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PERROT,

Tempo Michelle.
Social;A Rev.
história feita deUSP,
Sociol. greves,
S. excluídos & mulheres
Paulo, 8(2): (entrevista).
191-200, outubroTempo Social; Rev.ENTREVISTA
de 1996. Sociol. USP,
S. Paulo, 8(2): 191-200, outubro de 1996.

A história feita de greves,


excluídos & mulheres
MICHELLE PERROT

entrevistadores

Michael Hall Professor do Departa-


mento de História da
Antonio Negro UNICAMP
Hélio da Costa
Paulo Fontes Doutorandos em Histó-
Regina Xavier ria Social na UNICAMP

RESUMO: Nesta entrevista a autora discorre sobre as relações entre classes UNITERMOS:
sociais e gêneros, sobre as influências de Foucault em sua obra, sobre a relações de gênero,
classes sociais,
atualidade das greves como forma de luta e sobre a participação da mulher
greve,
no sindicalismo da virada do século. sindicalismo.

Introdução
pela organização, em conjunto com Georges

M
ichelle Perrot inovou em duas áreas Duby, da coleção de cinco volumes – ainda em
importantes da história social: a história curso de publicação – Histórias das mulheres
da classe trabalhadora e a história das (1993).
mulheres. Sua primeira grande obra, Les Para conhecer melhor o itinerário pessoal,
ouvriers en grève (1974), mostrou a relevância intelectual e político de Michelle Perrot, sua
e o significado do fenômeno da greve na França autobiografia, “O espírito da época”, presente no
no final do século XIX. Nos últimos anos, seus livro Ensaios de ego-história (1989), satisfaz o
interesses concentraram-se sobretudo na história interesse de qualquer leitor, do acadêmico ao
das mulheres. Em português, há uma repre- simples curioso.
sentativa coletânea de artigos seus, cobrindo Clara, concisa e lúcida, Michelle Perrot,
estudos sobre operários prisioneiros e mulheres, em relação ao campo que ela praticamente fundou
Os excluídos das histórias (1988). Ela é, ao na França, é explícita “não quero por agora ser
mesmo tempo, organizadora e autora de grande uma especialista de mulheres e menos ainda erigir
parte do volume quatro da coleção História da a história das mulheres em especialidade”. E
vida privada (1993), sendo também responsável continua: “se a relação dos sexos é uma dimensão
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essencial e retrógrada da evolução social, a sua é que ficou alguma coisa do primeiro trabalho.
consideração deveria, estendendo o campo das Por exemplo, transferiu-se seguidamente cate-
nossas interrogações e a nossa maneira de ver, gorias de análise da história do movimento
renovar nossa compreensão da história”. operário para a história das mulheres. Além disso,
Estimulados por essas e outras decla- a questão da mulher foi pensada em termos de
rações, entrevistamos Michelle Perrot entre uma dominação. Tal como se tentou ver o movimento
mesa de debates e outras do colóquio Sentimen- operário em termos de burguesia e classe operária,
tos e identidades: os paradoxos do político1 para pensou-se a questão da mulher em termos de
o qual ela veio a convite da organizadora do masculino e feminino, de dominação masculina e
evento, professora Maria Stella Bresciani. A de sujeição feminina.
entrevista a seguir é retrato fiel da disposição Entretanto, e essa é já uma terceira
dessa historiadora em enfrentar temas candentes observação, quando se começou a fazer história
e polêmicos da história do nosso tempo e do de mulheres transferiu-se categorias mas não se
passado. Sem tergiversações, ela falou de política, analisou inicialmente o social. Ao contrário,
das greves, da história das mulheres e dos desafios colocou-se o social a distância, servindo-se talvez
colocados para uma renovação da esquerda. destas categorias mas para formular o problema
Ao trabalhar com a questão da mulher, de outra maneira. Por quê? Porque desejou-se
muitos historiadores e cientistas sociais pare- considerar o gênero como um todo e não
cem não operar com a noção de classe social compartimentar a mulher como categoria social.
como uma questão central. Gostaríamos de Então, preferiu-se olhar sob a perspectiva da
pensar aqui na relação entre as relações sociais representação das mulheres no simbólico, o pa-
de gênero e o papel que a classe social pel que desempenha o corpo da mulher, que faz
representa neste tipo de análise. uma certa unidade da condição de mulher na
Há muitas coisas a dizer sobre isso. história, no espaço, na sociedade. Optou-se,
Primeiro, eu vou falar sobretudo da experiência também, por analisar a violência sobre as
francesa porque é aquela que conheço. Na França, mulheres, analisar de uma maneira mais positiva
