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DESEJO E PRAZER
NA ID AD E MODERNA
FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA
BIBLIOTECA CENTRAL - UNICAMP
Monzani, Luiz Roberto
M769d Desejo e prazer na idade moderna / Luiz Roberto Monzani.
- - Campinas, SP: Edilora da UNICAMP, 1995.
(Coleção Repertórios)
l. Filosofia moderna. 2. Materialismo. 3. Desejo.
I. Título.
20. CDD - 190
-146.3
-152.4
ISBN 85-268-0338-7
1995
Edilora da Unicamp
Caixa Postal 6074
Cidade Universitária - Barão Geraldo
CEP 13083-970 - Campinas - SP - Brasil
Tel.: (0192) 39.8412
Fax: (0192) 39.3157
Agradecimentos
Ao CNPq, que me conferiu, por dois anos, uma bolsa para que
desenvolvesse esta pesquisa;
A Josette, minha mulher, que teve a paciência de decifrar meus
garranchos e fazer a primeira versão datilografada;
Dos amigos, aos quais devo muito, gostaria de agradecer espe
cialmente a Moacyr Nunes de Oliveira e Adalberto Tripicchio, o
primeiro por ter me auxiliado muito na bibliografia e o segundo por
suas fórmulas mágicas.
Por último, aos professores Michel Debrun, Fausto Castilho,
Marilena Chaui, Bento Prado e Arley R. Moreno, primeiros leitores
deste texto. Foi, para mim, um privilégio escutar suas observações
sempre pertinentes. Que eles encontrem aqui a expressão de meu
respeito, admiração e amizade.
Para Josette:
Tant ai en liferm assis mon corage
Qu’ailleurs ne pens, et Diex m'en lait joïr!
C’onques Tristanz, qui but le beverage,
Plus loiaument n'ama sans repentir;
Quar g’i met tout, cuer et cors et désir,
Force et pooir, ne sai se faiz folage;
Encor me dout qu’en trestout mon eage
Ne puisse assez li et s’amour servir.
(Le Châtelain de Coucy)
Para Juliana,
J. Marcelo e
Luiz Henrique
I
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.....................................................................................11
I. LUXO...................................................................................................17
II. DESEJO.............................................................................................63
III. INQUIETUDE..............................................................................115
IV. PRAZER.........................................................................................163
CONCLUSÃO....................................................................................223
BIBLIOGRAFIA................................................................................ 228
INTRODUÇÃO
12
mas sim de apontar para aquilo que acabou ficando claro nesse
primeiro momento. Por um lado, isso reforçava a suspeita de que Sade
não era uma estrela solitária, a não ser pelo modo como escolheu para
expor, mas não por certos esquemas de pensamento. Por outro lado,
isso fazia adiantar muito pouco o tratamento da questão. Pode ser inte
ressante constatar fortes convergências nas teses de dois autores mas
isso apenas mostra que ambos trabalham sobre um estofo conceituai,
um certo universo mental já constituído, do qual ambos se nutrem.
Ora, a questão particularmente mais instigante era exatamente ten
tar explicar quais eram as linhas mestras dessa concepção. E, sobre esse
ponto, as obscuridades eram muito fortes e as idéias que tinha, muito
vagas.5 Refletindo sobre isso, não foi difícil concluir que o que estava
provavelmente norteando tudo isso era uma concepção sobre os funda
mentos da vida passional que pouco ou nada tinha a ver com a con
cepção clássica. Era preciso, de uma certa maneira, operar um recuo
ainda maior e questionar onde, na modernidade, poder-se-ia encontrar
os primeiros indícios dessa concepção. Tudo levava a crer que isso de
veria ser buscado no século XVII, mais particularmente em T. Hobbes.
Acreditei, então, poder isolar, dizendo as coisas de forma muito
rude, um bloco conceituai que ia de Hobbes até os denominados mate
rialistas franceses. Houve um trabalho intenso na tentativa de isolar
certos conceitos capitais, certas noções-chaves e ir vendo, por assim
dizer, como se mantinham ou se transformavam no decorrer do tempo.
Esse projeto, durante um certo tempo, revelou-se frutífero, e parecia,
de fato, que se poderia isolar um conjunto de conceitos que se per
filavam de forma a indicar que uma nova concepção da vida passional
delineava-se na modernidade.
Mas, um estudo mais atento dos textos revelou que estava tratando,
como uma unidade algo que não possuía esse atributo. Considerações
mais cuidadosas acabaram mostrando que dever-se-ia considerar duas
grandes mutações — operadas, no entanto, sobre uma mesma matriz
— uma em Hobbes e a outra, surpreendentemente, no Traité des
Sensations de Condillac. Esse intervalo, tudo levava a crer, estava
recheado de interrogações e hesitações. Percebi também, nesse meio
tempo, que um autor que não tinha cogitado de início exercia um papel
fundamental: Malebranche.
Ao mesmo tempo que esse trabalho desenrolava-se nessa linha,
um pouco por acaso, no início, deparei-me com a famosa “querela do
luxo”. Estudando-a com mais atenção percebi que ela refletia de forma
13
exemplar, embora vaga, esse conjunto de novas concepções, o que
aumentou a convicção sobre o caminho que havia escolhido. Daí, por
diante, fazendo uma espécie de jogo de vai-e-vem, procurei ir pro
gressivamente isolando os temas centrais que funcionavam como pólo
— muitas vezes distantes — de orientação na “querela do luxo” e ir
examinando como essas mesmas concepções se articulavam de forma
mais clara e fundamentada em certos textos centrais. Gostaria, no
entanto, de prevenir o leitor de que as coisas não se passam de forma
cristalina como esse quadro esquemático que acabo de traçar pode dar
a entender. Neste terreno pode-se achar correspondências mas nunca a
tal ponto que de um conjunto a outro a relação seja biunívoca. Elas
funcionam muito mais como quadros orientadores.
A partir disso, este trabalho ordenou-se de forma mais ou menos
natural. Parti de uma exposição sobre os problemas conceituais
envolvidos na “querela do luxo” — querela longa e multifacetada. Em
seguida, procurei isolar um grupo de conceitos que articulam peia
primeira vez na modernidade uma nova concepção da vida passional.
Depois tratei desse período intermediário — que aos meus olhos
aparece como muito hesitante e embrulhado conceitualmente. Por fim,
tentei examinar como esses conceitos, de uma certa forma, rearticu-
lam-se na segunda metade do século XVIII.
Uma palavra quanto ao título deste estudo. Como percebi que o
que estava no horizonte de minhas inquietações eram os fundamentos
da vida passional na idade moderna, meu primeiro impulso foi assim
intitulá-lo. Mas, logo percebi a enorme pretensão aí contida, e a que,
nem de longe, este trabalho faz jus. Procurei um título mais modesto
que indicasse melhor o seu conteúdo, Cheguei a este, mas confesso que
ainda não estou satisfeito. Ele reflete muito mal a limitação do campo
de estudo. Infelizmente não encontrei outro melhor e espero que esta
introdução possa contribuir para dissipar possíveis mal-entendidos.
Afirmei que este texto nasceu de uma suspeita e que acaba numa
hesitação. A primeira já explicitei. Com relação à segunda, embora
considere, levando em conta meu ponto de partida, que tenha avança
do razoavelmente, hesito muito sobre o valor e o alcance do que aqui
é afirmado. Tendo, na verdade, a conferir um peso muito relativo e,
embora considere esta pesquisa suficientemente autônoma, tenho
consciência de que nada mais é que uma etapa e que precisa ir mais
longe. Por essa razão evitei, no final, extrair algumas conclusões que
considero apressadas.
14
Quanto ao modo de tratamento, resolvi, em primeiro lugar, que era
melhor, na medida do possível, deixar que os próprios textos falassem
por si mesmos. Tenho freqüentemente a impressão de que muito
comentário acaba, às vezes, por obscurecer. Não que tenha me eximi
do da tarefa. Quando julguei necessário, o fiz. Mas procurei reduzir ao
que considero razoável. Isso tem sua contrapartida: em alguns momen
tos há um excesso de citações. Foi o preço a pagar.
Por fim, gostaria de salientar dois ou três pontos que, talvez,
chamem a atenção do leitor. Em primeiro lugar, constatar-se-á isso
facilmente, evitei cuidadosamente certas generalizações no decorrer
do trabalho. Generalizações que, talvez, sejam válidas mas a respeito
das quais não estou totalmente seguro. Não procurei, enfim, reconsti
tuir epistemés de diferentes épocas. Em segundo lugar, esta pesquisa
não teve a pretensão de ser exaustiva. Não foi minha intenção arrolar
e analisar todos os autores que, na época, trataram do tema. Procurei
seguir um filão, como já indiquei, trabalhando retroativamente, como
um detetive que reconstrói uma história. História parcial, sem dúvida
mas que, nos seus limites, parece-me correta. Por último, não preten
di também, nas análises positivas que procuro realizar, esgotar um
tema num determinado autor. Salientei apenas aquilo que julguei per
tinente para esclarecer a trama de uma problemática. Assim, o espe
cialista neste ou naquele autor poderá sentir-se decepcionado com o
tratamento a eles conferido. Tenho consciência dessa limitação, mas é
a conseqüência de inserir um autor ou texto numa determinada
questão que se desenrola historicamente.
15
NOTAS
1 Sade, Oeuvres Completes, Paris, Pauvert, 1986. Até agora foram publicados, ao que
me consta, quinze volumes.
2 Uma honrosa exceção é J. Deprun que tem realizado estudos notáveis sobre o
enraizamento de Sade no século XVIII. Veja-se, por exemplo, seu estudo “Sade et la
Philosophie Biologique de son Temps” in Le Marquis de Sade, Paris, Armand Colin,
1968, p. 189 e seg.
3 Assim, por exemplo, todo o longo discurso de Delbène no início da Histoire de
Julielte é uma cópia do Le Bon Sens du Cure Meslier de Holbach. Foi Deprun o
primeiro a apontar isso.
4 Que, é bom não esquecer, é o núcleo do pensamento dos materialistas franceses,
como mostrou Cassirer no seu A Filosofia do Iluminismo, Campinas, Editora da
Unicamp, 1992, p. 103.
5 Para não criar falsas expectativas, como o leitor verá logo mais, não temos a preten
são de ter elucidado totalmente essa questão. Podemos dizer que, agora, elas não são
tão vagas para nós.
16
LUXO
1. Como fio condutor de nossa análise seguiremos uma sugestão
de R, Hubert, contida no seu clássico Les Sciences Sociales dans
l’Encyclopédie, onde ele afirma: “O problema do luxo é um daqueles
onde a evolução das idéias, no decorrer do século XVIII, é a mais
característica”.1 De fato, o exame da chamada “querela do luxo”
mostra-se exemplar para se tentar compreender o conjunto das trans
formações conceituais operadas entre os fins do século XVII e o sécu
lo XVIII, pelo menos na sua generalidade, já que expressa, às vezes
direta, às vezes indiretamente, a lenta mutação e constituição das
novas concepções (sobre o desejo e o prazer).
20
no intelectual. Exemplos não faltavam de ambos os lados. Esparta e
Roma eram os exemplos preferidos dos primeiros. As comodidades e o
bem-estar alcançados nos tempos modernos eram os dos segundos.
Em terceiro lugar, os imensos e inegáveis avanços científicos e
tecnológicos realizados na formação dos tempos modernos também
colocavam problemas pois, segundo uns, acabavam levando a um des
perdício que era fatal às sociedades, enquanto outros (aí incluído
Voltaire, é claro) afirmavam e defendiam vivamente que a criação e a
circulação maciça de bens, possibilitada por esses avanços, consti
tuíam uma contribuição inestimável para o enriquecimento das nações
e para o seu desenvolvimento.
Assim, em quarto lugar, por trás dessa discussão antigos/moder
nos, está uma discussão, muito confusamente vislumbrada, de caráter
econômico que, exatamente por ser apenas entrevista, acabou assumin
do um aspecto moral. O problema, de fato, foi colocado em termos de
virtude/vício: qual das cidades oferece melhores condições para o
desenvolvimento das virtudes morais dos sujeitos: aquela antiga, rústi
ca, que só fornecia o necessário, ou a moderna, mais sofisticada tecno
logicamente que, além do necessário, oferece também a possibilidade
do supérfluo e, portanto, condições à aparição e manutenção do luxo?
Em quinto lugar, todo o peso da tradição cristã — mais especifi
camente católica — vem embaralhar um pouco mais a discussão.
Principalmente em dois níveis. De um lado, toda tradição ascética, de
desprezo aos bens terrenos é mobilizada em contraposição à superio
ridade dos bens espirituais. Basta relembrar a Dissertação sobre a
Honra, de Bossuet. De fato, em boa lógica, os apologistas da moder
nidade, cedo ou tarde, entram em rota de colisão com a moral cristã, na
medida em que (veremos isso mais claramente) defendem um mundo
regulado pelo conforto dos bens materiais, concepção que está ancora
da numa concepção egoísta dos seres humanos. Já Mersenne, tão
pouco interessado em questões morais, marca essa oposição numa de
suas obras, tratando do amor a Deus. E certo, afirma, que cada um
busca seu próprio bem e que encontrar-se-á “... sempre esta verdade se
examinamo-nos geometricamente” e mesmo quando muitos querem
persuadir “que eles amam seus amigos apenas para o bem destes, e de
um amor de simples benevolência, sem dele desejar nem pretender
nenhum benefício, todavia eles se enganam, como confessarão inge
nuamente se se examinam como é preciso, pois eles acharão sempre
que o amor de si mesmo, que é chamado de amor próprio, é a fonte e
21
a origem de tudo aquilo que nós fazemos”. Isso é tão certo, continua
Mersenne, que esse amor próprio é proposto como protótipo daquele
que devemos conceder ao próximo.4 Mas, a verdadeira dificuldade
está, nos diz o autor, em saber se podemos amar Deus de forma pura,
já que, nesse caso, essa é a única forma de amor admissível. E isso nos
é concedido.-1Eis aqui o ponto limite onde o cristão não pode transigir.
Por outro lado, no interior dessa ótica, um outro problema emer
girá cedo ou tarde. A apologia do luxo está intrinsecamente ligada à
apologia da sociedade moderna, na medida em que foi ela a possibi
litá-lo. E isso tem como contrapartida uma crítica às sociedades
arcaicas, o que, no limite, implica a condenação das primeiras
sociedades e do estado de natureza, o que, aos olhos da Igreja, signifi
cava desvalorizar a vida tão perfeita de Adão e Eva no paraíso. Nada
mais inadmissível. Mas Voltaire não hesitou em seu poema:
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tituíam os parâmetros principais. Já os apologistas vêm sobretudo das
camadas mais intelectualizadas e são difíceis de ser classificados,
representando, na verdade, tendências muito diversificadas. No início
têm, pelo menos, dois traços comuns: uma certa dose de ceticismo e
uma boa tintura de empirismo.
Gostaríamos de assinalar que essa discussão acompanha uma série
enorme e maciça de transformações materiais pela qual passou a socie
dade ocidental nessa época. Todos os historiadores estão de acordo, nos
parece, que nossa sociedade foi, até os primórdios da modernidade,
uma sociedade na qual se pode bem aplicar o conceito, utilizado por
um filósofo contemporâneo, de rareza. De fato, tomada globalmente, a
sociedade ocidental viveu, até essa época, sob o regime da raridade dos
bens. Desde os gregos até meados do século XVI a produção dos bens
esteve regulada pelas necessidades, quando não esteve abaixo delas.
Nesse tipo de economia, o luxo sempre guardou um caráter figurativo
e simbólico. Ele basicamente existiu sobre essa forma, salvo em algu
mas épocas e para algumas camadas da população. Tapeçarias, jóias,
vestuários e utensílios suntuosos eram signos de uma condição e uti
lizados em certas circunstâncias e ocasiões: festas, aparições públicas
da realeza, procissões da Igreja etc. O luxo funcionou mais como uma
marca de respeito do que como um objeto de desejo. Ele era requerido,
no ciclo da vida social, de tempos em tempos e, neste ponto, diferia
pouco dos cerimoniais dos povos primitivos. O cotidiano das pessoas,
no entanto, é de um nível de vida, em geral, baixo. O dia-a-dia de um
nobre medieval não faria muita inveja a um burguês do século XVIII.
Foi só com o ciclo das descobertas marítimas e tecnológicas, e a con
seqüente circulação cada vez maior do dinheiro, que foi possível
começar a passar da economia de rareza para uma economia da
abundância, onde os artefatos, os utensílios (as comodidades da vida)
puderam começar a se expandir tanto no sentido horizontal (consome-
se cada vez mais e diversificadamente no interior de uma camada
social), como no vertical (muito lentamente, outras começam a ter
acesso a bens até então inacessíveis). É por essa época que se inicia o
ataque ao luxo, não como algo extraordinário, mas como algo que
começa a fazer parte do cotidiano da vida das pessoas.
Tomemos, em primeiro, o ataque oriundo da Igreja, tomando
como figura exemplar Fénelon e, depois, a versão laica dessa crítica,
através de La Bruyère.
23
5. Fénelon, arcebispo de Cambray, foi nomeado preceptor do
delfim, ocasião que utilizou para escrever, para deleite e educação do
mesmo, um texto denominado As Aventuras de Telêmaco. O livro tem
um cardápio variado mas, em dois momentos, descreve duas
sociedades (Bética e Salento), que figuram como modelos onde impera
a frugalidade e o rigorismo dos costumes é a regra. São utopias, não
restam dúvidas. Mas todo leitor da época (e o livro foi o que hoje
denominamos um best-seller) sabia muito bem que. por contraste,
Fénelon estava criticando os desmandos administrativos e financeiros
de Luís XIV, que ao construir Versailles drenou literalmente os cofres
públicos deixando uma França ainda mais combalida economicamente
e com uma alta taxa de pobreza e miséria. Fénelon prega uma ordem
rígida, uma sociedade regrada segundo a norma do bem comum onde
não tem lugar nem o luxo nem a miséria. Condena o desperdício e
mostra que, além de provocar a pobreza, o luxo é corruptor. Elogia
ardorosamente a frugalidade (tópico comum nos escritores antigos) e
toma como modelo a virtude espartana ou a austeridade da Roma
Republicana. Ele trabalha por oposição: ao mesmo tempo que
descreve a simplicidade de Bética, por exemplo, a opõe claramente aos
Estados onde reina o fasto e a suntuosidade:
24
visto que eles são escravos de tantas falsas necessidades
das quais fazem depender toda a sua felicidade” .s
"... o luxo envenena toda uma nação. Dizem que este luxo
serve para alimentar os pobres às expensas dos ricos;
como se os pobres não pudessem ganhar sua vida mais
utilmente, multiplicando os frutos da terra, sem enfraque
cer os ricos por refinamentos de volúpia. Toda uma
nação acostuma-se a ver as coisas as mais supérfluas
como as necessidades da vida: todos os dias inventam-se
novas necessidades, e não se pode mais passar-se de
coisas que não se conhecia trinta anos antes... Este vício,
que atrai tantos outros, é louvado como uma virtude: ele
dissemina seu contágio desde o rei até o último da ralé do
povo. Os parentes próximos do rei querem imitar sua
magnificência; os grandes, aquela dos parentes do rei; as
pessoas medíocres querem igualar-se aos grandes; ... os
pequenos querem passar por medíocres; todo mundo faz
mais do que pode; uns por ostentação, ... outros por má
vergonha e para esconder sua pobreza... Toda uma nação
arruína-se, todas as condições confundem-se” .“
25
Através dessa crítica delineiam*se os contornos da verdadeira, boa e
saudável sociedade: aquela onde os homens “vivem simplesmente”, con
tentam-se em satisfazer suas “verdadeiras necessidades”, vida esta que
constitui a fonte da “abundância, alegria, paz e união”.12 Daqui à reva
lorização da cidade e dos costumes antigos, o passo é imediato. “Nada é
mais amável”, diz o autor, “que essa vida dos primeiros homens”, que
viviam segundo a razão e amavam a virtude, e que é incomparável ao
luxo vão e ruinoso de nossos tempos.13 É, de fato, essa “amável simpli
cidade do mundo nascente: essa simplicidade dos costumes, tão distante
do luxo”.14E, para ele não existe nenhuma hesitação possível:
26
As teses de Fénelon são bem claras. Elas apontam também para
certas características da natureza humana às quais nosso autor prende-
se firmemente: um ideal estrito de predomínio da razão, que deve
dominar as paixões e conduzir a vida do sujeito, a qual deve ser regra
da e produtora do útil necessário. A inquietude não deve fazer parte da
vida humana. Deve ser banida:
27
por exemplo, “do fundo de seu estudo sombrio e esfumaçado”, ocupa
do das mais “negras chicanas”, acha-se não só superior ao homem que
labora a terra, goza o céu aberto e bem semeia como
Seu desprezo por esse tipo de gente acresce-se ainda mais pela
sua “molesse”, desconhecida dos antigos, nos quais não se os via,
quando saíam de um jantar, montarem numa carruagem, já que
estavam persuadidos de que os “homens têm pernas para andar e eles
andavam”/ 2 Seus costumes eram austeros, cuidando de seus próprios
negócios: “Em todas as coisas eles contavam consigo mesmos”.2-1Sua
“despesa era proporcional à sua receita” e tudo era medido segundo
suas rendas e sua condição e assim “passavam de uma vida moderada
à uma morte tranqüila”2'1:
30
Mas Bayle não se contenta em simplesmente elaborar uma crítica.
Engaja-se claramente na nova mentalidade e faz-se apologista de
novos valores nascentes. Liberal, um pouco “avant la lettre”, já declara
sua pouca preocupação com os problemas morais, deixando-os para o
futuro, e incita à inserção nas novas práticas e concepções:
31
4
esvanece, e começa a imperar a pobreza e o tédio numa população
cada vez mais reduzida.
Todos os analistas de Mandeville concordam muito pouco entre si,
a não ser num ponto: seu pensamento é extremamente complicado,
complexo, praticamente impossível de ser resumido mesmo se ficamos
com as poucas páginas do poema inicial. Quando se aborda a obra
toda, então, a questão complica-se ainda mais. Seu pensamento move-
se quase sempre em torno de paradoxos, de sinuosidades, de distinções
extremamente difíceis de serem captadas. A começar pelo próprio sub
título da obra: “Vícios Privados, Benefícios Públicos”, fórmula que
pode ser entendida de várias maneiras e o foi.
Tomemos, como hipótese, a idéia de que o poema inicial foi, de
fato, a semente original a partir da qual a obra foi brotando. Se é assim,
o sentido original encontra-se exatamente aí. Os desenvolvimentos pos
teriores são o “commentaire raisonné” dessa intuição original. Partindo
dessa hipótese, já podemos fazer uma constatação. Se Bayle foi
extremamente perspicaz ao perceber e denunciar as fraquezas das críti
cas elaboradas contra o luxo, não teve, no entanto, a mesma perspicá
cia para perceber que a apologia do luxo deveria se basear numa nova
escala de valores, numa reavaliação global à qual Mandeville foi sen
sível. O termo sensível está sendo usado aqui intencionalmente.
Estamos querendo dizer que Mandeville percebeu muita coisa, vislum
brou coisas novas, mas nem sempre exprimiu isso com a clareza
necessária. Mas não sejamos anacrônicos. Não imputemos falhas a um
pensador que, esboçando uma nova cartografia conceituai, deixou-a
ainda um pouco embaralhada. Embaralhada para nós, que sabemos o
rumo posterior das idéias. Mandeville foi um pensador, não um profe
ta. Talvez a melhor grade para se ler Mandeville seja aquela que seguem
seus predecessores (sobretudo Hobbes e La Rochefoucauld): na consti
tuição lenta, mas progressiva, de uma antropologia laica que vê o motor
fundamental das ações humanas no egoísmo. Essa tese é uma constante
na obra de Mandeville e Hutcheson dispendeu anos, cursos e livros para
tentar desmontá-la.’7 É provavelmente através desse operador que con
seguiremos reagrupar algumas articulações fundamentais.
Dessa perspectiva, uma primeira linha de interpretação impõe-se. O
que, à primeira vista, aparece como um paradoxo — afinal de contas,
por que a retitude moral é incompatível com a pTOsperidade? — pode
começar a se resolver se pensarmos que Mandeville pensa o par
vício/virtude numa acepção estritamente rigorosa e ascética. Conferindo
32
um sentido rigoroso aos termos, ele consegue colocar em evidência que
estamos, de fato, frente a uma dupla escala de valores que são incom
patíveis. Aponta, de forma clara, para o fato de que a moral da perfeição
individual (lembremos o quadro pintado por Bayle, citado há pouco)
não é compatível com a moral que é exigida pelo interesse social.
Entendendo-se por moral, norma de comportamento. Aponta-se, então,
para uma irredutível separação entre os preceitos da pureza, moral indi
vidual e os imperativos exigidos para o desenvolvimento material da
sociedade. Separação que supõe, vimos, o caráter inconciliável de
ambas as posturas, se se quiser mantê-las simultaneamente.
