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EDITORA DA

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS


UNICAMP
Reitor: José Martins Filho
Coordenador Geral da Universidade: André Villalobos
Conselho Editorial: Alfredo Miguel Ozorio de Almeida,
Antonio Carlos Bannwart, César Francisco Ciacco
{Presidente), Eduardo Guimarães, Hermógenes de Freitas
Leitão Filho, Hugo Horácio Torriani, Jayme Antunes Maciel
Júnior, Luiz Roberto Monzani, Paulo José Samcnho Moran
D iretor Executivo: Eduardo Guimarães
L U IZ ROBERTO M ONZANI

DESEJO E PRAZER
NA ID AD E MODERNA
FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA
BIBLIOTECA CENTRAL - UNICAMP
Monzani, Luiz Roberto
M769d Desejo e prazer na idade moderna / Luiz Roberto Monzani.
- - Campinas, SP: Edilora da UNICAMP, 1995.
(Coleção Repertórios)
l. Filosofia moderna. 2. Materialismo. 3. Desejo.
I. Título.
20. CDD - 190
-146.3
-152.4
ISBN 85-268-0338-7

índices para Catálogo Sistemático:


1. Filosofia moderna 190
2. Materialismo 146.3
3. Desejo 152.4
Coleção Repertórios
Copyright © by Luiz Roberto Monzani
Projeto Gráfico
Camila Cesarino Costa
Eliana Kestenbaum
Coordenação Editorial
Carmen Silvia P. Teixeira
Produção Editorial
Sandra Vieira Alves
Preparação de originais
Paula M. Senatore
Revisão
Vera Luciana Morandim
Rosa Dalva V. do Nascimento
Tradução das citações
Carlos Alberto Ribeiro de Moura
Composição e Fotolitos
Trianon Editora S/C LTDA.

1995
Edilora da Unicamp
Caixa Postal 6074
Cidade Universitária - Barão Geraldo
CEP 13083-970 - Campinas - SP - Brasil
Tel.: (0192) 39.8412
Fax: (0192) 39.3157
Agradecimentos

Ao CNPq, que me conferiu, por dois anos, uma bolsa para que
desenvolvesse esta pesquisa;
A Josette, minha mulher, que teve a paciência de decifrar meus
garranchos e fazer a primeira versão datilografada;
Dos amigos, aos quais devo muito, gostaria de agradecer espe­
cialmente a Moacyr Nunes de Oliveira e Adalberto Tripicchio, o
primeiro por ter me auxiliado muito na bibliografia e o segundo por
suas fórmulas mágicas.
Por último, aos professores Michel Debrun, Fausto Castilho,
Marilena Chaui, Bento Prado e Arley R. Moreno, primeiros leitores
deste texto. Foi, para mim, um privilégio escutar suas observações
sempre pertinentes. Que eles encontrem aqui a expressão de meu
respeito, admiração e amizade.
Para Josette:
Tant ai en liferm assis mon corage
Qu’ailleurs ne pens, et Diex m'en lait joïr!
C’onques Tristanz, qui but le beverage,
Plus loiaument n'ama sans repentir;
Quar g’i met tout, cuer et cors et désir,
Force et pooir, ne sai se faiz folage;
Encor me dout qu’en trestout mon eage
Ne puisse assez li et s’amour servir.
(Le Châtelain de Coucy)

Para Juliana,
J. Marcelo e
Luiz Henrique
I
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.....................................................................................11

I. LUXO...................................................................................................17

II. DESEJO.............................................................................................63

III. INQUIETUDE..............................................................................115

IV. PRAZER.........................................................................................163

CONCLUSÃO....................................................................................223

BIBLIOGRAFIA................................................................................ 228
INTRODUÇÃO

O trabalho que o leitor tem em mãos é fruto de uma suspeita e


resulta numa hesitação. Por isso, talvez seja melhor retraçar rapida­
mente o itinerário que resultou na sua confecção, para que se possa ter
uma idéia mais clara de suas reais dimensões.
Há poucos anos, mais precisamente quando caíram em minhas
mãos os primeiros volumes da recente reedição das obras completas de
Sade pela editora Pauvert,1propus a mim mesmo uma leitura mais sis­
temática desse autor um tanto quanto esquisito. Já conhecia, há tem­
pos, boa parte de sua obra. Mas, minhas leituras foram sempre
esparsas, desorganizadas e sem nenhuma finalidade precisa, a não ser
a curiosidade e a impressão de que esse autor havia produzido uma
obra única, incomparável e demolidora. Por outro lado, meu conheci­
mento lacunar — não tinha tido acesso, por exemplo, até então, à
Histoire de Juliette — impedia-me de formar qualquer opinião que
pudesse julgar solidamente estabelecida.
Depois dessa leitura, agora mais metodicamente elaborada, e pas­
sado o impacto que a obra do Marquês traz inevitavelmente, procurei
examiná-la mais friamente, e nasceu a suspeita não só de que Sade
dependia muito, nas suas concepções, de certas matrizes de pensa­
mento do século XVIII, como também, sob muitos aspectos, ele era a
realização completa e acabada dessas mesmas matrizes.
Conhecia, é claro, a tese de Horkheimer e Adorno sobre Sade.
Mas, nunca pude concordar com suas premissas. Curiosamente, con­
cordava com algumas de suas conclusões. Nasceu em mim, então, a
11
suspeita de que era necessário encontrar o solo real do qual o discurso
de Sade brotava. De qualquer maneira, resolvi abandonar, provisoria­
mente, a idéia tão difundida — sobretudo pelos próprios estudiosos de
Sade na sua grande maioria2 — de que sua obra seria uma exceção
monstruosa e única, e passei a trabalhar com a idéia de que talvez Sade
apenas tivesse levado às últimas conseqüências, no plano moral, certas
premissas de pensamento estabelecidas na idade modema. Indícios
sobre isso não faltavam, mas sentia a falta de um fio condutor.
Meus primeiros passos, realizados um pouco instintivamente, foram
os de examinar um pouco a literatura libertina da época e aqueles autores
— na sua maioria filósofos — que Sade insistentemente faz questão de
afirmar que constituem o estofo e o fundamento de seu pensamento. No
primeiro caso, o exame da literatura libertina foi praticamente inútil, a
não ser para reforçar minha convicção de que Sade, no seu gênero, é
realmente um escritor de excepcional qualidade e que uma grande edi­
tora nada mais fez que um ato de justiça ao incluí-lo entre os clássicos.
No segundo caso, as coisas passaram-se de forma ligeiramente
diferente. O referencial imediato de Sade — no plano filosófico — são
os materialistas franceses. Particularmente, La Mettríe, Helvétius e
Holbach. Sade seguramente conhecia muito bem esses autores, de
alguns dos quais pilha páginas e páginas.3 No caso desses pensadores,
a filiação realmente era inegável. Nem sempre da forma colocada pelo
próprio Sade. Ele faz questão de afirmar, por exemplo, que as bases do
que denomina “seu sistema” estão, basicamente, nos textos de
Holbach. Isso é verdade, no que concerne às linhas gerais, isto é, à
idéia de uma matéria em eterno movimento produzindo e destruindo
incessantemente novas formas, o ateísmo integral etc. Mas, com
relação ao problema ético,4 Sade é, na verdade, um profundo devedor
com relação a La Mettrie. Se se quer achar os antecedentes imediatos
das concepções de Sade, elas estão seguramente muito mais no Anti-
Sêneca, do que no Sistema da Natureza.
O que impressiona profundamente o leitor é o fato de que, em La
Mettrie, encontramos praticamente as mesmas teses de Sade, com a
diferença de que não são desenvolvidas com a crueza cirúrgica do
Marquês, mas sim no calmo plano das idéias abstratas. Aproveitando-
me de uma fórmula de Foucault, podemos dizer que La Mettrie é o
lado aveludado de Sade.
Não se trata aqui de mostrar essa semelhança, o que implicaria
escrever um trabalho de proporções mais ou menos iguais ao deste,

12
mas sim de apontar para aquilo que acabou ficando claro nesse
primeiro momento. Por um lado, isso reforçava a suspeita de que Sade
não era uma estrela solitária, a não ser pelo modo como escolheu para
expor, mas não por certos esquemas de pensamento. Por outro lado,
isso fazia adiantar muito pouco o tratamento da questão. Pode ser inte­
ressante constatar fortes convergências nas teses de dois autores mas
isso apenas mostra que ambos trabalham sobre um estofo conceituai,
um certo universo mental já constituído, do qual ambos se nutrem.
Ora, a questão particularmente mais instigante era exatamente ten­
tar explicar quais eram as linhas mestras dessa concepção. E, sobre esse
ponto, as obscuridades eram muito fortes e as idéias que tinha, muito
vagas.5 Refletindo sobre isso, não foi difícil concluir que o que estava
provavelmente norteando tudo isso era uma concepção sobre os funda­
mentos da vida passional que pouco ou nada tinha a ver com a con­
cepção clássica. Era preciso, de uma certa maneira, operar um recuo
ainda maior e questionar onde, na modernidade, poder-se-ia encontrar
os primeiros indícios dessa concepção. Tudo levava a crer que isso de­
veria ser buscado no século XVII, mais particularmente em T. Hobbes.
Acreditei, então, poder isolar, dizendo as coisas de forma muito
rude, um bloco conceituai que ia de Hobbes até os denominados mate­
rialistas franceses. Houve um trabalho intenso na tentativa de isolar
certos conceitos capitais, certas noções-chaves e ir vendo, por assim
dizer, como se mantinham ou se transformavam no decorrer do tempo.
Esse projeto, durante um certo tempo, revelou-se frutífero, e parecia,
de fato, que se poderia isolar um conjunto de conceitos que se per­
filavam de forma a indicar que uma nova concepção da vida passional
delineava-se na modernidade.
Mas, um estudo mais atento dos textos revelou que estava tratando,
como uma unidade algo que não possuía esse atributo. Considerações
mais cuidadosas acabaram mostrando que dever-se-ia considerar duas
grandes mutações — operadas, no entanto, sobre uma mesma matriz
— uma em Hobbes e a outra, surpreendentemente, no Traité des
Sensations de Condillac. Esse intervalo, tudo levava a crer, estava
recheado de interrogações e hesitações. Percebi também, nesse meio
tempo, que um autor que não tinha cogitado de início exercia um papel
fundamental: Malebranche.
Ao mesmo tempo que esse trabalho desenrolava-se nessa linha,
um pouco por acaso, no início, deparei-me com a famosa “querela do
luxo”. Estudando-a com mais atenção percebi que ela refletia de forma

13
exemplar, embora vaga, esse conjunto de novas concepções, o que
aumentou a convicção sobre o caminho que havia escolhido. Daí, por
diante, fazendo uma espécie de jogo de vai-e-vem, procurei ir pro­
gressivamente isolando os temas centrais que funcionavam como pólo
— muitas vezes distantes — de orientação na “querela do luxo” e ir
examinando como essas mesmas concepções se articulavam de forma
mais clara e fundamentada em certos textos centrais. Gostaria, no
entanto, de prevenir o leitor de que as coisas não se passam de forma
cristalina como esse quadro esquemático que acabo de traçar pode dar
a entender. Neste terreno pode-se achar correspondências mas nunca a
tal ponto que de um conjunto a outro a relação seja biunívoca. Elas
funcionam muito mais como quadros orientadores.
A partir disso, este trabalho ordenou-se de forma mais ou menos
natural. Parti de uma exposição sobre os problemas conceituais
envolvidos na “querela do luxo” — querela longa e multifacetada. Em
seguida, procurei isolar um grupo de conceitos que articulam peia
primeira vez na modernidade uma nova concepção da vida passional.
Depois tratei desse período intermediário — que aos meus olhos
aparece como muito hesitante e embrulhado conceitualmente. Por fim,
tentei examinar como esses conceitos, de uma certa forma, rearticu-
lam-se na segunda metade do século XVIII.
Uma palavra quanto ao título deste estudo. Como percebi que o
que estava no horizonte de minhas inquietações eram os fundamentos
da vida passional na idade moderna, meu primeiro impulso foi assim
intitulá-lo. Mas, logo percebi a enorme pretensão aí contida, e a que,
nem de longe, este trabalho faz jus. Procurei um título mais modesto
que indicasse melhor o seu conteúdo, Cheguei a este, mas confesso que
ainda não estou satisfeito. Ele reflete muito mal a limitação do campo
de estudo. Infelizmente não encontrei outro melhor e espero que esta
introdução possa contribuir para dissipar possíveis mal-entendidos.
Afirmei que este texto nasceu de uma suspeita e que acaba numa
hesitação. A primeira já explicitei. Com relação à segunda, embora
considere, levando em conta meu ponto de partida, que tenha avança­
do razoavelmente, hesito muito sobre o valor e o alcance do que aqui
é afirmado. Tendo, na verdade, a conferir um peso muito relativo e,
embora considere esta pesquisa suficientemente autônoma, tenho
consciência de que nada mais é que uma etapa e que precisa ir mais
longe. Por essa razão evitei, no final, extrair algumas conclusões que
considero apressadas.

14
Quanto ao modo de tratamento, resolvi, em primeiro lugar, que era
melhor, na medida do possível, deixar que os próprios textos falassem
por si mesmos. Tenho freqüentemente a impressão de que muito
comentário acaba, às vezes, por obscurecer. Não que tenha me eximi­
do da tarefa. Quando julguei necessário, o fiz. Mas procurei reduzir ao
que considero razoável. Isso tem sua contrapartida: em alguns momen­
tos há um excesso de citações. Foi o preço a pagar.
Por fim, gostaria de salientar dois ou três pontos que, talvez,
chamem a atenção do leitor. Em primeiro lugar, constatar-se-á isso
facilmente, evitei cuidadosamente certas generalizações no decorrer
do trabalho. Generalizações que, talvez, sejam válidas mas a respeito
das quais não estou totalmente seguro. Não procurei, enfim, reconsti­
tuir epistemés de diferentes épocas. Em segundo lugar, esta pesquisa
não teve a pretensão de ser exaustiva. Não foi minha intenção arrolar
e analisar todos os autores que, na época, trataram do tema. Procurei
seguir um filão, como já indiquei, trabalhando retroativamente, como
um detetive que reconstrói uma história. História parcial, sem dúvida
mas que, nos seus limites, parece-me correta. Por último, não preten­
di também, nas análises positivas que procuro realizar, esgotar um
tema num determinado autor. Salientei apenas aquilo que julguei per­
tinente para esclarecer a trama de uma problemática. Assim, o espe­
cialista neste ou naquele autor poderá sentir-se decepcionado com o
tratamento a eles conferido. Tenho consciência dessa limitação, mas é
a conseqüência de inserir um autor ou texto numa determinada
questão que se desenrola historicamente.

15
NOTAS

1 Sade, Oeuvres Completes, Paris, Pauvert, 1986. Até agora foram publicados, ao que
me consta, quinze volumes.
2 Uma honrosa exceção é J. Deprun que tem realizado estudos notáveis sobre o
enraizamento de Sade no século XVIII. Veja-se, por exemplo, seu estudo “Sade et la
Philosophie Biologique de son Temps” in Le Marquis de Sade, Paris, Armand Colin,
1968, p. 189 e seg.
3 Assim, por exemplo, todo o longo discurso de Delbène no início da Histoire de
Julielte é uma cópia do Le Bon Sens du Cure Meslier de Holbach. Foi Deprun o
primeiro a apontar isso.
4 Que, é bom não esquecer, é o núcleo do pensamento dos materialistas franceses,
como mostrou Cassirer no seu A Filosofia do Iluminismo, Campinas, Editora da
Unicamp, 1992, p. 103.
5 Para não criar falsas expectativas, como o leitor verá logo mais, não temos a preten­
são de ter elucidado totalmente essa questão. Podemos dizer que, agora, elas não são
tão vagas para nós.

16
LUXO
1. Como fio condutor de nossa análise seguiremos uma sugestão
de R, Hubert, contida no seu clássico Les Sciences Sociales dans
l’Encyclopédie, onde ele afirma: “O problema do luxo é um daqueles
onde a evolução das idéias, no decorrer do século XVIII, é a mais
característica”.1 De fato, o exame da chamada “querela do luxo”
mostra-se exemplar para se tentar compreender o conjunto das trans­
formações conceituais operadas entre os fins do século XVII e o sécu­
lo XVIII, pelo menos na sua generalidade, já que expressa, às vezes
direta, às vezes indiretamente, a lenta mutação e constituição das
novas concepções (sobre o desejo e o prazer).

2. Em 1736 Voltaire publica um poema, com mais ou menos uma


centena e meia de versos, intitulado Le Mondain. Enviou aos amigos
com a recomendação expressa de que não se desse publicidade, o que
não aconteceu e acabou redundando num exílio rápido do autor na
Holanda. Nesse meio tempo, escreve um outro poema: Défense du
Mondain ou Apologie du Luxe.2Examinemos, o mais rapidamente pos­
sível, os conteúdos e os problemas levantados.
Em linhas gerais, o Le Mondain obedece mais ou menos ao
seguinte esquema: os v. 1-4 tentam mostrar que é inútil pensar que os
tempos antigos (austeros e rústicos) foram melhores que os tempos
atuais; os v. 5-10 realizam uma apologia dos tempos modernos (“Eu
agradeço à Natureza sábia / Que, para meu bem, me fez nascer nesta
19
época / Tão difamada por nossos pobres doutores: / Esta época profana
é perfeita para meus costumes / Amo o luxo e até mesmo a volúpia, /
Todos os prazeres, as artes de toda espécie / O asseio, o paladar, os
ornamentos: / Todo homem de bem tem tais sentimentos'’). Os v. 11-
12 constituem a defesa dos efeitos da abundância; os v. 30-60, uma
contraposição do estado de natureza e o de sociedade. Os v. 22-30 e
61-112 mostram que o luxo é responsável pelo incremento do comér­
cio, sendo, portanto, vantajoso para o desenvolvimento e a riqueza da.s
sociedades. O final do poema é uma crítica ao Telêmaco de Fénelon.

3. A primeira coisa a se destacar é que esses textos representam


uma reviravolta nas posições de Voltaire. No poema épico Henriade
(1713-18), publicado nos anos 20, ele tinha uma concepção diferente
sobre o assunto. No canto VI (v. 26-7), dizia o seguinte:

“O luxo, sempre nascido das misérias públicas


Prepara com brilho estes estados tirânicos".'

Nesse momento Voltaire ainda exprime uma mentalidade que logo


será ultrapassada pelos espíritos mais sensíveis às mudanças. Nesse
meio tempo, é bom não esquecer, Voltaire realizou sua viagem à
Inglaterra, importantíssima na moldagem de suas concepções. Depois
de 1736, Voltaire ainda modificará um pouco suas concepções, mas
não substancialmente.
Em segundo lugar, o poema evoca uma discussão que já vem do
século XVII, aquela que se denominou a questão dos antigos e dos mo­
dernos, que consistia em se saber se os antigos ou os modemos eram
superiores nos diferentes campos (civilização, costumes, saber, ciência
etc.). No ponto que nos interessa, as posições eram claras e inconci­
liáveis. Havia os que defendiam a pureza, a frugalidade, a austeridade e
a virtude dos antigos, em contraposição ao amolecimento geral dos cos­
tumes nas sociedades modemas, sofisticadas, fúteis, efeminadas e dissi­
padoras. Os partidários da posição contrária procuravam mostrar que
esse refinamento e essa sofisticação não implicavam nada disso. Fénelon
e Fontenelle foram, respectivamente, os representantes típicos dessas
posições: o primeiro, predominantemente no plano moral, e o segundo,

20
no intelectual. Exemplos não faltavam de ambos os lados. Esparta e
Roma eram os exemplos preferidos dos primeiros. As comodidades e o
bem-estar alcançados nos tempos modernos eram os dos segundos.
Em terceiro lugar, os imensos e inegáveis avanços científicos e
tecnológicos realizados na formação dos tempos modernos também
colocavam problemas pois, segundo uns, acabavam levando a um des­
perdício que era fatal às sociedades, enquanto outros (aí incluído
Voltaire, é claro) afirmavam e defendiam vivamente que a criação e a
circulação maciça de bens, possibilitada por esses avanços, consti­
tuíam uma contribuição inestimável para o enriquecimento das nações
e para o seu desenvolvimento.
Assim, em quarto lugar, por trás dessa discussão antigos/moder­
nos, está uma discussão, muito confusamente vislumbrada, de caráter
econômico que, exatamente por ser apenas entrevista, acabou assumin­
do um aspecto moral. O problema, de fato, foi colocado em termos de
virtude/vício: qual das cidades oferece melhores condições para o
desenvolvimento das virtudes morais dos sujeitos: aquela antiga, rústi­
ca, que só fornecia o necessário, ou a moderna, mais sofisticada tecno­
logicamente que, além do necessário, oferece também a possibilidade
do supérfluo e, portanto, condições à aparição e manutenção do luxo?
Em quinto lugar, todo o peso da tradição cristã — mais especifi­
camente católica — vem embaralhar um pouco mais a discussão.
Principalmente em dois níveis. De um lado, toda tradição ascética, de
desprezo aos bens terrenos é mobilizada em contraposição à superio­
ridade dos bens espirituais. Basta relembrar a Dissertação sobre a
Honra, de Bossuet. De fato, em boa lógica, os apologistas da moder­
nidade, cedo ou tarde, entram em rota de colisão com a moral cristã, na
medida em que (veremos isso mais claramente) defendem um mundo
regulado pelo conforto dos bens materiais, concepção que está ancora­
da numa concepção egoísta dos seres humanos. Já Mersenne, tão
pouco interessado em questões morais, marca essa oposição numa de
suas obras, tratando do amor a Deus. E certo, afirma, que cada um
busca seu próprio bem e que encontrar-se-á “... sempre esta verdade se
examinamo-nos geometricamente” e mesmo quando muitos querem
persuadir “que eles amam seus amigos apenas para o bem destes, e de
um amor de simples benevolência, sem dele desejar nem pretender
nenhum benefício, todavia eles se enganam, como confessarão inge­
nuamente se se examinam como é preciso, pois eles acharão sempre
que o amor de si mesmo, que é chamado de amor próprio, é a fonte e

21
a origem de tudo aquilo que nós fazemos”. Isso é tão certo, continua
Mersenne, que esse amor próprio é proposto como protótipo daquele
que devemos conceder ao próximo.4 Mas, a verdadeira dificuldade
está, nos diz o autor, em saber se podemos amar Deus de forma pura,
já que, nesse caso, essa é a única forma de amor admissível. E isso nos
é concedido.-1Eis aqui o ponto limite onde o cristão não pode transigir.
Por outro lado, no interior dessa ótica, um outro problema emer­
girá cedo ou tarde. A apologia do luxo está intrinsecamente ligada à
apologia da sociedade moderna, na medida em que foi ela a possibi­
litá-lo. E isso tem como contrapartida uma crítica às sociedades
arcaicas, o que, no limite, implica a condenação das primeiras
sociedades e do estado de natureza, o que, aos olhos da Igreja, signifi­
cava desvalorizar a vida tão perfeita de Adão e Eva no paraíso. Nada
mais inadmissível. Mas Voltaire não hesitou em seu poema:

‘Meu caro Adão, meu lambão, meu bom pai


Que fazias nos recantos do Éden
Trabalhavas para esse tolo gênero humano?
Acariciavas madame Eva, minha mãe?
Contem-me o que tinham vocês dois
As unhas longas, um pouco negras e sujas
A cabeleira mal ordenada
Sem limpeza, o amor mais feliz
Não é mais amor: é uma necessidade vergonhosa
Eis o estado de pura natureza” .6

4. Coloquemos um pouco de ordem nessa discussão. O fato de, em


1736, o poema de Voltaire ter tido tanta repercussão, mostra que a dis­
cussão sobre o assunto estava extremamente acirrada. Delineemos
mais claramente os argumentos, conforme eles vão se apresentando,
nas suas linhas gerais.7 O partido dos adversários do luxo subdividia-
se em duas facções: a Igreja, que sempre condenou o luxo, pelo menos
retoricamente; e um certo número de autores que ainda estavam presos
a valores mundanos já caducos, representantes do neo-estoicismo,
onde a glória, a honra, a prudência, bem dosadas e na hora certa, cons-

22
tituíam os parâmetros principais. Já os apologistas vêm sobretudo das
camadas mais intelectualizadas e são difíceis de ser classificados,
representando, na verdade, tendências muito diversificadas. No início
têm, pelo menos, dois traços comuns: uma certa dose de ceticismo e
uma boa tintura de empirismo.
Gostaríamos de assinalar que essa discussão acompanha uma série
enorme e maciça de transformações materiais pela qual passou a socie­
dade ocidental nessa época. Todos os historiadores estão de acordo, nos
parece, que nossa sociedade foi, até os primórdios da modernidade,
uma sociedade na qual se pode bem aplicar o conceito, utilizado por
um filósofo contemporâneo, de rareza. De fato, tomada globalmente, a
sociedade ocidental viveu, até essa época, sob o regime da raridade dos
bens. Desde os gregos até meados do século XVI a produção dos bens
esteve regulada pelas necessidades, quando não esteve abaixo delas.
Nesse tipo de economia, o luxo sempre guardou um caráter figurativo
e simbólico. Ele basicamente existiu sobre essa forma, salvo em algu­
mas épocas e para algumas camadas da população. Tapeçarias, jóias,
vestuários e utensílios suntuosos eram signos de uma condição e uti­
lizados em certas circunstâncias e ocasiões: festas, aparições públicas
da realeza, procissões da Igreja etc. O luxo funcionou mais como uma
marca de respeito do que como um objeto de desejo. Ele era requerido,
no ciclo da vida social, de tempos em tempos e, neste ponto, diferia
pouco dos cerimoniais dos povos primitivos. O cotidiano das pessoas,
no entanto, é de um nível de vida, em geral, baixo. O dia-a-dia de um
nobre medieval não faria muita inveja a um burguês do século XVIII.
Foi só com o ciclo das descobertas marítimas e tecnológicas, e a con­
seqüente circulação cada vez maior do dinheiro, que foi possível
começar a passar da economia de rareza para uma economia da
abundância, onde os artefatos, os utensílios (as comodidades da vida)
puderam começar a se expandir tanto no sentido horizontal (consome-
se cada vez mais e diversificadamente no interior de uma camada
social), como no vertical (muito lentamente, outras começam a ter
acesso a bens até então inacessíveis). É por essa época que se inicia o
ataque ao luxo, não como algo extraordinário, mas como algo que
começa a fazer parte do cotidiano da vida das pessoas.
Tomemos, em primeiro, o ataque oriundo da Igreja, tomando
como figura exemplar Fénelon e, depois, a versão laica dessa crítica,
através de La Bruyère.

23
5. Fénelon, arcebispo de Cambray, foi nomeado preceptor do
delfim, ocasião que utilizou para escrever, para deleite e educação do
mesmo, um texto denominado As Aventuras de Telêmaco. O livro tem
um cardápio variado mas, em dois momentos, descreve duas
sociedades (Bética e Salento), que figuram como modelos onde impera
a frugalidade e o rigorismo dos costumes é a regra. São utopias, não
restam dúvidas. Mas todo leitor da época (e o livro foi o que hoje
denominamos um best-seller) sabia muito bem que. por contraste,
Fénelon estava criticando os desmandos administrativos e financeiros
de Luís XIV, que ao construir Versailles drenou literalmente os cofres
públicos deixando uma França ainda mais combalida economicamente
e com uma alta taxa de pobreza e miséria. Fénelon prega uma ordem
rígida, uma sociedade regrada segundo a norma do bem comum onde
não tem lugar nem o luxo nem a miséria. Condena o desperdício e
mostra que, além de provocar a pobreza, o luxo é corruptor. Elogia
ardorosamente a frugalidade (tópico comum nos escritores antigos) e
toma como modelo a virtude espartana ou a austeridade da Roma
Republicana. Ele trabalha por oposição: ao mesmo tempo que
descreve a simplicidade de Bética, por exemplo, a opõe claramente aos
Estados onde reina o fasto e a suntuosidade:

“Quando lhes faiamos dos povos que têm a arte de fazer


construções soberbas, móveis de ouro e prata, tecidos
ornados com bordados e pedras preciosas, perfumes
maravilhosos, iguarias deliciosas, instrumentos cuja
harmonia encanta, eles respondem nestes termos: Esses
povos são muito infelizes por ter empregado tanto tra­
balho e indústria para corromper-se a si mesmos! Esse
supérfluo enfraquece, inebria e atormenta aqueles que o
possuem; ele tenta aqueles que dele são privados a que­
rer adquiri-lo pela injustiça e pela violência. Pode-se
chamar de bem um supérfluo que só serve para tomar
os homens maus? Os homens desses países são mais
sãos e mais robustos do que vós? Vivem mais tempo?
São mais unidos entre si? Levam uma vida mais livre,
mais tranqüila, mais alegre? Ao contrário, eles devem
ser invejosos uns dos outros, corroídos por um temor,
pela avareza, incapazes dos prazeres puros e simples,

24
visto que eles são escravos de tantas falsas necessidades
das quais fazem depender toda a sua felicidade” .s

A campanha de Fénelon é sistemática. O luxo é, para ele, um dos


maiores males e o soberano tem a obrigação de reprimi-lo, assim como
de deter a inconstância das modas. A disseminação do luxo e do gosto
pelo supérfluo é o princípio da indolência:

“Se vós colocais (...) os povos na abundância, eles não


trabalharão mais, tornar-se-ão arrogantes, indóceis, e
estarão sempre prestes a se revoltarem...” ?

O luxo e a autoridade injusta são as duas coisas mais perniciosas para


um governo e, instaurados, é muito difícil achar os bons remédios.10Mais:
o luxo é como a peste. Alastra-se por todo tecido social, infecciona-o, cor­
rói tudo nas suas mínimas partes e leva fatalmente ao desastre:

"... o luxo envenena toda uma nação. Dizem que este luxo
serve para alimentar os pobres às expensas dos ricos;
como se os pobres não pudessem ganhar sua vida mais
utilmente, multiplicando os frutos da terra, sem enfraque­
cer os ricos por refinamentos de volúpia. Toda uma
nação acostuma-se a ver as coisas as mais supérfluas
como as necessidades da vida: todos os dias inventam-se
novas necessidades, e não se pode mais passar-se de
coisas que não se conhecia trinta anos antes... Este vício,
que atrai tantos outros, é louvado como uma virtude: ele
dissemina seu contágio desde o rei até o último da ralé do
povo. Os parentes próximos do rei querem imitar sua
magnificência; os grandes, aquela dos parentes do rei; as
pessoas medíocres querem igualar-se aos grandes; ... os
pequenos querem passar por medíocres; todo mundo faz
mais do que pode; uns por ostentação, ... outros por má
vergonha e para esconder sua pobreza... Toda uma nação
arruína-se, todas as condições confundem-se” .“

25
Através dessa crítica delineiam*se os contornos da verdadeira, boa e
saudável sociedade: aquela onde os homens “vivem simplesmente”, con­
tentam-se em satisfazer suas “verdadeiras necessidades”, vida esta que
constitui a fonte da “abundância, alegria, paz e união”.12 Daqui à reva­
lorização da cidade e dos costumes antigos, o passo é imediato. “Nada é
mais amável”, diz o autor, “que essa vida dos primeiros homens”, que
viviam segundo a razão e amavam a virtude, e que é incomparável ao
luxo vão e ruinoso de nossos tempos.13 É, de fato, essa “amável simpli­
cidade do mundo nascente: essa simplicidade dos costumes, tão distante
do luxo”.14E, para ele não existe nenhuma hesitação possível:

“Prefiro cem vezes a pobre Itaca de Vlysses a uma cidade


brilhante graças a uma magnificência tão odiosa”

Trata-se agora, para os tempos atuais, de empreender uma gigan­


tesca reforma dos costumes para ver se é possível deter essa praga que
está disseminada pela sociedade. É preciso reformar o governo, criar
leis suntuárias rigorosas,1'' incentivar o trabalho que produz o
necessário, eliminar o supérfluo em todos os níveis imagináveis, desde
o fasto público até os costumes dos jovens. Assim, no seu tratado sobre
a educação das jovens aconselha “o gosto de uma verdadeira mode­
ração”, onde não apareça no exterior “nenhuma afetação”:

“E preciso fazer entender a esta jovem pessoa que é o


luxo que confunde todas as condições, que eleva as pes­
soas de baixo nascimento e enriquecidas depressa por
meios odiosos, acima das pessoas de condição a mais
distinguida; que é esta desordem que corrompe os cos­
tumes de uma nação, que excita a avidez, que habitua às
intrigas e às baixezas, e que pouco a pouco sapa todos
os fundamentos da probidade. Ela deve compreender
também que uma mulher, por maiores que sejam os bens
que esta traga a uma casa, logo a arruina se introduz ali
o luxo, com o qual nenhum bem pode ser suficiente” n

26
As teses de Fénelon são bem claras. Elas apontam também para
certas características da natureza humana às quais nosso autor prende-
se firmemente: um ideal estrito de predomínio da razão, que deve
dominar as paixões e conduzir a vida do sujeito, a qual deve ser regra­
da e produtora do útil necessário. A inquietude não deve fazer parte da
vida humana. Deve ser banida:

‘‘Uma vida sóbria, moderada, simples, isenta de inquie-


tudes e de paixões, regrada e laboriosa, retém a viva
juventude nos membros de um homem sábio..."

Um outro ponto a salientar é a idéia presente em Fénelon de que


houve, no decorrer dos séculos, uma espécie de desvio, de desvio
patológico entre as inclinações naturais do indivíduo e as que viciosa­
mente adquiriu, mas que não fazem parte de sua natureza. O luxo não
é uma inclinação natural, é um desvio. Num de seus diálogos,19um dos
interlocutores recrimina o outro pelas suas excessivas despesas nos
banquetes, ao qual ele responde que assim o faz por vergonha de pas­
sar por avaro: os “pródigos tomam sempre a frugalidade por uma
avareza infame”. “Não devias fazer isso”, retruca o crítico, “pois não
é essa a nossa inclinação”.
Vida calma e regrada, da qual a inquietude deve ser banida, e com­
bate feroz ao desvio com relação ao supérfluo, já que este não faz parte
de nossas inclinações naturais, tais são os fundamentos da análise de
Fénelon e que serão impiedosamente demolidos pelos seus críticos.

6. A vertente mundana ou laica da crítica do luxo teve muito


menos importânòia e extensão. La Bruyère é um de seus melhores
representantes. Seii universo é bem distante do de Fénelon, embora
chegue a conclusões muito semelhantes. Trata-se de um mundo da
honra, da coragem, da glória pelos grandes feitos e da simplicidade dos
costumes oferecidos pela vida rústica, da qual a cidade aparece como
o contraponto negativo. Seu universo é o das “coisas rurais e
campestres”,2" que verdadeiramente admira.
E nada mais distante desse ideal do que o habitante das grandes
cidades pelo qual La Bruyère tem verdadeira alergia. Esse “vil rábula”,

27
por exemplo, “do fundo de seu estudo sombrio e esfumaçado”, ocupa­
do das mais “negras chicanas”, acha-se não só superior ao homem que
labora a terra, goza o céu aberto e bem semeia como

“se alguma vez ele escuta falar dos primeiros homens ou


dos patriarcas, de sua vida campestre e de sua economia,
ele se espanta de que se tenha podido viver em tais
épocas onde ainda não havia nem escritórios, nem
comissões, nem presidentes, nem procuradores; ele não
compreende que alguma vez se tenha podido passar-se
do cartório, do ministério público e do botequim" .21

Seu desprezo por esse tipo de gente acresce-se ainda mais pela
sua “molesse”, desconhecida dos antigos, nos quais não se os via,
quando saíam de um jantar, montarem numa carruagem, já que
estavam persuadidos de que os “homens têm pernas para andar e eles
andavam”/ 2 Seus costumes eram austeros, cuidando de seus próprios
negócios: “Em todas as coisas eles contavam consigo mesmos”.2-1Sua
“despesa era proporcional à sua receita” e tudo era medido segundo
suas rendas e sua condição e assim “passavam de uma vida moderada
à uma morte tranqüila”2'1:

“Eles tinham menos do que nós e tinham o suficiente,


mais ricos por sua economia e por sua modéstia do que
por seus rendimentos e por seus domínios. Enfim, esta­
va-se então penetrado por esta máxima de que aquilo
que nos grandes é esplendor, suntuosidade, magnificên­
cia, no particular é dissipação, loucura, inépcia” P

É essa visão que conduz La Bruyère a valorizar o mundo antigo na


sua frugalidade e simplicidade. Foi preciso que escoasse o tempo para
que os homens percebessem que tanto nas ciências quanto nas artes o
melhor era retomar às origens, ao gosto dos antigos, e “retomar enfim
o simples e o natural”.26 E por isso que lhe seduz tanto “a vida simples
dos atenienses” quanto a vida dos “primeiros homens”, grandes por
eles mesmos. Ao fim e ao cabo, toda essa miríade de invenções poste­
riores vieram apenas: “talvez para substituir essa verdadeira grandeza
que não existe mais”.27 Nesses homens, a natureza mostrava-se em toda
sua pureza e sua dignidade, “não estava ainda manchada pela vaidade,
pelo luxo e pela tola ambição”28 e o homem não era honrado sobre a
face da terra senão “pela sua força e virtude”.29Não era rico em função
de cargos ou pensões mas “por seu campo, por sua manada, suas crian­
ças e servidores”, e sua alimentação era sã e natural.3"
Vê-se bem que toda crítica de La Bruyère é aquela feita por um
homem que já não pertence mais ao seu tempo. O estofo de sua análise
é uma nostalgia que a atravessa de ponta a ponta e que faz com que
expresse com azedume o mundo que vê ao seu redor.

7. A resposta a essas análises não demorou. E veio de uma das


inteligências mais profundas e mais polêmicas da época: P. Bayle. A
crítica de Bayle é executada em regra: ataca tanto a posição laica,
quanto a inspirada na religião. Ambas, é fácil de perceber, têm um
ponto em comum: um certo saudosismo, quando realizam a apologia
dos costumes antigos mais puros e virtuosos. Outro ponto comum é a
denúncia do relaxamento geral dos costumes do presente. E exata­
mente sobre esse dois pontos que Bayle inicia sua análise. Um dos
inúmeros méritos de Bayle foi começar a colocar em questão (o que
não tinha sido feito seriamente até então) o mito da frugalidade e da
simplicidade dos antigos. Lança a suspeita de que, na verdade, trata-se
de uma construção retroativa elaborada com fins específicos e nem
sempre confessáveis. O que ele quer dizer é, por exemplo, que essa
Esparta, rústica, austera, simples, frugal, honesta, dotada enfim de
todas a&aualidades cívicas e morais, teria muito menos a ver com a
Esparta histórica do que com a projeção retroativa de um conjunto de
valores qui pouco ou nada teriam a ver com ela. O mesmo pode-se
dizèr-da-Roma Republicana. E sabemos o quanto Bayle foi mestre na
crítica histórica. Sabia e mostrava que as reconstruções de um Tito
Lívio ou um Comélio Nepos eram falsas. Podiam estar repletas de
intenções morais (e não negava as vantagens resultantes disso) mas
não tinham a menor validade histórica. O que Bayle mostra, de forma
cristalina, é que, se os antigos viveram na frugalidade, isso não se
deveu a nenhuma escolha de ordem moral, mas a uma coação natural.
Em outros termos: as sociedades antigas eram pobres. E não é muito
honesto transformar uma necessidade numa virtude: “Não é um grande
mérito renunciar... ao luxo quando se é pobre”.31 A austeridade só deve
ser elogiada no campo moral quando, na presença de um bem, opta-se
por renunciai- a ele. Não há nenhum mérito no caso daquele que, além
de não ter escolha, nem sequer saber que ele existe:

"Quanto a essa frugalidade tão elogiada, ela não era


uma supressão das coisas supérfluas, ou uma abstinên­
cia voluntária das agradáveis, mas um uso grosseiro
daquilo que se tinha entre as mãos. Não se desejava as
riquezas que não se conheciam: contentavam-se com
pouco por não imaginar nada a mais; passavam-se dos
prazeres dos quais não tinham idéia”.32

Mas a própria ótica cristã na análise do problema é colocada em


questão por Bayle. E aqui o alvo é, sem dúvida, Fénelon. E não se
pode negar: toda a análise de Fénelon com relação ao luxo e o pro­
blema que instaura estão elaborados por um pensador que, no essen­
cial, é fiel à tradição do ascetismo cristão. A problemática dele
insere-se na ótica de condutor (ou conselheiro) real, de um preceptor
espiritual do futuro rei, no qual quer inculcar esses princípios contra
o que pensava serem as perversões engendradas pela busca do con­
forto e do prazer. O que significa dizer, aos olhos de Bayle, que a
questão, por princípio, está decidida. O retrato que ele nos traça do
cristão deixa isso muito claro:

"Os verdadeiros Cristãos, parece-me, consideravam-se


na terra como viajantes e peregrinos que se dirigem ao
Céu, sua verdadeira pátria. Eles veriam o mundo como
um lugar de banimento, afastariam dele seu coração,
lutariam sem fim e sem cessar com sua própria natureza
para impedir-se de tomar gosto pela vida mortal, sem­
pre atentos em mortificar sua carne e suas cobiças, em
reprimir o amor pelas riquezas, pelas dignidades e pelos
prazeres corporais, e em domar este orgulho que torna
as injúrias tão pouco suportáveis" .33

30
Mas Bayle não se contenta em simplesmente elaborar uma crítica.
Engaja-se claramente na nova mentalidade e faz-se apologista de
novos valores nascentes. Liberal, um pouco “avant la lettre”, já declara
sua pouca preocupação com os problemas morais, deixando-os para o
futuro, e incita à inserção nas novas práticas e concepções:

“Conservai à avareza e à ambição toda a sua vivacidade...


Prometei uma pensão àqueles que inventarão novas
manufaturas e novos meios de ampliar o comércio” M

E se isso, um dia, configurar-se como problemático:

“Vbjjoi descendentes cuidarão disso; então, como


agora, deixai o cuidado com o futuro a quem este per­
tencerá, pensai na opulência do tempo presente...” .35

8. O contra-ataque de Bayle era de um enorme peso e tudo levava


a crer que pouca coisa mais poder-se-ia dizer sobre o assunto, quando
aparece uma verdadeira bomba: a Fable o f Bees de B. Mandeville.
Originalmente (1705) apareceu na forma de um pequeno poema intitu­
lado The Grumbling Hive: or Knaves Turn’d Honest e a ele deu-se
pouca atenção. Reaparece com o título pelo qual é conhecido, consi­
deravelmente aumentado, em 1714, e desde então chama a atenção e a
ira.3* Por fim, em 1729, aparece um volume suplementar contendo seis
diálogos. Eis a história sucinta do texto.
O'poema inicial, germe de todos os desenvolvimentos posterio­
res, diz basicamente o seguinte. Trata-se de uma colméia, espelho da
sociedade tmmana (o poema é uma alegoria), onde reina livremente a
desonestidade e o egoísmo e se vive em plena prosperidade. Num
determinado momento, ela experimenta a nostalgia da virtude e pede
aos deuses esse dom, no que é atendida. Satisfeito o desejo da colméia
ela passa a ser o lugar onde reinam irrestritamente a virtude e a
justiça. Mas, coisa extraordinária, essa perfeição moral alcançada
pelos indivíduos acaba por engendrar a ruína do conjunto que se toma
imóvel, congelado e estéril. Desaparece a atividade, a prosperidade se

31

4
esvanece, e começa a imperar a pobreza e o tédio numa população
cada vez mais reduzida.
Todos os analistas de Mandeville concordam muito pouco entre si,
a não ser num ponto: seu pensamento é extremamente complicado,
complexo, praticamente impossível de ser resumido mesmo se ficamos
com as poucas páginas do poema inicial. Quando se aborda a obra
toda, então, a questão complica-se ainda mais. Seu pensamento move-
se quase sempre em torno de paradoxos, de sinuosidades, de distinções
extremamente difíceis de serem captadas. A começar pelo próprio sub­
título da obra: “Vícios Privados, Benefícios Públicos”, fórmula que
pode ser entendida de várias maneiras e o foi.
Tomemos, como hipótese, a idéia de que o poema inicial foi, de
fato, a semente original a partir da qual a obra foi brotando. Se é assim,
o sentido original encontra-se exatamente aí. Os desenvolvimentos pos­
teriores são o “commentaire raisonné” dessa intuição original. Partindo
dessa hipótese, já podemos fazer uma constatação. Se Bayle foi
extremamente perspicaz ao perceber e denunciar as fraquezas das críti­
cas elaboradas contra o luxo, não teve, no entanto, a mesma perspicá­
cia para perceber que a apologia do luxo deveria se basear numa nova
escala de valores, numa reavaliação global à qual Mandeville foi sen­
sível. O termo sensível está sendo usado aqui intencionalmente.
Estamos querendo dizer que Mandeville percebeu muita coisa, vislum­
brou coisas novas, mas nem sempre exprimiu isso com a clareza
necessária. Mas não sejamos anacrônicos. Não imputemos falhas a um
pensador que, esboçando uma nova cartografia conceituai, deixou-a
ainda um pouco embaralhada. Embaralhada para nós, que sabemos o
rumo posterior das idéias. Mandeville foi um pensador, não um profe­
ta. Talvez a melhor grade para se ler Mandeville seja aquela que seguem
seus predecessores (sobretudo Hobbes e La Rochefoucauld): na consti­
tuição lenta, mas progressiva, de uma antropologia laica que vê o motor
fundamental das ações humanas no egoísmo. Essa tese é uma constante
na obra de Mandeville e Hutcheson dispendeu anos, cursos e livros para
tentar desmontá-la.’7 É provavelmente através desse operador que con­
seguiremos reagrupar algumas articulações fundamentais.
Dessa perspectiva, uma primeira linha de interpretação impõe-se. O
que, à primeira vista, aparece como um paradoxo — afinal de contas,
por que a retitude moral é incompatível com a pTOsperidade? — pode
começar a se resolver se pensarmos que Mandeville pensa o par
vício/virtude numa acepção estritamente rigorosa e ascética. Conferindo

32
um sentido rigoroso aos termos, ele consegue colocar em evidência que
estamos, de fato, frente a uma dupla escala de valores que são incom­
patíveis. Aponta, de forma clara, para o fato de que a moral da perfeição
individual (lembremos o quadro pintado por Bayle, citado há pouco)
não é compatível com a moral que é exigida pelo interesse social.
Entendendo-se por moral, norma de comportamento. Aponta-se, então,
para uma irredutível separação entre os preceitos da pureza, moral indi­
vidual e os imperativos exigidos para o desenvolvimento material da
sociedade. Separação que supõe, vimos, o caráter inconciliável de
ambas as posturas, se se quiser mantê-las simultaneamente.
Em segundo lugar, os diferentes sujeitos são colocados frente a uma
opção: ou a busca da salvação pessoal e a conseqüente estagnação e dete­
rioração da sociedade, ou a atitude inversa. Ora, o sentido e o tom do
poema de Mandeville — sobretudo o seu final — não podem deixar muita
dúvida com relação à posição ou à sua tese. Ele afirma claramente que o
vício é tão necessário ao Estado quanto é a fome para comer, e percebe
muito bem que seus contemporâneos já escolheram a segunda via.38
Podemos raciocinar de maneira ligeiramente diferente e chegare­
mos à mesma conclusão: um rigorista moral, absolutamente convenci­
do da veracidade de sua doutrina, como Fénelon, não teria hesitado
frente a esse quadro: se é assim, é preciso abandonar esse falso rumo
tomado pela sociedade e reconduzi-la ao bom caminho, reeditando
várias Espartas modernas. Ora, já vimos, a crítica de Bayle apontava
claramente o ponto fraco dessa argumentação. Mas pode-se inverter o
raciocínio de Bayle: qual seja, os antigos tinham um tipo de vida deter­
minado pela necessidade e não pela virtude. Mas nós, modernos, que
temos diante dos nossos olhos as duas opções, temos também o direito
de escolha e podemos perfeitamente optar, com conhecimento de
caüsa, pelo rigor e a frugalidade, se esse é o preço de nossa salvação
ou/ pelo menos, de nossa retitude moral. Fica claro, portanto, que o
paradoxo de Mandeville só pode instaurar-se como tal numa sociedade
que produz bens no regime de abundância e que sabe que há outra
opção possível, a famosa “opção zero” de um político eminente.
É sintomático, no entanto, que essas possibilidades nunca
apareçam seriamente no texto de Mandeville. Essa volta para trás é,
evidentemente, uma impossibilidade aos seus olhos, e isso por uma
razão muito simples: sua concepção da natureza humana. A nota domi­
nante do pensamento de Mandeville é a de que o móvel central das
ações humanas é o egoísmo:

33
“Nada existe na terra tão universalmente sincero como o
amor que todas as criaturas, capazes de senti-lo, se pro­
fessam a si mesmas; e como não há amor que não
desvele o cuidado de conservar o objeto amado, nada
há mais sincero, em qualquer criatura, que sua vontade,
seu desejo e seu empenho de conservar-se a si mesma. É
lei da Natureza que todos os apetites ou paixões da
criatura tendam diretamente ou indiretamente à preser­
vação tanto de si como de sua espécie” .w

E, na medida em que esse egoísmo é a tônica dominante, oni­


presente em toda obra, isso faz com que seja “impossível que o homem
possa ter melhores desejos para com os demais do que para consigo
mesmo”.40Esse egoísmo nos leva a tender a satisfazer todas as nossas
paixões e desejos, variáveis em cada um, e que constituem seu bem,
seu prazer.41 Diante desse quadro, como pensar numa volta para trás?
É por isso que, se isso é impossível, o melhor caminho é a reformu­
lação do nosso código de valores.
Isso significou aos olhos de Mandeville abandonar ostensivamente
os cânones da moral tradicional? Não. Ele apenas aponta que a vida
cotidiana, comum e material dos homens, implica regras de conduta
internas, próprias à sua esfera. Mandeville pode não ter partido o cristal
que mantinha a unidade do moral e do econômico, ou melhor, a unidade
que fazia com que o segundo fosse julgado pelo primeiro, mas intro­
duziu uma enorme rachadura. É como se ele dissesse: cada um quê
opte, é seu direito (já que não existe “summum bonum”). Mas sabe
muito bem, de antemão, o resultado, já que cada um, segundo Virgílio,
“Trahit sua quenque voluptas”.42A história lhe deu razão.
Assim, assistimos não à pulverização da moral tradicional, mas sua
dissociação da esfera material. Se os sujeitos só cometessem ações vir­
tuosas, isto é, desinteressadas, sabemos que cessariam o comércio, as
artes (técnicas) e a maioria das profissões perderiam seu sentido, na
medida em que existem para satisfazer apetites sensíveis (e, na maioria
das vezes, supérfluos). Só as ações interessadas, portanto, dizem
respeito à esfera do social enquanto social. Ou seja, só as ações que,
desse ponto de vista, obedeçam a um critério utilitário, isto é, que sejam
úteis, boas e benéficas para a sociedade enquanto tal e os indivíduos
que a compõem, enquanto componentes do social. A utilidade deve ser

34
II

o critério, já que é ela quem contribui para a prosperidade e a felici­


dade de seus membros.
É nesse nível, portanto, que encontramos a razão de ser da ação
social: ações interessadas, produtoras de benefícios e bens que satis­
façam os desejos humanos e lhes tragam bem-estar. É na produção e
sobretudo no consumo dos bens materiais que encontramos a razão de
ser do mecanismo social, já que os outros pertencem a outra esfera.
Neste ponto, Dumont percebeu agudamente que Mandeville teve um
papel central na constituição da ideologia modema, pois foi um dos
primeiros (senão o primeiro) a mostrar que as relações entre os homens
e as coisas é que são primárias e não as relações entre os homens.43
Posta a questão nesses termos, o problema do luxo coloca-se, na
perspectiva de Mandeville, de maneira relativamente simples. Se é a
ordem da utilidade social que impera, basta inclinar-se diante dos
fatos: uma civilização nova está nascendo e oferece, aos indivíduos,
um número cada vez maior de bens, dos quais os outros séculos não
faziam a menor idéia. E a função da sociedade é produzir esses bens,
fazer com que circulem e, sobretudo, que sejam consumidos, pois é
para isso que existem. Eles são o motor da sociedade e, nesse sentido,
benéficos. Devem ser progressivamente incrementados. Quanto maior
o número de bens, maior o número de beneficiários e benefícios, não
importando nem a qualidade, nem sua origem, dada a extinção da idéia
de “summum bonum”. O luxo é algo perfeitamente natural e normal.
Mais ainda: deve ser estimulado, já que no círculo das necessidades
estritamente naturais, uma sociedade pode subsistir, mas só se desen­
volve e floresce, quando penetra e explora o domínio do supérfluo. E
é inútil argumentar que o luxo corrompe, amolece e afemina os cos­
tumes. Os bens que acarretam são bem maiores que os males. E isso é
o que interessa. Os famosos exemplos do incêndio de Londres e o da
fabricação de bebidas são evidentemente provocativos, mas significa­
tivos da lógica de Mandeville. Em 1732, Berkeley, no Alcyphron,
reproduz de forma perfeita o argumento de Mandeville através de um
dos personagens (Lisicles) do diálogo com relação à bebida:

“A embriaguez, por exemplo, é considerada por vossos


sábios moralistas um vício funesto, mas isso se deve à falta
de consideração dos bons efeitos que dela.provêm. Porque,
em primeiro lugar, aumenta a arrecadação do imposto da

35
cerveja, um dos principais artigos do fisco de sua majes­
tade, e, por conseguinte, promove a segurança, o poder e
a glória da nação. Em segundo lugar, fornece emprego a
um grande número de trabalhadores: cervejeiros, fabri­
cantes de malte, trabalhadores, carpinteiros, fabricantes
de latão, junto com os demais artesãos necessários para
subministrar aos mencionados seus respectivos instrumen­
tos e utensílios. Todos esses benefícios são produzidos pela
embriaguêz vulgar, da cerveja forte” .44

Esse é o sentido principal da fórmula: “vícios privados, benefícios


públicos” e, realizando essa operação, Mandeville já começa a afirmar a
separação entre bondade e felicidade, algo incompreensível para a
tradição predominante desde a Grécia clássica. De agora em diante, está
aberta a possibilidade de se pensar esses dois conceitos em esferas dife­
rentes, embora, em Mandeville, eles ainda não tenham uma tópica clara­
mente definida. Será na Crítica da Razão Prática que isso se instaurará
definitivamente e onde o campo da moralidade não se confundirá mais
com o campo da felicidade. Quer dizer, Mandeville, de uma forma ainda
enevoada, prenuncia a distinção kantiana que, através do imperativo
categórico, instalará o campo da moralidade de forma completamente
independente dos fatos e mostrará que a felicidade é um simples ideal da
imaginação, restrita ao campo empírico, fatual. Não deixa de ser sur­
preendente essa abertura contida principalmente na Fábula das Abelhas?*
Uma operação importante realizada por Mandeville foi a rela-
tivização do conceito de luxo:
“Se determinamos as origens das nações mais prósperas,
encontraremos que, nos remotos princípios de todas as
sociedades, os homens então mais ricos e considerados
foram privados durante longo tempo de muitas das
comodidades de que agora desfrutam os mais humildes
e miseráveis; de modo que muitas coisas que em outros
tempos consideravam-se uma invenção do luxo estão
agora ao alcance de pobres tão indigentes que vivem da
caridade pública e conceituam-se tão necessárias que
nos parece impossível que algum ser humano possa
estar desprovido delas”46.