os historiadores e, sobretudo, as historiadoras que a questão das mulheres em ação, o que as
se interessaram pela história das mulheres mulheres fizeram para angariar o poder, conquis-
geralmente provinham da história social (poderia tá-lo, tomar a palavras, etc., mas não neces-
me incluir neste caso, mas não é de mim que estou sariamente distinguindo as categorias sociais.
falando). Haviam, inicialmente, trabalhado com Creio que, há uma dezena de anos, na França,
os movimentos sociais e, em seguida, passavam como também em outros países, com o uso de
a trabalhar com mulheres, como se tivesse havi- tais categorias, o social foi excluído ao se colocar
do uma transferência de energia, de pesquisa, do as mulheres como problema. De outra maneira,
tema operário para o estudo de gênero. Esta é a se recomeçaria a fazer história social e isso não
primeira coisa a ser dita. Saber o motivo seria, era o que se queria na época. Queria-se com-
evidentemente, uma questão importante. Creio preender a relação entre os sexos, quer dizer,
que há dois eixos nesse sentido. De um lado, exatamente como as relações entre os sexos foram
enquanto a identificação com o movimento ope- construídas através do tempo, do espaço, em
rário se enfraquecia por causa de sua crise, o todos os níveis, fosse o do discurso das práticas,
movimento das mulheres era, ao contrário, muito do simbólico, etc.
vivo, dinâmico e atraente. Logo, houve uma trans- Posteriormente, a história das mulheres se
ferência do movimento operário em direção ao volta para o cruzamento de categorias, por
movimento das mulheres. A segunda observação exemplo, gênero e etnia, etnologia. Por exemplo,
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o que quer dizer – efetivamente – na França, ser Este balanço é perfeitamente possível de
mulher e portuguesa (a imigração portuguesa na ser feito mesmo se ainda não o foi. Podemos dizer
França é muito importante). O que significa ser que Michel Foucault, na França, foi inicialmente
na França mulher e, como se diz no nosso país, muito bem acolhido, especialmente no momento
beurre, ou seja, os argelinos da segunda geração, de História da loucura (1980-84). Historiadores
ou seja, aqueles que têm mãe e pai argelinos mas como Fernand Braudel e Robert Mandrou
que nasceram na França. Então é mulher e outra escreveram entusiásticos artigos, em Annales
coisa e depois, também, mulher e categoria social. ESC, que é a grande revista da École des Annales,
Muitos trabalhos foram feitos sobre o trabalho sobre História da loucura, mas, ao fazermos um
doméstico. Para o século XIX isso era um proble- balanço agora, percebemos que estes grandes
ma, assim como é para o Brasil atual. Para nós, historiadores viam Foucault como um historia-
na França de hoje, já não é tão importante, mas dor da história das mentalidades, algo que ele não
para a história o foi. A burguesa e sua doméstica, era, pois ele era um filósofo que fazia história
por exemplo. Um problema. Duas mulheres com para levantar problemas epistemológicos e para
problemas de mulher seguramente, mas que estão operar rupturas epistemológicas – o que é muito
em duas categorias sociais diferentes. No começo diferente. Há, então, mal-entendidos. Em segui-
não se colocavam estes tipos de questão mas agora da, as obras epistemológicas de Foucault – As
sim, se complica o questionamento cruzando palavras e as coisas (1987b) e A arqueologia
gênero, etnia, raça e categoria social. do saber (1987a) – não tiveram uma acolhida tão
Eu queria dizer ainda uma coisa: por boa entre os historiadores. Os historiadores
exemplo, se você refletir sobre a questão do começaram a falar: “isso não é história”, para,
trabalho da mulher – algo que foi muito estudado, depois, declarar: “ele vai muito rápido. Foucault
um dos setores talvez, que mais foi pesquisado fala de economia mas não conhece economia
na Europa – verá que não se pode compreender o política” e o mal-entendido continuou. Pode-
trabalho da mulher se não se coloca junto traba- ríamos dizer que ele foi mal entendido pelos
lho e família. Ora, a história e a sociologia historiadores, coisa que aconteceu com tudo o que
separavam os dois. Havia uma sociologia e uma se referia ao seu livro sobre a prisão. Quando
história da família de um lado, e uma sociologia publicou Vigiar e punir (1977), uma história das
e uma história do trabalho de outro. No entanto, prisões, ele suscitou muitos debates na França em
para se chegar a compreender o problema do geral e provocou, entre os historiadores, a tenta-
trabalho da mulher, é preciso reaproximar a ção de dizer que “ele mistura as coisas”, “não
família e o trabalho. Logo, o objeto “mulheres”, coloca notas nem referências” e “o que significa