Em segundo lugar, os diferentes sujeitos são colocados frente a uma
opção: ou a busca da salvação pessoal e a conseqüente estagnação e dete
rioração da sociedade, ou a atitude inversa. Ora, o sentido e o tom do
poema de Mandeville — sobretudo o seu final — não podem deixar muita
dúvida com relação à posição ou à sua tese. Ele afirma claramente que o
vício é tão necessário ao Estado quanto é a fome para comer, e percebe
muito bem que seus contemporâneos já escolheram a segunda via.38
Podemos raciocinar de maneira ligeiramente diferente e chegare
mos à mesma conclusão: um rigorista moral, absolutamente convenci
do da veracidade de sua doutrina, como Fénelon, não teria hesitado
frente a esse quadro: se é assim, é preciso abandonar esse falso rumo
tomado pela sociedade e reconduzi-la ao bom caminho, reeditando
várias Espartas modernas. Ora, já vimos, a crítica de Bayle apontava
claramente o ponto fraco dessa argumentação. Mas pode-se inverter o
raciocínio de Bayle: qual seja, os antigos tinham um tipo de vida deter
minado pela necessidade e não pela virtude. Mas nós, modernos, que
temos diante dos nossos olhos as duas opções, temos também o direito
de escolha e podemos perfeitamente optar, com conhecimento de
caüsa, pelo rigor e a frugalidade, se esse é o preço de nossa salvação
ou/ pelo menos, de nossa retitude moral. Fica claro, portanto, que o
paradoxo de Mandeville só pode instaurar-se como tal numa sociedade
que produz bens no regime de abundância e que sabe que há outra
opção possível, a famosa “opção zero” de um político eminente.
É sintomático, no entanto, que essas possibilidades nunca
apareçam seriamente no texto de Mandeville. Essa volta para trás é,
evidentemente, uma impossibilidade aos seus olhos, e isso por uma
razão muito simples: sua concepção da natureza humana. A nota domi
nante do pensamento de Mandeville é a de que o móvel central das
ações humanas é o egoísmo:
33
“Nada existe na terra tão universalmente sincero como o
amor que todas as criaturas, capazes de senti-lo, se pro
fessam a si mesmas; e como não há amor que não
desvele o cuidado de conservar o objeto amado, nada
há mais sincero, em qualquer criatura, que sua vontade,
seu desejo e seu empenho de conservar-se a si mesma. É
lei da Natureza que todos os apetites ou paixões da
criatura tendam diretamente ou indiretamente à preser
vação tanto de si como de sua espécie” .w
34
II
35
cerveja, um dos principais artigos do fisco de sua majes
tade, e, por conseguinte, promove a segurança, o poder e
a glória da nação. Em segundo lugar, fornece emprego a
um grande número de trabalhadores: cervejeiros, fabri
cantes de malte, trabalhadores, carpinteiros, fabricantes
de latão, junto com os demais artesãos necessários para
subministrar aos mencionados seus respectivos instrumen
tos e utensílios. Todos esses benefícios são produzidos pela
embriaguêz vulgar, da cerveja forte” .44
36
É impossível considerar essas noções tendo como marco um
ponto absoluto. Riqueza e pobreza, necessário e supérfluo, desperdício
o frugalidade são noções relativas: o que é privilégio de aJguns numa
época toma-se, com o decorrer do tempo, objeto de consumo corrente.
É muito difícil, em primeiro lugar, dizer quando começa o luxo.
Voltaire, no Dicionário Filosófico, afirma:
37
querem estar limpas e apresentáveis, por exemplo, diz Mandeville,
nunca se sabe direito o que estão querendo dizer com isso. Mas, esses
“pequenos adjetivos são tão extensos, especialmente no dialeto de algu
mas damas que ninguém pode suspeitar de seu alcance”.41' A réplica con
tinental não demorou muito:
38
longe. Exceto em dois pontos, onde seu papel parece ter sido decisivo,
lixaminemos o primeiro. Num desses giros muito característicos de
Voltaire, ele acaba fazendo o feitiço virar contra o feiticeiro e é, não
sobre a noção de supérfluo que joga sua atenção, mas sim sobre a de
excesso. Foi esse o grande golpe de gênio de Voltaire, quando acaba
por inverter as posições e passa do papel de advogado de defesa ao de
acusador. Trata-se de um momento importante e delicado nessa longa
c intrincada disputa sobre o luxo e, de agora em diante, serão os
próprios apologistas da frugalidade que se vêm na obrigação de dar
explicações. Isso tudo, Voltaire conseguiu com uma simples frase:
39
que bem vão era discutir sobre o luxo, posto ser este uma
realidade: boa ou má, era necessário aceitá-la" .5i
10. A abordagem de Hume foi discreta, mas nem por isso deixou
de ser importante:
40
Dedicar as despesas inteiramente a tal satisfação, sem
consideração para com os amigos ou a família, indica
um coração destituído de humanidade ou benevolência;
mas se um homem reserva tempo suficiente para todos
os fins generosos, está livre de qualquer sombra de
culpa ou reprovação”.56
O que ele chama luxo vicioso parece ser o que entendemos por
monomania ou idéia fixa. Não deixa de lembrar também Luís XIV e
Versailles. A idéia que nos vem, por exemplo, é a de um jogador cuja
paixão foi levada a tal ponto que absorve toda sua vida e drena todos
os seus bens. Mas, nem nesses casos, Hume considera o luxo como “o
pior dos males da sociedade política”.57
A análise de Hume centraliza-se num ponto de vista socio-
econômico. Os homens, desde que deixaram o estado selvagem onde
viviam principalmente da caça e da pesca, dedicaram-se à agricultura,
que de início ocupou a parte mais numerosa da sociedade. Mas, o aper
feiçoamento da técnica levou ao estado em que bem poucos homens,
proporcionalmente, são necessários para garantir a subsistência dessa
mesma sociedade. Todo o problema, diz Hume, está em o que fazer
com esse excedente de mão-de-obra da agricultura. Pode-se usá-lo ou
para o engrandecimento e o poder do Estado (exércitos, frotas) e o
aumento de seus domínios, ou pode-se usá-lo para a produção de ma
nufaturas e objetos mais refinados. Alguns Estados antigos preferiram
a primeira via e só se tomaram poderosos exatamente pela “ausência do
comércio e do luxo”.58 Mas esses casos são excepcionais e não instau
ram uma regra e, neste caso, podemos seguramente dizer que “a políti
ca antiga era violenta e contrária ao curso natural e comum das
coisas”.59 Já que tudo no mundo é “adquirido pelo trabalho”, causado
pelas nossas paixões, e é natural que toda pessoa goze “dos frutos de
seu trabalho, em plena posse de todo o necessário e de muitas das
comodidades da vida”.60 E esse é o “curso comum das coisas humanas”
e a boa política consiste em “concordar com a inclinação comum da
humanidade e dar-lhe todos os melhoramentos de que é suscetível” e,
conforme o “curso natural das coisas, a indústria, as artes e os negócios
aumentam tanto o poder do soberano quanto a felicidade dos súditos e
é política violenta aquela que engrandece o público à custa da pobreza
dos indivíduos”.61 É sob essa ótica que os indivíduos conseguem
41
realizar sua felicidade pois os homens, quando a indústria e a técnica
florescem “mantêm-se em ocupação constante e desfrutam da própria
ocupação como sua recompensa, bem como dos prazeres que são o
fruto do seu trabalho”.62As vantagens de se seguir as inclinações natu
rais dos homens são múltiplas: quanto mais se requintam no prazer,
menos se abandonam ao excesso de qualquer tipo.63 Essa produção e
consumo desses artigos ornamentam a vida multiplicando as satisfações
inocentes, e são úteis também à sociedade porque produzem não só um
excesso, que pode ser estocado em caso de necessidade futura, como
também mantém uma mão-de-obra potencial disponível ao Estado,
caso ele venha precisar dela, já que ela não produz o essencial.64
Distribui melhor a riqueza no interior da sociedade, e “onde as riquezas
estão na mão de poucos”, estes detêm todo o poder e, inevitavelmente,
conspirarão para deixar todos os encargos aos pobres.65
E falso, enfim, pensar numa opção frente ao problema de excedente
provocado pelo excesso de refinamento da agricultura. E mais: mesmo
nos estados onde o Estado era o valor único e primeiro, não foi o luxo o
causador de suas desordens. Este “não possui a tendência natural de
acarretar a venalidade e a corrupção”.06 Suas desordens procederam de
um “governo mal formado e da extensão ilimitada de suas conquistas”.67
Essa é a fonte de seus males e é por isso que o luxo, mesmo vicioso, não
é o pior dos males num Estado. De nada adianta combater o luxo. Ele
por si só é geralmente beneficioso ou, pelo menos, inócuo. De um só
golpe Hume praticamente inocenta o luxo, insere-o na cadeia natural dos
eventos sociais (econômicos, seria melhor) e desloca o acento das neces
sidades do Estado para as necessidades do indivíduo. O luxo agora é a
conseqüência natural das matrizes passionais do ser humano — desejo
de ação, de prazer, e de consumo — e insere-se no plano econômico,
ligado ao desenvolvimento da indústria e do comércio. Ele é um dos ele
mentos essenciais do desenvolvimento do corpo produtivo. Dupla ação,
portanto, alocação do luxo como um problema econômico (e desliga
mento da esfera moral), que deve ser tratado como tal, e sinalização de
que os males do Estado têm por causa — não o luxo — mas algo que
está na esfera do político.
Se ainda pode-se dizer com Hume que o “luxo” é uma palavra
polissêmica e que se trata, portanto, de uma questão de delimitação,
ninguém melhor que Hume até então realizou esta operação de precisão
do conceito. Pode-se argüir indefinidamente sobre onde o luxo começa
e onde acaba, argumentai- sobre a relatividade geográfica e histórica; o
42
fato c que seu único ponto sólido de ancoragem é o econômico, susten
tado por uma teoria do valor baseada em constantes da natureza humana.
11. Depois da abordagem humeana, ao que parece, assistimos a uma
espécie de calmaria nessa discussão que só será realmente reavivada nos
anos 70. Nesse ínterim, Montesquieu dedica-se em vários pontos do
Espírito das Leis ao problema, sobretudo no livro VII. Mas o tom já é bem
outro que o das Canas Persas. Não que condene o luxo, ao contrário. Mas
a apologia é mais que discreta.68Vincula estreitamente, no entanto, o luxo
e a Monarquia.6'' Uma outra observação de Montesquieu é interessante:
43
quais apenas um pequeno número de indivíduos pode des
frutar. Neste sentido o luxo é uma decorrência necessária
da propriedade, sem a qual nenhuma sociedade pode sub
sistir, e de uma grande desigualdade entre as fortunas,
que é a conseqüência não do direito de propriedade, mas
de más leis. São portanto as más leis que fazem nascer o
luxo, e são as boas leis que podem destruí-lo. Os moralis
tas devem dirigir seus sermões aos legisladores, e não aos
particulares, porque está na ordem das coisas possíveis
que um homem virtuoso e esclarecido tenha o poder de
fazer leis razoáveis, e porque não é da natureza humana
que todos os ricos de um país renunciem, por virtude, a
obter a preço de dinheiro desfrutes de prazer e vaidade” .72
Esse texto é revelador, em primeiro lugar, da distância que foi per
corrida nessa discussão e que Voltaire espelha tão bem. Uma certa
acepção do termo luxo já não se discute mais: sua bondade, sua utili
dade e seu caráter natural à espécie humana. Em segundo lugar, se há
um sentido em que o luxo pode ser condenado (“Neste sentido...") é
aquele supérfluo, que é o privilégio de uma minoria rica. Mas isso diz
respeito, diretamente, à legislação e não à moral privada. Trata-se de
um problema de política, não de ética: da boa gestão e distribuição dos
bens que são gerados e produzidos na sociedade. Essa espécie de luxo
condenável nem é má em si mesma, como veremos, já que é um efeito
e, mesmo como efeito, nem sempre é condenável.
44
extraí após esse balanço: tanto os elogios como as censuras que se
fazem ao luxo não são contraditos pela história. O que significa dizer
que a história não é um bom “topos” para se trabalhar a questão. É
preciso encará-la sob outro ângulo. E a maneira como ele a coloca
pode ser expressa da seguinte forma: se os apologistas do luxo vêem
neíe o motor dos progressos das nações, enquanto que seus detratores
vêem nele o motor de sua decadência, e como ambas as coisas podem
ser constatadas no plano histórico, não se estaria tomando como
causa e como efeito algo que não é nem uma coisa nem outra?” E,
logo em seguida, afirma:
45
“O luxo tem como causa primeira este descontentamento
com nosso estado; este desejo de ser melhor, que existe
e deve existir em todos os homens. Nestes, ele é a causa
de suas paixões, de suas virtudes e de seus vícios. Este
desejo deve necessariamente fazê-los amar e procurar
as riquezas; portanto, o desejo de enriquecer-se deve
contar entre os motivos de todo governo que não é fun
dado na igualdade e na comunidade dos bens; ora, o
objeto principal deste desejo deve ser o luxo; portanto,
existe luxo em todos os Estados, em todas as
sociedades: o selvagem tem sua rede, que ele compra
por peles de animais; o Europeu tem seu canapé, seu
leito; nossas mulheres usam azul e contas de vidro" .77
46
dirigi-lo. O luxo desenfreado leva a sobrecarregar os
campos de impostos, e despovoá-los, a exagerar a
desigualdade das riquezas. O luxo moderado enriquece
o estado, desenvolve-o e sustenta-o. Este não é ameaça
do enquanto as paixões que conduzem ao luxo per
manecem subordinadas ao espírito de comunidade” .8n
47
2- O luxo, enquanto tal, é inerente ao estado de sociedade e,
enquanto esta existir, ele a acompanhará, a não ser nos casos de
exceção, não naturais;
49
sos: isso só acontece em condições excepcionais ou anormais. O
exemplo de Ferguson, já citado89, onde evoca “os fantásticos adornos
de plumas dos selvagens” é dos mais significativos. Mas, mais impor
tante, é a conclusão que Ferguson extrai:
50
faz seu requisitório contra o luxo? Que é insaciável, ilimitada, inces
santemente inquieta:
51
XVm, até agora pouco explicitado, onde o imaginário, a fantasia e o
desejo governam subterraneamente o discurso dos homens. Há um aves
so do século XVIII do qual Sade, sem dúvida, é uma das expressões.
Essa inquietude do desejo, estimulada pelo imaginário, tem segu
ramente como tela de fundo, ou melhor, como alicerce, uma certa con
cepção do homem, da natureza humana, uma antropologia, digamos,
que tem como um de seus eixos centrais a idéia de uma certa inade
quação entre dois campos. Supõe uma certa necessidade indetermina
da e o campo da satisfação. O ponto é que, ao que parece, não se trata
nunca da natureza determinada de uma necessidade, mas muito mais
de uma indeterminação, que leva sempre à insatisfação. Insatisfação
que se caracteriza, por seu lado, exatamente na medida em que se ma
nifesta como necessidade do novo.
Assim, devemos distinguir duas séries para evitar qualquer con
fusão. Há, em primeiro lugar, a série necessidade — desejo — satisfação.
Série cíclica, repetitiva, monótona, que se espelha no campo vital. Mas
há, em segundo lugar, uma outra série, que é a que está chamando a
atenção, que evidentemente não se coloca no ciclo biológico das
chamadas necessidades vitais. É exatamente esta última que parece ser
uma conquista do homem, não negando a primeira, mas instaurando uma
outra, superposta e suplementar; fazendo com que, nesse nível agora,
essa adequação quase perfeita que existe nos animais entre necessidade
e satisfação seja rompida e se instaure um novo tipo de ciclo, na forma
de uma espiral indefinida de desejos e insatisfações fugazes, que provo
cam novos desejos e assim indefinidamente. Chegamos assim a uma fór
mula mais complexa: ... desejo — necessidade indetenninada — elabo
ração imaginária — concretização do objeto — satisfação fugaz — dese
jo... É esse ciclo aberto, por assim dizer, que chama a atenção. E é aqui
que parece estar a ruptura do especificamente humano. Retomemos,
então, a questão: a análise do problema do luxo nos aponta para esses
indicadores. Sendo assim, que concepção da natureza humana está sendo
arquitetada aqui? Quais são as estruturas fundamentais do desejo, da
imaginação, da fantasia etc., para que eles se caracterizem dessa forma?
52
turais, característicos dos homens (já que não se pode conceber a vida
humana sem eles, a não ser em condições patológicas, como vimos), a
grande oposição estaria portanto (e não é nisso que se insiste tanto nessa
discussão sobre o luxo?) entre o natural e o artificial. Mas, poder-se-ia
questionar: não se trata, em última análise, de uma falsa oposição, no
caso em questão? Foi o partido que tomou Ferguson no seu Ensaio sobre
a História da Sociedade Civil. A arte, segundo Ferguson (não se esque
cendo de tomar esse termo na acepção que ainda tem no século XVIII de
artes mecânicas, tecnologia, além de arte, propriamente dita, mais co
nhecida como belas-artes), estaria incrustada na natureza humana, faz
parte integrante dela, de modo que não há o menor motivo para espanto
ao se detectar essa diferença básica entre homens e animais:
53
modo, Ferguson ajunta mais água ao moinho dos defensores do luxo,
retirando a questão do plano teológico-moral e laicizando-a. Trans
forma-a numa questão de fato. Mas, com relação à questão colocada,
isso nos faz avançar muito pouco; quer dizer, afirmar que a capacidade
técnica é algo inerente à natureza humana não parece levar à resposta
que se procura. Basta que pensemos nos clássicos exemplos que vêm de
longe mas que abundam no século XVIII, sobretudo na tradição liberti
na,94 dos animais que vivem em associação (abelhas, castores etc.). Eles,
sem dúvida, possuem um nível de arte (em muitos casos bastante inve
jável sob um determinado ponto de vista) que também está inserido, que
faz parte de sua própria natureza. Mas, nem por isso, nota-se neles essa
inquietude (esse conceito é capital, como veremos mais adiante), essa
insaciabilidade, essa insatisfação permanente do desejo e do imaginário,
característica do ser humano, como apontamos acima.
Na verdade, se damos a devida atenção ao texto de Ferguson,
percebe-se que seu problema não era bem o que estamos tratando; que,
para ele, este aparece como secundário. Ele não está procurando
responder: por que o desejo e o imaginário se configuram de tal forma?
Mas sim esta outra: os homens têm meios para satisfazer seus desejos?
E sua resposta é: faz parte, como componente da natureza humana, a
posse desses meios para suprir suas insatisfações. A mobilidade dos
seus desejos encontra sempre meios para a satisfação dos mesmos. O
que não o preocupa é a indagação do porquê o ser humano se carac
teriza dessa forma. Sem dúvida, fornece um indicador importante e
inegável ao fundir a capacidade técnica na natureza humana. Mas isso
é o requisito para se trabalhar a questão, não a solução.
Na verdade, ao que tudo indica, para se tentar não responder mas
esclarecer um pouco melhor essa questão — e não pretendemos mais
que isso — será necessário operarmos um recuo no tempo e empreen
der a mobilização de um material muito diversificado, o que não deixa
de ser assustador. E que, essa é a nossa impressão, para uma com
preensão mais clara desse problema, teremos que abordar não uma
(como se é levado a pensar), mas duas enormes mutações conceituais
que ocorreram (se se quer dar vazão à irresistível mania de datação): a
primeira, basicamente a partir da segunda metade do século XVII; e a
segunda, no interior do próprio século XVIII. Nunca, talvez, mudanças
de tal envergadura ocorreram em tão pouco espaço de tempo, arrui
nando uma visão milenar das coisas e reestruturando todo o campo
perceptivo e mental dos homens. A rigor, sabemos muito pouco a
54
respeito disso tudo (quando se trata dos “porquês”), e o pouco que
sabemos está permeado por dúvidas. As linhas gerais do processo co
nhecemos. Trata-se dessa lenta mas inexorável laicização do pensa
mento acidentai — sem implicar um retomo aos antigos — que afetou,
no âmago, nossa compreensão do mundo e dos homens. O que é
extremamente embaraçoso, após tantos e tantos trabalhos, é o estado
de ignorância em que nos encontramos frente a questões, às vezes, ele
mentares. Não pretendemos, é claro, realizar nenhuma abordagem ino
vadora, mas apenas, com a maior economia possível, enquadrar os
problemas em função de nossas preocupações.
55
NOTAS
57
39 Ibid., p. 129; Quanto à afirmação final do texto (“como de sua espécie”), as exten
sas análises de Mandeville mostram, inequivocadamente, que devem ser reconduzi*
das ao egoísmo e ao interesse próprio. Cf. Kaye, p. XXVI e seg.
40 Ibid.. p. 84.
41 Ibid., p. 94.
42 Ibid.
43 L. Dumont, op. cit., p. 89. Basta agora que, numa operação relativamente simples,
insira-se o corpo dentro dessa esfera dos bens úteis para se compreender que esse deve
ter sido um dos fatores da explosão da sexualidade na modernidade, apontada por
Foucault, em contraste com o rigor e o cuidado com que era tratada entre os antigos.
Neste ponto também Sadc nada mais fez que extrair as últimas conseqüências dessa
posição. Quem não se lembra de sua cclebre frase, na Histoire de Juliette: “Oferecei-
me a parte de vosso corpo que pode me satisfazer por um momento e desfrutai, se isso
vas agrada, daquela do meu que pode ser-vos agradável”; Paris, Tchou, VIII, 71. É
preciso lembrar aqui a célebre frase de A. Smith: “Dê-me aquilo que eu quero e você
terá isto aqui que você quer — esse é o significado de qualquer oferta desse tipo; e é
dessa forma que obtemos uns dos outros a grande maioria dos serviços de que neces
sitamos. Não é da benevolência do açougueiro, do cervejeiro ou do padeiro que espe
ramos nosso jantar, mas da consideração que eles têm pelo seu interesse próprio.
Dirigimo-nos não à sua humanidade mas ao seu egoísmo..."; Smith, A. Recherches sur
la Nature et les Causes de la Richesse des Nations, Paris, Gallimard, 1976, p. 48.
44 Berkeley, Alcyphron, Madrid, Ed. Paulinas, 1978, p. 107. A critica de Berkeley está
nas p. 113 e scg.
45 Por outro lado, já que felicidade e bondade não coincidem, começa-se a vislumbrar,
delinear e se desenhar vagamente os personagens de Sade que, no fundo, também
podem ser lidos como encarnações dessa tese. Justine, a ultravirtuosa Justine, no
sentido ascético do termo, e cuja existência é um mar de infelicidades. Justine, boa
c infeliz, Do outro lado, Juliette, essa verdadeira caixa dc Pandora ambulante, esse
poço de todos os vícios imagináveis e, no entanto, feliz. Feliz, do começo ao fim.
Sob esse Angulo, muito antes de ser uma “exceção monstruosa”, Sade é o acaba
mento, no plano moral, dessa tendência (assim como A, Smith o é no plano econômi
co). Esta leitura, se tem alguma validade, com relação à Sade, embora chegue a con
clusões semelhantes, parte dc premissas bem diferentes das de Horkheimer e Adomo
na Dialética do Uuminismo. B. Aires, SUR, 1971, p. 102 £ seg.
46 Mandeville, op. cit., in Observações; obs. P, no início, p. 108.
47 Voltaire, op. cit., sec. I, vol. XX, p, 45.
48 Mandeville, op. cit., obs. L, p. 67, no início.
49 Ibid.
50 Voltaire, Observações sobre 0 Comércio, o Luxo, a Moeda e os Impostos, XXII, p.
363-4.
51 Id., Le Siècle de Louis XIV. O exemplo que Voltaire dá é o da indústria de espelhos:
vol. XIV, p. 530-1. Comparar com o Essai sur les Moeurs, II, p. 54 e segs.
52 Id., Dicionário Filosófico, in Oeuvres XX, sec. II, p. 47.
53 Ibid., vol. XX, p. 47. O argumento se baseia, é claro, em Aristóteles, e reaparece fre
qüentemente na Antigüidade, sobretudo em Sêneca. Ele já está delineado nas
Obseiyations..., cit. na nota 50. A mesma idéia aparece no poema “Sur 1‘Usage de
la Vie”, X, 94-6:
58
“Saibam, meus amigos
Que falando de abundância
Eu cantei os prazeres
Aqueles puros e permitidos
E jamais a intemperança
Eu não quero ensinar-lhes
A arte pouco conhecida de ser feliz.
Esse estado que tudo deve abarcar
Está em moderar seus desejos”.
54 Hazard, P., O Pensamento Europeu no Século XVII!, Lisboa, Presença, s.d., vol. II,
p. 212-13.
55 Hume, “Sobre o Refinamento das Artes” in Pelty Hume, Quesnay, São Paulo, Abril
Cultural, 1983, p. 193.
56 Ibid.,p. 193.
57 A idéia repete-se no fim do ensaio: “Nenhuma satisfação, ainda que sensual pode ser,
por si só, considerada viciosa. Uma satisfação só é viciosa quando monopoliza toda a
despesa de um homem...'' (p. 198). O par vício/virtude está em Hume mais enraizado no
econômico do que no mora!, propriamente diío. A citação do texto está na página 194.
58 Hume, “Sobre o Comércio”, ed. cit., p. 186-7.
59 Ibid., p. 188.
60 lbid., p. 191.
61 Ibid., p. 188.
62 Hume, “Sobre o Refinamento...”, ed. cit., p. 194.
63 Ibid., p. 195.
64 Id., “Sobre o Comércio”, ed. cit., p. 188-9.
65 lbid., p. 191.
66 Id., “Sobre o Refinamento...”, ed. cit., p. 197.
67 Ibid.
68 O que não fez com que escapasse de críticas pesadas, bem mais tarde, por parte de
D. de Tracy no seu Commentaire sur l'Esprit des Lois de Montesquieu (Genève,
Slaktine Reprints, 1970), publicado originalmente em 1811 nos Estados Unidos mas
que, segundo o testemunho do autor, já circulava desde 1807. A critica de Tracy
encontra-se nas páginas 79 e segs.
