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Certas Palavras
CRÓNICAS
Ah, agora que entrámos em 2016, vou pronunciar-me: se há discurso que me irrita é o do
«antigamente é que era bom» assim, sem mais, só porque sim.
Decidi-me, então, a criar um pequeno catálogo de frases típicas dos que estão sempre a
louvar o antigamente sem pensar duas vezes no assunto.
(Já agora, pedia que me dissessem em que ano acabou o antigamente, só para
minha orientação. E, se não for pedir muito, já que é tão óbvio que o mundo está tão pior,
será que me conseguem apresentar uns dados concretos, uns numerozitos que seja? Já sei,
já sei: o mundo de hoje em dia só pensa em números — antigamente não era nada assim.
Mas, reparem, o mundo não gosta de ser acusado de todas as malfeitorias sem provas
concretas. O mundo é um chato.)
Declarar, assim como quem sabe tudo, que a família está em crise porque existem famílias
que não são perfeitas parece-me excessivo — e, para ser sincero, parece-me também um
lugar-comum um poucochinho preguiçoso.
Será que as famílias de 10 filhos eram mais estruturadas do que as famílias pequenas típicas
de hoje em dia?
Os pais de antigamente faziam o que podiam e o que podiam, em muitos casos, era muito
pouco — aliás, é incrível como muitos, ainda assim, faziam imenso com tão pouco.
Ora, aquilo que podemos fazer também sabe a pouco, eu sei — mas não me parece que haja
por aí uma epidemia de más famílias como não havia antigamente.
Mas será que as gerações anteriores tinham mais certezas e estavam mais bem informadas?
Há maus país nos dias de hoje? Oh, meus amigos, claro que há.
Pronto, admito: ali por volta de 1999, esquecemo-nos todos de como criar os filhos. Deve ter
sido qualquer coisa que puseram na água…
A julgar pelas opiniões que se ouvem por aí, os pais de agora maltratam os filhos — ou com
violência curta e grossa, ou mimando-os sem parar.
Resultado: as crianças devem andar a levar mais porrada do que antigamente, a ter menos
atenção dos pais do que há 100 anos, e devem estar a abarrotar de doenças e de problemas
disto e daquilo. Aliás, a mortalidade infantil até têm aumentado (ou não…). E ainda por
cima têm demasiados brinquedos! Que coisa!
Tenho um filho e tento fazer o melhor possível. Custa-me ouvir essas acusações contra
gerações inteiras, que mais não fazem do que o que sempre se fez, mas com o
conhecimento e as possibilidades de cada tempo.
Outro exemplo de acusação em que somos presos por ter cão e presos por não o ter: o facto
de haver muito menos filhos por casal do que antigamente é interpretado pelos tais
antigamenteiros como, simultaneamente, prova do egoísmo dos pais e prova de que estão
demasiado obcecados pelos filhos que têm… Decidam-se, por amor da santa!
Reparem: os pais têm menos filhos porque querem ter mais tempo para os que têm.
Preocupam-se com a escola onde põem os filhos e com a educação — e até já têm acesso a
formas de planear a família (que tempos, Deus meu!).
Se não se vêem com condições para ter um filho e tratar dele como deve ser, não o têm.
Malandros.
(Há outro aspecto a ter em conta: os pais de hoje também têm menos filhos porque os
membros do casal costumam trabalhar — os dois. Os antigamenteiros talvez preferissem ver
as mães em casa o dia todo, a cuidar dos filhos, mas estou em crer que não vão ter grande
sorte.)
Ora, a verdade é que, em muitos países, tem acontecido o contrário: menos crimes juvenis,
menos adolescentes grávidas, menos consumo de droga. Uns sonsos, é o que são, dirão
muitos.
Não sei como andam as coisas em Portugal, mas não costumamos ser um país muito
original nestas coisas. Se alguém tivesse paciência para parar de dizer banalidades contra os
jovens e investigar a fundo, se calhar tinha uma surpresa.
Sim, todos conhecemos casos de jovens mal-comportados. Mas não basta pensar nos casos
que confirmam o que pensamos. É preciso procurar os casos contrários e comparar tudo,
nos dois momentos (antes e agora).