se se pode falar assim, implica em um certo tipo tudo isso?”. Houve então, eu creio, um verdadei-
de questionamento que, inicialmente, desconecta ro mal-entendido entre Foucault e os histo-
as categorias para repensá-las de outra maneira riadores, com, naturalmente, algumas exceções,
e, depois, as recoloca juntas, mexendo um pouco quer dizer, um pequeno grupo de historiadores
com as classificações iniciais. que o conheceu, reconheceu, apreciou, amou, leu,
É bastante divulgada a importância de etc. Mas, ao final, sua influência foi considerá-
Michel Foucault em sua obra. Como você vel. Vê-se pelo número de citações que se faz dele,
percebe os usos das idéias de Foucault como mas é preciso prestar atenção também para o fa-
categorias de análise no trabalho do historiador. to de uma citação poder ser também um cache
Isto é, gostaríamos de saber se é possível fazer misère, quer dizer, que uma citação pode ser, em
um balanço a propósito dos usos das idéias de um certo sentido, algo que se reclama de alguém
Foucault pela historiografia. sem tê-lo lido. Há um déficit de leitura de Foucault
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por parte dos historiadores. É isso o que eu podia historiadores, por pessoas que pertencem a
dizer sobre a historiografia. instituições e que não gostam muito de um
Como historiadora, eu penso que a pensamento subversivo e que, logo, a mantive-
contribuição de Foucault para a história é ram um pouco a margem. Porém, foi muito
absolutamente fundamental. Primeiro, pela fecunda quando referida a certos domínios de
maneira de colocar as questões, de introduzir pesquisa e a certas categorias de análise.
certos domínios que eram pouco tratados, como Eric Hobsbawm escreveu um livro,
a história das prisões, que foi de uma extraor- Estratégias para uma esquerda racional (1991),
dinária fecundidade porque, depois de Vigiar e onde a conclusão busca ser otimista quanto ao
punir, se desenvolveu na França um verdadeiro futuro da esquerda. Em sua opinião, pode a
campo de pesquisas sobre a história da delin- história oferecer elementos para a elaboração
qüência, da prisão, das penalidades, das colônias de um programa de esquerda que possa fazer
penitenciárias para os jovens. Para tudo o que frente ao avanço da extrema direita, à hegemo-
você puder imaginar temos prateleiras de nia do neoliberalismo e à sua própria perda de
trabalhos. Todo mundo, quando faz isto, invoca fascínio sobre suas bases sociais tradicionais?
Foucault. Mas, também, sua abordagem é Isto é difícil, mais difícil que as outras
fundamental por evidenciar uma outra maneira perguntas... Eu penso que não há uma lição da
de considerar as coisas ao tratar da análise do história. Ela não dá lições porque a situação onde
poder. Vigiar e punir, para retomar este exemplo, ela acontece é sempre uma situação nova. A
não é apenas um livro sobre a origem da prisão: é extrema direita de agora não pode ser analisada,
um livro sobre o poder, a biopolítica, sobre a de forma alguma como o fascismo do período
disciplina, que é realmente o coração do livro de entre as duas guerras mundiais. Se reprodu-
Foucault. Isto foi de uma grande fecundidade, zíssemos o esquema que se aplicou a esse período,
por exemplo, para compreender de outra maneira eu penso que arriscaríamos a nos cegar e a não
a história do trabalho e a disciplina operária ou, compreender o que se passa agora. Na minha
ainda, para compreender as políticas sociais, por opinião, é necessário prestar muita atenção para
que e como se desenvolvem em certos momentos não aplicar esquemas antigos sobre o presente,
e o que significam. Para entender, igualmente, o falando, é claro, em termos de análise política e
desenvolvimento da vigilância, a história dos não de um programa.
documentos de identidade, a história da maneira Em segundo lugar a história, ao que me
com a qual recusamos ou aceitamos os estran- parece, é útil como instrumento crítico, quer dizer,
geiros. Podemos fazer muitas coisas com essas que o hábito de analisar uma situação de outrora
obras de Foucault, bem como com sua História pode ajudar na análise de uma situação de hoje,
da sexualidade (1985), que, de um certo modo, mas com a condição de que o historiador não
permite reencontrar a história das mulheres, esteja só, mas com outros que, por profissão ou
aproveitando-se de muitas categorias de análise hábito, trabalham sobre o presente, como os
de Foucault tais como: relações de dominação, sociólogos e jornalistas, com pessoas que este-
relações de poder, etc. Em Vigiar e punir, por jam mergulhadas no presente. Imagine um histo-