69 Montesquieu, “De 1’Esprit des Lois", in Oeuvres Completes, Paris, Plêiade, vol. II,
Livro VII, cap. IV, p. 436-7. O que servirá para Holbach elaborar duras críticas ao
luxo (cf. nota 86).
70 Ibid., L. VII, cap. I, p. 332.
71 Voltaire já tinha lido o Ensaio sobre a História da Sociedade Civil de Ferguson? A
menção do selvagem leva a suspeitar. Com efeito, lemos no texto de Ferguson que
é inúti! dizer que o cidadão civilizado é débil por alguma parte de sua equipagem, a
vestimenta, por exemplo. Isso revela-se também no: “índio por seus fantásticos
adornos de plumas, suas conchas, suas peles de várias cores" e pelo tempo que passa
arrumando-se (Ferguson, obra citada, Madrid, IEP, 1974, p. 311).
72 Voltaire, Dictionnaire Philosophique, ed. cit., v. XX, p. 48, nota 1. O grifo é nosso.
73 O verbete está no volume IX da Enciclopédie. Durante muito tempo esse texto foi
atribuído a Diderot. Recentemente um autor (Gusdorf, Les Príncipes de la Pensée
59
au S iècle d e s L um ières, P aris, P ayot, 1976) ainda lhe atribui a p aternidade. O texto,
na v erd ad e, é de auto ria de S t.-L am bert. Sobre isso ver R. H ubert, op. cit., p. 305
e seg., e o tex to de J. P ro u st, D id erot e t VEnciclopédie, P aris, A. C oiin, 1967, p.
538, n. 122. O texto co n sta, ainda, d a e dição das obras de D iderot de B rière (1821-
3) e da de A ssezat-T o u m eau x (1875-77), no vol. XV. Por razões de com odidade
pesso al, citarem o s o te x to d a e d iç ã o d e B rière. vol. X V II, p. 235-76. N esse m eio
tem po, H elv étiu s trato u do p roblem a do luxo (no cap. III do liv ro 1) no seu livro
D e VE sp rit (Paris, M arabout, 1973, p. 30 e seg.). V oltarem os a este ponto quando
tratarm os d esse autor.
74 S aint-L am bert, Verbete, “L u x e”, ed. cit., p. 235.
75 Ib id ., p. 241, in fin e .
76 Ibid., p. 242. O prim eiro g rifo é nosso.
77 Ib id ., p. 235.
78 Ibid., p. 240.
79 Shaftesbury, “A n Inquiry C oncening Virtuc or M erit”, in British M oralista, Oxford,
1969, vol. I, p. 175 e seg.; D iderot, “Essai sur le M érit et la Vertu”, in O euvres de
D id ero t, Paris, Brière, 1821, vol. I, p. 43 e seg.
80 R. H ubert, op. cit., p. 307.
81 S l.-L am bert, op. cit., p. 273.
X2 Ibid.'. “ O ra, cm todas as partes o nde se v ê o despotism o, por que procurar outras
c ausas de corrupção?” (p. 242).
83 D aqui por diante, do ponto de vista q ue nos interessa, pouco se adiantará n essa dis
cussão. Beccaria, no Tratado do s D eütos e das P enas (R io de Janeiro, Ed. Ouro,
s.d.), havia distinguido (o texto é de 1764) entre “ luxo de ostentação” e “luxo de
c om odidade” (distinção que fez m oda), defendendo o segundo e condenando o
prim eiro. H elvétius que, de um a concepção que pendia para o negativo no seu De
I'Esprit (cf. n o ta 7 3 ), retom a a distinção de B eccaria (o qual se dizia discípulo de
H elvétius) e produz, na sua segunda g rande obra, D e 1'Homme, um a longa d iscussão
sobre o tema. Nesse texto, centraliza m uito sua discussão na relação entre luxo e
d espotism o, m ostrando que 6 neste últim o que está a origem dos males e que, nele,
o luxo acaba sendo um paliativo, na m edida em que, nessa sociedade injusta e mal
adm inistrada, oferece serviços aos m enos favorecidos. “É a m agnificência dos
G randes que d iariam ente transfere o dinheiro e a vida para a classe inferior dos
cidadãos” (D e 1'H om m e, Paris, F ayard, 1989, vol. II, p. 583). D e resto, com uma
exceção q ue apontarem os logo m ais, não nos parece que chegue a nada original
sobre o assunto e quando afirm a q ue “O luxo, por conseguinte, n ã o é em si m esm o
um m al” (ed. cit., p. 588), só faz repetir o j á sacram entado. U m a frase, no entanto,
faz com que se p erceba com o Helvétius captou um dos aspectos d o problem a:
60
cito seja a relação das b elas-artes com o luxo, Diderot trabalha em vários níveis. Uma
coisa é certa: D iderot m o stra m uito claram ente que o bom luxo (o luxo de c om odidade)
é perfeitamente p en sáv el fo ra dos q uadros da prem issa do consum o cada v e z m aior e
mais rápido. A qui D iderot e H um e estão longe um d o outro. R etom ando um título
famoso, para D id ero t o d esenvolvim ento do luxo e d o capitalism o não são sinônim os. É
perfeitamente possível p en sá-lo n u m a o rd em estritam ente fisiocrática que, aliás, é a p re
missa da sua análise. P ara nossos p ropósitos, a im portância do texto e stá p rincipalm ente
aí. Mas ele bem m erece um a análise detalhada.
84 Ver o tex to referido na nota 1.
85 Basta lem brar a crítica d e D. d e Tracy, m encionada anteriorm ente.
86 D c q ualquer m aneira é sintom ático q ue d epois d e aproxim adam ente 1770 (colocamos
a data apenas p ara fixar as idéias), m esm o os críticos d o luxo já aceitam a idéia de que
o luxo é u m a inclinação natural do ser hum ano. H olbach, p or exem plo, um crítico fer
renho do luxo, q ue propunha leis rigorosas contra sua expansão, afirm a n a Ethocracie
(G. Olms, 1973, cap. VIII, p. 134), num determ inado m om ento, o seguinte:
A mesma idéia já está p resente no Systèm e S o c ia l (G, Olms), 1969, vol. III, p. 63-65).
Mesmo Tracy (op. cit., nota 68), esse ultra entre os ultras, acaba reconhecendo, às meias,
esse fato:
M... o luxo, isto é, o gosto das despesas supérfluas é, até um certo ponto,
o efeito de uma inclinação natural do homem para procurar incessan
temente prazeres novos...” (ed. cit., p. 95).
O luxo, agora, para esses autores, tem o mesmo estatuto d o sexo: uma inclinação natu
ral que deve ser reprimida.
61
DESEJO
1. As mudanças operadas no universo mental dos homens na m o
dernidade foram de tal monta que até hoje ainda tentamos entendê-las.
Até os fins da Idade Média — salvo exceções — a representação do
cosmos era hierárquica. De Platão até o século XV, aproximadamente
— a obra monumental de Duhem o m ostra1— elaborou-se e sofisti
cou-se um a concepção do m undo que perdurou por séculos.
Concepção geocêntrica, de um universo esférico, que supunha uma
divisão entre o mundo sublunar e supralunar, ambos submetidos a
ordens diferentes, onde a noção de “lugar natural” ocupa um posto
central e, em conseqüência disso, a noção de movimento retilíneo sem
pre aponta para um a “desordem cósmica”, uma “ruptura de equi
líbrio”2 e deve sempre ser passageira. Cosmos ordenado, fechado, hie
rarquizado, onde cada objeto tem seu lugar determinado.
Essa visão desmoronou-se em pouco espaço de tempo. Unifica-se
o espaço, instaura-se o heliocentrismo e — sobretudo — a física
matematiza-se com uma velocidade prodigiosa. Os sábios começam a
pensar o universo em termos atômicos. Partículas que percorrem um
espaço e um tempo determinados. Já não se pensa mais com as cate
gorias da Escola. E, entre a Escolástica e o Mecanicismo, instala-se um
naturalismo confuso e vago no Renascimento que, apoiado num a bio-
cosmologia, estranha para nós, pensa o mundo em termos, por exem
plo, de simpatias, antipatias, analogias, influências do supralunar sobre
o sublunar. O mecanicismo, como mostrou Lenoble3, terá que enfrentar
duramente esse adversário antes de triunfar.
65
O espaço geometriza-se pouco a pouco, o movimento emancipa-se,
o cosmos desmembra-se4 de um lado, e de outro unifica-se, porque não
há um acima e um abaixo, regulado por normas diferentes. O universo
homogeneiza-se. Perguntemo-nos, diz um autor, o que aconteceu quan
do se passou a pensar em termos mecânicos coisas que até então eram
representadas de forma teleológica; “quando as explicações teleológicas
— explicações baseadas no conceito de utilidade e Bem — abandonam-
se definitivamente em favor da noção que as verdadeiras explicações do
homem e de seu espírito, assim como as demais coisas, devem ser em
termos de suas partes mais simples; o que ocorreu entre 1500 e 1700
para que pudesse cumprir-se essa revolução’7 As respostas não são
fáceis de serem obtidas e até hoje tenta-se encontrá-las.
M as não foi só com relação à representação do mundo físico
que as coisas m udaram radicalm ente. O universo antigo é ordenado,
fixo e hierarquizado, não apenas desse ponto de vista, mas de outros
também . Sobretudo um que nos interessa particularm ente. Se exce
tuamos o epicurism o, a antigüidade sempre teve uma concepção
similar, com relação ao universo, do ponto de vista ético.'1 Há va
lores objetivos aos quais os diferentes sujeitos devem se subordinar.
O Bem é um a estrutura objetiva que está incrustada na realidade, e
à qual os sujeitos devem se regular. Há uma hierarquia objetiva dos
valores, que culm ina na noção de “summum bonum ”, que se m an
tém através dos séculos.
Isso im plicou um a certa com preensão do mundo ético que inci
diu diretam ente sobre a concepção clássica das paixões, que é o
ponto que nos interessa nesse debate. Se há um Bem objetivo, ao
qual o sujeito deve aspirar, é a esse mesmo Bem que ele deve tender
para realizar sua perfeição ética. Esse Bem deve ser conhecido pelo
sujeito e, através desse ato inaugural, ele tenderá irresistivelm ente à
posse desse Bem. O ato subseqüente é a atração irresistível que esse
objeto deve exercer no sujeito. Conhecendo-o, ele o amará. E esse
am or ao Bem é que deverá guiar toda a dinâmica de suas paixões. O
fim de todas as suas ações deve para aí tender. Existe um a estrutura
teleológica objetiva à qual os sujeitos devem se submeter. Assim, em
Santo Tomás, a felicidade hum ana está na contemplação de Deus,
bem supremo por excelência.7E, nessa estrutura, um a certa ordem
das paixões se im põe onde o am or deve predom inar, vindo em segui
da o desejo e, por fim, a delectação, segundo a ordem da consecução
(e não da intenção):
66
“E, por isso, segundo essa ordem, o amor precede ao
desejo e este à delectação” *
Santo Tomás, num certo sentido, nada mais faz que codificar aqui
uma idéia que vem desde a antigüidade e que perdurará ainda por
muitos séculos. Essa hierarquia das paixões supõe, portanto, três pares
fundamentais, que se ordenam assim:
1. amor ódio
2. desejo aversão
3. prazer desprazer
67
menos derivados. A questão que se coloca a partir de
então, e que determina as grandes clivagens, é a de
saber a qual desses três pares cabe a prioridade ” .9
69
Para isso, coloca em ação uma concepção metodológica que con
siste em decompor um determinado problema em seus elementos cons
tituintes. Atingidos esses elementos, procede-se à sua análise, e a de
suas inter-relações, até chegar progressivamente a reconstituir o todo do
qual se partiu. Trata-se de um processo resolutivo-compositivo que
dilui o todo em seus elementos constituintes para, a partir deles, recons
truir e recompor esse mesmo todo do qual se partiu. No De Cive,
Hobbes explica essa idéia num texto que funciona quase como um pro
grama, não só de seu modo de proceder, mas, de maneira geral, de
como se abordarão as questões no decorrer do seu século e do seguinte:
70
“Mas para aqueles que buscam a ciência indefinida
mente, que consiste no conhecimento das causas de
todas as coisas, o tanto quanto este possa ser alcança
do (e as causas das coisas singulares são compostas
pelas causas das coisas universais ou sim ples) é
necessário que eles conheçam as causas das coisas uni
versais, ou de tais acidentes enquanto eles são comuns
a todos os corpos, isto é, a toda matéria, antes de
poderem conhecer as causas das coisas singulares, quer
dizer, daqueles acidentes pelos quais uma coisa é distin
guida de outra. E, novamente, eles precisam conhecer o
que são essas coisas universais, antes de poderem
conhecer suas causas. Além disso, visto que as coisas
universais estão contidas na natureza dds coisas singu
lares, seu conhecimento deve ser adquirido pela razão,
isto é, por resolução. Por exemplo, se é proposta a con
cepção ou idéia de alguma coisa singular, como de um
quadrado, este quadrado deve ser resolvido em um pla
no, terminado por um certo número de linhas retas e
iguais, e ângulos retos. Pois por essa resolução nós
obtemos estas coisas universais ou comuns a toda
matéria, a saber, linha, plano (que contém superfície),
terminado, ângulo, retidão, retitude e igualdade; e se
podem os encontrar as causas destas, podem os compô-
las todas juntas na causa de um quadrado (segue-se um
exemplo similar no plano da física: a resolução dos ele
mentos componentes do ouro). E dessa maneira, resol
vendo continuamente, podem os chegar a conhecer o que
são essas coisas, (como o ouro, por exemplo), cujas
causas sendo conhecidas separadamente, e depois com
postas, levam-nos ao conhecimento das coisas singu
lares. Eu concluo, por conseguinte, que o método de
obter o conhecimento universal das coisas é puramente
analítico” .'8
71
um outro central), mas sim tomar um ou vários elementos e a partir daí
reconstruir geneticamente o objeto. Nas Six Lessons... Hobbes nos
parece ainda mais claro:
72
políticas, “dissolve” o Estado em seus elementos constituintes — os
homens. E, mais ainda, para saber o que são esses homens — qual a sua
natureza — resolve decompô-los em seus elementos constituintes. Mas
aqui esbarra-se com uma dificuldade. Como não somos nós os autores de
nossas faculdades — elas nos são dadas, por assim dizer — podemos
decompô-las, mas nem sempre achamos a causa geradora. Já no primeiro
caso — a passagem dos homens à sociedade política — a transparência
deve ser total e o método genético deve poder ser aplicado na íntegra. E
foi o que Hobbes fez, tanto nos Elements ofL aw e no Leviathan, quanto
no De Cive. E, com respeito à querela de se saber se, operada essa dis
solução, o que Hobbes encontra são homens civilizados ou não, na ver
dade, a questão nem se coloca. O objetivo de Hobbes é responder à
questão: o que são os homens, quando são dissolvidos hipoteticamente
todos os liames políticos? O que implica pensá-los distribuídos num
determinado espaço, sem nenhuma forma de soberania ou poder político,
jurídico etc. E, nessa hipótese, é evidente que, tanto faz pensar numa tribo
da época das cavernas, como numa cidade inglesa do século XVII. É por
isso que Hobbes pode pensar em ambas situações e que no De Cive os
exemplos sejam extraídos de homens já civilizados.22 Como a hipótese é
atemporal, o problema nem se põe. Da mesma forma, essa reconstrução
da sociedade política não tem como alvo descrever como, de fato, as
sociedades se formaram, mas sim, como se pode pensar a sua formação.
Exigência do método, aliás. As definições genéticas, nota o autor,
indicam como é possível engendrar uma coisa (da rotação do semi-círcu-
lo à esfera), e não como a coisa foi efetivamente engendrada (provavel
mente nenhuma esfera real teve essa gênese).23 Hobbes, portanto, está
descrevendo a condição natural do homem em geral (civilizado ou não),
e sua gênese é uma gênese possível, e não necessariamente real.
73
As faculdades da alma dividem-se em poder cognitivo, imaginati
vo ou conceptivo e poder volitivo ou afetivo. Com relação ao primeiro
ponto, Hobbes considera digno de observação o fato de que, se prestar
mos atenção, perceberemos que existem continuamente em nossas
mentes certas imagens ou concepções das coisas que estão fora de nós.
Essas imagens ou concepções, até certo ponto, têm uma consistência
intrínseca pois a hipótese da aniquilação de todos os objetos — exce
to o sujeito — não implica a aniquilação dessas imagens.25 São essas
imagens ou representações que podemos denominar, indiferentemente,
cognição, imaginação, idéia, noção, conhecimento e pelas quais
exercemos nosso poder cognitivo ou de conceber as coisas. Conceber
uma coisa é ter uma imagem dessa mesma coisa. Conhecer, no plano
elementar, é ter um a imagem.
Dada essa estrutura do nosso conhecimento, o sujeito é levado a
um certo número de crenças naturais que é necessário afastar. Por
exemplo, como na visão a imagem é o conhecimento que temos do
objeto, segundo o que nos revela esse sentido, não é difícil para os
homens acreditarem que “cor” é um a qualidade do próprio objeto, pro
priedade intrínseca dele. Para Hobbes, cujo mecanicismo é integral,
isso é puro contra-senso, na medida em que no universo só existe
m atéria em movimento ou matéria e força, onde, portanto, falar em
qualidades não tem o menor sentido. Daí Hobbes estabelecer quatro
proposições fundamentais nesse campo:
74
4) Assim como na visão, em todas as outras concepções oriundas
dos outros sentidos, o sujeito de sua inerência não é o objeto ou a coisa,
mas o ser que sente.26
75
prim eira coerência ou conseqüência, no momento em que se formou,
que se produziu nos ou pelos sentidos. Trata-se do discurso mental.26
Essa cadeia pode ser livre (sem desígnio, errante) como quando acon
tece com um a cadeia que não tem um pensamento-meta para dirigir e
governar os outros. Ela pode também ser regulada por um desígnio ou
desejo. Nesse caso acontece o seguinte: há um desejo inicial, dele
surge o pensamento de algum meio para realizá-lo por meio de algo
que vimos produzir um efeito semelhante. Do pensamento desse meio,
chegamos a outro que, por sua vez, será um meio para atingir o
primeiro, transformado agora em fim, e assim sucessivamente, até
chegarmos a um ponto dessa corrente onde algo esteja ao nosso
alcance e possa desencadear o processo.
Desse modo, fica claro que estabelecer um discurso encadeado é
ligar concepções (imagens) entre si de modo que sirvam a algum propósi
to. Essa finalidade ou propósito é sempre ditada por um desejo, uma
paixão. São estes que tecem a malha do discurso, ordenam e encadeiam
as imagens de modo que, se possível, levem à realização do desejo.
76
movimentos não é necessária a ajuda da imaginação. 0
outro tipo é o d o movimento animal, também chamado de
movimento voluntário, como andar, falar, mover qualquer
um dos nossos membros, da maneira como anteriormente
ele fo i imaginado em nossas mentes. Pois a sensação é o
movimento nos órgãos e partes interiores do corpo
humano, causado pela ação das coisas que nós vemos,
ouvimos etc. E a imaginação é apenas o resíduo do mesmo
movimento, permanecendo após as sensações, como já fo i
dito no primeiro e segundo capítulos. E como andar, falar
e os outros movimentos voluntários dependem sempre de
um pensamento precedente de como, qual caminho e o
quê, é evidente que a imaginação é a primeira origem
interna de todos os movimentos voluntários” .M
77
“E embora os homens sem instrução não concebam ne
nhum movimento ali onde a coisa movida é invisível, ou
quando o espaço onde ela é movida (por sua pequenez)
é insensível, não obstante esses movimentos existem.
Pois um espaço nunca é tão pequeno que aquilo que seja
movido em um espaço maior, do qual o espaço pequeno
fa z parte, não deva primeiro ser movido neste último.
Esses pequenos inícios do movimento, no interior do
corpo do homem, antes de aparecerem no andar, na fa la ,
na luta, são comumente chamados de esforço”
78
se tratar mais do império da Razão sobre a paixão, mas do exatamente
inverso. Ela agora será um instrumento para satisfazer as paixões e nc>
limites da “condição natural dos hom ens” não sofre restrições.
Mas voltemos um pouco. A trama passional do ser humano tem sw
raiz no desejo, no “conatus”. Mas, “conatus” de quê? Nessa multiplici
dade e nessa miríade de nossos desejos, desses que atravessam nosa
vida, existe algum irredutível e fundamental, a partir do qual os outros e
esclarecem, adquirem inteligibilidade? Sobre este ponto Hobbes é taxati
vo. Esse “conatus” é original e primordialmente desejo de conservação
de si,%bde autoconservação, assim como a aversão primeva é a destruiçò
de si, a morte. O móvel fundamental de todo sujeito, em espécie, o
homem, é a afirmação na existência. O “conatus”, portanto, nada maisé
do que esse movimento que prefigura a apropriação daquilo que é úil
para a conservação e também a prefiguração da fuga, do afastamenb
frente a tudo que possa ameaçar essa conservação. Em termos biológico;,
embora, como veremos, a questão não se reduza a isso em Hobbes,o
“conatus” é esse desejo primordial pela vida e o temor absoluto da morií.
Desejo de conservação e aversão à destruição: um ou dois “con-
tus”? A resposta de Hobbes parece ser: um só. E o mesmo “conatus',
já que a aversão é reconduzida ao apetite. Assim:
79
função do passado, orienta a experiência futura. No caso dos desejos
adquiridos, supõe-se não só a experiência passada, como também a
inter-relação humana. É exatamente nesses dois fatores que encontramos
a possibilidade de que esse “conatus” originário se diversifique e se
complexifique de forma espantosa. O desejo aumenta seu campo con
forme aumenta a experiência, no sentido amplo do termo. As crianças
têm poucos desejos, insiste Hobbes em várias passagens.41A extensão do
campo representativo, e a correlata extensão do campo do desejo, é um
dos indicadores principais da diferença do corpo humano e do campo
animal. Essa diferença é fundamental porque isso vai configurar o dese
jo humano — em contraposição ao animal — como irremediavelmente
além do campo dos desejos naturais inatos (entenda-se: puramente
biológicos). O ser humano tem inscrito no âmago de sua natureza a pos
sibilidade, e mesmo a necessidade, de romper com o natural.42
81
Esse texto mostra claramente qual é o mecanismo que provoca o
deleite ou o prazer. Ele nada mais é que o efeito benéfico do movi
mento vital. O movimento causado pelo objeto da sensação no cérebro
é, como movimento, transmitido ao coração. Melhor ainda: o prazer é
o efeito concomitante, a título de sensação interna, que é provocado no
coração, em virtude do caráter facilitador que esse movimento, vindo
do cérebro, provocou no movimento vital:
82
M atheron nos parece ter toda razão quando afirm a que “com efeito,
se o am or e a alegria devem se distinguir do desejo, isso não pode
ser (feito) senão m odalm ente, não realm ente. O am or não é mais,
com o na acepção clássica, um a apreensão do Bem anterior a todo
desejo; o prazer não é mais o estado consecutivo, de repouso, à
satisfação do desejo”.49 Trata-se sempre de m odificações do desejo,
este sim, o fato fundam ental. O desejo é esforço e torna-se am or
quando seu objeto está presente. Na ausência deste último é pura e
sim plesm ente desejo.
Outro fato digno de nota é o de que, se se trata do mesmo proces
so onde as distinções são modais, a relação desejo/prazer não pode ser
mais pensada no sentido de que o prazer seria a sensação que apon
taria, sinalizaria o fim, a consecução do processo e a supressão, por
tanto, do estado de desejo. Nesse caso, aos olhos de Hobbes, tratar-se-
ia não da realização do desejo, mas de sua supressão, de sua ani
quilação. Como são dois fenômenos que estão imbricados no mesmo
processo, o prazer atualiza-se no próprio processo.50 Em todo caso,
prazer e desprazer, só indiretamente, estão ligados ao campo re
presentativo: são vivências subjetivas, estados do sujeito.
É no interior desse registro conceituai que Hobbes pode colocar
sua afirmação, que ainda hoje soa um pouco escandalosa, de que:
83
g) Já que nossos apetites e aversões estão em função direta da
facilitação ou não do nosso movimento vital, com exceção dos apetites
que já nascem conosco (que não são muitos), aprendemos a gostar ou
não de determinadas coisas em função desse efeito que elas produzem
em nós. E visto que as constituições dos corpos dos diferentes sujeitos
não são exatamente as mesmas, eles necessariamente diferirão nos
seus apetites e aversões,52 nos seus amores e nos seus ódios, nos seus
prazeres e desprazeres. Cada organização físico-mental vai determinar
esses fatores para cada sujeito. Cada homem, “diferindo de um outro
por sua constituição”53 elegerá aqueles efeitos que lhe são benéficos e
repudiará aqueles que são maléficos. Mais ainda: porque nosso corpo,
ou melhor, sua constituição particular está sujeita a variações, uma
mesm a coisa que é desejada agora poderá não sê-lo amanhã, como
pode não ter sido, no passado. Assim, não só diferentes organizações
individuais engendram diferentes sensações e seus correlatos, como
também, cada organização individual, na sucessão temporal, vai se
modificando e, por conseqüência, modificando sua relação com o
apetecível. O cap. VI, do Leviathan é explícito:
84
“Cada homem, de seu lado, chama de bera àquilo que dá
prazer e deleite a ele mesmo, e de mal àquilo que lhe
dá desprazer. Na medida em que todos os homens dife
rem uns dos outros em sua constituição, eles também
diferem uns dos outros naquilo que concerne à distinção
comum entre o bem e o mal. Também não existe aqui algo
como um bem absoluto, considerado sem relação” .36
1) La Mettrie:
2) Holbach:
85
existem dois indivíduos da espécie humana que tenham os
mesmos traços, que sintam precisamente da mesma
maneira, que pensem de um modo conforme, que vejam as
coisas com os mesmos olhos, que tenham as mesmas idéias
nem, por conseguinte, o mesmo sistema de conduta”.