36
É impossível considerar essas noções tendo como marco um
ponto absoluto. Riqueza e pobreza, necessário e supérfluo, desperdício
o frugalidade são noções relativas: o que é privilégio de aJguns numa
época toma-se, com o decorrer do tempo, objeto de consumo corrente.
É muito difícil, em primeiro lugar, dizer quando começa o luxo.
Voltaire, no Dicionário Filosófico, afirma:

“Num país onde todos andam descalços, o que fez o


primeiro par de sapatos tinha luxo? Não era um homem
muito sensato e muito industrioso? Isso não vale também
para quem fez a primeira camisa? Quem a fez esbran­
quiçar foi um gênio pleno de recursos capaz de governar
um Estado. Entretanto, aqueles que não estavam acostu­
mados a vestir camisas o tomaram por um rico efemina-
do que corrompia a nação” .47

Da mesma forma, como não se sabe quando começa, é difícil


detectar também quando termina ou quando passa a ser nocivo:

“Se há de chamar-se de luxo (como deveria estritamente


ser chamada) cada coisa que não seja imediatamente
necessária para permitir ao homem subsistir como
criatura vivente que é, não há outra coisa que exista no
mundo, nem sequer entre os selvagens nus, dos quais é
improvável que haja alguns que nessa época não tenham
melhorado em alguma coisa sua maneira de viver, seja na
preparação de seus alimentos, na distribuição de suas
choças ou, pelo menos, adicionando algo ao que, em ou­
tros tempos, consideraram suficiente. Todos dirão que
esta definição é demasiado rigorosa; sou da mesma
opinião, mas se vamos mitigar, por mínimo que seja, esta
severidade, temo que já não saberemos onde deter-nos” ,48

Trata-se de um conceito vago, indefinido, onde nunca se sabe exata­


mente como demarcar o território. Quando as pessoas dizem que apenas

37
querem estar limpas e apresentáveis, por exemplo, diz Mandeville,
nunca se sabe direito o que estão querendo dizer com isso. Mas, esses
“pequenos adjetivos são tão extensos, especialmente no dialeto de algu­
mas damas que ninguém pode suspeitar de seu alcance”.41' A réplica con­
tinental não demorou muito:

“O que é, com efeito, o luxo? É uma palavra sem idéia


precisa, mais ou menos como quando dizemos os cli­
mas do oriente e do ocidente: não existe, com efeito,
oriente e ocidente. Não há ponto onde a terra se le­
vanta ou se deita, ou, se querem, cada ponto é oriente
e ocidente. Dá-se o mesmo com o luxo: ou não existe
ou está em todo lugar" ,w

9. Voltaire, mesmo amenizando um pouco as fórmulas provocati­


vas do Le Mondain, nunca deixou de ser um apologista ferrenho do
luxo mostrando sempre que ele é um dos grandes benefícios que a ci­
vilização nos trouxe. Ele é o resultado da indústria e do gênio e avança
com os progressos da primeira. E esse avanço da indústria faz com
que, progressivamente, os produtos se barateiem.31 Mesmo essa fru­
galidade e essa pureza dos costumes, tão decantada nos antigos, além
de falsa, como mostram Bayle e Mandeville, não produziram, ao que
parece, grande coisa para a humanidade. Só uma miopia histórica pode
fazer alguém preferir Esparta a Atenas:

“Citam a Lacedemônia... Que bem Esparta fez à Grécia?


Teve ela Demóstenes, Sófocles, Apeles, Fídias? O luxo
de Atenas produziu grandes homens".52

Voltaire, como é fácil de ver, pode ter provocado grande ebulição


quando publicou o Le Mondain. Mas, nem nesse texto, nem na grande
maioria dos que escreveu posteriormente foi, propriamente, um ino­
vador. Retoma quase sempre os argumentos de Bayle e, sobretudo, de
Mandeville. Colore-os, embeleza-os, dá a eles sua tintura particular,
produzindo textos brilhantes e inigualáveis. Mas não vai muito mais

38
longe. Exceto em dois pontos, onde seu papel parece ter sido decisivo,
lixaminemos o primeiro. Num desses giros muito característicos de
Voltaire, ele acaba fazendo o feitiço virar contra o feiticeiro e é, não
sobre a noção de supérfluo que joga sua atenção, mas sim sobre a de
excesso. Foi esse o grande golpe de gênio de Voltaire, quando acaba
por inverter as posições e passa do papel de advogado de defesa ao de
acusador. Trata-se de um momento importante e delicado nessa longa
c intrincada disputa sobre o luxo e, de agora em diante, serão os
próprios apologistas da frugalidade que se vêm na obrigação de dar
explicações. Isso tudo, Voltaire conseguiu com uma simples frase:

“Se por luxo entendem o excesso, sabe-se que o excesso


é pernicioso em todo gênero: na abstinência como na
glutoneria, na economia como na liberalidade" .53

Esse argumento já andava difuso e representou uma verdadeira


viragem na questão do luxo. O que se defende agora é que, bem dosado
e usado com bom espírito, ele realmente constitui um bem precioso da
civilização. Por outro lado, já vimos, atingido esse ponto, que os ri-
goristas ficam numa posição verdadeiramente incômoda. Aquilo mesmo
que apontavam como a raiz dos males do luxo não só agora é negado
como se volta contra eles mesmos. A partir desse momento a causa está
perdida. Tratava-se de uma realidade que era preciso aceitar e conferir
direito de cidadania teórica. Como comenta, com humor, P. Hazard:

“Quem abordava a questão do luxo estava perdido; qual­


quer incompetente se julgava com direito a pegar na
pena, compondo uma apologia ou um requisitório; um
não acabar de disparates, ‘inesgotável mina de tolices’. O
luxo não era perigoso em si, o luxo só se tornava perigoso
nos estados mal governados. Havia dois luxos, um culpa­
do e outro virtuoso. Dois luxos ainda, um aristocrático e
outro popular. E ainda dois outros, um no início, que era
legítimo; o outro que se tornava ilegítimo a partir do
momento em que o desejo de brilhar leva o indivíduo a
adquirir atavios acima de suas posses. Concluíam outros

39
que bem vão era discutir sobre o luxo, posto ser este uma
realidade: boa ou má, era necessário aceitá-la" .5i

Foi esta última opinião que acabou prevalecendo. A tese de


Mandeville, deixando de lado seus exageros e seus exemplos bombás­
ticos, é, em linhas gerais, aceita e, afora os ultratradicionalistas e duas
honrosas e poderosas exceções (Rousseau e Condillac), trata-se agora
de uma questão de ajuste, de nível e de enquadramento. É o que vão
fazer os textos de Hume, de um lado, e o verbete “Luxo” na
Enciclopédia, de outro.

10. A abordagem de Hume foi discreta, mas nem por isso deixou
de ser importante:

"Luxo, afirma ele, é uma palavra de significação incerta


e pode ser tomada tanto no bom quanto no mau sentido.
Em geral, significa grande refinamento na satisfação dos
sentidos e em qualquer grau pode ser inocente ou culpá­
vel, conforme a idade, país ou condição da pessoa...
Imaginar que a satisfação de qualquer dos sentidos, ou
a adoção de qualquer requinte em carnes, bebidas ou
ornamentos seja por si um vício só poderá ocorrer a uma
mente desorganizada pelo furor do entusiasmo” .5S

Sua posição é ao mesmo tempo clara e nuançada. Clara porque, nas


pegadas de Mandeville e Voltaire, considera o luxo como algo que per­
tence à classe do consumo produtivo e, portanto, em geral, benéfica. Nuan­
çada porque realiza a distinção entre um luxo inocente e outro vicioso. O
que entende por luxo vicioso deixa apenas entrever num exemplo:

“Ocupar-se inteiramente com o luxo à mesa, por exemplo,


sem nenhum gosto pelos prazeres da ambição, do estudo
ou da conversação, é sinal de estupidez, e é incompatível
com qualquer força de temperamento ou de gênio.

40
Dedicar as despesas inteiramente a tal satisfação, sem
consideração para com os amigos ou a família, indica
um coração destituído de humanidade ou benevolência;
mas se um homem reserva tempo suficiente para todos
os fins generosos, está livre de qualquer sombra de
culpa ou reprovação”.56

O que ele chama luxo vicioso parece ser o que entendemos por
monomania ou idéia fixa. Não deixa de lembrar também Luís XIV e
Versailles. A idéia que nos vem, por exemplo, é a de um jogador cuja
paixão foi levada a tal ponto que absorve toda sua vida e drena todos
os seus bens. Mas, nem nesses casos, Hume considera o luxo como “o
pior dos males da sociedade política”.57
A análise de Hume centraliza-se num ponto de vista socio-
econômico. Os homens, desde que deixaram o estado selvagem onde
viviam principalmente da caça e da pesca, dedicaram-se à agricultura,
que de início ocupou a parte mais numerosa da sociedade. Mas, o aper­
feiçoamento da técnica levou ao estado em que bem poucos homens,
proporcionalmente, são necessários para garantir a subsistência dessa
mesma sociedade. Todo o problema, diz Hume, está em o que fazer
com esse excedente de mão-de-obra da agricultura. Pode-se usá-lo ou
para o engrandecimento e o poder do Estado (exércitos, frotas) e o
aumento de seus domínios, ou pode-se usá-lo para a produção de ma­
nufaturas e objetos mais refinados. Alguns Estados antigos preferiram
a primeira via e só se tomaram poderosos exatamente pela “ausência do
comércio e do luxo”.58 Mas esses casos são excepcionais e não instau­
ram uma regra e, neste caso, podemos seguramente dizer que “a políti­
ca antiga era violenta e contrária ao curso natural e comum das
coisas”.59 Já que tudo no mundo é “adquirido pelo trabalho”, causado
pelas nossas paixões, e é natural que toda pessoa goze “dos frutos de
seu trabalho, em plena posse de todo o necessário e de muitas das
comodidades da vida”.60 E esse é o “curso comum das coisas humanas”
e a boa política consiste em “concordar com a inclinação comum da
humanidade e dar-lhe todos os melhoramentos de que é suscetível” e,
conforme o “curso natural das coisas, a indústria, as artes e os negócios
aumentam tanto o poder do soberano quanto a felicidade dos súditos e
é política violenta aquela que engrandece o público à custa da pobreza
dos indivíduos”.61 É sob essa ótica que os indivíduos conseguem

41
realizar sua felicidade pois os homens, quando a indústria e a técnica
florescem “mantêm-se em ocupação constante e desfrutam da própria
ocupação como sua recompensa, bem como dos prazeres que são o
fruto do seu trabalho”.62As vantagens de se seguir as inclinações natu­
rais dos homens são múltiplas: quanto mais se requintam no prazer,
menos se abandonam ao excesso de qualquer tipo.63 Essa produção e
consumo desses artigos ornamentam a vida multiplicando as satisfações
inocentes, e são úteis também à sociedade porque produzem não só um
excesso, que pode ser estocado em caso de necessidade futura, como
também mantém uma mão-de-obra potencial disponível ao Estado,
caso ele venha precisar dela, já que ela não produz o essencial.64
Distribui melhor a riqueza no interior da sociedade, e “onde as riquezas
estão na mão de poucos”, estes detêm todo o poder e, inevitavelmente,
conspirarão para deixar todos os encargos aos pobres.65
E falso, enfim, pensar numa opção frente ao problema de excedente
provocado pelo excesso de refinamento da agricultura. E mais: mesmo
nos estados onde o Estado era o valor único e primeiro, não foi o luxo o
causador de suas desordens. Este “não possui a tendência natural de
acarretar a venalidade e a corrupção”.06 Suas desordens procederam de
um “governo mal formado e da extensão ilimitada de suas conquistas”.67
Essa é a fonte de seus males e é por isso que o luxo, mesmo vicioso, não
é o pior dos males num Estado. De nada adianta combater o luxo. Ele
por si só é geralmente beneficioso ou, pelo menos, inócuo. De um só
golpe Hume praticamente inocenta o luxo, insere-o na cadeia natural dos
eventos sociais (econômicos, seria melhor) e desloca o acento das neces­
sidades do Estado para as necessidades do indivíduo. O luxo agora é a
conseqüência natural das matrizes passionais do ser humano — desejo
de ação, de prazer, e de consumo — e insere-se no plano econômico,
ligado ao desenvolvimento da indústria e do comércio. Ele é um dos ele­
mentos essenciais do desenvolvimento do corpo produtivo. Dupla ação,
portanto, alocação do luxo como um problema econômico (e desliga­
mento da esfera moral), que deve ser tratado como tal, e sinalização de
que os males do Estado têm por causa — não o luxo — mas algo que
está na esfera do político.
Se ainda pode-se dizer com Hume que o “luxo” é uma palavra
polissêmica e que se trata, portanto, de uma questão de delimitação,
ninguém melhor que Hume até então realizou esta operação de precisão
do conceito. Pode-se argüir indefinidamente sobre onde o luxo começa
e onde acaba, argumentai- sobre a relatividade geográfica e histórica; o

42
fato c que seu único ponto sólido de ancoragem é o econômico, susten­
tado por uma teoria do valor baseada em constantes da natureza humana.
11. Depois da abordagem humeana, ao que parece, assistimos a uma
espécie de calmaria nessa discussão que só será realmente reavivada nos
anos 70. Nesse ínterim, Montesquieu dedica-se em vários pontos do
Espírito das Leis ao problema, sobretudo no livro VII. Mas o tom já é bem
outro que o das Canas Persas. Não que condene o luxo, ao contrário. Mas
a apologia é mais que discreta.68Vincula estreitamente, no entanto, o luxo
e a Monarquia.6'' Uma outra observação de Montesquieu é interessante:

“O luxo está sempre em proporção com a desigualdade


das fortunas. Se em um Estado as riquezas são igual­
mente partilhadas, ali não haverá luxo; pois ele só está
fundado nas comodidades que as pessoas se dão pelo
trabalho dos outros”
Desde M andeville, tem-se clara consciência da distinção de classes
e sua necessidade, num regime econômico baseado em novas premissas.
M as nenhum dos autores parecia m uito preocupado com isso, e nem
com o destino das classes m enos favorecidas. N a verdade, propugnava-
se que se deveriam m anter no seu lugar e sob rigorosa e estrita vigilân­
cia. M ontesquieu m esm o não emite nenhum juízo de valor. Quem,
prim eiro, ao que parece, foi m ais longe nessa questão (no âm bito dos
defensores do luxo) parece, para variar, ter sido Voltaire, que extrai um a
das conseqüências fundam entais para a abordagem de um nível da
questão (e aqui está o segundo ponto onde é original):

“Se entendemos por luxo tudo aquilo que é além do


necessário, o luxo é uma conseqüência natural dos pro­
gressos da espécie humana; e para raciocinar conse­
qüentemente, todo inimigo do luxo deve crer, com
Rousseau, que o estado de felicidade e de virtude para o
homem é aquele, não de Selvagem,n mas de orangotango.
Sentimos que seria absurdo ver como um mal comodi­
dades das quais todos os homens desfrutariam; por isso,
em geral, só se dá o nome de luxo às superfluidades das

43
quais apenas um pequeno número de indivíduos pode des­
frutar. Neste sentido o luxo é uma decorrência necessária
da propriedade, sem a qual nenhuma sociedade pode sub­
sistir, e de uma grande desigualdade entre as fortunas,
que é a conseqüência não do direito de propriedade, mas
de más leis. São portanto as más leis que fazem nascer o
luxo, e são as boas leis que podem destruí-lo. Os moralis­
tas devem dirigir seus sermões aos legisladores, e não aos
particulares, porque está na ordem das coisas possíveis
que um homem virtuoso e esclarecido tenha o poder de
fazer leis razoáveis, e porque não é da natureza humana
que todos os ricos de um país renunciem, por virtude, a
obter a preço de dinheiro desfrutes de prazer e vaidade” .72
Esse texto é revelador, em primeiro lugar, da distância que foi per­
corrida nessa discussão e que Voltaire espelha tão bem. Uma certa
acepção do termo luxo já não se discute mais: sua bondade, sua utili­
dade e seu caráter natural à espécie humana. Em segundo lugar, se há
um sentido em que o luxo pode ser condenado (“Neste sentido...") é
aquele supérfluo, que é o privilégio de uma minoria rica. Mas isso diz
respeito, diretamente, à legislação e não à moral privada. Trata-se de
um problema de política, não de ética: da boa gestão e distribuição dos
bens que são gerados e produzidos na sociedade. Essa espécie de luxo
condenável nem é má em si mesma, como veremos, já que é um efeito
e, mesmo como efeito, nem sempre é condenável.

12. Isso ficará claro no extenso verbete “Luxo” da Enciclopédia.73


St.-Lambert parte de uma definição mínima de luxo:

“Ele é o uso que se faz das riquezas e da indústria para .


se conseguir uma existência agradável” .1A

Em seguida, realiza um longo exame dos argumentos que foram


arrolados pró e contra o luxo. Não vale a pena deter-se neste ponto na
medida em que não apresenta novidade em relação ao que já discuti­
mos. A primeira coisa interessante a constatar é a conclusão que

44
extraí após esse balanço: tanto os elogios como as censuras que se
fazem ao luxo não são contraditos pela história. O que significa dizer
que a história não é um bom “topos” para se trabalhar a questão. É
preciso encará-la sob outro ângulo. E a maneira como ele a coloca
pode ser expressa da seguinte forma: se os apologistas do luxo vêem
neíe o motor dos progressos das nações, enquanto que seus detratores
vêem nele o motor de sua decadência, e como ambas as coisas podem
ser constatadas no plano histórico, não se estaria tomando como
causa e como efeito algo que não é nem uma coisa nem outra?” E,
logo em seguida, afirma:

“O interesse pessoal, sem que ele se tenha tornado amor


pelas riquezas e pelos prazeres, enfim, se tornado estas
paixões que levam ao luxo, já não produziu, seja junto
aos magistrados, seja junto ao soberano ou ao povo,
mudanças na constituição do Estado que o corrompe­
ram? Ou este interesse pessoal, o hábito, os prejuízos
impediram de fazer mudanças que as circunstâncias ti­
nham tornado necessárias? Enfim, na constituição, na
administração, não existem defeitos, imperfeições que,
muito independentemente do luxo levaram à corrupção
dos governos e à decadência dos impérios?” ,76

Percebe-se através desse texto (e é interessante acompanhar os


exemplos históricos que St.-Lambert fornece) qual a mudança, a guina­
da que ele está operando: em vez de considerar o luxo como um motor
fundamental, seja para o bem, seja para o mal, como se tinha feito até
então, coloca a questão nos seguintes termos: não haveria, por trás
desse motor aparente, um outro primordial, este sim, responsável pelos
bens e pelos males dos homens, isso que denominamos o interesse pes-
soaP. E essa produção do supérfluo (tão elogiada ou denegrida) não é
um efeito concomitante? Operação dupla: desvincula-se o luxo como
causa e simultaneamente o enraíza em algo mais originário da natureza
humana. Começa a se explicitar de forma clara algo que, na verdade, já
está presente em Mandeville: que existe um núcleo originário, algo que
habita as entranhas dos homens e que, este sim, deve ser considerado.
Tomemos um outro texto de St.-Lambert:

45
“O luxo tem como causa primeira este descontentamento
com nosso estado; este desejo de ser melhor, que existe
e deve existir em todos os homens. Nestes, ele é a causa
de suas paixões, de suas virtudes e de seus vícios. Este
desejo deve necessariamente fazê-los amar e procurar
as riquezas; portanto, o desejo de enriquecer-se deve
contar entre os motivos de todo governo que não é fun­
dado na igualdade e na comunidade dos bens; ora, o
objeto principal deste desejo deve ser o luxo; portanto,
existe luxo em todos os Estados, em todas as
sociedades: o selvagem tem sua rede, que ele compra
por peles de animais; o Europeu tem seu canapé, seu
leito; nossas mulheres usam azul e contas de vidro" .77

Esse texto, precioso, e ao qual teremos de voltar, mostra clara­


mente que existe um desejo natural de produzir e gozar dos bens,
das comodidades, o que excita a produção das artes e indústrias. É
esse desejo que conduz os homens a instalarem-se no luxo e, num
governo onde a propriedade está instalada, esses desenvolvimentos
acontecerão inevitavelmente. Como a sociedade igualitária é uma
utopia e algo contra essas inclinações naturais, elas até podem
cristalizar-se historicamente, mas estão condenadas ao fracasso,
porque não seguem o curso natural. St.-Lambert leu Hume, que é
citado7“ e soube aproveitar as lições do filósofo. Os homens podem
produzir um excesso e querem usufruir dele. Nada mais natural. O
importante, nos avisa, é, de agora em diante, não confundir mais as
coisas. Sc há uma raiz dos males e dos benefícios, esta se encontra
na noção chave de interesse próprio e, para bem administrá-lo —
sendo fiel discípulo de Shaftesbury e seu tradutor, Diderot79 — basta
subordiná-lo ao “espírito de comunidade que torna o luxo benéfico
e indefinido temporalmente”. Deve-se também ligá-lo às outras
paixões, formando assim um todo, uma cadeia coerente, coesa e
funcional. Como diz Hubert:

“Saint-Lambert vangloria-se de ter demonstrado que o


luxo contribui para a grandeza e a força dos estados, e
que é preciso encorajá-lo, esclarecê-lo, mas também

46
dirigi-lo. O luxo desenfreado leva a sobrecarregar os
campos de impostos, e despovoá-los, a exagerar a
desigualdade das riquezas. O luxo moderado enriquece
o estado, desenvolve-o e sustenta-o. Este não é ameaça­
do enquanto as paixões que conduzem ao luxo per­
manecem subordinadas ao espírito de comunidade” .8n

Assim, são os estados mal administrados que conduzem esse


efeito concomitante do social — o luxo — aos descaminhos, assim
como os bens administrados farão com que ele só produza efeitos
benéficos. Nos primeiros ele se torna excessivo todas as vezes que os
particulares sacrificam, absolutamente, ao seu fasto e às suas comodi­
dades e fantasias, os seus deveres para com os interesses da comu­
nidade. Mas é preciso ter consciência de que, nestes casos, os particu­
lares assim conduzem porque há um grave defeito na constituição do
Estado. Agora, o luxo está inocentado:

“Visto que o desejo de enriquecer e ode desfrutar de suas


riquezas estão na natureza humana desde que ela está
em sociedade; visto que estes desejos sustentam, enri­
quecem, vivificam todas as grandes sociedades; visto
que o luxo é um bem, e que por si mesmo ele não faz
nenhum mal, não se deve portanto, nem como filósofo
nem como soberano, atacar o luxo em si mesmo”

O texto de St.-Lambert enfeixa numa unidade admirável um con­


junto de teses que estavam mais ou menos esparsas entre os autores
que analisamos até agora. Praticamente recupera todas e essa síntese
pode ser esquematizada nos seguintes pontos principais:

1- Ele opera um deslocamento da questão mostrando que o luxo


enquanto tal é um efeito concomitante de causas mais profundas e
que, dependendo da ação dessas causas, pode produzir efeitos benéfi­
cos ou não;

47
2- O luxo, enquanto tal, é inerente ao estado de sociedade e,
enquanto esta existir, ele a acompanhará, a não ser nos casos de
exceção, não naturais;

3- Quando produz efeitos nocivos, não é por si mesmo, mas em


conseqüência da má administração do Estado, que não está sabendo
guiar, canalizar bem o interesse próprio;*2

4- Mostra que o luxo é o resultado de certos desejos oriundos de


uma particular disposição da natureza humana, a qual ele vem exata­
mente preencher.*'

13. Partimos de uma sugestão de R. Hubert84que dizia que o desen


volvimento da questão do luxo era uma das mais características para se
compreender a transformação das idéias no século XVIII. Chegou o
momento de verificarmos se ela é correta ou não. E, ao que tudo indi­
ca, a aposta valeu a pena. O exame da “querela do luxo” fornece-nos
um conjunto precioso de indicações que, num primeiro momento, con­
figuram-se ou, pelo menos, apontam para um conjunto de interrogações
cujas respostas não brotam ao simplesmente serem formuladas.
Em primeiro lugar, é interessante notar que essa questão perdurou
por mais de um século. A lentidão é impressionante. Na verdade ela não
terminou por volta do início do último terço do século XVIII. Ela conti­
nuará por longo tempo.” E, vez por outra, ela reaparece periodicamente.
Quando falamos em lentidão não estamos nos referindo ao tempo que
foi necessário para resolver a questão. Esse é um dos problemas que
provavelmente subsistirá enquanto o mesmo fizer a humanidade e
depende, na escolha que o sujeito fez, de um conjunto de opções prévias
radicais no plano filosófico. Assim, quando falamos em lentidão, esta­
mos nos referindo a uma outra coisa. O que foi extremamente lento foi
o tempo necessário para que os apologistas do luxo pudessem formar
um corpo coerente de argumentos que tornasse sustentáveis suas teses.
Poder-se-ia utilizar o operador “resistência” para tentar explicar o
fenômeno. De fato, a “Resistência das Mentalidades” ao novo, essa
viscosidade que nos liga fortemente ao já conhecido, essa inércia na­
tural a que estamos submetidos tem muito a ver com tudo isso. Mas,
no caso, pensando bem, isso só serve realmente para recuarmos o
problema, não para resolvê-lo. O que estamos querendo saber é exata­
mente porque a explicitação dos argumentos que sustentam os defen­
sores do luxo levou tanto tempo para se articular de forma coerente, e
já estamos dando por suposta essa resistência. Estamos mais interessa­
dos em suas razões. Foi de uma forma trabalhosa que se conseguiu
perceber algo que para nós é uma verdade elementar: a produção e
consumo do supérfluo é um fenômeno econômico que tem implicações
morais e não vice-versa. Por outro lado, e aqui talvez esteja realmente
um dos focos centrais do problema, o desenrolar da análise da questão
vai progressivamente apontando para o fato de que existe algo, algu­
ma coisa, uma espécie de atributo da natureza na qual esse fenômeno
está incrustado. Isso foi a duras penas aceito.86
Já vimos que foi St.-Lambert, ao que tudo indica, o primeiro a
mostrar, de forma coerente e sistemática, que esse gosto pelo supérfluo
é uma inclinação natural do ser humano, que determina seus desejos e
paixões. Mandeville, no entanto, ainda sob uma ótica um pouco
racionalista, já afirma que o progresso dos conhecimentos humanos
leva inevitavelmente à explicitação progressiva e indefinida de nossas
necessidades:

“A medida que (os homens) aumentam seus conhecimen­


tos, os desejos também aumentam, multiplicando suas
necessidades e seus apetites...” .“7

E um pouco mais à frente:

"... enquanto nos aplicamos em cobrir a infinita va­


riedade de nossas necessidades que sempre se multipli­
cam na medida em que se amplia nosso conhecimento e
aumentam nossos desejos”

Assim, a natureza humana tem um impulso natural, uma incli­


nação pelo luxo, esse gosto pelo supérfluo que parece ser inerente à
sua essência. Daí porque não ser correto falar em homens não luxuo­

49
sos: isso só acontece em condições excepcionais ou anormais. O
exemplo de Ferguson, já citado89, onde evoca “os fantásticos adornos
de plumas dos selvagens” é dos mais significativos. Mas, mais impor­
tante, é a conclusão que Ferguson extrai:

“Devemos buscar os caracteres dos homens nas quali­


dades da mente, não na espécie de alimentação ou na
forma de se vestir’’

Trata-se, portanto, de um móvel, de uma mola que é inerente ao


homem, que está agindo continuamente, em progressão geométrica tem­
poral, na medida em que seus conhecimentos vão avançando. Estes pos­
sibilitam a antevisão, pela imaginação, de bens dos quais o sujeito pode
gozar os prazeres, ter cada vez mais novos prazeres. O luxo é o efeito
dessa inclinação natural que os homem têm de antecipar, pela imagi­
nação, através daquilo que a razão lhe trouxe de novo no seu plano, bens
que até agora haviam lhe escapado. Ela é uma conseqüência da nossa
capacidade de fantasiar. Voltaire percebeu isso com muita clareza:

"... é a fantasia dos homens que dá valor a essas coisas


frívolas; é esta fantasia que faz viver cem operários que
emprego; é ela que me dá uma bela casa, uma carrua­
gem cômoda, cavalos; é ela que excita a indústria, sus­
tenta o gosto, a circulação e a abundância”

14. Chegamos, assim, a alguns pontos centrais que, no entanto,


são ainda extremamente obscuros. A análise da “querela do luxo”
aponta para determinados atributos do desejo, da imaginação, da fan­
tasia que se enlaçam para formar a idéia de um processo que não tem
fim, indefinido, ilimitado, que nunca estanca e sempre avança. E difi­
cilmente nos textos considerados clássicos sobre o assunto encon­
traremos alguma luz. Tomemos, por exemplo, o tema da imaginação:
de Locke a Holbach, ele é sempre definido como o poder do espírito
de reproduzir sensivelmente na mente objetos ausentes. O que desco­
brimos, no entanto, a respeito da mesma faculdade, quando Holbach

50
faz seu requisitório contra o luxo? Que é insaciável, ilimitada, inces­
santemente inquieta:

“Todos os homens têm o desejo de imitar, de igualar e


ultrapassar àqueles a quem supõem ter grandeza, poder,
bem-estar. O pobre imagina sempre que aquele que ele vê
soberbamente vestido, levado por uma carruagem ele­
gante, rodeado de um grande número de criados, deve ser
um homem feliz; ele despreza a si mesmo e se estima
muito infeliz por ser obrigado a trabalhar para viver; ele
não duvida de que aqueles que, sem fazer nada, podem
satisfazer amplamente todas as necessidades da vida
sejam seres a cuja felicidade nada deve faltar. Desde
então ele fica descontente com sua sorte, ele deseja ser
rico, persuadido de que basta sê-lo para desfrutar de uma
felicidade completa. Os desejos, primeiramente limita­
dos, são perpetuamente atiçados pela imaginação, pela
emulação, pela comparação que ele faz entre seu estado
e aquele dos outros; eles terminam por não conhecer
mais limites; e pouco a pouco vereis que o homem, que no
começo só aspirava a uma fortuna módica, ainda não
está satisfeito no seio das riquezas as mais enormes,
porque sempre vê alguém que crê mais opulento e mais
feliz do que ele".92

É exatamente essa ilimitação, essa insaciabilidade, essa incessante


inquietude, que faz com que se busque cada vez mais o gozo de novos
prazeres, que devemos interrogar mais de perto. Como na verdade se ca­
racterizaram e se articularam esses elementos no transcorrer do século
XVin? E claro que a caracterização mais comum e correta da Ilustração
é a de que foi a época da emancipação da razão de suas inúmeras tutelas.
Época, por excelência, do exercício crítico da razão contra os pré-juízos
que habitam a mente dos homens em todos os campos: religião, política,
falsa moral ascética etc. etc. Sem dúvida o Iluminismo foi o tempo dessa
prática. Mas, como toda época, teve duas faces. Luzes, mas também som­
bras. O que deve nos chamar a atenção aqui é muito mais esse outro lado
da época. Tentar desenterrar e desentranhar esse outro lado do século

51
XVm, até agora pouco explicitado, onde o imaginário, a fantasia e o
desejo governam subterraneamente o discurso dos homens. Há um aves­
so do século XVIII do qual Sade, sem dúvida, é uma das expressões.
Essa inquietude do desejo, estimulada pelo imaginário, tem segu­
ramente como tela de fundo, ou melhor, como alicerce, uma certa con­
cepção do homem, da natureza humana, uma antropologia, digamos,
que tem como um de seus eixos centrais a idéia de uma certa inade­
quação entre dois campos. Supõe uma certa necessidade indetermina­
da e o campo da satisfação. O ponto é que, ao que parece, não se trata
nunca da natureza determinada de uma necessidade, mas muito mais
de uma indeterminação, que leva sempre à insatisfação. Insatisfação
que se caracteriza, por seu lado, exatamente na medida em que se ma­
nifesta como necessidade do novo.
Assim, devemos distinguir duas séries para evitar qualquer con­
fusão. Há, em primeiro lugar, a série necessidade — desejo — satisfação.
Série cíclica, repetitiva, monótona, que se espelha no campo vital. Mas
há, em segundo lugar, uma outra série, que é a que está chamando a
atenção, que evidentemente não se coloca no ciclo biológico das
chamadas necessidades vitais. É exatamente esta última que parece ser
uma conquista do homem, não negando a primeira, mas instaurando uma
outra, superposta e suplementar; fazendo com que, nesse nível agora,
essa adequação quase perfeita que existe nos animais entre necessidade
e satisfação seja rompida e se instaure um novo tipo de ciclo, na forma
de uma espiral indefinida de desejos e insatisfações fugazes, que provo­
cam novos desejos e assim indefinidamente. Chegamos assim a uma fór­
mula mais complexa: ... desejo — necessidade indetenninada — elabo­
ração imaginária — concretização do objeto — satisfação fugaz — dese­
jo... É esse ciclo aberto, por assim dizer, que chama a atenção. E é aqui
que parece estar a ruptura do especificamente humano. Retomemos,
então, a questão: a análise do problema do luxo nos aponta para esses
indicadores. Sendo assim, que concepção da natureza humana está sendo
arquitetada aqui? Quais são as estruturas fundamentais do desejo, da
imaginação, da fantasia etc., para que eles se caracterizem dessa forma?

15. Uma primeira tentativa de resposta a essas questões, ou, pelo


menos um esboço, estaria nas seguintes considerações. Já que estamos
tratando de ciclos naturais (ciclos biológicos, característicos dos animais,
mesmo os que vivem em associação, como as abelhas) e ciclos não-na-

52
turais, característicos dos homens (já que não se pode conceber a vida
humana sem eles, a não ser em condições patológicas, como vimos), a
grande oposição estaria portanto (e não é nisso que se insiste tanto nessa
discussão sobre o luxo?) entre o natural e o artificial. Mas, poder-se-ia
questionar: não se trata, em última análise, de uma falsa oposição, no
caso em questão? Foi o partido que tomou Ferguson no seu Ensaio sobre
a História da Sociedade Civil. A arte, segundo Ferguson (não se esque­
cendo de tomar esse termo na acepção que ainda tem no século XVIII de
artes mecânicas, tecnologia, além de arte, propriamente dita, mais co­
nhecida como belas-artes), estaria incrustada na natureza humana, faz
parte integrante dela, de modo que não há o menor motivo para espanto
ao se detectar essa diferença básica entre homens e animais:

“Falamos de arte corno algo distinto da natureza, mas a


arte é em si mesma natural ao homem. Ele é, em certa
medida, o artífice de seu próprio ambiente como também
de sua fortuna e está destinado, desde sua época mais
jovem, a inventar e idear. O homem aplica o mesmo
talento a uma variedade de propósitos e atua quase da
mesma forma em situações muito diferentes. O homem
sempre estará progredindo nessa matéria e leva sua
intenção a qualquer lugar que vá, seja através das ruas
de uma cidade populosa ou nos meandros de um bosque.
Enquanto parece igualmente preparado para cada situa­
ção é, pela mesma razão, incapaz de permanecer em
uma. E, ao mesmo tempo, obstinado e volúvel, queixa-se
das inovações e nunca se sacia com a novidade; está
eternamente ocupado em reformar e continuamente
atado aos seus erros. Se vive numa cova, trocará por uma
casa e se já a edificou, trocará por uma maior... Seu sím­
bolo é a corrente de um riacho não um lago estancado”

A idéia de Ferguson é evidentemente engenhosa. Insere, encapsula,


o artifício nas malhas da estrutura da natureza humana e, assim fazendo,
faz com que o problema se dissolva. É inútil fazer a apologia ou a con­
denação do luxo: trata-se de um dado da natureza humana sobre o qual
qualquer discurso, laudatório ou não, é vão. Sem dúvida, operando desse

53
modo, Ferguson ajunta mais água ao moinho dos defensores do luxo,
retirando a questão do plano teológico-moral e laicizando-a. Trans­
forma-a numa questão de fato. Mas, com relação à questão colocada,
isso nos faz avançar muito pouco; quer dizer, afirmar que a capacidade
técnica é algo inerente à natureza humana não parece levar à resposta
que se procura. Basta que pensemos nos clássicos exemplos que vêm de
longe mas que abundam no século XVIII, sobretudo na tradição liberti­
na,94 dos animais que vivem em associação (abelhas, castores etc.). Eles,
sem dúvida, possuem um nível de arte (em muitos casos bastante inve­
jável sob um determinado ponto de vista) que também está inserido, que
faz parte de sua própria natureza. Mas, nem por isso, nota-se neles essa
inquietude (esse conceito é capital, como veremos mais adiante), essa
insaciabilidade, essa insatisfação permanente do desejo e do imaginário,
característica do ser humano, como apontamos acima.
Na verdade, se damos a devida atenção ao texto de Ferguson,
percebe-se que seu problema não era bem o que estamos tratando; que,
para ele, este aparece como secundário. Ele não está procurando
responder: por que o desejo e o imaginário se configuram de tal forma?
Mas sim esta outra: os homens têm meios para satisfazer seus desejos?
E sua resposta é: faz parte, como componente da natureza humana, a
posse desses meios para suprir suas insatisfações. A mobilidade dos
seus desejos encontra sempre meios para a satisfação dos mesmos. O
que não o preocupa é a indagação do porquê o ser humano se carac­
teriza dessa forma. Sem dúvida, fornece um indicador importante e
inegável ao fundir a capacidade técnica na natureza humana. Mas isso
é o requisito para se trabalhar a questão, não a solução.
Na verdade, ao que tudo indica, para se tentar não responder mas
esclarecer um pouco melhor essa questão — e não pretendemos mais
que isso — será necessário operarmos um recuo no tempo e empreen­
der a mobilização de um material muito diversificado, o que não deixa
de ser assustador. E que, essa é a nossa impressão, para uma com­
preensão mais clara desse problema, teremos que abordar não uma
(como se é levado a pensar), mas duas enormes mutações conceituais
que ocorreram (se se quer dar vazão à irresistível mania de datação): a
primeira, basicamente a partir da segunda metade do século XVII; e a
segunda, no interior do próprio século XVIII. Nunca, talvez, mudanças
de tal envergadura ocorreram em tão pouco espaço de tempo, arrui­
nando uma visão milenar das coisas e reestruturando todo o campo
perceptivo e mental dos homens. A rigor, sabemos muito pouco a

54
respeito disso tudo (quando se trata dos “porquês”), e o pouco que
sabemos está permeado por dúvidas. As linhas gerais do processo co­
nhecemos. Trata-se dessa lenta mas inexorável laicização do pensa­
mento acidentai — sem implicar um retomo aos antigos — que afetou,
no âmago, nossa compreensão do mundo e dos homens. O que é
extremamente embaraçoso, após tantos e tantos trabalhos, é o estado
de ignorância em que nos encontramos frente a questões, às vezes, ele­
mentares. Não pretendemos, é claro, realizar nenhuma abordagem ino­
vadora, mas apenas, com a maior economia possível, enquadrar os
problemas em função de nossas preocupações.

55
NOTAS

1 R. Hubert, Les Sciences Socialedans i Encyclopédie, Genève, Slaktine Reprints,


1970 (reimpressão da edição de Paris, 1923), p. 305-6.
2 Voltaire, Oeuvres Comptâtes, Paris, Garnier Frères, 1883-1885, 52 vols.; vol. X, p.
83-87 e 90-93, respectivamente. Todas as citações de Voltaire, salvo menção em con­
trário, reenviam a essa edição.
3 Ibid., vol. VIII, p. 152.
4 M. Mersenne, Questions Inouyes, Paris, Fayard, 1985, questão XII, p. 39.
5 ibid., p. 39-40.
6 Versos 30 e scg.
7 Não 6 nosso propósito aqui, c claro, acompanhar todas as peripécias dessa intrinca­
da e complicada história. Para isso, o leitor pode consultar o livro de A. Morize,
L’Apologie du Luxe au XVIII' Siècle, Paris, 1909, que cobre bem o terreno francês.
8 Fénelon, Les Aventures de Téicmaque, Paris, Éditions R. Simon, s.d., livro VII, p.
118. Um poueo mais adiante diz: “Por força de querer parecer grande, haveis pen­
sado em arruinar vossa verdadeira grandeza. Apressai-vos em reparar esses erros,
suspendei todas as vossas grandes obras, renunciai a esses faustos que arruinariam
vossa nova cidade...” (X, p. 160). Comparar com a carta que Fénelon escreveu a
Luís XIV, onde afirma; “Elevaram-vos até o céu por 1er apagado, diziam, a
grandeza de todos os vossos predecessores, quer dizer, por ter empobrecido a
França inteira a fim de introduzir na corte um luxo monstruoso e incurável”
(“Lettre à Louis XIV"), in De l’Existence et des Attributs de Dieu et autres textes,
Paris, 1861, p. 560.
9 Ibid.. XI, p. 190.
10 Ibid., XVII, p. 298: “Recordai-vos, oh Telemaco, que existem duas coisas perni­
ciosas no governo dos povos, às quais quase nunca se traz algum remédio: a primeira
é uma autoridade injusta e muito violenta nos reis; a segunda é o luxo, que corrompe
os costumes”.
11 Ibid., XVII, p. 299.
12 Ibid., V, p, 69.
56
13 Id., “Lettre à M. Dacier sur l’Occupation de l’Académie”, in Dialogues sur l’Élo­
quence, Paris, Gamier, s.d., § X, p. 165.
14 Id., “Lettre sur les Anciens et les Modems" (à La Motte) in De l’Existence et des
Attributs de Dieu, ed. cit., p. 549.
15 Id., “Lettre à M. Dacier...”, in ed. cit. (nota 13), § X, p. J68.
16 Id., “Plan de Gouvernement”, § 7. Citado por Kaye, F. B. em sua “Introdução” à
Fábula das Abelhas de Mandeville, México, FCE, 1982, p. LVI.
17 Id., “De l’Éducation des Filles”, in Dialogues sur l'Éloquence, ed. cit., p. 259-60.
18 Id., Les Aventures de Télémaque, ed. cit., VIII, p. 181-82. O grifo é nosso.
19 Id., “Dialogue des Morts”, in Dialogues sur l'Éloquence, ed. cit., p. 407.
20 La Bruyère, Les Caractères, Paris, Hachette, 1950, VII, § 21, p. 142.
21 Ibid.
22 Ibid., VII, § 22.
23 Ibid.
24 Ibid.
25 Ibid. Daí esse “extravio de certos particulares que, ricos graças aos negócios de seus
pais, dos quais acabam de receber a herança, moldam-se pelos principes para seu
guarda-roupas e para sua equipagem, excitam, por uma despesa excessiva e por um
fausto ridícuio, a verve e a zombaria de toda uma cidade que acreditam deslumbrar,
e assim arruínam-se por se fazer caçoar!” (VII, § 11).
26 Ibid., I, § 15, p. 37.
27 Ibid., “Discours sur Théophraste”, p. 24.
28 Ibid.
29 Ibid., p. 29.
30 Ibid.
31 Como não tivemos acesso direto aos textos de Bayle, todas as referências são indi­
retas. Pedimos, desde já, desculpas ao leitor. Nossas principais fontes foram a intro­
dução de Kaye à Fábula das Abelhas (cf. nota 15) e o texto de A. Morize, citado na
nota 7. O texto de Bayle, acima citado, está em Réponses aux Questions d’un
Provincial, cap. 7, obs. III, apud Morize, p. 46-7.
32 Bayle, Réflexions sur les Divers Génies du Peuple Romain dans les Diverses Temps
de la Republique, Oeuvres I, p. 157, apud Morize, p. 53.
33 Bayle, Continuations des Pensées Diverses, § 124, apud Kaye, p. 282.
34 Bayle, op. cit., p. 365-66, apud Morize, p. 67.
35 Ibid.
36 Kaye, no texto citado, nota 15, faz uma história detalhada do texto, assim como de
seus antecedentes e sua influência. É interessante lembrar que, se Mandeville foi
objeto de tanta atenção, isso não nos deve fazer esquecer a quase profética carta 106
das Lettres Persanes de Montesquieu, que antecipa, com delicadeza e sutileza,
grande parte dos argumentos que estão por vir nessa longa e tumultuada história. Mas
o texto é de 1721 e, no que respeita Mandeville, só pode tê-lo influenciado nas
edições posteriores, sobretudo a de 1729, e o essencial de seus argumentos já estava
estabelecido nessa edição de 1714.
37 Tomo essa informação de L. Dumont, no seu livro Homo Aequalis, Paris, Gallimard,
1977, p. 85, ao qual expresso desde já minha dívida com relação à interpretação de
Mandeville.
38 Mandeville, op. cit., p. 21.

57
39 Ibid., p. 129; Quanto à afirmação final do texto (“como de sua espécie”), as exten­
sas análises de Mandeville mostram, inequivocadamente, que devem ser reconduzi*
das ao egoísmo e ao interesse próprio. Cf. Kaye, p. XXVI e seg.
40 Ibid.. p. 84.
41 Ibid., p. 94.
42 Ibid.
43 L. Dumont, op. cit., p. 89. Basta agora que, numa operação relativamente simples,
insira-se o corpo dentro dessa esfera dos bens úteis para se compreender que esse deve
ter sido um dos fatores da explosão da sexualidade na modernidade, apontada por
Foucault, em contraste com o rigor e o cuidado com que era tratada entre os antigos.
Neste ponto também Sadc nada mais fez que extrair as últimas conseqüências dessa
posição. Quem não se lembra de sua cclebre frase, na Histoire de Juliette: “Oferecei-
me a parte de vosso corpo que pode me satisfazer por um momento e desfrutai, se isso
vas agrada, daquela do meu que pode ser-vos agradável”; Paris, Tchou, VIII, 71. É
preciso lembrar aqui a célebre frase de A. Smith: “Dê-me aquilo que eu quero e você
terá isto aqui que você quer — esse é o significado de qualquer oferta desse tipo; e é
dessa forma que obtemos uns dos outros a grande maioria dos serviços de que neces­
sitamos. Não é da benevolência do açougueiro, do cervejeiro ou do padeiro que espe­
ramos nosso jantar, mas da consideração que eles têm pelo seu interesse próprio.
Dirigimo-nos não à sua humanidade mas ao seu egoísmo..."; Smith, A. Recherches sur
la Nature et les Causes de la Richesse des Nations, Paris, Gallimard, 1976, p. 48.
44 Berkeley, Alcyphron, Madrid, Ed. Paulinas, 1978, p. 107. A critica de Berkeley está
nas p. 113 e scg.
45 Por outro lado, já que felicidade e bondade não coincidem, começa-se a vislumbrar,
delinear e se desenhar vagamente os personagens de Sade que, no fundo, também
podem ser lidos como encarnações dessa tese. Justine, a ultravirtuosa Justine, no
sentido ascético do termo, e cuja existência é um mar de infelicidades. Justine, boa
c infeliz, Do outro lado, Juliette, essa verdadeira caixa dc Pandora ambulante, esse
poço de todos os vícios imagináveis e, no entanto, feliz. Feliz, do começo ao fim.
Sob esse Angulo, muito antes de ser uma “exceção monstruosa”, Sade é o acaba­
mento, no plano moral, dessa tendência (assim como A, Smith o é no plano econômi­
co). Esta leitura, se tem alguma validade, com relação à Sade, embora chegue a con­
clusões semelhantes, parte dc premissas bem diferentes das de Horkheimer e Adomo
na Dialética do Uuminismo. B. Aires, SUR, 1971, p. 102 £ seg.
46 Mandeville, op. cit., in Observações; obs. P, no início, p. 108.
47 Voltaire, op. cit., sec. I, vol. XX, p, 45.
48 Mandeville, op. cit., obs. L, p. 67, no início.
49 Ibid.
50 Voltaire, Observações sobre 0 Comércio, o Luxo, a Moeda e os Impostos, XXII, p.
363-4.
51 Id., Le Siècle de Louis XIV. O exemplo que Voltaire dá é o da indústria de espelhos:
vol. XIV, p. 530-1. Comparar com o Essai sur les Moeurs, II, p. 54 e segs.
52 Id., Dicionário Filosófico, in Oeuvres XX, sec. II, p. 47.
53 Ibid., vol. XX, p. 47. O argumento se baseia, é claro, em Aristóteles, e reaparece fre­
qüentemente na Antigüidade, sobretudo em Sêneca. Ele já está delineado nas
Obseiyations..., cit. na nota 50. A mesma idéia aparece no poema “Sur 1‘Usage de
la Vie”, X, 94-6:

58
“Saibam, meus amigos
Que falando de abundância
Eu cantei os prazeres
Aqueles puros e permitidos
E jamais a intemperança
Eu não quero ensinar-lhes
A arte pouco conhecida de ser feliz.
Esse estado que tudo deve abarcar
Está em moderar seus desejos”.
54 Hazard, P., O Pensamento Europeu no Século XVII!, Lisboa, Presença, s.d., vol. II,
p. 212-13.
55 Hume, “Sobre o Refinamento das Artes” in Pelty Hume, Quesnay, São Paulo, Abril
Cultural, 1983, p. 193.
56 Ibid.,p. 193.
57 A idéia repete-se no fim do ensaio: “Nenhuma satisfação, ainda que sensual pode ser,
por si só, considerada viciosa. Uma satisfação só é viciosa quando monopoliza toda a
despesa de um homem...'' (p. 198). O par vício/virtude está em Hume mais enraizado no
econômico do que no mora!, propriamente diío. A citação do texto está na página 194.
58 Hume, “Sobre o Comércio”, ed. cit., p. 186-7.
59 Ibid., p. 188.
60 lbid., p. 191.
61 Ibid., p. 188.
62 Hume, “Sobre o Refinamento...”, ed. cit., p. 194.
63 Ibid., p. 195.
64 Id., “Sobre o Comércio”, ed. cit., p. 188-9.
65 lbid., p. 191.
66 Id., “Sobre o Refinamento...”, ed. cit., p. 197.
67 Ibid.
68 O que não fez com que escapasse de críticas pesadas, bem mais tarde, por parte de
D. de Tracy no seu Commentaire sur l'Esprit des Lois de Montesquieu (Genève,
Slaktine Reprints, 1970), publicado originalmente em 1811 nos Estados Unidos mas
que, segundo o testemunho do autor, já circulava desde 1807. A critica de Tracy
encontra-se nas páginas 79 e segs.
69 Montesquieu, “De 1’Esprit des Lois", in Oeuvres Completes, Paris, Plêiade, vol. II,
Livro VII, cap. IV, p. 436-7. O que servirá para Holbach elaborar duras críticas ao
luxo (cf. nota 86).
70 Ibid., L. VII, cap. I, p. 332.
71 Voltaire já tinha lido o Ensaio sobre a História da Sociedade Civil de Ferguson? A
menção do selvagem leva a suspeitar. Com efeito, lemos no texto de Ferguson que
é inúti! dizer que o cidadão civilizado é débil por alguma parte de sua equipagem, a
vestimenta, por exemplo. Isso revela-se também no: “índio por seus fantásticos
adornos de plumas, suas conchas, suas peles de várias cores" e pelo tempo que passa
arrumando-se (Ferguson, obra citada, Madrid, IEP, 1974, p. 311).
72 Voltaire, Dictionnaire Philosophique, ed. cit., v. XX, p. 48, nota 1. O grifo é nosso.
73 O verbete está no volume IX da Enciclopédie. Durante muito tempo esse texto foi
atribuído a Diderot. Recentemente um autor (Gusdorf, Les Príncipes de la Pensée

59
au S iècle d e s L um ières, P aris, P ayot, 1976) ainda lhe atribui a p aternidade. O texto,
na v erd ad e, é de auto ria de S t.-L am bert. Sobre isso ver R. H ubert, op. cit., p. 305
e seg., e o tex to de J. P ro u st, D id erot e t VEnciclopédie, P aris, A. C oiin, 1967, p.
538, n. 122. O texto co n sta, ainda, d a e dição das obras de D iderot de B rière (1821-
3) e da de A ssezat-T o u m eau x (1875-77), no vol. XV. Por razões de com odidade
pesso al, citarem o s o te x to d a e d iç ã o d e B rière. vol. X V II, p. 235-76. N esse m eio
tem po, H elv étiu s trato u do p roblem a do luxo (no cap. III do liv ro 1) no seu livro
D e VE sp rit (Paris, M arabout, 1973, p. 30 e seg.). V oltarem os a este ponto quando
tratarm os d esse autor.
74 S aint-L am bert, Verbete, “L u x e”, ed. cit., p. 235.
75 Ib id ., p. 241, in fin e .
76 Ibid., p. 242. O prim eiro g rifo é nosso.
77 Ib id ., p. 235.
78 Ibid., p. 240.
79 Shaftesbury, “A n Inquiry C oncening Virtuc or M erit”, in British M oralista, Oxford,
1969, vol. I, p. 175 e seg.; D iderot, “Essai sur le M érit et la Vertu”, in O euvres de
D id ero t, Paris, Brière, 1821, vol. I, p. 43 e seg.
80 R. H ubert, op. cit., p. 307.
81 S l.-L am bert, op. cit., p. 273.
X2 Ibid.'. “ O ra, cm todas as partes o nde se v ê o despotism o, por que procurar outras
c ausas de corrupção?” (p. 242).
83 D aqui por diante, do ponto de vista q ue nos interessa, pouco se adiantará n essa dis­
cussão. Beccaria, no Tratado do s D eütos e das P enas (R io de Janeiro, Ed. Ouro,
s.d.), havia distinguido (o texto é de 1764) entre “ luxo de ostentação” e “luxo de
c om odidade” (distinção que fez m oda), defendendo o segundo e condenando o
prim eiro. H elvétius que, de um a concepção que pendia para o negativo no seu De
I'Esprit (cf. n o ta 7 3 ), retom a a distinção de B eccaria (o qual se dizia discípulo de
H elvétius) e produz, na sua segunda g rande obra, D e 1'Homme, um a longa d iscussão
sobre o tema. Nesse texto, centraliza m uito sua discussão na relação entre luxo e
d espotism o, m ostrando que 6 neste últim o que está a origem dos males e que, nele,
o luxo acaba sendo um paliativo, na m edida em que, nessa sociedade injusta e mal
adm inistrada, oferece serviços aos m enos favorecidos. “É a m agnificência dos
G randes que d iariam ente transfere o dinheiro e a vida para a classe inferior dos
cidadãos” (D e 1'H om m e, Paris, F ayard, 1989, vol. II, p. 583). D e resto, com uma
exceção q ue apontarem os logo m ais, não nos parece que chegue a nada original
sobre o assunto e quando afirm a q ue “O luxo, por conseguinte, n ã o é em si m esm o
um m al” (ed. cit., p. 588), só faz repetir o j á sacram entado. U m a frase, no entanto,
faz com que se p erceba com o Helvétius captou um dos aspectos d o problem a:

“ O am o r p elo s su pérfluos foi, em todas as épocas, o m otor d o hom em ”


(ed. cit., p. 587).

O único texto que deve se r levado em consideração, parece-nos, é o de D iderot (“Salon


de 1767” , in O euvres C o m p lètes, ed. cit., IX , p. 137-53). O texto é difícil, cheio de
nuan ces e, sobretudo, sua co m preensão é em baraçosa porque, em bora seu objeto explí-

60
cito seja a relação das b elas-artes com o luxo, Diderot trabalha em vários níveis. Uma
coisa é certa: D iderot m o stra m uito claram ente que o bom luxo (o luxo de c om odidade)
é perfeitamente p en sáv el fo ra dos q uadros da prem issa do consum o cada v e z m aior e
mais rápido. A qui D iderot e H um e estão longe um d o outro. R etom ando um título
famoso, para D id ero t o d esenvolvim ento do luxo e d o capitalism o não são sinônim os. É
perfeitamente possível p en sá-lo n u m a o rd em estritam ente fisiocrática que, aliás, é a p re ­
missa da sua análise. P ara nossos p ropósitos, a im portância do texto e stá p rincipalm ente
aí. Mas ele bem m erece um a análise detalhada.
84 Ver o tex to referido na nota 1.
85 Basta lem brar a crítica d e D. d e Tracy, m encionada anteriorm ente.
86 D c q ualquer m aneira é sintom ático q ue d epois d e aproxim adam ente 1770 (colocamos
a data apenas p ara fixar as idéias), m esm o os críticos d o luxo já aceitam a idéia de que
o luxo é u m a inclinação natural do ser hum ano. H olbach, p or exem plo, um crítico fer­
renho do luxo, q ue propunha leis rigorosas contra sua expansão, afirm a n a Ethocracie
(G. Olms, 1973, cap. VIII, p. 134), num determ inado m om ento, o seguinte:

“L u tar con tra o lu x o introduzido em um povo é com bater um a paixão


ineren te à n atu reza h u m a n a " (grifo nosso).

A mesma idéia já está p resente no Systèm e S o c ia l (G, Olms), 1969, vol. III, p. 63-65).
Mesmo Tracy (op. cit., nota 68), esse ultra entre os ultras, acaba reconhecendo, às meias,
esse fato:

M... o luxo, isto é, o gosto das despesas supérfluas é, até um certo ponto,
o efeito de uma inclinação natural do homem para procurar incessan­
temente prazeres novos...” (ed. cit., p. 95).

O luxo, agora, para esses autores, tem o mesmo estatuto d o sexo: uma inclinação natu­
ral que deve ser reprimida.

87 Mandeville, op. cit., p. 133.


88 Ibid., p. 246.
89 C f. n o ta 71.
90 Ferguson, op. cit., p. 311.
91 V oltaire, L e M o n d e com m e il Va, XXI, p. 9.
92 H o lbach, Systèm e Social, G . O lm s, 1969, T. m , p. 64-5.
93 Ferguson, op. cit., p. 9-10.
94 P o r exem plo, no tex to anônim o, L ’A m e M aterielle , Rouen, s.d., p. 80. Devo à ama-
b ilidade d o Prof. R ob erto R om an o o conhecim ento d esse texto capital. Que ele
enco n tre aqui m eu s agradecim entos.

