na loteria, pede
demissão da companhia de águas e esgoto, aluga um sobrado no centro da cidade, troca
o nome (antes Epifânio, agora Augusto) e se põe a escrever um livro.

Esse gesto – tornar-se um escritor – insere o conto na tradição dos romances de


formação. O conto condensa a temática do romance no espaço de uma cidade grande
contemporânea, o Rio de Janeiro. Um parente mais próximo desse conto é o filme de
Wim Wenders, com roteiro de Peter Handke, Falso Movimento. Neste, Wilhelm (alusão
ao personagem de Goethe, do romance Wilhelm Meister, um dos clássicos do gênero)
sai em viagem pela Alemanha em busca de experiências para narrar.

Augusto não sai em viagem pelo país, mas perambula pelo centro da cidade
observando os prédios, os cartazes e ―principalmente as pessoas‖. Desloca-se para
―encontrar uma arte e uma filosofia peripatéticas que o ajudem a estabelecer uma
melhor comunhão com a cidade‖.

O que o personagem encontra e o que poderá ser narrado? Em suas caminhadas, o


narrador encontra mendigos, putas, pastores de igrejas, grafiteiros, camelôs,
marquiseiros, mendigos e um velho. Este é quem lhe aluga o sobrado. Ele é o guardião
da memória da cidade. Os lugares percorridos pelo personagem já não guardam ligação
com o passado. Esse apagamento da memória é dito pelo velho quando comenta a
mania das pessoas de mudar o nome das ruas. As antigas construções são demolidas ou
já não abrigam o que antes abrigavam. Um cinema, por exemplo, é também o templo da

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Igreja de Jesus Salvador dasAlmas. De manhã, é o templo onde o pastor vende a fé; à
tarde, exibe filme pornô.

Os marquiseiros que Augusto encontra são os habitantes das marquises dos


prédios. Constroem suas casas com caixas de papelão e vivem de pequenos bicos.
Outros habitantes são os mendigos, cujo líder de um bando deles não quer que os
identifiquem como mendigos. Prefere a identificação de desabrigados e descamisados,
pois não querem pedir esmolas nem receber esmolas, mas querem o que os bacanas
tiraram deles. Fundam uma associação que reivindica seus direitos.

A cidade, suja e poluída, se tornou a platitude do automóvel, do acúmulo de


pessoas e local de reivindicação dos direitos. A cidade assim não oferece mais nenhuma
ambiência para a vida. Há uma única ainda, o parque, onde o escritor adora abraçar e
beijar as árvores – porque entre elas ―não sente irritação, nem fome nem dor de cabeça‖
– mas que, por não conseguir realizar esse ato à luz do dia, ele transgride o horário
permitido de permanência no parque para encontrar a comunhão com a vida.

Uma das atividades que o escritor do conto faz, além de caminhar pela cidade e
escrever, é alfabetizar as putas. Após ter alfabetizado 27 putas, inicia seu curso com
uma nova puta, a Kelly. E depois de ela aprender a ler, acompanhá-lo pela cidade,
conviver com ele, diante da quase indiferença desse professor, ela, chorando e gritando,
pede a Augusto que a toque. Perplexo, sem saber o que fazer com ela, procura o velho e
pergunta: por que as pessoas querem continuar vivas?

O velho responde que vive porque não sente muitas dores no corpo, gosta de
comer e tem boas lembranças. Também ficaria vivo se não tivesse lembrança alguma.
Augusto só tem lembranças horríveis, quer viver para escrever seu livro, porque adora
as árvores, mas já pensou em se matar. Quando Kelly o abraçou chorando, ficou com
vontade de morrer. Sai, então, em direção ao cais. Lá encontra não o mar aberto, mas
fedendo.

Augusto se sente asfixiado pela falta de vida, assim como o narrador-escritor do


conto ―Olhar‖ do mesmo livro, que redescobre a vida quando inicia uma nova dieta com
trutas vivas. Necessita sempre olhar e ser olhado pelo bicho vivo que será comido. De
misantropo e vegetariano que era passa a ser um carniceiro, realizando ele mesmo todo
o processo alimentar: da matança do animal à preparação da comida. Com este

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fechamento do espaço onde o humano possa desabrochar, sua humanidade se manifesta


em forma de aberrações.

Ao desaparecimento da ambiência vital corresponde o desaparecimento do lugar


de evocação da vida. A linguagem, quando se torna um varal de signos autorreferentes,
asfixia o homem. Ela é para o ser humano aquilo que a pele é para nosso corpo. De
importância vital, a pele inspira, respira, recebe estímulos, protege, enfim, ela realiza
nossa ligação com o que nos rodeia. Do mesmo modo, é a linguagem que recebe, sopra
e infla as coisas ao nosso redor. A linguagem é a pele ontológica do homem e das
coisas.

A maestria de Rubem Fonseca está justamente em mostrar que a linguagem


literária – que deveria evocar a vida humana – carrega sua própria morte. O vazio
encontrado por Augusto é o mesmo encontrado pelo Wilhelm de Wenders/Handke. Não
há mais nada a ser narrado, exceto a asfixia. O que antes era a narrativa epifânica do
homem e das coisas, agora é o epitáfio da linguagem e das coisas.

Esse falecimento da linguagem talvez seja o núcleo narrativo da obra de Rubem


Fonseca. Nela o homem aparece como mero destinatário de imperativos linguísticos,
que são emitidos pelos códigos culturais (cinema, música, literatura, artes plásticas). No
conto ―Carpe Diem‖ do livro de contos Histórias de Amor, por exemplo, um casal de
amantes tira sua vida dos filmes a que assistem. ―O que seria do mundo se o cinema não
tivesse sido inventado?‖ é a pergunta que une o casal.

O homem se tornou um signo, toda sua experiência se encontra reduzida à


experiência de signos. Agimos estimulados por signos, assim como nos encontramos
dentro do espaço construído pelos signos. Esta economia de trocas de significados
atinge o próprio fazer literário, em que a linguagem já não encontra mais as coisas
inominadas para evocá-las, mas se encontra totalmente trancada em si mesma.

Augusto, descendo a Presidente Vargas, maldiz os urbanistas que não perceberam


que uma rua larga precisa de sombra. Quando desaparece uma árvore, desaparece a
sombra que protege o homem. Quando a linguagem desaparece (fecha-se em meros
signos), é como se sua sombra fosse extinta. Nem ela nem o homem podem mais
descansar.

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O tema da violência, tantas vezes celebrado e reconhecido, em sua obra entra


nessa leitura porque a violência se tornou uma linguagem. Aquilo que 40 anos atrás
estava circunscrito ao ambiente da delegacia, parece hoje ser a tônica dominante da vida
em cidade. E, por outro lado, os atos de violência também podem ser lidos como busca
desesperada pela vida. Somos levados a cometer atos violentos para sair da cadeia de
signos.

A obra de Rubem Fonseca, inscrita na tradição do gênero policial, talvez tenha


como elemento desse tipo de literatura a seguinte pergunta: quem anda matando a vida?
E os investigadores desse assassinato são todos os homens que, envolvidos numa grande
cidade, já não possuem mais a natureza nem a cultura como descanso ou
transcendência.

Referência

FONSECA, R. Romance negro e outras histórias. São Paulo: Companhia das


Letras, 1992.

_. Histórias de amor. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

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