86
Cada organização individual determina o desejo e seu grau. Desse
modo, a noção de corpo, como lugar particular da organização, ganha
relevo, e será a partir dele, assim entendido, que o sujeito se definirá:
como corpo singular desejante. Espinoza não dirá outra coisa na parte
III da Ética. A realidade dos sujeitos, neste nível, consiste em serem
corpos como realidades pontuais. Lugares de concentração, síntese de
forças e foco de irradiação, de expansão desses mesmos desejos. O que
há, basicamente, é um embate de corpos, um cruzamento indefinido de
desejos. O espaço será o lugar do enfrentamento desses diferentes dese
jos. Retornemos à nossa discussão e encerremos este parêntese.
87
fundam ental na diversidade das paixões e dos fin s aos
quais conduzem os apetites que elas sustentam” .59
E, a única saída, portanto, que os homens têm para sair desse esta
do de conflito e ameaça constante é a instituição de um pacto, através
do qual cada sujeito renuncia a seu direito (natural) a todas as coisas,
com a condição de que os outros façam o mesmo e deleguem a uma
determinada instância o poder de regular, decidir e instituir as regras e
normas, as quais todos os membros do pacto se obrigam a obedecer.
Nasce então a sociedade política, que instaura as leis através das quais
os indivíduos devem relacionar-se entre si. Constitui-se uma instância
universal — o Estado — através da qual são definidos o bem e o mal
para os indivíduos no interior dele. Retomemos um texto do qual já
citamos o início“ e leiamos sua seqüência:
“Pois as palavras “b em ", “mal’’ e “desprezível" sempre
são usadas em relação à pessoa que as usa. Não há
nada que o seja simplesmente e absolutamente, nem
qualquer regra comum do bem e do mal que possa ser
extraída da natureza dos próprios objetos, mas sim da
pessoa do homem (em que não há república), ou da p es
soa que representa o homem (em uma república)” .63
90
mentais que leva os homens a instituírem o pacto. Entre o direito ilimi
tado ao gozo de tudo aquilo que deseja e o conseqüente perigo da morte,
representado sempre como possibilidade frente a alguém mais forte ou
mais astuto, os homens preferem restringir o campo de seus desejos (não
de seus direitos inalienáveis) para alargar o campo de sua segurança.
Viver bem, viver comodamente é, sem dúvida, para Hobbes, uma aspi
ração humana que já se manifesta no estado de natureza, mas para bem
viver é preciso, antes e acima de tudo, garantir a vida. E aqui, como sem
pre em Hobbes, o egoísmo é o ordenador de todas essas operações.
Segundo Darbon, “uma noção não se compreende bem senão pelo uso
que dela se faz”,67 se for assim, talvez de agora em diante possamos usar
a expressão (sob muitos aspectos, infeliz) “antropologia do egoísmo”,
que muitas vezes foi atribuída a Hobbes. Nesse contexto que viemos
desenvolvendo, ela tem seu fundamento.
91
identidade, e eliminar as diferenças. Nesse sentido, e só nesse senti
do, é verdadeira um a sentença bastante conhecida que diz que o
Estado se instaura com o violência contra o desejo. Em todo caso,
como nascemos e crescemos no interior de sociedades políticas cons
tituídas, praticam ente não sentimos esse trabalho, operado cotidiana-
mente, de docificação do desejo. Trabalho lento e paciente que nos
transforma, usando um a expressão que fez época, em corpos dóceis.
Trabalho onipresente, que praticam ente nem vemos e nem sentimos,
que se infiltra sobre nossos corpos e nossas mentes, que nos modela
tão bem a ponto de nos sentirmos felizes na servidão.
É verdade que é inútil e faccioso apenas ressaltar esse lado da
questão. Sob essa condição é todo um mundo novo que emerge aos
olhos de Hobbes.70 Pois essa é a condição para que os homens realizem
suas outras potencialidades, civilizem-se, adquiram o conforto, a
sabedoria etc. Como diz Polin:
92
já o fizemos, em parte, em páginas anteriores.74 Hobbes, assim como
Espinoza o fará pouco tempo depois,75 rompe declarada e abertamente
com a concepção tradicional de um universo que, objetivamente, está
estruturado hierarquicamente tanto no plano cósmico quanto no plano
ético. O cosmos, tal como nos apresenta, é objetivamente desfinaliza-
do de forma total. Objetivamente o que existe são corpos em movi
mento submetidos estritamente a leis mecânicas. A ação desses corpos
sobre o nosso provoca as imagens (e a possibilidade de seu encadea
mento), como também facilita ou não o movimento vital, acionando o
“conatus” ininterruptamente a manifestar sua tendência original de
conservação e expansão.™ É sobre esse “conatus” que se estrutura toda
uma nova antropologia, no sentido em que tudo é modelado por ele,
assim, não só estrutura toda nossa vida passional, como também a in-
telectiva, na medida em que são os apetites que ordenam e dão coerên
cia aos discursos mentais. Toda finalidade é subjetiva, e emerge no
campo do sujeito (ou inter-sujeitos) e se constrói a partir do jogo pas
sional que transforma o mecanismo em teleologia.
Com relação aos apetites, é preciso distinguir. Há o ciclo dos
apetites naturais, que se caracterizam pela forma cíclica e fechada de
realização. Há os apetites especificamente humanos, que rompem o
ciclo biológico-vital, sem negá-lo, e se manifestam fora da circulari
dade. Estão submetidos não ao ciclo natural, mas o rompem e trans
formam o círculo numa espiral aberta ou uma reta indefinida de dese
jos que se sucedem. Esse é o plano do especificamente humano:
93
conseguir mas também a assegurar uma vida satisfeita, e
diferem apenas no modo como surgem, em parte da diver
sidade das paixões, em diversos homens, e em parte da
diferença do conhecimento ou opinião que cada um tem
das causas que produzem o efeito desejado” ,77
94
Esse primado central do conceito de desejo tem um pressuposto e
um a conseqüência. 0 pressuposto, como vimos, é o conceito de “con
servação de si”, de auto-conservação que pode ser entendido tanto num
sentido estreito, no qual significa auto-conservação biològico-vital,
conservação da vida às secas, quanto num sentido mais amplo, que
aponta não só para a m anutenção das condições de vida e de sua repro
dução, como também p ara sua expansão, entendida num sentido mais
largo mas, em geral, ligada à noção de expansão da própria potência.
Tanto Hobbes como Espinoza tom aram “conatus” , ao nível humano,
no segundo sentido, reservando o prim eiro ao domínio animal.
A conseqüência é a de que, se todos os atos do sujeito podem e
devem ser compreendidos através da noção de desejo de conservação
de si, então, a totalidade de seus atos apontam, direta ou indiretamente,
nessa direção. Serão sem pre atos dessa natureza que estarão em
questão, em todos os níveis possíveis de análise do sujeito. O egoísmo
é a base natural de toda e qualquer ação. Por isso, denomina-se, às
vezes, como avisamos,79 essa corrente, com a expressão, pouco feliz,
de antropologia do egoísmo.
O termo egoísmo, nesse contexto, não é unívoco. Seu campo
semântico recobre várias acepções, todas aparentadas. Já vimos que
se pode falar num egoísm o pleno e num egoísmo m itigado, quando
analisam os Hobbes.80 M as, fundam entalmente, o que com eça a trans
parecer é essa imensa capacidade do egoísmo de se metamorfosear,
de se disfarçar, inclusive no seu oposto. A fam osa dissecação da
piedade realizada por H obbes (que já vem dos antigos, é verdade) é
um exemplo entre muitos que se poderia dar. Esse desejo de conser
vação de si será um m estre na arte do disfarce, e a tarefa consistirá
em que a análise vá retirando progressivam ente essas camadas que,
por séculos, foram pacientem ente depositadas, esse conjunto de ju í
zos de valores que foram sedimentados em torno dos fenômenos e
que os mascararam e m esm o inverteram seu sentido. Só depois de
operada essa varredura, poder-se-á ter uma visão mais clara de quem
é realmente esse sujeito, que não só disfarça seu egoísm o frente aos
outros, mas também frente a si mesmo.
Compreende-se m elhor algo que está apenas assinalado na
querela do luxo. Afinal de contas, instituído o pacto político, e tendo
sido freado o desejo, não é o luxo uma das formas pelas quais esse
desejo insaciável pode se manifestar? Por trás da querela do luxo,
percebemos, é todo um conjunto de formas de expressão do desejo que
95
estão em questão. Não só se redefiniu o ser humano a partir do desejo
mas procurou-se um espaço legítimo para sua manifestação.
Enfim, colocar o conceito de desejo no centro da análise — e seu
correlato, o egoísmo — significa embrenhar-se por um certo tipo de
leitura que atravessará a modernidade — tendo seu ápice em Nietzsche
e Freud — cujas raízes, salvo engano, estão nessa viragem operada no
século XVII. Viragem, portanto, que possibilitou isso que se resolveu
denom inar a “leitura da suspeita”. E em pleno coração do século XVII
que encontramos já o primeiro exercício sistemático desse tipo de
leitura. Estamos nos referindo, é claro, a La Rochefoucauld que toma
remos agora, para terminar essa parte de nosso trabalho, como contra
prova disso que viemos analisando até agora.
96
sendo dito é claro: o amor, bem analisado, é um ódio disfarçado. Disso
advém um ponto em que La Rochefoucauld não se cansa de insistir: o
amor, tal como o entendemos comumente, não existe. A máxima 76 diz:
97
Essas duas temáticas levam a um terceiro ponto, que é capital em
L a Rochefoucauld. Trata-se da dicotomia que instaura entre os
m otivos aparentes de um a ação ou de um sentimento e os motivos
reais dessa mesm a ação ou sentimento. Para sermos mais precisos:
essa distinção é um a conseqüência necessária, a partir do momento
em que se fala no que aparece na superfície (do discurso ou da cons
ciência), e o que está atrás dela, que constitui seu verdadeiro móvel,
sua verdadeira causa. Existe, portanto, uma causa, um motor real de
nossos atos mentais e de nossas ações, e uma outra, que é aparente. A
leitura dos textos de La Rochefoucauld não deixa a menor dúvida
sobre isso. M ais ainda: aponta a topologia dessa dicotom ia.
A creditamos que o motor de nossas ações está no nosso espírito quan
do, na verdade, está em nossas paixões. Acreditamos que somos guia
dos pela razão, pelo entendimento, quando, de fato, são as paixões
que governam soberanam ente nossa existência.
E, o grande trabalho de mascaramento consiste exatamente em
ocultar cuidadosamente esses motivos passionais, em disfarçá-los, em
maquiá-los, e lhes conferir uma aparência aceitável, inclusive para o
próprio sujeito. De onde decorre esse travestimento entre o que somos e
como nos fazemos aparecer, seja para nós mesmos, seja para os outros,
através de uma interpretação particular de nossos pensamentos e atos.
Daí decorre também essa montagem de ilusões que f az com que o sujeito
acredite ser exatamente o contrário do que é e falsifique seus sentimen
tos, de modo que passe a ser um ilustre desconhecido de si mesmo. O
espírito (sinônimo, no autor, de razão, entendimento) é essa instância da
alma que se sobrepõe ao coração (paixão) e a desnatura. É o espírito, em
última análise, que é o responsável por essa grande operação.
Isso, por um lado, porque, de outro, indireta e insidiosamente, as
paixões atingem seus objetivos e deixam rastros e pistas pelo que o
leitor atento não deixa de coletar, investigar e interpretar. Estabelece-
se, assim, uma espécie de dialética87 entre o espírito e o coração. De um
lado, as paixões, por diferentes caminhos e mesmo metamorfoses,
acabam atingindo seus objetivos. D e outro lado, se é permitido o
anacronismo, o espírito não deixa de “racionalizar”, de encontrar expli
cações “satisfatórias” para os mesmos fenômenos, provocando essa
espécie de alheamento de si, esse desconhecimento, que faz com que,
na maioria das vezes, o sujeito viva mergulhado na ilusão.
b) Mas por que esse trabalho de ocultamento dos motivos reais de
nossas ações? Por que esse mascaramento da paixão? Qual a razão desse
98
trabalho de polimento, de laminação? O que há, enfim, nas paixões, de tão
condenável, a ponto de precisar não só ser escondida dos outros, como
também de si mesmo? Na maioria das vezes, é o trabalho de ocultamento
frente ao outro que acaba por produzir o efeito de ocultamento frente a si:
99
“A piedade é freqüentem ente um sentimento de nossos
próprios males nos males de outrém” P
"... somos mais felizes pela paixão que temos do que por
aquela que causam os” .95
100
eventualm ente, estar no seu lugar. M ascaram os nossas paixões
primárias porque esse é o meio mais conveniente para atingirmos nos
sos fins: se não fingirmos amar, não seremos amados. Mas é preciso
que o sujeito acredite amar para se acreditar amado. E, nessa estraté
gia sutil, nesse mecanismo ardiloso, acabamos por acreditar que real
mente amamos o outro, quando só sabemos amar a nós mesmos.
Desse modo, qualquer que seja o sentimento ou a ação que se con
sidere, no fundo, sempre encontrar-se-á esse egoísmo profundo e
insaciável. A virtude? Um meio, um a estratégia para se atingir os fins.
Constituem a espuma de algo que subjaz:
d) Esse é o motor básico de todo ser humano, esse amor de si, que
faz, ou tenta fazer, com que todas as outras coisas e pessoas girem em
101
tom o dele. No fundo, somos todos idólatras de nós mesmos e, conferi
dos os meios, sempre usaremos os outros que nos circundam para satis
fazer esse egoísmo. O outro nada mais é que um meio para satisfazer
nosso interesse, tal como (usando uma metáfora de La Rochefoucauld)
as abelhas apenas sobrevoam as flores para delas extrair o pólen. O ser
humano configura-se como possuidor de desejos impetuosos e de uma
maravilhosa arte para esconder seus desígnios.
Mas, e isso é uma hipótese, La Rochefoucauld parece ir mais longe.
Esse egoísmo é fundamentalmente necessário e essencial a todo ser humano:
102
ser um a das reviravoltas operadas por ele, que foi acompanhada de
outra, diga-se, tão importante quanto esta última.
Se na origem o que temos é um egoísmo feroz que, por mais que
se metamorfoseie, nunca deixa de ser o que é; se a virtude nada mais
é do que o vício disfarçado; se o primeiro é original e congênito, isso,
então, não significa dizer que o mal está inscrito originariamente em
nossa natureza? Essa idéia de uma maldade originária (pelo menos
como um dos ingredientes de nossa natureza) é um a possibilidade de
leitura que La Rochefoucauld abre para o leitor. Não se encontram afir
mações categóricas, mas coisas ditas en passant, que levam o sujeito a
pensar. Como esta, por exemplo:
103
É essa tradição que prevaleceu no Ocidente: pensar o mal como a
ausência do bem e não algo que tenha, em si mesmo, alguma positivi-
dade. L a Rochefoucauld entreabre essa possibilidade. É possível se
pensar a positividade do mal nesse sentido. Laicizada e secularizada a
natureza humana, o mal passa a ter direito de cidadania e seus efeitos
tom am-se tão reais quanto ele mesmo e seu contrário.105
É chegada a hora de abordarmos uma outra faceta dessas questões,
o que nos levará, simultaneamente, a um aprofundamento delas e a um
avanço cronológico.
104
NOTAS
105
11 Parafraseio Matheron, op. cit., de onde extraí a citação acima de Gilson e essas con
siderações finais. Cf. L e T ho m ism e, ed. ciL, p. 374, segundo Matheron.
12 J.F. Sénault, D e 1’U sage d e s P a ssio n s , Paris, Fayard, 1987, p. 113.
13 lbid.,p. 56.
14 lbid., p. 58.
15 lbid., p. 64-5.
16 A influência de Descartes não pode e não deve ser minimizada. Mas lembremo-nos
de duas coisas: 1) o texto de Hobbes sobre a natureza humana já circulava desde
1640. O T ratado d as P a ix õ e s de Descartes é de 1649. A obra, ao que tudo indica,
não parece ter influenciado Hobbes de forma importante nos seus escritos poste
riores; 2) a grande herança cartesiana, no tratamento dessa questão, parece ter sido
a aplicação do mecanicismo ao domínio humano, o qual pode ser percebido, em li
nhas gerais, no D is c o u n d e la M éthode. Isso exercerá uma influência decisiva, mas
(atvez indireta, porque, como assinala Lenoble {M ersenne e t la N aissance du
M écanism e, ed. cit., p. 3), uma coisa é considerar esse mecanicismo cartesiano re
trospectivamente, aí ele aparece como dominante porque triunfante; outra coisa é
observar o desenrolar das idéias na época. Percebemos então que havia vários
mecanicismos, similares, mas não idênticos — entre eles o de Hobbes — que
seguiram vias próprias.
17 Th. Hobbes, P h iio so fica l R u d im en ts C oncerning G overnm ent a n d Society, in
E n g lish W orks, Ed. Molesworth, vol. II, “Preface to the Reader” , p. XIV.
18 lbid., vol. I, parte I, cap. VI, § 4, p. 68-9. Cf. também § 6.
19 ld ., S ix L e sso n s to the P ro fesso rs o fth e M a th e m a tk s, in ed. cit., vol. VII, p. 210.
U m p o u co m ais à fren te lem os:
106
23 Id ., “D e C orp o re” , E n g lish W orks, vol. I, cap. I, § 5.
24 Id., “H um an N ature”, E nglish W orks, vol. IV, p. 2.
25 Ibid., — , p. 2-3. E ssa hipótese, im portantíssim a na elaboração da filosofia do co
n hecim ento de H obbes, n ão d eix a de ser o equivalente, nesse nível, d a hipótese da
dissolução da sociedade, n o p lan o político.
26 O enunciado e as provas estão na op. cit., cap. II, § 4-9, p. 4-8.
27 H obbes, op. cit., cap. Ill, § 1, p. 9.
28 Id., L evia th a n , Penguin B ooks, 1976, p. 94.
29 M esm o nos casos do d iscurso casual, H obbes insinua que, com um pouco de
atenção, acabam os p o r d esco b rir sua finalidade oculta que dá coerência a esse
m osaico, à prim eira v ista, desconexo. Cf. L eviathan , ed. cit., cap. Ill, p. 95.
30 Ibid., ed. cit., cap. V I, p. 118.
31 R. O adave, U n Théoricien A n g la is du D roit P ublic a u X V U ‘ S tèd e -T h o m as Hobbes,
N. York, A m o P ress, 1979 (reprodução da ed. de 1907), p. 33.
32 M . M alherbe, T hom as H obbes, Paris, Vrin, 1984, p. 115-7.
33 T . M agri, Sag g io su Th. H o b b es, M ilano, II Saggiatore, 1982, p. 84: “Prazer e d ese
jo coin cid em ”.
34 T h. H obbes, L eviathan, ed. cit., cap. V I, p. 118-9. “C onatus” é a palavra q ue aparece
na e d ição latina. A m esm a definição de “E ndeavour” está no D e C orpore, English
W orks, cap. XV, § 2, p. 206.
I, IV, 9: “Este poder d a m ente q ue nós' cham am os de m otor difere do p oder m otor do
corpo, pois o poder m otor do corpo é aquele pelo qual outros corpos são
m ovidos, e nós o cham am os de fo rç a \ m as o poder m otor d a m ente é aquele
pelo qual a m ente dá m ovim ento anim al àquele corpo n o qual ela existe; seus
atos são nossas afecções e p aixões, dos quais falarei e m g eral”, id. ib., p. 30.
Y. Z ark a tem razão q uando a firm a q ue as e xposições de H obbes, nesse terreno, n ão c oin
cidem nos três textos clássicos: E lem en ts o f L a w , L eviathan e D e H om ine. Isso é v er
dade. M as, no s parece, elas não se co ntradizem , m as sim , se com plem entam . Cf. Zarka,
L a D écisio n M éta p h isiq u e de H o b b e s, Paris, Vrin, 1987, p. 155.
35 Id., L evia th a n , ed. cit., cap. V I, p. 119.
36 Id., D e H om ine, X I, § 6. Trad, francesa p. 156; trad, italiana p. 595. O texto latino
diz: “su a c u iq u e conservatio” (O pera L atina, M olesw orth, vol. II, p. 98).
37 Id., L ev ia th a n , ed. cit., cap. V I, p. 119-120.
38 Ib id ., ed. cit., cap. V I, p. 120.
39 Ibid.
40 Ibid., cap. V I, p. 119.
41 P o r exem plo, D e H om ine, X I, § 3.
107
42 E s s e é u m d o s p o n to s — o o u tr o é o fa to d a lin g u a g e m — o n d e s e a p ó ia R . P o lin n a
s u a b e la in te r p r e ta ç ã o d e H o b b e s e m : P o litiq u e e t P h ilo s o p h ie c h e z T h . H o b b e s ,
P a r is , V rin , 1 9 7 7 .
43 M a th e r o n , o p . c it. ( n o ta 9 ), p . 8 8 . O s g rifo s s ã o d o autor.
44 T h . H o b b e s , L eviathan, e d . c it., c a p . V I, p . 129. M e s m a d e fin iç ã o e m H um an
N a tu r e , E n g lis h W o rk s, v o l. IV , c a p . 7 , § 6 , p. 33.
45 T h . H o b b e s , o p . c it., c a p . X V , p . 2 1 2 , g rifo n o sso , E s te ú ltim o a rg u m e n to d e v o a Y.
Z a rk a , o p. c it., p . 2 6 9 .
46 I b id ., e d . c it., v o l. IV , c a p . V I I , § 1.
47 Ib id ., ed , c it., c a p . V I, p . 12 1 -2 .
48 C f, n o ta 3 3 , c o m re la ç ã o à a firm a ç ã o d e T. M a g ri. A a firm a ç ã o d e H o b b e s é m a is
nuançada:
“ D e f o r m a q u e d e s e jo e a m o r s ã o a m e s m a c o is a ; e x c e to q u e p o r
d e s e jo n ó s s e m p r e s ig n if ic a m o s a a u s ê n c ia d o o b je to , p o r a m o r, o
m a is c o m u m e n te a p r e s e n ç a d o m e s m o . Ig u a lm e n te , p o r a v e rs ã o
n ó s s ig n if ic a m o s a a u s ê n c ia , e p o r ó d io a p re s e n ç a d o o b je to ”
(L e v ia th a n , e d . c it., p . 119).
49 A . M a th e ro n , o p . c it., p . 87.
50 N e ste p o n to p o d e m o s a v a lia r a d istâ n c ia qu e se p a ra a c o n ce p çã o m o d ern a d a co n
c e p ção clá ssic a aristo télica. P a ra A ristó tele s, co m efeito, o p raz er é o sinal de qu e a
“ o u sia ” a tin g iu a su a p e rfe iç ã o , o seu a cabam ento, a su a rea lização (cf. É tica a
N icô m a co , L iv ro s V II e X , so b re tu d o o últim o). S o bre este po n io pod e -se consultar,
c o m p ro v e ito , o s tex to s clá ssic o s d e F estugière: 1) “ L a D o ctrine d u P laisir des
P re m ie rs S ages a É p ic u re ” , in R e v u e d es Scien c es P h ilo sophiques er T hé o lo g iq u es, n.
2 , A b ril d e 1936, p. 2 3 3 -6 8 ; 2 ) A risto te - L e P la isir, P aris, V rin, 1960. D ois textos de
J. F rè re são ta m b é m b asta n te elu c id a tiv o s “L e P aradoxe d u P la isir s e lon A ristote”, in
R e v u e P h iio so p h iq u e, n. 4 , 1979, p. 4 27-42; e L es G recs et le D é sir d e V Ê tre, Paris,
B elles L ettres, 1981, 3a p arte, p . 287 e seg. A difere n ça fu ndam ental entre A ristóteles
e H o b b es e stá, p a rece-n o s, q u e , no p rim eiro, sinaliza-se p ara u m a realização, para um
acab am en to , e n q u an to que, p a ra H o b b es, é o inacabam ento qu e d efine o d esejo e, por
tan to , o prazer. D e resto, desejo e p ra z e r são coisas distintas e m A ristóteles. A sem e
lh a n ç a está e m qu e, p a ra am b o s, p ra z e r e d esprazer são aparições concom itantes ao
m o v im en to (ativ id ad e e m A ristóteles), co n fo rm e sejam favoráveis o u n ão a o m ovi
m en to v ital em H obbes; à realização da substância em A ristóteles. D e resto, essas
co m parações, en tre dois un iv erso s conceituais tão diversos, são sem pre precárias.
51 T h . H o b b es, H u m a n N a tu re, E n g lish W orks, IV, cap. V II, § 6, p . 35.
5 2 E s s a é u m a v e lh a te o ria , de o rig e m m édica, q u e H o b b e s h e rd a e in c o rp o ra n o seu
d isc u rso .
53 T h . H o b b es, H u m a n N ature, ed . cit., cap. V II, § 3, p. 32. Cf. D e H om ine, X I, § 4,
trad. italian a p. 594:
108
Ainda, em Human Nature, ed. cit., X, § 2, p. 54:
É exatam ente essa teoria que serv irá de apoio a Sade p ara que desenvolva sua idéias
sobre a n aturalidade do s d iferentes gostos:
109
“ O h não, não , T ereza, tu n ão com preendes o q u e é e ste praz er pa ra u m a
cab eça organizada co m o a m inha... N ão te im agines, Tereza, que nós
sejam os feitos com o o s outros hom ens; trata-se de u m a construção
inteiram ente d i f e r e n t e - (J u stin e, ou les M alheurs de la Vertu, in
O .C ., ed. c it., vol. III, p. 79; o s grifos são nossos).