61
DESEJO
1. As mudanças operadas no universo mental dos homens na m o­
dernidade foram de tal monta que até hoje ainda tentamos entendê-las.
Até os fins da Idade Média — salvo exceções — a representação do
cosmos era hierárquica. De Platão até o século XV, aproximadamente
— a obra monumental de Duhem o m ostra1— elaborou-se e sofisti­
cou-se um a concepção do m undo que perdurou por séculos.
Concepção geocêntrica, de um universo esférico, que supunha uma
divisão entre o mundo sublunar e supralunar, ambos submetidos a
ordens diferentes, onde a noção de “lugar natural” ocupa um posto
central e, em conseqüência disso, a noção de movimento retilíneo sem­
pre aponta para um a “desordem cósmica”, uma “ruptura de equi­
líbrio”2 e deve sempre ser passageira. Cosmos ordenado, fechado, hie­
rarquizado, onde cada objeto tem seu lugar determinado.
Essa visão desmoronou-se em pouco espaço de tempo. Unifica-se
o espaço, instaura-se o heliocentrismo e — sobretudo — a física
matematiza-se com uma velocidade prodigiosa. Os sábios começam a
pensar o universo em termos atômicos. Partículas que percorrem um
espaço e um tempo determinados. Já não se pensa mais com as cate­
gorias da Escola. E, entre a Escolástica e o Mecanicismo, instala-se um
naturalismo confuso e vago no Renascimento que, apoiado num a bio-
cosmologia, estranha para nós, pensa o mundo em termos, por exem­
plo, de simpatias, antipatias, analogias, influências do supralunar sobre
o sublunar. O mecanicismo, como mostrou Lenoble3, terá que enfrentar
duramente esse adversário antes de triunfar.

65
O espaço geometriza-se pouco a pouco, o movimento emancipa-se,
o cosmos desmembra-se4 de um lado, e de outro unifica-se, porque não
há um acima e um abaixo, regulado por normas diferentes. O universo
homogeneiza-se. Perguntemo-nos, diz um autor, o que aconteceu quan­
do se passou a pensar em termos mecânicos coisas que até então eram
representadas de forma teleológica; “quando as explicações teleológicas
— explicações baseadas no conceito de utilidade e Bem — abandonam-
se definitivamente em favor da noção que as verdadeiras explicações do
homem e de seu espírito, assim como as demais coisas, devem ser em
termos de suas partes mais simples; o que ocorreu entre 1500 e 1700
para que pudesse cumprir-se essa revolução’7 As respostas não são
fáceis de serem obtidas e até hoje tenta-se encontrá-las.
M as não foi só com relação à representação do mundo físico
que as coisas m udaram radicalm ente. O universo antigo é ordenado,
fixo e hierarquizado, não apenas desse ponto de vista, mas de outros
também . Sobretudo um que nos interessa particularm ente. Se exce­
tuamos o epicurism o, a antigüidade sempre teve uma concepção
similar, com relação ao universo, do ponto de vista ético.'1 Há va­
lores objetivos aos quais os diferentes sujeitos devem se subordinar.
O Bem é um a estrutura objetiva que está incrustada na realidade, e
à qual os sujeitos devem se regular. Há uma hierarquia objetiva dos
valores, que culm ina na noção de “summum bonum ”, que se m an­
tém através dos séculos.
Isso im plicou um a certa com preensão do mundo ético que inci­
diu diretam ente sobre a concepção clássica das paixões, que é o
ponto que nos interessa nesse debate. Se há um Bem objetivo, ao
qual o sujeito deve aspirar, é a esse mesmo Bem que ele deve tender
para realizar sua perfeição ética. Esse Bem deve ser conhecido pelo
sujeito e, através desse ato inaugural, ele tenderá irresistivelm ente à
posse desse Bem. O ato subseqüente é a atração irresistível que esse
objeto deve exercer no sujeito. Conhecendo-o, ele o amará. E esse
am or ao Bem é que deverá guiar toda a dinâmica de suas paixões. O
fim de todas as suas ações deve para aí tender. Existe um a estrutura
teleológica objetiva à qual os sujeitos devem se submeter. Assim, em
Santo Tomás, a felicidade hum ana está na contemplação de Deus,
bem supremo por excelência.7E, nessa estrutura, um a certa ordem
das paixões se im põe onde o am or deve predom inar, vindo em segui­
da o desejo e, por fim, a delectação, segundo a ordem da consecução
(e não da intenção):

66
“E, por isso, segundo essa ordem, o amor precede ao
desejo e este à delectação” *

Santo Tomás, num certo sentido, nada mais faz que codificar aqui
uma idéia que vem desde a antigüidade e que perdurará ainda por
muitos séculos. Essa hierarquia das paixões supõe, portanto, três pares
fundamentais, que se ordenam assim:

1. amor ódio
2. desejo aversão
3. prazer desprazer

O objeto apreendido é, em primeiro lugar, amado (ou odiado) e,


em virtude desse ato passional primordial primário, passa a ser deseja­
do (ou não) e sua posse levará à delectação (ou não).
A época moderna, praticamente em nada modificará essa lista. O
que ela fará, isso sim, é modificar progressivamente a sua ordem
hierárquica. Em linhas gerais, duas grandes mutações ocorrerão. A par­
tir de meados do século XVII o par 2 assumirá o primeiro lugar na
ordem e, no século XVIII, será a vez do par 3. Essas modificações
acarretarão uma tal reviravolta nas concepções que, como já dissemos,
até hoje ainda não absorvemos bem suas conseqüências. Quem apon­
tou, com muita clareza, essa prim eira grande mutação (preeminência
do par 2) foi A. Matheron:

“Com efeito, todos os filósofos da vida moral trabalham,


nessa época (século XVII), sobre um material idêntico:
junto a todos, com poucas variantes, a lista de paixões é
a mesma, e para eles a originalidade só pode consistir
no modo como combinam os elementos. M as esta
própria combinação tem regras; a maior parte dos
autores concordam, particularm ente, em considerar
como primitivos três pares de sentimentos fundamentais:
amor e raiva, desejo e aversão, alegria e tristeza (ou
prazer e dor), dos quais todos os outros seriam mais ou

67
menos derivados. A questão que se coloca a partir de
então, e que determina as grandes clivagens, é a de
saber a qual desses três pares cabe a prioridade ” .9

A corrente tradicional que tem, e terá por muito tempo, um


enorme peso continua defendendo essa “antropologia de inspiração
finalista”, segundo a qual o homem está orientado para um Bem obje­
tivo e transcendente. E essa imantação exercida pelo Bem que consti­
tui a mola do ser humano e dá inteligibilidade à sua conduta ética.
Aqui, o privilégio está no amor, “raiz primeira de todas as paixões”.10
Produzida essa relação originária, essa paixão suscita o movimento
apetitivo (desejo) de se apossar realmente do objeto e, tendo isso sendo
atingido, o resultado é o repouso alegre, a satisfação do desejo."
Essa tradição, forte, ainda perdura no coração do século XVII.
B asta abrirmos o Traité de VUsage des Passions de Sénault, publica­
do em 1641. Ele é típico e exemplar. O conhecimento deve preceder e
governar as paixões;

“ ... é preciso recordar que a Razão é a soberana das


paixões e que a condução destas é uma de suas p rin ­
cipais funções, e que ela é obrigada a vigiar particu­
larm ente aquelas que arrebatam as outras p o r seu
m ovim ento” .'2

E é exatamente por isso que não se deve esquecer nunca que:

“... o amor e o ódio, que são as duas primeiras fontes de


nossas Paixões” .'3

É esse amor, não só a primeira das paixões, como também fonte e


raiz de todas as outras:

“...a esperança e o temor, a dor e a alegria são os m ovi­


mentos ou as propriedades do am or”
É o am or que empresta força e vivacidade a todas as outras
paixões. Todas levam sua marca e é na sua regulação que consiste toda
a técnica de regulação das paixões:

"... pois como nós reconhecemos só uma paixão, que é o


amor; e como todas as outras são apenas efeitos que
esta produz, somos obrigados a confessar que elas
tomam de empréstimo todas as suas forças de sua
causa, e que elas não têm outra violência do que a
desta. Ele é um soberano que imprime suas qualidades
aos seus súditos; ele é um Capitão que partilha sua
coragem com seus soldados, e ele é um prim eiro móbil
que arrebata todos os outros Céus po r sua impetuosi­
dade; de form a que a M oral só deve trabalhar para a
condução do amor: pois quando essa paixão fo r bem
regrada, todas as outras a im itarão, e o homem que
souber bem amar não terá maus desafios nem vãs
esperanças a moderar" .15

Essa teoria, longa e pacientemente montada, sofrerá um golpe


mortal no século XVII, primeiramente através de Th. H obbes.16
Procuremos examinar isso mais de perto.

2.a) Hobbes é um pensador sistemático. U ma das coisas que mais


impressiona o leitor de sua obra é o geometrismo implacável de suas
deduções. D aí a necessidade de explicitar, mesmo que seja em linhas
gerais, o seu projeto e sua concepção metodológica, coisa que qualquer
leitor razoavelmente culto já conhece, para daí centralizar a atenção
em sua antropologia e, sobretudo, em sua teoria das paixões, que é o
ponto que realmente nos interessa.
O problema original e central de Hobbes parece ter sido o de saber
qual o fundamento (ou fundamentos) sobre o qual se assentam as
sociedades políticas. Não está preocupado com outros tipos de associa­
ções ou sociedades naturais, isto é, aquelas que se estabelecem natural,
necessária e universalmente, como, por exemplo, aquela que se consti­
tui entre a mãe e sua prole.

69
Para isso, coloca em ação uma concepção metodológica que con­
siste em decompor um determinado problema em seus elementos cons­
tituintes. Atingidos esses elementos, procede-se à sua análise, e a de
suas inter-relações, até chegar progressivamente a reconstituir o todo do
qual se partiu. Trata-se de um processo resolutivo-compositivo que
dilui o todo em seus elementos constituintes para, a partir deles, recons­
truir e recompor esse mesmo todo do qual se partiu. No De Cive,
Hobbes explica essa idéia num texto que funciona quase como um pro­
grama, não só de seu modo de proceder, mas, de maneira geral, de
como se abordarão as questões no decorrer do seu século e do seguinte:

“No que concerne ao meu m étodo, pensei, que não me


bastava usar um estilo claro e evidente, mas que era
necessário com eçar pela própria matéria do governo
civil, depois tratar de sua form a e geração, e da
prim eira origem da justiça. Pois todas as coisas são
mais bem entendidas através de suas causas constitu­
tivas. Pois assim como em um relógio, ou em qualquer
outra máquina autôm ata, não podem os conhecer bem
a m atéria, a fig u ra e o m ovim ento das roldanas senão
se o desm ontam os; assim, na investigação dos direitos
dos estados e dos deveres dos súditos é necessário, eu
digo, não romper o estado, m as considerá-lo como se
ele estivesse dissolvido, quer dizer, é preciso entender
qual é o natural dos homens, o que é que os torna
próprios ou incapazes d efo rm a r estados, e como é que
devem estar dispostos aqueles que querem se reunir em
um estado bem fund a d o ” .17

N a verdade, no caso específico de H obbes, o que ele tem em


m ente é m uito menos um a decom posição seguida de um a inspeção
e um a posterior recom posição, do que um a verdadeira reconstrução
do objeto, um a gênese dele a partir desses elem entos. A inspiração
é, evidentem ente, aqui, a geom etria euclidiana que Hobbes pre­
tende estender m etodologicam ente aos dom ínios da ética e da
política. V ários textos seus são taxativos sobre esse ponto, como
este do D e C orpore:

70
“Mas para aqueles que buscam a ciência indefinida­
mente, que consiste no conhecimento das causas de
todas as coisas, o tanto quanto este possa ser alcança­
do (e as causas das coisas singulares são compostas
pelas causas das coisas universais ou sim ples) é
necessário que eles conheçam as causas das coisas uni­
versais, ou de tais acidentes enquanto eles são comuns
a todos os corpos, isto é, a toda matéria, antes de
poderem conhecer as causas das coisas singulares, quer
dizer, daqueles acidentes pelos quais uma coisa é distin­
guida de outra. E, novamente, eles precisam conhecer o
que são essas coisas universais, antes de poderem
conhecer suas causas. Além disso, visto que as coisas
universais estão contidas na natureza dds coisas singu­
lares, seu conhecimento deve ser adquirido pela razão,
isto é, por resolução. Por exemplo, se é proposta a con­
cepção ou idéia de alguma coisa singular, como de um
quadrado, este quadrado deve ser resolvido em um pla­
no, terminado por um certo número de linhas retas e
iguais, e ângulos retos. Pois por essa resolução nós
obtemos estas coisas universais ou comuns a toda
matéria, a saber, linha, plano (que contém superfície),
terminado, ângulo, retidão, retitude e igualdade; e se
podem os encontrar as causas destas, podem os compô-
las todas juntas na causa de um quadrado (segue-se um
exemplo similar no plano da física: a resolução dos ele­
mentos componentes do ouro). E dessa maneira, resol­
vendo continuamente, podem os chegar a conhecer o que
são essas coisas, (como o ouro, por exemplo), cujas
causas sendo conhecidas separadamente, e depois com­
postas, levam-nos ao conhecimento das coisas singu­
lares. Eu concluo, por conseguinte, que o método de
obter o conhecimento universal das coisas é puramente
analítico” .'8

Esse m étodo resolutivo-com positivo visa, portanto, não a


definição descritiva e estática do objeto em questão (por exemplo,
dizer que o círculo é a figura onde todos os pontos são eqüidistantes de

71
um outro central), mas sim tomar um ou vários elementos e a partir daí
reconstruir geneticamente o objeto. Nas Six Lessons... Hobbes nos
parece ainda mais claro:

“M as aqui eu preciso convencê-lo de que a geometria,


sendo uma ciência, e todas as ciências procedendo a
partir do conhecimento prévio das causas, a definição
de uma esfera, e também de um círculo, por sua gera­
ção, quer dizer, pelo movimento, é melhor do que pela
igualdade de distância de um ponto interior" .w

A geometria tem esse rigor demonstrativo e pode justamente ser


denom inada ciência, no sentido forte, porque podemos conhecer, com
absoluta clareza, a causa geradora do objeto, na medida em que é o
próprio sujeito que cria esse objeto e, portanto, tem perfeita e total
sapiência da sua causa geradora. Já o mesmo não acontece com os
objetos da natureza, que não são criados por nós, mas oferecidos aos
nossos sentidos. A física não tem, e não pode ter, o rigor da geometria,
por essa razão.20Suas demonstrações sempre padecerão de um resíduo
irredutível e serão, quase sempre, a posteriori. O mesmo já não acon­
tece com a ética e a política, pela simples razão de que elas, assim
como a geometria, são obra do próprio sujeito. As regras do justo e do
injusto, da eqüidade etc. são feitas pelos próprios homens que, portan­
to, as conhecem tão bem quanto as formas que constroem na geome­
tria. E pode ser uma ciência demonstrada a priori:

“Além disso, a política e a ética, isto é, a ciência do justo


e do injusto, do eqüitável e do iníquo, pode ser demons­
trada a priori; com efeito, os princípios pelos quais
sabe-se que as coisas são o justo e o eqüitável, o injus­
to e o iníquo, isto é, a causa da justiça, as leis e as con­
venções são coisas que fizem os nós mesmos..." .21

b) Esse método, Hobbes aplicará nos domínios de suas investi­


gações. Em primeiro lugar, para explicar a formação das sociedades

72
políticas, “dissolve” o Estado em seus elementos constituintes — os
homens. E, mais ainda, para saber o que são esses homens — qual a sua
natureza — resolve decompô-los em seus elementos constituintes. Mas
aqui esbarra-se com uma dificuldade. Como não somos nós os autores de
nossas faculdades — elas nos são dadas, por assim dizer — podemos
decompô-las, mas nem sempre achamos a causa geradora. Já no primeiro
caso — a passagem dos homens à sociedade política — a transparência
deve ser total e o método genético deve poder ser aplicado na íntegra. E
foi o que Hobbes fez, tanto nos Elements ofL aw e no Leviathan, quanto
no De Cive. E, com respeito à querela de se saber se, operada essa dis­
solução, o que Hobbes encontra são homens civilizados ou não, na ver­
dade, a questão nem se coloca. O objetivo de Hobbes é responder à
questão: o que são os homens, quando são dissolvidos hipoteticamente
todos os liames políticos? O que implica pensá-los distribuídos num
determinado espaço, sem nenhuma forma de soberania ou poder político,
jurídico etc. E, nessa hipótese, é evidente que, tanto faz pensar numa tribo
da época das cavernas, como numa cidade inglesa do século XVII. É por
isso que Hobbes pode pensar em ambas situações e que no De Cive os
exemplos sejam extraídos de homens já civilizados.22 Como a hipótese é
atemporal, o problema nem se põe. Da mesma forma, essa reconstrução
da sociedade política não tem como alvo descrever como, de fato, as
sociedades se formaram, mas sim, como se pode pensar a sua formação.
Exigência do método, aliás. As definições genéticas, nota o autor,
indicam como é possível engendrar uma coisa (da rotação do semi-círcu-
lo à esfera), e não como a coisa foi efetivamente engendrada (provavel­
mente nenhuma esfera real teve essa gênese).23 Hobbes, portanto, está
descrevendo a condição natural do homem em geral (civilizado ou não),
e sua gênese é uma gênese possível, e não necessariamente real.

c) “A natureza do homem é a soma de seus poderes e


faculdades naturais, como as faculdades de
nutrição, movimento, geração, sentido, razão etc.
Nós devemos unanimemente chamar esses poderes
de naturais, e eles estão contidos na definição de
homem sob estas palavras: animal e racional.
D e acordo com as duas partes principais do
homem, eu divido suas faculdades em duas espé­
cies , faculdades do corpo efaculdades da alma” .24

73
As faculdades da alma dividem-se em poder cognitivo, imaginati­
vo ou conceptivo e poder volitivo ou afetivo. Com relação ao primeiro
ponto, Hobbes considera digno de observação o fato de que, se prestar­
mos atenção, perceberemos que existem continuamente em nossas
mentes certas imagens ou concepções das coisas que estão fora de nós.
Essas imagens ou concepções, até certo ponto, têm uma consistência
intrínseca pois a hipótese da aniquilação de todos os objetos — exce­
to o sujeito — não implica a aniquilação dessas imagens.25 São essas
imagens ou representações que podemos denominar, indiferentemente,
cognição, imaginação, idéia, noção, conhecimento e pelas quais
exercemos nosso poder cognitivo ou de conceber as coisas. Conceber
uma coisa é ter uma imagem dessa mesma coisa. Conhecer, no plano
elementar, é ter um a imagem.
Dada essa estrutura do nosso conhecimento, o sujeito é levado a
um certo número de crenças naturais que é necessário afastar. Por
exemplo, como na visão a imagem é o conhecimento que temos do
objeto, segundo o que nos revela esse sentido, não é difícil para os
homens acreditarem que “cor” é um a qualidade do próprio objeto, pro­
priedade intrínseca dele. Para Hobbes, cujo mecanicismo é integral,
isso é puro contra-senso, na medida em que no universo só existe
m atéria em movimento ou matéria e força, onde, portanto, falar em
qualidades não tem o menor sentido. Daí Hobbes estabelecer quatro
proposições fundamentais nesse campo:

1) Que o sujeito, onde cor e imagem são inerentes, não possui


equivalente no objeto ou na coisa vista;

2) Que não existe nada, fora de nós, que realmente possa se


denom inar imagem ou cor;

3) Que essa imagem ou cor não é senão um a aparência que chega


até nós em virtude do movimento, agitação ou alteração que o objeto
produz no cérebro, sobre os espíritos (animais) ou em alguma subs­
tância contida em nossa cabeça;

74
4) Assim como na visão, em todas as outras concepções oriundas
dos outros sentidos, o sujeito de sua inerência não é o objeto ou a coisa,
mas o ser que sente.26

A conseqüência dessas teses é evidente: todos os acidentes ou


qualidades que nossos sentidos nos mostram como existindo no mundo
não estão realmente nele, mas devem ser encarados como aparências.
Nada há, de fato e realmente, no mundo externo, senão movimentos
pelos quais essas aparências são produzidas. Produzidas, diga-se de
passagem, também segundo as leis do movimento. Assim, é nesse
espírito que Hobbes define, por exemplo, a imaginação:

“Assim como a água posta em movimento pelo choque de


uma pedra ou por um a ventania não perde presente­
mente o movimento logo que o vento cessa ou a pedra
afunda, da mesma maneira, quando o objeto agiu sobre
o cérebro o efeito não cessa tão logo os órgãos são
desviados e o objeto cessa de agir; isso quer dizer que
ainda que a sensação seja passada, a imagem ou con­
cepção permanece; mas mais obscura enquanto estamos
despertos, porque um objeto ou outro continuamente
reclama e solicita nossos olhos e ouvidos, mantendo a
mente em um movimento mais forte, enquanto que o
movimento mais fraco não aparece facilm ente. E esta
concepção obscura é aquilo que chamamos de fantasia
ou imaginação; a imaginação sendo, para defini-la,
um a concepção remanescente e pouco a pouco se enfra­
quecendo a partir e depois do ato de sensação.27

Temos assim sensações que fornecem concepções fortes, vivas e


diferenciadas e concepções que advêm da imaginação, mais fracas,
mais apagadas e menos diferenciadas. Quando acontece um a sucessão
de concepções na mente, suas ligações podem ser casuais e incoeren­
tes (sonho, delírio, por exemplo), ou pode ser ordenada, quando, por
exemplo, um primeiro pensamento conduz a um segundo e assim
sucessivamente até formar um a longa cadeia que denominamos dis­
curso. O que produz a coerência ou conseqüência de um discurso é a

75
prim eira coerência ou conseqüência, no momento em que se formou,
que se produziu nos ou pelos sentidos. Trata-se do discurso mental.26
Essa cadeia pode ser livre (sem desígnio, errante) como quando acon­
tece com um a cadeia que não tem um pensamento-meta para dirigir e
governar os outros. Ela pode também ser regulada por um desígnio ou
desejo. Nesse caso acontece o seguinte: há um desejo inicial, dele
surge o pensamento de algum meio para realizá-lo por meio de algo
que vimos produzir um efeito semelhante. Do pensamento desse meio,
chegamos a outro que, por sua vez, será um meio para atingir o
primeiro, transformado agora em fim, e assim sucessivamente, até
chegarmos a um ponto dessa corrente onde algo esteja ao nosso
alcance e possa desencadear o processo.
Desse modo, fica claro que estabelecer um discurso encadeado é
ligar concepções (imagens) entre si de modo que sirvam a algum propósi­
to. Essa finalidade ou propósito é sempre ditada por um desejo, uma
paixão. São estes que tecem a malha do discurso, ordenam e encadeiam
as imagens de modo que, se possível, levem à realização do desejo.

d) Ressaltadas, em linhas gerais, as características principais do


nosso poder cognoscitivo ou conceptivo, e tendo assinalado sua estri­
ta dependência com relação aos desejos e paixões,29 passemos agora à
análise desses últimos fatores.
Esse segundo conjunto pode ser abordado através da noção hobbe-
siana. de faculdade motriz. Aqui é preciso cuidado. O que Hobbes
denomina faculdade motriz do espírito difere da faculdade motriz do
corpo. Neste último, essa faculdade é o poder que o sujeito tem de
mover outros corpos assim como seu próprio e se denom ina/orça. Já a
faculdade motriz do espírito é o poder que ele tem de imprimir o movi­
mento animal no corpo no qual ele existe. Os atos desse corpo são
denominados afetos ou paixões. A abertufa do capítulo VI do Leviathan
é mais clara quanto a esse ponto:

“Nos animais existem dois tipos de Movimentos que lhes


são peculiares. Um deles é chamado de Vital; começa na
geração e continua sem interrupção durante toda a sua
vida; deste tipo são a circulação do sangue, o pulso, a res­
piração, a digestão, a nutrição, a excreção etc.; para esses

76
movimentos não é necessária a ajuda da imaginação. 0
outro tipo é o d o movimento animal, também chamado de
movimento voluntário, como andar, falar, mover qualquer
um dos nossos membros, da maneira como anteriormente
ele fo i imaginado em nossas mentes. Pois a sensação é o
movimento nos órgãos e partes interiores do corpo
humano, causado pela ação das coisas que nós vemos,
ouvimos etc. E a imaginação é apenas o resíduo do mesmo
movimento, permanecendo após as sensações, como já fo i
dito no primeiro e segundo capítulos. E como andar, falar
e os outros movimentos voluntários dependem sempre de
um pensamento precedente de como, qual caminho e o
quê, é evidente que a imaginação é a primeira origem
interna de todos os movimentos voluntários” .M

Assim, existem movimentos que são responsáveis pela circulação,


respiração e congêneres, que começam com a geração do sujeito e ter­
minam com sua morte; que são automáticos e, mais especificamente,
não dependem das faculdades da mente, em espécie, da imaginação. Já
os outros que dependem desta última são denominados voluntários
(andar, falar etc.) e pressupõem o ato da imaginação como antecedente.
Temos assim, primeiro, um movimento no interior da mente que, por
uma série de transmissões culminam num movimento corporal.
Estamos aqui no cerne, no núcleo da teoria hobbesiana das paixões e,
portanto, procuremos nos mover lentamente e com cuidado. Isso é
necessário, antes de tudo, porque o pensamento de Hobbes, neste ponto,
é difícil de ser percebido e aclarado e, em segundo lugar, porque levou
alguns analistas, como veremos, a uma leitura, no mínimo, estranha.
Alguns autores, de fato, foram levados a pensar que o fenômeno
primeiro nessa lógica das paixões seriam as afecções prazer e dor, a par­
tir das quais os outros pares de afecções se desdobrariam. Encontramos
essa posição em Gadave,31 em Malherbe.32 Um outro, Magri,33 identifica,
sem mais delongas, prazer e desejo, o que, literalmente, é falso.
Retomemos essa idéia de movimento animal. Já vimos que, do ponto
de vista interno, há um movimento no campo da imaginação que precede
e é a origem interna dos movimentos externos. Esse movimento
microscópico, capilar, esse início de movimento no interior do corpo,
antes que se manifeste objetivamente, é o que Hobbes denomina esforço:

77
“E embora os homens sem instrução não concebam ne­
nhum movimento ali onde a coisa movida é invisível, ou
quando o espaço onde ela é movida (por sua pequenez)
é insensível, não obstante esses movimentos existem.
Pois um espaço nunca é tão pequeno que aquilo que seja
movido em um espaço maior, do qual o espaço pequeno
fa z parte, não deva primeiro ser movido neste último.
Esses pequenos inícios do movimento, no interior do
corpo do homem, antes de aparecerem no andar, na fa la ,
na luta, são comumente chamados de esforço”

Esse núcleo da faculdade motriz, o “conatus”, caracteriza-se,


então, pensando no vetor sujeito-objeto, como aquilo que vai em
direção a algo que o provoca. É isso que se denomina apetite ou dese­
jo , sendo o segundo termo preferível, já que o primeiro é mais fre­
qüentemente utilizado quando esse desejo toma a forma específica do
desejo de nutrição. Quando sucede o movimento inverso (aquilo que
se afasta de algo), o de evitamento, temos então a aversão:

“Este esforço, quando ele é dirigido a algo que o causa,


é chamado de apetite ou desejo, o último sendo o nome
mais geral; (...) E quando o esforço vai no sentido de
evitar algo, ele é geralmente chamado de aversão” ,-,s

Assim, sem sombra de dúvida, o elemento fundamental, o motor


primário, para Hobbes, de todo jogo passional, está nesse fato elemen­
tar do esforço, do “conatus”, do desejo para se atingir algo. É exata­
mente nesse mom ento que Hobbes provoca uma reviravolta completa
na compreensão das afecções. O “conatus” é um fato primário, irre­
dutível a qualquer outra instância passional e, ao contrário, é ele quem
vai dar conta destas últimas. Não só a hierarquia secular da preem i­
nência do amor/ódio se vê desmoronada, como também seu correlato:
o primado gnoseológico que a acompanhou sempre. A máxima socráti-
co-platônica, de que o conhecimento implica necessariamente a práti­
ca do melhor, esboroa-se, e a fam osa m áxima ovidiana (“videor melio-
ra”...) deixa de ter conotações negativas, na medida em que já não vai

78
se tratar mais do império da Razão sobre a paixão, mas do exatamente
inverso. Ela agora será um instrumento para satisfazer as paixões e nc>
limites da “condição natural dos hom ens” não sofre restrições.
Mas voltemos um pouco. A trama passional do ser humano tem sw
raiz no desejo, no “conatus”. Mas, “conatus” de quê? Nessa multiplici­
dade e nessa miríade de nossos desejos, desses que atravessam nosa
vida, existe algum irredutível e fundamental, a partir do qual os outros e
esclarecem, adquirem inteligibilidade? Sobre este ponto Hobbes é taxati­
vo. Esse “conatus” é original e primordialmente desejo de conservação
de si,%bde autoconservação, assim como a aversão primeva é a destruiçò
de si, a morte. O móvel fundamental de todo sujeito, em espécie, o
homem, é a afirmação na existência. O “conatus”, portanto, nada maisé
do que esse movimento que prefigura a apropriação daquilo que é úil
para a conservação e também a prefiguração da fuga, do afastamenb
frente a tudo que possa ameaçar essa conservação. Em termos biológico;,
embora, como veremos, a questão não se reduza a isso em Hobbes,o
“conatus” é esse desejo primordial pela vida e o temor absoluto da morií.
Desejo de conservação e aversão à destruição: um ou dois “con-
tus”? A resposta de Hobbes parece ser: um só. E o mesmo “conatus',
já que a aversão é reconduzida ao apetite. Assim:

“Dos apetites e aversões, algumas nasceram com o


homem; como o apetite pela comida, o apetite de
excreção e exoneração (que também podem, e mais pro­
priamente, ser chamados de aversões a algo que se sente
dentro do corpo)" ^

Não há nenhum dualismo original em Hobbes, como se podeia


ser levado a pensar: existe um a única tendência, que nos inclina a cor­
tas coisas, e nos leva a repudiar outras. É o mesmo desejo que >e
especifica em aproximação ou distanciamento, conforme o caso.
Desejo de auto-conservação.
Avancemos um pouco mais. O desejo subdivide-se em deseps
inatos (fome, sede, sexualidade), que não são muito numerosos,38e;>s
restantes, que “procedem da experiência” e que são desejos de coias
particulares.39 O desejo supõe sempre a “ausência do objeto”,40 o <jie
implica a existência de um estoque de imagens na memória que, an

79
função do passado, orienta a experiência futura. No caso dos desejos
adquiridos, supõe-se não só a experiência passada, como também a
inter-relação humana. É exatamente nesses dois fatores que encontramos
a possibilidade de que esse “conatus” originário se diversifique e se
complexifique de forma espantosa. O desejo aumenta seu campo con­
forme aumenta a experiência, no sentido amplo do termo. As crianças
têm poucos desejos, insiste Hobbes em várias passagens.41A extensão do
campo representativo, e a correlata extensão do campo do desejo, é um
dos indicadores principais da diferença do corpo humano e do campo
animal. Essa diferença é fundamental porque isso vai configurar o dese­
jo humano — em contraposição ao animal — como irremediavelmente
além do campo dos desejos naturais inatos (entenda-se: puramente
biológicos). O ser humano tem inscrito no âmago de sua natureza a pos­
sibilidade, e mesmo a necessidade, de romper com o natural.42

e) Se essa leitura tem algum fundamento, pode-se então colocar


em dúvida certas leituras do pensamento de Hobbes, que reduzem a
extensão do campo do “conatus” à mera manutenção e expansão do
solo biológico-vital do indivíduo. É o caso, nos parece, da tese de A.
M atheron. Ele afirma, com efeito:

“Por outro lado, a instauração de uma relação de tipo


ainda finalista (...) entre desejo e movimento vital torna
o estado do puro egoísmo biológico def initivamente inul­
trapassável. Nossa tendência a perseverar no ser, com
efeito, não se identifica ao ser no qual tendemos perse­
verar; ela não é senão um meio ao seu serviço, movi­
mento destinado a salvaguardar um outro movimento. E
esse ser a salvaguardar épura e simplesmente a existên­
cia biológica bruta, sem outra especificação” .43

U ma leitura mais atenta dos textos parece mostrar, como


indicamos acima, que é exatamente a leitura oposta que deve ser feita.
O posta no sentido de que, sem negar esse solo biológico, percebe-se
que ele deve ser ultrapassado. Por outro lado, como veremos um pouco
mais à frente, a existência humana define-se como uma espiral aberta,
que vai de desejo em desejo, e isso só tem fim com a morte. Mais
ainda: que o fato básico não seja apenas a sobrevivência, mas algo
mais, o indicam os próprios textos de Hobbes. Todo ser humano dese­
ja também, além da vida, o prazer, a alegria, a saúde etc. A própria
definição de felicidade hobbesiana é elucidativa:

“O sucesso contínuo na obtenção daquelas coisas de que


tempos em tempos o homem deseja, quer dizer, o pros­
perar contínuo, é aquilo que os homens chamam de feli­
cidade; refiro-me à felicidade desta vida" .44

E, mesmo que o Estado seja entendido como um imenso disposi­


tivo de segurança, mesmo assim, é impossível reduzi-lo à manutenção
da existência biológica porque, nesse caso, o que o diferenciaria de
uma cadeia? Entre os direitos do homem há alguns, segundo Hobbes,
que não podem, em hipótese alguma, ser reduzidos às condições da
mera sobrevivência. Os homens não querem apenas viver, mas sim
obter um conjunto de condições sem as quais o homem “não pode
viver bem ”.45A diferença é de peso.

f) Retomemos o fio de nossa análise. Um outro texto dos Elements


o f Law nos esclarecerá sobre as relações entre o par desejo/aversão,
tomado agora como originário, e este outro, prazer/dor:

“N a oitava seção do segundo capítulo fo i mostrado que


concepções e aparições realmente são apenas movimen­
to em alguma substância interna da cabeça; este movi­
mento não parando ali, mas prosseguindo até o coração,
aqui ele necessariamente precisa ou auxiliar ou estorvar
o movimento que é chamado de vital; quando o auxilia,
ele é chamado de deleite, contentamento ou prazer, que
realmente é apenas movimento em torno do coração,
assim como concepção é apenas movimento na cabeça;
e os objetos que o causam são chamados de prazerosos
ou deleitantes, ou por algum outro nome equivalente" ,46

81
Esse texto mostra claramente qual é o mecanismo que provoca o
deleite ou o prazer. Ele nada mais é que o efeito benéfico do movi­
mento vital. O movimento causado pelo objeto da sensação no cérebro
é, como movimento, transmitido ao coração. Melhor ainda: o prazer é
o efeito concomitante, a título de sensação interna, que é provocado no
coração, em virtude do caráter facilitador que esse movimento, vindo
do cérebro, provocou no movimento vital:

“Como na sensação aquilo que realmente está dentro de


nós é apenas movimento (como eu já disse acima), cau­
sado pela ação de objetos externos, mas na aparência:
para a vista, a luz e a cor; para o ouvido, o som; para
o olfato, o odor etc.; assim, quando a ação do mesmo
objeto se prolonga, a partir dos olhos, dos ouvidos e
outros órgãos, até o coração, o efeito real aqui é ape­
nas movimento ou esforço, que consiste em apetite ou
aversão pelo ou do objeto que movimenta. M as a
aparência ou sensação desse movimento é aquilo que
chamamos de deleite, ou perturbação do espírito.
Este movimento que é chamado de apetite, e cuja
aparência é deleite ou prazer, parece-me uma corrobo-
ração ao movimento vital, e um auxílio a este" .47

E, com o se vê pelo texío acima, quando o efeito é inverso, temos


o que se denom ina desprazer, perturbação da mente ou algo similar.
Com relação ao par am or/ódio, o raciocínio de Hobbes é estreita­
mente sim ilar ao anterior. Esse deleite ou prazer, quando se refere ao
objeto, é o que denom inam os amor. No caso contrário, temos o ódio.
De m odo que, olhando o processo de m odo global, trata-se sempre
do mesmo fenômeno. É num único processo que podemos distinguir
a sua força m otriz (desejo/aversão), o seu efeito concom itante (pra­
zer/desprazer), e sua relação com o objeto (amor/ódio). M as, se se
trata do mesmo processo, isso não significa identidade pura, como
querem alguns.
Há uma distinção importante, embora ela seja modal, que não
pode ser esquecida, quando se afirma secamente, por exemplo, a iden­
tidade do desejo e do prazer ou do desejo e do amor.48 Neste ponto,

82
M atheron nos parece ter toda razão quando afirm a que “com efeito,
se o am or e a alegria devem se distinguir do desejo, isso não pode
ser (feito) senão m odalm ente, não realm ente. O am or não é mais,
com o na acepção clássica, um a apreensão do Bem anterior a todo
desejo; o prazer não é mais o estado consecutivo, de repouso, à
satisfação do desejo”.49 Trata-se sempre de m odificações do desejo,
este sim, o fato fundam ental. O desejo é esforço e torna-se am or
quando seu objeto está presente. Na ausência deste último é pura e
sim plesm ente desejo.
Outro fato digno de nota é o de que, se se trata do mesmo proces­
so onde as distinções são modais, a relação desejo/prazer não pode ser
mais pensada no sentido de que o prazer seria a sensação que apon­
taria, sinalizaria o fim, a consecução do processo e a supressão, por­
tanto, do estado de desejo. Nesse caso, aos olhos de Hobbes, tratar-se-
ia não da realização do desejo, mas de sua supressão, de sua ani­
quilação. Como são dois fenômenos que estão imbricados no mesmo
processo, o prazer atualiza-se no próprio processo.50 Em todo caso,
prazer e desprazer, só indiretamente, estão ligados ao campo re­
presentativo: são vivências subjetivas, estados do sujeito.
É no interior desse registro conceituai que Hobbes pode colocar
sua afirmação, que ainda hoje soa um pouco escandalosa, de que:

“Visto que todo deleite é apetite, e pressupõe um térm i­


no ulterior, só pode haver contentamento no prossegui­
m ento” .51

Temos, assim, um processo contínuo e indefinido, aberto e sem


acabamento (a não ser quando ocorre a morte), que é o que caracteri­
za o movimento passional que, como já vimos, é o que orienta e intro­
duz a teleologia nos processos mentais. Há, sem dúvida, um processo
teleológico nesse nível; agimos com vistas a fins, mas isto é um a estri­
ta conseqüência do postulado mecanicista que confere primado ao
movimento. Pois é no movimento animal que se dá o encontro dos
objetos que afetam os sentidos, a mente e o coração, que facilitam (ou
não) o movimento vital e que por isso passam a ser desejados (ou não).
Mecanismo e teleologia, assim entendidos e nesse nível, não apresen­
tam a menor incompatibilidade.

83
g) Já que nossos apetites e aversões estão em função direta da
facilitação ou não do nosso movimento vital, com exceção dos apetites
que já nascem conosco (que não são muitos), aprendemos a gostar ou
não de determinadas coisas em função desse efeito que elas produzem
em nós. E visto que as constituições dos corpos dos diferentes sujeitos
não são exatamente as mesmas, eles necessariamente diferirão nos
seus apetites e aversões,52 nos seus amores e nos seus ódios, nos seus
prazeres e desprazeres. Cada organização físico-mental vai determinar
esses fatores para cada sujeito. Cada homem, “diferindo de um outro
por sua constituição”53 elegerá aqueles efeitos que lhe são benéficos e
repudiará aqueles que são maléficos. Mais ainda: porque nosso corpo,
ou melhor, sua constituição particular está sujeita a variações, uma
mesm a coisa que é desejada agora poderá não sê-lo amanhã, como
pode não ter sido, no passado. Assim, não só diferentes organizações
individuais engendram diferentes sensações e seus correlatos, como
também, cada organização individual, na sucessão temporal, vai se
modificando e, por conseqüência, modificando sua relação com o
apetecível. O cap. VI, do Leviathan é explícito:

“E porque a constituição do corpo do homem está em


contínua mutação, é impossível que as mesmas coisas
provoquem nele sempre os mesmos apetites e aversões,
e muito menos todos os homens podem coincidir no
desejo de um único e mesmo objeto”

Toda essa análise dos mecanismos passionais, de sua fonte, e de


seus efeitos, tem como conseqüência inevitável o abandono das noções
tradicionais de bem e de mal como realidades objetivas55 e seu redi­
mensionamento em função do desejo do sujeito. A lógica de Hobbes é
inflexível: assumindo integralmente o mecanismo (e, desse ponto de
vista, é mais coerente que Descartes, no sentido que postula um único
tipo de inteligibilidade para a totalidade do universo), desfinaliza total­
mente o universo objetivo, só admitindo um tipo de finalidade, a sub­
jetiva — decorrente desse mecanismo, como já vimos — que passa a
ser agora o quadro de referência de onde brotam os valores. Esse é o
sentido mais fundo da fórmula: não desejamos as coisas porque são
boas, mas elas são boas porque as desejamos:

84
“Cada homem, de seu lado, chama de bera àquilo que dá
prazer e deleite a ele mesmo, e de mal àquilo que lhe
dá desprazer. Na medida em que todos os homens dife­
rem uns dos outros em sua constituição, eles também
diferem uns dos outros naquilo que concerne à distinção
comum entre o bem e o mal. Também não existe aqui algo
como um bem absoluto, considerado sem relação” .36

h) Abramos parênteses aqui. Essa teoria de Hobbes sobre a diver­


sidade das constituições individuais nos diferentes sujeitos e, no
próprio sujeito (que, na falta de uma melhor expressão, podemos
denominar de “teoria das organizações individuais”), assim como a
respeito do relativismo do bem e do mal, levando-se em consideração
os homens na sua “condição natural”, exercerão um a prodigiosa e
maciça influência em todo pensamento materialista do século XVIII.
,57
Do autor anônimo do U Am e M aterielle até Holbach, passando por
La Mettrie, essas teorias constituirão um dos estofos desse pensamen­
to. Tomemos apenas alguns exemplos significativos.

1) La Mettrie:

“Segue-se que a felicidade não pode depender da maneira


de pensar, ou antes, de sentir; pois é certo, e não acredi­
to que alguém discorde, que não pensamos e que não sen­
timos como desejaríamos. Portanto, aqueles que buscam
a felicidade em suas reflexões, ou na procura da verdade
que nos escapa, procuram-na ali onde ela não está. Na
verdade, a felicidade verdadeira depende de causas cor­
porais, tais como certas disposições do corpo, naturais
ou adquiridas, quer dizer, causadas pela ação dos corpos
estranhos sobre o nosso”. ( “Traité de Ame" in Oeuvres
Philosophiques, Paris, Fayard, 1987, T. 1, p. 192).

2) Holbach:

“Como conseqüência deste princípio, (da ação diversifi­


cada da natureza) que tudo conspira a nos provar, não

85
existem dois indivíduos da espécie humana que tenham os
mesmos traços, que sintam precisamente da mesma
maneira, que pensem de um modo conforme, que vejam as
coisas com os mesmos olhos, que tenham as mesmas idéias
nem, por conseguinte, o mesmo sistema de conduta”.

E isso que produz o espetáculo tão variado que nos oferece o


mundo “m oral”. (Système de la Nature, Genève, Slaktine Reprints,
1973, T. I, p. 118-9. Os parênteses são nossos).

E, um pouco mais à frente:

“Assim, se bem que os homens tenham entre si uma


semelhança geral, eles diferem essencialmente tanto
pelo tecido e arranjo das fibras e dos nervos, quanto
pela natureza, pela qualidade, pela quantidade das
matérias que põem em funcionam ento essas fibras e lhes
imprimem movimentos. Um hom em , diferente já de um
outro pela textura e pela disposição de suas fibras,
torna-se m ais diferente ainda quando ele ingere alimen­
tos nutritivos, quando ele bebe vinho... Necessariamente
todas essas causas influem sobre o espírito, sobre as
paixões, sobre as vontades, em uma palavra, sobre aqui­
lo que chamamos de faculdades intelectuais. E assim
que vemos que um homem sangüíneo é comumente
espirituoso, arrebatado, voluptuoso, empreendedor,
enquanto que um homem fleugm ático é de uma con­
cepção lenta e difícil de se emocionar, é de uma imagi­
nação pouco viva, é pusilânime e incapaz de querer
fortem ente" (op. cit., T. l,p . 122).™

Assim, de Hobbes a Holbach e Sade, assistimos à cristalização da


idéia de que, na sua condição natural, os homens são o lugar da mani­
festação de um a pluralidade indefinida de desejos (e prazeres), sem
que haja nenhuma hierarquia, subordinação ou mesmo valorização.

86
Cada organização individual determina o desejo e seu grau. Desse
modo, a noção de corpo, como lugar particular da organização, ganha
relevo, e será a partir dele, assim entendido, que o sujeito se definirá:
como corpo singular desejante. Espinoza não dirá outra coisa na parte
III da Ética. A realidade dos sujeitos, neste nível, consiste em serem
corpos como realidades pontuais. Lugares de concentração, síntese de
forças e foco de irradiação, de expansão desses mesmos desejos. O que
há, basicamente, é um embate de corpos, um cruzamento indefinido de
desejos. O espaço será o lugar do enfrentamento desses diferentes dese­
jos. Retornemos à nossa discussão e encerremos este parêntese.

i) O que é, então, o desejo para Hobbes? Ele é algo irredutível e


fundante. É ele quem nos fornece a verdade do sujeito. E diverso nos
diferentes sujeitos e no próprio sujeito no desenrolar do tempo. É ele
quem aciona toda a máquina passional do sujeito e todas as paixões
derivadas (esperança, coragem, cólera, ambição, ciúme, admiração,
glória, vergonha, piedade etc. etc.) nada mais são que derivações dos
três pares fundamentais (desejo/aversão; amor/ódio; prazer/desprazer),
para estes, como vimos, que têm como eixo o próprio desejo e nada
mais são do que modalidades dele. Essa derivação supõe a colocação
em jogo do espaço inter-humano e através dela instaura-se o lugar do
ser humano no “estado de natureza”.
Esse “estado de natureza” não pode, por definição, ser o espaço da
harmonia e da concórdia porque, na medida em que cada organização
individual modela o desejo do sujeito, cada um obedece a um a lei ou
regra que lhe é interna e da qual ele, sujeito, será a expressão. A ausên­
cia de uma Regra Universal que seja aceita por todos faz desse espaço
o espaço do conflito. E isso por diversas razões. Primeiro, porque, como
vimos, a individuação deve ser pensada ao nível do estado de natureza.
E nele, propriamente falando que, num certo sentido, a individuação
atinge seu grau máximo. Como diz com muita precisão, R. Polin:

“Não se deve concluir disso que, na ordem da natureza,


nenhum princípio de individuação intervém no interior
da espécie humana. Ao contrário, ela é o lugar de
processos de diferenciação perpetuamente ativos. A
diversidade incontestável dos espíritos tem sua origem

87
fundam ental na diversidade das paixões e dos fin s aos
quais conduzem os apetites que elas sustentam” .59

Essa individuação conduz à diversidade dos desejos, e a ausência


de uma Regra Universal faz com que cada um instaure sua própria
regra como sendo a Regra. Esta é a segunda razão. A terceira razão está
em que, se essa diversidade diz respeito ao conteúdo, ela não diz
respeito à forma. Ou melhor, a diversidade considerada formalmente
não conduz a uma dessimetria irredutível, mas a uma simetria que,
dada a diversidade material, instaura o espaço do conflito.
Em outros termos, como o estado de natureza não é o lugar do iso­
lamento para Hobbes, mas sim o da coexistência sem Regra Universal
(não vamos dissolver o Estado, mas supô-lo dissolvido), estamos frente
a um grupo de indivíduos (uma “multidão”, diz Hobbes), que são movi­
dos única e exclusivamente pelas suas paixões, guiados pelos seus dese­
jos. Todo sujeito é movido por interesses estritamente egoístas, isto é,
pela realização do seu desejo, seu deleite e prazer. N a ausência de regras,
ele é o juiz de si mesmo e resolve, com razão, o que lhe é conveniente
ou não. Mas, se meu desejo é a regra e a norma de minha conduta, não
há nada acima dele que o freie e o regule. A tendência é, então, realizá-
lo integralmente. O confronto nasce quando um sujeito defronta-se com
outro que, segundo os mesmos princípios, pode colidir com o primeiro.
Duas situações podem se configurar: 1 - diferentes desejos podem
convergir paia um mesmo objeto. Ele então passa a ser o ponto de con­
flito entre os diferentes sujeitos que querem dele se apropriar para satis­
fazer seus respectivos desejos. Objeto que, por hipótese, só pode ser
sujeito de uma fruição exclusiva. Nessa hipótese só há uma saída para
solucionar a questão: a luta, o enfrentamento e o confronto. A força é a
única balança que pode resolver a questão. Ter direito a um objeto é ter
mais força ou seu equivalente; 2 - outra situação também pode se con­
figurar, embora, a rigor, ela seja apenas uma espécie do gênero anterior:
quando o objeto do desejo de um sujeito é outro sujeito. Nesse caso não
há um terceiro (o objeto), que é a fonte do conflito, mas há, pura e sim­
plesmente, luta pela posse do outro. Aqui, o próprio sujeito é o fim do
desejo; não algo que deve ser ultrapassado para se atingir uma finali­
dade, mas sim algo cuja resistência deve ser anulada.
Como vimos, a diversidade dos sujeitos não é suficiente para que
haja o prevalecimento seja de quem for. Ou mais precisamente, esse
prevalecimento é precário e pode ser subvertido a qualquer instante, Se
o conflito não é real, é potencial. E é esse estado real ou potencial que
regula a ação dos indivíduos. Trata-se do “estado de guerra de todos
contra todos”, onde o homem é o lobo do homem.
Hobbes, rompendo com uma longa tradição,60 não supõe ser a
sociabilidade algo natural aos homens. Releiamos a célebre afirmação
do D e Cive:

“A m aior parte daqueles que escreveram sobre as


repúblicas supõem, ou exigem que nós acreditemos que
o homem é uma criatura nascida apta para a sociedade.
Os gregos chamam-no de Zóon Politikon; sobre este
fundam ento eles constroem a doutrina da sociedade
civil, como se para a preservação da paz e o governo da
humanidade fosse necessário apenas que os homens
concordassem entre si na observação de certos pactos e
condições, aos quais eles dão o nome de lei. Esse
axioma, se bem que aceito po r muitos, é certamente
fa lso; ele é um erro que procede de nossa contemplação
m uito frágil da natureza humana. Pois aqueles que
querem olhar mais de perto as causas pelas quais os
homens se reúnem, e se deleitam na companhia uns dos
outros, facilm ente verão que isso acontece não porque
naturalmente não poderia acontecer de outra maneira,
mas por acidente”

E, a única saída, portanto, que os homens têm para sair desse esta­
do de conflito e ameaça constante é a instituição de um pacto, através
do qual cada sujeito renuncia a seu direito (natural) a todas as coisas,
com a condição de que os outros façam o mesmo e deleguem a uma
determinada instância o poder de regular, decidir e instituir as regras e
normas, as quais todos os membros do pacto se obrigam a obedecer.
Nasce então a sociedade política, que instaura as leis através das quais
os indivíduos devem relacionar-se entre si. Constitui-se uma instância
universal — o Estado — através da qual são definidos o bem e o mal
para os indivíduos no interior dele. Retomemos um texto do qual já
citamos o início“ e leiamos sua seqüência:
“Pois as palavras “b em ", “mal’’ e “desprezível" sempre
são usadas em relação à pessoa que as usa. Não há
nada que o seja simplesmente e absolutamente, nem
qualquer regra comum do bem e do mal que possa ser
extraída da natureza dos próprios objetos, mas sim da
pessoa do homem (em que não há república), ou da p es­
soa que representa o homem (em uma república)” .63

Os homens, assim, atingem uma noção de Bem e de Mal que é


aceita por todos, não porque acabam, um belo dia, descobrindo a
natureza do bem e do mal, que esteve para sempre inscrita na natureza
das coisas e que se revelou a eles. Chegam a um acordo, fundados em
razões utilitárias, que é melhor viver sob uma autoridade comum do
que no estado de conflito permanente, e aceitam as regras emanadas
dessa instância (desde que não lese seus direitos fundamentais), como
sendo aquela que dita o que é bom e o que é mau:

“Assim, não encontramos normas dos vícios e das vir­


tudes fo ra da vida social. Essa norma não pode ser, por­
tanto, senão as leis de cada Estado..."