exemplo, há páginas muito interessantes sobre a riador que trabalha sobre o século XIX, ele se
noção de resistência, formas de resistência arrisca a dizer bobagens sobre o tempo presente.
subterrâneas, escondidas, particularmente Completamente. Será que um historiador pode
importante para as mulheres, uma maneira de trabalhar sobre um programa, para o futuro e o
existir. Eu creio que é uma obra seguidamente mal presente? Eu diria que, como um cidadão comum,
compreendida pela academia, pela massa de talvez seja um pouco mais informado sobre al-
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gumas coisas que outros cidadãos, ele pode usar sociedade com uma identidade em definitivo. Isto
sua competência dentro de uma equipe, um grupo, acontece muito pouco agora. Por exemplo, quando
mas eu não vejo porque o historiador deva ser ocorre uma greve na França há, para começar,
um profeta. Um historiador não é um profeta. Não cada vez menos operários. Objetivamente, é isso.
há profecia que se possa fazer sobre a história e E há cada vez mais empregados do setor terciário.
nenhuma lição a dar a partir dela. Temos ins- Quando ocorre uma greve as pessoas ficam em
trumentos de análise que podemos utilizar, mas casa. Como se trata de uma paralisação, suspende-
de preferência dentro de uma equipe, porque se o trabalho para incomodar o patrão, mas isso
arriscamo-nos a cometer equívocos. é, aliás, extremamente difícil pois cada vez mais
Você pesquisou a juventude da greve. ela é no setor terciário, o setor de serviços, e então,
Será que ela encontrou sua velhice neste final aquele que se os incomoda é o consumidor, por
do século XX? exemplo, dos trens, dos correios, do metrô. Há
Eu penso que nas sociedades européias do muita dificuldade de atingir o outro, o patrão, o
século XIX e da primeira metade do XX (já que, poder. E atinge-se pessoas que ficam furiosas com
agora, há uma diferença evidente), a greve era o trabalhador, e este não sabe mais o que fazer
duas coisas: ela era, simultaneamente, um meio com este instrumento que se tornou uma faca de
de pressão para obter algo ou para se defender, e dois gumes.
um modo de expressão. Para além da reivin- Segunda observação: quando se tem uma
dicação ou da defesa propriamente ditas, ela era paralisação nos serviços, as pessoas fazem uma
a expressão de um grupo mais ou menos pequena manifestação com o representante do
comunitário que, seguidamente, pela greve se sindicato, alguns militantes, mas a maior parte
tornava mais comunitário (às vezes também era das pessoas que apoiam a greve fica em suas
a ocasião de cisões, de clivagens, de divisões) casas. Há então uma crise da greve, mas não creio
Definitivamente, não existem duas greves que se que devamos ter saudades. Eu creio que cada
pareçam, mas a greve tinha estas duas funções. sociedade tem necessidade de encontrar seu modo
Nas sociedades industriais e, sobretudo, de luta, seu modo de expressão, e não pode ser a
pós-industriais, a greve perdeu um pouco sua mesma coisa na época dos computadores, quan-
função de modo de expressão. Ela continua sen- do muita gente vai trabalhar em casa diante de
do um meio de pressão. Freqüentemente, conta um teclado, não conhecendo seu vizinho de
mais o medo da greve do que ela propriamente trabalho, etc. Tem-se assim de inventar uma ou-
dita: o sindicato apresenta suas reivindicações e tra coisa. A greve onde todos estavam lá, com
declara que se não for atendido haverá uma mil operários em torno de um forno de uma
jornada de greve. Bom, na França isso é muito fábrica, nas sociedades ocidentais, quase não
claro: o número de dias parados não cessa de dimi- existe mais. Logo, sim, estamos diante da velhice
nuir há 20 anos, e, com a chegada dos socialistas da greve e, talvez, quem sabe mesmo diante da
ao poder, continuou a baixar. Agora subiu mais morte da greve. Não sabemos. A sociologia do
um pouco, por causa da direita, mas nem tanto trabalho e dos movimentos sociais nos mostra que
assim. as coisas se reconstróem e não pode ser de outra
É como se, com efeito, por razões econô- maneira.
micas, sociais ou de comunicação, a greve não é Dito isto, vou ainda acrescentar que,
mais o que já foi. Ela não dá mais conta da dupla malgrado tudo que disse, existem momentos em
função que esbocei dessa função que era tão que a greve reencontra essa sua juventude. Por
importante no passado, a de ser um modo de exemplo, na França, bem recentemente, houve a
expressão: estar junto e se fazer representar na greve das enfermeiras dos hospitais. Foi um dos
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acontecimentos mais interessantes e mais ricos para o problema do desemprego da identidade