Teoria que, se levada às ú itim as conseqüências, nos obriga a rever a idéia d e Sade como
elaborador e p ro pagador d e um “evangelho d o m al”. R igorosam ente, a inclinação p ara o
b em é tão natural quanto a contrária. E é exatam ente isso que Sade deixa claro nas suas
três versões de J u stin e (texto, portanto, n ão alterado e im possível de ser im putado a um
“deslize”). C om efeito, q uando D ubois, u m a dessas típicas heroínas sadeanas, tenta a todo
custo convencer Justine de seus princípios recebe com o resposta d e Justine o seguinte:
110
in ju stiça algum a, nem bem nem m al público” (trad. italiana, p. 591;
trad. francesa (deficiente), p. 147).
111
bem aqui. N ã o estam o s afirm ando, de fo rm a algum a, que a filosofia de E spinoza
seg u e o s m esm os passos q ue a d e H obbes, nem m esm o que o tratam ento qu e dá às
q uestões, q ue estão aqui e m jo g o , seja o m esm o. N ão haveria c ontra-senso m aior do
qu e en veredar-se p o r tais afirm ações. Isto p osto, podem os, no entanto, afirm ar:
1 Q ue, m eto d o lo g icam en te, E spin o za inspira-se largam ente e m H obbes, com o
m ostrou M . G u ero u lt (Spinoza, I, P aris, A ubier-M ontaingne, 1968, cap. IV, XXI,
p. 169 e seg.). A diferen ça fundam ental p arece e star em que, em virtude de seus
próprios pressu p o sto s filo só fico s, E sp in o za estende à integralidade d o u niverso um
p rocedim ento q u e em H o bbes está circunscrito à geom etria e à ética e política;
2 O livro III da É tica é, sem so m b ra de d úvida, um a dedução das paixões hum anas a
p artir de um “co natus” fundam ental, que é a perseveração n o seu ser (prop. VI:
“ to d a co isa se e sfo rça, en q u a n to e stá em si, p o r pe rse v era r no seu se r”;
“U naquauque res, quan tu m in se est, in su o esse perseverare conatur” (Ê th ic a, Ed.
G erbhardt, V II, p. 146). E sse “co natus” não é outra coisa senão a essência atual
d essa coisa (prop. V II) e ele, enquanto se refere apenas à alm a, cham a-se Vontade
e, q uan d o refere-se sim ultaneam ente à a lm a e ao corpo, a p etite, q ue n ad a m ais é que
a “ p ró p ria e ssên cia do h o m em ” e, o desejo e m n ada d ifere do apetite, senão q ue ele,
com relação ao hom em , é o ap etite co nsciente (prop. IX , escólio).
D esse ponto d e vista, e só deste, portanto, p o d em os p erfeitam ente falar que h á u m a coin
cid ên cia g en érica e n tre H ob b es e E spinoza, que fundam , am bos, isso q ue denom inam os
a p rim azia absoluta do conceito de desejo na estruturação antropológica. Com relação a
E sp in o za se ria n ecessário acie sc e n ta i que e ssa aproxim ação só é possível se conside
ram os o livro III d a É tica com o relativam ente autônom o, o que, de fato, foi feito por
alguns autores do século X V III,
112
81 Y. Zarka, op. cit., p. 273-4, e notas 20 a 22. Zarka afirma:
“Essa passagem da m áxim a 504 (de L .R .), assim com o vários outros ju í
zos, pode parecer com o quase paráfrases ou com entários de Hobbes.
Sem dúvida, não se trata de sem elhanças acidentais, pois o amor-
próprio em L a R ochefoucauld é. em m uitos pontos, idêntico à relação a
si d o desejo em H ob b es” (p. 274. O s parênteses e o grifo são nossos).
113
esparsam ente e de fo rm a n ã o sistem ática. M as todos estão o perando no seu texto (e,
n ão fo i M an d ev ille q u em d eslanchou c o m v igor toda a apologia do luxo, da qual
seus sucessores, n a m aio ria das vezes, com o Voltaire, nada m ais fizeram que
retom ar?). R eleiam os u m tex to já citado:
O egoísm o, d esnecessário dizer, está o nipresente no texto. P o r outro lado, com relação
à p o sitiv id ad e do m al, sabem os o quanto e ssa noção é chave para se entender o discur
so de Sade.
114
III
INQUIETUDE
1. O problema que passaremos a analisar agora, para tentar exa
minar como se prolonga e aprofunda essa temática do desejo em textos
e autores imediatamente posteriores, representa um dos mais complica
dos e delicados nessa trama que estamos tentando deslindar. Trata-se do
problema da inquietude sobre o qual nem na simples denominação esta
mos seguros. Sob esse nome entendeu-se, ao que parece, um conjunto
de noções que nem sempre parecem ter muito o que ver entre si. O que
Malebranche denomina inquietude parece ter pouca relação com o que
Locke entende por “uneasiness”. No entanto, o próprio Locke autorizou
a tradução do termo, para o francês, por “inquiétude”, como veremos.
Locke conhecia muito bem Malebranche, conforme indicaremos, e sua
opção não pode ser alocada no rol das atitudes ingênuas.
Os problemas nessa linha chegam, às vezes, a se tomarem irritantes
e ao estudioso só resta extrair a modesta lição de que, ao invés de procu
rar achar “certezas” ou idéias claras, distintas e bem definidas, o melhor
é tomar consciência de que se trata de um período de hesitações con
ceituais, deslocamentos nocionais e embaralhos lexicais. Os conceitos
são vagos, as noções nem sempre coerentes, as palavras deslizam, e isso,
freqüentemente, confunde bastante o leitor. A teoria malebranchista da
inquietude não peca pelo rigor e pela coerência. Mas, temos fortes sus
peitas e bom motivos para pensar que algo similar acontece quando nossa
atenção volta-se para a concepção lockeana a respeito da “uneasiness”.
Enfim, tudo parece indicar, e gostaríamos de frisar o caráter
hipotético de nossa afirmação, que se trata de um período de transição
117
que, como tal, é quase sempre hesitante e um pouco confuso, mas
extremamente fértil nas suas conseqüências.
118
Mas, são inseridas num contexto totalmente diferente e, por causa
disso, adquirem um sentido tal que, sem dúvida, teriam espantado, e
muito, o próprio Descartes.4
De fato, é praticamente desde as origens que as divergências entre
os dois autores aparecem. Se Malebranche aceita, em linhas gerais, a
física cartesiana, seu dualismo, sua teoria das idéias claras e distintas,
existe um ponto, em relação ao qual a divergência é total e faz com que
tudo mude de sentido. Trata-se da concepção e do papel do “cogito”
nos respectivos discursos. Em oposição direta a D escartes,
Malebranche não pensa que tenhamos dele um a idéia clara e distinta,
cujo grau de certeza é tal que não pode ser ultrapassado, constituindo
assim o ponto de partida inabalável do discurso filosófico. Ao con
trário. Para ele, a noção de substância pensante se manifesta para nós
mesmos, através do cogito, de forma em brulhada e confusa. Por uma
simples razão: não se trata de um a idéia, mas de um sentimento. Temos
o sentimento irrefutável de nossa existência, mas não uma idéia clara
e distinta do que somos. Não há nada mais opaco, para nós mesmos,
do que a natureza ou essência de nossa existência. Essa essência nos é
recusada e é inútil qualquer exercício de introspecção para se tentar
captá-la. Esse tema é um leit-motiv na obra de Malebranche:
“Oh minha força e minha luz, posso saber de vós o que sou
e o que é esta substância que sinto em mim, capaz de
conhecer a verdade e de amar o bem? Eu sou, mas desde
que tempo? Sou eterno, cessarei de ser? Eu sou, mas o
que sou? Eu penso, mas como? Eu sinto que quero, mas
quê, eu não conheço claramente o que é querer. Quando
penso nos corpos, vejo muito bem aquilo do que eles são
capazes; eu os comparo entre si e descubro suas relações.
M as qualquer que seja o esforço que eu faça para repre
sentar-me a mim mesmo, não posso descobrir aquilo que
sou. Quando sinto alguma dor, eu o sei, mas antes de
senti-la eu não compreendia que minha substância fosse
capaz disso; e no próprio momento em que eu a sinto,
não compreendo nem aquilo que ela é, nem qual relação
ela pode ter, seja comigo, seja com aquilo que me rodeia.
Em uma palavra, para mim mesmo não sou senão trevas,
minha substância me parece ininteligível” .5
119
Isso, evidentemente, coloca um problema gravíssimo. Se para
Descartes o cogito era a evidência primeira que comandava toda a
cadeia das deduções, agora, não só isso é impossível, como também
fica difícil conceber como pode haver um conhecimento, no sentido
rigoroso, da alma. Como é possível, enfim, uma psicologia racional?6
E possível edificar um discurso sobre a substância pensante?
Pelos próprios dados do problema, é claro que, diretamente, isso é
impossível. Não pode haver espaço para uma psicologia racional, em
Malebranche, que se edifique a partir de conceitos claros e precisos,
pela pura e simples razão de que esses conceitos nos são vedados e
acedemos apenas ao sentimento que fornece a certeza de minha existên
cia, que penso, que imagino, que quero etc., sem fornecer, no entanto,
em momento algum, a idéia precisa desses mesmos atos. A consciência
de si fornece um conhecimento simétrico e inverso àquele oferecido
pelas coisas materiais. Enquanto que, nestas últimas nos é oferecida a
idéia clara e distinta de sua essência, a extensão, e um conhecimento
duvidoso a respeito de sua existência, obtido através dos duvidosos sen
tidos externos; na primeira, a existência é uma certeza imediata e indu
bitável mas o conhecimento da sua natureza é obscuro e confuso.
Disso tudo decorre imediatamente que o preceito cartesiano que
diz ser a alma mais fácil de conhecer que o corpo deve ser afastado e
a filosofia deverá procurar outro caminho para edificar seu discurso.7
Por outro lado, se uma psicologia racional é possível no interior do
pensamento de Malebranche, ela nunca o poderá ser de maneira dire
ta. Para ela só resta o caminho do desvio. Será necessário um outro tipo
de procedimento para se chegar à edificação de tal disciplina que,
sabemos, está presente no discurso de Malebranche.
Esse procedimento, à primeira vista natural, será, no entanto, um
foco de problemas para Malebranche. Ele consiste, já que parece que “a
matéria seja a imagem do espírito”, em estabelecer um paralelismo entre
a substância extensa e a substância pensante e ir, a partir da primeira, que
conhecemos clara e distintamente, extraindo os elementos necessários
para suprir essa deficiência original que afeta nossa percepção do cogito:
120
que têm entre si relações muito próximas daquelas que se
encontram entre as propriedades que pertencem ao
espírito, se bem que a natureza do espírito seja muito
diferente daquela da matéria” .s
121
mais forte que se possa dar a esses termos. Se a matéria é extensa, o
espírito é inextenso; se a matéria é divisível, o espírito é indivisível, e
assim por diante, sob todos os pontos de vista. Seus atributos principais
estão em exclusão recíproca. Mas, o fato de não se poder atribuir exten
são ao espírito, segue-se, necessariamente, que é inextenso? A analogia
é fraca: do que uma coisa não é não se deduz necessariamente o que é.
É por aqui que se instala o que se acostumou denom inar o “para
doxo da psicologia em M alebranche”. É possível fundar rigorosa
m ente um discurso científico baseado em tal procedimento? M.
G ueroult, num pequeno mas adm irável estudo," procura mostrar que
sim. Em essência, a resposta seria a seguinte: se tomarmos essas
substâncias enquanto substâncias tudo o que eu puder afirmar de
um a, posso, de direito, afirm ar de outra, através da noção de subs
tância inteligível. Assim , por exemplo, se toda e qualquer substância
é perm anente, então a alma é um a substância permanente. O ca
m inho, portanto, é da substância m aterial à substância inteligível, e
desta, à substância pensante.12
Sob essas condições há, sem dúvida, um fundamento inques
tionável do procedimento analógico:
122
logo mais). Entre os elementos fornecidos pelo procedimento analógi
co, através do sentimento íntimo, freqüentemente um hiato se instau
ra, quando não uma contradição.
123
Malebranche, num primeiro momento, que é a inteligibilidade mecâni
ca que vai fornecer o tipo de raciocínio que fornecerá a essência das
operações da vontade.
Isso em dois níveis. No primeiro, mais elementar e sem grandes con
seqüências, porque há, de fato, a dependência com relação ao corpo:
124
3) “Confesso que nós não temos idéia clara, nem mesmo
sentimento interior dessa igualdade de impressão ou de
movimento para o bem. M as é porque nós não nos
conhecemos por idéia, como provei alhures; e porque
não sentimos nossas faculdades quando elas não agem
atualmente. Nós não sentimos em nós aquilo que é natu
ral, ordinário e sempre igual, assim como não sentimos
o calor e o batimento de nosso coração. Nós não senti
mos nem mesmo nossos hábitos, ... Talvez exista em nós
uma infinidade de faculdades ou de capacidades que
nos são inteiramente desconhecidas; pois não temos
sentimento interior de tudo aquilo que somos, mas ape
nas de tudo aquilo que atualmente se passa em nós" .19
125
“Pois não é verdade que ela (a sua consciência) lhe
responda que ele pode queimar-se vivo, ou que ele pode
querer queimar-se vivo. Sua consciência lhe ensina, ao
contrário, que a alma não tem o poder de suspender seu
consentimento, aquele de deliberar, nem mesmo de hesi
tar sobre uma tal escolha: porque não se tem, e porque
se vê evidentemente que não se pode ter motivo para se
queimar. Sua consciência lhe ensina que irresistivel
mente ele quer ser feliz, e que ele não pode querer o
mal conhecido e sentido como mal. Ela lhe responde
que ele não pode querer consentir ao que quer que seja
sem um motivo que concorde com o desejo irresistível
que ele tem de ser feliz. Ora, queimar-se vivo não está
de acordo com isso; portanto, ele não tem o poder de
queimar-se vivo, visto que ele não tem nem mesmo o
poder de querer” .21
A bre-se, assim , um novo cam inho, uma nova via possível para
se definir a noção de vontade, que tom a um rum o totalm ente dife
rente do prim eiro que acabam os de ver, pois assum e-se aqui, agora,
aquilo que lá era recusado. E sse cam inho, em linhas gerais,
podem os retraçar levando em consideração que, desde a Recherche
de la Vérité, M alebranche afirm a que os homens buscam o prazer, e
que ele, em si mesmo, é um bem .22 N o Traité de 1’Amour de Dieu,23
obra já tardia, M alebranche é bem claro sobre sua posição. E s
tabelece que:
126
e:
127
ma, o desejo de felicidade das criaturas finitas. Mesmo reconhecendo,
com Malebranche, a universalidade desse desejo de felicidade30e que “o
desejo da beatitude formal ou do prazer em geral é o fundo ou a essên
cia da vontade”,31as duas teses (amor a Deus e desejo de felicidade) nem
se engancham, nem se deduzem uma da outra.
O Tratado de M oral é ainda mais explícito sobre esse ponto. Os
demônios odeiam a Deus porque não esperam mais nenhum a recom
pensa.32 Se Adão continua a amar a Deus é porque ainda mantém a
esperança de que Deus será o seu Bem.33 É preciso, portanto, concor
dar: aos olhos de M alebranche só há um motivo de amor: a felicidade,
que nada mais é que o estado de prazer:
128
confunde-se o motivo com o fim : mas é porque agora
fala-se de algum motivo que é livre e dependente de
nossa escolha. M as no caso em questão o motivo é intei
ramente diferente do fim : porque o motivo de ser feliz
não é um motivo moral ou livre, mas um motivo físico e
necessário. Todos os fin s que nós escolhemos, ou todos
os motivos morais supõem este motivo físico da fe lic i
dade como um princípio secreto de todas as escolhas
que nós podem os fa ze r” .36
129
“D efo rm a que pela palavra vontade, ou capacidade que
a alma tem de am ar diferentes bens, pretendo designar
a impressão ou o movimento natural que nos impele em
direção ao bem indeterminado e geral; e pela palavra
liberdade, não entendo senão a força que o espírito tem
de desviar essa impressão para os objetos que nos
agradam, e fa zer assim com que nossas inclinações na
turais se terminem em algum objeto particular” ,37
Mas não nos iludamos, lendo esse texto, pensando que esse desvio
para os objetos particulares é obra única e exclusiva de nossa liber
dade. Mais um a vez é Deus, ele próprio, que determina esse movi
mento, sendo que a liberdade está apenas no poder de detê-lo:
130
fruí-lo, perceberá que ele não a satisfaz plenamente e buscará outro
ponto de ancoragem. Buscará porque nosso desejo de felicidade e
prazer, esse sim, é necessário e invencível. A possibilidade da noção de
inquietude ancora-se exatamente nessa invencibilidade do desejo de
felicidade e prazer, combinada com a não-invencibilidade da detenção,
do repouso em objetos particulares. Abre, assim, a possibilidade de
uma sucessão contínua de desejos que se detêm em objetos particu
lares, fruindo deles, percebendo-se que não apresentam a felicidade
completa e avançando para outro objeto e assim indefinidamente. A
inquietude é a vontade em movimento indefinido, porque insatisfeita.
Basta que se releia o célebre texto onde Malebranche caracteriza a
inquietude. Ele é um pouco longo, mas é impossível picotá-lo:
131
bem; mas com o tempo ela se afasta destes assim como
dos outros. Portanto, ela está sempre inquieta, porque
é levada a buscar aquilo que nunca pode encontrar, e
porque sempre espera encontrar; e ela ama o grande, o
extraordinário, o que parece infinito, porque não tendo
encontrado seu verdadeiro bem nas coisas comuns e
fam iliares, im agina encontrá-lo naquelas que não lhe
são conhecidas" .39
132
medieval e cristã. Mais especificamente, Santo Agostinho. Conhecemos
a célebre frase das Confissões:
133
todos os bens, o movimento natural de nosso coração só
cessará pela posse desse bem” .44
134
inquieta; porque ela quer ser verdadeiramente e solida
mente feliz. Assim, o amor natural pelo bem a desperta e
nela produz novos desejos. Esses desejos confusos repre
sentam novos objetos. Como ama o prazer, ela corre atrás
daqueles objetos que o difundem, ou que parecem difun
di-lo; e como ama o repouso, ela se detém junto a eles” .47
135
renovado incessantemente, é porque algo atrás dele está agindo, está
excitando sua atualização ou reatualização. Impulsionando-o, em
suma. Ele não pode ser algo fundamental e originário, pela pura e sim
ples razão de que não contém, em si mesmo, elementos suficientes
para explicar seu renascer incessante. Ele não pode, sob esse ângulo,
ser originário. E esse algo que pode explicar esse fenômeno deve estar
embutido na própria noção de insatisfação, que reaparece após a
fruição e funciona como acicate. Para que haja desejo, é preciso que
haja insatisfação e, se o desejo se renova incessantemente, é porque a
insatisfação tam bém o faz, com antecedência. A ssim , já em
M alebranche começam a emergir elementos, na sua análise da inquie
tude, que são suficientes para colocar em dúvida a preeminência do
desejo. Seu reinado, ao que tudo indica, será efêmero.
J. D eprun notou, com muita pertinência, que o quadro da inquie
tude em M alebranche gira sobre dois eixos distintos: o de origem
agustiniana, que tem como pólo a noção de sumo bem, e o outro, que
tem na noção de busca do prazer e do repouso, nos bens particulares,
o seu norte. Q uer dizer, há um pólo teocêntrico e um pólo
antropocêntrico, que orientam as diferentes análises de M alebranche
e, tudo indica, ele nunca conseguiu equilibrá-las de form a inteira
m ente satisfatória:
136
4.a) Antes de abordar o texto de Locke, retomem os alguns dados
históricos bastante significativos, relatados concisamente por J.
D eprun49. Em 1688, J. Le Clerc publica na Bibliothèque Universelle,
sob o título de “E xtrait d ’un Livre A nglais Intitulé Essai
Philosophique Concernant l ’Entendem ent”, o qual constitui um
resumo antecipado das principais teses do Essay de Locke. Como
assinala Deprun, a im portância lexical dessa avant-première é enorme
porque, precedendo em dois anos a publicação da obra e em doze a
tradução francesa de Coste, já coloca, sob o termo de “inquiétude”,
algo que na obra será denom inado “uneasiness”. O que significa
dizer, continua Deprun, que desejo e temor são alocados, sob a forma
conhecida do público francês, de inquietude, e que é provocada pela
ausência de um bem ou a im inência presumida de um mal. Foi, sabe
mos, o próprio Locke quem preparou a versão inglesa do resumo que
Le Clerc traduziu e publicou. Pouco importa se foi de Locke ou de Le
Clerc a opção pelo termo “inquiétude”. O verdadeiram ente significa
tivo é que, doze anos depois, Coste, tradutor e porta-voz de Locke,
m antém o termo “inquiétude” para traduzir “uneasiness”, não sem
puxar um a nota explicativa. Esse é o prim eiro ponto a ser assinalado:
correta ou incorretamente, feliz ou felizmente, essa tradução foi rea
lizada com o conhecimento e a aprovação de Locke, que acompanhou
de perto a tradução e a fiscalizou.
O termo “uneasiness”, como se sabe, não é unívoco e se presta a
várias acepções, sobretudo no texto de Locke. Mesmo Coste nem sem
pre respeita a equivalência estabelecida entre “uneasiness/inquié-
tu d e ". Mais tarde, Bosset, traduzindo o Abridgement o f L ocke’s Essay
(Londres, 1969), emprega mais de uma vez o termo “mésaise”, ou
perífrases equivalentes, para traduzir o termo, e um a única vez usa o
termo “inquiétude”. Por outro lado, a tradução latina no Essay, rea
lizada por Burridge, considerada excelente, utiliza, para traduzir o
termo, “anxietas” e “moléstia" e, em menor escala, “perturbatio”.
Fato significativo: Burridge evita os termos disponíveis de “sollicitu-
do” e “inquietudo”. Refletindo-se um pouco sobre o termo, seu uso, e
esses dados, não é difícil chegar-se à conclusão de que, talvez, os ter
mos mais apropriados em francês para exprimir a “uneasiness” sejam
“malaise" e “mésaise”.
Por que então Locke optou por “inquiétude”? Duas coisas são sig
nificativas nessa história, embora, de fato, não sejam suficientes para
resolver a questão:
137
I 2) Na margem da seção 30, do capítulo XXI do livro II, da
tradução francesa do Essay, Coste anota: “M. Locke atacava aqui
P. M alebranche” .50 A análise do texto e do contexto não deixam a
menor dúvida. Coste está indicando que Locke constitui sua teoria da
vontade em oposição à de M alebranche. Se toda oposição é uma forma
de filiação, como nota Deprun, então é preciso que se considere a
hipótese de que a teoria lockeana da vontade, sob algum aspecto, está
relacionada com a de Malebranche.
2 a) Locke leu e estudou atentamente Malebranche desde 1676,
quando em maio adquiriu a Recherche de la Vérite. Sua oposição a
Malebranche sempre foi clara e veemente. Escreveu várias notas e tex
tos razoavelmente longos criticando a teoria malebranchista51. Por
outro lado, o termo “uneasiness” aparece, pela primeira vez, nos papéis
de Locke, em julho de 1676. A influência, portanto, não é descartável.
138
que, a partir da aparência sensível, é possível deduzir a natureza íntima
das coisas, é a pior de todas as ilusões. Jamais saberemos a verdadeira
constituição dos supostos corpúsculos que compõem a matéria, dada sua
pequenez, o que os tom a inacessíveis aos sentidos.53 O mesmo pode-se
dizer, pela mesma razão, dos objetos remotos.54Mesmo as coisas que nos
são acessíveis pelos sentidos não nos revelam sua estrutura íntima.
Apenas suas propriedades sensíveis. Lembremo-nos do exemplo do
relógio de Estrasburgo invocado por Locke. A idéia que os homens
fazem das coisas é similar àquela que o camponês tem do “famoso reló
gio de Estrasburgo”, no qual só vê o movimento dos ponteiros, escuta as
badaladas e conhece mais algumas de suas propriedades externas. Ele
ignora, no entanto, seus mecanismos e suas engrenagens internas.55 No
que diz respeito à natureza das coisas, estamos na mesma relação que o
camponês frente ao relógio. Por essa razão, o que atingimos é sempre a
essência nominal das coisas e nunca sua essência real.
Isso também aplica-se ao ser humano. A idéia de homem é uma idéia
complexa. Se pudéssemos defini-lo realmente, deveríamos produzir uma
compreensão não só do seu sentido próprio, como também daquilo que
o diferencia das outras espécies vivas, sobretudo as mais próximas. E, ao
longo do Essay (o exemplo da definição de homem é recorrente), Locke
aponta-nos sistematicamente para essa impossibilidade.56 Uma definição
real do homem seria algo bem diferente daquela que de fato obtemos
pela experiência e pela construção de uma essência nominal:
139
anjos a conheçam, e como certamente a conhece aquele
que é seu autor; teríamos uma idéia de sua essência
inteiramente diferente daquela que presentemente está
contida em nossa definição dessa espécie, qualquer que
ela seja. E nossa idéia de cada homem individual tam
bém seria diferente daquela que presentemente temos" .57
ou:
140
Mas, em que consiste essa felicidade que os homens procuram tão
ardentemente? Para esclarecer isso, é preciso que acompanhemos um
pouco essa montagem elaborada por Locke ao longo do 2a livro do Essay.