Assim, é o pacto social que cria a possibilidade da constituição


desses objetos que denominamos o Bem e o Mal. São objetos artifi­
ciais (assim como os objetos das matemáticas), mas necessários, na
medida em que são decorrências inexoráveis do próprio pacto.65
Mas, quais são as circunstâncias, mais especificamente falando, que
levaram à instauração do pacto? Já vimos, é o estado de guerra atual ou
potencial, que ameaça constantemente cada indivíduo. E essa ameaça
concerne diretamente à sua vida e à sua segurança. É esse “conatus”
originário que está fundamentalmente em questão aqui. A aversão
primária à morte é um dos componentes fundamentais da instauração do
pacto político. Esse medo da morte e o desejo de conservação de si são
ordenadores básicos da instituição do pacto social. Já vimos66 que o
Estado não pode ser pura e simplesmente reduzido a um “imenso dis­
positivo de segurança”. Ele seguramente não é só isso. Mas é isso tam­
bém. A necessidade de segurança é, sem dúvida, um dos motores funda-

90
mentais que leva os homens a instituírem o pacto. Entre o direito ilimi­
tado ao gozo de tudo aquilo que deseja e o conseqüente perigo da morte,
representado sempre como possibilidade frente a alguém mais forte ou
mais astuto, os homens preferem restringir o campo de seus desejos (não
de seus direitos inalienáveis) para alargar o campo de sua segurança.
Viver bem, viver comodamente é, sem dúvida, para Hobbes, uma aspi­
ração humana que já se manifesta no estado de natureza, mas para bem
viver é preciso, antes e acima de tudo, garantir a vida. E aqui, como sem­
pre em Hobbes, o egoísmo é o ordenador de todas essas operações.
Segundo Darbon, “uma noção não se compreende bem senão pelo uso
que dela se faz”,67 se for assim, talvez de agora em diante possamos usar
a expressão (sob muitos aspectos, infeliz) “antropologia do egoísmo”,
que muitas vezes foi atribuída a Hobbes. Nesse contexto que viemos
desenvolvendo, ela tem seu fundamento.

j) Isso tudo, no entanto, tem um outro lado, um a outra faceta que


é importante não esquecer. O Estado, neste sentido e neste nível, é o
resultado da metam orfose do egoísmo pleno ao egoísmo mitigado,
que nem por isso deixa de ser egoísmo, apenas passa a ser um egoís­
mo ardiloso, astucioso, refletido. Esse egoísmo m itigado é a condição
do seu exercício com a menor taxa de risco.68 Sejamos mais específi­
cos, à custa de nos repetirmos: renúncia a que e segurança em relação
a quê? Renúncia aos próprios desejos irrestritam ente considerados, e
segurança em relação aos desejos alheios, entendidos da mesma
forma. O estado de guerra nasce exatamente de um a utilização
irrestrita do direito de satisfação do desejo. Daí o conflito, a discór­
dia. Os desejos colidem, entrechocam, afrontam-se e podem levar à
morte, Em outros termos, se a função do pacto tem por objetivo frear
o estado de guerra de todos contra todos, o único caminho possível
para isso é frear os desejos. O objetivo último do pacto é a dominação
do exercício do desejo de form a irrestrita. O objetivo fundamental,
portanto, é limitar o campo do desejo, diminuir sua intensidade, cir­
cunscrevê-lo a campos determinados, sujeitá-lo a regras, domesticá-
lo, laminá-lo, enfim. Estabelecido o pacto, instaurada a soberania,
constituir-se-á a Lei que definirá o Bem e o Mal, o justo e o injusto,
o virtuoso e o vicioso, e são a essas regras que os indivíduos terão de
se submeter. Se no estado natural reinava a pluralidade, agora, intro­
duzida a regra, o objetivo é introduzir, até onde isso é possível,69 a

91
identidade, e eliminar as diferenças. Nesse sentido, e só nesse senti­
do, é verdadeira um a sentença bastante conhecida que diz que o
Estado se instaura com o violência contra o desejo. Em todo caso,
como nascemos e crescemos no interior de sociedades políticas cons­
tituídas, praticam ente não sentimos esse trabalho, operado cotidiana-
mente, de docificação do desejo. Trabalho lento e paciente que nos
transforma, usando um a expressão que fez época, em corpos dóceis.
Trabalho onipresente, que praticam ente nem vemos e nem sentimos,
que se infiltra sobre nossos corpos e nossas mentes, que nos modela
tão bem a ponto de nos sentirmos felizes na servidão.
É verdade que é inútil e faccioso apenas ressaltar esse lado da
questão. Sob essa condição é todo um mundo novo que emerge aos
olhos de Hobbes.70 Pois essa é a condição para que os homens realizem
suas outras potencialidades, civilizem-se, adquiram o conforto, a
sabedoria etc. Como diz Polin:

“O que estes (os indivíduos) querem? Eles reclamam, no


mínimo, a conservação de suas vidas, um estado de
segurança razoável que, colocando-os ao abrigo de
toda violência, é o único a justificar sua renúncia a usar
de suas próprias forças para se defender. Eles procu­
ram, no melhor dos casos, uma vida mais satisfeita, que
lhes assegure o máximo de bem-estar, de satisfação e de
comodidades compatíveis com a condição humana, the
ornements and conforts of life, incluídos aqui o luxo e a
riqueza, assim como a cultura d.a ciência e os prazeres
que as ciências e as artes proporcionam" .7I

E, num certo sentido, para desenvolver e defender o indivíduo,


que Hobbes se vê levado a limitá-lo, operando assim a passagem do
indivíduo à individualidade — através da propriedade — que tem
como condição o contrato mútuo.72 Limitado enquanto potência natu­
ral, o sujeito floresce plenamente, enquanto ser social.73

k) E chegada a hora de determo-nos e refletirmos um pouco sobre o


resultado dessas análises. A primeira e mais importante coisa a ressaltar,

92
já o fizemos, em parte, em páginas anteriores.74 Hobbes, assim como
Espinoza o fará pouco tempo depois,75 rompe declarada e abertamente
com a concepção tradicional de um universo que, objetivamente, está
estruturado hierarquicamente tanto no plano cósmico quanto no plano
ético. O cosmos, tal como nos apresenta, é objetivamente desfinaliza-
do de forma total. Objetivamente o que existe são corpos em movi­
mento submetidos estritamente a leis mecânicas. A ação desses corpos
sobre o nosso provoca as imagens (e a possibilidade de seu encadea­
mento), como também facilita ou não o movimento vital, acionando o
“conatus” ininterruptamente a manifestar sua tendência original de
conservação e expansão.™ É sobre esse “conatus” que se estrutura toda
uma nova antropologia, no sentido em que tudo é modelado por ele,
assim, não só estrutura toda nossa vida passional, como também a in-
telectiva, na medida em que são os apetites que ordenam e dão coerên­
cia aos discursos mentais. Toda finalidade é subjetiva, e emerge no
campo do sujeito (ou inter-sujeitos) e se constrói a partir do jogo pas­
sional que transforma o mecanismo em teleologia.
Com relação aos apetites, é preciso distinguir. Há o ciclo dos
apetites naturais, que se caracterizam pela forma cíclica e fechada de
realização. Há os apetites especificamente humanos, que rompem o
ciclo biológico-vital, sem negá-lo, e se manifestam fora da circulari­
dade. Estão submetidos não ao ciclo natural, mas o rompem e trans­
formam o círculo numa espiral aberta ou uma reta indefinida de dese­
jos que se sucedem. Esse é o plano do especificamente humano:

"... a felicidade desta vida não consiste no repouso de um


espírito satisfeito. Pois não existe finis ultimus (fim últi­
mo) nem summum bonum (bem supremo) como é falado
nos livros dos antigos filósofos morais. Nem o homem
pode viver quando seus desejos chegam ao fim , tal como
quando seus sentidos e imaginação ficam paralisados. A
felicidade é um contínuo progresso do desejo, de um obje­
to para outro, a obtenção do primeiro sendo um caminho
para a obtenção do segundo. A causa disto é que o obje­
to do desejo do homem não é gozar apenas uma vez, e só
por um momento, mas assegurar para sempre o caminho
de seu desejo futuro. E por isso as ações voluntárias e as
inclinações de todos os homens tendem não apenas a

93
conseguir mas também a assegurar uma vida satisfeita, e
diferem apenas no modo como surgem, em parte da diver­
sidade das paixões, em diversos homens, e em parte da
diferença do conhecimento ou opinião que cada um tem
das causas que produzem o efeito desejado” ,77

Não são muitos os textos que expressam, em tão poucas linhas,


toda uma revolução nas concepções, como este.
Hobbes, parece-nos, foi o primeiro pensador na época moderna
que repensou radicalm ente os fundamentos da antropologia tradi­
cional. Centralizando suas análises em função do conceito de desejo, e
promovendo este último ao posto de noção-chave, subverte toda
ordem antiga do universo ético-político.
E exatamente esse desejo insaciável e inesgotável que vimos bro­
tar freqüentemente em nossa análise do problema do luxo. Percebemos
agora como, de fato, a sugestão de R. Hubert,78 da qual partimos, foi,
de fato, fecunda. Aquilo que fomos detectando como indícios, que
apontavam onde estavam centralizados os supostos da nova análise,
adquire agora contornos nítidos e fundamentos sólidos, através da
análise da antropologia hobbesiana. Não se trata de afirmar aqui —
embora isso seja possível e fortes indícios apontem nessa direção —
que é a antropologia hobbesiana quem guia boa parte das análises dos
apologistas do luxo. Mas, com certeza, é o mesmo universo conceituai
que está presente, nos dois casos. Lá, mais como suposto; aqui, em
Hobbes, explicitado e fundamentado.
Estamos querendo dizer, enfim, que assim como a análise da
querela do luxo só se esclarece quando investigamos seus fundamen­
tos (ou parte deles, no caso, já que, como veremos, há muito mais
coisas em questão), da mesma maneira, a análise de qualquer outra
manifestação (tome-se, por exemplo, a questão do progresso que vai
emergindo lentamente a partir da mesma época e ilustra-se já na
querela dos antigos e modernos) nesse nível deve seguir o mesmo
caminho e, no caso, levar em consideração que um dos conceitos-
chaves que emergem na modernidade (e que funciona boa parte do
tempo como pano de fundo, meio subterrâneo) é o de desejo. Ele será
um dos operadores fundamentais através do qual podemos começar a
entender essa longa e complicada emergência disso que denominamos
a compreensão moderna do sujeito.

94
Esse primado central do conceito de desejo tem um pressuposto e
um a conseqüência. 0 pressuposto, como vimos, é o conceito de “con­
servação de si”, de auto-conservação que pode ser entendido tanto num
sentido estreito, no qual significa auto-conservação biològico-vital,
conservação da vida às secas, quanto num sentido mais amplo, que
aponta não só para a m anutenção das condições de vida e de sua repro­
dução, como também p ara sua expansão, entendida num sentido mais
largo mas, em geral, ligada à noção de expansão da própria potência.
Tanto Hobbes como Espinoza tom aram “conatus” , ao nível humano,
no segundo sentido, reservando o prim eiro ao domínio animal.
A conseqüência é a de que, se todos os atos do sujeito podem e
devem ser compreendidos através da noção de desejo de conservação
de si, então, a totalidade de seus atos apontam, direta ou indiretamente,
nessa direção. Serão sem pre atos dessa natureza que estarão em
questão, em todos os níveis possíveis de análise do sujeito. O egoísmo
é a base natural de toda e qualquer ação. Por isso, denomina-se, às
vezes, como avisamos,79 essa corrente, com a expressão, pouco feliz,
de antropologia do egoísmo.
O termo egoísmo, nesse contexto, não é unívoco. Seu campo
semântico recobre várias acepções, todas aparentadas. Já vimos que
se pode falar num egoísm o pleno e num egoísmo m itigado, quando
analisam os Hobbes.80 M as, fundam entalmente, o que com eça a trans­
parecer é essa imensa capacidade do egoísmo de se metamorfosear,
de se disfarçar, inclusive no seu oposto. A fam osa dissecação da
piedade realizada por H obbes (que já vem dos antigos, é verdade) é
um exemplo entre muitos que se poderia dar. Esse desejo de conser­
vação de si será um m estre na arte do disfarce, e a tarefa consistirá
em que a análise vá retirando progressivam ente essas camadas que,
por séculos, foram pacientem ente depositadas, esse conjunto de ju í­
zos de valores que foram sedimentados em torno dos fenômenos e
que os mascararam e m esm o inverteram seu sentido. Só depois de
operada essa varredura, poder-se-á ter uma visão mais clara de quem
é realmente esse sujeito, que não só disfarça seu egoísm o frente aos
outros, mas também frente a si mesmo.
Compreende-se m elhor algo que está apenas assinalado na
querela do luxo. Afinal de contas, instituído o pacto político, e tendo
sido freado o desejo, não é o luxo uma das formas pelas quais esse
desejo insaciável pode se manifestar? Por trás da querela do luxo,
percebemos, é todo um conjunto de formas de expressão do desejo que

95
estão em questão. Não só se redefiniu o ser humano a partir do desejo
mas procurou-se um espaço legítimo para sua manifestação.
Enfim, colocar o conceito de desejo no centro da análise — e seu
correlato, o egoísmo — significa embrenhar-se por um certo tipo de
leitura que atravessará a modernidade — tendo seu ápice em Nietzsche
e Freud — cujas raízes, salvo engano, estão nessa viragem operada no
século XVII. Viragem, portanto, que possibilitou isso que se resolveu
denom inar a “leitura da suspeita”. E em pleno coração do século XVII
que encontramos já o primeiro exercício sistemático desse tipo de
leitura. Estamos nos referindo, é claro, a La Rochefoucauld que toma­
remos agora, para terminar essa parte de nosso trabalho, como contra­
prova disso que viemos analisando até agora.

3.a) Embora se possa, com fortíssimas razões, sustentar uma


influência direta de Hobbes sobre La Rochefoucauld, como faz muito
bem Y. Zarka,81 não insistimos sobre isso. Para nossos propósitos, é
suficiente apontar que são os mesmos operadores conceituais que estão
norteando a análise, aqui e lá. La Rochefoucauld é um desses homens,
autor de um único livro. Melhor, um autor que explora, num livro, uma
idéia em todas as suas ramificações possíveis. Desde 1658 medita sua
obra e, em 1665, publica as Réflexions, Sentences et Maximes
.S2
M orales Como dissemos há pouco, é ele, ao que parece, que inicia
na modernidade essa leitura da suspeição ou da desconfiança, procu­
rando colocar em xeque aquilo que nos é dado e procurando achar ou­
tros móveis, outras chaves explicativas para aquilo que é imediata­
mente apresentado ao sujeito. Leitura que tem como suposto a idéia de
que aquilo que está dado na superfície tem uma explicação distinta, e
às vezes mesmo, contrária a isso mesmo que está sendo dado.
Isso é afirmado um sem-número de vezes pelo autor. Tomemos,
como exemplo, a máxima 72:

“Se julgam os o am or pela maior parte de seus efeitos, ele


se assemelha mais à raiva do que à amizade” P

Não nos iludamos com as expressões refinadas do autor. Trata-se


de um a característica de estilo ou um a técnica de prudência. O que está

96
sendo dito é claro: o amor, bem analisado, é um ódio disfarçado. Disso
advém um ponto em que La Rochefoucauld não se cansa de insistir: o
amor, tal como o entendemos comumente, não existe. A máxima 76 diz:

“Ocorre com o verdadeiro amor assim como com a


aparição dos espíritos: deles todo mundo fala, mas pou­
cas pessoas os viram" }A

É nessa linha que La Rochefoucauld procede. Se nossas ações e as


noções (como o amor), pelas quais norteamos as primeiras, são efeitos
de superfície, que um a leitura atenta mostra a inconsistência e, às
vezes, que estão alicerçadas no seu contrário, então, isso engendra
duas temáticas correlatas:

l â) Todos os seres humanos são movidos, na maioria das vezes,


por ilusões. Num certo sentido (veremos qual, logo mais), a ilusão é
constitutiva do ser humano, tal é a sua estrutura. O amor, acabamos de
ver, é algo inexistente. Entendamo-nos: o amor puro e desinteressado
ao outro. Nesse sentido ele só pode ser algo inventado, forjado pelos
homens e só acreditamos nisso porque deve haver motivos muito
fortes. Se não fossem eles, isso nem estaria em nós:

“Existem pessoas que nunca teriam sido apaixonadas se


nunca tivessem ouvido fa la r do am or” P

2-) A segunda temática que se delineia nessa leitura, que vê algo


outro do que aquilo que aparece na superfície, que vê nessa superfície um
efeito — ilusão, é a seguinte: os sujeitos, os próprios sujeitos, desconhe­
cem a si mesmos. Ou conhecem-se minimamente. Falar em alienação
com respeito a si talvez não seja muito abusado. Tomemos a máxima 43:

“Freqüentemente o homem acredita conduzir-se, quando ele


é conduzido, e enquanto que por seu espírito ele tende a uma
meta, insensivelmente seu coração o leva a uma outra” .86

97
Essas duas temáticas levam a um terceiro ponto, que é capital em
L a Rochefoucauld. Trata-se da dicotomia que instaura entre os
m otivos aparentes de um a ação ou de um sentimento e os motivos
reais dessa mesm a ação ou sentimento. Para sermos mais precisos:
essa distinção é um a conseqüência necessária, a partir do momento
em que se fala no que aparece na superfície (do discurso ou da cons­
ciência), e o que está atrás dela, que constitui seu verdadeiro móvel,
sua verdadeira causa. Existe, portanto, uma causa, um motor real de
nossos atos mentais e de nossas ações, e uma outra, que é aparente. A
leitura dos textos de La Rochefoucauld não deixa a menor dúvida
sobre isso. M ais ainda: aponta a topologia dessa dicotom ia.
A creditamos que o motor de nossas ações está no nosso espírito quan­
do, na verdade, está em nossas paixões. Acreditamos que somos guia­
dos pela razão, pelo entendimento, quando, de fato, são as paixões
que governam soberanam ente nossa existência.
E, o grande trabalho de mascaramento consiste exatamente em
ocultar cuidadosamente esses motivos passionais, em disfarçá-los, em
maquiá-los, e lhes conferir uma aparência aceitável, inclusive para o
próprio sujeito. De onde decorre esse travestimento entre o que somos e
como nos fazemos aparecer, seja para nós mesmos, seja para os outros,
através de uma interpretação particular de nossos pensamentos e atos.
Daí decorre também essa montagem de ilusões que f az com que o sujeito
acredite ser exatamente o contrário do que é e falsifique seus sentimen­
tos, de modo que passe a ser um ilustre desconhecido de si mesmo. O
espírito (sinônimo, no autor, de razão, entendimento) é essa instância da
alma que se sobrepõe ao coração (paixão) e a desnatura. É o espírito, em
última análise, que é o responsável por essa grande operação.
Isso, por um lado, porque, de outro, indireta e insidiosamente, as
paixões atingem seus objetivos e deixam rastros e pistas pelo que o
leitor atento não deixa de coletar, investigar e interpretar. Estabelece-
se, assim, uma espécie de dialética87 entre o espírito e o coração. De um
lado, as paixões, por diferentes caminhos e mesmo metamorfoses,
acabam atingindo seus objetivos. D e outro lado, se é permitido o
anacronismo, o espírito não deixa de “racionalizar”, de encontrar expli­
cações “satisfatórias” para os mesmos fenômenos, provocando essa
espécie de alheamento de si, esse desconhecimento, que faz com que,
na maioria das vezes, o sujeito viva mergulhado na ilusão.
b) Mas por que esse trabalho de ocultamento dos motivos reais de
nossas ações? Por que esse mascaramento da paixão? Qual a razão desse

98
trabalho de polimento, de laminação? O que há, enfim, nas paixões, de tão
condenável, a ponto de precisar não só ser escondida dos outros, como
também de si mesmo? Na maioria das vezes, é o trabalho de ocultamento
frente ao outro que acaba por produzir o efeito de ocultamento frente a si:

“Estamos tão acostumados a nos disfarçar para os outros


que enfim disfarçamo-nos a nós m esmos” .88

É evidente que não se trata de disfarçar e ocultar qualquer paixão.


A piedade, a benevolência, a caridade etc. são aceitas e louvadas por
todos. Não são elas, é claro, que são o objeto desse trabalho. Pela pura
e simples razão de que essas “virtudes” são exatamente o resultado
desse trabalho de metamorfose, e não aquilo que está na origem.
Há, portanto, um originário — um a paixão, ou um conjunto delas
— que são o objeto dessa operação de ocultamento, de mistificação, de
disfarce realizada pelo espírito, que resulta nesse conjunto derivado,
citado há pouco, esse sim aceitável para o sujeito. Assim, essa dialéti­
ca, a que aludimos acima, deve ser mais bem caracterizada, operando
uma correção, como um a ação do espírito que atua sobre algo ori­
ginário para transformá-lo num produto derivado.
Mas, de que se trata exatamente nesse trabalho? Tomemos alguns
exemplos significativos:

“N a maior parte dos hom ens, o amor pela justiça é ape­


nas o temor de sofrer a injustiça” .89

“Não podemos amar nada senão em relação a nós, e ape­


nas seguimos nosso gosto e nosso prazer quando prefe­
rimos nossos amigos a nós m esmos”

“A amizade mais desinteressada é apenas um comércio on­


de nosso amor próprio sempre se propõe algo a ganhar”.91

“Nosso arrependimento não é tanto um pesar pelo mal


que fizem os quanto um temor daquele que pode nos
acontecer” .92

99
“A piedade é freqüentem ente um sentimento de nossos
próprios males nos males de outrém” P

“Chora-se para ter a reputação de ser terno; chora-se


para ser lastimado; chora-se para ser chorado; enfim,
chora-se para evitar a vergonha de não chorar”.94

"... somos mais felizes pela paixão que temos do que por
aquela que causam os” .95

“Qualquer que seja o bem que digam de nós, não nos


ensinam nada de novo”

“N o ciúme existe mais am or próprio do que am or” ,97

Inútil multiplicar as citações. Quase todas vão na mesma linha e


reenviam ao mesmo ponto. Nessa implacável anatomia do espírito, o
que, acima de tudo, coloca-se em evidência é o fato de que dois são os
motores fundamentais que alimentam todas as nossas afecções, que
orientam nossa conduta: o egoísmo e a vaidade. No léxico de La
Rochefoucauld, o egoísmo toma várias denominações: interesse, amor
próprio, amor de si. Tendo isso em conta, releia-se a máxima 232:

“Qualquer que seja o pretexto que dermos para nossas


afeições, freqüentemente é apenas o interesse e a vaidade
que as causam” .98

c) Podemos agora tentar perceber com maior clareza o movimen­


to de pensamento de La Rochefoucauld. Existem, originariamente,
esses dois grandes móveis passionais. Todos os seres humanos são pro­
fundamente egoístas e vaidosos. Todos os seus atos giram basicamente
em tom o deles. O que se procura sempre é alimentar, abastecer o nosso
interesse, nosso am or de si ilimitado. Não amamos, queremos ser ama­
dos. Não somos honestos, mas somos orgulhosos e, por isso, nos com­
portamos honestamente. Não somos piedosos, mas apenas nos identi­
ficamos com a miséria dos outros porque percebemos que poderíamos,

100
eventualm ente, estar no seu lugar. M ascaram os nossas paixões
primárias porque esse é o meio mais conveniente para atingirmos nos­
sos fins: se não fingirmos amar, não seremos amados. Mas é preciso
que o sujeito acredite amar para se acreditar amado. E, nessa estraté­
gia sutil, nesse mecanismo ardiloso, acabamos por acreditar que real­
mente amamos o outro, quando só sabemos amar a nós mesmos.
Desse modo, qualquer que seja o sentimento ou a ação que se con­
sidere, no fundo, sempre encontrar-se-á esse egoísmo profundo e
insaciável. A virtude? Um meio, um a estratégia para se atingir os fins.
Constituem a espuma de algo que subjaz:

“A s virtudes perdem-se no interesse assim como os rios


perdem-se no m ar”.99

As virtudes servem ao egoísmo tanto quanto os vícios mas, na


maioria das vezes, melhor que os últimos. Por isso, esse longo e traba­
lhoso processo de inversão. O vício é original, mas a virtude consegue
melhor os objetivos polifacéticos de satisfazer o outro, a si mesmo e ao
egoísmo. Não é por outra razão que a epígrafe da obra é a seguinte:

“N a maior parte das vezes nossas virtudes são apenas


vícios disfarçados” .100

N uma fórmula mais desenvolvida, diz:

“Estam os de tal form a preocupados em nosso fa v o r que


aquilo que freqüentem ente tomamos p o r virtudes é,
com efeito, apenas um certo número de vícios que se
lhes assemelham, e que o orgulho e o am or próprio nos
disfarçaram" ,101

d) Esse é o motor básico de todo ser humano, esse amor de si, que
faz, ou tenta fazer, com que todas as outras coisas e pessoas girem em

101
tom o dele. No fundo, somos todos idólatras de nós mesmos e, conferi­
dos os meios, sempre usaremos os outros que nos circundam para satis­
fazer esse egoísmo. O outro nada mais é que um meio para satisfazer
nosso interesse, tal como (usando uma metáfora de La Rochefoucauld)
as abelhas apenas sobrevoam as flores para delas extrair o pólen. O ser
humano configura-se como possuidor de desejos impetuosos e de uma
maravilhosa arte para esconder seus desígnios.
Mas, e isso é uma hipótese, La Rochefoucauld parece ir mais longe.
Esse egoísmo é fundamentalmente necessário e essencial a todo ser humano:

“O interesse é a alma do amor próprio; deform a que, assim


como o corpo privado de sua alma fica sem visão, sem
audição, sem conhecimento, sem sentimento e sem movi­
mento, da mesma maneira o amor próprio, separado assim
de seu interesse, não vê, não ouve, não sente e não se move
mais; daqui provém o fa to de que um mesmo homem, que
por seu interesse corre a terra e os mares, torna-se i-epenti-
namente paralítico pelo interesse dos outros” .102

O texto aponta claramente na direção de que não só o interesse é


intrínseco ao ser humano, faz parte essencial de sua natureza, como
também que, sem ele, estaríamos condenados à inércia. Nessa linha de
raciocínio, La Rochefoucauld é um dos que, sem dúvida, contribui
para a laicização do tema do egoísmo, para uma naturalização radical
deste. O egoísmo é uma das características essenciais e naturais do ser
humano e, através do qual, ele é o que é. O que, aos olhos da teologia
cristã, só poderia soar como heresia. Que o homem é egoísta, estava-
se cansado de saber e afirmar. Não só se sabia, como a Igreja nunca
deixou de combatê-lo fortemente. Bossuet, vez por outra, comete lon­
gas invectivas contra o egoísmo. N a verdade, aos olhos da Igreja, o
egoísm o (e não esse amor de si natural e necessário à preservação do
próprio sujeito) é uma das conseqüências da queda original. E o bom
cristão ama seu próximo tanto quanto a si mesmo. A tese de La
Rochefoucauld tom a isso impossível. Para o cristão, o ser humano não
é naturalmente egoísta. A tese, rigorosamente tomada, é inaplicável ao
casal original antes do pecado. Ora, La Rochefoucauld introduz essa
idéia quando estabelece a comparação que citamos acima. Essa parece

102
ser um a das reviravoltas operadas por ele, que foi acompanhada de
outra, diga-se, tão importante quanto esta última.
Se na origem o que temos é um egoísmo feroz que, por mais que
se metamorfoseie, nunca deixa de ser o que é; se a virtude nada mais
é do que o vício disfarçado; se o primeiro é original e congênito, isso,
então, não significa dizer que o mal está inscrito originariamente em
nossa natureza? Essa idéia de uma maldade originária (pelo menos
como um dos ingredientes de nossa natureza) é um a possibilidade de
leitura que La Rochefoucauld abre para o leitor. Não se encontram afir­
mações categóricas, mas coisas ditas en passant, que levam o sujeito a
pensar. Como esta, por exemplo:

“Nada é tão contagioso quanto o exemplo, e nós nunca


fazem os grandes bens nem grandes males que não pro­
duzam bens e males semelhantes. Nós imitamos as boas
ações por emulação e as más pela malignidade de nossa
natureza, que a vergonha retinha prisioneira e que o
exemplo põe em liberdade”

Dizer que a maldade está inscrita no homem, que é um atributo de


nossa natureza, é operar, talvez pela primeira vez na história (já que
com relação à naturalização do egoísmo, Hobbes o precedeu), uma
inversão de perspectiva. O mal deixa de ser o que fora desde Platão:
uma privação e uma negação. Uma ausência, em suma. Tendência mais
que reforçada em Sto. Agostinho que, ao longo de seu texto contra os
maniqueus, explora sistematicamente essa idéia, mostrando que o mal
nada mais é que a privação do bem e que a privação absoluta é o nada:

“Nenhuma natureza, portanto, é má, enquanto natureza,


senão enquanto diminui nela o bem que tem. Se o bem que
possui desaparecesse por completo, ao diminuir-se, assim
como não subsistiria bem algum, do mesmo modo deixaria
de existir toda natureza, não somente a que fingem os
maniqueus, na qual ainda se encontram, tantos bens que
causa, assombro sua obstinada cegueira, senão que pere­
ceria toda natureza que alguém pudesse imaginar” .m

103
É essa tradição que prevaleceu no Ocidente: pensar o mal como a
ausência do bem e não algo que tenha, em si mesmo, alguma positivi-
dade. L a Rochefoucauld entreabre essa possibilidade. É possível se
pensar a positividade do mal nesse sentido. Laicizada e secularizada a
natureza humana, o mal passa a ter direito de cidadania e seus efeitos
tom am-se tão reais quanto ele mesmo e seu contrário.105
É chegada a hora de abordarmos uma outra faceta dessas questões,
o que nos levará, simultaneamente, a um aprofundamento delas e a um
avanço cronológico.

104
NOTAS

1 P. D uhem , L e S ystèm e du M o n d e, P aris, H erm ann, 1958-1973.


2 A . K oyré, E stu d o s G alilaicos, L isb o a, D . Q uixote, 1986, p. 23.
3 R . L enoble, M ersen n e e t Ia N a issa n ce d u M écanism e, P aris, Vrin, 1943, p. 5 e seg.
4 A . K oyré, op. cit., p. 93.
5 E. B urtt, L o s F u ndam entos M eta físicos de la C iência M oderna, B. A ires, E.
Sudam erican a, Í960, p. 27.
6 É interessante notar, de passag em , que a concepção epicurista d o universo é a que
tem sem elhanças m ais m arcantes c o m a concepção m odem a: a te o ria d o direito de
E p icu ro apresenta m u ita sim ilaridade com a que vai firm ar-se a p artir do século
X V II. S u a co n cepção do p razer será retom ada n a m odernidade, assim com o sua com ­
p reen são anti-finalista do m undo. A ssim , tam bém , os prim eiros rastros de um a con­
cep ção u tilitária, tanto c o m o h edonista, encontram -se e m D em ócrito. E evidente q ue
o atom ism o antigo é bem d iferen te do m odem o. Sobre esse ponto não há a m enor
dúvida. M as essas sem elhanças n ão apontariam p ara certas estruturas com uns a cer­
tas representações d a realidade?
7 Santo Tom ás, Sum a contra C en tile s, M adrid, B A C , 1967, vol. II, p. 172-4.
8 Id ., S u m a de Teologia, M adrid, B A C , 1989, vol. II, partes I-II, “T ratado das Paixões
d a A lm a”, q u estão 25, art. 2 , p. 239.
9 A . M atheron, In d ivíd u et C o m m u n a u té chez Spinoza, P aris, M inuit, 1969, p. 83-4.
E le continua:

“U m tal debate não é d e fo rm a a lgum a gratuito. A quilo que está em jogo


a trá s dessa querela d e p recedência é toda uma concepção d o h om em e,
em certo sentido, toda um a concepção do m undo. Poderíam os até m es­
m o p erguntar se o conflito teórico, aqui, não exprim e, à sua maneira,
um a realidade vivida m uito intensam ente no século X V II: a p assagem
lenta e difícil do hom em m edieva! ao hom em m oderno" (id. ib.).

10 E. G ilson, L e T hom ism e, P aris, Vrin, 1942, p. 374.

105
11 Parafraseio Matheron, op. cit., de onde extraí a citação acima de Gilson e essas con­
siderações finais. Cf. L e T ho m ism e, ed. ciL, p. 374, segundo Matheron.
12 J.F. Sénault, D e 1’U sage d e s P a ssio n s , Paris, Fayard, 1987, p. 113.
13 lbid.,p. 56.
14 lbid., p. 58.
15 lbid., p. 64-5.
16 A influência de Descartes não pode e não deve ser minimizada. Mas lembremo-nos
de duas coisas: 1) o texto de Hobbes sobre a natureza humana já circulava desde
1640. O T ratado d as P a ix õ e s de Descartes é de 1649. A obra, ao que tudo indica,
não parece ter influenciado Hobbes de forma importante nos seus escritos poste­
riores; 2) a grande herança cartesiana, no tratamento dessa questão, parece ter sido
a aplicação do mecanicismo ao domínio humano, o qual pode ser percebido, em li­
nhas gerais, no D is c o u n d e la M éthode. Isso exercerá uma influência decisiva, mas
(atvez indireta, porque, como assinala Lenoble {M ersenne e t la N aissance du
M écanism e, ed. cit., p. 3), uma coisa é considerar esse mecanicismo cartesiano re­
trospectivamente, aí ele aparece como dominante porque triunfante; outra coisa é
observar o desenrolar das idéias na época. Percebemos então que havia vários
mecanicismos, similares, mas não idênticos — entre eles o de Hobbes — que
seguiram vias próprias.
17 Th. Hobbes, P h iio so fica l R u d im en ts C oncerning G overnm ent a n d Society, in
E n g lish W orks, Ed. Molesworth, vol. II, “Preface to the Reader” , p. XIV.
18 lbid., vol. I, parte I, cap. VI, § 4, p. 68-9. Cf. também § 6.
19 ld ., S ix L e sso n s to the P ro fesso rs o fth e M a th e m a tk s, in ed. cit., vol. VII, p. 210.
U m p o u co m ais à fren te lem os:

‘as regras de d em on stração são de duas espécies: um a, que os p rincípios


p recisam se r d efinições v erdadeiras e evidentes; a outra, que as infe­
rências p recisam ser n ecessárias. E das definições verdadeiras e ev i­
dentes, as m elhores são aqu elas q ue declaram a causa ou geração do
sujeito cujas p aix õ es próp rias devem ser dem onstradas. Pois a ciência
é aquele conhecim ento q ue é derivado da com preensão da causa. Mas
quando a cau sa não aparece, então nó s podem os, ou antes precisam os
d efin ir algum a pro p ried ad e co nhecida do sujeito, e desta derivar algu­
m a v ia p o ssível, ou vias, d a geração” (p. 212).

20 Id ., D e H om ine, P aris, B lanchard, 1974, cap. X , § 5, p. 146; trad. italiana, Torino,


UTET, 1972, p. 590.
21 lbid., trad. francesa, X , § 5, p. 147; trad. italiana, p. 591.
22 Supondo, no prefácio de D e C ive, a sociedade política, Hobbes já dá indicações de
com o se d eve com preender tanto a natureza hum ana quanto a natureza do poder políti­
co. M esm o onde há soberania, diz ele, com o vocês se com portam ? Q uando vão via­
jar, não se m unem d e um bom p a r de pistolas? Quando vão dormir, não fecham cuida­
dosam ente a p o rta de suas casas? E não trancam tam bém , a sete chaves, todos os seus
bens valiosos? Isso m ostra bem a idéia que se faz do próxim o, conclui. (English
Works, ed. cit., vol. II, p. XV. O exem plo reaparece no cap. 13 do Leviathan).

106
23 Id ., “D e C orp o re” , E n g lish W orks, vol. I, cap. I, § 5.
24 Id., “H um an N ature”, E nglish W orks, vol. IV, p. 2.
25 Ibid., — , p. 2-3. E ssa hipótese, im portantíssim a na elaboração da filosofia do co­
n hecim ento de H obbes, n ão d eix a de ser o equivalente, nesse nível, d a hipótese da
dissolução da sociedade, n o p lan o político.
26 O enunciado e as provas estão na op. cit., cap. II, § 4-9, p. 4-8.
27 H obbes, op. cit., cap. Ill, § 1, p. 9.
28 Id., L evia th a n , Penguin B ooks, 1976, p. 94.
29 M esm o nos casos do d iscurso casual, H obbes insinua que, com um pouco de
atenção, acabam os p o r d esco b rir sua finalidade oculta que dá coerência a esse
m osaico, à prim eira v ista, desconexo. Cf. L eviathan , ed. cit., cap. Ill, p. 95.
30 Ibid., ed. cit., cap. V I, p. 118.
31 R. O adave, U n Théoricien A n g la is du D roit P ublic a u X V U ‘ S tèd e -T h o m as Hobbes,
N. York, A m o P ress, 1979 (reprodução da ed. de 1907), p. 33.
32 M . M alherbe, T hom as H obbes, Paris, Vrin, 1984, p. 115-7.
33 T . M agri, Sag g io su Th. H o b b es, M ilano, II Saggiatore, 1982, p. 84: “Prazer e d ese­
jo coin cid em ”.
34 T h. H obbes, L eviathan, ed. cit., cap. V I, p. 118-9. “C onatus” é a palavra q ue aparece
na e d ição latina. A m esm a definição de “E ndeavour” está no D e C orpore, English
W orks, cap. XV, § 2, p. 206.

E m H u m a n N ature, esse m ovim ento anim al interno é assinalado d a seguinte form a:

I, I, § 7: “os p o deres da m ente são de duas espécies, cognitivo, im aginativo ou co n ­


ceptivo e m o to r"’, E ng lish W orks, IV, p. 2.

I, IV, 9: “Este poder d a m ente q ue nós' cham am os de m otor difere do p oder m otor do
corpo, pois o poder m otor do corpo é aquele pelo qual outros corpos são
m ovidos, e nós o cham am os de fo rç a \ m as o poder m otor d a m ente é aquele
pelo qual a m ente dá m ovim ento anim al àquele corpo n o qual ela existe; seus
atos são nossas afecções e p aixões, dos quais falarei e m g eral”, id. ib., p. 30.

Y. Z ark a tem razão q uando a firm a q ue as e xposições de H obbes, nesse terreno, n ão c oin­
cidem nos três textos clássicos: E lem en ts o f L a w , L eviathan e D e H om ine. Isso é v er­
dade. M as, no s parece, elas não se co ntradizem , m as sim , se com plem entam . Cf. Zarka,
L a D écisio n M éta p h isiq u e de H o b b e s, Paris, Vrin, 1987, p. 155.
35 Id., L evia th a n , ed. cit., cap. V I, p. 119.
36 Id., D e H om ine, X I, § 6. Trad, francesa p. 156; trad, italiana p. 595. O texto latino
diz: “su a c u iq u e conservatio” (O pera L atina, M olesw orth, vol. II, p. 98).
37 Id., L ev ia th a n , ed. cit., cap. V I, p. 119-120.
38 Ib id ., ed. cit., cap. V I, p. 120.
39 Ibid.
40 Ibid., cap. V I, p. 119.
41 P o r exem plo, D e H om ine, X I, § 3.

107
42 E s s e é u m d o s p o n to s — o o u tr o é o fa to d a lin g u a g e m — o n d e s e a p ó ia R . P o lin n a
s u a b e la in te r p r e ta ç ã o d e H o b b e s e m : P o litiq u e e t P h ilo s o p h ie c h e z T h . H o b b e s ,
P a r is , V rin , 1 9 7 7 .
43 M a th e r o n , o p . c it. ( n o ta 9 ), p . 8 8 . O s g rifo s s ã o d o autor.
44 T h . H o b b e s , L eviathan, e d . c it., c a p . V I, p . 129. M e s m a d e fin iç ã o e m H um an
N a tu r e , E n g lis h W o rk s, v o l. IV , c a p . 7 , § 6 , p. 33.
45 T h . H o b b e s , o p . c it., c a p . X V , p . 2 1 2 , g rifo n o sso , E s te ú ltim o a rg u m e n to d e v o a Y.
Z a rk a , o p. c it., p . 2 6 9 .
46 I b id ., e d . c it., v o l. IV , c a p . V I I , § 1.
47 Ib id ., ed , c it., c a p . V I, p . 12 1 -2 .
48 C f, n o ta 3 3 , c o m re la ç ã o à a firm a ç ã o d e T. M a g ri. A a firm a ç ã o d e H o b b e s é m a is
nuançada:

“ D e f o r m a q u e d e s e jo e a m o r s ã o a m e s m a c o is a ; e x c e to q u e p o r
d e s e jo n ó s s e m p r e s ig n if ic a m o s a a u s ê n c ia d o o b je to , p o r a m o r, o
m a is c o m u m e n te a p r e s e n ç a d o m e s m o . Ig u a lm e n te , p o r a v e rs ã o
n ó s s ig n if ic a m o s a a u s ê n c ia , e p o r ó d io a p re s e n ç a d o o b je to ”
(L e v ia th a n , e d . c it., p . 119).

49 A . M a th e ro n , o p . c it., p . 87.
50 N e ste p o n to p o d e m o s a v a lia r a d istâ n c ia qu e se p a ra a c o n ce p çã o m o d ern a d a co n ­
c e p ção clá ssic a aristo télica. P a ra A ristó tele s, co m efeito, o p raz er é o sinal de qu e a
“ o u sia ” a tin g iu a su a p e rfe iç ã o , o seu a cabam ento, a su a rea lização (cf. É tica a
N icô m a co , L iv ro s V II e X , so b re tu d o o últim o). S o bre este po n io pod e -se consultar,
c o m p ro v e ito , o s tex to s clá ssic o s d e F estugière: 1) “ L a D o ctrine d u P laisir des
P re m ie rs S ages a É p ic u re ” , in R e v u e d es Scien c es P h ilo sophiques er T hé o lo g iq u es, n.
2 , A b ril d e 1936, p. 2 3 3 -6 8 ; 2 ) A risto te - L e P la isir, P aris, V rin, 1960. D ois textos de
J. F rè re são ta m b é m b asta n te elu c id a tiv o s “L e P aradoxe d u P la isir s e lon A ristote”, in
R e v u e P h iio so p h iq u e, n. 4 , 1979, p. 4 27-42; e L es G recs et le D é sir d e V Ê tre, Paris,
B elles L ettres, 1981, 3a p arte, p . 287 e seg. A difere n ça fu ndam ental entre A ristóteles
e H o b b es e stá, p a rece-n o s, q u e , no p rim eiro, sinaliza-se p ara u m a realização, para um
acab am en to , e n q u an to que, p a ra H o b b es, é o inacabam ento qu e d efine o d esejo e, por­
tan to , o prazer. D e resto, desejo e p ra z e r são coisas distintas e m A ristóteles. A sem e­
lh a n ç a está e m qu e, p a ra am b o s, p ra z e r e d esprazer são aparições concom itantes ao
m o v im en to (ativ id ad e e m A ristóteles), co n fo rm e sejam favoráveis o u n ão a o m ovi­
m en to v ital em H obbes; à realização da substância em A ristóteles. D e resto, essas
co m parações, en tre dois un iv erso s conceituais tão diversos, são sem pre precárias.
51 T h . H o b b es, H u m a n N a tu re, E n g lish W orks, IV, cap. V II, § 6, p . 35.
5 2 E s s a é u m a v e lh a te o ria , de o rig e m m édica, q u e H o b b e s h e rd a e in c o rp o ra n o seu
d isc u rso .
53 T h . H o b b es, H u m a n N ature, ed . cit., cap. V II, § 3, p. 32. Cf. D e H om ine, X I, § 4,
trad. italian a p. 594:

“M as p o rq u e alguns d esejam e fo gem d e u m a coisa e o utros d e o utra..."

108
Ainda, em Human Nature, ed. cit., X, § 2, p. 54:

“M as nó s v em os p o r experiên cia que alegria e tristeza não procedem ,


e m todos os hom ens, das m esm as causas, e que os hom ens diferem
m u ito n a constituição do co rp o ” .

5 4 Th. H o bb es, Levia th a n, ed. cit., cap. VI, p. 120.


55 M ais um a vez, aqui, a exceção histó rica é Epicuro.
56 T h . H obbes, H um an N ature, ed. cit., cap. V II, § 3, p. 32; Cf. Leviathan, cap. VI:

“M as q u alquer co isa é o ob jeto do apetite ou desejo de qualquer


hom em ; ela é aquilo q ue ele, p o r seu lado, cham a de bem . E o objeto
de su a av ersão e ó d io e le c h am a d e m a l..." (ed. cit., p. 120);

Cf. tam b ém D e H om ine, X , 4:

“Todas a s coisas q ue desejam o s, enquanto desejam os, têm o nom e


co m u m de bem e todas as coisas das quais fugim os, o nom e com um
de m al. P o r isso A ristóteles definiu ju stam ente o b em com o isso que
todos desejam . M as p orque alguns desejam e fogem de u m a coisa e
outros de o utra, necessariam ente m uitas coisas p ara alguns são boas,
p ara outros m ás" (trad. italian a p. 594; trad. francesa p. 154).

57 E d. cit., cf. p arte I, nota 92.


58 E ssa teo ria irá in fluenciar p rofun d am ente tam bém toda a obra do M arquês de Sade.
D esd e seus p rim eiros textos im portantes (com o o D iálogo entre um P adre e um
M orib u n d o ), p assando p o r to d a sua o bra “m aldita”, até suas últim as produções, os
ch am ados “ro m ances histó rico s” (m ais fantasiosos que históricos, diga-se de pas­
sagem ), com o H istoire S ecrète de Isa belle de Bavière, S ade não se cansou de bater
n essa tecla. T om em os alguns exem plos:

“Todas essas coisas dep en d em de nossa conform ação, de nossos


órgãos, d a m aneira p e la qual eles se afetam , e nós não som os sobera­
nos p ara m udar nossos gostos sobre isso assim com o não o som os p ara
variar a form a de n ossos co rp o s” (Les 120 Journées de Sodom e, in
O euvres C om plètes de S a d e, P aris, Pauvert, 1986, T. I. p. 60).

É exatam ente essa teoria que serv irá de apoio a Sade p ara que desenvolva sua idéias
sobre a n aturalidade do s d iferentes gostos:

109
“ O h não, não , T ereza, tu n ão com preendes o q u e é e ste praz er pa ra u m a
cab eça organizada co m o a m inha... N ão te im agines, Tereza, que nós
sejam os feitos com o o s outros hom ens; trata-se de u m a construção
inteiram ente d i f e r e n t e - (J u stin e, ou les M alheurs de la Vertu, in
O .C ., ed. c it., vol. III, p. 79; o s grifos são nossos).

Teoria que, se levada às ú itim as conseqüências, nos obriga a rever a idéia d e Sade como
elaborador e p ro pagador d e um “evangelho d o m al”. R igorosam ente, a inclinação p ara o
b em é tão natural quanto a contrária. E é exatam ente isso que Sade deixa claro nas suas
três versões de J u stin e (texto, portanto, n ão alterado e im possível de ser im putado a um
“deslize”). C om efeito, q uando D ubois, u m a dessas típicas heroínas sadeanas, tenta a todo
custo convencer Justine de seus princípios recebe com o resposta d e Justine o seguinte:

“Seja, m as raciocinem os p o r u m m om ento a p a rtir d os m esm os p rin c í­


pios de filo so fia q ue vós. C om que direito p retendeis que m inha c o n s­
c iên cia seja tão firm e qu an to a vossa, a p a rtir do m om ento em que ela
n ão foi acostum ada, desd e a infância, a v encer os m esm os prejuízos; e
a que título exigis q ue m eu espírito, que não é organizado com o o
vosso, p o ssa ad o tar os m esm os sistem as?” (Les Infortunes de la Vertu,
O .C ., ed. cit., vol. II, p. 366. O texto reaparece idêntico em Justine,
vol. III, p. 267, e na N o u velle Ju stin e , vol. III, p. 336; os grifos são
n ossos). É im portante ter em m ente q u e, em nenhum a das três versões,
D ubois responde à essa questão de Ju stine. E nem poderia.

59 R. P olin, op. cit., p. 112.


60 M ais u m a vez, a exceção é Epicuro.
61 T h. H obbes, op. cit., Eng lish W orks, ed. cit., vol. II, § 2. N a n ota a esse parágrafo
H obbes afirm a:

“D esde q ue v em os atualm ente um a sociedade constituída entre os


hom ens, e n inguém vivendo fo ra d ela, desde q ue d iscernim os todos os
hom ens desejosos de co ngraçam ento e m útua correspondência, pode
p a re c e r um a m agn ífica esp écie de estupidez colocar n a p rópria entra­
d a desta doutrina um tal o bstáculo d iante do leitor, com o negar que o
hom em nasceu p a ra viver em so ciedade”.

62 Cf. n o ta 56, texto do Leviathan.


63 T h. H obbes, L evia th a n , ed. cit., cap. V I, p. 120. Cf. D e H o m in e , X , § 5:

“P orque antes d a estipulação dos pactos e da instituição das leis, não


existia entre os hom ens, assim com o entre as bestas, nem ju stiça nem

110
in ju stiça algum a, nem bem nem m al público” (trad. italiana, p. 591;
trad. francesa (deficiente), p. 147).

64 Id ., D e H o m in e , X III, § 9 (trad. italiana, p. 616; trad. francesa, p. 175).


65 C f. o tex to do D e H om in e citad o anteriorm ente, nota 20.
66 C f. item g) desta segunda parte.
67 A. D arbon, É tu d es S pinozistes, Paris, PUF, 1946, p. 146.
68 Isso q ue d enom inam os os “ d ireitos do hom em ” não seriam as condições ele­
m entares de funcionam ento d esse egoísm o m itigado? Tem os a im pressão, m as não
e stam os segu ro s quanto ao valo r da com paração — que o que se p assa aqui é algo
sim ilar ao q ue se p assa no in terio r do aparelho psíquico, segundo Freud. A o fun­
c ionam ento irrestrito do princípio do prazer, é necessário que se instaure um freio
— p rin cíp io de realidade — q u e realize os ajustes delicados, m as necessários, paia
o bom funcionam ento do aparelho e p a ra q ue ele atinja, sem riscos, o prazer já que,
um aparelh o q ue funcionasse irrestritam ente segundo o princípio do p razer, levaria
o su jeito à aniquilação. E sse é um d os paradoxos que Freud nos legou sobre o pra ­
zer. Sim ilarm ente, o estad o de natureza, em bora ofereça, no terreno do possível,
u m a gam a im ensa de possibilidades de satisfação do desejo, o sujeito, no entanto,
se vê am eaçad o p o r todos o s lados. A ssim ...
69 H av erá sem pre u m resíduo irredutível.
70 É to d o um univ erso q ue está sendo su focado p ara S ade (cf. n ota 73).
71 R. P olin, op. cit., p. 115.
72 Cf. R . Polin, op. cit., p. 115-6.
73 É exatam ente isso que vai recusar Sade. Partindo, praticam ente, das m esm as prem is­
sas que H obbes, tom a o cam inho inverso. N ão só denuncia todas as violências e
im posturas q ue a sociedade perpetra com relação aos indivíduos, com o vai até a
d enúncia do pacto social enquanto tal. N ão opõe, a um m odelo de sociedade, um
outro. D enuncia a sociedade enquanto ela, qualquer que seja, necessariam ente opera
esse sufocam ento. N ão se trata, nunca, em Sade, de propor um outro m odelo de
sociedade que escape disso. Isso é impossível. O que proporá é um m odo de vida que
chega nas franjas do anarquism o, se é que não está nele. N a H istoire de Juliette lemos:

“O h v ó s q ue vos d ispusestes a g o v ernar os hom ens, evitai prender q ual­


q u er criatura! D eixai-a fa z e r seus arranjos inteiram ente só, deixai-a
pro cu rar ela m esm a aquilo q ue lhe convém , e logo vos apercebereis
q ue tudo só cam inhará m elh o r” (op. cit., in ed. cit., vol. V III, p. 110).
N o m undo m oral, assim com o no econôm ico, é m elhor d eixar as coisas
acontecerem p o r si m esm as, sem nenhum a instituição reguladora.

74 Item d) desta segunda parte.


75 P ara n ão alo n g a i d em asiadam ente esta exposição e chegar às m esm as conclusões,
resolvem os não tratar especificam en te de E spinoza e contentam o-nos em fornecer
algum as indicações p ara o leito r eventualm ente interessado. D e resto, dem os prefe­
rência a H obbes, porque é o filão em pirista que irem os seguir. Q ue se nos entenda

111
bem aqui. N ã o estam o s afirm ando, de fo rm a algum a, que a filosofia de E spinoza
seg u e o s m esm os passos q ue a d e H obbes, nem m esm o que o tratam ento qu e dá às
q uestões, q ue estão aqui e m jo g o , seja o m esm o. N ão haveria c ontra-senso m aior do
qu e en veredar-se p o r tais afirm ações. Isto p osto, podem os, no entanto, afirm ar:

1 Q ue, m eto d o lo g icam en te, E spin o za inspira-se largam ente e m H obbes, com o
m ostrou M . G u ero u lt (Spinoza, I, P aris, A ubier-M ontaingne, 1968, cap. IV, XXI,
p. 169 e seg.). A diferen ça fundam ental p arece e star em que, em virtude de seus
próprios pressu p o sto s filo só fico s, E sp in o za estende à integralidade d o u niverso um
p rocedim ento q u e em H o bbes está circunscrito à geom etria e à ética e política;
2 O livro III da É tica é, sem so m b ra de d úvida, um a dedução das paixões hum anas a
p artir de um “co natus” fundam ental, que é a perseveração n o seu ser (prop. VI:
“ to d a co isa se e sfo rça, en q u a n to e stá em si, p o r pe rse v era r no seu se r”;
“U naquauque res, quan tu m in se est, in su o esse perseverare conatur” (Ê th ic a, Ed.
G erbhardt, V II, p. 146). E sse “co natus” não é outra coisa senão a essência atual
d essa coisa (prop. V II) e ele, enquanto se refere apenas à alm a, cham a-se Vontade
e, q uan d o refere-se sim ultaneam ente à a lm a e ao corpo, a p etite, q ue n ad a m ais é que
a “ p ró p ria e ssên cia do h o m em ” e, o desejo e m n ada d ifere do apetite, senão q ue ele,
com relação ao hom em , é o ap etite co nsciente (prop. IX , escólio).

D esse ponto d e vista, e só deste, portanto, p o d em os p erfeitam ente falar que h á u m a coin­
cid ên cia g en érica e n tre H ob b es e E spinoza, que fundam , am bos, isso q ue denom inam os
a p rim azia absoluta do conceito de desejo na estruturação antropológica. Com relação a
E sp in o za se ria n ecessário acie sc e n ta i que e ssa aproxim ação só é possível se conside­
ram os o livro III d a É tica com o relativam ente autônom o, o que, de fato, foi feito por
alguns autores do século X V III,

P ara u m m aior esclarecim en to d e ssa q u estão e m E spinoza, consultaj-se-á com proveito:


a) V. D elbos, L e Spin o zism e, Paris, Vrin, 1926, Lição 9, p. 113 e seg. (sobretudo p. 118-
2 3 );
b) A. D arbon, É tu d e s S pin o zistes, P aris, PUF, 1946, cap. VII, p. 135 e seg. A lém de c o r­
rig ir c e rtas h esitaçõ es d e D elb o s, tem co n trib uições im portantes.
c) A. M atheron, In d ivid u et C om m u n a u té chez Spinoza, P aris, M inuit, 1969, p. 9-191.
E xpo sição detalh ad a dos fundam entos da vida passional em Spinoza.
d) R . M israhi, L e D é s ir et Ia R éflexio n d ans la P hilosophie d e Spinoza, Paris, Temps
P hilo so p h iq u e, 1972, p . 19-90.
e) S. Z ac, “Vie, C onatus, Vertu” in P hilosophie, Théologie, P olitique dans 1’O euvre de
S p in o za , P aris, V rin, 1979.
0 J. B ennet, Un E stúdio de la É tica de S p inoza, M éxico, FC E , 1990, cap. X, p. 237 e
seg. M istu ra reflex õ es m uito interessantes c o m p seudo-objeções de origem analítica.
76 A ex pansão, q ue se m etam o rfo seará e m vontade de cad a vez m ais poder, supõe a
experiên cia e o jo g o das in ter-relações hum anas. (Cf. item i) desta parte).
77 T h. H obbes, L evia th a n , ed. cit., cap. X I, p. 160-1.
78 Cf. nota 1 d a p rim eira parte deste estudo.
79 Cf. p arte i) desta segu n d a parte.
80 Cf. parte j ) desta segunda p arte, no início.

112
81 Y. Zarka, op. cit., p. 273-4, e notas 20 a 22. Zarka afirma:

“Essa passagem da m áxim a 504 (de L .R .), assim com o vários outros ju í­
zos, pode parecer com o quase paráfrases ou com entários de Hobbes.
Sem dúvida, não se trata de sem elhanças acidentais, pois o amor-
próprio em L a R ochefoucauld é. em m uitos pontos, idêntico à relação a
si d o desejo em H ob b es” (p. 274. O s parênteses e o grifo são nossos).

82 L a R ochefoucauld, R éflexions, S entences e t M axim es M orales, P aris, G am ier


F rères, s. d. É a esta edição q ue nos referirem os a seguir.
83 Ibid., p. 15.
84 Ibid., p. 15-6.
8 5 Ib id ., m áx. 136, p. 25.
86 Ib id ., p. 9. V ariante: “O h o m em é conduzido q uando c rê conduzir-se e, e nquanto que
p o r seu espírito ele visa um lugar, insensivelm ente seu coração o encam inha a um
outro ”, n. 3.
87 Q ue n ão d eixa de ter sem elhança com a do sintom a, no discurso psicanalítico.
88 Ib id ., m áx. 119, p. 23. Variante:

“O coscum e q ue tem os de disfarçar-nos aos outros, p a ia adquirir sua


estim a, faz com q ue enfim n o s disfarcem os a nós m esm os”, id., ib., n. 1.

89 Ib id ., ed. cit., m áx. 78, p. 16.


90 Ib id ., m áx. 81, p. 16.
91 Ib id ., m áx. 83, variante, n. 2.
92 Ib id ., m áx. 180, p. 32.
93 Ib id ., m áx. 2 4 4 , p . 48.
94 Ibid., m áx. 23 3 , p. 42.
95 Ibid., m áx. 239, p. 47-8.
96 Ibid., m áx. 303, p. 55.
97 Ibid., m áx. 324, p. 58.
98 Ibid., m áx. 232, p. 41.
99 Ib id ., m áx. 171, p. 31.
100 Ib id ., p. 1.
101 Ib id ., p . l , n . 2.
102 Ibid., S econd S upplém ent, I, p. 107.
103 Ib id ., m áx. 23 0 , p. 41, O s grifo s são nossos.
104 S an to A gostinho, D a N atu reza do B e m — contra os M aniqueus, in O bras F ilo ­
só ficas, M adrid, BA C, 1971, cap. X V II, p. 836.
105 “ ... o q u e cham am os m al neste m undo, seja m oral ou natural, é o grande princípio
q ue fe z d e nós seres sociáveis, a b ase sólida d a v ida...” (M andeville, op. cit., ed. cit.,
p. 248). M andeville inco rp o rará n o seu discurso todo esse conjunto central de con­
c e ito s q u e viem os a n alisando d esd e H obbes. E m bora os e m pregue esporadicam ente,

113
esparsam ente e de fo rm a n ã o sistem ática. M as todos estão o perando no seu texto (e,
n ão fo i M an d ev ille q u em d eslanchou c o m v igor toda a apologia do luxo, da qual
seus sucessores, n a m aio ria das vezes, com o Voltaire, nada m ais fizeram que
retom ar?). R eleiam os u m tex to já citado:

“N ad a existe na te rra tão u n iversalm ente sincero com o o am or que


todas as criaturas, capazes de senti-lo, professam -se a si m esm as; e
com o n ão h á am or ao q u e não desvele o cuidado de conservar o o bje­
to am ado, n ad a h á m ais sincero, em q ualquer criatura, que sua v on­
tade, seu d esejo e seu em penho de conservar-se a si m esm a” (p. 129).

O egoísm o, d esnecessário dizer, está o nipresente no texto. P o r outro lado, com relação
à p o sitiv id ad e do m al, sabem os o quanto e ssa noção é chave para se entender o discur­
so de Sade.