que houve, e lá, a greve parecia muito com as social, porque aquele que não trabalha não apenas
greves de antigamente. Quer dizer as pessoas não tem salário mas, mais ainda, não é reconhe-
estiveram o tempo todo no hospital, ocuparam as cido socialmente. Ainda não encontramos novas
salas e faziam um trabalho mínimo. Havia a idéia identidades para o não-trabalho. É preciso
de não descuidar do doente. É complicado, eu sei, encontrar soluções para estes problemas,
mas havia aí uma espécie de juventude da greve problemas da divisão de trabalho problemas da
entre as enfermeiras, e elas eram mulheres, e se sociedade dual, onde determinadas pessoas teriam
tratava também de um setor considerado inferior o trabalho e logo, o poder, a honra, e a represen-
nos hospitais. Será que elas não se utilizavam de tação social, e onde haveria também uma massa
meios dos excluídos do passado, dos margi- de pessoas às quais, no limite, seríamos capazes
nalizados de antigamente? É uma questão que de dar dinheiro para que sobrevivessem. Podemos
podemos nos colocar. fazer isto, somos ricos para tanto, e quase já o
Considerando a experiência francesa fazemos, mas o que seria das pessoas sem poder
de decepção com o governo socialista de de decisão já que não têm poder econômico? Este
Mitterrand, nos perguntamos se o socialismo, é o problema que temos agora entre tantos outros,
na Europa, é ainda um projeto político capaz como o da mobilidade da sociedade, uma vez que
de despertar simpatia junto às pessoas do povo... temos consciência dessa extrema direita naciona-
Na Europa, no momento presente, há uma lista que diz “estrangeiros fora”, “pelo controle
evidente crise do socialismo, e temos efetivamente das identidades”, mas essa é uma reação a
a impressão de que o socialismo não consegue posteriori. A sociedade do século XX será uma
encontrar um projeto mobilizador, fato particu- sociedade móvel, ela será inevitavelmente, e eu
larmente verdadeiro na França onde, neste já faço uma profecia, marcada por essa possibi-
momento, apesar da personalidade de um homem lidade de futuro que é a mestiçagem, como vocês
como Michel Rocard, há muito o que se refletir, a dizem aqui no Brasil.
quantidade de problemas é grande e não há nada Vemos agora essas tensões de identidade,
de realmente novo no ar. Essa é a realidade. Será nação, raça, de pequenos grupos ou de pequenas
que, portanto, o socialismo morreu? Eu não creio, comunidades, porque os infelizes têm a tendência
mas não será o mesmo socialismo de antes, o de refutar o outro. Temos tudo isto para fazer, e
modelo no qual as pessoas acreditavam do sécu- isso apela por um novo socialismo, se podemos
lo XIX e XX, a saber, as nacionalizações, as so- assim dizer, que levante todos estes problemas,
luções deste tipo. Isso pode ter dado resultados que os enfrente e que dê corpo a uma nova
extraordinários, mas se vamos reproduzir estes cidadania, que faça os indivíduos sensíveis a
modelos, isso não está assegurado. coletividade. A individualidade é rica, é um valor.
Temos diante de nós problemas sociais Que as pessoas possam dizer “eu”, “eu decido
enormes. Por exemplo, para falar da sociedade minha vida”, “eu amo quem eu quero”, “tenho
ocidental, o desemprego. O desemprego não é meu espaço”, “sou livre quanto à minha sexua-
apenas o resultado de más conjunturas, é outra lidade”, etc., isso é uma conquista, mas, ao mes-
coisa, é o resultado de uma transformação mo tempo, é uma conquista frágil e supõe um
estrutural da economia que não podemos sentido de grupo, do bem público: manter, nesses
lamentar, não podemos lamentar a produtividade. termos, um certo individualismo mas também o
Se podemos fazer as máquinas trabalharem no sentido de grupo. De fato, essa é a questão que
lugar de empregar pessoas nas minas, tanto demanda resposta. Eu creio que existem mil coisas
melhor. Mas não encontramos nenhuma solução a serem feitas e creio que os jovens são muito
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sensíveis diante de tudo isso, e que podemos do mercado de trabalho, encontrando, logo, difi-
encontrar neles pessoas capazes de se entusiasmar culdades para ter uma verdadeira identidade
com seus ideais. Mas, sim, isso tudo é futuro. Não profissional), agora, como os homens, elas en-