141
habitará inevitavelm ente esse campo semântico designado pelos ter
mos de prazer, deleite, satisfação etc., e seus contrários, fazendo com
que nunca possam os ter um grau de precisão que seria desejável. As
diferenças, de resto, são de grau, e não de natureza. Voltaremos a isso.
É diretam ente a esse par prazer/dor que devem os reconduzir e, a
partir daí, definir, as noções de bem e mal. Esses últim os termos
indicam , respectivam ente, os estados de prazer ou dor a que estão
relacionados e referem -se especificam ente às coisas que provocam
essas sensações:
142
“Esperança é este prazer na alma, que todos encontram
em si mesmos, quando se pensa no provável desfrute
futuro de uma coisa que é apta a deleitar”.
“Temor é uma insatisfação da alma, quando pensamos
em um mal futuro prestes a nos chegar”P
143
e) Podemos, agora, tentar analisar esse conceito tão central e tão
espinhoso da filosofia de Locke, o de “uneasiness”. Central, porque,
num certo sentido, toda sua filosofia gira em tom o dele, já que todas
as nossas ações (inclusive as mentais) visam basicamente eliminá-la e,
assim fazendo, produzir esse estado de deleite ou prazer que constitui
a Felicidade, aspiração de todos os sujeitos. R. Polin percebeu isso
com muita agudeza quando declara:
144
o campo semântico do termo não é muito fácil de ser circunscrito. O
recurso à perífrase é um indicador. Já vimos também80que as diferentes
traduções acabam empregando diferentes termos conforme o contexto.
Em francês, o termo “malaise” parece ser o mais apropriado e que teria
seu equivalente em português no termo mal-estar. Mas um a outra série
de considerações pode nos levar a um outro termo possível.
No § 2 do cap. VII do livro segundo, quando exatamente intro
duz as idéias de prazer e dor, Locke assinala claramente, vimos, que
estamos defronte a um campo onde o que predom ina é a diferença de
grau e não de natureza. Imediatamente, estabelece uma escala que
pode nos ser útil:
Satisfação Uneasiness
Deleite Desgosto
Prazer Dor
( Tormento
Angústia
M iséria
145
um a noção pelo uso que dela é feito”), deixemos essa noção operar no
próprio texto de Locke, como este, por exemplo:
146
São as necessidades ordinárias, mas prementes da vida, que susci
tam com maior vigor a “uneasiness”, como a fome, a sexualidade etc85.
Nesse sentido, a saúde é o mais desejável dos bens, e a condição para
o usufruto de todos os outros. A “uneasiness” é o correlato dos estados
negativos, e só a eles acompanha, porque só eles causam insatisfação.
Prazer, deleite, satisfação etc. são motivos, já vimos, para que se per
maneça no mesmo estado, e não incitam à ação. É por isso que a insa
tisfação tem um papel capital na história, tanto do indivíduo, quanto da
espécie. Relembremos um a frase célebre do Essay:
147
Locke aprisiona a inquietude na “uneasiness” e, assim procedendo,
faz dela um estado de consciência, enquanto que, para Malebranche,
ela era a conseqüência de um a sucessão de estados de consciência
alternados. A inquietude, em Locke, é m uito mais um estado do que
um m ovimento, ou algo que brota do movimento. Ela incita ao movi
m ento, o que é outra coisa.
148
“Este poder que a alma tem de dispor da presença ou da
ausência de uma idéia, ou de preferir o movimento de
alguma parte do corpo ao seu repouso, e vice-versa em
qualquer exem plo particular, é aquilo que nós
chamamos de vontade?'
149
A ssim , se “uneasiness” e desejo são um a só e mesm a coisa ou,
pelo m enos, o m esm o fenôm eno visto por diferentes ângulos, como
faces de um a mesm a m oeda, então, o que determ ina a vontade
é o desejo. E, a ausência de um bem , m anifestada no estado de dese
jo é o que determ ina a vontade à ação. Seja esse bem almejado algo
negativo, como é o caso em que se deseja o alívio de algum a dor,
seja positivo, quando, por exem plo, através de um a ação se obtém
algum prazer ou deleite.97
Isso pode ser provado de diferentes maneiras. Em primeiro lugar,
com o já se viu, ninguém que se encontra realmente satisfeito na
condição em que está tem desejo de realizar alguma ação (e determi
nar a vontade, portanto) para sair desse mesmo estado:
150
i) Não teria sido necessário Coste avisar-nos, na margem do texto
de Locke, que a teoria deste último vai diretamente contra a de
Malebranche. A leitura dos textos mostra isso de form a cristalina, E, na
verdade, a crítica de Locke a Malebranche situa-se em dois níveis, e
não num único, como dá a entender a observação de Coste. Ele critica,
na verdade, as duas grandes vertentes da teoria malebranchista da von
tade. A prim eira delas que diz ser a vontade o movimento em direção
ao bem indeterminado, ao sumo bem ,104e a segunda, que define a von
tade como sendo o desejo invencível de felicidade.105
A crítica à prim eira vertente é radical e demolidora:
151
que movimenta os seres humanos. São suas preocupações cotidianas,
diárias. São essas questões que estão interessados em resolver e todos
dar-se-iam por muito felizes, se conseguissem afastar esses males que
nos afligem na vida diária. Nossa vontade preocupa-se com coisas
humanas e a felicidade está, se possível, num a vida calma onde se
afastou a “uneasiness” e se atingiu essa “easiness” à qual tanto se
almeja. Conseguindo isso, os homens se dão por satisfeitos.
A crítica à segunda vertente consistiu no fato de que Locke recusa-
se terminantemente a confundir vontade e desejo. Malebranche, como
sabem os, operava essa identificação. Retom em os apenas duas
definições de vontade por ele fornecidas:
152
aquilo que se passa em sua alm a quando ele quer
poderá ver que a vontade ou poder de volição só se
relaciona às nossas próprias ações, term ina ali e não
vai m ais adiante; e que a volição é apenas essa deter
m inação particular da alm a pela qual, através apenas
do pensam ento, ela produz, continua ou detém qual
quer ação que é suposta estar em seu poder. Isso, bem
considerado, m ostra claram ente que a vontade é p e r
feitam ente distinguida do desejo, que na m esma ação
po de ter uma tendência inteiramente contrária daque
la para onde nos leva nossas vontades” .u0
153
lização do desejo e passa a ser a supressão do negativo. Diferença de
acento, poder-se-ia dizer, porque, de uma certa maneira, esse negativo
já está lá em Hobbes. Isso é correto. Mas não está realçado e não faz
parte da compreensão essencial do fenômeno. Assim, pode-se dizer
que Locke retom a à descrição hobbesiana mas é seguramente um
retomo que, tendo passado pela análise malebranchista, enriquece e
realça no fenômeno algo que era passado em silêncio. E, fazendo isso,
possibilita uma outra leitura do mesmo.
E por isso que, quando Locke opta por traduzir “uneasiness”
p o r “inquiétude”, o fato é extrem am ente significativo e põe o
sujeito leitor a pensar, pese o fato de que a equivalência é discutível.
Como assinala D eprun, tudo indica que Locke, realizando essa ope
ração, capta um a herança conceituai e lexical e, ao m esm o tempo,
utilizando-se dela, introduz um a razoável mudança de perspectiva"3
e faz com que um novo tipo de inquietude passe a ter direito de
cidadania. Laicizada, a inquietude vai habitar agora o m iolo do
desejo, a “uneasiness”. E, assim , passa a ser um com ponente natu
ral e norm al de nossa vida.
Mas, mesmo em Locke, a leitura ainda contém ambigüidades e
hesitações. Fica difícil conceber como o desejo, estado de consciência
passivo possa, ao mesmo tempo, ser o fator impulsivo, aquilo que move
ou dinamiza a vontade. O próprio conceito de desejo não é muito claro
em Locke. N a maioria das vezes, ele o identifica com a “uneasiness”,
como vimos. Nesse caso teríamos um fenômeno de dupla face pois,
enquanto “uneasiness”, ele é a consciência de um mal-estar presente e,
enquanto desejo, é a consciência de um bem ausente. Fica difícil perce
ber como um mesmo estado de consciência possa abrigar simultanea
mente essa função dupla. Não se trataria, na verdade, de dois estados
distintos? É o que, pelo menos numa passagem, Locke insinua:
154
De um a certa maneira é o que a posteridade de Locke fará, como ve
remos. De qualquer maneira, de Hobbes a Locke, via M alebranche, a
análise enriqueceu-se e aprofundou-se. O mesmo fenômeno aparece
dotado de significações inéditas. Mas isso foi conseguido à custa de
ambigüidades, de deslizes conceituais e lexicais. Quanto mais se apro
funda a análise do desejo, mais se percebe que ele talvez seja um man
datário. Sua autonomia se vê cada vez mais ameaçada. Locke, de uma
certa maneira, introduz no seu bojo elementos que o dilaceram e sub
vertem sua unidade. E, o que, no fim das contas, pressupõe o desejo?
É tentando responder a essa questão que o século XVIII operará uma
nova guinada na compreensão das coisas.
155
NOTAS
156
9 Ibid., vol. I, p. 41.
10 Ibíd., voi. I, p. 45.
11 M . G uero u lt, É ten d u e e t P sych o lo g ie chez M alebranche, P aris, L es B elles Lettres,
1939. A s teses desse estudo reencontram -se, m as de form a esparsa e não encadea
da, no seu M a lebranche, citad o n a n ota 3. A expressão “p aradoxo d a psicologia
m alebran ch ista” reenvia ao seguinte contexto em G ueroult:
“O recu rso à s m etáforas espaciais (cam po, terreno, espaço, lugar, situa
ção, p o sição etc.), d o qual o p resente texto se utiliza, coloca um p ro
blem a teórico: aquele d e seus títulos de existência em um discurso com
pretensão científica. E ste p roblem a p ode ser e nunciado com o se segue:
por q u e um a certa form a de d iscurso científico requer, necessaria
m ente, o uso de m etáforas tom adas de em préstim o a discursos não
científicos? (Lire le C apital, p e tit collec. M aspero, vol. I, 1968, p. 27).
A restrição feita p o r A lthusser: “ d iscursos não científicos” p ode ser deixada de lado
porq u e pouco im porta de onde v em a n oção e sim suas condições de aplicação. Freud
em p resta alguns de seus co nceitos de ciências vizinhas, n em por isso o problem a deixa
de se colocar.
157
20 Id.,“T raité d e la N ature e t d e la G râce”, in O euvres Com plètes, ed. cit., vol V, 3fi dis
c urso, § I, p. 118.
21 Id., “R éflexions su r la P rém otion P h y sique”, in O euvres C om plètes, ed. cit., vol.
X V I, art. V, P- 16.
22 A firm ações q ue cu staram a M alebranche num erosas críticas e duas grandes p olêm i
c as, um a co m A rnauld (cf. “R ecu eil d e toutes les R éponses à M . A rnaud”, in
O euvres C om plètes, ed. cit., vol. V III-IX , p. 887-989) e outra com R égis (cf.
“ P olém ique M aleb ran ch e-R ég is” , in P ièces Jointes — É crits D ivers, in O euvres
C om plètes, ed. cit., vol. X V II-1, p. 311 e seg.).
23 M alebranche, op. cit., ed. cit., vol. XIV.
24 Ibid., p. 9.
25 Ib id ., g rifo nosso.
26 Ibid.
27 Ib id ., p. 145; g rifo nosso.
28 Id., “R éflexions su r la Prém o tio n P hy siq ue”, ed. cit., vol. X V I, art. X , p. 41; grifo
nosso.
29 C om o é o caso de S an to T om ás, p o r exem plo. Cf. S um a Teológica, I, II, q uestões 10
e I I ; M adrid, B A C , 1989, vol. II, p. 132-146.
30 M alebranche, T raité d e l'A m o u r de D ieu, ed. cit., vol. XIV, p. 10:
31 Ibid.
32 Id ., “T raité de M o rale”, in O euvres C om plètes, ed. cit., vol. XI, p. 105.
33 Id ., Traité d e l ’A m o u r d e D ieu, ed. cit., vol. XIV, p. 26.
34 Ib id ., vol. X I, p. 102. N a p rim eira c a rta ao padre Lamy, M alebranche diz:
158
35 C f. n o ta 14.
36 M alebranche, “T rois L ettres au R . P. L am y”, in O euvres C om plètes, ed. cit., vol.
XIV, IIS lettre, p . 79.
37 Id., “R echerche de la V érité”, in O euvres C om plètes, ed. cit., vol. I, p. 46.
38 Ibid., vol. III, p. 18-9.
39 Ibid., vol. II, p. 16-7.
4 0 C f. tex to referido n a n o ta 7 7 da seg u n da parte.
41 E spera-se u m e studo q ue n os m ostre m ais detalhadam ente e ssa inegável, m as p ouco
apontada influência de M alebranche sobre o século X V III, à sem elhança do
adm iráv el estudo que realizou R V em ière com relação a Espinoza. N a sua falta,
devem os no s contentar c o m indicações esparsas dos historiadores.
42 l s p arte, item 15, in fin e .
43 S an to A gostinho, C onfissões, P orto, L .A .I., 1958, p. 29.
44 M alebranche, “R echerche de la V érité” , in Oeuvres C om plètes, vol. I, p. 404-5.
45 Ibid.
46 Id ., “T rois L ettres au R.P. L am y ” , in O euvres C om plètes, vol. XIV, p. 104:
159
58 R. Polin, La Politique Morale deJ . Locke, Paris, PUF, 1960, p. 15-7.
59 Aristóteles, Ethique a Nicomaque, Paris, Vrin, 1959, L .1,1, 1095 a 16, p. 34.
60 Locke, An Essay Concerning Human Understanding, II, XXI, 68.
61 Ibid., II, XXI, 71.
62 Ibid., n , v n , 1.
63 Ibid., H, VE, 2.
64 Ibid.
65 Ibid., U, VII, 3.
66 Ibid., n , VII, 4.
67 Ibid., II, XX, 14.
68 Ibid., II, I, 21.
69 Ibid., H, VO, 4.
70 Ibid., II, X, 3.
71 Ibid., II, VII, 5.
72 Ibid., n, VA, 6 e II, XX, 1.
73 Ibid., II, XX, 2.
74 Ibid., D, XX, 3.
75 Ibid., U, XX, 7, 8, 9 e 10.
76 Ibid., II, XX, 14. Note-se a estranha colocação do desejo na série apresentada em
primeiro lugar. Cf., mais à frente, item 8.
77 Ibid., II, XXI, 29.
78 R. Polin, op. cit., ed. c it, p. 12.
79 L ocke, Essai P h ilo s o p h iq u e e d . c it., p. 177, n o ta 1.
80 Item 1, desta IIP parte,
81 L ocke, A n E ssa y C oncerning H u m a n U nderstanding, II, V II, 2.
82 R, Po lin ch ega à m esm a conclusão (op, cit., p. 18), só que baseado n o texto do
E ssa y, II, X X I, 2 9, referid o p o r nós n a nota 77.
83 L ocke, A n E ssa y C o ncerning H um a n U nderstanding, II, XX I, 31.
84 Ib id ., II, X X I, 40.
85 Ib id ., II, X X I, 4 5, no início.
86 Ibid,, II, X X , 6. E ssa teo ria influenciará a lguns h istoriadores d o século X V III, com o
M ably e M orelly, se é q ue este últim o p ode ser considerado um historiador.
87 Ibid,, II, X X I, 45.
88 S. G oyard-F abre, J . L o cke et la R aiso n R aisonnable, P aris, Vrin, 1986, n. 14, p, 92.
89 L ocke, A n E ssa y C o n cern in g H u m a n U nderstanding, II, X X , 6, no início. O utros
textos:
160
91 Ib id ., II, X X I, 5.
92 Ib id ., II, X X I, 15.
93 C f. tam b ém E , X X I, 25.
94 Ibid., II. X X I, 28.
95 Ib id ., II, X X I, 29.
96 Ibid., II, X X I, 2 9, in fin e .
97 Ibid., II, X X I, 33.
98 Ib id ., II, X X I, 34, no início.
99 Ibid., II, X X I, 35. L o ck e u sa o exem plo do b ebedor h abitual que, em bora saiba que
existe u m bem m elhor, qu an d o aparece a “uneasiness” , dirige-se à taverna.
100 Ibid., II, X X I, 36.
101 Ibid., II, X X I, 37.
102 Ibid., II, X X I, 38.
103 Ibid.
104 C f. item 3b, desta IIIa parte.
105 C f. item 3b, desta IIIa p arte, in fin e .
106 L ocke, A n E ssa y C oncerning H um an U nderstanding, II, X X I, 44.
107 Ibid.. II, X X I, 46.
108 Ib id ., II, X X I, 44.
109 C f. (extos referidos tias notas 27 e 28 desta parte.
110 L ocke, A n E ssa y C oncerning H u m an U nderstanding, II, X X I, 30.
111 Cf. tex to referido na nota 7 7 , da segunda p arte deste trabalho.
112 C f. texto referid o na n o ta 79 d esta terceira parte.
113 J. D ep ru n , op. cit., ed. cit., p. 193.
114 L ocke, A n E ssa y C oncerning H um an U nderstanding, II, X X I, 71.
161
IV
PRAZER
1. Essa situação, descrita por nós na parte anterior deste trabalho,
perdurará por um bom tempo até que uma nova mutação teve lugar,
segunda portanto, que reequilibrará de novo a arquitetura conceituai e
dará um novo fundamento à vida passional. M udança esta também
provisória, como sempre acontece nesse campo, mas da qual, até hoje,
somos herdeiros. Ela se deu através do maior dos seguidores de Locke.
Estamos nos referindo, é claro, a Etienne Bonnot, abade de Condillac.
Será através dele que assistiremos ao destronamento definitivo do con
ceito de desejo como noção central para se compreender a trama da
vida passional. Isso será realizado naquela que é considerada a sua
obra máxima: o Traité des Sensations.
Situação curiosa: Condillac que, sem dúvida, fornecerá um dos
pilares e um dos estofos sobre os quais estará assentada, teórica e coe
rentemente, um a nova concepção do homem e, que, em espécie,
fornecerá grande parte das bases daquilo que era exigido, às vezes
implicitamente, pelos apologistas do luxo para que suas posições
tivessem alguma solidez; Condillac, repetimos, não era um fanático
defensor do luxo. Ao contrário, fazia sérias reservas a este último e só
o admitia sob limitações e condições especiais1.
165
Locke e Newton mas tinha elaborado um a síntese própria e original.
Isso era claramente reconhecido pelos seus contemporâneos mais emi
nentes. Nessa obra já publicada, toma partido nítido e tem posições
claras e bem fundamentadas sobre a maioria dos problemas filosóficos
e, suas posições, no essencial, estão claramente delineadas. No entan
to, e isso intriga os analistas de seu pensamento.2 julgou necessário
com por uma nova obra. Qual ou quais as razões que o levaram a isso?
Quando o leitor folheia o Traité des Sensations encontra várias
referências ao Essai sur 1’Origine des Connaissances Humaines, publi
cado oito anos antes e que contém o essencial das teses de Condillac.3
Condillac é pródigo em referências às suas obras, mesmo quando se trata
de retificá-las. Sobretudo no Traité des Sensations, ele multiplica essas
referências ao seu próprio discurso. Numa delas, lemos o seguinte:
166
3. O Essai, como já foi notado várias vezes, segue de perto as teses
de Locke. Mas seria falso, como se sugere em alguns textos, que ele se
resuma em repeti-lo. Aliás, é provavelmente em virtude dessa idéia
pré-concebida que uma leitura que ressalte com clareza sua originali
dade se vê dificultada. Condillac parte de Locke mas o corrige muitas
vezes e mesmo toma caminhos próprios. Como diz Derrida:
167
é, na verdade, uma teoria do conhecimento, cuja chave é dada pela
análise psicológica.10
Mas, desde logo ficam ressaltados o parentesco e a distância entre
o projeto de Locke e o de Condillac. Parentesco, porque ambos concor
dam que o dado originário, a partir do qual deve-se iniciar a análise, está
na sensação tom ada com o dado prim eiro e irredutível a partir do qual
erige-se todo o edifício do conhecimento humano. Distância, porque
para Condillac ao contrário de Locke, trata-se, não de colocar esse dado
irredutível mas sim de explicar com o a partir dele advém a totalidade do
conhecimento que o sujeito pode atingir. Trata-se de examinar a pro
dução da vida m ental com o um todo. O projeto de Condillac, portanto,
consiste em desvendar a geração das operações mentais através de sua
derivação, efetivam ente assinalada, a partir da sensação.
168
ciência da percepção são um a só e mesm a coisa. A penas que, en
quanto afecção, denom inam o-la percepção e, enquanto a alma
adverte sua presença, denom inam o-la consciência.
Quando, frente a várias percepções, nossa consciência detém-se
numa delas em particular, ocorre o fenômeno que denominamos
atenção.'1Por que nossa consciência detém-se mais particularmente sobre
algumas percepções do que sobre outras? Pela razão de que algumas nos
dizem mais respeito, com relação ao estado a que nos conduzem:14
169
3.b) Vê-se já a distância que separa Condillac de Locke. Nele
trata-se de um gérmen inicial que contém potencialmente todo o con
junto das diferenciações que irão se explicitando no decorrer da expe
riência. De um dado original que vai se complexificando e se expli
cando (no sentido etimológico), até chegar a colocar o conjunto de
suas determinações diferenciais que já estavam contidas desde o iní
cio. Em Condillac, portanto, há duas coisas a serem consideradas: o
dado inicial, a percepção, e o conjunto das diferenciações progressi
vas, a que esse dado se submeterá até atingir seu grau pleno, que é o
que se denomina o conhecimento.
Mas, do ponto de vista do desenvolvimento das faculdades do
espírito, o elemento determinante e fundamental é a atenção. Seu
desenvolvimento, sua explicitação determinativa é responsável pela
constituição da reminiscência, da imaginação e da memória, que dife
rem entre si por graus:
170
A ligação das idéias tem como causa a atenção que a elas confe
rimos quando se apresentaram juntas pela prim eira vez. Nossa atenção,
no entanto, como vimos, é regulada pelas nossas necessidades que são
assim, em última instância, o princípio ordenador e compositivo.
Formam-se, assim, as cadeias associativas que estabelecem as ligações
entre as idéias, em primeiro lugar, segundo a ordem em que se mani
festam originalmente e que, posteriormente, através de um outro fator
que veremos logo mais, se autonomizam e adquirem independência
com relação à ordem original. Formam-se, por assim dizer, cadeias
que, p o r sua vez, se subdividem, cada uma delas, em subcadeias que
se cruzam em certos pontos nodais e assim sucessivamente:
171
a plenitude desse princípio só será atingida quando ele operar sobre os
signos que serão os elementos principais e fundamentais na autono
m ização do processo do conhecimento.
Condillac distingue três espécies de signos: os acidentais, os na
turais e os de instituição. Os primeiros ligam fortuitamente alguns co
nhecimentos entre si. Os segundos são estabelecidos naturalmente,
como os gritos emitidos pelos seres vivos e que exprimem seus esta
dos afetivos. Os terceiros, enfim, são artificiais, instituídos pelos
próprios homens e estabelecem um a relação arbitrária entre signifi-
cante e significado.”
É sobre a noção de signo arbitrário ou de instituição que Condillac
joga todo o peso e a importância na constituição do conhecimento.
Logo depois de enunciar o princípio da ligação das idéias, Condillac
insiste no fato de que seu desenrolar pleno depende dos signos:
172
M as é sobretudo no estabelecimento da reflexão que o uso dos sig
nos é fundamental. E todas as operações que dela dependem estão
basicamente ligadas ao uso dos signos, já que só eles tom am possíveis
as operações complexas na medida em que o signo faz o papel do sig
nificado. Podemos im aginar uma certa quantidade de objetos mas, a
partir de um certo ponto, só o uso dos números e as operações rea
lizadas através deles tom am possível o manejo da quantidade. O
mesmo se passa com as formas. Posso facilmente im aginar um triân
gulo ou um quadrado mas, só através dos signos, posso pensar uma
figura de 500 ou 1000 lados.
Assim, tanto do ponto de vista da facilitação e da complexificação
das operações do entendimento, com o também a própria captação de
determinados conteúdos, dependem diretamente do uso dos signos:
173
a guiamos segundo nossos desejos, agora a alma dispõe
de si mesma, extrai dali idéias que só deve a si, e se
enriquece com seus próprios recursos” .2V
174
de uma form a um pouco vaga e difícil de ser determinado com alguma
precisão. Traía-se, vez por outra, de que Condillac reclama de certas
obscuridades do Essai. Fala mesmo numa exposição “embrulhada"
referindo-se, genericamente, a certas partes da obra sem, no entanto,
determinar com maior clareza. Essa razão talvez seja genérica e refira-
se muito mais às quatro que exporemos a seguir.
Em segundo lugar, já com precisão suficiente, Condillac invoca
certos prejuízos que estariam presentes no Essai, sobretudo o prejuízo
do dado do qual, ainda nessa obra, compartilharia com Locke.