114
III

INQUIETUDE
1. O problema que passaremos a analisar agora, para tentar exa­
minar como se prolonga e aprofunda essa temática do desejo em textos
e autores imediatamente posteriores, representa um dos mais complica­
dos e delicados nessa trama que estamos tentando deslindar. Trata-se do
problema da inquietude sobre o qual nem na simples denominação esta­
mos seguros. Sob esse nome entendeu-se, ao que parece, um conjunto
de noções que nem sempre parecem ter muito o que ver entre si. O que
Malebranche denomina inquietude parece ter pouca relação com o que
Locke entende por “uneasiness”. No entanto, o próprio Locke autorizou
a tradução do termo, para o francês, por “inquiétude”, como veremos.
Locke conhecia muito bem Malebranche, conforme indicaremos, e sua
opção não pode ser alocada no rol das atitudes ingênuas.
Os problemas nessa linha chegam, às vezes, a se tomarem irritantes
e ao estudioso só resta extrair a modesta lição de que, ao invés de procu­
rar achar “certezas” ou idéias claras, distintas e bem definidas, o melhor
é tomar consciência de que se trata de um período de hesitações con­
ceituais, deslocamentos nocionais e embaralhos lexicais. Os conceitos
são vagos, as noções nem sempre coerentes, as palavras deslizam, e isso,
freqüentemente, confunde bastante o leitor. A teoria malebranchista da
inquietude não peca pelo rigor e pela coerência. Mas, temos fortes sus­
peitas e bom motivos para pensar que algo similar acontece quando nossa
atenção volta-se para a concepção lockeana a respeito da “uneasiness”.
Enfim, tudo parece indicar, e gostaríamos de frisar o caráter
hipotético de nossa afirmação, que se trata de um período de transição

117
que, como tal, é quase sempre hesitante e um pouco confuso, mas
extremamente fértil nas suas conseqüências.

2. Nossa análise do conceito hobbesiano de apetite ou desejo assi­


nalou uma característica singular através da qual se repensa o conceito
clássico de felicidade. Trata-se da extrema mobilidade do desejo. Ele
não supõe o repouso. Este, ao contrário, é sua negação. Releiamos um
texto já citado:

“Visto que todo deleite é apetite e pressupõe um término


ulterior, só pode haver contentam ento no prossegui­
m ento” .1

Não só é impossível ao sujeito viver quando cessam seus desejos,


como a felicidade, como vimos, é um contínuo progresso do desejo, de
um objeto a outro, sendo a conquista de um o caminho para se con­
seguir um segundo, e assim indefinidamente. O desejo é móvel, instá­
vel e irrequieto. Não tem ponto de ancoragem fixo e não é por acaso
que Hobbes ilustra sua teoria das paixões através da metáfora da cor­
rida. A sucessão contínua é a forma de existência do desejo. Ele é, na
sua essência, inquieto. Esse traço, sob muitos aspectos, notável, do
desejo, não parece ter retido muito a atenção de Hobbes. Constata o
fenômeno, sem tecer grandes considerações. Ele, no entanto, chamou
a atenção de um outro grande espírito, N. Malebranche, que desen­
volverá a prim eira teoria moderna da inquietação.2

3.a) De todos os grandes cartesianos, diz Gueroult, Malebranche é


o único que afirma ser discípulo do mestre e lhe testemunha uma plena
admiração.3Apesar das declarações formais de Malebranche (e da ane­
dota que corre dizendo que seu interesse real pela filosofia nasceu da
leitura do De VHomme de Descartes), qualquer leitor percebe, percor­
rendo a obra de Malebranche, que, na verdade, trata-se, com relação à
Descartes, de um universo mental e conceituai radicalmente diferente
do deste último. Existe, sem dúvida, um cartesianismo de Malebranche,
no sentido em que inúmeras teses deste último são assumidas por ele.

118
Mas, são inseridas num contexto totalmente diferente e, por causa
disso, adquirem um sentido tal que, sem dúvida, teriam espantado, e
muito, o próprio Descartes.4
De fato, é praticamente desde as origens que as divergências entre
os dois autores aparecem. Se Malebranche aceita, em linhas gerais, a
física cartesiana, seu dualismo, sua teoria das idéias claras e distintas,
existe um ponto, em relação ao qual a divergência é total e faz com que
tudo mude de sentido. Trata-se da concepção e do papel do “cogito”
nos respectivos discursos. Em oposição direta a D escartes,
Malebranche não pensa que tenhamos dele um a idéia clara e distinta,
cujo grau de certeza é tal que não pode ser ultrapassado, constituindo
assim o ponto de partida inabalável do discurso filosófico. Ao con­
trário. Para ele, a noção de substância pensante se manifesta para nós
mesmos, através do cogito, de forma em brulhada e confusa. Por uma
simples razão: não se trata de um a idéia, mas de um sentimento. Temos
o sentimento irrefutável de nossa existência, mas não uma idéia clara
e distinta do que somos. Não há nada mais opaco, para nós mesmos,
do que a natureza ou essência de nossa existência. Essa essência nos é
recusada e é inútil qualquer exercício de introspecção para se tentar
captá-la. Esse tema é um leit-motiv na obra de Malebranche:

“Oh minha força e minha luz, posso saber de vós o que sou
e o que é esta substância que sinto em mim, capaz de
conhecer a verdade e de amar o bem? Eu sou, mas desde
que tempo? Sou eterno, cessarei de ser? Eu sou, mas o
que sou? Eu penso, mas como? Eu sinto que quero, mas
quê, eu não conheço claramente o que é querer. Quando
penso nos corpos, vejo muito bem aquilo do que eles são
capazes; eu os comparo entre si e descubro suas relações.
M as qualquer que seja o esforço que eu faça para repre­
sentar-me a mim mesmo, não posso descobrir aquilo que
sou. Quando sinto alguma dor, eu o sei, mas antes de
senti-la eu não compreendia que minha substância fosse
capaz disso; e no próprio momento em que eu a sinto,
não compreendo nem aquilo que ela é, nem qual relação
ela pode ter, seja comigo, seja com aquilo que me rodeia.
Em uma palavra, para mim mesmo não sou senão trevas,
minha substância me parece ininteligível” .5

119
Isso, evidentemente, coloca um problema gravíssimo. Se para
Descartes o cogito era a evidência primeira que comandava toda a
cadeia das deduções, agora, não só isso é impossível, como também
fica difícil conceber como pode haver um conhecimento, no sentido
rigoroso, da alma. Como é possível, enfim, uma psicologia racional?6
E possível edificar um discurso sobre a substância pensante?
Pelos próprios dados do problema, é claro que, diretamente, isso é
impossível. Não pode haver espaço para uma psicologia racional, em
Malebranche, que se edifique a partir de conceitos claros e precisos,
pela pura e simples razão de que esses conceitos nos são vedados e
acedemos apenas ao sentimento que fornece a certeza de minha existên­
cia, que penso, que imagino, que quero etc., sem fornecer, no entanto,
em momento algum, a idéia precisa desses mesmos atos. A consciência
de si fornece um conhecimento simétrico e inverso àquele oferecido
pelas coisas materiais. Enquanto que, nestas últimas nos é oferecida a
idéia clara e distinta de sua essência, a extensão, e um conhecimento
duvidoso a respeito de sua existência, obtido através dos duvidosos sen­
tidos externos; na primeira, a existência é uma certeza imediata e indu­
bitável mas o conhecimento da sua natureza é obscuro e confuso.
Disso tudo decorre imediatamente que o preceito cartesiano que
diz ser a alma mais fácil de conhecer que o corpo deve ser afastado e
a filosofia deverá procurar outro caminho para edificar seu discurso.7
Por outro lado, se uma psicologia racional é possível no interior do
pensamento de Malebranche, ela nunca o poderá ser de maneira dire­
ta. Para ela só resta o caminho do desvio. Será necessário um outro tipo
de procedimento para se chegar à edificação de tal disciplina que,
sabemos, está presente no discurso de Malebranche.
Esse procedimento, à primeira vista natural, será, no entanto, um
foco de problemas para Malebranche. Ele consiste, já que parece que “a
matéria seja a imagem do espírito”, em estabelecer um paralelismo entre
a substância extensa e a substância pensante e ir, a partir da primeira, que
conhecemos clara e distintamente, extraindo os elementos necessários
para suprir essa deficiência original que afeta nossa percepção do cogito:

“Existem ainda outras concordâncias entre as figuras e as


configurações da matéria, e as idéias e as modificações
do espírito, pois parece que a matéria é a imagem do espí­
rito, quero dizer, que existem propriedades na matéria

120
que têm entre si relações muito próximas daquelas que se
encontram entre as propriedades que pertencem ao
espírito, se bem que a natureza do espírito seja muito
diferente daquela da matéria” .s

E tendo isso em vista que Malebranche propõe então “exprimir com


relação às propriedades que convêm à matéria”,9 aquelas do espírito. E
assim, da mesma forma que a matéria tem duas propriedades básicas, a
primeira, de receber diferentes figuras, e a segunda, a capacidade de
movimento; do mesmo modo, o espírito humano possui duas faculdades,
o entendimento (capacidade de receber várias idéias) e a segunda, a von­
tade (capacidade de receber várias inclinações). A vontade, assim, é rela­
cionada à capacidade de movimento da matéria. Exemplifiquemos me­
lhor, através de um outro texto, já que é sobre a vontade que se cen­
tralizará nossa discussão, como Malebranche a pensa:

“Assim como o autor da natureza é a causa universal de


todos os movimentos que se encontram na matéria, ele
é também a causa geral de todas as inclinações naturais
que se encontram nos espíritos; e assim como todos os
movimentos se fazem em linha reta, se eles não encon­
tram algumas causas exteriores e particulares que, por
sua oposição, os determinem e os mudem em linhas cur­
vas, da mesma maneira todas as inclinações que nós
temos de Deus são retas, e elas não poderiam ter outro
fim senão a posse do bem e da verdade, se aqui não hou­
vesse uma causa exterior que determinasse a impressão
da natureza em direção a maus fins. Ora, é esta causa
exterior que é a causa de todos os nossos males e que
corrompe todas as nossas inclinações” .'A

Tudo não estaria tão mal se se pudesse pensar numa comunidade


de substâncias, no sentido forte do termo que, exatamente, tornasse
legítima essa passagem. Porém, Malebranche é um dualista de estrita
observância e, neste ponto, fiel discípulo de Descartes. Tratam-se, para
ele, de duas substâncias radicalmente distintas e diferentes, no sentido

121
mais forte que se possa dar a esses termos. Se a matéria é extensa, o
espírito é inextenso; se a matéria é divisível, o espírito é indivisível, e
assim por diante, sob todos os pontos de vista. Seus atributos principais
estão em exclusão recíproca. Mas, o fato de não se poder atribuir exten­
são ao espírito, segue-se, necessariamente, que é inextenso? A analogia
é fraca: do que uma coisa não é não se deduz necessariamente o que é.
É por aqui que se instala o que se acostumou denom inar o “para­
doxo da psicologia em M alebranche”. É possível fundar rigorosa­
m ente um discurso científico baseado em tal procedimento? M.
G ueroult, num pequeno mas adm irável estudo," procura mostrar que
sim. Em essência, a resposta seria a seguinte: se tomarmos essas
substâncias enquanto substâncias tudo o que eu puder afirmar de
um a, posso, de direito, afirm ar de outra, através da noção de subs­
tância inteligível. Assim , por exemplo, se toda e qualquer substância
é perm anente, então a alma é um a substância permanente. O ca­
m inho, portanto, é da substância m aterial à substância inteligível, e
desta, à substância pensante.12
Sob essas condições há, sem dúvida, um fundamento inques­
tionável do procedimento analógico:

“Visto que o fundamento da analogia é a substância inte­


ligível, vemos que todo o esforço em vista do conheci­
mento claro e distinto da alma deve consistir em recons­
truir a substância desconhecida da alma, de maneira con­
forme ao tipo da substância extensa, e em seguida em
determinar os modos desta substância reconstruída, mo­
dos cuja existência nos é revelada pelo sentimento inte­
rior, segundo as relações claras e distintas do acidente à
substância e dos diversos acidentes entre si”

A solução é im pecável do ponto de vista conceituai. Seu único


problem a está na limitação desse tipo de procedimento. Não é muita
coisa, no fim das contas, que se pode conseguir com ele.
C aricaturizando um pouco, podem os arm ar um esqueleto de
Psicologia Rationalis, mas faltaria preenchê-lo. U ma das raízes dos
impasses a que M alebranche se vê freqüentemente conduzido, no
nosso entender, está exatamente nessa defasagem (já veremos isso

122
logo mais). Entre os elementos fornecidos pelo procedimento analógi­
co, através do sentimento íntimo, freqüentemente um hiato se instau­
ra, quando não uma contradição.

b) Podemos ver esse ponto com mais clareza aplicando esses


dados gerais ao ponto que nos interessa em particular: a teoria male-
branchista da vontade. H. G ouhier notou, com razão, que a teoria de
Malebranche a respeito das ações humanas, mais especificamente suas
concepções a respeito da vontade e da liberdade, são inspiradas direta­
mente nos autores cristãos:

“Doutrina tradicional, tão antiga quanto o pensamento


cristão, e que Malebranche recebeu ao mesmo tempo de
Santo Agostinho e de São Tomás” ,u

No que, formalmente, Gouhier tem razão, na medida em que a


definição de Malebranche, afirmando que a vontade é essa inclinação
irresistível ao Bem e à felicidade, pode perfeitamente ser enquadrada nos
quadros do pensamento medieval e, em espécie, em Santo Agostinho.
Mas, Malebranche insere essa concepção no interior de sua dou­
trina e a unidade dessa fórmula acaba por se quebrar. Basta examinar­
mos os dois elementos que a compõem e perceber como Malebranche
as procura provar e a que conclusões acaba chegando.
A vontade é essa inclinação irresistível ao Bem. Como ele procu­
ra demonstrá-la? Inserindo-a num a concepção estritamente dualista e
aplicando a teoria das idéias claras e distintas. Recusa, portanto, das
potências escolásticas (no caso: alma apetitiva, sensitiva etc.). E
inserção da vontade no plano do sentimento. Ora, em Descartes, assim
como em Malebranche, o dualismo implica que as paixões são estados
da alma que, por sua vez, são efeitos da ação de algo que se desenrola
no plano corporal. O que significa dizer que é neste último plano, nas
leis mecânicas que regem o corpo, que encontraremos sua explicação
última. Não é por acaso que em toda a primeira parte do Tratado das
Paixões Descartes se dedica a realizar um resumo de sua fisiologia,
baseado sobretudo no D e L'H om me. Ora, se se alia essa concepção
com a tese malebranchista da incognoscibilidade da alma temos em

123
Malebranche, num primeiro momento, que é a inteligibilidade mecâni­
ca que vai fornecer o tipo de raciocínio que fornecerá a essência das
operações da vontade.
Isso em dois níveis. No primeiro, mais elementar e sem grandes con­
seqüências, porque há, de fato, a dependência com relação ao corpo:

“Mas a vontade, enquanto vontade de um homem, depende


essencialmente do corpo; pois é apenas por causa dos
movimentos do sangue, ou antes, dos espíritos animais,
que ela se sente agitada por todas as emoções sensíveis".'5

Mas, num segundo nível, na medida em que as operações da alma


só podem ser entendidas analogicamente, na medida em que nos são re­
veladas por sentimentos obscuros e confusos, elas só são acessíveis
através de um raciocínio puro, que opera a passagem da substância
extensa para a substância pensante. O que significa dizer que a inteligi­
bilidade introduzida é a priori. O raciocínio de Malebranche é o seguinte:

1) “Deus nos impele sem cessar, e por uma impressão irre­


sistível, para o bem geral (...) Pois Deus nos fez e nos
conserva para ele” .l<

2) “Pois o movimento de amor que sem cessar Deus imprime


em nós não aumenta nem diminui... Aparentemente Deus
nos impele em direção a ele sempre com uma força igual,
pois ele nos impele em direção ao bem em geral o tanto
quanto somos capazes, e em qualquer momento nós o
somos igualmente capazes, porque nossa vontade ou
nossa capacidade natural de querer é sempre igual a si
mesma. Assim, a impressão ou o movimento natural que
nos impele para o bem nunca aumenta ou diminui.” 17

Temos aqui, portanto, a aplicação, segundo o processo que já


descrevemos, do princípio da conservação do movimento:18

124
3) “Confesso que nós não temos idéia clara, nem mesmo
sentimento interior dessa igualdade de impressão ou de
movimento para o bem. M as é porque nós não nos
conhecemos por idéia, como provei alhures; e porque
não sentimos nossas faculdades quando elas não agem
atualmente. Nós não sentimos em nós aquilo que é natu­
ral, ordinário e sempre igual, assim como não sentimos
o calor e o batimento de nosso coração. Nós não senti­
mos nem mesmo nossos hábitos, ... Talvez exista em nós
uma infinidade de faculdades ou de capacidades que
nos são inteiramente desconhecidas; pois não temos
sentimento interior de tudo aquilo que somos, mas ape­
nas de tudo aquilo que atualmente se passa em nós" .19

Não tendo acesso à essa verdade por sentimento interior, e só


podendo estabelecê-la via analogia com a substância extensa, fica
claro que o caminho recorrido por Malebranche é puramente a priori
e não depende em nada, da experiência, no caso, dos dados da cons­
ciência. Em resumo, na medida em que Deus nos fez e conserva para
ele, quer, portanto, que o conheçamos e o amemos nessa exata medi­
da. Assim, conclui-se que Ele nos “leva em sua direção” na exata
medida em que conserva nosso ser:

“Ora, este movimento natural e contínuo da alma em


direção ao bem em geral, em direção ao bem indetermi­
nado, em direção a Deus, é aquilo que aqui eu chamo de
vontade...” .20

E, a razão pela qual esse raciocínio é elaborado dessa forma deve-


se única e exclusivamente ao fato de que o campo da experiência, isto
é, do sentimento, só nos fornece a diversidade empírica dos desejos.
Mas isso não significa dizer que ele desconsidere este último campo.
Ao contrário, ele o consulta para, agora por outra via, estabelecer con-
cretamente a noção de vontade. Mas, o que revela, de fato, a experiên­
cia? Consultando-a, Malebranche conclui que podemos afirmar que
todos os homens têm o desejo invencível de felicidade:

125
“Pois não é verdade que ela (a sua consciência) lhe
responda que ele pode queimar-se vivo, ou que ele pode
querer queimar-se vivo. Sua consciência lhe ensina, ao
contrário, que a alma não tem o poder de suspender seu
consentimento, aquele de deliberar, nem mesmo de hesi­
tar sobre uma tal escolha: porque não se tem, e porque
se vê evidentemente que não se pode ter motivo para se
queimar. Sua consciência lhe ensina que irresistivel­
mente ele quer ser feliz, e que ele não pode querer o
mal conhecido e sentido como mal. Ela lhe responde
que ele não pode querer consentir ao que quer que seja
sem um motivo que concorde com o desejo irresistível
que ele tem de ser feliz. Ora, queimar-se vivo não está
de acordo com isso; portanto, ele não tem o poder de
queimar-se vivo, visto que ele não tem nem mesmo o
poder de querer” .21

A bre-se, assim , um novo cam inho, uma nova via possível para
se definir a noção de vontade, que tom a um rum o totalm ente dife­
rente do prim eiro que acabam os de ver, pois assum e-se aqui, agora,
aquilo que lá era recusado. E sse cam inho, em linhas gerais,
podem os retraçar levando em consideração que, desde a Recherche
de la Vérité, M alebranche afirm a que os homens buscam o prazer, e
que ele, em si mesmo, é um bem .22 N o Traité de 1’Amour de Dieu,23
obra já tardia, M alebranche é bem claro sobre sua posição. E s­
tabelece que:

"... é preciso observar que só se pode amar aquilo que


agrada, e detestar aquilo que desagrada”.24

O que implica dizer que:

“Porque ê absolutamente impossível querer algo se nada


nos interessa”

126
e:

todo prazer atual, enquanto prazer, de alguma


maneira nos torna fe lizes...” .26

Temos aqui, nessas poucas linhas, todo o conjunto dos elementos


que, pela via da inspeção da consciência de si, levam Malebranche a
um a definição da vontade que está inextrincavelmente ligada ã noção
de felicidade. Ela é essa atração irresistível que todos sentimos em
alcançar a felicidade:

“o desejo irresistível de ser feliz é a mesma coisa que a


vontade” ;27

“o desejo natural e irresistível de felicidade. Este desejo


é, propriamente, a faculdade da alma que chamamos de
vontade” .2S

c) Estamos, sem dúvida, frente a duas definições de vontade que


foram obtidas por caminhos diferentes. Dizem a mesma coisa? Aos
olhos de Malebranche sim, porque se a vontade é o movimento que nos
impulsiona a Deus, o fim desse movimento (que, sem dúvida, não se
dará nessa vida) significará o repouso em Deus que nada mais é que a
felicidade suprema. Mas podemos duvidar da legitimidade desse pro­
cedimento. Para os medievais era o mesmo movimento de raciocínio, e
a manutenção dele no mesmo nível, que estabelecia nossa atração para
o bem e o estado de felicidade daí decorrente.29 Já aqui as coisas não são
tão claras. A definição da vontade, que a determina como movimento em
direção ao bem, estabelecida pela via analógica e por puro raciocínio,
estabelece que é a vontade de Deus que faz com que as criaturas se
orientem para o sumo bem. Ora, disso não se extrai, em hipótese algu­

127
ma, o desejo de felicidade das criaturas finitas. Mesmo reconhecendo,
com Malebranche, a universalidade desse desejo de felicidade30e que “o
desejo da beatitude formal ou do prazer em geral é o fundo ou a essên­
cia da vontade”,31as duas teses (amor a Deus e desejo de felicidade) nem
se engancham, nem se deduzem uma da outra.
O Tratado de M oral é ainda mais explícito sobre esse ponto. Os
demônios odeiam a Deus porque não esperam mais nenhum a recom­
pensa.32 Se Adão continua a amar a Deus é porque ainda mantém a
esperança de que Deus será o seu Bem.33 É preciso, portanto, concor­
dar: aos olhos de M alebranche só há um motivo de amor: a felicidade,
que nada mais é que o estado de prazer:

“Retirai do espírito todo amor próprio, todo desejo de ser


fe liz e perfeito, que nada lhe agrade, que as perfeiçôes
divinas não lhe interessem mais: ei-lo sem dúvida inca­
p az de qualquer am or” .34

d) Podemos tentar avaliar agora, com um pouco mais de clareza,


esse conjunto de teses de Malebranche. É verdade que, tomadas em si
mesmas, como notou Gouhier,35 elas estão no âmbito cristão e da mais
pura ortodoxia. Mas, analisando-as no próprio universo conceituai do
autor percebemos que, de fato, adquirem um sentido novo ditado por
esse contexto. E, por mais que Malebranche insista, elas não parecem
conciliáveis entre si. Amor ao bem e desejo de felicidade não são teses
que nele, ao que tudo indica, impliquem-se reciprocamente ou, pelo
menos, que uma se deduza da outra. A implicação é sempre suposta. Pior:
a única implicação possível, que amamos o bem porque ele nos traz a
felicidade e o prazer, entra em contradição flagrante com a tese clássica
de que Deus deve ser amado por si mesmo, sem nenhum outro motivo,
a não ser a consideração de sua própria onipotência e bondade infinita.
De resto, a distinção malebranchista entre motivo efim , que aparen­
temente pretende conciliar as teses, nada mais faz que aprofundá-la:

“O fim é aquilo a que tende a alma, aquilo em direção ao


qual a alma se move; o motivo é aquilo que a move; o
motivo é natural ou necessário, o fim é livre. Por vezes

128
confunde-se o motivo com o fim : mas é porque agora
fala-se de algum motivo que é livre e dependente de
nossa escolha. M as no caso em questão o motivo é intei­
ramente diferente do fim : porque o motivo de ser feliz
não é um motivo moral ou livre, mas um motivo físico e
necessário. Todos os fin s que nós escolhemos, ou todos
os motivos morais supõem este motivo físico da fe lic i­
dade como um princípio secreto de todas as escolhas
que nós podem os fa ze r” .36

Essa distinção resolveria o problem a se o desejo de felicidade


nos orientasse única e exclusivam ente para Deus. E evidente que a
beatitude eterna é que deve ser sempre visada, segundo Malebranche.
M as sabem os que todo prazer é um bem verdadeiro; que ele, por esse
caráter, satisfaz, pelo menos durante um certo tem po, nosso desejo de
felicidade. Podemos, depois, descobrir que isso era falso. M as, até
chegarm os aí, quando acontece de chegarm os, estamos satisfeitos.
Como a maioria dos homens não possui as luzes da verdade e igno­
ram que Deus é a única causa de todos os prazeres, confundem causa
e motivo e satisfazem-se no campo da finitude. Por outro lado, essa
nossa sede insaciável de felicidade e prazer faz com que o objeto
finito, de fato, na maioria das vezes, atinja o estatuto do bem enquan­
to tal. Essa possibilidade é reforçada quando nos lembram os de que,
para M alebranche, o m otivo é físico e necessário, enquanto que o fim
é livre. Nada, portanto, mais natural que a vida dos homens seja mar­
cada essencialmente pela busca de bens determ inados e encontre aí
sua fruição.

e) É exatamente sobre este último ponto que a teoria malebran-


chista da inquietude encontra seu ponto de ancoragem. E, não é difí­
cil vislum brar que ela carregará consigo esse conjunto de am bigüi­
dades que vimos em ergir ao analisarmos sua teoria da vontade. De
fato, dois pólos de interpretação impor-se-ão aqui também, o que
engendrará conseqüências capitais no desenvolvimento da história
das idéias. E a razão disso está em que a própria noção de vontade
im plica essa determinação. Retomem os, rapidamente, dois textos
fornecidos por M alebranche:

129
“D efo rm a que pela palavra vontade, ou capacidade que
a alma tem de am ar diferentes bens, pretendo designar
a impressão ou o movimento natural que nos impele em
direção ao bem indeterminado e geral; e pela palavra
liberdade, não entendo senão a força que o espírito tem
de desviar essa impressão para os objetos que nos
agradam, e fa zer assim com que nossas inclinações na­
turais se terminem em algum objeto particular” ,37

Mas não nos iludamos, lendo esse texto, pensando que esse desvio
para os objetos particulares é obra única e exclusiva de nossa liber­
dade. Mais um a vez é Deus, ele próprio, que determina esse movi­
mento, sendo que a liberdade está apenas no poder de detê-lo:

“Deus nos apresenta a idéia de um bem particular ou


deste nos dá o sentimento. Pois apenas ele nos ilumina...
Enfim, Deus nos dirige para este bem particular. Pois
D eus nos dirigindo para tudo aquilo que é bem, é uma
conseqüência necessária que ele nos dirija para os bens
particulares, quando ele produz suas percepções ou seus
sentimentos em nossa alma.
M as como um bem particular não encerra todos os bens,
e como o espírito, considerando-o com uma visão clara e
distinta, não pode considerar que ele os encerre a todos,
Deus não nos dirige necessária e irresistivelmente ao
amor desse bem. Sentimos que somos livres para deter­
mo-nos ali, que temos movimento para ir mais longe’! .38

N a verdade, a concepção malebranchista da liberdade é puramente


negativa. Ela não tem nenhum a consistência ontológica. É pura possi­
bilidade negativa de desvio frente a algo. O que, aplicado ao caso em
questão, significa aos seus olhos dizer que, entre motivos necessários
e fins livres, a escolha de fins particulares não é invencível. Ora, essa
não-invencibilidade implica que a vontade só se deterá e repousará
num determinado fim quando ele a satisfizer plenamente. Caso isso
não aconteça, a vontade, depois de deter-se nesse objeto, explorá-lo e

130
fruí-lo, perceberá que ele não a satisfaz plenamente e buscará outro
ponto de ancoragem. Buscará porque nosso desejo de felicidade e
prazer, esse sim, é necessário e invencível. A possibilidade da noção de
inquietude ancora-se exatamente nessa invencibilidade do desejo de
felicidade e prazer, combinada com a não-invencibilidade da detenção,
do repouso em objetos particulares. Abre, assim, a possibilidade de
uma sucessão contínua de desejos que se detêm em objetos particu­
lares, fruindo deles, percebendo-se que não apresentam a felicidade
completa e avançando para outro objeto e assim indefinidamente. A
inquietude é a vontade em movimento indefinido, porque insatisfeita.
Basta que se releia o célebre texto onde Malebranche caracteriza a
inquietude. Ele é um pouco longo, mas é impossível picotá-lo:

“Esta vasta capacidade que a vontade tem para todos os


bens em geral, porque ela só é feita para um bem que
encerre em si todos os bens, não pode ser preenchida
p or todas as coisas que o espírito lhe representa, e
todavia este m ovimento contínuo que Deus lhe imprime
em direção ao bem não se pode deter. Esse movimento,
não cessando jam ais, necessariamente dá ao espírito
uma agitação contínua. A vontade, que procura aquilo
que ela deseja, obriga o espírito a representar-se todos
os tipos de objetos. O espírito os representa, mas a
alma não os aprecia; ou se ela os aprecia, não se con­
tenta com eles. A alma não os aprecia porque freqüen­
temente a visão do espírito não é acompanhada de
prazer; pois é pelo prazer que a alma aprecia seu bem;
e a alma não se contenta com ele, porque não há nada
que possa deter o movimento da alma, a não ser aque­
le que imprime nela esse movimento. Tudo aquilo que o
espírito se representa como seu bem é finito; e tudo
aquilo que é fin ito pode arrebatar po r um momento
nosso amor, mas não pode fixá-lo. Quando o espírito
considera objetos m uito novos e muito extraordinários,
ou que têm algo de infinito, a vontade sofre enquanto
ele os examina com atenção; porque ela espera encon­
trar ali aquilo que busca, e porque aquilo que é grande
e parece infinito traz o caractere de seu verdadeiro

131
bem; mas com o tempo ela se afasta destes assim como
dos outros. Portanto, ela está sempre inquieta, porque
é levada a buscar aquilo que nunca pode encontrar, e
porque sempre espera encontrar; e ela ama o grande, o
extraordinário, o que parece infinito, porque não tendo
encontrado seu verdadeiro bem nas coisas comuns e
fam iliares, im agina encontrá-lo naquelas que não lhe
são conhecidas" .39

f) Que essa teoria malebranchista da inquietude assemelha-se


fortem ente à descrição que Hobbes nos fornece da sucessão da vida,
,40
no início do cap. X I do Leviathan é indubitável. Os acentos não são
exatam ente os mesmos nem, evidentem ente, os suportes conceituais.
M as fenom enologicam ente a semelhança se impõe. D ever-se-ia pen­
sar aqui num a influência de H obbes sobre M alebranche? A hipótese
é possível. Por outro lado, como veremos logo mais, essa teoria
m alebranchista move-se num plano ambíguo e a possibilidade de sua
laicização será não só um a forte tentação, como se realizará, de fato,
desde os fins do século XVII até boa parte do século XVIII. Neste
ponto, a filiação do século XVIII com relação a M alebranche é indis­
cutível, como em m uitos outros, aliás.41 Poder-se-ia objetar que,
exatam ente, essa concepção já está totalm ente laicizada em Hobbes.
Isso é correto, mas sob certos parâm etros porque, nesse trabalho,
com o vimos, Hobbes detém-se no conceito de desejo como sendo
fundam ental e central. O ra, é precisam ente na análise que
M alebranche fez da inquietude que teremos o ponto de arranque de
um a análise que progressivam ente irá desvelando que, por trás da
noção de desejo, existem coisas ainda mais fundam entais, das quais
ele mesmo já é conseqüência. Essa será a segunda grande mutação a
que assistiremos e à qual já nos referimos no final da prim eira parte
deste nosso trabalho42e que, dada sua rapidez, tende a nos confundir.
Voltemos, portanto, nossa atenção para como M alebranche edifica
essa sua teoria da inquietude.

g) Essa teoria, em Malebranche, assim como vimos com relação à


sua teoria da vontade, é edificada sobre duas raízes bem distintas, e não
deixará de ser fonte de ambigüidades. A primeira delas é a fonte

132
medieval e cristã. Mais especificamente, Santo Agostinho. Conhecemos
a célebre frase das Confissões:

“porque nos criastes tendidos para Vós e o nosso coração


vive inquieto enquanto não repousa em Vós"

Trata-se, nesse caso, de um a caracterização da inquietude como


um movimento para o alto, vertical, por assim dizer. Movimento inces­
sante em direção a Deus que nos criou para ele, para amá-lo, que obe­
dece à estrita definição de vontade entendida como movimento para o
bem em geral e que nos ilumina, a cada repouso, no sentido de apon­
tar para a insuficiência dos bens particulares, não invencíveis, recon­
duzindo essa própria vontade no ultrapassamento progressivo dessas
mesmas coisas finitas. E exatamente esse o sentido da expressão agus-
tiniana: “inquietum est cor nostrum”, o de um movimento cujo repouso
só será atingido através da deleitação do divino. O que, rigorosamente,
e com exceção dos eleitos, não se consegue nesta vida terrena. Essa
inquietude é portanto a marca, a sinalização da ação ou atração que
Deus exerce incessantemente sobre nossos atos:

“N ão se pode duvidar de que Deus seja o autor de todas


as coisas, de que ele as fe z para si, e de que dirige o
coração do homem em direção a ele, graças a uma
impressão natural e irresistível que lhe imprime sem ces­
sar. Deus não pode querer que exista uma vontade que
não o ame ou que o ame menos do que algum outro bem,
se é que pode haver um outro que não ele; porque ele
não pode querer que uma vontade não ame aquilo que é
soberanamente amável, nem que ela ame mais aquilo
que é menos amável. Assim, épreciso que o amor natural
nos dirija para Deus, visto que ele provém de Deus; e
que não haja nada que possa deter seus movimentos, a
não ser o próprio Deus que os imprime. Portanto, não há
vontade que não siga necessariamente os movimentos
desse amor. (...) Sendo fe ito portanto para Deus, para
um bem infinito, para um bem que compreende em si

133
todos os bens, o movimento natural de nosso coração só
cessará pela posse desse bem” .44

O caminho seguido aqui, mais um a vez, para o estabelecimento da


tese é o raciocínio puro. Para se saber “a causa dessa inconstância e
dessa ligeireza do espírito humano”45 é preciso considerar que Deus,
suprema perfeição, só pode ter criado criaturas finitas dotadas de von­
tade para amá-lo e, portanto, só pode tê-las dotado dessa capacidade de
atingir esse objetivo. Os desvios na finitude serão incessantemente
retificados pela insatisfação que acabam provocando. Pois não é exata­
mente esse um dos instrumentos mais fortes que Ele tem em mãos para
nos punir?46 O que mais uma vez prova que o prazer e a dor são os
móveis de nossas ações.
A outra vertente da teoria malebranchista da inquietude toma um
caminho diferente para se estabelecer. Ele vai partir do testemunho da
consciência. Aqui, é o sentimento que serve de fio condutor da análise. É
bem verdade que aqui, também, trata-se de um movimento mas, agora,
de um movimento encarado como um estado de consciência. Deixa-se,
por assim dizer, de lado, esse seu aspecto, para considerar-se com mais
atenção sua realidade psicológica. De que realidade se trata? Dessa insa­
tisfação contínua frente aos bens, dessa necessidade de mudança ininter­
rupta que caracteriza nossa vida terrena e cotidiana. E, assim como
Hobbes, Malebranche não deixa de usar a metáfora da corrida para ca­
racterizar essa realidade. Trata-se dessa agitação contínua que nos impul­
siona a trocar um bem finito por outro bem fmito e isso incessantemente:

“Todavia, como não se ama procurar, mas fruir, e como o


trabalho de exame é agora muito penoso e como o
repouso e a fruição são sempre muito agradáveis, ordi­
nariamente a alma repousa a partir do momento em que
ela encontrou algum bem: ela se detém nele para fruí-lo.
Ela engana-se a si mesma, porque enganando-se e ju l­
gando que encontrou aquilo que procura, seu desejo se
muda, por assim dizer, em prazer, e porque o prazer a
torna mais feliz do que o desejo. M as sua felicidade não
pode durar muito tempo. Seu prazer sendo mal fundado,
injusto, enganador, incontinente, ele a perturba e a

134
inquieta; porque ela quer ser verdadeiramente e solida­
mente feliz. Assim, o amor natural pelo bem a desperta e
nela produz novos desejos. Esses desejos confusos repre­
sentam novos objetos. Como ama o prazer, ela corre atrás
daqueles objetos que o difundem, ou que parecem difun­
di-lo; e como ama o repouso, ela se detém junto a eles” .47

Sente-se facilmente a diferença de acento entre essa análise e a


precedente. Aqui, trata-se de um movimento que, insatisfeito, tende a ir
cada vez mais longe. Antes, tratava-se de um movimento ascensional,
de ir, cada vez, para mais alto. Se o plano lá era vertical, aqui ele é ho­
rizontal. Assim, duas leituras são possíveis. A primeira, tomando como
referência Deus, ilustra que esse movimento indefinido é o sinal de seu
caráter vão, que não é possível atender, no plano terrestre, a esse
invencível desejo de felicidade. Mas a segunda, atendo-se estritamente
à experiência, tende a mostrar que essa é exatamente a característica do
desejo: a sua infinitude ou, pelo menos, seu caráter indefinido. No
primeiro caso, a inquietude é a marca que Deus impõe ao homem para
sinalizar seu desvio. No segundo caso, ela é algo inerente à própria
natureza humana, algo que faz parte da vida humana enquanto tal. Essas
duas concepções da inquietude, percebe-se facilmente, são a estrita
conseqüência da dupla concepção de vontade que analisamos antes:
como movimento em direção ao bem e como desejo de felicidade.

h) Foi essa segunda vertente da noção de inquietude, historica­


mente, a grande descoberta de Malebranche. Caracterizando a vontade
através do plano do sentimento, isto é, ao nível psicológico, como esse
incessante movimento cujo motor é o invencível desejo de felicidade,
cujo índice é a fruição do prazer, Malebranche ao mesmo tempo
retoma (conscientemente ou não) os resultados da análise hobbesiana
e os aprofunda na medida em que aponta, agora, para um outro fator
que deve ser levado em consideração. Essa insatisfação constante do
desejo é o indício mais revelador de que ele, por si só, é insuficiente
para explicar esse mesmo movimento. Se o fosse, não se renovaria.
Hobbes estava absolutamente correto ao dizer que o repouso tout court
significaria a morte do desejo e, por conseqüência, do próprio ser
humano. Mas deu pouca atenção ao fato de que, se ele é efêmero, se é

135
renovado incessantemente, é porque algo atrás dele está agindo, está
excitando sua atualização ou reatualização. Impulsionando-o, em
suma. Ele não pode ser algo fundamental e originário, pela pura e sim ­
ples razão de que não contém, em si mesmo, elementos suficientes
para explicar seu renascer incessante. Ele não pode, sob esse ângulo,
ser originário. E esse algo que pode explicar esse fenômeno deve estar
embutido na própria noção de insatisfação, que reaparece após a
fruição e funciona como acicate. Para que haja desejo, é preciso que
haja insatisfação e, se o desejo se renova incessantemente, é porque a
insatisfação tam bém o faz, com antecedência. A ssim , já em
M alebranche começam a emergir elementos, na sua análise da inquie­
tude, que são suficientes para colocar em dúvida a preeminência do
desejo. Seu reinado, ao que tudo indica, será efêmero.
J. D eprun notou, com muita pertinência, que o quadro da inquie­
tude em M alebranche gira sobre dois eixos distintos: o de origem
agustiniana, que tem como pólo a noção de sumo bem, e o outro, que
tem na noção de busca do prazer e do repouso, nos bens particulares,
o seu norte. Q uer dizer, há um pólo teocêntrico e um pólo
antropocêntrico, que orientam as diferentes análises de M alebranche
e, tudo indica, ele nunca conseguiu equilibrá-las de form a inteira­
m ente satisfatória:

“Sem perder sua dimensão teocêntrica, até mesmo


teotrópica, o inquietum est cor nostrum ganhava direito
de cidadania no universo da nova física, a título de
aspecto vivido do princípio de inércia. Ora, essa síntese
era tão instável quanto engenhosa: seus componentes
naturalistas podiam sem esforço destacar-se do conjun­
to e, de fato, não deixaram de fazê-lo”

De fato, haverá uma grande tendência a laicizar essa teoria de


M alebranche, o que não constituirá um a tarefa muito difícil pois, bas­
tará a circunscrição e o isolamento desses componentes naturalistas de
sua análise, para que se consiga foim ar um conjunto com unidade
própria. Essa será, ao que tudo indica, a tarefa que se imporá o fim do
século XVII e boa parte do século XVIII. O primeiro grande passo
nessa direção foi dado por J. Locke, que passaremos a examinar.

136
4.a) Antes de abordar o texto de Locke, retomem os alguns dados
históricos bastante significativos, relatados concisamente por J.
D eprun49. Em 1688, J. Le Clerc publica na Bibliothèque Universelle,
sob o título de “E xtrait d ’un Livre A nglais Intitulé Essai
Philosophique Concernant l ’Entendem ent”, o qual constitui um
resumo antecipado das principais teses do Essay de Locke. Como
assinala Deprun, a im portância lexical dessa avant-première é enorme
porque, precedendo em dois anos a publicação da obra e em doze a
tradução francesa de Coste, já coloca, sob o termo de “inquiétude”,
algo que na obra será denom inado “uneasiness”. O que significa
dizer, continua Deprun, que desejo e temor são alocados, sob a forma
conhecida do público francês, de inquietude, e que é provocada pela
ausência de um bem ou a im inência presumida de um mal. Foi, sabe­
mos, o próprio Locke quem preparou a versão inglesa do resumo que
Le Clerc traduziu e publicou. Pouco importa se foi de Locke ou de Le
Clerc a opção pelo termo “inquiétude”. O verdadeiram ente significa­
tivo é que, doze anos depois, Coste, tradutor e porta-voz de Locke,
m antém o termo “inquiétude” para traduzir “uneasiness”, não sem
puxar um a nota explicativa. Esse é o prim eiro ponto a ser assinalado:
correta ou incorretamente, feliz ou felizmente, essa tradução foi rea­
lizada com o conhecimento e a aprovação de Locke, que acompanhou
de perto a tradução e a fiscalizou.
O termo “uneasiness”, como se sabe, não é unívoco e se presta a
várias acepções, sobretudo no texto de Locke. Mesmo Coste nem sem­
pre respeita a equivalência estabelecida entre “uneasiness/inquié-
tu d e ". Mais tarde, Bosset, traduzindo o Abridgement o f L ocke’s Essay
(Londres, 1969), emprega mais de uma vez o termo “mésaise”, ou
perífrases equivalentes, para traduzir o termo, e um a única vez usa o
termo “inquiétude”. Por outro lado, a tradução latina no Essay, rea­
lizada por Burridge, considerada excelente, utiliza, para traduzir o
termo, “anxietas” e “moléstia" e, em menor escala, “perturbatio”.
Fato significativo: Burridge evita os termos disponíveis de “sollicitu-
do” e “inquietudo”. Refletindo-se um pouco sobre o termo, seu uso, e
esses dados, não é difícil chegar-se à conclusão de que, talvez, os ter­
mos mais apropriados em francês para exprimir a “uneasiness” sejam
“malaise" e “mésaise”.
Por que então Locke optou por “inquiétude”? Duas coisas são sig­
nificativas nessa história, embora, de fato, não sejam suficientes para
resolver a questão:

137
I 2) Na margem da seção 30, do capítulo XXI do livro II, da
tradução francesa do Essay, Coste anota: “M. Locke atacava aqui
P. M alebranche” .50 A análise do texto e do contexto não deixam a
menor dúvida. Coste está indicando que Locke constitui sua teoria da
vontade em oposição à de M alebranche. Se toda oposição é uma forma
de filiação, como nota Deprun, então é preciso que se considere a
hipótese de que a teoria lockeana da vontade, sob algum aspecto, está
relacionada com a de Malebranche.
2 a) Locke leu e estudou atentamente Malebranche desde 1676,
quando em maio adquiriu a Recherche de la Vérite. Sua oposição a
Malebranche sempre foi clara e veemente. Escreveu várias notas e tex­
tos razoavelmente longos criticando a teoria malebranchista51. Por
outro lado, o termo “uneasiness” aparece, pela primeira vez, nos papéis
de Locke, em julho de 1676. A influência, portanto, não é descartável.

Historicamente, apesar dos problemas de equivalência já levanta­


dos, a tradução de “uneasiness” por “inquiétude” foi muito bem acei­
ta, inclusive pelas maiores cabeças do tempo. É o caso de Leibniz, que
nos Nouveaux Essais, considera-se satisfeito com a tradução, embora
aponte para a não equivalência perfeita:

“O intérprete (Coste) tem razão, e a leitura de seu exce­


lente autor me mostrou que essa consideração da
inquietude é um ponto capital, onde esse autor mostrou
particularmente seu espírito penetrante e profundo".51

Esses são os dados históricos. Eles podem e são indicativos e sig­


nificativos. Mas deles não é possível e nem se deve extrair nenhuma
conclusão de peso. O fator decisivo, é claro, será a análise do próprio
texto de Locke. Vejamos.

b) Locke, fiel aos seus princípios, sempre afirmou que a natureza ou


essência íntima das coisas nos é, e será para sempre, desconhecida. A
experiência apenas nos revela o exterior das coisas e daí jamais pe­
netraremos na constituição interna e real dessas mesmas coisas. Pensar

138
que, a partir da aparência sensível, é possível deduzir a natureza íntima
das coisas, é a pior de todas as ilusões. Jamais saberemos a verdadeira
constituição dos supostos corpúsculos que compõem a matéria, dada sua
pequenez, o que os tom a inacessíveis aos sentidos.53 O mesmo pode-se
dizer, pela mesma razão, dos objetos remotos.54Mesmo as coisas que nos
são acessíveis pelos sentidos não nos revelam sua estrutura íntima.
Apenas suas propriedades sensíveis. Lembremo-nos do exemplo do
relógio de Estrasburgo invocado por Locke. A idéia que os homens
fazem das coisas é similar àquela que o camponês tem do “famoso reló­
gio de Estrasburgo”, no qual só vê o movimento dos ponteiros, escuta as
badaladas e conhece mais algumas de suas propriedades externas. Ele
ignora, no entanto, seus mecanismos e suas engrenagens internas.55 No
que diz respeito à natureza das coisas, estamos na mesma relação que o
camponês frente ao relógio. Por essa razão, o que atingimos é sempre a
essência nominal das coisas e nunca sua essência real.
Isso também aplica-se ao ser humano. A idéia de homem é uma idéia
complexa. Se pudéssemos defini-lo realmente, deveríamos produzir uma
compreensão não só do seu sentido próprio, como também daquilo que
o diferencia das outras espécies vivas, sobretudo as mais próximas. E, ao
longo do Essay (o exemplo da definição de homem é recorrente), Locke
aponta-nos sistematicamente para essa impossibilidade.56 Uma definição
real do homem seria algo bem diferente daquela que de fato obtemos
pela experiência e pela construção de uma essência nominal:

“Pois ainda que um corpo de uma certa form a, acompa­


nhado de sentidos, razão e movimento voluntário cons­
titua talvez a idéia complexa que eu e outros ligamos à
palavra homem; e que assim esta seja a essência nomi­
nal da espécie assim designada, todavia ninguém dirá
que essa idéia complexa é a essência real e a fonte de
todas aquelas operações que são encontradas em qual­
quer indivíduo dessa espécie. O fundam ento de todas
aquelas qualidades que são os ingredientes de nossa
idéia complexa é algo inteiramente diferente. E se nós
tivéssemos um tal conhecimento da constituição do
homem de onde decorrem suas faculdades de movimen­
to, sensação e raciocínio e seus outros poderes; e do
qual depende sua figura tão regular, como talvez os

139
anjos a conheçam, e como certamente a conhece aquele
que é seu autor; teríamos uma idéia de sua essência
inteiramente diferente daquela que presentemente está
contida em nossa definição dessa espécie, qualquer que
ela seja. E nossa idéia de cada homem individual tam­
bém seria diferente daquela que presentemente temos" .57

Diante dessa impossibilidade, Locke, por assim dizer, procede por


uma espécie de desvio e acaba propondo uma definição, não da essên­
cia ou natureza do homem, mas sim uma que nos esclarece sobre sua
finalidade interna. Propõe, em lugar de uma definição essencial, que é
impossível uma de natureza teleológica.58 É o fim ao qual se dirigem
os homens, e os meios que utilizam para atingir esses fins, que podem
suprir essa deficiência inicial, pelo menos no campo ético. Percebendo
que esse fim e esses meios constituem um todo coerente, pode-se atin­
gir um a unidade e uma compreensão do ser humano por essa via e,
assim, compreendê-lo, não do ponto de vista físico ou mental, mas
moral. Escolhendo esse caminho chegaremos, é verdade, muito mais
perto da constituição de um “tipo ideal” do que de como é de fato. Mas
Locke suprirá esse hiato através da experiência.
Ora, com relação à finalidade, a questão resolve-se com relativa
clareza. Locke retoma uma velha e sólida tradição que define a finali­
dade da existência humana como sendo a procura da felicidade. Todos
estão de acordo sobre esse ponto, já apontava Aristóteles na Ética a
Nicômaco,59 que esse fim é o bem, e sobre esse bem, a maioria dos
homens está de acordo, trata-se da felicidade (eudaimonia). No rastro
dessa tradição, Locke define assim o alvo da existência humana:

“Todos os homens desejam a felicidade, não há dúvida” .60

ou:

“Como tudo aquilo que desejamos é apenas ser fe liz, ...


este desejo geral de felicidade opera constante e
invariavelm ente...” .61

140
Mas, em que consiste essa felicidade que os homens procuram tão
ardentemente? Para esclarecer isso, é preciso que acompanhemos um
pouco essa montagem elaborada por Locke ao longo do 2a livro do Essay.

c) Entre nossas idéias simples que provêm da sensação e da


reflexão, devemos contar as de prazer e de dor:

“Prazer ou deleite, e seus opostos, dor ou insatisfação” ,62

Prazer e dor unem-se a quase todas as nossas idéias63, tanto as de


sensação quanto as de reflexão e também as mistas e, aparentemente,
“não existe nada que afete desde o exterior nossos sentidos ou nenhum
pensamento escondido no interior de nossa mente que não seja capaz
de provocar em nós prazer ou dor ”.64
Isso tem um aspecto funcional evidente e Locke o aponta: na medi­
da em que as coisas se passam assim, isto é, grande parte de nossos pen­
samentos estando, de um lado, afetados pelo prazer, isso faz com que te­
nhamos preferência por estes. Se esses fatos não afetassem nossos pen­
samentos, não teríamos motivo para preferir um em vez de outro, e a
escolha não seria possível. Entre a negligência e a atenção, não haveria
por que optar.“ Por outro lado, a dor é tão funcional quanto o prazer.66
Mais funcional, na verdade, e sob um ponto de vista, mais preciso,
porque “o prazer não opera tão fortemente sobre nós como a dor”,67 que
é a mais “importuna das sensações”.6* Ela nos adverte contra os perigos
que afetam nosso ser e nossa conservação.65*Ambos, prazer e dor, são
úteis na fixação de nossas idéias porque informam aquilo que favorece
ou não o corpo, e a natureza, ordenando que a dor acompanhe certas
idéias faz com que, desse modo, substitua-se ao raciocínio e que o
sujeito reaja mais rápida e prontamente.71' Por fim, essa mescla de pra­
zer e dor a que estamos submetidos assinala nossa imperfeição e a
ausência de uma contínua felicidade, de uma completa felicidade.71
Prazer e dor são idéias simples que derivam da experiência e este
é o único caminho pelo qual podemos adquiri-las.72 Por isso mesmo é
impossível obter delas uma grande clareza. Temos uma idéia clara de
para que servem, qual sua utilidade, mas não do que são, na medida em
que são dados imediatos. É impossível defini-las, a não ser aproxima-
tivamente. Isso tem como conseqüência que um a certa ambigüidade

141
habitará inevitavelm ente esse campo semântico designado pelos ter­
mos de prazer, deleite, satisfação etc., e seus contrários, fazendo com
que nunca possam os ter um grau de precisão que seria desejável. As
diferenças, de resto, são de grau, e não de natureza. Voltaremos a isso.
É diretam ente a esse par prazer/dor que devem os reconduzir e, a
partir daí, definir, as noções de bem e mal. Esses últim os termos
indicam , respectivam ente, os estados de prazer ou dor a que estão
relacionados e referem -se especificam ente às coisas que provocam
essas sensações:

“Portanto, as coisas são boas ou más apenas em referência


ao prazer ou à dor. N ós cham am os de bem àquilo que é
apto a causar ou aum entar o prazer, ou dim inuir a dor em
nós; ou a nos proporcionar ou preservar a posse de qual­
quer outro bem, ou a ausência de qualquer mal. E ao con­
trário nós cham am os de m al àquilo que é apto a produzir
ou aum entar qualquer dor, ou dim inuir qualquer prazer
em nós; ou a nos proporcionar algum a dor ou dim inuir
qualquer bem. P o r prazer e dor, entendo aqueles do corpo
ou da alm a, com o estes são com um ente distinguidos; se
bem que na verdade eles sejam apenas diferentes consti­
tuições da alm a, p o r vezes ocasionadas por desordem no
corpo, p o r vezes p o r pensam entos da a lm a ” 7i

d) P razer e dor, ju n tam e n te com aquilo que os ocasiona, são os ele­


m en to s principais sobre os quais giram as paixões hum anas.74 Tom em os
alg u n s ex em plos significativos de com o L ocke concebe es s a dinâm ica
das p aixões para te n tar d iscern ir co m m a io r clareza o q u e está exata­
m e n te em questão:

“A le g ria é um d eleite da a lm a a p a r tir d a co n sid e ra ç ã o


d e u m b em p r e s e n te ou d a a p ro xim a çã o da p o s se se g u ­
ra d e um b e m ; ...
“T riste z a é u m a in sa tisfa çã o n a a lm a, q u a n d o ela p en sa
em u m bem p e r d id o , do q u a l ela p o d e r ia d e sfru ta r p o r
m a is te m p o ; ou a s e n s a ç ã o d e um m a l p resen te .