Só que aqueles que não sobreviveram não estão cá para dizer: «Raios, que bom teria sido
haver uma regra que me impedisse de morrer naquele acidente de carro por não ter cadeira
de bebé.»
Sim, hoje há regras para tudo e mais alguma coisa. Hoje as mulheres têm os filhos no
hospital, vacinam-nos e até se preocupam com a segurança dos brinquedos (bem, nestes
dois últimos casos, convém incluir os pais na coisa). Até andamos a discutir maternidade e
paternidade em blogues, em grupos de amigos, com enfermeiras nos centros de saúde — e
parece que é tudo difícil e confuso.
Depois, temos de pôr o cinco no carro. Compramos produtos que foram analisados em
laboratório. Andamos preocupados com os químicos que andam por
aí. Compramos brinquedos que seguem normas de segurança.
(Uma chatice, claro. Ainda por cima, depois, chegamos a casa e ouvimos algum espertalhão
na televisão a dizer que não sabemos cuidar dos filhos. Que coisa.)
Mas também há isto: em Portugal, a mortalidade infantil caiu por aí abaixo. Morrem muito,
mas mesmo muito menos crianças do que antigamente.
É por causa das regras? Também. Mas não só, claro: a medicina melhorou, as condições de
vida das famílias melhoraram — e, pasme-se, até se come melhor.
(Não me interpretem mal: não sou dos que acha que temos de proteger os filhos a todo o
custo, deixando-os «sem defesas», como se diz por aí. Temos de aceitar algum risco e viver
com isso. Mas também não sou contra regras de segurança por uma questão de nostalgia
mal pensada.)
Sim, imagino que certas famílias de certas zonas comam hoje pior: talvez a nobreza do
século XIX comesse melhor do que a classe média de hoje em dia — mas mesmo assim
tenho dúvidas.
A sério que hoje, em Portugal — em todo o Portugal — comemos pior do que, por exemplo,
há 100 anos? Pensemos no país todo, na muita miséria que havia. (Sim, eu sei, ainda há,
mas havia um pouco mais. Só um pouco.)
Será que a alimentação era mais variada? Mais rica em nutrientes? Com mais higiene?
Bem, admitamos que se comia melhor. Se assim era, haveria mais doenças, certamente.
Mais doenças, logo, as pessoas morriam, em média, mais cedo.
Enfim, não digo que não se comesse bem em certas zonas (nos anos bons). Só digo que a
coisa não é tão óbvia assim.
Será que em 1916 havia mais livrarias? Mais gente a ler em Portugal? Mais editoras? Mais
jornais e revistas? Mais críticas literárias? Mais blogues de livros? Mais jovens a ler por esse
país urbanizado e culto que era o Portugal de então?
Querem avançar uns anos? Será que em 1974 o número de livros vendidos era superior ao
de hoje?…
Claro que os antigamenteiros caem num erro básico: confundem as suas recordações de
certos ambientes e certas pessoas com todo o país.
Sim, aquele país que hoje põe os jovens todos na escola, mal ou bem (às vezes mais mal que
bem, como dizem muitos — mas põe-nos lá quase todos) — esse país lê mais e compra mais
livros do que país do tal antigamente. Mas estou a falar do país todo.
Já em certas ruas de uma certa Lisboa, talvez nem por isso. Mas só talvez. Nem disso estou
certo.
Deixem-me fazer uma previsão: daqui a 100 anos também leremos quatro ou cinco grandes
escritores do século XX (quais serão, não faço ideia) e também se dirá que, nesse início do
século XXII, já não há escritores como antigamente.
Neste ponto, os antigamenteiros estão a cair no mesmo erro já descrito acima: comparam
um passado muito seleccionado com tudo o que vêem no presente.
Isto é uma tendência tão forte que acabam convencidos que, num país com uma taxa de
analfabetismo elevadíssima e em que a escolaridade era quase um privilégio, a população
falava melhor do que hoje em dia.
Falava tão bem ou tão mal como hoje: com a particularidade de muito menos gente usar o
português padrão e de poucos escreverem com regularidade.