Retomaremos a isso com m aior clareza:
175
não sentiu a necessidade de descobrir-lhes o princípio e
a geração, ele não suspeitou de que elas poderiam ser
apenas hábitos adquiridos; ele parece tê-las visto como
algo de inato... Em 1746, eu tentava apresentar a ge
ração das faculdades da alma. Essa tentativa pareceu
nova e teve algum sucesso; mas ela o deveu à maneira
obscura pela qual eu a executava” .34
176
simples, que fo i objeto de um segundo, que o fo i de um
terceiro, e assim po r diante” .36
177
O desafio estava lançado e Condillac foi sensível já que, de fato,
a afirmação inicial do Essai era ambígua e podia contaminar a leitura
da obra toda. A questão, portanto, que se coloca é: como podemos
chegar à noção de uma existência externa, já que o dado inicial do qual
partimos é a sensação, algo que, em princípio, é subjetivo e que,
segundo os próprios postulados da filosofia de Condillac, tudo o mais
que acontece no domínio espiritual nada mais são que os avatares da
sensação, aquilo que denominou a “sensação transformada”?
O quarto motivo de composição do Traité só podemos enunciar de
forma genérica pois sua clara compreensão só poderá vir à luz con
forme formos tratando mais detalhadamente as questões. Vimos há
pouco que uma das grandes originalidades do Essai estava na sua teo
ria sobre o papel dos signos na constituição do conhecimento. Papel
central e capital como foi assinalado. Ora, algum tempo depois da com
posição da obra, Condillac numa carta a Maupertuis afirma o seguinte:
178
humano,41 de outro, discreta mas periodicamente, afirmava que são
nossas necessidades (besoins) que orientam a ligação das idéias.42 Mas,
nem insiste muito sobre isso, nem extrai coerentemente todas as con
seqüências que seriam possíveis. Talvez a reviravolta mais importante
operada pelo Traité esteja exatamente na consideração desse fator.
Kssa é, pelo menos, nossa hipótese: colocando, de uma vez por todas,
de forma clara e inequívoca o primado do prático sobre o teórico,
Condillac passa a pensar o eixo fundamental das operações do espíri
to humano como centralizadas na noção de vontade. Fazendo isso,
Condillac não só reenquadrará todo o Essai, como realizará um per
curso marcado pela mais profunda radicalidade. O Traité, veremos,
realizará uma espécie de arqueologia do Essai, levando o empirismo
ao seu maior grau de radicalidade. Rigorosamente, a leitura do Traité
deveria preceder à do Essai.
179
um espírito privado de qualquer espécie de idéias. Nós
supusemos ainda que o exterior todo de mármore não lhe
permitiria o uso de nenhum de seus sentidos, e reservamo-
nos a liberdade de abri-los, segundo nossa escolha, às
diferentes impressões das quais eles são suscetíveis” .43
180
ole.1'1 Enquanto afetada pelo primeiro odor, sua capacidade de sentir
esgota-se na impressão que acontece sobre seu órgão. Não se trata, para
ela, de uma imagem de algo porque, por hipótese, ela não pode pensar
assim. O solipsismo da estátua é completo. A estátua nesses instantes
originais nem sente, portanto, por exemplo, um odor de rosa, porque não
(cm a menor noção da existência desse ser. Nem mesmo sente um odor
porque, na verdade, essa afecção é seu modo de ser. Aqui, a totalidade
de sua experiência resume-se em ser-odor. Esse aroma é ela mesma:
181
mente afetada, ela ainda retém a impressão anterior. Sua capacidade de
sentir duplica-se agora entre a memória e o odor atual. A atenção
mesma divide-se entre a memória e a impressão atual. O que significa
dizer que, agora, tem duas maneiras de sentir, uma das quais se rela
ciona com o que se passa atualmente nela, e a outra com algo que já
sentiu. Mas, nela mesma, não tem a capacidade de distinguir entre uma
lembrança e uma sensação atual, na medida em que ignora a ação atual
de um objeto tanto quanto sua própria capacidade retentiva. Só adverte
a diferença de intensidade das suas impressões.51 Nota-se já, nesse
nível, a diferença de enfoque entre o Essai e o Traité. Naquele, a
memória já era definida em função da instituição dos signos52 e seu fun
cionamento dependia destes últimos. No Traité a estratégia é outra: ela
é definida somente em função de certa propriedade de nossa estrutura
sensível e pode funcionar sem a linguagem.
Essa experiência, crucial no Traité, faz com que a estátua perceba
que existe um estado “A” que é diferente do estado “B”. Isso introduz
a percepção de uma mudança, de uma sensação, que redunda na per
cepção da diferença entre existir de uma determinada maneira e lem
brar-se de ter existido de outra:
182
odor “A”, dada agora sua capacidade de dirigir a atenção para ambos
os fenômenos, inevitavelmente os comparará porque
Notar-se-á, mais uma vez, aqui, que esse conjunto de operações dcP
espírito, que estão sendo destacadas a partir da impressão original, errt>
momento algum estão na dependência da instituição e do uso dos sig
nos. Estamos já, como é fácil observar, num nível razoavelmente com-
183
plexo das operações intelectuais, e a linguagem não interveio para
explicar a gênese desses fenômenos. Na verdade, Condillac está recon
duzindo sistematicamente essas operações a um princípio que já está
presente no Essai, mas de forma razoavelmente discreta, conforme
avisamos. Trata-se do princípio das nossas necessidades, que é o
grande motor que guia esse conjunto de operações:
184
substituir um sentimento independente da ação dos objetos exte
riores”.61A imaginação tem, por assim dizer, sob certas circunstâncias,
o poder de se substituir à ação dos sentidos. Mas, é bom lembrar que a
estátua, ela mesma, não tem condições de distinguir a real diferença
entre imaginar e ter a sensação.
Em virtude de ser determinada, em condições normais, pelo
princípio de suas necessidades, ela, ao procurar aquelas impressões
que satisfazem as mesmas, pode perceber que elas podem estar em
algum ponto distante da cadeia associativa. Para conseguir esse fim, a
imaginação freqüentemente rompe a ordem natural e originária da
cadeia, passando, por exemplo, rapidamente pelas intermediárias,
mudando mesmo a ordem para atingir esse fim e, assim, acaba crian
do uma nova cadeia que pode manipular com mais facilidade.
185
“Concluamos que ela contraiu vários hábitos: um hábito
de dirigir sua atenção, um outro de recordar-se, um ter
ceiro de comparar, um quarto de julgar, um quinto de
imaginar, e um último de reconhecer”
186
Essa operação implica que a estátua isolou, como sendo comum a
um determinado grupo de estados, a idéia de contentamento, e de outro
grupo, a idéia de descontentamento. E, se abstrair “é separar uma idéia
de uma outra”,65 então é preciso convir que ela não só adquire a capaci
dade de abstração como também adquire, por esse caminho, idéias
abstratas que são idéias gerais relativamente ao ponto do qual se par
tiu. Da mesma forma, quando experimenta, sucessiva ou alternada
mente, um mesmo odor, sua atenção, fixando-se nesses diferentes
traços de memória, forma a representação de um determinado odor,
isto é, forma uma idéia particular,66
Dessa mesma idéia de contentamento, na medida em que é fruto
de uma experiência agradável (como o inverso, o descontentamento, é
fruto de uma experiência desagradável), ela adquire a idéia de prazer
(e desprazer) que se toma um de seus principais objetivos.67
Da mesma forma, como distingue os diferentes estados pelos
quais passa, adquire algumas idéias, ainda que vagas, a respeito dos
números, desde que não excedam algo em torno de três ou quatro. De
qualquer maneira, a idéia de unidade firma-se no seu espírito. Mas,
sem o recurso dos signos, aqui, não pode ir muito longe,68 a não ser
pela aquisição da idéia de multidão, que nada mais é do que a idéia de
uma quantidade indefinida:
Por outro lado, se, como vimos, ela possui idéias particulares e
idéias gerais, conhece também duas espécies de verdades. Os
odores singulares são, para ela, idéias particulares. Mas vimos tam
bém que possui idéias abstratas, como descontentamento e seu
inverso. Conhece, portanto, também, verdades gerais. Sabe, em
geral, que algumas modificações provocam descontentamento, ou
tras contentamento.70
187
Adquirirá também, ainda que de forma vaga, a idéia de possibili
dade, na medida em que, habituando-se a estar num determinado estado,
passa para um outro, para depois voltar ao primeiro, e assim, sucessiva
mente, adquire a idéia de que poderá estar num determinado estado.71
Pelo mesmo princípio de mudança de estado, alternada ou contínua, a
estátua pode adquirir um conhecimento de uma duração passada, de
outro porvir, de uma duração presente e mesmo de duração indefinida.72
189
construções para Condillac. A partir de uma massa indiferenciada e ini
cial de impressões vai se elevando progressivamente, se constituindo e
se construindo uma unidade espiritual complexa e estruturada que tem
como correlato um mundo, ele também, complexo e estruturado.
190
algo fora de si? Na realidade, “nossos olhos aprendem a ver” o espaço,
as figuras etc., quando aprendemos a noção de uma existência externa,
idéia esta que nos é oferecida pelo tato, e não pela visão. Aí, então, esta
mos em condições de “perceber” que há um espaço, que as coisas estão
nesse espaço etc. Que esse “azul” que me afeta subjetivamente acaba por
se relacionar com um objeto externo, cuja noção nos é fornecida pelo
sentido do tato, mais especificamente, através do manuseio:
191
Foi o tato, sabemos, que tomou possível a passagem desse con
junto de impressões subjetivas a algo que não é propriamente o sujeito
receptivo, mas a algo que é referido como exterior ao próprio sujeito.
Através do tato o sujeito aprende a transpor um conjunto de qualidades
sensíveis (esse odor particular, essa forma específica, essa cor aver
melhada etc.) para um algo, alguma coisa, que é um objeto sensível
que passa a ser agora o suporte desses mesmos atributos e ao qual
damos um nome: rosa:
192
tados. Unificamos e projetamos nossas sensações sobre algo de
natureza absolutamente desconhecida:
193
dina-se ao prático, ao conhecimento prático e é nesse sentido que ele
pode ser entendido como a arqueologia do E ssai. Atrás do signo está
a necessidade prática que é fundante em relação a ele.
Como, por hipótese, ela, nesse momento, não tem e nem pode ter
nenhuma idéia das mudanças que podem lhe advir, isso significa dizer
que ela pode estar bem, sem desejar estar melhor, ou estar mal, sem
desejar estar bem.94O seu sofrimento atual não pode fazer com que
deseje um bem que não conhece, nem o gozo, o temor de um mal que
lhe pode acontecer. Assim, por mais desagradável que seja essa
afecção original, mesmo que leve ao ponto de “lesar o órgão”,95 o dese
jo de sair desse estado não tem como se instaurar porque:
194
“A dor só ocasiona em nós este desejo porque esse esta
do já nos é conhecido. 0 hábito que contraímos de olhá-
la como uma coisa sem a qual nós fomos, e sem a qual
nós ainda podemos ser, faz com que não possamos mais
sofrer, e que logo nós desejemos não sofrer"
O sofrimento, assim, não lhe faz desejar um bem que não co
nhece e nem o gozo lhe faz temer um mal o qual não conhece tam
bém. E é isso que torna a estátua incapaz de desejar. Indicação pre
ciosa porque a análise genética está mostrando que seu estado ori
ginal (dor/prazer) não contém, nele mesmo, analiticamente, por
assim dizer, o desejo. Este não só é outra coisa, como também é
algo derivado e supõe, portanto, não só esse mesmo estado original,
como também, para que haja sua emergência, um conjunto outro de
condições que é preciso examinar e explicar conforme formos
detectando-as.
9.b) Conjunto de condições na verdade complexo, pois supõe que
a estátua tenha desenvolvido, mesmo que minimamente, um conjunto
de atividades que podemos, em prol da clareza e numa primeira apro
ximação, subdividir nos seguintes momentos, supondo desnecessária,
porque já o fizemos anteriormente, a explicitação das operações que
estão em questão:
1) Supõe-se, primeiramente, como acabamos de ver, um estado
original de dor ou prazer;
2) Supõe-se, em segundo lugar, uma sucessão de estados repetidos
e alternados desses dois modos;
3) Supõe-se, em terceiro lugar, o registro na memória desses dife
rentes estados (o que já supõe a ação anterior da atenção como sua
condição, como já foi visto). Aqui, dado um determinado estado, a
estátua tem o poder de ativar a lembrança de um outro, neutro ou opos
to. Suponhamos que seja o oposto;
4) Supõe-se, em quarto lugar, para que a operação tenha seqüên
cia, que a estátua seja capaz de elaborar a comparação entre esses esta
dos sucessivos;
5) A combinação dessas diferentes noções e operações (memória,
sucessão e comparação) produz as idéias de ter sido, de ser agora e
poder voltar a ser,
195
6) Atinge-se também a noção de diferença entre o estado atual e o
passado (isto é, ter existido de outra maneira) e o poder existir de
forma anterior.
Preenchido esse conjunto de requisitos, pode-se falar então em
desejo, que nada mais é que o movimento em direção a algo operado
pelas faculdades. Isso numa primeira aproximação.
196
“Entre esses diferentes graus, não é possível encontrar
um estado indiferente: à primeira sensação, por mais
fraca que ela seja, necessariamente a estátua está bem
ou mal” .1CI
197
que um receptor neutro, um puro espelho por onde desfilariam inces
santemente as imagens. Ou melhor, seria como um aparelho fotográ
fico que registraria indiferentemente toda a seqüência das
impressões. Faz-se necessário, portanto, que algo desperte seu inte
resse nessa sucessão contínua. Algo, enfim, que introduza nessa
cadeia contínua um ponto de inflexão de tal forma que algumas
retenham mais sua atenção que outras, despertem mais seu interesse
que outras. É exatamente o par prazer/dor que vai ser o grande
responsável pela introdução dessa diferenciação que se constituirá
como um primeiro ato de avaliação:
198
9.e) O desejo, assim, não só é um conceito derivado mas supõe,
para que se instaure, a sua soldagem ao campo representativo. Ele é
sempre desejo de ... algo. Instaurado o circuito do desejo, aí então, e só
aí, o prazer e a dor passarão a funcionar como o “único princípio” que
determina todas as operações da alma:
199
às operações do entendimento e da vontade. O juízo, a
reflexão, os desejos, as paixões etc. são a própria sen
sação que se transform a diferentemente. Foi por isso
que pareceu-nos inútil supor que a alma recebe direta
mente da natureza todas as faculdades de que é dotada.
A natureza nos dá órgãos para advertir-nos, pelo prazer,
daquilo que devemos procurar, e pela dor, daquilo de
que devemos nos afastar. M as ela se detém ali; e deixa
à experiência o zelo de fazer-nos contrair hábitos, e de
acabar a obra que ela com eçou”.m
9.g) Esse par prazer/dor funcionará assim , respeitadas as
condições já apontadas acim a, em todos os níveis, e será, num certo
sentido, fundante e constituinte. Desde o nível o mais elem entar — o
da atenção'09 — , passando pela com paração,110 pela constituição da
mem ória ativa,111 pela im aginação,"2 até o nível mais sofisticado que
a estátua pode atingir,"3 será ele e sempre ele que estará operando na
construção tanto do cam po do saber como do próprio sujeito. Ele é
“o princípio que determ ina o desenvolvimento das faculdades”.1'4 É
“o único princípio que determina todas as operações da alm a”."5É “o
prim eiro m óvel”116e “determ ina sempre a ação de suas faculdades”.117
N ós somos, assim, sempre-movidos pelo prazer e pela dor.1'8
Inútil multiplicar as referências: essa idéia de que na medida em
que não há sensação indiferente então o prazer e a dor constituem a “lei
segundo a qual o gérmen de tudo isso que somos desenvolveu-se para
produzir todas nossas faculdades”"y é absolutamente onipresente no
texto do Traité. O próprio Condillac é explícito sobre isso:
200
sonhos. Nesse estado psíquico, segundo Condillac, o espírito não fun
ciona segundo as condições normais. Ele opõe-se tanto ao estado de
sono completo como ao de vigília. No estado de sonho, algumas fa
culdades ainda operam no sujeito mas à sua revelia completa e apenas
“sobre uma parte das idéias adquiridas”.121 Nesse caso. a ação do
espírito — ela mesma limitada — perfaz-se sobre um material incom
pleto e vários anéis da cadeia associativa são interceptados por essa
deficiência e a ordem das idéias no sonho não pode ser a mesma que
a do estado de vigília. E, no sonho, “o prazer não será mais a única
causa que determina a imaginação”.122
9.h) Assim, esse princípio funciona em três níveis básicos:
1) na estruturação progressiva de nossas faculdades:
2) no próprio encadeamento de nossas idéias — de nosso co
nhecimento, portanto. A memória e a imaginação suprem, no Traité, o
papel dos signos na ligação das idéias que continuam sendo o princípio
de nossos conhecimentos. É através dela que as seqüências de idéias
são estabelecidas e nosso saber se instaura. Mas, a ordem da seqüência
— se excetuamos a seqüência original — é, no entanto, detenninada
pelos motivos e interesses — e, em última instância, portanto, pelo par
aprazer/dor — que acaba por — abreviando, condensando, estendendo
— criar várias seqüências paralelas, laterais, subcadeias etc. que intro
duzem a teleologia no processo. Não só este último ponto como tam
bém, através disso, a possibilidade de domínio, de senhorio do proces
so, é possibilitado pela evitação da dor e a busca do prazer;
3) por fim, o conjunto de nossas ações é também determinado por
esse princípio. Todos nossos atos — desde o mais elementar movi
mento é regido por esse princípio:
201
mais sensível ainda ao prazer, faz com que ela discirna
os meios de desfrutá-lo sem perigo, e lhe dá lições de
indústria; em uma palavra, o prazer e a dor são seus
únicos mestres” .m
9.i) Por outro lado, não é difícil perceber que, embora possa-se falar,
por uma licença de linguagem, num primado do prazer, na busca do
prazer em Condillac, o fato é que, nesse par prazer/dor, o elemento ori
ginariamente ativo é a dor em todas as suas nuances quantitativas.124 E
ela (a “mais importuna das sensações”, como dizia Locke) que constitui
o verdadeiro motor que atua incessantemente na estátua. E verdade que,
em condições normais, ela só pode atuar se houver — como contrapon
to — um outro pólo — o estado de ausência de dor ou o estado de pra
zer — que funcione como foco de atração. E isso só pode acontecer
porque a estátua representa esse outro pólo como algo onde deve chegar.
Esse “objeto de representação” que atua teleologicamente parece ser a
condição para que o estado desagradável atue de maneira eficaz.
Repetimos: normalmente é assim que as coisas se passam. Mas nem
sempre esse pólo representacional está presente. Aliás, originalmente
não está. Foi por não terem dado a devida atenção a esse ponto que
alguns autores, como veremos, puderam falar num primado do entendi
mento sobre a vontade em Condillac. Basta, no entanto, que tomemos a
experiência paradigmática da fome, tal como aparece no Traité, para que
nos convençamos do contrário. Retomemos essa análise.
10. Embora o sentido do paladar seja aquele que menos precise ser
educado, na medida em que é absolutamente necessário para nossa
conservação,125 ele é, no entanto, sob um certo ângulo, fruto de um
aprendizado já que “quando a estátua experimenta pela primeira vez o
sentimento da fome, esta não pode ainda ter objeto determinado”,126na
medida em que desconhece os meios para satisfazê-la. Nesse estado,
202
portanto, não quer nada absolutamente determinado. Sente apenas o
impulso de não permanecer no estado em que está.127
É neste instante que podemos captar o conceito de necessidade
(.b esoin) no seu estado puro e original. Ele refere-se basicamente a esse
estado de mal-estar que provoca no sujeito o impulso de sair daí, de
afastar-se. Ela é esse impulso causado pelo mal-estar. No caso que
estamos analisando, esse estado de mal-estar espalha-se por todo corpo
e, logo em seguida, concentra-se mais fortemente nos lábios e na boca
da estátua.128Aí, então:
203
“Se nós imaginamos que a natureza dispõe as coisas de
modo a prever todas as necessidades de nossa estátua,
querendo comovê-la com as precauções de uma mãe,
que teme ferir seus filhos... este estado nos parecerá
talvez digno de inveja. Todavia, o que seria um homem
dessa espécie? Um animal adormecido em uma profun
da letargia. Ele existe, mas permanece como é... Incapaz
de observar os objetos que o circundam, incapaz de
observar aquilo que se passa nele mesmo, sua alma se
divide indiferentemente entre todas as percepções às
quais seus sentidos dão passagem. Semelhante de algu
ma maneira a um espelho, sem cessar ele recebe novas
imagens, e nunca conserva alguma delas" .m
204
sação viva pode distraí-la e suspender sua dor. Mas com
a inquietude o desejo aumenta; chega um momento em
que ele age com tanta violência, que só se encontra
remédio no gozo: ele se transforma em paixão" .,34
205
lista e seria melhor “inverter a fórmula de Cassirer e dizer que, em
Condillac, a vontade é causada pela representação”.145
A questão é delicada e não parece fácil tomar um partido.
Podemos arriscar uma hipótese que, talvez, reconcilie ambas as
posições. Ela consiste, basicamente, em distinguir dois níveis da
questão. Num primeiro nível, respeitando estritamente a ordem
genética (que, afinal, é a do Traité), o mal-estar e o esforço são real
mente originários. A análise do fenômeno da fome nos provou
cabalmente isso. Não existe, originalmente, um objeto representado,
na falta do qual o sujeito orientaria seu desejo e sua ação. O próprio
desejo, como vimos, é constituído através da experiência. Além do
que, essa postura coaduna-se bem melhor com a tese de Condillac
sobre o primado absoluto do prazer e da dor na constituição do dese
jo do sujeito:
206
“Eu chamo de mal-estar ou leve descontentamento o sen
timento que ela experimenta: agora a ação de suas fa
culdades e seus desejos são mais fracos” ,'47
207
Apesar de criticar Locke na leitura do fenômeno, num ponto
Condillac está de acordo com ele: a inquietude não é algo que trans
parece no decorrer do movimento do próprio sujeito nessa constante
corrida através de inumeráveis objetos que apenas satisfazem momen
taneamente seu desejo. Neste ponto Condillac também critica a con-
ceituação malebranchista, e de forma explícita:
208
A inversão da escaia é, agora, completa. Lembramo-nos de que
partimos da escala tradicional, assim estruturada:
Amor — Ódio
Desejo — Aversão
Prazer — Desprazer
Com Hobbes ela se modifica substancialmente e o par
desejo/aversão é que passa a ser originário:
Prazer — Desprazer
Desejo — Aversão
Amor — ódio
Agora, com Condillac, temos:
Prazer — Desprazer
Desejo — Aversão
Amor — Ódio
Tendo isso em mente, podemos compreender melhor o ver
dadeiro alcance e profundidade de uma afirmação do Traité que
seguramente pode passar por pretensiosa, sobretudo para aqueles que
insistem em ver em Condillac um mero discípulo, ligeiramente indis
ciplinado, de Locke:
209
ao conceito de necessidade, como vimos. Mas, no texto, não é difícil
notar que esse conceito é amplo, vago e mal definido. Ele é muito mais
apontado e referido do que propriamente definido. Lembremo-nos tam
bém, como procuramos mostrar na primeira parte deste trabalho, de que
o conceito de necessidade está sofrendo, desde particularmente a segun
da década do século XVIII uma séria mutação semântica na qual é
sobretudo alargado em demasia e ameaça mesmo ficar embaralhado. A
análise da “querela do luxo” mostra inequivocamente que esse, como
muitos outros conceitos, embora tenha passado a ser capital, necessita de
um trabalho de redefinição conceituai que o delimitasse claramente
assim como oferecesse suas bases conceituais. Mesmo num texto relati
vamente bem equilibrado como o de St.-Lambert, percebe-se a necessi
dade de se explicitar e fundamentar essa nova concepção que, na maio
ria das vezes, está meramente indicada nos textos. Trabalho árduo e
complicado que implica dar precisão a noções que estão emergindo com
um novo significado e como fundamentais. Tal é o caso da noção de
desejo, necessidade, insaciabilidade, potência do imaginário etc. Esse
trabalho teve, seguramente, seu início com T. Hobbes e terá seu acaba
mento no Traité des Sensations porque aqui, ao contrário do Essai,
adquirir-se-á uma grande precisão.
Se levarmos em conta as conceituações já explicitadas anterior
mente, o raciocínio de Condillac encadeia-se de forma cristalina, for
mando um todo coerente e harmonioso:
210
Mas, se (Operamos um recuo temporal maior, aí então, como já
apontamos, percebemos a verdadeira reviravolta operada por
Condillac. C om ele, o pressuposto central da filosofia clássica vem
abaixo. Deixasse definitivamente de se pensar na preexistência de um
bem objetivo <do qual o sujeito deve necessariamente acercar-se e aban
dona-se tam bém a tese correlata do primado do representacional sobre
o volitivo. A partir do Traité, com uma clareza talvez nunca atingida
anteriormente?, todo o domínio da vida espiritual (tanto no plano do
entendimento, como no plano da vontade) está subordinado a isso que
podemos denominar o princípio do prazer. É porque causa prazer que
o objeto é apetecível. E é por essa razão que ele será valorizado e se
tornará digno de inspeção teórica, de conhecimento:
211
não se encontram juntas no campo perceptivo e irá usufruir dessa nova
combinação. Nesse caso, o sujeito irá imaginá-las reunidas e “sua ima
ginação lhe proporcionará um gozo que não poderia obter”.159 Aqui, a
imaginação já adquire um sentido mais amplo: ela é a “faculdade que
combina as qualidades dos objetos para formar conjuntos nos quais a
natureza não oferece nenhum modelo”.160Assim, além de ter o poder de
constituir cadeias associativas autônomas com relação à cadeia percep-
tiva, como vimos, ela também possui o dom de instaurar objetos novos
através dos quais o sujeito encontra um novo campo de satisfação. O
imaginário passa, de uma certa maneira, a ser constitutivo na medida em
que tem o poder de instaurar um novo domínio.