142
“Esperança é este prazer na alma, que todos encontram
em si mesmos, quando se pensa no provável desfrute
futuro de uma coisa que é apta a deleitar”.
“Temor é uma insatisfação da alma, quando pensamos
em um mal futuro prestes a nos chegar”P

Não é difícil perceber, através desses exemplos, que Locke refere-


se às paixões sob dois pontos de vista: o estado de satisfação e o esta­
do de insatisfação, de m odo que é possível, em linhas gerais, classi­
ficá-las desse ponto de vista dualista. Se excetuarmos, bem entendido,
as paixões que implicam a inter-relação humana, como, por exemplo,
a cólera ou a inveja. Todas as outras que se encontram nos homens ter­
minam ou em prazer ou em desprazer:

“Pois nós amamos, desejamos, nos alegramos e temos


esperança apenas em relação ao prazer; ao contrário, é
apenas em vista da dor que nós detestamos, tememos,
nos afligimos. Finalmente, todas essas paixões são pro­
duzidas pelas coisas, apenas enquanto elas parecem ser
as causas do prazer e da dor, ou parecem ter, de alguma
maneira, o prazer e a dor ligados a elas” ,76

Disso tudo resulta m uito claro também que todo estado de


deleite, de prazer, incita o sujeito a perm anecer nele, ficar usufruin­
do dele e, portanto, aponta para o repouso. Já os estados que culm i­
nam na dor ou no desprazer colocam esse mesmo sujeito numa
posição incômoda, incitam-no a sair deles, a fugir desses estados e,
portanto, apontam para um a mudança, e trazem consigo um impulso
ao movimento e à ação:

“O motivo para continuar no mesmo estado ou ação é


apenas a satisfação ali presente. O m otivo para mudar
é sempre alguma uneasiness, nada nos levando a
mudar de estado, ou a uma nova ação, senão alguma
uneasiness”.77

143
e) Podemos, agora, tentar analisar esse conceito tão central e tão
espinhoso da filosofia de Locke, o de “uneasiness”. Central, porque,
num certo sentido, toda sua filosofia gira em tom o dele, já que todas
as nossas ações (inclusive as mentais) visam basicamente eliminá-la e,
assim fazendo, produzir esse estado de deleite ou prazer que constitui
a Felicidade, aspiração de todos os sujeitos. R. Polin percebeu isso
com muita agudeza quando declara:

“Com efeito, considerando bem dir-se-ia que não é tanto


o justo e a injustiça que antes de tudo o inquietam
(Locke), mas que ele procura antes livrar-se e livrar os
outros desta uneasiness tão cruel ao homem, e alcançar
esta easiness, este conforto do qual uma prática cons­
tante pode fa zer uma segunda natureza” ,78

Espinhoso porque trata-se de um dos conceitos mais difíceis de


serem precisados no interior do léxico de Locke. Ambíguo, poliva­
lente, ele dificilmente deixa-se apreender com clareza. Coste, com a
autorização de Locke, já vimos, o traduz por “inquiétude”, não sem, no
entanto, puxar uma nota explicando a insuficiência da escolha:

“A palavra inglesa da qual o autor se serve neste lugar é


uneasiness, e eu a traduzo por inquietude, que não
exprime precisamente a mesma idéia. M as nós não
temos, que eu saiba, outro termo em francês que lhe seja
mais próximo. Por uneasiness, o autor entende o estado
de um homem carente de bem-estar, a falta de bem-estar
e de tranqüilidade na alma, que em relação a isso é
puramente passiva. De form a que, se queremos penetrar
no pensamento do autor, é preciso sempre ligar neces­
sariamente essa idéia à palavra inquietude” .79

Deixemos de lado, por um momento, a questão já evocada sobre a


relação dessa opção lexical com relação à teoria malebranchista.
Voltaremos a isso. O fato é que, já a partir dessa nota, percebe-se que

144
o campo semântico do termo não é muito fácil de ser circunscrito. O
recurso à perífrase é um indicador. Já vimos também80que as diferentes
traduções acabam empregando diferentes termos conforme o contexto.
Em francês, o termo “malaise” parece ser o mais apropriado e que teria
seu equivalente em português no termo mal-estar. Mas um a outra série
de considerações pode nos levar a um outro termo possível.
No § 2 do cap. VII do livro segundo, quando exatamente intro­
duz as idéias de prazer e dor, Locke assinala claramente, vimos, que
estamos defronte a um campo onde o que predom ina é a diferença de
grau e não de natureza. Imediatamente, estabelece uma escala que
pode nos ser útil:

“Por prazer e dor, entendo tudo aquilo que nos deleita ou


molesta; seja que proceda de pensamentos de nossa
alma ou de alguma coisa que aja sobre nosso corpo.
Pois seja que nós o chamemos por um lado de satis­
fação, deleite, prazer, felicidade etc., ou do outro lado
de uneasiness, desgosto, dor, tormento, angústia, m i­
séria etc., no fundo eles são diferentes graus da mesma
coisa, e pertencem às idéias de prazer e de dor, deleite
ou uneasiness; que são os nomes que eu mais comu-
mente usarei para esses dois tipos de idéias”

Desse texto, podemos extrair a seguinte escala:

Satisfação Uneasiness
Deleite Desgosto
Prazer Dor
( Tormento
Angústia
M iséria

Nessa escala, uneasiness opõe-se a satisfaction e, portanto, seu


contrário seria “não-satisfação” ou insatisfação.82 Retomando, nova­
mente, o conselho de A. Darbon, já utilizado (“Só se compreende bem

145
um a noção pelo uso que dela é feito”), deixemos essa noção operar no
próprio texto de Locke, como este, por exemplo:

“Para retornar à investigação, o que é que determina a


vontade em relação às nossas ações? E depois de uma
segunda consideração da questão sou levado a pensar que
aquilo que determina a vontade a agir não é o maior bem
em vista, como geralmente se supõe, mas antes alguma
uneasiness atual do homem (e na maior parte das vezes a
mais urgente). E isso que determina sucessivamente a von­
tade, e nos leva a empreender as ações que fazem os” .83

E claro que, de um lado, pode-se perfeitamente entender por


“uneasiness”, aqui, o mal-estar, a insatisfação. Mas, por outro lado, a
cláusula restritiva — geralmente a mais forte, a que mais pressiona —
insere esse m al-estar ou insatisfação num campo relativo. A “uneasi­
ness” é, das insatisfações que nos habitam, aquelas que, primeiro, têm
energia, força suficiente para nos levar à ação; segundo, dentre as que
têm essa força, predom ina a que mais pressiona. Assim:

“A maior uneasiness presente é aquilo que nos leva à


ação, e na maior parte das vezes determina a vontade
em sua escolha da próxim a ação” ^

Assim, a “uneasiness” pode, em certos casos, identificar-se com uma


dor (pairí) física que me faz, por exemplo, afastar o objeto. Em outros
casos, pode ser um ligeiro mal-estar que, no entanto, é suficiente para que
o sujeito procure um estado mais agradável. Colocar roupas mais leves
devido ao aumento de temperatura, por exemplo. A “uneasiness” desta­
ca-se numa escala conforme a situação do sujeito. Exatamente por isso,
em cada contexto, adquire um determinado matiz semântico que pode ir
desde a identificação com a dor até, exatamente, ao mal-estar ligeiro que,
no entanto, incita à mudança. “Uneasiness” é um operador conceituai que
só adquire sentido num determinado contexto. E, no texto de Locke,
assistimos à realização de todas as suas possibilidades.

146
São as necessidades ordinárias, mas prementes da vida, que susci­
tam com maior vigor a “uneasiness”, como a fome, a sexualidade etc85.
Nesse sentido, a saúde é o mais desejável dos bens, e a condição para
o usufruto de todos os outros. A “uneasiness” é o correlato dos estados
negativos, e só a eles acompanha, porque só eles causam insatisfação.
Prazer, deleite, satisfação etc. são motivos, já vimos, para que se per­
maneça no mesmo estado, e não incitam à ação. É por isso que a insa­
tisfação tem um papel capital na história, tanto do indivíduo, quanto da
espécie. Relembremos um a frase célebre do Essay:

“e aqui talvez seja de alguma utilidade observar de pas­


sagem que a uneasiness é o principal, senão o único
estímulo da ação e da indústria humana” .86

Se levamos em conta que as necessidades ordinárias de nossas


vidas ocupam-se boa parte do tempo com a “uneasiness” que carregam
e se, a isso, adicionamos aquelas insatisfações provenientes de nossas
“fantasias” (desejo de riqueza, honra, poder etc.), e consideramos ainda
essa “miríade de desejos irregulares que acabaram por se converter em
naturais em nós, pelo costume”, podemos dizer que só uma parte bem
pequena de nossas vidas está isenta da presença da “uneasiness”.8,

f) A “uneasiness”, assim entendida, pode ser com preendida pela


noção de “inquiétude”? Dificilm ente. Não se pode negar que um de
seus com ponentes, por assim dizer, um dos acompanhantes, seja a
inquietude. Isso é correto. M as não se pode, nem se deve, ir mais
longe do que isso. S. G oyard-Fabre diz que a “uneasiness” acom ­
panha a dor como a sua sombra88. A formulação é evidentem ente
incorreta, mas podemos adaptá-la e dizer que a inquietude é a som ­
bra que acompanha a “uneasiness” . Por aqui já podem os vislumbrar,
num prim eiro nível, a proxim idade e a distância entre a “uneasiness”
lockeana e a “inquiétude” malebranchista. Esta últim a é também um
estado, que se manifesta entre os mom entos de prazer ou deleite. Mas
ela só emerge, e tem isso com o condição, no interior de um a série,
de um a sucessão. Já a inquietude que acom panha a “uneasiness”
determ ina-se no interior de cada um dos estados de insatisfação.

147
Locke aprisiona a inquietude na “uneasiness” e, assim procedendo,
faz dela um estado de consciência, enquanto que, para Malebranche,
ela era a conseqüência de um a sucessão de estados de consciência
alternados. A inquietude, em Locke, é m uito mais um estado do que
um m ovimento, ou algo que brota do movimento. Ela incita ao movi­
m ento, o que é outra coisa.

g) Avancemos um pouco mais. Esse estado de “uneasiness”,


através de um a série de formulações que não são exatamente idênti­
cas e isentas de am bigüidade, Locke tende a identificar com o esta­
do de desejo:

“A uneasiness que um homem sente em si mesmo pela


ausência de alguma coisa, cujo desfrute presente traz
consigo a idéia de deleite, é aquilo que chamamos de
desejo, que é maior ou menor, segundo a uneasiness é
mais ou menos veemente” .“9

O desejo é a percepção da ausência de um bem. O que significa


dizer, no interior do pensamento de Locke: a percepção da ausência de
alguma coisa cuja presença provocaria prazer ou deleite e cuja ausên­
cia está provocando a insatisfação. E, se a felicidade consiste num
estado onde se frui o prazer ou o deleite, então aquilo que move o dese­
jo , em última análise, é “unicamente a felicidade”,90 que nada mais é
do que a posse e o usufruto dos bens reclamados pelo desejo.
Esta operação de identificação da “uneasiness” com o desejo é
importante. Operando-a, Locke acentua ainda mais o caráter de estado
de consciência da “uneasiness” e, por conseqüência, ainda a afasta
mais da idéia de movimento. A rigor, este último é conseqüência da
“uneasiness” e, se esta carrega consigo a inquietude, então, a última
também incita ao movimento, mas não se capta nele.

h) E, apertando os laços entre “uneasiness” e desejo, Locke afas­


ta definitivamente este último como possível componente da vontade.
Retomemos duas definições que Locke nos fornece dela:

148
“Este poder que a alma tem de dispor da presença ou da
ausência de uma idéia, ou de preferir o movimento de
alguma parte do corpo ao seu repouso, e vice-versa em
qualquer exem plo particular, é aquilo que nós
chamamos de vontade?'

“A volição é claramente um ato da alma exercendo com


conhecimento o domínio que ela supõe ter sobre alguma
parte do homem, para aplicá-lo em alguma ação parti*
cular ou desviá-lo dela. E o que é a vontade, senão a f a ­
culdade de fa zer isso?” .92

Nessa definição segue-se imediatamente que aquilo que determina


a vontade só pode ser algo diferente dela pois, caso contrário, cairíamos
no absurdo de ter de supor um a outra vontade que determina a primeira
e, assim, in infinitum.92A vontade é sempre um ato da mente que dirige
os pensamentos para a produção de uma ação. E, nesse sentido, essa
ação inclui a abstenção porque, se alguém ordena que outro fale e ele
permanece calado, essa abstenção equivale a uma ação.94
Mais precisamente pode-se dizer que a vontade é o poder que tem
a mente de dirigir a faculdade operativa do sujeito em direção ao movi­
mento ou ao repouso.95 Assim entendida a noção, o que então determi­
na a vontade a exercer o seu poder? Mais especificamente, o que
impulsiona a mente para realizar a determinação particular do seu
poder geral, ou seja, para realizar um m ovim ento particular?
Retomemos um texto já citado em parte:

“E para responder a isso, digo que o motivo para conti­


nuar no mesmo estado ou ação é apenas a satisfação
presente que ali encontramos; o motivo para mudar é
sempre alguma uneasiness, nada nos levando a mudar
de estado, ou a alguma nova ação, senão alguma
uneasiness. Este é o grande motivo que age sobre a alma
para levá-la à ação, que abreviadamente nós chamare­
mos de determinação da vontade” .96

149
A ssim , se “uneasiness” e desejo são um a só e mesm a coisa ou,
pelo m enos, o m esm o fenôm eno visto por diferentes ângulos, como
faces de um a mesm a m oeda, então, o que determ ina a vontade
é o desejo. E, a ausência de um bem , m anifestada no estado de dese­
jo é o que determ ina a vontade à ação. Seja esse bem almejado algo
negativo, como é o caso em que se deseja o alívio de algum a dor,
seja positivo, quando, por exem plo, através de um a ação se obtém
algum prazer ou deleite.97
Isso pode ser provado de diferentes maneiras. Em primeiro lugar,
com o já se viu, ninguém que se encontra realmente satisfeito na
condição em que está tem desejo de realizar alguma ação (e determi­
nar a vontade, portanto) para sair desse mesmo estado:

"Quando um homem está perfeitamente satisfeito com o


estado em que se encontra, o que ocorre quando ele está
perfeitamente livre de qualquer uneasiness, que indús­
tria, que ação, que vontade lhe resta senão a de conti­
nuar nesse estado?”9*

Em segundo lugar, ao contrário do que se pensa comumente, não


é a idéia de um bem maior que determina a vontade, mas sim o seu
desejo atual. É a “uneasiness” atual “que determina a sua vontade à
ação à qual está acostumado” .99
Em terceiro lugar, na presença atual de uma insatisfação, o que
determina imediatamente a vontade é ir em direção à supressão dela,
sem qualquer consideração de outra ordem. Esse é o primeiro degrau,
o patamar para que, depois, possa se pensar em algo mais amplo.100
Em quarto lugar, só a “uneasiness” está agindo aqui e agora e, é ir
“contra a natureza das coisas que o ausente opere onde não está”.101
Em quinto lugar, se á vontade estivesse determinada por outra
coisa que não a “uneasiness”, então os homens orientariam suas vidas
em função dos gozos celestes, que são os mais perfeitos e duradouros.
O que, de fato, acontece, como sabemos, é o contrário.102
Em sexto e último lugar: nunca se descuida de um a insatisfação
atual de grandes proporções. “Com freqüência deixa-se passar um bem
que admitimos ser muito grande enquanto satisfazemos as sucessivas
insatisfações de nossos desejos para obterem-se ninharias”.103

150
i) Não teria sido necessário Coste avisar-nos, na margem do texto
de Locke, que a teoria deste último vai diretamente contra a de
Malebranche. A leitura dos textos mostra isso de form a cristalina, E, na
verdade, a crítica de Locke a Malebranche situa-se em dois níveis, e
não num único, como dá a entender a observação de Coste. Ele critica,
na verdade, as duas grandes vertentes da teoria malebranchista da von­
tade. A prim eira delas que diz ser a vontade o movimento em direção
ao bem indeterminado, ao sumo bem ,104e a segunda, que define a von­
tade como sendo o desejo invencível de felicidade.105
A crítica à prim eira vertente é radical e demolidora:

“Penso que qualquer um pode observar em si mesmo e


nos outros que o maior bem visível não excita sempre os
desejos dos homens na proporção da grandeza que ele
parece ter e é reconhecido ter. Enquanto que qualquer
pequeno desgosto nos move e leva-nos a trabalhar para
livrar-nos dele. A razão disso é evidente a partir da
própria natureza de nossa felicidade e de nossa miséria.
Qualquer dor presente, qualquer que ela seja, fa z parte
de nossa miséria presente. M as todo bem ausente não
constitui sempre uma parte necessária de nossa fe lic i­
dade presente, nem sua ausência fa z parte de nossa m i­
séria. Se fosse assim, nós seríamos constantemente e
infinitamente miseráveis; havendo infinitos graus de
felicidade que não estão em nossa posse”.106

Locke, na verdade, insiste muito sobre esse ponto: um bem, ainda


que pareça excelente e se admita como tal, não atua, no entanto, sobre
nossa vontade enquanto não provocar insatisfação e desejo e faça,
assim, com que nos sintamos inquietos por sua ausência.107E por essa
razão que, suprimida a “uneasiness” , qualquer porção de bem que nos
chegue, por modesta que seja, é suficiente para que nos sintamos sa­
tisfeitos e mesmo felizes.108
Como é fácil de se perceber, Locke praticamente naturaliza e lai­
ciza completamente o problema da felicidade. A felicidade em que
pensa é um a felicidade terrena, aquela que os homens de fato procu­
ram , aqui mesmo, no seu dia-a-dia. Não é a idéia de um “sumo bem ”

151
que movimenta os seres humanos. São suas preocupações cotidianas,
diárias. São essas questões que estão interessados em resolver e todos
dar-se-iam por muito felizes, se conseguissem afastar esses males que
nos afligem na vida diária. Nossa vontade preocupa-se com coisas
humanas e a felicidade está, se possível, num a vida calma onde se
afastou a “uneasiness” e se atingiu essa “easiness” à qual tanto se
almeja. Conseguindo isso, os homens se dão por satisfeitos.
A crítica à segunda vertente consistiu no fato de que Locke recusa-
se terminantemente a confundir vontade e desejo. Malebranche, como
sabem os, operava essa identificação. Retom em os apenas duas
definições de vontade por ele fornecidas:

“o desejo irresistível de ser feliz é a mesma coisa que a


vontade” ;
“o desejo natural e irresistível de felicidade... Este dese­
jo é, propriamente, a faculdade da alma que chamamos
de vontade” .m

Ora, isso leva, aos olhos de Locke, a confundir a capacidade de


determinação à ação que é propriamente a vontade com aquilo que a
determina: o desejo. Para ele não existe pior confusão que esta:

“deve-se tom ar precaução para não ser enganado por


expressões que não marcam suficientem ente a dife­
rença entre a vontade e vários atos da alm a que são
m uito diferentes dela. Penso que essa precaução é
tanto m ais necessária porque freqüentem ente vejo a
vontade confundida com várias das afecções, espe­
cialm ente com o desejo; de form a que um é confundi­
do com o outro, e isso p o r pessoas das quais não se
poderia pensar que não tivessem noções muito distin­
tas das coisas, nem que não tivessem escrito m uito
claram ente sobre elas. Penso que isso não fo i uma das
menores ocasiões de obscuridade e engano nessa
m atéria; e isso deve ser evitado o tanto quanto p o s ­
sível. Pois aquele que volta seu pensam ento para

152
aquilo que se passa em sua alm a quando ele quer
poderá ver que a vontade ou poder de volição só se
relaciona às nossas próprias ações, term ina ali e não
vai m ais adiante; e que a volição é apenas essa deter­
m inação particular da alm a pela qual, através apenas
do pensam ento, ela produz, continua ou detém qual­
quer ação que é suposta estar em seu poder. Isso, bem
considerado, m ostra claram ente que a vontade é p e r ­
feitam ente distinguida do desejo, que na m esma ação
po de ter uma tendência inteiramente contrária daque­
la para onde nos leva nossas vontades” .u0

j) E chegada a hora de refletirmos um pouco sobre o nosso iti­


nerário. Aqui, mais do que nunca, toda precaução é pouca. Como já
se pode observar, trata-se sempre do mesmo fenômeno que está sendo
analisado por diferentes autores e sob diferentes ângulos. O fenômeno
é aquele mesmo que Hobbes descreve com tanta pertinência no início
do cap. X I do Leviathan.111 Mas, se o fenômeno analisado é o mesmo,
os enquadramentos conceituais não o são. É por isso que a análise,
aqui, se tom a tão delicada. Hobbes descreve a sucessão dos diferentes
desejos e suas realizações como sendo aquilo mesmo que caracteriza
a felicidade humana. M alebranche descobre, nessa sucessão contínua,
a inquietude, que é, simultaneamente, a marca da ausência do sumo
bem e a insatisfação, constatada empiricamente, que proporciona todo
gozo de um bem finito, após certo tempo. Locke, de um lado, apro­
funda este último ponto, mostrando que todo desejo é “uneasiness”
mas, por outro lado, encapsulando esta naquele, de um a certa
maneira, promove um retom o à descrição hobbesiana. Não é mais da
consideração da série que aparece a revelação do mal-estar, mas ela
está presente em cada ato particular da consciência. Ela é um estado
de consciência, passivo, segundo Coste, na fam osa nota em que expli­
ca sua tradução de “uneasiness” por “inquiétude” ."2 M as, afasta-se
consideravelmente de Hobbes quando descobre e realça o lado nega­
tivo desse estado, a própria “uneasiness”.
Com relação a Malebranche, Locke autonomiza o campo empíri­
co da vontade e faz dele um a totalidade autônoma, unitária e coerente.
A inda aqui, a aparência é de um retomo a Hobbes. M as não se trata só
disso, mais uma vez. Nesse percurso, a felicidade deixa de ser a rea-

153
lização do desejo e passa a ser a supressão do negativo. Diferença de
acento, poder-se-ia dizer, porque, de uma certa maneira, esse negativo
já está lá em Hobbes. Isso é correto. Mas não está realçado e não faz
parte da compreensão essencial do fenômeno. Assim, pode-se dizer
que Locke retom a à descrição hobbesiana mas é seguramente um
retomo que, tendo passado pela análise malebranchista, enriquece e
realça no fenômeno algo que era passado em silêncio. E, fazendo isso,
possibilita uma outra leitura do mesmo.
E por isso que, quando Locke opta por traduzir “uneasiness”
p o r “inquiétude”, o fato é extrem am ente significativo e põe o
sujeito leitor a pensar, pese o fato de que a equivalência é discutível.
Como assinala D eprun, tudo indica que Locke, realizando essa ope­
ração, capta um a herança conceituai e lexical e, ao m esm o tempo,
utilizando-se dela, introduz um a razoável mudança de perspectiva"3
e faz com que um novo tipo de inquietude passe a ter direito de
cidadania. Laicizada, a inquietude vai habitar agora o m iolo do
desejo, a “uneasiness”. E, assim , passa a ser um com ponente natu­
ral e norm al de nossa vida.
Mas, mesmo em Locke, a leitura ainda contém ambigüidades e
hesitações. Fica difícil conceber como o desejo, estado de consciência
passivo possa, ao mesmo tempo, ser o fator impulsivo, aquilo que move
ou dinamiza a vontade. O próprio conceito de desejo não é muito claro
em Locke. N a maioria das vezes, ele o identifica com a “uneasiness”,
como vimos. Nesse caso teríamos um fenômeno de dupla face pois,
enquanto “uneasiness”, ele é a consciência de um mal-estar presente e,
enquanto desejo, é a consciência de um bem ausente. Fica difícil perce­
ber como um mesmo estado de consciência possa abrigar simultanea­
mente essa função dupla. Não se trataria, na verdade, de dois estados
distintos? É o que, pelo menos numa passagem, Locke insinua:

“Aquilo que no curso de nossas ações voluntárias deter­


mina a vontade a qualquer mudança de operação é
alguma uneasiness presente, que é desejo, ou pelo
menos é sempre acompanhada de desejo” .m

Levar essa distinção a fundo e tom á-la a sério significa separar


com mais cuidado dois tipos de fenômenos que estariam aí embutidos.

154
De um a certa maneira é o que a posteridade de Locke fará, como ve­
remos. De qualquer maneira, de Hobbes a Locke, via M alebranche, a
análise enriqueceu-se e aprofundou-se. O mesmo fenômeno aparece
dotado de significações inéditas. Mas isso foi conseguido à custa de
ambigüidades, de deslizes conceituais e lexicais. Quanto mais se apro­
funda a análise do desejo, mais se percebe que ele talvez seja um man­
datário. Sua autonomia se vê cada vez mais ameaçada. Locke, de uma
certa maneira, introduz no seu bojo elementos que o dilaceram e sub­
vertem sua unidade. E, o que, no fim das contas, pressupõe o desejo?
É tentando responder a essa questão que o século XVIII operará uma
nova guinada na compreensão das coisas.

155
NOTAS

1 Cf. n o ta 51, d a II parte.


2 “ Parece-nos q u e é p ela iniciativa de M alebranche que a problem ática da inquietude
recebe, p e la prim eira vez, um tratam ento m etafísico inteiram ente explícito” , diz J.
D eprun no seu substancioso: L a P hilo so p h ie de 1’Inquiètude en F rance a u X V IIT
Siècie, Paris, Vrin, 1979, p. 16; texto com relação ao qual exprim im os, desde já,
n o ssa dívida, em razão da o rientação q ue nos forneceu nesse problem a em aranhado.
3 M . G ucroult, M a lebranche, Paris, A u b ier M ontaigne, 3 vol.; vol. 1, p. 7.
4 Para se ter um a boa v isão d essa q uestão, p ode-se consultar com proveito o livro de
F. A lquié, L e C artesianism e de M a lebranche, Paris, Vrin, 1974.
5 M alebranche, “M éditations C hrétiennes et M étaphysiques” , in O euvres Com pletes,
P aris, Vrin, 1967, T. X , m éd. IX , § XV, p. 101-2.
O u tro texto:

"N ad a é m ais seguro do q ue o sentim ento interior p a ra p rovar q ue um a


coisa existe; m as ele n ão serve de nada p ara fazer-m e conhecer o que
ela é” ("R ecueil de toutes les R éponses a A rnauld” , in O. C ., vol. VI-
V II, p. 163.).

6 C om o se v erá a seguir, de m odo sum ário, M alebranche c oloca u m p roblem a que c o n ­


tin u a atual e no qual os p sicólogos d everiam se d ebruçar e refletir. P orque não é só a
p sicologia racional q ue está em questão, m as a p sicologia tout-court.
7 E sse ponto atingirá seu m aio r grau de clareza n os “Entretiens sur la M étaphysique e
sur la M o rt”, in O euvres C om plètes, vol. X II-X III; texto que é, sem dúvida, a
ex posição m ais acabada e m ais equilibrada do sistem a de M alebranche, se é que a
p alavra “sistem a” pode ser a p licad a ao seu discurso.
8 M alebranche, “R echerche de la V érité” , in O euvres C om plètes, ed. cit., vol. I, p. 45.

156
9 Ibid., vol. I, p. 41.
10 Ibíd., voi. I, p. 45.
11 M . G uero u lt, É ten d u e e t P sych o lo g ie chez M alebranche, P aris, L es B elles Lettres,
1939. A s teses desse estudo reencontram -se, m as de form a esparsa e não encadea­
da, no seu M a lebranche, citad o n a n ota 3. A expressão “p aradoxo d a psicologia
m alebran ch ista” reenvia ao seguinte contexto em G ueroult:

“ ... a exten são é o instru m en to por excelência do conhecim ento da


alm a. A proxim em o-la d a p rim e ira tese: a realidade p síquica, tal com o
ela nos é dada p e la co n sciên cia é radicalm ente h eterogênea à exten­
são, — e v em os surgir d iante de nossos olhos aquilo que cham am os
d e p a r a d o x o d a p s ic o lo g ia m a le b ra n c h ista ’’ (É ten d u e et
P sych o lo g ie..., p. 52).

N a realidade, é todo o problem a d a analogia e d a m etáfora, que p arecem imprescindíveis


no discurso das ciências hum anas, que se pode levantar através desse texto. N um outro
contexto, A lth u sser levantou u m a questão m uito próxim a:

“O recu rso à s m etáforas espaciais (cam po, terreno, espaço, lugar, situa­
ção, p o sição etc.), d o qual o p resente texto se utiliza, coloca um p ro ­
blem a teórico: aquele d e seus títulos de existência em um discurso com
pretensão científica. E ste p roblem a p ode ser e nunciado com o se segue:
por q u e um a certa form a de d iscurso científico requer, necessaria­
m ente, o uso de m etáforas tom adas de em préstim o a discursos não
científicos? (Lire le C apital, p e tit collec. M aspero, vol. I, 1968, p. 27).

A restrição feita p o r A lthusser: “ d iscursos não científicos” p ode ser deixada de lado
porq u e pouco im porta de onde v em a n oção e sim suas condições de aplicação. Freud
em p resta alguns de seus co nceitos de ciências vizinhas, n em por isso o problem a deixa
de se colocar.

12 M . G ueroult, É tendue et Psychologie chez M alebranche, ed. cit., p. 55 e seg. R een­


viam os o leitor a esse texto notável.
13 Ib id ., p. 55.
14 H. G ouhier, L a P hilo so p h ie d e M a lebranche e t so n E x p érience R eligeuse, Paris,
Vrin, 1948, p. 147.
15 M alebranche, “ Recherche d e la V érite”, in O euvres C om pletes, ed. cit., vol. II, p. 127.
16 Ib id ., vol. III, p . 18.
17 Ib id ., p. 22. O s grifos são nossos.
18 Sobre o sentido e o alcance d essa transposição, é interessante acom panhar a deta­
lhada discu ssão que d e la realiza M . G ueroult in M alebranche, ed. cit., vol. III, p.
178 e seg., sobretudo p. 180-4.
19 M alebranche, op. cit., ed. cit., p. 22-3. O p rim eiro grifo é nosso.

157
20 Id.,“T raité d e la N ature e t d e la G râce”, in O euvres Com plètes, ed. cit., vol V, 3fi dis­
c urso, § I, p. 118.
21 Id., “R éflexions su r la P rém otion P h y sique”, in O euvres C om plètes, ed. cit., vol.
X V I, art. V, P- 16.
22 A firm ações q ue cu staram a M alebranche num erosas críticas e duas grandes p olêm i­
c as, um a co m A rnauld (cf. “R ecu eil d e toutes les R éponses à M . A rnaud”, in
O euvres C om plètes, ed. cit., vol. V III-IX , p. 887-989) e outra com R égis (cf.
“ P olém ique M aleb ran ch e-R ég is” , in P ièces Jointes — É crits D ivers, in O euvres
C om plètes, ed. cit., vol. X V II-1, p. 311 e seg.).
23 M alebranche, op. cit., ed. cit., vol. XIV.
24 Ibid., p. 9.
25 Ib id ., g rifo nosso.
26 Ibid.
27 Ib id ., p. 145; g rifo nosso.
28 Id., “R éflexions su r la Prém o tio n P hy siq ue”, ed. cit., vol. X V I, art. X , p. 41; grifo
nosso.
29 C om o é o caso de S an to T om ás, p o r exem plo. Cf. S um a Teológica, I, II, q uestões 10
e I I ; M adrid, B A C , 1989, vol. II, p. 132-146.
30 M alebranche, T raité d e l'A m o u r de D ieu, ed. cit., vol. XIV, p. 10:

“ todos os h om ens, ju sto s ou injustos, am am o prazer tom ado em geral,


ou q u erem ser felizes” .

U m p ouco m ais abaixo, na m esm a página:

“portanto, todos os h om ens querem ser felizes e p erfeitos”. A polêm ica


contra o quietism o é m ais clara q ue n unca e jam ais M alebranche pode
aceitar o q ue ch am a de “suposições im possíveis” dos teólogos dessa
linhagem : am ar totalm ente a D eus sabendo-se, de antem ão, condena­
do, p o r exem plo.

31 Ibid.
32 Id ., “T raité de M o rale”, in O euvres C om plètes, ed. cit., vol. XI, p. 105.
33 Id ., Traité d e l ’A m o u r d e D ieu, ed. cit., vol. XIV, p. 26.
34 Ib id ., vol. X I, p. 102. N a p rim eira c a rta ao padre Lamy, M alebranche diz:

“E u sem pre supus e sta n oção comum', que só se p ode am ar aquilo q ue d á


prazer, que o prazer, tom ado em geral, era o motivo que agitava a alm a e
a levava naturalm ente a am ar sua causa, que esta era a ú nica conveniên­
cia entre o objeto e a potência de am ar que nós temos, e que sem esta con­
veniência, sem este m otivo, n ossa alm a não teria m ovim ento particular",
in “Trois L ettres a u R. P. Lam y”, in O.C., ed. cit., vol. XIV, p. 45-6.

158
35 C f. n o ta 14.
36 M alebranche, “T rois L ettres au R . P. L am y”, in O euvres C om plètes, ed. cit., vol.
XIV, IIS lettre, p . 79.
37 Id., “R echerche de la V érité”, in O euvres C om plètes, ed. cit., vol. I, p. 46.
38 Ibid., vol. III, p. 18-9.
39 Ibid., vol. II, p. 16-7.
4 0 C f. tex to referido n a n o ta 7 7 da seg u n da parte.
41 E spera-se u m e studo q ue n os m ostre m ais detalhadam ente e ssa inegável, m as p ouco
apontada influência de M alebranche sobre o século X V III, à sem elhança do
adm iráv el estudo que realizou R V em ière com relação a Espinoza. N a sua falta,
devem os no s contentar c o m indicações esparsas dos historiadores.
42 l s p arte, item 15, in fin e .
43 S an to A gostinho, C onfissões, P orto, L .A .I., 1958, p. 29.
44 M alebranche, “R echerche de la V érité” , in Oeuvres C om plètes, vol. I, p. 404-5.
45 Ibid.
46 Id ., “T rois L ettres au R.P. L am y ” , in O euvres C om plètes, vol. XIV, p. 104:

“E o q u e ele m esm o (D eus) p o d eria fazer para am eaçar-vos e punir-vos,


se v o ssa vontade é superior ao am or natural p o r toda felicidade?”
(L ettre III). O s p arênteses são nossos.

47 Id., “T raité de la N ature e t de la G race” , in O euvres C om plètes, ed. cit., vol. V, 32


discurso, § V III, p. 122.
48 J. D eprun, op. cit., ed. cit., p. 192. A lquié ch ega a conclusões sem elhantes (op. cit.,
cap. V II e V III, p. 299 e seg.) e c o lo ca à m ão todas as peças do dossiê.
49 Ib id ., p. 192-4 e respectivas notas. P ara evitar um a m ultiplicação excessiva e inútil
de notas, d eixem os claro, desde já, que todas as inform ações contidas neste item
foram extraídas desse texto.
50 L ocke, E ssa i P hilosophique C o n cern ant iE n te n d e m e n t H um ain, P aris, V rin, 1972
(re-edição d a e d ição de 1742, 4 a), p. 193. Citarem os o texto m ais à frente.
51 P ara se ter u m a n o ção do teo r d esses textos basta consultar, por e xem plo, o E xam en
de la'V ision en D ie u ’de M a lebranche, P aris, Vrin, 1978. N ão só se percebe como
L ocke leu e criticou M alebranche, com o tam bém pode-se acom panhar a história
d essa p olêm ica, depois d a publicação do Essay, na inform ativa introdução de J.
Pucelle, q ue acom panha o texto de L ocke (p. 7-28).
52 L eibniz, N o u vea u x E ssa is su r V E ntendem ent H um ain, P aris, G am ier-Flam m arion,
s.d., p. 139.
53 L ocke, A n E ssa y C o ncerning H u m a n U nderstanding, O xford, C larendon Press,
1975, livro IV, cap. III, § 25. D e ag o ra em diante, citarem os sem pre essa edição e,
p a ra serm os breves, in dicarem os em ordem , sem m encionar, o livro e o capítulo em
núm ero s rom anos e o p arágrafo em algarism os arábicos.
54 Ibid., IV, III, 24.
55 Ibid., III, V I, 3.
56 Ib id ., III, V I, 27; IV, V I, 15 etc.
57 Ib id ., III, V I, 3.

159
58 R. Polin, La Politique Morale deJ . Locke, Paris, PUF, 1960, p. 15-7.
59 Aristóteles, Ethique a Nicomaque, Paris, Vrin, 1959, L .1,1, 1095 a 16, p. 34.
60 Locke, An Essay Concerning Human Understanding, II, XXI, 68.
61 Ibid., II, XXI, 71.
62 Ibid., n , v n , 1.
63 Ibid., H, VE, 2.
64 Ibid.
65 Ibid., U, VII, 3.
66 Ibid., n , VII, 4.
67 Ibid., II, XX, 14.
68 Ibid., II, I, 21.
69 Ibid., H, VO, 4.
70 Ibid., II, X, 3.
71 Ibid., II, VII, 5.
72 Ibid., n, VA, 6 e II, XX, 1.
73 Ibid., II, XX, 2.
74 Ibid., D, XX, 3.
75 Ibid., U, XX, 7, 8, 9 e 10.
76 Ibid., II, XX, 14. Note-se a estranha colocação do desejo na série apresentada em
primeiro lugar. Cf., mais à frente, item 8.
77 Ibid., II, XXI, 29.
78 R. Polin, op. cit., ed. c it, p. 12.
79 L ocke, Essai P h ilo s o p h iq u e e d . c it., p. 177, n o ta 1.
80 Item 1, desta IIP parte,
81 L ocke, A n E ssa y C oncerning H u m a n U nderstanding, II, V II, 2.
82 R, Po lin ch ega à m esm a conclusão (op, cit., p. 18), só que baseado n o texto do
E ssa y, II, X X I, 2 9, referid o p o r nós n a nota 77.
83 L ocke, A n E ssa y C o ncerning H um a n U nderstanding, II, XX I, 31.
84 Ib id ., II, X X I, 40.
85 Ib id ., II, X X I, 4 5, no início.
86 Ibid,, II, X X , 6. E ssa teo ria influenciará a lguns h istoriadores d o século X V III, com o
M ably e M orelly, se é q ue este últim o p ode ser considerado um historiador.
87 Ibid,, II, X X I, 45.
88 S. G oyard-F abre, J . L o cke et la R aiso n R aisonnable, P aris, Vrin, 1986, n. 14, p, 92.
89 L ocke, A n E ssa y C o n cern in g H u m a n U nderstanding, II, X X , 6, no início. O utros
textos:

“N ó s pod em o s c h am ar esta u neasiness, tal com o ela é, de d e sejo ; o


q u al é u m a unea sin ess da m en te p o r querer algum bem ausente"
(Essay, II, X X I, 31);

“Q ue o d esejo é um estad o de u n easiness qualquer u m q ue reflita sobre


si m esm o p ode facilm ente vê-lo ” (Essay, II, X X I, 32),

90 Ib id ., II, X X I, 41, no início.

160
91 Ib id ., II, X X I, 5.
92 Ib id ., II, X X I, 15.
93 C f. tam b ém E , X X I, 25.
94 Ibid., II. X X I, 28.
95 Ib id ., II, X X I, 29.
96 Ibid., II, X X I, 2 9, in fin e .
97 Ibid., II, X X I, 33.
98 Ib id ., II, X X I, 34, no início.
99 Ibid., II, X X I, 35. L o ck e u sa o exem plo do b ebedor h abitual que, em bora saiba que
existe u m bem m elhor, qu an d o aparece a “uneasiness” , dirige-se à taverna.
100 Ibid., II, X X I, 36.
101 Ibid., II, X X I, 37.
102 Ibid., II, X X I, 38.
103 Ibid.
104 C f. item 3b, desta IIIa parte.
105 C f. item 3b, desta IIIa p arte, in fin e .
106 L ocke, A n E ssa y C oncerning H um an U nderstanding, II, X X I, 44.
107 Ibid.. II, X X I, 46.
108 Ib id ., II, X X I, 44.
109 C f. (extos referidos tias notas 27 e 28 desta parte.
110 L ocke, A n E ssa y C oncerning H u m an U nderstanding, II, X X I, 30.
111 Cf. tex to referido na nota 7 7 , da segunda p arte deste trabalho.
112 C f. texto referid o na n o ta 79 d esta terceira parte.
113 J. D ep ru n , op. cit., ed. cit., p. 193.
114 L ocke, A n E ssa y C oncerning H um an U nderstanding, II, X X I, 71.

161
IV

PRAZER
1. Essa situação, descrita por nós na parte anterior deste trabalho,
perdurará por um bom tempo até que uma nova mutação teve lugar,
segunda portanto, que reequilibrará de novo a arquitetura conceituai e
dará um novo fundamento à vida passional. M udança esta também
provisória, como sempre acontece nesse campo, mas da qual, até hoje,
somos herdeiros. Ela se deu através do maior dos seguidores de Locke.
Estamos nos referindo, é claro, a Etienne Bonnot, abade de Condillac.
Será através dele que assistiremos ao destronamento definitivo do con­
ceito de desejo como noção central para se compreender a trama da
vida passional. Isso será realizado naquela que é considerada a sua
obra máxima: o Traité des Sensations.
Situação curiosa: Condillac que, sem dúvida, fornecerá um dos
pilares e um dos estofos sobre os quais estará assentada, teórica e coe­
rentemente, um a nova concepção do homem e, que, em espécie,
fornecerá grande parte das bases daquilo que era exigido, às vezes
implicitamente, pelos apologistas do luxo para que suas posições
tivessem alguma solidez; Condillac, repetimos, não era um fanático
defensor do luxo. Ao contrário, fazia sérias reservas a este último e só
o admitia sob limitações e condições especiais1.

2. Quando Condillac publica, em 1754, o Traité des Sensations, já


era um filósofo respeitado, com uma teoria, um método e um sistema
coerente, rico e unitário. Sua filiação intelectual liga-o diretamente a

165
Locke e Newton mas tinha elaborado um a síntese própria e original.
Isso era claramente reconhecido pelos seus contemporâneos mais emi­
nentes. Nessa obra já publicada, toma partido nítido e tem posições
claras e bem fundamentadas sobre a maioria dos problemas filosóficos
e, suas posições, no essencial, estão claramente delineadas. No entan­
to, e isso intriga os analistas de seu pensamento.2 julgou necessário
com por uma nova obra. Qual ou quais as razões que o levaram a isso?
Quando o leitor folheia o Traité des Sensations encontra várias
referências ao Essai sur 1’Origine des Connaissances Humaines, publi­
cado oito anos antes e que contém o essencial das teses de Condillac.3
Condillac é pródigo em referências às suas obras, mesmo quando se trata
de retificá-las. Sobretudo no Traité des Sensations, ele multiplica essas
referências ao seu próprio discurso. Numa delas, lemos o seguinte:

“Em 1746, eu tentava apresentar a geração das fa c u l­


dades da alma. Essa tentativa pareceu nova e teve
algum sucesso; m as ela o deveu à maneira obscura
pela qual eu a executava" .4

Condillac refere-se a uma obscuridade de estilo ou a alguma difi­


culdade ou prejuízo que em perra a boa e clara exposição de seu pen­
samento? Provavelmente as duas coisas porque, se neste texto parece
estar mais preocupado com questões de estilo, num outro lugar
declara:

“Eu tinha esses prejuízos quando publiquei meu Essai sur


l ’o rigine des Connaissances Humaines”.5

Aqui Condillac está referindo-se explicitamente à idéia de que não


só há uma educação dos diferentes sentidos, um aprendizado mesmo,
como também eles se instruem mutuamente. Mas uma leitura atenta do
Essai comparando-o com o Traité mostra que há muito mais que isso
apontado por Condillac. Para ver isso com maior clareza, examinemos,
o mais brevemente possível, o conjunto das teses principais do Essai e
o seu modo de encadeamento.

166
3. O Essai, como já foi notado várias vezes, segue de perto as teses
de Locke. Mas seria falso, como se sugere em alguns textos, que ele se
resuma em repeti-lo. Aliás, é provavelmente em virtude dessa idéia
pré-concebida que uma leitura que ressalte com clareza sua originali­
dade se vê dificultada. Condillac parte de Locke mas o corrige muitas
vezes e mesmo toma caminhos próprios. Como diz Derrida:

“O empreendimento de Locke é regularmente definido


pelo Essai como um m odelo, mas um modelo a se corri­
gir e a s e completar, uma fábula ainda, a se tornar mais
histórica, mais verossimilhante” .6

Há duas espécies de M etafísica, avisa-nos Condillac, na


Introdução do Essai.1 U ma é ambiciosa, quer resolver todos os pro­
blemas e penetrar na essência íntima dos seres. A outra, mais avisada,
a verdadeira M etafísica, é aquela que “proporciona suas pesquisas à
fraqueza do espírito humano” e sabe conter-se dentro dos limites que
lhe são demarcados. A maioria dos filósofos exerceu-se na prim eira e
somente Locke abriu o caminho da segunda, limitando-a ao estudo do
espírito humano, estudando seu alcance e suas determinações. E exata­
mente esse o objetivo de estudo do Essai:

“Nosso primeiro objetivo, aquele que nunca devemos


perder de vista, é o estudo do espírito humano, não para
descobrir sua natureza, mas para conhecer suas ope­
rações, observar com que arte elas se combinam, e
como nós devemos conduzi-las, afim. de adquirir toda a
inteligência da qual somos capazes” .8

A boa via para se chegar a esse resultado será a observação,


através da qual possa se chegar a um a experiência que não possa ser
colocada em dúvida, e assim estabelecer o princípio único de “tudo
aquilo que concerne ao entendimento humano”.9 A M etafísica, assim,
nada mais será que a descrição e explicação das operações do entendi­
mento humano, sem jamais preocupar-se com sua natureza última. Ela

167
é, na verdade, uma teoria do conhecimento, cuja chave é dada pela
análise psicológica.10
Mas, desde logo ficam ressaltados o parentesco e a distância entre
o projeto de Locke e o de Condillac. Parentesco, porque ambos concor­
dam que o dado originário, a partir do qual deve-se iniciar a análise, está
na sensação tom ada com o dado prim eiro e irredutível a partir do qual
erige-se todo o edifício do conhecimento humano. Distância, porque
para Condillac ao contrário de Locke, trata-se, não de colocar esse dado
irredutível mas sim de explicar com o a partir dele advém a totalidade do
conhecimento que o sujeito pode atingir. Trata-se de examinar a pro­
dução da vida m ental com o um todo. O projeto de Condillac, portanto,
consiste em desvendar a geração das operações mentais através de sua
derivação, efetivam ente assinalada, a partir da sensação.

3.a) N ossas idéias originais são, portanto, as oriundas das sen­


sações, sem as quais estaríam os privados de qualquer possibilidade de
m ontar o edifício do conhecim ento. N as sensações é necessário distin­
guir: 1) a percepção que o sujeito experim enta; 2) a relação que é esta­
b elecida entre ela e as coisas que estão fora de nós e que são sua causa;
3) o ju ízo q ue form ulam os sobre a pertinência da relação que esta­
belecem os com essas m esm as coisas.1' A possibilidade do erro está
diretam ente vinculada ao estabelecim ento do juízo.
A partir desse dado originário, C ondillac estabelece u m a dedução
g en ética d as diferentes operações da alma:

“Não me limitarei a dar suas definições. Vou tentar encará-


las (as operações da alma) sob um ponto de vista mais
luminoso do que até aqui se fez. Trata-se de desenvolver
seus progressos, e de ver como elas se engendram todas de
uma primeira, que é apenas uma simples percepção ”.1 2

O efeito imediato e concomitante de toda percepção, enquanto


afecção do espírito, é o fato de este último advertir a presença dela
em si mesmo. Em outros termos, toda percepção é acompanhada de
consciência. Trata-se, na verdade, como avisa Condillac de dife­
rentes nomes para indicar a mesma atividade. Perceber e ter cons­

168
ciência da percepção são um a só e mesm a coisa. A penas que, en­
quanto afecção, denom inam o-la percepção e, enquanto a alma
adverte sua presença, denom inam o-la consciência.
Quando, frente a várias percepções, nossa consciência detém-se
numa delas em particular, ocorre o fenômeno que denominamos
atenção.'1Por que nossa consciência detém-se mais particularmente sobre
algumas percepções do que sobre outras? Pela razão de que algumas nos
dizem mais respeito, com relação ao estado a que nos conduzem:14

“As coisas atraem nossa atenção pelo lado em que elas


mais têm relação com nosso temperamento, nossas
paixões, nosso estado. São essas relações que fazem
com que elas nos afetem com mais força, e com que te­
nhamos delas uma consciência mais viva” .13

Quando um a percepção faz sua aparição, e o espírito adverte que


já foi afetado por ela anteriormente, que ele, em suma, a re-conhece,
temos o fenômeno da reminiscência,6 e, quando ela subsiste no espíri­
to, na ausência do objeto que a ocasiona, temos a imaginação, que
nada mais é do que um a percepção que subsiste em decorrência de
um a percepção originária que já não é mais.
Ao aplicarmos nossa atenção a diversos objetos simultanea­
mente, ou às diferentes partes de um mesmo objeto, temos a reflexão,
através da qual entrevemos tudo aquilo de que a alma é capaz. A
reflexão é, de certa forma, o acabamento do processo. O ponto inicial,
o germe de seu desenvolvimento está na percepção, e o fruto na
reflexão, que possibilita as operações de distinguir, comparar, decom­
por, analisar e sintetizar.

“Enquanto nós mesmos não dirigimos nossa atenção,


vimos que a alma está sujeita a tudo aquilo que a cir­
cunda, e só possui algo por uma virtude alheia. M as se,
senhores de nossa atenção, nós a guiamos segundo nos­
sos desejos, agora a alma dispõe de si mesma, extrai
dali idéias que ela só deve a si, e se enriquece com seus
próprios recursos” .‘7

169
3.b) Vê-se já a distância que separa Condillac de Locke. Nele
trata-se de um gérmen inicial que contém potencialmente todo o con­
junto das diferenciações que irão se explicitando no decorrer da expe­
riência. De um dado original que vai se complexificando e se expli­
cando (no sentido etimológico), até chegar a colocar o conjunto de
suas determinações diferenciais que já estavam contidas desde o iní­
cio. Em Condillac, portanto, há duas coisas a serem consideradas: o
dado inicial, a percepção, e o conjunto das diferenciações progressi­
vas, a que esse dado se submeterá até atingir seu grau pleno, que é o
que se denomina o conhecimento.
Mas, do ponto de vista do desenvolvimento das faculdades do
espírito, o elemento determinante e fundamental é a atenção. Seu
desenvolvimento, sua explicitação determinativa é responsável pela
constituição da reminiscência, da imaginação e da memória, que dife­
rem entre si por graus:

“Entre a imaginação, a memória e a reminiscência, há


um progresso que é a única coisa que as distingue. A
prim eira desperta as próprias percepções; a segunda
relembra seus signos ou suas circunstâncias, e a última
fa z reconhecer aquelas que já tivemos”

E a atenção que também, como vimos, é responsável pela com ­


paração entre as percepções, cujo grau máximo de explicitação é a
reflexão.
Condillac insiste sobretudo sobre o princípio que regula a possi­
bilidade de evocação da percepção ou de uma série delas. Aqui, segun­
do o autor, encontra-se o grande princípio que regula o conhecimento
humano. Aquele que ele denominou o “único princípio” através do
qual pode-se explicar o conhecimento que se perfaz exatamente
através dele, ou seja, a ligação das idéias:

“Parece-me que encontrei a solução de todos esses pro­


blemas na ligação das idéias, seja com os signos, seja
entre s i” .‘9

170
A ligação das idéias tem como causa a atenção que a elas confe­
rimos quando se apresentaram juntas pela prim eira vez. Nossa atenção,
no entanto, como vimos, é regulada pelas nossas necessidades que são
assim, em última instância, o princípio ordenador e compositivo.
Formam-se, assim, as cadeias associativas que estabelecem as ligações
entre as idéias, em primeiro lugar, segundo a ordem em que se mani­
festam originalmente e que, posteriormente, através de um outro fator
que veremos logo mais, se autonomizam e adquirem independência
com relação à ordem original. Formam-se, por assim dizer, cadeias
que, p o r sua vez, se subdividem, cada uma delas, em subcadeias que
se cruzam em certos pontos nodais e assim sucessivamente:

“A uma necessidade está ligada a idéia da coisa que é


própria para satisfazê-la; a esta idéia está ligada aque­
la do lugar onde essa coisa se encontra; a esta aquela
das pessoas que ali nós vimos; a esta última, as idéias
dos prazeres ou dos desgostos que delas recebemos, e
várias outras. Podemos até mesmo observar que à m edi­
da que a cadeia se estende, ela se subdivide em dife­
rentes elos; de forma que, quanto mais nos distanciamos
do primeiro anel, mais os elos se multiplicam. Uma
prim eira idéia fundam ental é ligada a duas ou três ou­
tras, cada uma destas, a um igual número, ou mesmo a
um maior, e assim po r diante” .20

Insistamos num ponto, à custa de nos repetirmos: desde o Essai


existe, discretamente colocado, um a espécie de primado do ponto de
vista “prático” (as “necessidades” regularmente evocadas) sobre o
teórico. E ele quem orienta e guia as operações do espírito. É a esse
primado que estará ligada a reviravolta na concepção do sujeito que
será operada pelo Traité des Sensations.

3.c) Existe um outro ponto sobre o qual Condillac insiste muito e


que é impossível deixar de lado. Trata-se da im portância dos signos na
constituição efetiva do conhecimento. Já vimos que a ligação das
idéias pode-se dar entre elas próprias ou entre os signos.21 N a verdade,

171
a plenitude desse princípio só será atingida quando ele operar sobre os
signos que serão os elementos principais e fundamentais na autono­
m ização do processo do conhecimento.
Condillac distingue três espécies de signos: os acidentais, os na­
turais e os de instituição. Os primeiros ligam fortuitamente alguns co­
nhecimentos entre si. Os segundos são estabelecidos naturalmente,
como os gritos emitidos pelos seres vivos e que exprimem seus esta­
dos afetivos. Os terceiros, enfim, são artificiais, instituídos pelos
próprios homens e estabelecem um a relação arbitrária entre signifi-
cante e significado.”
É sobre a noção de signo arbitrário ou de instituição que Condillac
joga todo o peso e a importância na constituição do conhecimento.
Logo depois de enunciar o princípio da ligação das idéias, Condillac
insiste no fato de que seu desenrolar pleno depende dos signos:

“As idéias ligam-se com os signos, e é apenas por esse


meio, como o provarei, que elas ligam-se entre si" ?

É a instituição dos signos que é o “princípio que desenvolve o


gérm en de todas as nossas idéias”.24 Eles, n a verdade, não são tão
im portantes e necessários para o desenvolvim ento da consciência,
d a atenção e da im aginação. M esmo a rem iniscência pode desen­
volver-se sem elas. M as, a partir daí, quer dizer, a partir da consti­
tuição d a m em ória, eles são absolutam ente essenciais. A liás, a
m em ória nada m ais é que a evocação através de signos e de circuns­
tâncias de um determ inado conjunto de eventos.15 E, retroativa­
m ente, é a própria im aginação que acaba sendo beneficiada pela
instituição dos signos:

“Mas assim que um homem começa a ligar idéias e signos


que ele mesmo escolheu, vemos a memória formar-se
nele. Uma vez esta adquirida, ele começa a dispor por si
mesmo de sua imaginação, e a dar-lhe um novo exercício;
pois graças ao auxílio dos signos que pode relembrar à
sua vontade, ele desperta, ou pelo menos freqüentemente
pode despertar as idéias que lhes são ligadas”

172
M as é sobretudo no estabelecimento da reflexão que o uso dos sig­
nos é fundamental. E todas as operações que dela dependem estão
basicamente ligadas ao uso dos signos, já que só eles tom am possíveis
as operações complexas na medida em que o signo faz o papel do sig­
nificado. Podemos im aginar uma certa quantidade de objetos mas, a
partir de um certo ponto, só o uso dos números e as operações rea­
lizadas através deles tom am possível o manejo da quantidade. O
mesmo se passa com as formas. Posso facilmente im aginar um triân­
gulo ou um quadrado mas, só através dos signos, posso pensar uma
figura de 500 ou 1000 lados.
Assim, tanto do ponto de vista da facilitação e da complexificação
das operações do entendimento, com o também a própria captação de
determinados conteúdos, dependem diretamente do uso dos signos:

“Por tudo aquilo que foi dito, é certo que a melhor


maneira de aumentar a atividade da imaginação, a
extensão da memória e facilitar o exercício da reflexão
é ocupar-se dos objetos que, exercitando mais a
atenção, ligam entre si um maior número de signos e de
idéias; tudo depende disso”.”

Mas, a grande, a enorme vantagem do uso dos signos arbitrários


está no fato de que, antes disso, o espírito do sujeito, suas operações,
melhor dizendo, não estão ainda em seu poder. Ele depende, para o
exercício delas, das ligações que são estabelecidas acidental ou natu­
ralmente e é sua repetição parcial que faz o processo associativo
deslanchar.2*Já o uso do signo de instituição faz com que, em bloco, as
atividades da imaginação, da memória, da reflexão, da comparação, da
análise e da síntese passem a depender do próprio sujeito. Ele se asse-
nhorea delas e pode dirigi-las conforme quiser:

"É pela reflexão que começamos a entrever tudo aquilo


de que a alma é capaz. Enquanto nós mesmos não
dirigimos nossa atenção, vimos que a alma está sujeita
a tudo aquilo que a circunda, e só possui algo por uma
virtude alheia. Mas se, senhores de nossa atenção, nós

173
a guiamos segundo nossos desejos, agora a alma dispõe
de si mesma, extrai dali idéias que só deve a si, e se
enriquece com seus próprios recursos” .2V

E nesse momento, e através desse artifício, que o ser humano


eleva-se acima da pura animalidade porque seus poderes já não se
encontram mais sob a dependência dos objetos (ou melhor: das per­
cepções que recebe), mas pode agora tomar por si mesmo o direciona­
mento e o rumo de seus próprios pensamentos. Pode orientá-los.
Quanto mais cresce o império dos signos mais cresce nosso poder de
dirigir e orientar e comandar a seqüência das idéias.

3.d) A originalidade do Essai não é difícil de ser percebida, sobre­


tudo se o situamos no seu tempo. É com ele que se solidifica a idéia de
que o pensamento reflexivo tem como pressuposto a instituição da lin­
guagem articulada que acaba assim por ser o elemento que traduz a
distância quase infinita que se instaura entre os homens e os animais.
O que significa dizer, em outros termos, que é devido à sua sociabili­
dade, ou pelo menos à capacidade que têm os homens de estabelecer
comércio entre si (no sentido que o teimo tem no século XVIII), que essa
diferença se instaura, pois a linguagem só é possível sob essa condição:

"Visto que os homens só podem form ar signos na medida


em que vivem juntos, é uma conseqüência disso que a
fonte de suas idéias, quando seu espírito começa a se
formar, está no comércio recíproco entre eles” /°

Essas são, em linhas gerais, as principais teses do Essai de 1746,


do ponto de vista dos problemas que estamos tratando. Trata-se, sem
dúvida, de uma doutrina coerente, metódica, sistemática e original.
Retomemos pois à questão: por que escrever o Traité des Sensafions?