há solução no velho socialismo. Não há. tram no trabalho com 18 ou 20 anos e aí ficam
O sindicalismo brasileiro teve uma até sua aposentadoria. Não há mais diferença. Por
grande dificuldade para absorver a questão de conseguinte, no movimento por salários e
gênero seja como relação cotidiana ou como emprego, as mulheres estão presentes, elas são
estratégia política. Ao mesmo tempo, a classe tão assalariadas quanto os homens e suas
operária sofre profundas e rápidas trans- identidades, seus papéis, precisam ser re-
formações em sua própria composição, provo- conhecidos. Será este um movimento operário
cando questões para as quais não há respostas clássico? Não, trata-se de um movimento novo,
definitivas. A participação da mulher e de outros com novos componentes, com novos modos de
grupos minoritários está incluída na história do ação, novos objetivos, não é mais a mesma coisa.
movimento operário? Todas as figuras do movimento operário, aquelas
Sim, nada se opõe a isso. Mas o movi- que nós chamamos de clássicas, não existem mais.
mento operário clássico construiu sua identidade Na França acabaram. Mineiros e metalúrgicos não
em termos de verdade. A França é muito sensível existem mais, quase desapareceram. Os operá-
ao ideal do trabalhador. Em torno de 1920, era rios do setor automobilístico mais ou menos, e
comum na iconografia, nas imagens, o operário ainda se diz que amanhã ainda haverá mais
muito forte, com o dorso nu, com músculos à desemprego para não sei quantos. Podemos ainda
mostra, e o militante e a mulher estão sempre um falar de “operário” e de “movimento operário”
pouco atrás. E o ideal do movimento operário é o na França como os concebíamos antigamente?
produtor e a dona de casa, quer dizer, o operário Não. Mas será que isto representa dizer que não
que produz e que tem, preferencialmente, uma há mais movimento social? Estou segura que não.
mulher em casa, mesmo se de fato ela trabalhas- Há novos movimentos sociais com novas cate-
se muito. gorias sociais e, neles, a mulher desempenha o
De outro lado, o movimento operário mu- seu papel.
da, mas será que ainda permanecerá um mo- Após ter conquistado todo esse espaço
vimento operário? Na França, está mais para um no interior da sociedade, será que as mulheres
movimento salarial. Não é certo que a classe terão força para mudar o lugar que lhes foi
operária (eu falo para os países da Europa destinado no mercado de trabalho?
ocidental) seja, ainda, a ponta de lança, o pólo, Sim, as mulheres ganharam muita coisa no
como dizemos, deste movimento social. Entre os domínio do trabalho, mas as desigualdades ainda
assalariados, as mulheres estão lá forçosamente. continuam, seja em termos de salário, qualifica-
Se se observa o mercado de trabalho francês ho- ção ou poder. Sim, do meu ponto de vista, elas
je, vê-se que, há 20 anos, o crescimento da taxa podem mudar, aliás já o fizeram. Nos países
de atividade das mulheres foi muito maior que o desenvolvidos já se mudou muito coisa. Mas é
dos homens. Há 13 milhões de homens em no universo do trabalho onde elas vão talvez mu-
atividade para 11 milhões de mulheres. Sem dar mais. A questão a saber, então, é se elas pode-
dúvida uma mutação considerável. Hoje, há rão mudar também a relação de todos no traba-
mulheres que trabalham toda a vida. Se antes lho. Eu penso que, nesse universo, eu seria mais
havia um certo ciclo de trabalho feminino (as otimista quanto às possibilidades de mudança.
mulheres trabalhavam quando eram jovens até o Homens e mulheres lutam com maior dificuldade
primeiro ou segundo filho, e depois se retiravam no terreno do acesso a política. Na França as
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mulheres fizeram um investimento enorme no mulheres. Como professora ou como mãe, por
trabalho delas, onde depositaram grande parte de conseguinte, o tempo livre das mulheres é
suas energias, mas como, ao mesmo tempo, elas absorvido por isto. Não é de estranhar, então, que
não abandonaram a família – mesmo se o mode- as mulheres possuam, na França, reivindicações
lo familiar não seja mais absolutamente o que ele próprias a propósito de seus maridos ou com-