Em segundo lugar, a estátua, por um jogo sutil, acaba por juntar à
satisfação de suas necessidades um efeito concomitante. Não só satisfaz,
por exemplo, sua necessidade de alimentar-se, ao comer um fruto, mas
acaba por sobrepor o próprio gosto, um determinado sabor, aos outros:
212
atividade o objeto do desejo, “o desejo de novas necessidades”.162 E,
essa multiplicidade virtualmente indefinida, aberta pela nova combi
natória, faz com que o campo do humano seja essa incessante atividade
de desejar cada vez mais novos objetos:
213
são práticos. O que está sendo visado pela estátua, ou meihor, o
resultado de suas operações, é a sua própria conservação. Aqui,
neste ponto, Condillac afasta-se da tradição hobbesiana na medida
em que para ele, a conservação não é um dado, um “conatus” ori
ginário, mas sim algo adquirido.165 É obedecendo à sua tendência
primária de afastar-se da dor e procurar o prazer que a estátua
aprende a se conservar. Mas essa conservação de si é um resultado e
não algo dado originariamente.
Em quarto lugar, o Traité des Sensations é a longa demonstração
de como um sujeito isolado, sem comércio com os outros e, portanto
sem linguagem, é capaz de erigir um conjunto de conhecimentos e de
práticas necessárias e suficientes para sua manutenção. Todos os atos
da estátua têm um alvo prático. Vimos, anteriormente, que o Traité
provoca uma progressiva evacuação da potência da linguagem e dos
signos. Mas isso não significa dizer que Condillac pura e simplesmente
abandonou as teses do Essai. Ele as enquadrou de maneira diferente.
Todo e qualquer passo a mais que tome possível a saída desse estado
original e que amplie sua gama de conhecimentos terá como condição
a instauração do uso dos signos e da linguagem:
214
De qualquer maneira, o Traité des Sensations mostra, de forma
inequívoca, o primado da dimensão prática sobre a dimensão teórica
no sentido em que é fundante desta última. O teórico aparece como
uma espécie de camada semântica que sobrepõe a outra mais original
que é a das ações determinadas pelas necessidades. No Traité o teóri
co subordina-se definitivamente ao prático e é na camada mais ori
ginária, das afecções mais originárias (dor/prazer), das necessidades e
dos desejos que brota um sentido original, primordial, balbuciante,
num certo sentido, mas que será determinante. A potência do signo e
da linguagem assim como sua importância são, sem dúvida, mantidas,
mas alocadas num outro nível, num que é derivado. De agora em
diante o homem é um ser essencialmente movido pelo prazer, pela
necessidade e pelo desejo.
215
NOTAS
1 Existem quatro conjuntos de textos nos quais Condillac trata o problema do luxo.
O prim eiro está no “Le Commerce et le Gouvernem ent Considérés Relativament
l’un a A utre” in Oeuvres Philosophiques de Condillac, Paris, PUF, vol. 2, cap.
XXVII, p. 308-11. Os outros três estão no Cours d ’Etudes, respectivamente: vol.
2, p. 112-5; 155-7; 167-72. A posição mais equilibrada e coerente parece-nos estar
no trecho entre as p. 155-7, no capítulo “Considérations Générales sur ce qui Fait
la Force ou la Foiblesse d ’une République”, in Cours d ’Études, VI, Hist. Mod.,
Livre IX, cap. II.
2 Por exemplo, G. Le Roy, na “Introdução a l’Oeuvre Philosophique de Condillac”, in
ed. cit. na nota anterior, p. XVII e M. dal Pra, Condillac, Milano, Bocca, 1942, p. 121.
3P or razões que ficarão claras mais à frente, não levaremos em conta o Traité des
Systèmes, que pouco tem a ver com os problemas com que estamos trabalhando.
4 Condillac, “Extrait Raisonné du Traité des Sensations”, in Oeuvres Philosophiques
de Condillac, Paris, PUF, 1947, vol. I, p. 326. Salvo menção em contrário, as refe
rências a Condillac reenviam a essa edição.
5 Ibid, p. 221.
6 J. Derrida, L’Archéologie du Frivole - Lire Condillac, Paris, Médiations, 1971, p. 62.
7 Condillac, “Essai sur l'O rigine des Connaissances Humaines”, in op. cit., vol. I, p. 3.
8 Ibid., p. 4.
9 Ibid.
10 Sobre este último ponto é bom lembrar as análises muito claras elaboradas por E.
Cassirer no seu Filosofia do lluminismo, SP, Unicamp, 1992, cap. Ill, p. 135 e seg.
11 Condillac, op. cit., p. 9.
12 Ibid., p. 10.
13 Ibid., p. 11.
14 É desenvolvendo este último ponto que Condillac vai operar uma verdadeira revira
volta nas questões que estamos tratando.
15 Condillac, op. cit., p. 13. Cf. também p. 17.
216
16 Ibid.,p. 14.
17 Ibid.,p. 22.
18 Ibid., p. 16.
19 Ibid., p. 4.
20 Ibid., p. 17.
21 Cf. texto referido na nota 19.
22 Condiüac, op. cit., p. 19.
23 Ibid., p. 4.
24 Ibid., p. 5.
25 Cf. texto referido na nota 18.
26 Condillac, op. cit., p. 21.
27 Ibid., p. 22. Os grifos são nossos.
28 Ibid., p. 19.
29 Ibid., p. 22. Cf. também p. 21 e 23.
30 Ibid., p. 47. Cf. também p. 46.
31 Cf, texto referido na nota 4 desta IV parte.
32 Condillac, “Traité des Sensations”, op. cit., vol. I, p. 221, col. b, 1.10-21.
33 A continuação do texto diz: “Eu não tinha podido afastar-me deles pelos raciocínios
de Locke sobre um cego nato, a quem se daria o sentido da visão; e sustento contra
esse filósofo que o olho julga naturalmente figuras, grandezas, situações e distân
cias: (ibid, 1.21-27).
Trata-se do problema de Molineaux e a referência é à seção sexta, da primeira parte
do “Essai”, vol. I, p. 53 e seg.
34 Condillac, “Extrait Raisonné du Traité des Sensations”, op. cit., vol. I, “Précis de la
Premtère Partie", p. 325-26. Cf. também o texto do mesmo “Extrait” na p. 324, col.
a, 1. 6-19.
35 Por exemplo:
1- G. Le Roy, La Psychologie de Condillac, Paris, 1937, p. 102.
2- M. Dal Pra Condillac, op. cit., p. 121-37.
3- R. Mondolfo, “Introducción al Tratado de las Sensaciones”, B. Aires, Eudeba,
1963, p. 5-56.
4- §. Le Roy, “Introduction à 1’Oeuvre Philosophique de Condillac", in ed. cit, p.
XVII.
36 Condillac, “Essai...”, in op. cit., vol. I, sec. I, cap. I, p. 6.
37 Diderot, Oeuvres Complètes, Paris, Brière, 1821, vol. I, p. 320-1. O texto é um
pouco longo, mas precisa ser citado: “Chamamos de idealistas estes filósofos que,
tendo consciência apenas de sua própria existência e das sensações que se sucedem
no interior deles mesmos, não admitem outra coisa; sistema extravagante que só
podia, parece-me, dever seu nascimento a cegos; sistema que, para vergonha do
espírito humano e da filosofia, é o mais difícil de se combater, se bem que seja o
mais absurdo de todos. Ele está exposto com tanta franqueza quanto claridade em
três diálogos do doutor Berkeiey, bispo de Cloyne; seria preciso convidar o autor do
Ensaio sobre nossos conhecimentos para examinar essa obra; ele encontraria ali
matéria para observações úteis, agradáveis, finas, em uma palavra, tais como ele as
sabe fazer. O idealismo merece muito ser-lhe denunciado; e essa hipótese tem com
217
o que irritá-lo, outra vez menos pela sua singularidade do que pela dificuldade de
refutá-la com seus princípios; pois estes são precisamente os mesmos que aqueles
de Berkeley. Segundo ambos, e segundo a razão, os termos essência, matéria, subs
tância, substrato etc.,por si mesmos quase não trazem luzes ao nosso espírito; aliás,
observa judiciosamente o autor do Ensaio sobre a origem dos conhecimentos
humanos, seja que nos elevemos até aos céus, seja que desçamos até os abismos,
nunca saímos de nós mesmos; e é apenas nosso próprio pensamento que apercebe
mos: ora, este é o resultado do primeiro diálogo de Berkeley, e o fundamento de
todo o seu sistema. Não teríeis curiosidade de ver lutar dois inimigos cujas armas se
assemelham tanto? Se a vitória coubesse a um dos dois, só poderia ser àquele que
delas se serviria melhor; mas o autor do Ensaio sobre a origem dos conhecimentos
humanos acaba de apresentar, em um Tratado sobre os sistemas, novas provas da
habilidade com a qual sabe manejar as suas, e cie mostrar o quanto ele é temível para
os sistemáticos”.
38 Condillac, “Carta a Maupertuis”, de 25 de junho de 1752, in op. cit., vol. II, p. 536.
Foi J. Derrida, op. cit., p. 73 e seguintes, quem nos chamou a atenção para a
importância deste texto.
39 Condillac, “Essai...”, in op. cit., vol. I, p. 4, col. b.
40 "O Ensaio (diz Derrida) é portanto do começo ao fim uma semiótica”, op. cit., p. 76.
4i “Podemos distinguir as operações da alma em duas espécies, segundo as rela
cionamos mais particularmente ao entendimento ou à vontade. O objeto deste ensaio
indica que me proponha a considerá-las apenas peta relação que elas têm com o
entendimento" (“Essai”, in op. cit., I, p. 10).
42 Cf. “Essai...”, in op. cit., vol. 1, p. 13, 17, 36, 83, 87.
43 Condillac, “Traité des Sensations", in op. cit., vol. I, p. 222, col. a.
44 Condillac, “Traité des..., ed. cit., vol. I, p. 222a.
45 Ibid.
46 Ibid., Parte I, cap. I, §§ 1 e 2, p. 224.
47 Ibid., I, 1, § 2.
48 Ibid., I, II, § 1.
49 Ibid., I, II, § 3.
50 Ibid., I, II, § 5.
51 Ibid., I, II, §§ 7 e 8.
52 Cf. texto referido na nota 18.
53 Condillac, op. cit., I, II, § 10.
54 Ibid., I, II, §§ 11 e 12.
55 Ibid., I, II, § 13.
56 Ibid., I, II, § 14.
57 Ibid., I. II, §15.
58 Ibid., I, II, 4, 20.
59 Ibid., I, II, §25.
60 Ibid., I, II, § 29.
61 Ibid.
62 Ibid., I, II, § 34.
63 Ibid., I, II, § 39.
64 Ibid., I, IV, § 1.
65 Ibid., I, IV, § 2.
218
66 Ibid., I, IV, § 3.
67 Ibid., I, IV, § 4.
68 “Foi a arte dos signos que nos ensinou a levar a luz mais longe” (op. cit., I, IV, 7).
69 Condillac, op. cit.
70 Ibid., I, IV, § 8.
71 Ibid., I, IV, § 9.
72 Ibid., I, IV, §§11-13.
73 Ibid., I, VII, § 1.
74 Ibid., II, Vffl, § 14; cf. também Extrait Raisonné, p. 327, col. a.
75 Ibid., I, VO, § 4.
76 “O número das idéias que podem vir pelo tato é infinito; pois ele compreende todas
as relações das grandezas” (op. cit., I, VHI, § 2).
77 A análise mais pertinente e detalhada de todo esse processo encontramos no livro de
M dal Pra. Condillac, op. cit., cap. VII e IX, p. 180-234.
78 Condillac, “Extrait Raisonné”, in op. cit., p. 324.
79 Ibid., p. 328.
80 Id. “Traité des Sensations”, in op. cit., vol. I, XI, § 1, p. 244.
81 Ibid., UI, III, § 6, p. 280.
82 Id. “Extrait Raisonné” (précis de la IIP parte), in op. cit., p. 332.
83 Id,, “Traité des Sensations”, in op. cit, I, XI, § 1, p. 244.
84 Ibid.. I, XI, §1, p. 244.
85 Ibid., II, VIII, § 18, p. 264.
86 Ibid., IV, V, § 1, p. 305-6.
87 Ibid.
88 Ibid.
89 Ibid., IV, VI, §§ 9-10, p. 308. A natureza disso nos é absolutamente desconhecida: “Mas
qual é a natureza desses seres? Ela (a estátua) o ignora e nós mesmos o ignoramos.
T\ido aquilo que sabemos é que nós os chamamos de corpos" (IV, V, § 2, inftné).
90 Condillac, op. cit., IV. VIII, § 1, p. 310. O grifo é nosso.
91 Cf. os textos de Condillac na nota 30 desta IV parte.
92 Numa outra carta, a Gabriel Cramer, Condillac vai na mesma linha: “É isso que faz
com que eu esteja um pouco embaraçado sobre toda essa matéria (i.e., a linguagem).
Eu até mesmo me apercebo de que disse mais do que queria dizer”, in Lettres
Inédites à G. Cramer (ed. G. Le Roy), citado por J. Derrida, op. cit., p. 95.
93 Condillac, “Traité des Sensations”, in op. cit., I, H, § 2.
94 Ibid., I, ü , § 3.
95 Ibid.
96 Ibid.
97 Ibid., I, II, § 22.
98 Ibid., I, n , § 23.
99 Ibid.
100 Ibid.
101 Ibid., I, H, § 24, início.
102 Ibid., I, II, § 24.
103 “Só existem sensações indiferentes por comparação: cada uma é em si mesma
agradável ou desagradável; sentir e não sentir bem ou mal são expressões inteira
mente contraditórias” (Condillac, “Extrait Raisonné”, in op. cit.. p. 327, col. b).
219
104 Ibid., I, II, § 5.
105 Id., “Extrait Raisonné”, in op. cit., Abertura, p. 324, col. b. Os grifos são nossos.
106 Condillac, “Traité des Sensations”, in op. cit., I, II, § 3.
107 Ibid., I, II, § 4. Os grifos são nossos.
108 Condillac, “Traité des Sensations”, in op. cit.; “Dessein de cet ouvrage”, p. 222,
col. a-b. Os grifos e os parênteses são nossos.
109 Condillac, “Extrait Raisonné”, in op. cit., p. 327, col. a. Cf. também “Traité des
Sensations”, in op. cit., IV, VIII, § 1, infine.
110 Condillac, “Traité des Sensations”, in op. cit., I, II, § 18.
111 Cf. texto referido na nota 105 desta parte e, também, “Traité des Sensations”, inop.
cit.,1, II, §§21 e 41.
112 Condillac, “Traité des Sensations”, in op. cit., I, V, § 3.
113 Ibid., IV, VIII, § 4.
114 Ibid., “Dessein de cet ouvrage”, p. 222, col. a.
115 Ibid., 1,11, §4.
116 Ibid-, I, II, § 18, infine.
117 Ibid., I, II, § 25, in fine.
118 Ibid., 1, VII, § 3: “pois sempre somos movidos pelo prazer ou pela dor".
[19 Ibid.
120 Id., “Extrait Raisonné”, in op. cit., p. 328, col. a, no início. Cf. também: “... enfim,
no prazer e na dor que acompanham todas as sensações que experimento, creio
aperceber o princípio de minha vida e de todas as minhas faculdades” (“Traité des
Sensations”, in op. cit., IV, VIII, §6).
121 Id., “Traité des Sensations”, in op. cit., I, V, §3.
122 Ibid. Os outros casos aparecem em: IV, I, §1-3 e IV, VI, §7.
123 Ibid-, II, VIII, §1.
124 O discurso de Condillac, neste ponto, como em outros, aliás, é muito semelhante
ao discurso freudiano. Inicialmente, como se sabe, Freud falava num “princípio do
desprazer” porque a tendência primária do aparelho psíquico é fugir do desprazer,
expulsá-lo, eliminá-lo. E esse ato é sentido pelo aparelho como prazeroso. O pra
zer nada mais é, para Freud, do que a evacuação do desprazer. É por isso que este
último é fundamental na estruturação do aparelho psíquico. Ele é o “grande
mestre” como denomina Freud no “Projeto” de 1895. Mais tarde Freud usará a
expressão “princípio do desprazer/prazer”, que ainda aparece na “Interpretação
dos Sonhos” . Por fim, prevalecerá a fórmula “princípio do prazer” que, sob este
ponto-de-vista, não é das mais felizes.
125 “O sentido do paladar instrui-se tão rapidamente que mal nos apercebemos de que
ele precise de aprendizado. Isso deveria ser assim, visto que ele é necessário à
nossa conservação desde os primeiros momentos de nosso nascimento” (“Traité
des Sensations”, in op. cit., III, X, §1).
126 Condillac, “Traité des Sensations”, in op. cit., III, X, § 2.
127 Ibid.
128 Ibid., III, X, § 3.
129 Ibid.
130 Ibid., III, X, § 5.
131 Ibid., IV, I, § 1.
132 Ibid.
220
133 Ibid., IV, I, § 2: “Nessa abundância a estátua forma desejos, mas neste momento ela
sempre tem com o que se satisfazer. Toda a natureza ainda parece velar por ela...”.
134 Condillac, op. ciL, IV, I, f 3.
135 É o que deixa claro o Dictionnaire des Synonymes, no verbete “necessidade”: “Por
conseguinte, designam-se por esta palavra as coisas necessárias das quais se está
privado...” (op. cit., vol. III, p. 88*9).
136 “Portanto, o desejo é a ação das mesmas faculdades que atribuímos ao entendi
mento, e que, sendo determinada em direção a um objeto pela inquietude que causa
a privação, também determina aqui a ação das faculdades do corpo” (“Extrait
Raisonné”. Précis de la première partie, ed. cit., I, p. 327). Outra definição que vai
na mesma linha: “Ora, o desejo é a própria ação dessas faculdades, quando elas se
dirigem à coisa da qual sentimos a necessidade" (“Traité des Sensations”, ed. cit.,
I, Hl, § 1, p. 232).
137 Condillac, ‘Traité des Sensations”, in op. cit., 1, III, § 3.
138 Ibid., I, m , § 9.
139 Cassirer, A Filosofia do Uuminismo, op. cit., p. 146*9.
140 Ibid., p. 148.
141 Ibid., p. 147.
142 Ibid. Tese, oa verdade, historicamente duvidosa pois, como vimos, na idade mo
derna, seu primeiro representante parece ter sido T. Hobbes.
143 J. Deprun, La Philosophie de l'inquiétude en France..., op. cit., p. 200-1.
144 F. Alquié, Le Cartésianisme de Malebranche, op. cit., p. 391-2, nota 42.
145 Ibid., p. 200.
146 Condillac, “Traité des Sensations”, in op. cit., IV, VIII, § 2.
147 Ibid,, I, III, § 2.
148 Ibid.
149 Condillac, “Extrait Raisonné”, in op. cit., p. 327. Um pouco antes lemos esta afir
mação: “Locke foi o primeiro a observar que a inquietude causada pela privação de
um objeto é o princípio de nossas determinações. Mas ele faz a inquietude nascer
do desejo, e trata-se precisamente do contrário” (p. 325).
150 Condillac, “Extrait Raisonné”, in op. cit., p. 325.
151 Cf. texto referido na nota 77 da parte II deste trabalho.
152 Condillac, “Extrait Raisonné”, in op. cit., p. 327.
153 Id., ‘Traité des Sensations”, in op. cit., I, III, § 5.
154 Ibid., “Dessein de cet ouvrage”, p. 222: os grifos são nossos.
155 Condillac, “Traité des Sensations”, in op. cit., IV, II, §7, p. 303.
156 ‘‘No decorrer da obra não se perdeu de vista esse princípio...”, (“Extrait Raisonné",
in op. cit., p. 328).
157 Condillac, ‘Traité des Sensations”, in op. cit., IV, VIU. § 4, p. 312.
158 Ibid., § 3, p. 239.
159 Ibid., II, XI, § 5, p. 271. O exemplo refere-se ao sentido do tato mas é facilmente
generalizável.
160 Ibid., H, XI, §6, p. 271.
161 Ibid., IV, I, §9, p. 301.
162 Condillac, “Traité des Animaux”, in op. cit.. H, VIII, p. 372.
163 Ibid., II, VIII, p. 372.
164 Condillac, ‘Traité des Sensations”, in op. cit., I, II, § 27, p. 229.
221
165 “Ao contrário, ao nascer nós aprendemos que somos sensíveis à dor. Portanto, o
primeiro objetivo do amor-próprio é afastar todo sentimento desagradável; e é por
aí que ele tende à conservação do indivíduo” (Condillac, “Traité des Animaux”, in
op. cit., II, VIII, p. 372).
166 Condillac, ‘Traité des Sensations”, in op. cit., II, VIII, § 35, p. 268. A edição das obras
completas de Condillac, realizada em Paris (1821-1822), e republicada pela Slaktine
Reprints, Genève, 1970, contém uma lacuna nessa passagem que torna o texto inin
teligível. Cf. Tomo III, p. 172-3. Com relação ao problema aqui tratado, o leitor pode
ainda se reportar à abertura da quarta parte do “Traité des Sensations” onde Condillac
retoma mais uma vez as teses expostas neste cap. VIII da segunda parte.
167 Condillac, op. cit., IV, IX, § 2, p. 314.
222
CONCLUSÃO
224
caso, um exemplo característico é Cabanis.8 Na biologia propriamente
dita ela aparece sobretudo em Lamarck9 e Bichat.10
Por último, não se pode negar também a influência dessas teorias
sobre o discurso econômico, pelo menos em algumas de suas ramifi
cações. Quase toda corrente que conhecemos pelo nome de “psicolo-
gista” nesse terreno — da qual Condillac foi sem dúvida um represen
tante — parte das noções de necessidade e satisfação para construir o
conceito de valor.“
Enfim, existe um interessante e longo trajeto a ser seguido nessa
linha, que provavelmente seria muito frutífero para se investigar a
constituição, o assentamento e as influências recíprocas nesse campo.12
E, para falar com honestidade, só depois de investigados esses diferen
tes “filões”, poder-se-ia talvez pensar em alguma conclusão. Antes, e
acima de tudo, cultivemos a paciência e a prudência.
225
NOTAS
226
8 Cabanis, Oeuvres Philosophiqu.es de Cabanis, Paris, PUF, 1956, vol. I, p. 190 e seg.
ev o l. II, p. 131-52.
9 Lamarck, “Phiiosophie Zoologique” in Historiae Naturalis Classica, Tomus X,
Reprinted by Engelman and W heldom e Wesley, Germany, 1960, vol. II, p. 283 e
320-6.
10 O caso de Bichat é interessante porque, como que assustado com as conseqüências
morais do princípio da necessária diversificação dos prazeres, detém-se um pouco
abruptamente. O texto merece ser citado: “Portanto, é da natureza do prazer e da dor
destruir-se por si mesmos, cessar de ser porque foram. A arte de prolongar a duração
de nossos gozos consiste em variar suas causas. Eu quase diria, se só considerasse
as leis de nossa organização material, que a constância é um sonho feliz dos poetas;
que a felicidade que nos cativa teria poucos direitos às nossas homenagens se as
atrações fossem muito uniformes; que se a figura de todas as mulheres fosse lança
da no mesmo molde, este molde seria o túmuio do amor etc. Mas guardemo-nos de
empregar os princípios da física para revirar aqueles da moral...” (in Recherches
Physiologiques sur la Vie et la Mort, Paris, Marabout, 1973, p. 41).
11 Não é por acaso que um autor como J. Urban, que segue essa linha de interpretação,
vai constantemente buscar nos discípulos desses autores do século XVIII suas
fontes de inspiração. Cf. L'Épithymologie, Paris, F. Alcan, 1939.
12 Isso para não falar em trabalhos já solidamente elaborados, como é o caso do texto
de Halévy: La Formation du Radicalisme Philosophique (Paris, Alcan, 1901-4),
onde a influência de Condillac e Helvétius é apontada, com todo rigor, na formação
da escola utilitária.
227
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D esejo e P ra z er na Id a d e M o d ern a é, segu ndo
o autor, fruto de um a su speita. A p ós e x a m in a r a
ob ra de S a d e , M onzani le van ta a h ipótese de
que e sse a u to r ta lvez se ja o a c ab am en to de um
m ovim ento de id éias que se inicia no século
XVII. A o invés d e ser um a "e x c e ç ã o m onstruo
s a " , a o b ra do M arqu ês seria a e x p lic ita çã o de
certas m atrizes conceituais q ue se e lab o ra ra m
lenta m as in e x oravelm en te na ép o ca m o dern a.
P a ra isso , o auto r ra stre ia no interior d a his
tória m oderna um filã o que p artin do d e H obbes
c h eg a a té Condillac e q ue foi re sp o n sá ve l pelo
nascim ento e constituição de um a n ova a n trop o
lo g ia .
Partindo d a a n á lise d a "q u e re la d o lu xo ",
M onzani procura ra stre a r o s elem en tos constitu
intes d e s sa a n trop olo gia.
Em e ssên c ia , e ss a n ova v is ã o con fere um p ri
m ad o d a vo n ta d e so b re a ra z ã o , d o prático s o
bre o teórico e se alicerça nos conceitos d e im a
g in ário , d e sejo e p razer. S e rã o e ss e s elem entos
q ue o rien ta rã o um a n ova leitura e um a nova
p erce p çã o d o homem.