4. Podemos isolar pelo menos cinco motivos que levaram


Condillac a com por o Traité. O primeiro deles, já vimos,31 é colocado

174
de uma form a um pouco vaga e difícil de ser determinado com alguma
precisão. Traía-se, vez por outra, de que Condillac reclama de certas
obscuridades do Essai. Fala mesmo numa exposição “embrulhada"
referindo-se, genericamente, a certas partes da obra sem, no entanto,
determinar com maior clareza. Essa razão talvez seja genérica e refira-
se muito mais às quatro que exporemos a seguir.
Em segundo lugar, já com precisão suficiente, Condillac invoca
certos prejuízos que estariam presentes no Essai, sobretudo o prejuízo
do dado do qual, ainda nessa obra, compartilharia com Locke.
Retomaremos a isso com m aior clareza:

“D izer que nós aprendemos a ver, a degustar, a sentir, a


tocar parece o paradoxo mais estranho. Parece que a
natureza nos deu o uso integral de nossos sentidos no
instante mesmo em que ela os form ou; e que nós sempre
nos servimos deles sem estudo, porque hoje não somos
m ais obrigados a estudá-los. Eu tinha esses prejuízos
quando publiquei m eu Essai sur 1’O rigine des
Connaissances Humaines”.32

Essa autocrítica, na verdade, é mais extensa do que pode parecer


à prim eira vista. Ela versa, de um lado, sobre o dado enquanto objeto
oferecido pelos sentidos que se apresentaria, por assim dizer, “por
inteiro”. É o sentido explícito do texto que acabamos de citar.33 M as se
relacionam os outros textos, percebem os que C ondillac está se
referindo também a um outro problema. Quer dizer, Condillac partilha
do prejuízo do “dado”, mas também daquele que certas operações da
alma também são originárias. Ou, se esse pressuposto não é compar­
tilhado por Locke, ele, pelo menos, é mais explicado no Essai:

“P or isso esse filósofo (Locke) contenta-se em reco­


nhecer que a alm a apercebe, pensa, duvida, crê,
raciocina, conhece, quer, reflete; que nós somos con­
vencidos da existência dessas operações porque as
encontramos em nós mesmos, e porque elas contribuem
para os progressos de nossos conhecimentos; mas ele

175
não sentiu a necessidade de descobrir-lhes o princípio e
a geração, ele não suspeitou de que elas poderiam ser
apenas hábitos adquiridos; ele parece tê-las visto como
algo de inato... Em 1746, eu tentava apresentar a ge­
ração das faculdades da alma. Essa tentativa pareceu
nova e teve algum sucesso; mas ela o deveu à maneira
obscura pela qual eu a executava” .34

O texto não é exatamente claro, sobretudo sobre o que Condillac


está entendendo por “maneira obscura” mas, na melhor das hipóteses,
podemos concluir que, se desde o Essai Condillac já tinha intuído o
princípio da gênese das faculdades não tinha sido, no entanto, feliz ao
realizá-la. Uma nova exposição, portanto, impunha-se para retificar o
prejuízo do “dado” e esclarecer melhor a gênese das operações do
entendimento. Em todo caso, a mudança de perspectiva de Condillac é
clara. O Traité toma uma posição radical: não só todos os conteúdos
do entendimento devem e podem ser explicados a partir da sensação,
como também as próprias operações desse entendimento devem ser
geneticamente explicadas a partir dessa mesma sensação. O conceito
de sensação transformada adquire agora plenitude de significado.
Tanto os conteúdos do conhecimento, como as operações pelas quais
chegamos a ele, serão fruto de uma elaboração, de um fazer. Passamos
da idéia de dados originais para a idéia de uma construção simultânea
do mundo objetivo do conhecimento e do próprio sujeito que conhece.
O Traité, num certo sentido, é a longa montagem de dois conceitos
capitais: o de objeto e o de sujeito.
O terceiro motivo é aquele que poderíamos denominar o motivo
“oficial” da composição do Traité, na medida em que a maioria dos
historiadores vêem nele a razão da composição da obra.35 O Essai
abria-se com a seguinte afirmação:

“Seja que nós nos elevemos, para fa la r metaforicamente,


até os céus; seja que nós desçamos aos abismos, nunca
saímos de nós mesmos; e é sempre nosso próprio pen­
samento que nós apercebemos. Quaisquer que sejam
nossos conhecimentos, se quisermos remontar à. origem
destes checaremos enfim a um primeiro pensamento

176
simples, que fo i objeto de um segundo, que o fo i de um
terceiro, e assim po r diante” .36

Afirmação que, num certo sentido, constitui um lugar comum. Ela


não diz outra coisa senão que, por exemplo, quando um sujeito vê um
pedaço de cera avermelhado, na verdade ele tem acesso direto à sua
sensação, sua representação desse objeto, que ele aceita e acredita que
existe em si no mundo material, e do qual essa sua imagem é uma
espécie de cópia. Essa é a crença elementar do senso comum. Mas
sabe-se, há muito, que é extremamente difícil demonstrar essa
“certeza” do senso comum (como muitas outras, aliás). O argumento
do sonho, entre tantos outros, é típico. Não acreditamos, enquanto so­
nhamos, na realidade daquilo que se desenrola diante de nós? Quem
garante que isso que denominamos vigília não é um longo sonho?
Dúvidas bizantinas, dir-se-á. Na prática ninguém coloca essas coisas
em questão. E isso é certo. M as há uma diferença profunda entre a
certeza, a mais enraizada em nossas entranhas, e sua demonstração. O
crente sabe perfeitamente disso. Não duvida nem por um instante da
existência de seu Deus. Mas sabe que ninguém até hoje conseguiu
provar, demonstrar sua existência. E algo, na verdade, que está além
das possibilidades de nossa inteligência. Por isso mesmo, trata-se de
matéria de crença, fé, não de demonstração.
É exatamente esse problem a que atinge o texto de Condillac
citado acima. Ao que tudo indica, jam ais duvidou que aos nossos
pensam entos correspondem objetos no mundo externo. M as, como
provar isso? Acrescente-se que, por essa época, difunde-se na França
a obra do bispo irlandês Berkeley que, decididam ente, tinha vindo ao
mundo para confundir os espíritos. De m aneira im placável, Berkeley,
através de seus textos, foi corroendo essa certeza e m ostrando (pelo
m enos ele foi lido assim) que não há a menor possibilidade de sair­
mos de nós mesmos e provarm os que existe um mundo material
externo. Cúmulo dos absurdos, sussurrava-se. M as o terrível irlandês
escapava a todas as pretensas refutações de sua tese. Tinha-se a sen­
sação clara de que havia algo profundam ente errado aí, mas ninguém
conseguia desmontar o sistema elaborado pelo ardiloso bispo. Foi
D iderot, na sua célebre Carta aos Cegos que apontou tanto o proble­
m a envolvido na afirmação inaugural do Essai quanto a ligação dela
com as teses de Berkeley.37

177
O desafio estava lançado e Condillac foi sensível já que, de fato,
a afirmação inicial do Essai era ambígua e podia contaminar a leitura
da obra toda. A questão, portanto, que se coloca é: como podemos
chegar à noção de uma existência externa, já que o dado inicial do qual
partimos é a sensação, algo que, em princípio, é subjetivo e que,
segundo os próprios postulados da filosofia de Condillac, tudo o mais
que acontece no domínio espiritual nada mais são que os avatares da
sensação, aquilo que denominou a “sensação transformada”?
O quarto motivo de composição do Traité só podemos enunciar de
forma genérica pois sua clara compreensão só poderá vir à luz con­
forme formos tratando mais detalhadamente as questões. Vimos há
pouco que uma das grandes originalidades do Essai estava na sua teo­
ria sobre o papel dos signos na constituição do conhecimento. Papel
central e capital como foi assinalado. Ora, algum tempo depois da com­
posição da obra, Condillac numa carta a Maupertuis afirma o seguinte:

“Eu desejaria que vós tivésseis mostrado como os progres­


sos do espírito dependem da linguagem. Eu o tentei em
meu Essai sur TOrigine des Connaissances Humaines,
mas me enganei e concedi em demasia aos signos” ,38

Vimos que, desde o enunciado original do grande princípio da li­


gação das idéias,30 Condillac já supõe, para o seu funcionamento, o uso
dos signos, os quais, como vimos também, vão progressivamente
tendo uma presença cada vez mais maciça e importante no decorrer do
texto. O que o autor pode ter em mente quando afirma: “concedi em
demasia aos signos”? Não só existe essa espécie de onipresença e
onipotência do signo no texto,4" como também fizemos questão de
assinalar, é através disso que se remarca a grande originalidade do
texto. O que pode significar essa colocação em questão do signo? Para
que aponta essa sugestão de destronamento da linguagem?
Na verdade, essa é nossa hipótese, esse último reenquadramento
operado por Condillac está ligado ao quinto motivo que o leVou a com­
por o Traité. Motivo que é, entre os historiadores, o menos apontado.
Trata-se, de fato, de, num primeiro nível, explicitar algo que já estava
apontado no Essai . Pois, se de um lado, o texto restringia-se, cons­
ciente e claramente, ao aspecto teórico das operações do espírito

178
humano,41 de outro, discreta mas periodicamente, afirmava que são
nossas necessidades (besoins) que orientam a ligação das idéias.42 Mas,
nem insiste muito sobre isso, nem extrai coerentemente todas as con­
seqüências que seriam possíveis. Talvez a reviravolta mais importante
operada pelo Traité esteja exatamente na consideração desse fator.
Kssa é, pelo menos, nossa hipótese: colocando, de uma vez por todas,
de forma clara e inequívoca o primado do prático sobre o teórico,
Condillac passa a pensar o eixo fundamental das operações do espíri­
to humano como centralizadas na noção de vontade. Fazendo isso,
Condillac não só reenquadrará todo o Essai, como realizará um per­
curso marcado pela mais profunda radicalidade. O Traité, veremos,
realizará uma espécie de arqueologia do Essai, levando o empirismo
ao seu maior grau de radicalidade. Rigorosamente, a leitura do Traité
deveria preceder à do Essai.

5.a) Para enfrentar todas essas questões Condillac elabora sua


célebre hipótese — que constituirá a pedra angular do Traité — de um
ser estruturado exatamente como nós, absolutamente desprovido de
todo contato sensível porque estaria revestido de uma camada de már­
more. Nessa estátua, por assim dizer, poder-se-á ir progressivamente
abrindo seus diferentes canais sensíveis (os sentidos) sucessivamente.
Trata-se uma ficção metodológica, sem a menor sombra de dúvida.
Mas, ficção indispensável, se se quer saber exatamente em que nosso
conhecimento é devedor de cada um dos sentidos e de como esses
conhecimentos constituem-se no sujeito. Indispensável também para
se saber como os diferentes sentidos interagem entre si, promovendo
essa espécie de aprendizado mútuo, e de como desenvolvem-se as
diferentes operações do espírito, a partir desse dado originário que é a
sensação. É preciso convir que, se é para se levar a sério a idéia de sen­
sação transformada, então, o único caminho viável é o escolhido. Não
supor nada, absolutamente nada, nessa espécie de Adão epistemológi-
co, a não ser uma estrutura sensível e receptiva onde se depositarão as
sensações e, a partir daí, ir metodicamente examinando como se des­
dobram nossos conhecimentos e nossas operações:

“Para preencher esse objeto, nós imaginamos uma estátua


organizada interiormente assim como nós, e animada por

179
um espírito privado de qualquer espécie de idéias. Nós
supusemos ainda que o exterior todo de mármore não lhe
permitiria o uso de nenhum de seus sentidos, e reservamo-
nos a liberdade de abri-los, segundo nossa escolha, às
diferentes impressões das quais eles são suscetíveis” .43

Mas, já de início percebemos que, construindo essa ficção


metodológica, indispensável numa análise que se pretende radical,
Condillac vê-se obrigado a supor que a estátua esteja completamente
isolada, ou seja, que haja uma total ausência do comércio recíproco
entre os diferentes sujeitos. Supor o contrário seria introduzir uma va­
riável externa que obscureceria profundamente a hipótese inicial, que
é a de examinar o desenvolvimento no interior do sujeito, única e
exclusivamente supondo essa estrutura sensível e receptiva originária.

5.b) Examinaremos como Condillac realiza essa operação com


relação ao olfato, que é o primeiro canal aberto por ele e onde o essen­
cial é dito. O olfato é, de todos os sentidos, o mais pobre. Escolha
estratégica, portanto, porque se Condillac conseguir articular suas
teses através desse sentido, a tarefa ficará mais fácil com relação aos
outros. O olfato constitui, na verdade, de “todos os sentidos aquele que
parece contribuir menos aos conhecimentos do espírito humano”.44 O
projeto consiste em tomar cada sentido isoladamente, analisá-lo para,
em seguida, tomar o seguinte, repetir a operação e depois analisá-los
conjuntamente, e assim sucessivamente, até que “considerando-os
todos, e em conjunto, veremos que a estátua se tomará um animal
capaz de velar por sua conservação”.45
A análise partirá do sentido mais pobre para chegar até o mais rico
em conhecimentos, o sentido do tato, este último sendo também o
responsável pela introdução da noção de objetividade. Além disso, ela
passará daquele dos sentidos que é o mais “subjetivo”, para aquele que
o é menos. São esses dois princípios que estão em jogo.
Ao abrir o canal do olfato, estaremos frente à seguinte situação. Em
primeiro lugar, ele recebe um odor, exclusivamente. Ela é, nesse
momento, afecção-odor e não existe a menor distinção entre sujeito e
objeto. Se se faz com que ela experimente diferentes odores, isso fará
com que ela seja sucessivamente afecção-odor “a”, afecção-odor “b”

180
ole.1'1 Enquanto afetada pelo primeiro odor, sua capacidade de sentir
esgota-se na impressão que acontece sobre seu órgão. Não se trata, para
ela, de uma imagem de algo porque, por hipótese, ela não pode pensar
assim. O solipsismo da estátua é completo. A estátua nesses instantes
originais nem sente, portanto, por exemplo, um odor de rosa, porque não
(cm a menor noção da existência desse ser. Nem mesmo sente um odor
porque, na verdade, essa afecção é seu modo de ser. Aqui, a totalidade
de sua experiência resume-se em ser-odor. Esse aroma é ela mesma:

“Se lhe apresentamos uma rosa, em relação a nós ela


será uma estátua que sente uma rosa; mas em relação a
si ela será apenas o próprio odor dessa flo r” ,47

Já nessa afecção original, toda a capacidade de sentir da estátua


está voltada inteiramente para essa impressão que se dá nesse órgão
dos sentidos. Ou melhor, através desse órgão, já que ele nada mais é
do que a causa ocasional da sensação. Esse estar mergulhada nessa
impressão que a afeta é o que se denomina atenção.™
Nesse instante ela não tem idéia de mudança, de sucessão ou
duração.49Ela só advertirá que pode deixar de ser, que pode voltar a ser
etc. porque sua estrutura sensível tem a capacidade de retenção depois
de sua ação atual:

“Se não lhe ficasse nenhuma recordação de suas modifi­


cações, a cada vez ela acreditaria sentir pela primeira:
anos inteiros viriam a se perder a cada momento pre­
sente. Portanto, limitando sempre sua atenção a uma
única maneira de ser, ela nunca avaliaria duas delas em
conjunto, ela nunca julgaria sobre suas relações” .50

Esse odor, sentido há pouco, não lhe escapa, no entanto, inteira­


mente, desde que o corpo cessa de agir. A atenção ainda a retém nisso
que foi e que subsiste como traço na sua estrutura sensível. Esse traço
será mais ou menos forte conforme a atenção foi mais ou menos viva.
Isso é a memória. Supondo-se isso e supondo-se também que seja nova-

181
mente afetada, ela ainda retém a impressão anterior. Sua capacidade de
sentir duplica-se agora entre a memória e o odor atual. A atenção
mesma divide-se entre a memória e a impressão atual. O que significa
dizer que, agora, tem duas maneiras de sentir, uma das quais se rela­
ciona com o que se passa atualmente nela, e a outra com algo que já
sentiu. Mas, nela mesma, não tem a capacidade de distinguir entre uma
lembrança e uma sensação atual, na medida em que ignora a ação atual
de um objeto tanto quanto sua própria capacidade retentiva. Só adverte
a diferença de intensidade das suas impressões.51 Nota-se já, nesse
nível, a diferença de enfoque entre o Essai e o Traité. Naquele, a
memória já era definida em função da instituição dos signos52 e seu fun­
cionamento dependia destes últimos. No Traité a estratégia é outra: ela
é definida somente em função de certa propriedade de nossa estrutura
sensível e pode funcionar sem a linguagem.
Essa experiência, crucial no Traité, faz com que a estátua perceba
que existe um estado “A” que é diferente do estado “B”. Isso introduz
a percepção de uma mudança, de uma sensação, que redunda na per­
cepção da diferença entre existir de uma determinada maneira e lem­
brar-se de ter existido de outra:

“Passando dessa forma por duas maneiras de ser, a estátua


sente que ela não é mais aquilo que foi: o conhecimento
dessa mudança faz com que ela reporte a primeira a um
momento diferente daquele em que sente a segunda; e é
isso que afaz estabelecer a diferença entre existir de uma
maneira e recordar-se de ter existido de uma outra” .53

Objetivamente, ela é ativa no ato de lembrar-se e passiva no ato de


receber uma impressão, embora, nela mesma, não possa advertir essa
diferença. Todas essas modificações ela relaciona consigo mesma,
como se fossem devidas a ela mesma.54Por outro lado, o exercício fre­
qüente da memória agirá no sentido de cada vez mais facilitar suas
operações. Desse modo a estátua criará o hábito de lembrar-se, sem
esforço, das mudanças porque passou a dividir mais claramente sua
atenção entre aquilo que é atualmente e o que foi.55 Fixado esse hábito,
ela poderá, por exemplo, depois de ter sentido sucessivamente, por
várias vezes, os odores “A” e “B” e, estando atualmente afetada pelo

182
odor “A”, dada agora sua capacidade de dirigir a atenção para ambos
os fenômenos, inevitavelmente os comparará porque

“Comparar não é senão dirigir sua atenção a duas idéias


ao mesmo tempo”

Estabelecida a possibilidade e a efetividade da comparação, inevi­


tavelmente a estátua, entre os odores “A” e “B”, notará que um não
é o outro. Ou então, sendo afetada sucessivamente, após um interva­
lo, por dois odores idênticos, não poderá deixar de advertir que, entre
o que sua memória e sua sensação atual apresentam, são um só e
mesmo odor, apenas diferindo na intensidade. Ora, estabelecer uma
relação entre duas percepções nada mais é que julgar. Vemos aqui
nascer o ato do juízo.57

5.c) Suponhamos, mais uma vez, uma sucessão de odores. Se todos


atraem igualmente a atenção da estátua, essa mesma sucessão conser-
var-se-á na sua memória, segundo a ordem em que se sucederam no
espírito, e se ligarão entre si desse modo. O princípio da ligação das
idéias estabelece-se, assim, de forma automática na estátua, e é exata­
mente essa sucessão ligada que fornece o fundamento da memória:

“Portanto, a memória é uma seqüência de idéias que fo r­


mam uma espécie de cadeia. E esta ligação que fornece
os meios de se passar de uma idéia a uma outra, e de
relembrar as mais distantes. Por conseguinte, só nos
recordamos de uma idéia que tivemos há algum tempo
porque relembramo-nos das idéias intermediárias com
maior ou menor rapidez” ,58

Notar-se-á, mais uma vez, aqui, que esse conjunto de operações dcP
espírito, que estão sendo destacadas a partir da impressão original, errt>
momento algum estão na dependência da instituição e do uso dos sig­
nos. Estamos já, como é fácil observar, num nível razoavelmente com-

183
plexo das operações intelectuais, e a linguagem não interveio para
explicar a gênese desses fenômenos. Na verdade, Condillac está recon­
duzindo sistematicamente essas operações a um princípio que já está
presente no Essai, mas de forma razoavelmente discreta, conforme
avisamos. Trata-se do princípio das nossas necessidades, que é o
grande motor que guia esse conjunto de operações:

“Todas as vezes em que está mal ou menos bem, ela se


recorda das sensações passadas; ela as compara com
aquilo que ela é, e sente ser-lhe importante voltar a ser
aquilo que foi. Daqui nasce a necessidade ou o co­
nhecimento de um bem, do qual ela julga que o des­
frute lhe é necessário”

Por outro lado, assim como no Essai, a diferença entre memória e


imaginação é uma diferença de grau e não de natureza. Isso, no entan­
to, está muito mais enfatizado no Traité, que insiste no fato de que,
quando uma sensação se retraça tão vivamente que funciona como se
o próprio órgão estivesse sendo acionado, temos a imaginação; e quan­
do se trata de um retraçar ligeiro, sem muita força, temos a memória.
Trata-se, na verdade, de uma só e mesma faculdade que funciona
segundo dois graus diferentes. O mais fraco a faz sentir na forma do
passado, e o mais intenso como se estivesse presente:

“Portanto, ela conserva o nome de memória quando ape­


nas recorda as coisas como passadas, e toma o nome de
imaginação quando as retraça com tanta força que estas
parecem presentes; portanto, a imaginação tem lugar
em nossa estátua, assim como a memória; e as duas fa ­
culdades só diferem quanto ao mais e ao menos”

5.d) Introduzindo a imaginação, Condillac coloca, ao mesmo


tempo, um terceiro tipo de atenção. Além daquela que se exerce sobre
a sensação e sobre a memória, existe a que se desenvolve com relação
à imaginação e cujo caráter é “deter as impressões dos sentidos para aí

184
substituir um sentimento independente da ação dos objetos exte­
riores”.61A imaginação tem, por assim dizer, sob certas circunstâncias,
o poder de se substituir à ação dos sentidos. Mas, é bom lembrar que a
estátua, ela mesma, não tem condições de distinguir a real diferença
entre imaginar e ter a sensação.
Em virtude de ser determinada, em condições normais, pelo
princípio de suas necessidades, ela, ao procurar aquelas impressões
que satisfazem as mesmas, pode perceber que elas podem estar em
algum ponto distante da cadeia associativa. Para conseguir esse fim, a
imaginação freqüentemente rompe a ordem natural e originária da
cadeia, passando, por exemplo, rapidamente pelas intermediárias,
mudando mesmo a ordem para atingir esse fim e, assim, acaba crian­
do uma nova cadeia que pode manipular com mais facilidade.

“Portanto, freqüentemente a imaginação é obrigada a


passar rapidamente por cima das idéias intermediárias.
Ela aproxima as mais distanciadas, muda a ordem que
elas tinham na memória, e forma com elas uma cadeia
inteiramente nova”

Nesse caso, portanto, a ligação das idéias, o grande princípio de


nossos conhecünentos, não segue a mesma ordem nas diferentes facul­
dades. E, quanto mais a seqüência constituída pela imaginação prevale­
cer, menos ela conservará aquela que lhe foi originalmente oferecida
pela memória. Através disso, também, as idéias passam a ligar-se
através de uma multiplicidade de maneiras diferentes e, na maioria dos
casos, será a ordem constituída pela imaginação que prevalecerá, isto é,
aquela através da qual o sujeito alcança seus próprios desígnios. Vê-se
claramente que o espírito, por assim dizer, assenhorear-se de si mesmo,
toma-se mestre do percurso das idéias, pressionado única e exclusiva­
mente por suas necessidades, sem nenhum recurso à linguagem, que era
a grande responsável por esse fenômeno no Essai.

5.e) Partindo do dado elementar da impressão sensível fomos


vendo como, pouco a pouco, a alma foi se elevando insensivelmente
até as operações as mais complexas:

185
“Concluamos que ela contraiu vários hábitos: um hábito
de dirigir sua atenção, um outro de recordar-se, um ter­
ceiro de comparar, um quarto de julgar, um quinto de
imaginar, e um último de reconhecer”

Ressaltemos que se, de fato, por um lado, os objetos de conheci­


mento da estátua são fortemente restritos, na medida em que não co­
nhece senão odores e as relações entre eles, de outro lado, as principais
operações do espírito humano já estão presentes, aberto esse primeiro
canal: ela é capaz de atenção, memória, juízo, imaginação etc.
Ressaltemos também que aquele que é o grande princípio do conheci­
mento humano — o da ligação das idéias — tinha no Essai, como
condição básica de seu funcionamento, a ligação das impressões com os
signos e, portanto, a instituição da linguagem. Já no Traité essa função
está diretamente ligada à imaginação. E na potência do imaginário que
se centraliza, agora, a grande distinção entre os animais e os seres
humanos. Não que a linguagem perca toda sua importância, como ve­
remos mais à frente. Apenas, Condillac aponta que existe um solo mais
originário que a linguagem e que será inclusive o suporte para ela.

5.f) Acabamos de ver, a partir da sensação, o desenvolvimento


progressivo de nossas diferentes faculdades. Voltemos nossa atenção
agora para a outra face do problema, isto é, de que conhecimentos
tomou-se efetivamente capaz a estátua, supondo-se ainda apenas aber­
to o canal odorífero?
Em primeiro lugar, passando por diversos estados que lhe
fornecem sucessivamente sensações diferentes, a estátua passa por esta­
dos sucessivos de contentamento e descontentamento, conforme essas
sensações lhe sejam agradáveis ou não, com o desenrolar do tempo:

“Portanto, ela conserva em sua memória as idéias de


contentamento e de descontentamento, comuns a várias
maneiras de ser; e ela só precisa considerar suas sen­
sações sob esses dois aspectos para delas formar duas
classes, onde aprenderá a distinguir nuanças, na pro­
porção em que mais se exercitar nisso”.64

186
Essa operação implica que a estátua isolou, como sendo comum a
um determinado grupo de estados, a idéia de contentamento, e de outro
grupo, a idéia de descontentamento. E, se abstrair “é separar uma idéia
de uma outra”,65 então é preciso convir que ela não só adquire a capaci­
dade de abstração como também adquire, por esse caminho, idéias
abstratas que são idéias gerais relativamente ao ponto do qual se par­
tiu. Da mesma forma, quando experimenta, sucessiva ou alternada­
mente, um mesmo odor, sua atenção, fixando-se nesses diferentes
traços de memória, forma a representação de um determinado odor,
isto é, forma uma idéia particular,66
Dessa mesma idéia de contentamento, na medida em que é fruto
de uma experiência agradável (como o inverso, o descontentamento, é
fruto de uma experiência desagradável), ela adquire a idéia de prazer
(e desprazer) que se toma um de seus principais objetivos.67
Da mesma forma, como distingue os diferentes estados pelos
quais passa, adquire algumas idéias, ainda que vagas, a respeito dos
números, desde que não excedam algo em torno de três ou quatro. De
qualquer maneira, a idéia de unidade firma-se no seu espírito. Mas,
sem o recurso dos signos, aqui, não pode ir muito longe,68 a não ser
pela aquisição da idéia de multidão, que nada mais é do que a idéia de
uma quantidade indefinida:

“Podemos concluir portanto que nossa estátua só abar­


cará distintamente até três de suas maneiras de ser.
Para além disso só verá uma multidão, que será para
ela aquilo que a pretensa noção de infinito é para nós.
Ela será até mesmo muito mais desculpável por enga­
nar-se sobre isso, pois é incapaz das reflexões que pode­
riam tirá-la do erro" .69

Por outro lado, se, como vimos, ela possui idéias particulares e
idéias gerais, conhece também duas espécies de verdades. Os
odores singulares são, para ela, idéias particulares. Mas vimos tam­
bém que possui idéias abstratas, como descontentamento e seu
inverso. Conhece, portanto, também, verdades gerais. Sabe, em
geral, que algumas modificações provocam descontentamento, ou­
tras contentamento.70

187
Adquirirá também, ainda que de forma vaga, a idéia de possibili­
dade, na medida em que, habituando-se a estar num determinado estado,
passa para um outro, para depois voltar ao primeiro, e assim, sucessiva­
mente, adquire a idéia de que poderá estar num determinado estado.71
Pelo mesmo princípio de mudança de estado, alternada ou contínua, a
estátua pode adquirir um conhecimento de uma duração passada, de
outro porvir, de uma duração presente e mesmo de duração indefinida.72

6.a) A lição mais interessante que Condillac extrai desse longo


inventário de como o espírito vai desenvolvendo suas faculdades,
assim como adquirindo conhecimentos, é o fato de que, com relação
ao desenvolvimento das operações, aquilo que viemos examinando
praticamente esgota as possibilidades do espírito e, portanto, pudemos
ver o nascimento de quase todas suas faculdades pela simples abertu­
ra de um canal sensível:

“Tendo provado que nossa estátua é capaz de prestar


atenção, de recordar-se, de comparar, de julgar, de dis­
cernir, de imaginar; que ela tem noções abstratas, idéias
de número e de duração; ... que ela é capaz de espe­
rança, de temor e de espanto, e que enfim ela contrai
hábitos, devemos concluir que com um só dos sentidos o
entendimento tem tantas faculdades quanto com os
cinco reunidos. Veremos que aquelas que parecem ser-
nos particulares são apenas essas mesmas faculdades
que, aplicando-se a um maior número de objetos, desen­
volvem-se mais” .73

Esta última cláusula é importante pois coloca claramente que o


que poderíamos pensar que fosse o desenvolvimento de outras fa­
culdades nada mais é que a aplicação das mesmas a um maior
número de objetos que as faz desenvolver mais. Praticamente a
única exceção neste caso, o leitor já deve ter advertido, diz respeito
à reflexão que Condillac faz depender diretamente do sentido do
tato que, incidindo diretamente sobre a constituição da objetividade,
tom a possível a reflexão:
essa atenção que combina as sensações, que delas faz
todos no exterior, e que, refletindo, por assim dizer, de
um objeto a um outro, compara-os sob diferentes aspec­
tos, é aquilo que eu chamo de reflexão”.74

Nesse nível da análise temos, portanto, de um lado, o sistema de


nossas faculdades praticamente desenvolvido- A abertura dos outros
canais e, sobretudo, seu comércio mútuo, fará com que essas mesmas
faculdades se refinem e se sofistiquem ao extremo. Mas, no geral, tudo
já está dito e o próprio Condiliac reconhece isso:

“Quase tudo o que eu disse sobre as faculdades da alma,


tratando do olfato, teria podido dizê-lo começando por
qualquer outro dos sentidos: é fácil fazer-lhes a apli­
cação. Só me resta examinar aquilo que é mais particu­
lar a cada um deles” .li

6.b) Assim, o exame subseqüente dos outros sentidos servirá muito


mais para Condiliac mostrar em que, especificamente, nossos conheci­
mentos dependem, quanto ao seu conteúdo, dos diferentes materiais
oferecidos pelas diversas classes de percepções. Não se trata, em virtude
de nossos problemas e de nossos propósitos de acompanhar Condiliac
nessa longa mas fascinante jornada intelectual, na abertura dos outros
diferentes canais, Os diferentes sentidos vão sucessivamente aumentando
o estoque de nossas idéias e complexificando nosso conhecimento.
Analisando cada um em particular, e depois em conjunto, sucessiva­
mente, Condiliac vai nos mostrando como o conhecimento é um verda­
deiro aprendizado, como os sentidos se ajudam e se educam mutuamente,
para formar progressivamente essa trama complexa do nosso saber.
Nem se trata aqui, pelos mesmos motivos, de seguir passo a passo
sua magistral análise do sentido do tato que, além de ser uma fonte
quase indefinida de nossas idéias,76 será o responsável pela catalisação
da idéia de existência exterior, constituindo assim a idéia de objeto e
objetividade, do mesmo modo que, simultaneamente, configura-se,
com maior clareza e distinção, a idéia de sujeito.77 É nesses textos que
percebemos o quanto, literalmente, objetividade e subjetividade são

189
construções para Condillac. A partir de uma massa indiferenciada e ini­
cial de impressões vai se elevando progressivamente, se constituindo e
se construindo uma unidade espiritual complexa e estruturada que tem
como correlato um mundo, ele também, complexo e estruturado.

7.a) Esse conjunto de análises elaboradas por Condillac mostra


também, além da tese da sensação transformada, duas outras não
menos importantes. A primeira delas é a de que ver, ouvir etc. cons­
tituem um aprendizado. Que os sentidos, para exercerem-se na sua
plenitude, precisam ser educados. Essa é, aliás, uma das críticas
explícitas que Condillac endereça a Locke:

“Ele (Locke) não reconheceu o quanto nós pre­


cisamos aprender a tocar, a ver, ouvir etc.” .78

De fato, não nos lembramos, na falta de um referencial preciso,


visto estarmos frente a um tempo inaugural, que houve uma época onde,
embora afetados sensivelmente, ainda não sabíamos ver, ouvir etc.:

“Não imaginamos como teria havido um tempo em


que teríamos aberto os olhos sem ver como vemos”

Apesar de paradoxal à primeira vista, aprendemos a usar nossos


sentidos. Tendemos a pensar que a natureza, ao colocar-nos no mundo,
forneceu também o uso completo e acabado, não da faculdade de sentir,
essa sim inata, mas da capacidade de um exercício pleno. Para nós o que
é um ato banal e imediato hoje não se revestiu dessas características
ontem. Pode parecer extraordinário dizer que o olho é, por si mesmo,
incapaz de ver um espaço que se localiza fora. Adquirimos há tanto
tempo esse hábito, e ele está de tal forma enraizado em nós, que não con­
seguimos imaginar que houve uma época em que as coisas não se deram
assim. O “primeiro momento em que nossos olhos se abriram à luz” 80
não nos forneceu nem a idéia de espaço, nem a de figura. Pois, “como
os olhos, cuja visão não se estende além das pupilas”,8’ poderiam ver

190
algo fora de si? Na realidade, “nossos olhos aprendem a ver” o espaço,
as figuras etc., quando aprendemos a noção de uma existência externa,
idéia esta que nos é oferecida pelo tato, e não pela visão. Aí, então, esta­
mos em condições de “perceber” que há um espaço, que as coisas estão
nesse espaço etc. Que esse “azul” que me afeta subjetivamente acaba por
se relacionar com um objeto externo, cuja noção nos é fornecida pelo
sentido do tato, mais especificamente, através do manuseio:

“A mão diz de alguma maneira à vista: o azul está em


cada parte que percorro; e a vista, por força de repe­
tir esse juízo, faz deste um hábito tão grande que
chega a sentir o azul ali onde ela o julgou”

Há, portanto, um verdadeiro aprendizado dos sentidos, e sobretu­


do um aprendizado recíproco, através do qual se constitui e se constrói
o objeto da percepção. Há uma espécie de construtivismo em
Condillac para o qual, até hoje, parece ter-se dado pouca atenção.

7.b) A segunda tese que emerge das análises de Condillac é a


respeito da noção de objetividade. O desafio lançado por Diderot con­
sistia em indicar que ou essa objetividade deveria coincidir com a
existência de um mundo exterior ou estaríamos em pleno idealismo à
la Berkeley. Vimos que um dos motivos que levaram Condillac a
escrever o Traité foi o de responder a esse desafio. Ora, que noções de
objetividade e de existência externa nos fornece o Traité?
Retomemos os dados do problema. A análise inicial dos quatro sen­
tidos (olfato, audição, gosto e visão) não nos faz dar um passo em direção
seja da objetividade, seja da noção de existência externa. Sabemos que as
“nossas sensações não são qualidades dos objetos” e nada mais são que
“modificações de nossa alma". Percebemos apenas nós mesmos através
dessas modificações83 sensíveis. O problema é claro:

“Agora, o mais difícil teria sido imaginar como nós con­


traímos o hábito de relacionar ao exterior sensações
que estão em nós”

191
Foi o tato, sabemos, que tomou possível a passagem desse con­
junto de impressões subjetivas a algo que não é propriamente o sujeito
receptivo, mas a algo que é referido como exterior ao próprio sujeito.
Através do tato o sujeito aprende a transpor um conjunto de qualidades
sensíveis (esse odor particular, essa forma específica, essa cor aver­
melhada etc.) para um algo, alguma coisa, que é um objeto sensível
que passa a ser agora o suporte desses mesmos atributos e ao qual
damos um nome: rosa:

“Mas atualmente que ela acostumou-se a tomar suas sen­


sações por qualidades dos objetos sensíveis, quer dizer,
por qualidades que existem fora dela..." *}

Assim, a estátua, que originalmente foi, ela mesma, som, sabor,


odor, cor etc., aprendeu e acostumou-se a relacionar essas sensações a
um “fora”. Mas há, nos próprios objetos, sons, sabores, odores ou
cores? “Quem pode assegurar?”.86 Isso tudo foi conseguido, sabemos,
porque a estátua “contraiu o hábito de julgar segundo o testemunho do
tato”.87 Podemos, pelo menos, dizer que existe uma “extensão” que nos
é revelada por esse último sentido?

“Mas quando ela tem o sentimento do tato, o que


apercebe senão ainda suas próprias modificações?
Portanto, o tato não é mais crível do que os outros sen­
tidos; e visto que reconhecemos que os sons, os sabores,
os odores e as cores não existem nos objetos, poderia
ocorrer que a extensão também não existisse ali” .8K

Rigorosamente, portanto, sabemos que as qualidades sensíveis


que atribuímos aos corpos não são propriamente deles. Nem estamos
certos de que existe algo, fora de nós, que denominamos “extensão”.
O que denominamos corpo é na verdade um “isso”89 desconhecido, ao
qual os filósofos atrelaram o nome pomposo de substância, mas do
qual não sabemos nada, a não ser que é sobre esse fundo desconheci­
do que nos habituamos a reportar as qualidades pelas quais somos afe­

192
tados. Unificamos e projetamos nossas sensações sobre algo de
natureza absolutamente desconhecida:

“Sinto apenas a mim, e é aquilo que sinto em mim que


vejo no exterior, ou antes, não vejo no exterior; mas
habituei-me a certos juízos que transportam minhas sen­
sações para onde elas não estão.”90

Assim, a noção de existência externa é em Condillac apenas o


pressuposto incontornável, a partir do qual se constitui a noção de
objetividade, que tem com ela somente esse elo de ligação. O con­
ceito de objetividade que se delineia em Condillac tem muitos pon­
tos em comum com certas noções mais modernas. Com uma
enorme diferença: todo o mecanismo explicativo é psicológico, e
não transcendental.
8. Avancemos um pouco mais. Fizemos questão de ir ressaltando
que existe uma progressiva evacuação da potência da linguagem no
transcorrer do Traité. Isso foi uma conseqüência inevitável de seu
pressuposto metodológico. O rigor no método impede — pela própria
hipótese inicial, a da estátua — de se supor o comércio entre os ho­
mens, condição fundamental para se pensar a instituição da lin­
guagem articulada.1'1 Isso seria introduzir um elemento exógeno que
necessariamente contaminaria a pureza dessa dedução genética, a
qual só supõe como dado originário, significativo e inaugural a
afecção sensível, da qual procurará tudo o mais derivar. Em nome
desse rigor, patente no texto, deve-se repensar a tese da quase-
onipotência do signo tal qual era exposta no Essai. Começamos a
compreender a frase de Condillac: “concedi em demasia ao signo”.92
Ainda voltaremos a falar sobre isso. Na realidade trata-se, para Con­
dillac, de ir em direção a uma camada mais elementar e fundante.
Uma camada pré-lingüística, pré-semiótica que constituirá o alicerce
do teórico e do lingüístico. .Trata-se, no Traité, de mostrar que a
cadeia dos signos não é fundante mais sim derivada. O signo, enquan­
to tal, não é inaugural, mas sim um efeito que reproduz, ao seu nível,
uma energia mais velha e original que advém da necessidade (besoin),
da paixão e que está orientada para a ação/ No Traité o teórico subor­

193
dina-se ao prático, ao conhecimento prático e é nesse sentido que ele
pode ser entendido como a arqueologia do E ssai. Atrás do signo está
a necessidade prática que é fundante em relação a ele.

9.a) E sobre o conceito de necessidade que irá girar a análise de


Condillac. Mas, ao invés de ser um conceito posto, ele será deduzido
a partir da situação original da estátua. Será preciso, portanto, que
voltemos, mais uma vez nossa atenção, a esse momento inaugural
onde o canal do olfato é aberto.
Sua abertura provoca, na verdade, dois fenômenos simultâneos. O
primeiro, que já vimos, é o fato de que, nesse instante, a estátua recebe
uma impressão sensível, um determinado conteúdo, um quê, por assim
dizer. Por exemplo, este odor particular de rosa. Nesse momento, a
estátua nada mais é do que esse odor; ela identifica-se com essa mo­
dificação. Concomitantemente a esse fenômeno existe um outro tam­
bém original, isto é, o modo como essa impressão incide na estátua.
Esse modo pode ser de duas espécies. Ou a estátua é afetada agrada­
velmente pela impressão ou ela é desagradavelmente afetada. Assim,
desde esse impacto original, ela é também simultaneamente afetada
pelo gozo ou pelo sofrimento:

"A partir deste instante ela começa a gozar ou a sofrer;


pois se a capacidade de sentir dedica-se inteira a um
odor agradável, ela é gozo; e se dedica-se inteira a um
odor desagradável, ela é sofrimento”

Como, por hipótese, ela, nesse momento, não tem e nem pode ter
nenhuma idéia das mudanças que podem lhe advir, isso significa dizer
que ela pode estar bem, sem desejar estar melhor, ou estar mal, sem
desejar estar bem.94O seu sofrimento atual não pode fazer com que
deseje um bem que não conhece, nem o gozo, o temor de um mal que
lhe pode acontecer. Assim, por mais desagradável que seja essa
afecção original, mesmo que leve ao ponto de “lesar o órgão”,95 o dese­
jo de sair desse estado não tem como se instaurar porque:

194
“A dor só ocasiona em nós este desejo porque esse esta­
do já nos é conhecido. 0 hábito que contraímos de olhá-
la como uma coisa sem a qual nós fomos, e sem a qual
nós ainda podemos ser, faz com que não possamos mais
sofrer, e que logo nós desejemos não sofrer"

O sofrimento, assim, não lhe faz desejar um bem que não co­
nhece e nem o gozo lhe faz temer um mal o qual não conhece tam ­
bém. E é isso que torna a estátua incapaz de desejar. Indicação pre­
ciosa porque a análise genética está mostrando que seu estado ori­
ginal (dor/prazer) não contém, nele mesmo, analiticamente, por
assim dizer, o desejo. Este não só é outra coisa, como também é
algo derivado e supõe, portanto, não só esse mesmo estado original,
como também, para que haja sua emergência, um conjunto outro de
condições que é preciso examinar e explicar conforme formos
detectando-as.
9.b) Conjunto de condições na verdade complexo, pois supõe que
a estátua tenha desenvolvido, mesmo que minimamente, um conjunto
de atividades que podemos, em prol da clareza e numa primeira apro­
ximação, subdividir nos seguintes momentos, supondo desnecessária,
porque já o fizemos anteriormente, a explicitação das operações que
estão em questão:
1) Supõe-se, primeiramente, como acabamos de ver, um estado
original de dor ou prazer;
2) Supõe-se, em segundo lugar, uma sucessão de estados repetidos
e alternados desses dois modos;
3) Supõe-se, em terceiro lugar, o registro na memória desses dife­
rentes estados (o que já supõe a ação anterior da atenção como sua
condição, como já foi visto). Aqui, dado um determinado estado, a
estátua tem o poder de ativar a lembrança de um outro, neutro ou opos­
to. Suponhamos que seja o oposto;
4) Supõe-se, em quarto lugar, para que a operação tenha seqüên­
cia, que a estátua seja capaz de elaborar a comparação entre esses esta­
dos sucessivos;
5) A combinação dessas diferentes noções e operações (memória,
sucessão e comparação) produz as idéias de ter sido, de ser agora e
poder voltar a ser,

195
6) Atinge-se também a noção de diferença entre o estado atual e o
passado (isto é, ter existido de outra maneira) e o poder existir de
forma anterior.
Preenchido esse conjunto de requisitos, pode-se falar então em
desejo, que nada mais é que o movimento em direção a algo operado
pelas faculdades. Isso numa primeira aproximação.

9.c) Mas, antes de examinar a constituição do desejo mais de


perto, retenhamos um pouco nossa atenção sobre esse fenômeno ele­
mentar do prazer e da dor. Falamos, há pouco, referindo-nos a esses
estados, de um possível estado neutro. Algo como um estado de indife­
rença estética. Rigorosamente falando, isso não é correto. E, esse
ponto é importante, como veremos. Os prazeres e as dores são, segun­
do Condillac, de duas espécies: corporais ou espirituais.97 Os primei­
ros são também denominados sensíveis e os segundos, intelectuais.
Mas, na verdade, trata-se de uma diferença relativa porque, num certo
sentido, todos são espirituais, já que é sempre a alma quem sente.
Noutro sentido, todos são sensíveis, porque é através dos sentidos — e
só deles — que chegamos a perceber o prazer e a dor.
Por outro lado, o prazer e a dor estão sujeitos ao aumento e à
diminuição.qs No caso do prazer, quando há diminuição, ele tende a
extinguir-se ou esvanecer-se com a própria sensação. Se há aumen­
to pode acontecer que se atinja um limiar onde ele se transforma em
dor porque “a impressão torna-se muito forte para o órgão”.99
Assim, há dois limiares do prazer: aquele que é o ponto de surgi­
mento determinado por uma fraca sensação, uma sensação tênue, e
o mais forte, onde qualquer incremento quantitativo faz com que se
transforme em dor. Da mesma forma, a dor pode aumentar ou
diminuir.100No primeiro caso, tende à destruição do organismo. No
segundo caso, no entanto, não tende, como o prazer, ao nada, mas
sim, ao transpor determinado limiar, seu término é sentido como
algo agradável.
Entre esses diferentes graus não pode existir, em si, um estado
neutro ou indiferente porque este seria sinônimo de ausência de sen­
sações e sentimentos. Desde o momento em que há sensação, a estátua
necessariamente está em estado de gozo ou sofrimento:

196
“Entre esses diferentes graus, não é possível encontrar
um estado indiferente: à primeira sensação, por mais
fraca que ela seja, necessariamente a estátua está bem
ou mal” .1CI

O que denominamos estados neutros ou indiferentes só têm senti­


do quando a estátua, tendo sucessivamente experimentado as mais
vivas dores e os maiores prazeres, acaba por julgar indiferentes (ou
deixa de encarar como agradáveis ou desagradáveis) as sensações mais
fracas quando comparadas com aquelas mais fortes.102O estado de neu­
tralidade ou indiferença não constitui algo real mas sim um hábito in­
telectual que nos leva a encarar como tais fenômenos que, em si mes­
mos, são sempre prazerosos ou desprazerosos.103

9.d) Feitas essas pontuações sobre as noções de prazer e dor,


retomemos o fio de nosso raciocínio. A constituição da memória é
uma condição essencial para que as operações intelectuais
deslanchem pois, sem elas, não lhes restaria nenhum vestígio de suas
sucessivas modificações e assim:

“... a cada vez ela acreditaria sentir pela primeira: anos


inteiros viriam perder-se a cada momento presente.
Portanto, limitando sempre sua atenção a uma única
• maneira de ser; ela jamais compararia duas delas em
conjunto, jamais julgaria sobre suas relações...” ,1(M

Mas, a pura e simples inscrição — como traços de memória —


por si só não é suficiente para que a estátua realize suas operações.
Se as impressões que a estátua recebe fossem absolutamente neutras
— isto é, se não diferissem entre si a não ser pelo seu conteúdo re­
presentativo — ela ver-se-ia frente a um desfiladeiro de imagens que
sucessivamente iriam sendo focalizadas pela atenção, que se
inscreveriam na memória e através das quais seria possível conhecer
ou reconhecer tal ou tal impressão. Mas não haveria motivo algum
para que evocasse tal ou tal imagem particular. A estátua seria como

197
que um receptor neutro, um puro espelho por onde desfilariam inces­
santemente as imagens. Ou melhor, seria como um aparelho fotográ­
fico que registraria indiferentemente toda a seqüência das
impressões. Faz-se necessário, portanto, que algo desperte seu inte­
resse nessa sucessão contínua. Algo, enfim, que introduza nessa
cadeia contínua um ponto de inflexão de tal forma que algumas
retenham mais sua atenção que outras, despertem mais seu interesse
que outras. É exatamente o par prazer/dor que vai ser o grande
responsável pela introdução dessa diferenciação que se constituirá
como um primeiro ato de avaliação:

“Se o homem não tivesse nenhum interesse em ocupar-se


de suas sensações, as impressões que os objetos fariam
sobre ele passariam como sombras, e não deixariam
rastros. Após vários anos, ele seria como no primeiro
instante, sem ter adquirido nenhum conhecimento, e
sem ter outras faculdades além do sentimento. Mas a
natureza de suas sensações não lhe permite permanecer
adormecido nesta letargia. Como elas são necessaria­
mente agradáveis ou desagradáveis, ele está interessado
em procurar umas e em furtar-se às outras; e quanto
mais o contraste entre prazeres e dores tem vivacidade,
mais ele ocasiona ação na alma” .m

O texto acima deixa muito claro que o motor fundamental que, em


última análise, aciona toda e qualquer operação do espírito — na medi­
da em que o “interesse” deve estar presente em todos os níveis — é, na
sua raiz, o par prazer/dor. Mas, para que adquira esse estatuto, para que
funcione dessa maneira, é preciso que se ligue às operações das facul­
dades porque, por exemplo, se o estado de sofrimento é, em nós, atual­
mente, acompanhado do desejo de sair dele, a razão está, como
vimos,106 em que não só esse outro estado já nos é conhecido, como
também o seu oposto. Ora, a dedução genética não pode supor isso, mas
sim chegar a isso. O que significa, por outras vias, chegar à mesma con­
clusão que chegamos há pouco: há um par de operadores fundamentais
(prazer/dor) que em ação conjunta com as operações elementares do
espírito faz nascer o desejo de permanecer ou sair de um estado.

198
9.e) O desejo, assim, não só é um conceito derivado mas supõe,
para que se instaure, a sua soldagem ao campo representativo. Ele é
sempre desejo de ... algo. Instaurado o circuito do desejo, aí então, e só
aí, o prazer e a dor passarão a funcionar como o “único princípio” que
determina todas as operações da alma:

“Assim que ela tiver observado que pode cessar de ser


aquilo que é para voltar a ser aquilo que foi, veremos
esses desejos nascerem de um estado de dor, que ela
comparará a um estado de prazer que a memória lhe
recordará. É por este artifício que o prazer e a dor são o
único princípio que, determinando todas as operações de
sua alma, deve elevá-la gradualmente a todos os co­
nhecimentos de que ela é capaz"

9.f) Chegamos, agora, a uma determinação mais clara e precisa


daqueles que são os elementos básicos e fundamentais de toda a
análise elaborada por Condillac. São dois e ambos contidos no ato
original de ser afetado por uma impressão — na sensação — : o
primeiro, enquanto conteúdo, e o segundo, enquanto modo. Toda sen­
sação contém, em primeiro lugar, algo que ela transmite (uma cor, um
odor, um sabor etc.) e, em segundo lugar, o modo como esse conteúdo
afeta a estátua: agradável ou desagradavelmente. É da combinação
concreta desses dois elementos que vai se erigir todo esse edifício
complexo que denominamos o espírito humano, tanto em relação à sua
matéria, como em relação à sua forma. O que significa dizer, para
acentuar o ponto que estamos tentando colocar em relevo, que, se
excetuamos o conteúdo sobre o qual erige-se nosso espírito, tudo o
mais depende da ação contínua do par prazer/dor:

“O princípio que determina o desenvolvimento de suas


faculdades (da alma) é simples; as próprias sensações o
encerram: pois todas sendo necessariamente agra­
dáveis ou desagradáveis, a estátua está interessada em
fruir umas e em furtar-se às outras. Ora, nós nos con­
venceremos de que basta esse interesse para dar lugar

199
às operações do entendimento e da vontade. O juízo, a
reflexão, os desejos, as paixões etc. são a própria sen­
sação que se transform a diferentemente. Foi por isso
que pareceu-nos inútil supor que a alma recebe direta­
mente da natureza todas as faculdades de que é dotada.
A natureza nos dá órgãos para advertir-nos, pelo prazer,
daquilo que devemos procurar, e pela dor, daquilo de
que devemos nos afastar. M as ela se detém ali; e deixa
à experiência o zelo de fazer-nos contrair hábitos, e de
acabar a obra que ela com eçou”.m
9.g) Esse par prazer/dor funcionará assim , respeitadas as
condições já apontadas acim a, em todos os níveis, e será, num certo
sentido, fundante e constituinte. Desde o nível o mais elem entar — o
da atenção'09 — , passando pela com paração,110 pela constituição da
mem ória ativa,111 pela im aginação,"2 até o nível mais sofisticado que
a estátua pode atingir,"3 será ele e sempre ele que estará operando na
construção tanto do cam po do saber como do próprio sujeito. Ele é
“o princípio que determ ina o desenvolvimento das faculdades”.1'4 É
“o único princípio que determina todas as operações da alm a”."5É “o
prim eiro m óvel”116e “determ ina sempre a ação de suas faculdades”.117
N ós somos, assim, sempre-movidos pelo prazer e pela dor.1'8
Inútil multiplicar as referências: essa idéia de que na medida em
que não há sensação indiferente então o prazer e a dor constituem a “lei
segundo a qual o gérmen de tudo isso que somos desenvolveu-se para
produzir todas nossas faculdades”"y é absolutamente onipresente no
texto do Traité. O próprio Condillac é explícito sobre isso:

“É sobretudo na primeira parte (da obra) que dedicamo-


nos a demonstrar a influência dos prazeres e das dores.
Não perdemos de vista esse princípio no decorrer da
obra, e nunca supomos nenhuma operação na alma da
estátua, nenhum movimento de seu corpo, sem indicar o
motivo que a determina" .m

Condillac oferece, por outro lado, vários exemplos onde a


exceção vem confirmar a regra. Tomemos, por exemplo, o caso dos

200
sonhos. Nesse estado psíquico, segundo Condillac, o espírito não fun­
ciona segundo as condições normais. Ele opõe-se tanto ao estado de
sono completo como ao de vigília. No estado de sonho, algumas fa­
culdades ainda operam no sujeito mas à sua revelia completa e apenas
“sobre uma parte das idéias adquiridas”.121 Nesse caso. a ação do
espírito — ela mesma limitada — perfaz-se sobre um material incom­
pleto e vários anéis da cadeia associativa são interceptados por essa
deficiência e a ordem das idéias no sonho não pode ser a mesma que
a do estado de vigília. E, no sonho, “o prazer não será mais a única
causa que determina a imaginação”.122
9.h) Assim, esse princípio funciona em três níveis básicos:
1) na estruturação progressiva de nossas faculdades:
2) no próprio encadeamento de nossas idéias — de nosso co­
nhecimento, portanto. A memória e a imaginação suprem, no Traité, o
papel dos signos na ligação das idéias que continuam sendo o princípio
de nossos conhecimentos. É através dela que as seqüências de idéias
são estabelecidas e nosso saber se instaura. Mas, a ordem da seqüência
— se excetuamos a seqüência original — é, no entanto, detenninada
pelos motivos e interesses — e, em última instância, portanto, pelo par
aprazer/dor — que acaba por — abreviando, condensando, estendendo
— criar várias seqüências paralelas, laterais, subcadeias etc. que intro­
duzem a teleologia no processo. Não só este último ponto como tam­
bém, através disso, a possibilidade de domínio, de senhorio do proces­
so, é possibilitado pela evitação da dor e a busca do prazer;
3) por fim, o conjunto de nossas ações é também determinado por
esse princípio. Todos nossos atos — desde o mais elementar movi­
mento é regido por esse princípio:

“Sem o prazer, nossa estátua nunca teria a vontade de


mover-se, sem a dor, ela se transportaria com segu­
rança e infalivelmente morreria. Portanto, é preciso
que ela sempre esteja exposta a sensações agradáveis
ou desagradáveis. Eis o princípio e a regra de todos os
seus movimentos. O prazer a liga aos objetos, a engaja
a prestar-lhes toda a atenção da qual ela é capaz, e a
form ar-se idéias m ais exatas desses objetos. A dor afas­
ta-a de tudo aquilo que pode fazer-lhe mal, torna-a

201
mais sensível ainda ao prazer, faz com que ela discirna
os meios de desfrutá-lo sem perigo, e lhe dá lições de
indústria; em uma palavra, o prazer e a dor são seus
únicos mestres” .m

É sempre a partir desse núcleo originário e constitutivo que


Condillac pensa a modelagem do espírito humano nas suas diferentes
dimensões. É também a partir daí que ele poderá redefinir com maior
precisão o papel e a função das noções de necessidade e desejo.