já foi, que o casamento tenha pouca importância panheiros, no sentido de dividir com eles o
e tudo o mais que conhecemos – é das francesas, cuidado com as crianças, o cuidado com as roupas.
entre as européias, o maior número de filhos. Há até mesmo uma reivindicação para saber quem
Mesmo se elas não os têm em grande quantidade, vai passar as roupas...
são as que mais têm filhos, como as inglesas, que, Na França, há muitas mulheres estran-
todavia, trabalham bem menos, não sendo, pois, geiras que se encarregam cada vez mais de
o mesmo modelo. As francesas colocaram tanta cuidar das crianças, de tal forma que as
energia no trabalho, guardando, simultaneamen- mulheres francesas possam sair para o trabalho
te, a conservação de um certo status familiar, que mais tranqüilas, deixando seus filhos aos
não sobra a elas mais nenhuma energia para a cuidados de outras mulheres, cada vez melhor
política. Assim, ela vota e diz “esta é uma tarefa preparadas, mas que ganham bem menos. Será
dos homens” e, como estes querem manter seu que isto não traz uma mudança na relação
espaço na política, não se verifica muita coisa de familiar, da mulher em relação aos seus maridos,
novo neste domínio. Penso então que será neste aos seus filhos?
domínio que haverá maior renovação. Quanto ao As mulheres francesas, podemos dizer,
mercado de trabalho, creio que elas vão continuar conquistaram um lugar maior no assalariamento
ganhando o que começaram há 20 anos. com o trabalho de mulheres estrangeiras. O que
Até porque, para os homens é mais fácil, isto traz para a educação das crianças? É muito
pois eles não têm trabalho em casa e podem difícil dizer. Os contatos são seguidamente bons,
fazer política. as crianças em geral gostam muito das pessoas
Sim, mas uma das exigências das mulheres que cuidam delas, podem aprender algumas
é a divisão do trabalho doméstico com os homens palavras de outra língua. Não sou muito otimista
e, neste ponto, elas têm reivindicações a fazer, quanto a esse ponto pois o principal benefício foi
porque o que liberou as mulheres das tarefas capitalizado pelas mulheres francesas, mas acho
domésticas nas sociedades ocidentais não foi nem que as mulheres estrangeiras encontraram, em um
tanto a participação dos homens, que é pequena, primeiro momento, um modo de se inserir também
mas sobretudo a mecanização, a máquina de lavar, na sociedade francesa. Uma mulher portuguesa
etc. A energia e o tempo livre liberados com a poderá ser uma faxineira, mas sua filha não o será,
mecanização foram empregados em outra coisa: ela vai estudar e se tornar talvez enfermeira,
na inserção feminina no mercado de trabalho, professora ou outra coisa. Pode haver um
sendo cada vez mais numerosas as jornadas de beneficio para ambas as partes. Isso é possível
tempo integral e, em segundo lugar, no cuidado também.
com os filhos. Porque, nos países europeus, a Nos perguntamos se a história das
criança é um alto valor e como não se tem mui- mulheres é preciso ser pensada em separado dos
tos filhos, e estes se tornam então uma obsessão, outros sujeitos da história.
especialmente quanto à sua educação, pois Eu tenho muitas coisas a dizer sobre isso.
acredita-se que o futuro das crianças está em jogo Primeiro, a história das mulheres não existe. E a
no momento da educação. Assim, quem se ocupa dimensão da relação entre homens e mulheres não
da formação primária das crianças são as estava, há 20 anos atrás, incorporada à reflexão
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histórica. Então, houve o desejo da mulher de fa- Antes isto era tão natural que não era uma ques-
zê-lo. Ao se pensar como sujeito individual, ou tão para a história.
como historiadora, ela se pensou como sujeito O sindicalismo no século XIX e XX mos-
histórico, como sujeito do passado. Foi preciso trou uma face muito masculina. Você acredita
um movimento existencial para fazer a história que o século XXI pode ter uma face mais
das mulheres. Em segundo lugar, a história das feminina?
mulheres, muito rapidamente, se pensou em Sim, certamente. Parece-me que, partindo
termos de gênero, quer dizer, para se fazer a da composição social do setor assalariado, com
história das mulheres concluiu-se ser necessário quase tantas mulheres quanto homens, deve haver