Aqui, há números e parecem apontar para isto: o mundo está cada vez menos violento.
Incrível, não é?
(Já agora, para quem ficar confuso e estiver a pensar «Então porque vemos tantas notícias
de violência?», aconselho a pensar no que se passaria num mundo dividido em tribos em
que todas as tribos soubessem dos crimes e guerras de todas as outras tribos: o mundo, de
repente, pareceria muito menos pacífico do que se soubéssemos apenas daquilo que
acontece ao pé de nós, não acham?)
Os valores religiosos? Talvez sim, mas atrevo-me a dizer que todos os que põem os valores
da religião à frente de tudo o resto acabam por ser perigosos. Aliás, sou a favor de incentivar
uma boa e simpática crise de valores na cabeça de alguns fundamentalistas…
Os valores humanos? Quer dizer que hoje se ajuda menos os mais pobres e necessitados? É
isso? Tenham lá calma com as conclusões e pensem em todas as organizações (incluindo as
religiosas) que andam por aí a trabalhar e a ajudar.
Sinceramente, se não especificarmos o valor em causa, dizer esta frase tão pomposa e tão
vazia não vale de nada. É apenas uma maneira de estar a dizer coisas sérias sem precisar de
pensar muito.
Já sei, já sei… Com o pensamento binário que cada vez mais grassa por aí (estou a ser
antigamenteiro só para ver como é), vão certamente achar que, se não acho que vivemos no
pior dos mundos, só posso estar convencido que vivemos no melhor dos mundos.
Ora, balelas. O mundo está melhor nalguns aspectos, noutros nem por isso — e é tudo
mais complicado do que fazem crer as certezas da trupe do antigamente-é-que-era-bom.
Só para fazer a vontade aos sedentos de pessimismo — e para que não me julguem já um
completo e inútil ingénuo —, querem que vos diga dois aspectos em que me parece que
mundo está a andar para trás? Aqui vão dois: o clima está pelas horas da morte (ou a
caminhar para lá) e a desigualdade é um problema (não porque os pobres do mundo
estejam cada vez mais pobres, que não estão, mas porque os ricos estão muito mais ricos).
A lucidez, amigos, não é ser pessimista à força. A lucidez é mais isto: tentar perceber o que
está mal e o que está bem e mudar de ideias perante novos dados. Não é declarar que isto é
uma choldra e, pronto, não se fala mais nisso.
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Autor
Marco Neves
Tradutor na Eurologos, professor na Universidade Nova de Lisboa e autor da
Gramática para Todos.
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5 comentários
José Júlio Costa-Pereira
5 Jan 2016 às 11:30
Só sei que cheguei aos 83 anos e estando,consequentemente vivo, estou convicto que
todas as sociedades são abrangidas ciclicamente por ascenção e queda.Altos e baixos de
todos os tempos.O admirável mundo novo ,nasce todos os dias ,para deslumbrar os
optimistas e irritar os cépticos.
O nosso tempo é este.O que vivemos dia a dia.E o resto é paisagem,como dizia o Eça, mas
que poderia ter sido dito por Lobo Antunes
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Persis
5 Jan 2016 às 11:48
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Uma boa crónica. Bem temperada, sem sal mais nem a menos. Sem minúcias, enfim bem
apaladada e a deixar um sorriso em quem a leu.
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LMC Alves
5 Jan 2016 às 20:37
Apesar do antigamente não ser o bom, penso que, como já foi anteriormente referido, o
que temos é um não equilíbrio, em que oscilamos entre o bom e o mau, entre o certo e o
errado. As sociedades evoluem melhor através de choques, do que através de transições
suaves. Os jovens são mais violentos? Realmente parece-me que sim, mas o que é a
violência dos jovens? É entre géneros ou é entre eles e os mais velhos? A democracia trás a
liberdade da escolha. O que esperamos é que seja com responsabilidade, mas desde
quando são os jovens conformados? Se não houver inconformidade não existe mudança.
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Mena Torres
7 Nov 2017 às 22:07
Uma crónica que eu gostaria de ter escrito, até para me retratar em relação a algumas
opiniões muito pouco fundamentadas.
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