9.i) Por outro lado, não é difícil perceber que, embora possa-se falar,
por uma licença de linguagem, num primado do prazer, na busca do
prazer em Condillac, o fato é que, nesse par prazer/dor, o elemento ori­
ginariamente ativo é a dor em todas as suas nuances quantitativas.124 E
ela (a “mais importuna das sensações”, como dizia Locke) que constitui
o verdadeiro motor que atua incessantemente na estátua. E verdade que,
em condições normais, ela só pode atuar se houver — como contrapon­
to — um outro pólo — o estado de ausência de dor ou o estado de pra­
zer — que funcione como foco de atração. E isso só pode acontecer
porque a estátua representa esse outro pólo como algo onde deve chegar.
Esse “objeto de representação” que atua teleologicamente parece ser a
condição para que o estado desagradável atue de maneira eficaz.
Repetimos: normalmente é assim que as coisas se passam. Mas nem
sempre esse pólo representacional está presente. Aliás, originalmente
não está. Foi por não terem dado a devida atenção a esse ponto que
alguns autores, como veremos, puderam falar num primado do entendi­
mento sobre a vontade em Condillac. Basta, no entanto, que tomemos a
experiência paradigmática da fome, tal como aparece no Traité, para que
nos convençamos do contrário. Retomemos essa análise.

10. Embora o sentido do paladar seja aquele que menos precise ser
educado, na medida em que é absolutamente necessário para nossa
conservação,125 ele é, no entanto, sob um certo ângulo, fruto de um
aprendizado já que “quando a estátua experimenta pela primeira vez o
sentimento da fome, esta não pode ainda ter objeto determinado”,126na
medida em que desconhece os meios para satisfazê-la. Nesse estado,

202
portanto, não quer nada absolutamente determinado. Sente apenas o
impulso de não permanecer no estado em que está.127
É neste instante que podemos captar o conceito de necessidade
(.b esoin) no seu estado puro e original. Ele refere-se basicamente a esse
estado de mal-estar que provoca no sujeito o impulso de sair daí, de
afastar-se. Ela é esse impulso causado pelo mal-estar. No caso que
estamos analisando, esse estado de mal-estar espalha-se por todo corpo
e, logo em seguida, concentra-se mais fortemente nos lábios e na boca
da estátua.128Aí, então:

“... ela leva os dentes a tudo aquilo que se lhe apresen­


ta, morde as pedras, a erva e sua primeira escolha é
alimentar-se das coisas que menos resistem aos seus
esforços. Contente com uma alimentação que a satis­
fez, não pensa em procurar uma melhor. Ela ainda não
conhece outro prazer em comer do que aquele de dis­
sipar sua fom e" .m

É nesse momento, portanto, que a necessidade, aguilhoada pela


dor, encontra o objeto que a satisfaz, que faz extinguir o conjunto das
sensações desagradáveis. Mas isso significa dizer que esse objeto,
encontrado através da experiência, só a partir desse momento entra na
cadeia representativa e passa a funcionar como representação-meta à
qual todo o circuito associativo se liga e, aí então, lhe fornece sentido,
o perfaz e fecha esse campo. Só aí então pode-se fazer dele aquilo para
o que tende a estátua. Pode enfim nascer o desejo:

“Agora sua fome não é mais, como antes, um sentimento


que não tem objeto determinado; mas ela dirige todas as
faculdades para obter o gozo de tudo aquilo que pode
dissipar sua fom e”.130

A contraprova de que esse estado original de dor ou mal-estar é o


motor de toda atividade — psíquica ou motora — está nas seguintes
considerações que Condillac elabora na parte final do Traité:

203
“Se nós imaginamos que a natureza dispõe as coisas de
modo a prever todas as necessidades de nossa estátua,
querendo comovê-la com as precauções de uma mãe,
que teme ferir seus filhos... este estado nos parecerá
talvez digno de inveja. Todavia, o que seria um homem
dessa espécie? Um animal adormecido em uma profun­
da letargia. Ele existe, mas permanece como é... Incapaz
de observar os objetos que o circundam, incapaz de
observar aquilo que se passa nele mesmo, sua alma se
divide indiferentemente entre todas as percepções às
quais seus sentidos dão passagem. Semelhante de algu­
ma maneira a um espelho, sem cessar ele recebe novas
imagens, e nunca conserva alguma delas" .m

Esse estado, portanto, é inútil e inaproveitável do ponto de vista do


desenvolvimento espiritual do sujeito. Nesse caso não há motivo para
ela ocupar-se com o que quer que seja: nem consigo mesma, nem com
outra coisa. Por hipótese, a natureza provê tudo para a estátua e prevê
todas as suas necessidades. Sendo assim, nada mais distante que o mal-
estar e a dor1’2e não há nenhum motivo para que ela realize qualquer ato.
Mesmo a hipótese, levantada logo a seguir por Condillac, de uma
situação onde a necessidade e o desejo aparecem mas não são imedia­
tamente satisfeitos conduz também às mesmas conclusões prece­
dentes. Portanto, estado também inaproveitável, já que não conduz a
nenhum aprendizado.
Basta, no entanto, que se introduza um certo hiato, entre o apare­
cimento do mal-estar e sua possível satisfação, para que as condições
do desenvolvimento se instaurem:

“Mudemos a cena, e suponhamos que a estátua tenha


obstáculos a ultrapassar para obter a posse daquilo que
deseja. Agora as necessidades subsistem por muito
tempo antes de serem satisfeitas. O mal-estar, fraco em
sua origem, torna-se insensivelmente mais vivo; ele se
transforma em inquietude, por vezes termina em dor.
Enquanto a inquietude é leve, o desejo tem pouca força,
a estátua sente-se pouco pressionada a gozar: uma sen­

204
sação viva pode distraí-la e suspender sua dor. Mas com
a inquietude o desejo aumenta; chega um momento em
que ele age com tanta violência, que só se encontra
remédio no gozo: ele se transforma em paixão" .,34

11. Estamos agora, por outro lado, em condições de entender me­


lhor as idéias de necessidade, desejo, paixão e vontade. Originalmente
a necessidade nada mais é que o estado conseqüente do de mal-estar e
pode ter variações quantitativas. Mais tarde, quando, pela experiência,
a estátua aprendeu qual o objeto que satisfaz a necessidade — elimi­
nando o mal-estar — por extensão, usa-se o termo necessidade refe­
rindo-se aos próprios objetos que a satisfazem.135 Mas, com precisão,
esse último fenômeno refere-se ao desejo que é a necessidade já liga­
da à representação do objeto que a satisfaz e que induz à ação. Ou me­
lhor, é a ação de nossas faculdades que se determinam em direção a
esse objeto.136A paixão é o hábito ou o costume de desejar.137Por fim,
a vontade é a fixidez e a unilateralidade do desejo. Ela nada mais é que
um desejo que passou a ser dominante.138

12. Essas concepções de Condillac deram margem a duas


grandes linhas de interpretação. A primeira, que se pode denominar
voluntarista tem, talvez, em Cassirer, seu maior representante. A
segunda, mais difundida e, recentemente, defendida por J. Deprun,
pode ser nomeada de intelectualista. A argumentação de Cassirer131’
pode ser enunciada como se segue. Na medida em que o estado ori­
ginal da estátua é determinado pelo mal-estar, o motor originário do
espírito não se encontra na representação, mas no desejo ou esforço
de sair desse estado.140 Nesse sentido a vontade deixa de ser causada
pela representação passando esta, na verdade, a ser causada por aque­
la.141 Seguindo essa linha de raciocínio, Condillac seria o primeiro
pensador a postular uma atitude “voluntarista”, cujos rastros podem
ser seguidos até a filosofia de Schopenhauer.142 Já J. Deprun,143 pre­
cedido aqui por F. Alquié,144 argumenta que se, para Condillac, o
desejo nasce do mal-estar e este último nada mais é que a privação
de um objeto primeiramente julgado agradável, então é o juízo — e,
portanto, o campo da representação — que é primordial. Nesse sen­
tido, Condillac seria ainda um bom herdeiro da postura intelectua-

205
lista e seria melhor “inverter a fórmula de Cassirer e dizer que, em
Condillac, a vontade é causada pela representação”.145
A questão é delicada e não parece fácil tomar um partido.
Podemos arriscar uma hipótese que, talvez, reconcilie ambas as
posições. Ela consiste, basicamente, em distinguir dois níveis da
questão. Num primeiro nível, respeitando estritamente a ordem
genética (que, afinal, é a do Traité), o mal-estar e o esforço são real­
mente originários. A análise do fenômeno da fome nos provou
cabalmente isso. Não existe, originalmente, um objeto representado,
na falta do qual o sujeito orientaria seu desejo e sua ação. O próprio
desejo, como vimos, é constituído através da experiência. Além do
que, essa postura coaduna-se bem melhor com a tese de Condillac
sobre o primado absoluto do prazer e da dor na constituição do dese­
jo do sujeito:

“O prazer e a dor, únicos princípios de meus desejos" .l4r>

O termo princípio, aqui, como quase sempre acontece no Traité,


reenvia ao componente geneticamente originário.
Mas, se consideramos, agora, a questão num segundo nível,
supondo-se já instaurado o circuito da necessidade e do desejo, quer
dizer, que já tenha havido a ligação ao campo representacional ade­
quado, então, e só aí então, a representação do objeto passa a funcionar
como o pólo que aciona tanto a necessidade quanto o desejo. A consti­
tuição completa do circuito como algo teleologicamente orientado é
simultânea à introdução do campo representacional como aquilo que
agora exerce o primado. Mas, o importante é não esquecer que esse
campo é construído e derivado. Ele superpõe-se a um solo mais ori­
ginário onde o campo representacional é instaurado e não instaurador.
Nesse sentido, a solução de Cassirer parece-nos mais próxima da
intenção última de Condillac.

13.a) Retomemos agora nossa atenção para esse fenômeno do


mal-estar. Sendo determinado pelo par prazer/dor ele está, como
vimos, também sujeito a variações quantitativas. Ele representa, na
verdade, o grau mais baixo da escala:

206
“Eu chamo de mal-estar ou leve descontentamento o sen­
timento que ela experimenta: agora a ação de suas fa ­
culdades e seus desejos são mais fracos” ,'47

Na medida em que o sentimento desagradável torna-se mais vivo


e intenso temos a inquietude ou tormento.148Nessa situação seus dese­
jos e a ação de suas faculdades são também mais intensos. Assim, do
prazer e da dor, mas sobretudo desta última, nasce o mal-estar cujo
grau máximo é a inquietude que, por sua vez, atiça em grau máximo o
desejo. Sendo essa a verdadeira ordem é preciso, portanto, retificar a
tese de Locke que, neste particular, viu mal as coisas. Ele confundiu
aquilo que produz o desejo — a inquietude — com o próprio desejo:

“... mas querendo definir o desejo, ele (Locke) o confundiu


com a causa que o produz. A inquietude, diz ele, que um
homem sente em si mesmo pela ausência de uma coisa
que lhe daria prazer se ela estivesse presente é aquilo
que chamamos de desejo. Logo seremos convencidos de
que o desejo é outra coisa que essa inquietude” .m

Condillac inverte, assim, a ordem estabelecida por Locke. A


inquietude é, geneticamente, primordial, e é também o princípio que
aciona a educação dos diferentes sentidos.150 Essa montagem concei­
tuai de Condillac parece ser mais coerente e harmoniosa que a elabo­
rada por Locke além de, ao que tudo indica, dar conta melhor dos fenô­
menos. Isso ele consegue escalonando de forma diferente os fenô­
menos. A ordem real, segundo Condillac, seria a seguinte: prazer/dor
— inquietude — necessidade — desejo — satisfação.

13.b) O leitor já deve ter percebido que, após essa caminhada,


estamos de novo frente ao fenômeno que viemos analisando desde seu
aparecimento no texto de T. Hobbes:'5' esse movimento incessante que
caracteriza a vida humana, denominado metaforicamente de “corrida”
por este último, “inquietude” por Malebranche, e focalizado através do
par “uneasíness/desíre” por Locke.

207
Apesar de criticar Locke na leitura do fenômeno, num ponto
Condillac está de acordo com ele: a inquietude não é algo que trans­
parece no decorrer do movimento do próprio sujeito nessa constante
corrida através de inumeráveis objetos que apenas satisfazem momen­
taneamente seu desejo. Neste ponto Condillac também critica a con-
ceituação malebranchista, e de forma explícita:

“Os sentimentos que nos são os mais familiares são por


vezes aqueles que temos mais trabalho para explicar.
Aquilo que chamamos de desejo é um exemplo disso.
Malebranche o define como o movimento da alma, e
nisso ele fala como todo o mundo”

Neste ponto, Locke e Condillac estão de acordo: a inquietude não


emerge na passagem contínua de um objeto para outro, mas está con­
tida no próprio movimento em direção ao objeto singular. Mas isso
não deve nos fazer esquecer de que há um profundo desacordo entre
ambos na conceituação do fenômeno cujo alcance é bem maior do que
se possa pensar à primeira vista. De fato, ao realizar essa análise,
Condillac produz um novo enquadramento conceituai da questão con­
cernente aos fundamentos da vida passional provocando a segunda
grande mutação neste campo. A primeira, lembremo-nos, foi realiza­
da por Hobbes. Agora, tendo distinguido a inquietude do desejo e
mostrado que é a primeira que está muito próxima — se é que não se
confunde — da “uneasiness”, enquanto que o segundo é alguma coisa
de ordem diferente, Condillac faz com que o par prazer/desprazer
acabe por ocupar o lugar fundamental e primeiro na genealogia e na
hierarquia das paixões. Retomemos, dos vários, um texto onde essa
mudança fica clara:

“A partir do momento em que nela há gozo, sofrimento,


necessidade, desejo, paixão, há também amor e ódio.
Pois ela ama um odor agradável do qual goza ou que
deseja. Ela odeia um odor desagradável que a faz
sofrer. .153

208
A inversão da escaia é, agora, completa. Lembramo-nos de que
partimos da escala tradicional, assim estruturada:
Amor — Ódio
Desejo — Aversão
Prazer — Desprazer
Com Hobbes ela se modifica substancialmente e o par
desejo/aversão é que passa a ser originário:
Prazer — Desprazer
Desejo — Aversão
Amor — ódio
Agora, com Condillac, temos:
Prazer — Desprazer
Desejo — Aversão
Amor — Ódio
Tendo isso em mente, podemos compreender melhor o ver­
dadeiro alcance e profundidade de uma afirmação do Traité que
seguramente pode passar por pretensiosa, sobretudo para aqueles que
insistem em ver em Condillac um mero discípulo, ligeiramente indis­
ciplinado, de Locke:

‘Este objeto é novo, e ele mostra toda a simplicidade das


vias do autor da natureza. Pode-se não admirar que só
tenha sido preciso tornar o homem sensível ao prazer e
à dor para fazer nascer nele idéias, desejo, hábitos e ta­
lentos de toda espécie?” 154

Se realizarmos alguns recuos temporais percebemos que, de fato, a


mudança conceituai operada por Condillac no Traité não foi de pouca
monta. Em primeiro lugar, com relação ao próprio Essai publicado em
1746, a mudança jã é significativa. Nesse texto, é verdade, afirmava-se
que o princípio motor atuante deveria estar referido, em última análise,

209
ao conceito de necessidade, como vimos. Mas, no texto, não é difícil
notar que esse conceito é amplo, vago e mal definido. Ele é muito mais
apontado e referido do que propriamente definido. Lembremo-nos tam­
bém, como procuramos mostrar na primeira parte deste trabalho, de que
o conceito de necessidade está sofrendo, desde particularmente a segun­
da década do século XVIII uma séria mutação semântica na qual é
sobretudo alargado em demasia e ameaça mesmo ficar embaralhado. A
análise da “querela do luxo” mostra inequivocamente que esse, como
muitos outros conceitos, embora tenha passado a ser capital, necessita de
um trabalho de redefinição conceituai que o delimitasse claramente
assim como oferecesse suas bases conceituais. Mesmo num texto relati­
vamente bem equilibrado como o de St.-Lambert, percebe-se a necessi­
dade de se explicitar e fundamentar essa nova concepção que, na maio­
ria das vezes, está meramente indicada nos textos. Trabalho árduo e
complicado que implica dar precisão a noções que estão emergindo com
um novo significado e como fundamentais. Tal é o caso da noção de
desejo, necessidade, insaciabilidade, potência do imaginário etc. Esse
trabalho teve, seguramente, seu início com T. Hobbes e terá seu acaba­
mento no Traité des Sensations porque aqui, ao contrário do Essai,
adquirir-se-á uma grande precisão.
Se levarmos em conta as conceituações já explicitadas anterior­
mente, o raciocínio de Condillac encadeia-se de forma cristalina, for­
mando um todo coerente e harmonioso:

“Mas assim como sem experiência não haveria conheci­


mentos, não haveria experiência sem as necessidades, e
não haveria necessidades sem a alternativa dos pra-
zeres e das dores. Portanto, tudo é fruto do princípio
que estabelecemos desde o início desta obra” .155

Sem necessidade não há experiência, no sentido positivo do


termo. Sem a ação do princípio prazer/dor não se pode conceber a idéia
de necessidade. Assim, o solo originário e constitutivo da própria
experiência é esse princípio fundamental, que está na base, o que
denominamos o princípio do prazer, respeitadas as reservas feitas ante­
riormente. Não é por acaso que Condillac afirma que ele está agindo
incessantemente no desenrolar de toda a obra.156

210
Mas, se (Operamos um recuo temporal maior, aí então, como já
apontamos, percebemos a verdadeira reviravolta operada por
Condillac. C om ele, o pressuposto central da filosofia clássica vem
abaixo. Deixasse definitivamente de se pensar na preexistência de um
bem objetivo <do qual o sujeito deve necessariamente acercar-se e aban­
dona-se tam bém a tese correlata do primado do representacional sobre
o volitivo. A partir do Traité, com uma clareza talvez nunca atingida
anteriormente?, todo o domínio da vida espiritual (tanto no plano do
entendimento, como no plano da vontade) está subordinado a isso que
podemos denominar o princípio do prazer. É porque causa prazer que
o objeto é apetecível. E é por essa razão que ele será valorizado e se
tornará digno de inspeção teórica, de conhecimento:

“Daqui minhas necessidades, meus desejos e os diferentes


interesses que são o móvel de minhas ações; de forma
que sá estudo as coisas na proporção em que acredito
descobrir ali prazeres a procurar ou dores a afastar” ,157

Todo o domínio do entendimento, todo plano teórico nasce e se


desenvolve subordinado inegavelmente a esse princípio fundamental.
O teórico é derivado. Releiamos uma das muitas passagens do Traité
onde tudo isso é admiravelmente sintetizado:

“ Enfim, se consideramos que não existem sensações abso­


lutamente indiferentes, concluiremos mais uma vez que os
diferentes graus de prazer e de dor são a lei segundo a
qual desenvolveu-se o gérmen de tudo aquilo que somos,
para produzir todas as nossas faculdades" J58

14.a) A partir dessa nova conceituação Condillac poderá repensar


um conjunto de noções. Em primeiro lugar, o campo e o papel da ima­
ginação. Partindo de uma definição mínima — o poder de reatualizar as
sensações passadas — Condillac mostrará, progressivamente, que ela,
impulsionada pela necessidade, passará a exercer um papel cada vez
mais amplo. Logo, no entanto, ela irá representar várias qualidades que

211
não se encontram juntas no campo perceptivo e irá usufruir dessa nova
combinação. Nesse caso, o sujeito irá imaginá-las reunidas e “sua ima­
ginação lhe proporcionará um gozo que não poderia obter”.159 Aqui, a
imaginação já adquire um sentido mais amplo: ela é a “faculdade que
combina as qualidades dos objetos para formar conjuntos nos quais a
natureza não oferece nenhum modelo”.160Assim, além de ter o poder de
constituir cadeias associativas autônomas com relação à cadeia percep-
tiva, como vimos, ela também possui o dom de instaurar objetos novos
através dos quais o sujeito encontra um novo campo de satisfação. O
imaginário passa, de uma certa maneira, a ser constitutivo na medida em
que tem o poder de instaurar um novo domínio.
Em segundo lugar, a estátua, por um jogo sutil, acaba por juntar à
satisfação de suas necessidades um efeito concomitante. Não só satisfaz,
por exemplo, sua necessidade de alimentar-se, ao comer um fruto, mas
acaba por sobrepor o próprio gosto, um determinado sabor, aos outros:

“Portanto, ela (a estátua) logo mistura juízos ao prazer


que sente ao fazer uso de um fruto. Se ela não o mis­
turasse, seria levada a comer apenas para se alimentar.
Mas este juízo, ele é bom, ele é excelente, ele é melhor
que qualquer outro, faz-lhe da sensação que um fruto
pode produzir uma necessidade. Agora, o que basta à
sua alimentação não basta ao seu prazer. Existem nela
duas necessidades, uma causada pela privação de ali­
mento, outra pela privação de um sabor que merece a
preferência; e este último é uma fome que por vezes a
engana, e que a fa z comer além do necessário" .161

Nesse instante, a estátua rompe o ciclo do necessário e instaura o


campo do não necessário à ordem vital. Ela introduz o campo do
supérfluo e a possibilidade do excesso. Já não está pressionada única e
exclusivamente pelas necessidades vitais que a faz desejar o necessário
mas, agora, duplica ou triplica o campo fazendo com que se alongue
desmesuradamente o campo de suas necessidades. Passa a viver sob
um regime no qual o desejar mesmo passa a ser uma necessidade
porque fazendo de sua atividade um campo no qual se desdobram
novas necessidades incessantemente, ela acaba por fazer dessa mesma

212
atividade o objeto do desejo, “o desejo de novas necessidades”.162 E,
essa multiplicidade virtualmente indefinida, aberta pela nova combi­
natória, faz com que o campo do humano seja essa incessante atividade
de desejar cada vez mais novos objetos:

“Portanto, desejar é a mais premente de todas as nossas


necessidades; por isso, mal um desejo é satisfeito e for­
mamo-nos um outro. Freqüentemente, obedecemos a
vários ao mesmo tempo, ou, se não o podemos, dispo­
mos para um outro momento aqueles aos quais as cir­
cunstâncias presentes não nos permitem abrir nossa
alma. Assim nossas paixões se renovam, se sucedem, se
multiplicam, e nós vivemos só para desejar e na medida
em que desejamos” .163

E eis que, mais uma vez, estamos frente ao fenômeno da corrida


do desejo, tão característica da vida humana, descrito por Hobbes,
repensado por Malebranche e Locke, reenquadrado por Condillac.
Mas, se o fenômeno descrito é, em linhas gerais, o mesmo, há uma
enorme distância entre essa nova conceituação e as anteriores. Sob um
certo ângulo, de Hobbes a Condillac, ao que assistimos foi um pro­
gressivo aprofundamento da análise, uma explicitação cada vez maior
das condições do próprio fenômeno. Em Hobbes assistimos a uma
descrição do fenômeno apontando que nessa corrida estão a vida e a
felicidade humanas. Já Malebranche tenta explicitá-lo como o corre­
lato inevitável de nossa aspiração à felicidade e ao bem. Locke apon­
tou o par “uneasiness/desire” como sendo o motor dessa corrida e
Condillac, operando as distinções que julgou necessárias, mostra que
o fundamento último, para ele, está nessa nossa irresistível e natural
atração pelo prazer e aversão à dor.

14.b) Em terceiro lugar, é bom ressaltar um ponto que viemos


apontando desde o início de nossa discussão sobre Condillac. A está­
tua é sempre movida ou pela intensidade de um bem que não possui
ou pelo escasso grau de prazer ou dor atual que a afeta.164 Seus
móveis — inclusive para adquirir e arquitetar seus conhecimentos —

213
são práticos. O que está sendo visado pela estátua, ou meihor, o
resultado de suas operações, é a sua própria conservação. Aqui,
neste ponto, Condillac afasta-se da tradição hobbesiana na medida
em que para ele, a conservação não é um dado, um “conatus” ori­
ginário, mas sim algo adquirido.165 É obedecendo à sua tendência
primária de afastar-se da dor e procurar o prazer que a estátua
aprende a se conservar. Mas essa conservação de si é um resultado e
não algo dado originariamente.
Em quarto lugar, o Traité des Sensations é a longa demonstração
de como um sujeito isolado, sem comércio com os outros e, portanto
sem linguagem, é capaz de erigir um conjunto de conhecimentos e de
práticas necessárias e suficientes para sua manutenção. Todos os atos
da estátua têm um alvo prático. Vimos, anteriormente, que o Traité
provoca uma progressiva evacuação da potência da linguagem e dos
signos. Mas isso não significa dizer que Condillac pura e simplesmente
abandonou as teses do Essai. Ele as enquadrou de maneira diferente.
Todo e qualquer passo a mais que tome possível a saída desse estado
original e que amplie sua gama de conhecimentos terá como condição
a instauração do uso dos signos e da linguagem:

"Ora, uma análise feita sem signos só pode fornecer co­


nhecimentos muito limitados; estes são necessariamente
de pequeno número; e como não foi possível ordená-los,
sua coleção deve ser confusa. Portanto, quando trato
das idéias que a estátua adquire, não pretendo que ela
tenha conhecimentos dos quais possa dar-se conta de
maneira exata: ela só tem conhecimentos práticos, toda
a sua luz é propriamente um instinto, quer dizer, um
hábito de conduzir-se segundo idéias das quais ela não
sabe dar-se conta, hábito que, uma vez contraído, guia-
a seguramente, sem que ela precise lembrar-se dos juí­
zos que a fizeram assumi-los. Em uma palavra, ela
adquiriu idéias. Mas a partir do momento em que suas
idéias a ensinaram a conduzir-se, ela não pensa mais
nestas e age por hábito. Para adquirir conhecimentos
de teoria, necessariamente épreciso ter uma linguagem;
pois é preciso classificar e determinar as idéias; o que
supõe signos empregados com método”

214
De qualquer maneira, o Traité des Sensations mostra, de forma
inequívoca, o primado da dimensão prática sobre a dimensão teórica
no sentido em que é fundante desta última. O teórico aparece como
uma espécie de camada semântica que sobrepõe a outra mais original
que é a das ações determinadas pelas necessidades. No Traité o teóri­
co subordina-se definitivamente ao prático e é na camada mais ori­
ginária, das afecções mais originárias (dor/prazer), das necessidades e
dos desejos que brota um sentido original, primordial, balbuciante,
num certo sentido, mas que será determinante. A potência do signo e
da linguagem assim como sua importância são, sem dúvida, mantidas,
mas alocadas num outro nível, num que é derivado. De agora em
diante o homem é um ser essencialmente movido pelo prazer, pela
necessidade e pelo desejo.

15. A partir de todos esses elementos, tomados em conjunto, uma


nova idéia e uma nova compreensão do homem é posta em relevo. Da
concepção clássica — que ainda conserva muito de sua força — passa-
se, a partir de Hobbes, à constituição dos elementos que funcionarão
para a criação de uma nova antropologia. Antropologia fundada nas
potências do prazer, do desejo etc., que impulsionam as capacidades
quase ilimitadas do imaginário. Tudo isso acaba dependendo, em últi­
ma análise, a partir de Condillac, de uma concepção onde o prazer e a
dor são os elementos fundamentais. Essa é, seguramente, uma das he­
ranças mais problemáticas e originárias que a época moderna nos
legou. Das mais espinhosas também. Em essência talvez não seja difí­
cil enunciá-la: a do papel constituinte do prazer na estruturação do
sujeito. Mas, compreendemos realmente toda a extensão e as conse­
qüências dessa tese? Tese que está admiravelmente resumida numa
passagem do capítulo final do Traité:

“Pois viver é propriamente gozar, e a vida é mais longa para


quem mais sabe multiplicar os objetos de seu gozo” ,157

215
NOTAS

1 Existem quatro conjuntos de textos nos quais Condillac trata o problema do luxo.
O prim eiro está no “Le Commerce et le Gouvernem ent Considérés Relativament
l’un a A utre” in Oeuvres Philosophiques de Condillac, Paris, PUF, vol. 2, cap.
XXVII, p. 308-11. Os outros três estão no Cours d ’Etudes, respectivamente: vol.
2, p. 112-5; 155-7; 167-72. A posição mais equilibrada e coerente parece-nos estar
no trecho entre as p. 155-7, no capítulo “Considérations Générales sur ce qui Fait
la Force ou la Foiblesse d ’une République”, in Cours d ’Études, VI, Hist. Mod.,
Livre IX, cap. II.
2 Por exemplo, G. Le Roy, na “Introdução a l’Oeuvre Philosophique de Condillac”, in
ed. cit. na nota anterior, p. XVII e M. dal Pra, Condillac, Milano, Bocca, 1942, p. 121.
3P or razões que ficarão claras mais à frente, não levaremos em conta o Traité des
Systèmes, que pouco tem a ver com os problemas com que estamos trabalhando.
4 Condillac, “Extrait Raisonné du Traité des Sensations”, in Oeuvres Philosophiques
de Condillac, Paris, PUF, 1947, vol. I, p. 326. Salvo menção em contrário, as refe­
rências a Condillac reenviam a essa edição.
5 Ibid, p. 221.
6 J. Derrida, L’Archéologie du Frivole - Lire Condillac, Paris, Médiations, 1971, p. 62.
7 Condillac, “Essai sur l'O rigine des Connaissances Humaines”, in op. cit., vol. I, p. 3.
8 Ibid., p. 4.
9 Ibid.
10 Sobre este último ponto é bom lembrar as análises muito claras elaboradas por E.
Cassirer no seu Filosofia do lluminismo, SP, Unicamp, 1992, cap. Ill, p. 135 e seg.
11 Condillac, op. cit., p. 9.
12 Ibid., p. 10.
13 Ibid., p. 11.
14 É desenvolvendo este último ponto que Condillac vai operar uma verdadeira revira­
volta nas questões que estamos tratando.
15 Condillac, op. cit., p. 13. Cf. também p. 17.

216
16 Ibid.,p. 14.
17 Ibid.,p. 22.
18 Ibid., p. 16.
19 Ibid., p. 4.
20 Ibid., p. 17.
21 Cf. texto referido na nota 19.
22 Condiüac, op. cit., p. 19.
23 Ibid., p. 4.
24 Ibid., p. 5.
25 Cf. texto referido na nota 18.
26 Condillac, op. cit., p. 21.
27 Ibid., p. 22. Os grifos são nossos.
28 Ibid., p. 19.
29 Ibid., p. 22. Cf. também p. 21 e 23.
30 Ibid., p. 47. Cf. também p. 46.
31 Cf, texto referido na nota 4 desta IV parte.
32 Condillac, “Traité des Sensations”, op. cit., vol. I, p. 221, col. b, 1.10-21.
33 A continuação do texto diz: “Eu não tinha podido afastar-me deles pelos raciocínios
de Locke sobre um cego nato, a quem se daria o sentido da visão; e sustento contra
esse filósofo que o olho julga naturalmente figuras, grandezas, situações e distân­
cias: (ibid, 1.21-27).
Trata-se do problema de Molineaux e a referência é à seção sexta, da primeira parte
do “Essai”, vol. I, p. 53 e seg.
34 Condillac, “Extrait Raisonné du Traité des Sensations”, op. cit., vol. I, “Précis de la
Premtère Partie", p. 325-26. Cf. também o texto do mesmo “Extrait” na p. 324, col.
a, 1. 6-19.
35 Por exemplo:
1- G. Le Roy, La Psychologie de Condillac, Paris, 1937, p. 102.
2- M. Dal Pra Condillac, op. cit., p. 121-37.
3- R. Mondolfo, “Introducción al Tratado de las Sensaciones”, B. Aires, Eudeba,
1963, p. 5-56.
4- §. Le Roy, “Introduction à 1’Oeuvre Philosophique de Condillac", in ed. cit, p.
XVII.
36 Condillac, “Essai...”, in op. cit., vol. I, sec. I, cap. I, p. 6.
37 Diderot, Oeuvres Complètes, Paris, Brière, 1821, vol. I, p. 320-1. O texto é um
pouco longo, mas precisa ser citado: “Chamamos de idealistas estes filósofos que,
tendo consciência apenas de sua própria existência e das sensações que se sucedem
no interior deles mesmos, não admitem outra coisa; sistema extravagante que só
podia, parece-me, dever seu nascimento a cegos; sistema que, para vergonha do
espírito humano e da filosofia, é o mais difícil de se combater, se bem que seja o
mais absurdo de todos. Ele está exposto com tanta franqueza quanto claridade em
três diálogos do doutor Berkeiey, bispo de Cloyne; seria preciso convidar o autor do
Ensaio sobre nossos conhecimentos para examinar essa obra; ele encontraria ali
matéria para observações úteis, agradáveis, finas, em uma palavra, tais como ele as
sabe fazer. O idealismo merece muito ser-lhe denunciado; e essa hipótese tem com

217
o que irritá-lo, outra vez menos pela sua singularidade do que pela dificuldade de
refutá-la com seus princípios; pois estes são precisamente os mesmos que aqueles
de Berkeley. Segundo ambos, e segundo a razão, os termos essência, matéria, subs­
tância, substrato etc.,por si mesmos quase não trazem luzes ao nosso espírito; aliás,
observa judiciosamente o autor do Ensaio sobre a origem dos conhecimentos
humanos, seja que nos elevemos até aos céus, seja que desçamos até os abismos,
nunca saímos de nós mesmos; e é apenas nosso próprio pensamento que apercebe­
mos: ora, este é o resultado do primeiro diálogo de Berkeley, e o fundamento de
todo o seu sistema. Não teríeis curiosidade de ver lutar dois inimigos cujas armas se
assemelham tanto? Se a vitória coubesse a um dos dois, só poderia ser àquele que
delas se serviria melhor; mas o autor do Ensaio sobre a origem dos conhecimentos
humanos acaba de apresentar, em um Tratado sobre os sistemas, novas provas da
habilidade com a qual sabe manejar as suas, e cie mostrar o quanto ele é temível para
os sistemáticos”.
38 Condillac, “Carta a Maupertuis”, de 25 de junho de 1752, in op. cit., vol. II, p. 536.
Foi J. Derrida, op. cit., p. 73 e seguintes, quem nos chamou a atenção para a
importância deste texto.
39 Condillac, “Essai...”, in op. cit., vol. I, p. 4, col. b.
40 "O Ensaio (diz Derrida) é portanto do começo ao fim uma semiótica”, op. cit., p. 76.
4i “Podemos distinguir as operações da alma em duas espécies, segundo as rela­
cionamos mais particularmente ao entendimento ou à vontade. O objeto deste ensaio
indica que me proponha a considerá-las apenas peta relação que elas têm com o
entendimento" (“Essai”, in op. cit., I, p. 10).
42 Cf. “Essai...”, in op. cit., vol. 1, p. 13, 17, 36, 83, 87.
43 Condillac, “Traité des Sensations", in op. cit., vol. I, p. 222, col. a.
44 Condillac, “Traité des..., ed. cit., vol. I, p. 222a.
45 Ibid.
46 Ibid., Parte I, cap. I, §§ 1 e 2, p. 224.
47 Ibid., I, 1, § 2.
48 Ibid., I, II, § 1.
49 Ibid., I, II, § 3.
50 Ibid., I, II, § 5.
51 Ibid., I, II, §§ 7 e 8.
52 Cf. texto referido na nota 18.
53 Condillac, op. cit., I, II, § 10.
54 Ibid., I, II, §§ 11 e 12.
55 Ibid., I, II, § 13.
56 Ibid., I, II, § 14.
57 Ibid., I. II, §15.
58 Ibid., I, II, 4, 20.
59 Ibid., I, II, §25.
60 Ibid., I, II, § 29.
61 Ibid.
62 Ibid., I, II, § 34.
63 Ibid., I, II, § 39.
64 Ibid., I, IV, § 1.
65 Ibid., I, IV, § 2.

218
66 Ibid., I, IV, § 3.
67 Ibid., I, IV, § 4.
68 “Foi a arte dos signos que nos ensinou a levar a luz mais longe” (op. cit., I, IV, 7).
69 Condillac, op. cit.
70 Ibid., I, IV, § 8.
71 Ibid., I, IV, § 9.
72 Ibid., I, IV, §§11-13.
73 Ibid., I, VII, § 1.
74 Ibid., II, Vffl, § 14; cf. também Extrait Raisonné, p. 327, col. a.
75 Ibid., I, VO, § 4.
76 “O número das idéias que podem vir pelo tato é infinito; pois ele compreende todas
as relações das grandezas” (op. cit., I, VHI, § 2).
77 A análise mais pertinente e detalhada de todo esse processo encontramos no livro de
M dal Pra. Condillac, op. cit., cap. VII e IX, p. 180-234.
78 Condillac, “Extrait Raisonné”, in op. cit., p. 324.
79 Ibid., p. 328.
80 Id. “Traité des Sensations”, in op. cit., vol. I, XI, § 1, p. 244.
81 Ibid., UI, III, § 6, p. 280.
82 Id. “Extrait Raisonné” (précis de la IIP parte), in op. cit., p. 332.
83 Id,, “Traité des Sensations”, in op. cit, I, XI, § 1, p. 244.
84 Ibid.. I, XI, §1, p. 244.
85 Ibid., II, VIII, § 18, p. 264.
86 Ibid., IV, V, § 1, p. 305-6.
87 Ibid.
88 Ibid.
89 Ibid., IV, VI, §§ 9-10, p. 308. A natureza disso nos é absolutamente desconhecida: “Mas
qual é a natureza desses seres? Ela (a estátua) o ignora e nós mesmos o ignoramos.
T\ido aquilo que sabemos é que nós os chamamos de corpos" (IV, V, § 2, inftné).
90 Condillac, op. cit., IV. VIII, § 1, p. 310. O grifo é nosso.
91 Cf. os textos de Condillac na nota 30 desta IV parte.
92 Numa outra carta, a Gabriel Cramer, Condillac vai na mesma linha: “É isso que faz
com que eu esteja um pouco embaraçado sobre toda essa matéria (i.e., a linguagem).
Eu até mesmo me apercebo de que disse mais do que queria dizer”, in Lettres
Inédites à G. Cramer (ed. G. Le Roy), citado por J. Derrida, op. cit., p. 95.
93 Condillac, “Traité des Sensations”, in op. cit., I, H, § 2.
94 Ibid., I, ü , § 3.
95 Ibid.
96 Ibid.
97 Ibid., I, II, § 22.
98 Ibid., I, n , § 23.
99 Ibid.
100 Ibid.
101 Ibid., I, H, § 24, início.
102 Ibid., I, II, § 24.
103 “Só existem sensações indiferentes por comparação: cada uma é em si mesma
agradável ou desagradável; sentir e não sentir bem ou mal são expressões inteira­
mente contraditórias” (Condillac, “Extrait Raisonné”, in op. cit.. p. 327, col. b).

219
104 Ibid., I, II, § 5.
105 Id., “Extrait Raisonné”, in op. cit., Abertura, p. 324, col. b. Os grifos são nossos.
106 Condillac, “Traité des Sensations”, in op. cit., I, II, § 3.
107 Ibid., I, II, § 4. Os grifos são nossos.
108 Condillac, “Traité des Sensations”, in op. cit.; “Dessein de cet ouvrage”, p. 222,
col. a-b. Os grifos e os parênteses são nossos.
109 Condillac, “Extrait Raisonné”, in op. cit., p. 327, col. a. Cf. também “Traité des
Sensations”, in op. cit., IV, VIII, § 1, infine.
110 Condillac, “Traité des Sensations”, in op. cit., I, II, § 18.
111 Cf. texto referido na nota 105 desta parte e, também, “Traité des Sensations”, inop.
cit.,1, II, §§21 e 41.
112 Condillac, “Traité des Sensations”, in op. cit., I, V, § 3.
113 Ibid., IV, VIII, § 4.
114 Ibid., “Dessein de cet ouvrage”, p. 222, col. a.
115 Ibid., 1,11, §4.
116 Ibid-, I, II, § 18, infine.
117 Ibid., I, II, § 25, in fine.
118 Ibid., 1, VII, § 3: “pois sempre somos movidos pelo prazer ou pela dor".
[19 Ibid.
120 Id., “Extrait Raisonné”, in op. cit., p. 328, col. a, no início. Cf. também: “... enfim,
no prazer e na dor que acompanham todas as sensações que experimento, creio
aperceber o princípio de minha vida e de todas as minhas faculdades” (“Traité des
Sensations”, in op. cit., IV, VIII, §6).
121 Id., “Traité des Sensations”, in op. cit., I, V, §3.
122 Ibid. Os outros casos aparecem em: IV, I, §1-3 e IV, VI, §7.
123 Ibid-, II, VIII, §1.
124 O discurso de Condillac, neste ponto, como em outros, aliás, é muito semelhante
ao discurso freudiano. Inicialmente, como se sabe, Freud falava num “princípio do
desprazer” porque a tendência primária do aparelho psíquico é fugir do desprazer,
expulsá-lo, eliminá-lo. E esse ato é sentido pelo aparelho como prazeroso. O pra­
zer nada mais é, para Freud, do que a evacuação do desprazer. É por isso que este
último é fundamental na estruturação do aparelho psíquico. Ele é o “grande
mestre” como denomina Freud no “Projeto” de 1895. Mais tarde Freud usará a
expressão “princípio do desprazer/prazer”, que ainda aparece na “Interpretação
dos Sonhos” . Por fim, prevalecerá a fórmula “princípio do prazer” que, sob este
ponto-de-vista, não é das mais felizes.
125 “O sentido do paladar instrui-se tão rapidamente que mal nos apercebemos de que
ele precise de aprendizado. Isso deveria ser assim, visto que ele é necessário à
nossa conservação desde os primeiros momentos de nosso nascimento” (“Traité
des Sensations”, in op. cit., III, X, §1).
126 Condillac, “Traité des Sensations”, in op. cit., III, X, § 2.
127 Ibid.
128 Ibid., III, X, § 3.
129 Ibid.
130 Ibid., III, X, § 5.
131 Ibid., IV, I, § 1.
132 Ibid.

220
133 Ibid., IV, I, § 2: “Nessa abundância a estátua forma desejos, mas neste momento ela
sempre tem com o que se satisfazer. Toda a natureza ainda parece velar por ela...”.
134 Condillac, op. ciL, IV, I, f 3.
135 É o que deixa claro o Dictionnaire des Synonymes, no verbete “necessidade”: “Por
conseguinte, designam-se por esta palavra as coisas necessárias das quais se está
privado...” (op. cit., vol. III, p. 88*9).
136 “Portanto, o desejo é a ação das mesmas faculdades que atribuímos ao entendi­
mento, e que, sendo determinada em direção a um objeto pela inquietude que causa
a privação, também determina aqui a ação das faculdades do corpo” (“Extrait
Raisonné”. Précis de la première partie, ed. cit., I, p. 327). Outra definição que vai
na mesma linha: “Ora, o desejo é a própria ação dessas faculdades, quando elas se
dirigem à coisa da qual sentimos a necessidade" (“Traité des Sensations”, ed. cit.,
I, Hl, § 1, p. 232).
137 Condillac, ‘Traité des Sensations”, in op. cit., 1, III, § 3.
138 Ibid., I, m , § 9.
139 Cassirer, A Filosofia do Uuminismo, op. cit., p. 146*9.
140 Ibid., p. 148.
141 Ibid., p. 147.
142 Ibid. Tese, oa verdade, historicamente duvidosa pois, como vimos, na idade mo­
derna, seu primeiro representante parece ter sido T. Hobbes.
143 J. Deprun, La Philosophie de l'inquiétude en France..., op. cit., p. 200-1.
144 F. Alquié, Le Cartésianisme de Malebranche, op. cit., p. 391-2, nota 42.
145 Ibid., p. 200.
146 Condillac, “Traité des Sensations”, in op. cit., IV, VIII, § 2.
147 Ibid,, I, III, § 2.
148 Ibid.
149 Condillac, “Extrait Raisonné”, in op. cit., p. 327. Um pouco antes lemos esta afir­
mação: “Locke foi o primeiro a observar que a inquietude causada pela privação de
um objeto é o princípio de nossas determinações. Mas ele faz a inquietude nascer
do desejo, e trata-se precisamente do contrário” (p. 325).
150 Condillac, “Extrait Raisonné”, in op. cit., p. 325.
151 Cf. texto referido na nota 77 da parte II deste trabalho.
152 Condillac, “Extrait Raisonné”, in op. cit., p. 327.
153 Id., ‘Traité des Sensations”, in op. cit., I, III, § 5.
154 Ibid., “Dessein de cet ouvrage”, p. 222: os grifos são nossos.
155 Condillac, “Traité des Sensations”, in op. cit., IV, II, §7, p. 303.
156 ‘‘No decorrer da obra não se perdeu de vista esse princípio...”, (“Extrait Raisonné",
in op. cit., p. 328).
157 Condillac, ‘Traité des Sensations”, in op. cit., IV, VIU. § 4, p. 312.
158 Ibid., § 3, p. 239.
159 Ibid., II, XI, § 5, p. 271. O exemplo refere-se ao sentido do tato mas é facilmente
generalizável.
160 Ibid., H, XI, §6, p. 271.
161 Ibid., IV, I, §9, p. 301.
162 Condillac, “Traité des Animaux”, in op. cit.. H, VIII, p. 372.
163 Ibid., II, VIII, p. 372.
164 Condillac, ‘Traité des Sensations”, in op. cit., I, II, § 27, p. 229.

221
165 “Ao contrário, ao nascer nós aprendemos que somos sensíveis à dor. Portanto, o
primeiro objetivo do amor-próprio é afastar todo sentimento desagradável; e é por
aí que ele tende à conservação do indivíduo” (Condillac, “Traité des Animaux”, in
op. cit., II, VIII, p. 372).
166 Condillac, ‘Traité des Sensations”, in op. cit., II, VIII, § 35, p. 268. A edição das obras
completas de Condillac, realizada em Paris (1821-1822), e republicada pela Slaktine
Reprints, Genève, 1970, contém uma lacuna nessa passagem que torna o texto inin­
teligível. Cf. Tomo III, p. 172-3. Com relação ao problema aqui tratado, o leitor pode
ainda se reportar à abertura da quarta parte do “Traité des Sensations” onde Condillac
retoma mais uma vez as teses expostas neste cap. VIII da segunda parte.
167 Condillac, op. cit., IV, IX, § 2, p. 314.

222
CONCLUSÃO

Como afirmamos em nossa introdução, o que o leitor tem em mãos


é apenas uma etapa de uma pesquisa em andamento. Rigorosamente
falando, nada temos a oferecer ao leitor a título de conclusão.
Poderíamos, é claro, como às vezes se costuma fazer, elaborar uma sín­
tese de nossa discussão. Não pensamos, no entanto, que isso seja
necessário. O que tínhamos a dizer já o fizemos, e parece-nos inútil ten­
tar a mesma coisa com economia de palavras. Inútil e repetitivo.
Podemos, no entanto, tentar apontar aqueles pontos que conside­
ramos fundamentais para que esse trabalho não se complete, mas se
alargue de forma a se tomar mais significativo e expressivo. Em
primeiro lugar, seria necessário examinar com mais cuidado a tradição
insular, esses pensadores que costumeiramente se denominam os
moralistas britânicos (Shaftesbury, Clarke, Hutcheson, Butler, Gay,
Hartley, Price etc. etc.). O domínio continental e insular não foram
estanques e isolados, como sabemos. As influências recíprocas são
grandes e seria interessante examinar esse ponto.1
Há, em segundo lugar, um outro fator que não pode e não deve
ser esquecido nesta problemática. Esse fator é a enorme influência
exercida por J.-J. Rousseau, o grande ausente de nosso estudo, em
razão do ponto-de-vista que adotamos. O pensamento moral e políti­
co dessa época foi profundamente influenciado por esse gênio
solitário que quase sempre nadava contra a corrente. Em parte
absorvido, em parte criticado, Rousseau é quase sempre o interlocu­
tor não nomeado de muitos textos. E difícil encontrar um pensador
223
que não se esgrima vez por outra com o genebrino.2 Mas o movimen­
to inverso também é mais que plausível. Quando se lêem as páginas
iniciais do Segundo Discurso, é impossível deixar de lado a impressão
de que Rousseau retoma exatamente o sujeito tal qual ele tinha sido
deixado por Condillac ao pôr o ponto final no Traité des Sensations.
Esse sujeito, jogado na floresta, velando por si e por suas necessi­
dades, não se parece com essa estátua que Condillac pacientemente
constrói e cujo fim é cuidar de sua própria conservação?3Assim, em­
bora o desenvolvimento formulado por Rousseau seja próprio e ori­
ginal, o ponto de partida é muito semelhante.
Um terceiro grupo de pesquisas impõe-se também. A partir dos
anos 50, cristaliza-se no século XVIII, no domínio francês, uma sólida
tendência empirista e hedonista. Do Anti-Sêneca de La Mettrie, pas­
sando pelo Tratado das Sensações, pelo Do Espírito, até o Sistema da
Natureza, essas concepções se concentram e adquirem contornos clara­
mente coerentes. É verdade que essa progressiva revalorização do pra­
zer parece vir do Renascimento, sobretudo com Lorenzo de Valia, pas­
sando pela libertinagem erudita no século XVII, até tomar quase um
lugar comum no século XVIII, em diferentes autores como Mandeville,
Voltaire4, Meslier5, Hume6 etc. etc. Mas, na maioria das vezes, ou são
peças retóricas ou afirmações isoladas. A partir dos anos 50, e sobretu­
do no Traité de Condillac, essa concepção se firma, cristaliza-se e se
toma um todo coerente e harmonioso. Na verdade, um conjunto de
teses esparsas mas interligadas (primado do prazer; predomínio do
campo afetivo; redefinição da noção de bem, de valor, de amor próprio;
reavaliação positiva da noção de interesse; reenquadramento das
noções de utilidade e necessidade etc.) acabaram por se aglutinar,
ordenar-se, produzindo um todo unitário, coerente e sistemático.
Isso teve inúmeras conseqüências, das quais apontaremos algu­
mas, e cada uma delas requer uma pesquisa mais atenta. Em primeiro
lugar, essa revalorização do prazer trouxe à tona um tema não muito
comum ao discurso filosófico: o do sexo. É verdade que desde Platão7
são poucos os grandes pensadores que não afirmam ser o sexo a mais
potente e a mais violenta de nossas paixões. Mas, a partir de La Mettrie
e Helvétius a sexualidade passa a ser, sem a menor sombra de dúvida,
o eixo sobre o qual gira o discurso moral. Muito antes de Sade, a
potência central da sexualidade já estava afirmada.
Em segundo lugar, esse primado do prazer (e do sexo) afirma-se
também no discui so biológico ou filosófico-biologizante. Neste último

224
caso, um exemplo característico é Cabanis.8 Na biologia propriamente
dita ela aparece sobretudo em Lamarck9 e Bichat.10
Por último, não se pode negar também a influência dessas teorias
sobre o discurso econômico, pelo menos em algumas de suas ramifi­
cações. Quase toda corrente que conhecemos pelo nome de “psicolo-
gista” nesse terreno — da qual Condillac foi sem dúvida um represen­
tante — parte das noções de necessidade e satisfação para construir o
conceito de valor.“
Enfim, existe um interessante e longo trajeto a ser seguido nessa
linha, que provavelmente seria muito frutífero para se investigar a
constituição, o assentamento e as influências recíprocas nesse campo.12
E, para falar com honestidade, só depois de investigados esses diferen­
tes “filões”, poder-se-ia talvez pensar em alguma conclusão. Antes, e
acima de tudo, cultivemos a paciência e a prudência.

225
NOTAS

1 Só para citar alguns casos característicos:


a) é inegável a influência francesa sobre o pensamento de Mandeville;
b) sabemos também o quanto, por exemplo, Voltaire e Diderot devem ao pensamento
britânico. Este último inicia-se com uma tradução, mais ou menos livre, de Shaftesbury
e muitos pontos centrais de seu pensamento já podem at ser encontrados.
2 Assim, por exemplo, o grande adversário de Sade, embora raramente nomeado, é
sem dúvida Rousseau, o qual ele conhecia bem. As teses de Sade, num certo senti­
do, podem ser lidas como uma tentativa de resposta às de Rousseau e constituem um
universo quase simetricamente inverso ao dele.
3 Além dessa semelhança geral, há inúmeras afirmações, na primeira parte do segundo
discurso, que seguramente poderiam ser assinadas por Condillac, como esta, por exem­
plo: “O que quer que os moralistas digam, o entendimento humano deve muito às
paixões que, por comum consentimento, também lhe devem muito: é por sua atividade
que nossa razão se aperfeiçoa; nós só procuramos conhecer porque desejamos gozar; e
não é possível conceber porque aquele que não teria nem desejos nem temores se daria
ao trabalho de raciocinar. As paixões, por seu lado, têm sua origem em nossas necessi­
dades, e seus progressos em nossos conhecimentos” (Rousseau, “Discours sur
rOrigine de l’inégalité parmi les Hommes”, in Du Contrat Social, Paris, Gamier,
1963, p. 48-9). Por outro lado, se se quisesse retomar os problemas que viemos ana­
lisando neste nosso trabalho, sob uma outra ótica e sob uma orientação diferente,
poder-se-ia, parece-nos, tomar como ponto de partida a afirmação inicial contida na 24
das “Lettres à Sophie” (in Oeuvres Complètes, Paris, Pléiade, IV, p. 1087).
4 É preciso lembrar o 52 dos Discours en Vers sur l’Homme?
5 J. Meslier, Oeuvres de J. Meslier, Paris, Anthropos, 1070-2, 3 vol., vol. I, p. 216.
6 D. Hume, A Treatise ofH um an Nature, Fontana/Collins, 1978, vol. I, Livro I, parte
III, seção X, p. 167: “existe, implantada na mente humana, uma percepção de dor e
de prazer como a fonte principal e o princípio motor de todas as suas ações”.
7 Platão, Leis, Livro VI, 782 c — 783 b; ed. Belles Lettres, XI, 2, p. 151.

226
8 Cabanis, Oeuvres Philosophiqu.es de Cabanis, Paris, PUF, 1956, vol. I, p. 190 e seg.
ev o l. II, p. 131-52.
9 Lamarck, “Phiiosophie Zoologique” in Historiae Naturalis Classica, Tomus X,
Reprinted by Engelman and W heldom e Wesley, Germany, 1960, vol. II, p. 283 e
320-6.
10 O caso de Bichat é interessante porque, como que assustado com as conseqüências
morais do princípio da necessária diversificação dos prazeres, detém-se um pouco
abruptamente. O texto merece ser citado: “Portanto, é da natureza do prazer e da dor
destruir-se por si mesmos, cessar de ser porque foram. A arte de prolongar a duração
de nossos gozos consiste em variar suas causas. Eu quase diria, se só considerasse
as leis de nossa organização material, que a constância é um sonho feliz dos poetas;
que a felicidade que nos cativa teria poucos direitos às nossas homenagens se as
atrações fossem muito uniformes; que se a figura de todas as mulheres fosse lança­
da no mesmo molde, este molde seria o túmuio do amor etc. Mas guardemo-nos de
empregar os princípios da física para revirar aqueles da moral...” (in Recherches
Physiologiques sur la Vie et la Mort, Paris, Marabout, 1973, p. 41).
11 Não é por acaso que um autor como J. Urban, que segue essa linha de interpretação,
vai constantemente buscar nos discípulos desses autores do século XVIII suas
fontes de inspiração. Cf. L'Épithymologie, Paris, F. Alcan, 1939.
12 Isso para não falar em trabalhos já solidamente elaborados, como é o caso do texto
de Halévy: La Formation du Radicalisme Philosophique (Paris, Alcan, 1901-4),
onde a influência de Condillac e Helvétius é apontada, com todo rigor, na formação
da escola utilitária.

227
BIBLIOGRAFIA

Esta bibliografia refere-se à que foi realmente utilizada no texto e não


à consultada. Utilizamos as normas habituais e convencionais.
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D esejo e P ra z er na Id a d e M o d ern a é, segu ndo
o autor, fruto de um a su speita. A p ós e x a m in a r a
ob ra de S a d e , M onzani le van ta a h ipótese de
que e sse a u to r ta lvez se ja o a c ab am en to de um
m ovim ento de id éias que se inicia no século
XVII. A o invés d e ser um a "e x c e ç ã o m onstruo­
s a " , a o b ra do M arqu ês seria a e x p lic ita çã o de
certas m atrizes conceituais q ue se e lab o ra ra m
lenta m as in e x oravelm en te na ép o ca m o dern a.
P a ra isso , o auto r ra stre ia no interior d a his­
tória m oderna um filã o que p artin do d e H obbes
c h eg a a té Condillac e q ue foi re sp o n sá ve l pelo
nascim ento e constituição de um a n ova a n trop o­
lo g ia .
Partindo d a a n á lise d a "q u e re la d o lu xo ",
M onzani procura ra stre a r o s elem en tos constitu­
intes d e s sa a n trop olo gia.
Em e ssên c ia , e ss a n ova v is ã o con fere um p ri­
m ad o d a vo n ta d e so b re a ra z ã o , d o prático s o ­
bre o teórico e se alicerça nos conceitos d e im a ­
g in ário , d e sejo e p razer. S e rã o e ss e s elem entos
q ue o rien ta rã o um a n ova leitura e um a nova
p erce p çã o d o homem.

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