refletir sobre a relação entre os sexos. A história um lugar muito maior para as mulheres no
das mulheres é também a história dos homens, a sindicalismo e, de uma certa maneira, isto já
história da relação entre os dois. Mesmo se acontece. Talvez seja simbólico mas, há dois anos,
trabalhamos em um convento de religiosas, um a liderança máxima de uma das três centrais
grupo de mulheres separadas da sociedade, na sindicais francesas é uma mulher, Nicole Notat.
realidade não podemos compreender este con- Ela é a primeira mulher a chegar ao cargo de
vento se não refletirmos sobre o problema geral secretário geral de uma central sindical (a CFDT,
da religião, do seu lugar, dos padres e das Confédération Française Démocratique du
religiosas, em termos da relação masculino e Travail), um fato bastante extraordinário. É muito
feminino. Em terceiro lugar, haveria eviden- cedo para se falar em mudanças, mas para mim a
temente um risco que a história das mulheres se resposta deve ser positiva. Notat pensa nas mu-
tornasse um gueto, mulheres trabalhando sobre lheres, ela militou muito no sindicalismo sobre a
mulheres, produzindo livros para mulheres, e que questão das mulheres, tendo sempre uma reflexão
serão lidos por mulheres. Um campo de trabalho sobre o assunto. Notat colocou continuamente esta
definitivo mas incapaz de mudar o olhar sobre a questão, o que é importante, quando há tantas mu-
história. Um risco perfeitamente visível nos lheres quanto homens sendo assalariados. Sim, o
Estados Unidos com o Women’s Today. Na sindicalismo significa alguma coisa para as
França, não tivemos a mesma política, não temos mulheres, sendo mais acessível que a política
os meios para fazer como fizeram as americanas. porque é mais próximo de suas práticas e
Nós estamos dentro de instituições mas encontra- preocupações concretas, é algo que vai paralelo
mos muita dificuldade. As pessoas dizem “é às suas vidas. Eu penso que elas deverão ocupar
bonito o que você faz”, mas na realidade não estou um lugar mais privilegiado no sindicalismo. Não
segura que sintam, quando escrevem as histórias, é bom multiplicar exemplos, mas umas das
a necessidade de incorporar o questionamento. Di- maiores lideranças do Sindicato de Professores
to de outra maneira, a história das mulheres existe, de Segundo Grau na França é uma mulher, há
mas ela não fez uma ruptura epistemológica. também dois anos. Sim, eu acredito. E tomo
Talvez jamais tenha podido fazê-lo. Era talvez exemplos franceses pois são os que conheço.
um sonho impossível, mas esse é o ponto em que Assim, creio que o sindicalismo pode ter a face
estamos. Seria necessário que não apenas as das mulheres no outro século.
mulheres fizessem uma história das mulheres, mas
que os homens também pensassem em escrever a
história enquanto relação de gênero. Já se
começou a fazê-lo um pouco. Começa-se, cada Recebido para publicação em abril/1996
vez mais, a se pensar nisso, na história da
virilidade, como os homens são representados.
199
PERROT, Michelle. A história feita de greves, excluídos & mulheres (entrevista). Tempo Social; Rev. Sociol. USP,
S. Paulo, 8(2): 191-200, outubro de 1996.

PERROT, Michelle. History made of strikes, excluded & women (interview). Tempo Social; Rev.
Sociol. USP, S. Paulo, 8(2): 191-200, october 1996.

UNITERMS: ABSTRACT: In this interview the author talks about the relation between
gender relations, social class and gender relations, about Foucault’s influences, about the
social classes,
activity of striking as a way of fighting and about women’s participation in
strikes,
syndicalism. syndicalism in the turning of the century.

Nota
1
realizado na Unicamp entre 3 e 5 de maio de 1994, no Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FOUCAULT, Michel. (1977) Vigiar e punir. Petrópolis, Vozes.


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Janeiro, Paz e Terra.
PERROT, Michelle (org.). (1993) História da vida privada. São Paulo,
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______. (1989) O Espírito da época. In: AGULHON, Maurice et alii. Ensaios
de ego-história. Lisboa, Edições 70.
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Editora Afrontamento.

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