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Um exercício d’olhar: aproximações entre Georges Seurat e Piero della Francesca

“O mundo é o que percebo, mas sua proximidade


absoluta, desde que examinada e expressa, transforma-
se também, inexplicavelmente, em distância
irremediável.”
Maurice Merleau-Ponty, em O visível e o invisível

Carlos H. dos S. Fernandes

Resumo: Partindo da confluência, bem como da divergência das observações dos


historiadores da arte Horst Waldemar Janson (1913-1982) e Giulio Carlo Argan (1909-1992)
acerca da pintura neoimpressionista Un dimanche après-midi à l’Île de la Grande Jatte
(1884/86) de Georges-Pierre Seurat (1859-1891), tentaremos desenvolver alguns encontros
entre este pintor francês e o pintor italiano quatrocentista Piero della Francesca (1415-1492);
encontros possíveis graças também às considerações suscitadas pelo historiador da arte Ernst
Hans Josef Gombrich (1909-2001), em História da Arte, promovendo, assim, um diálogo em
três níveis: entre os pintores, os historiadores da arte e, mais modestamente, as artes,
especialmente a pintura, o teatro e a música. Nossa intenção principal é mostrar, de maneira
bastante sumarizada nestas poucas páginas, que tanto a historiografia da arte se enriquece
com esses entrecruzamentos, quanto a percepção visual – sobretudo servindo-se
frequentemente da imaginação – revela-se antes uma construção, uma invenção intelectual do
que “pura” visão daquilo que é figurado, o qual, fazendo nossa a tese do filósofo francês
Maurice Merleau-Ponty (1908-1961), permanece como um enigma.

Palavras-chave: Percepção. Geometria. Georges-Pierre Seurat. Piero della Francesca.

Analisando a monumental tela Un dimanche après-midi à l’Île de la Grande Jatte


(1884/86), com 207x308cm, ou seja, mais de 6 metros quadrados, o historiador estadunidense
Horst W. Janson a certa altura escreve: “[...] o contorno firme e simples e as figuras imóveis e
relaxadas conferem à cena uma estabilidade intemporal que lembra Piero della Francesca."
(JANSON, 1993, p. 344). Seguindo aparentemente de perto esta análise pictórica,
personagens como “manequins geometrizados”, luz e forma “regulares e geométricas”, o
historiador italiano Giulio C. Argan (2006, p. 118) observa sobre o mesmo quadro o seguinte:
“Por um motivo não essencialmente diverso - forma absoluta numa luz absoluta -, a forma de
Piero della Francesca era geométrica”. Contudo, logo na sequência do texto, o historiador
italiano ressalta uma diferença crucial entre ambos os pintores, no tocante não à forma ou à
luz, mas, sim, ao tratamento do espaço: “[...] o espaço [em Seurat] não é definido por uma
perspectiva euclidiana: não sendo um vazio, e sim uma massa de luz, ele tende a se expandir,
a apresentar-se como um globo de substância atomizada e vibrante.” (ARGAN, 2006, p. 118).
Ora, temos aqui ao menos duas questões a serem discutidas inicialmente: a associação
geométrica entre o renascentista e o neoimpressionista e a inovação espacial trazida por este
último.

A título de comparação, tomemos uma obra de cada artista e vejamos como a


geometrização pode nelas ser observada.

No afresco1 Sogno di Costantino (1458/66) (ver Figura 1), de Piero della Francesca,
que ilustra a revelação da cruz em sonho por um anjo ao imperador Constantino, enquanto
este dorme ladeado por um companheiro e mais dois soldados num acampamento, podemos
notar a forma estática e hierática das personagens, dispostas de maneira rígida, assim como o
espaço em perspectiva euclidiana, tendo, no primeiro plano, os soldados em pé, em
movimento complementar, um de frente e outro de costas, no segundo plano, o companheiro
vigilante sentado, cujo olhar se dirige para o espectador da cena, velando o sono do
imperador e, por sua vez, no terceiro plano, deitado em sono profundo, o próprio imperador
Constantino, numa região mais iluminada pela vinda, do alto, do anjo trazendo em sua mão o
símbolo da cruz, num céu azul de estrelas.

Poderíamos ainda destacar formas geométricas mais evidentes, como o formato


cônico do teto das cabanas, bem como da cabana principal e de sua entrada, além de um
cilindro em seu centro. Mas o mais curioso, que Seurat talvez apreciasse – imaginamos – nos
parece ser o tratamento dado à vestimenta, especialmente a um acessório caro para o nosso
neoimpressionista, como ainda teremos a oportunidade de ver mais adiante, qual seja, o
chapéu. Aqui, neste afresco de Piero della Francesca, todas as figuras humanas possuem um
acessório na cabeça, pois enquanto o vigia e o imperador parecem usar uma espécie de
turbante cilíndrico branco, ambos os soldados levam à cabeça capacetes esféricos.

1 Um afresco geralmente se refere a uma obra pictórica realizada sobre um muro, parede ou teto,
cuja base é feita de gesso ou nata de cal úmida. No caso deste afresco específico, que compõe o
ciclo de afrescos A lenda da cruz, Piero della Francesca o pintou em uma parede da Basílica de São
Francisco de Assis, em Arezzo, Itália.
Figura 1: Sogno di Costantino [Sonho de Constantino] (1458-1466)

Fonte: Wikimedia
E comecemos nossa análise de Un dimanche après-midi à l’Île de la Grande Jatte
(1884/86) (ver a Figura 2), de Georges-Pierre Seurat, pelo universo dos chapéus. Nestes
encontramos toda sorte de formas geométricas, ovais, cônicos, cilíndricos, e quase todas as
figuras humanas os portam. Destaquemos, por exemplo, a boina esportiva do homem semi
deitado, fumando seu charuto, o quepe do instrumentista em pé, ou mesmo os dois grandes
chapéus dos guardas nacionais uniformizados ao fundo, além das sóbrias cartolas pretas
masculinas e dos chapéus de verão, levando em geral uma flor, nas figuras femininas. Sem
contar as sombrinhas, inúmeras, em formato de semicírculos, bem como as bengalas, leques e
livros repousados na grama.

Figura 2: Un dimanche après-midi à l’Île de la Grande Jatte [Um domingo à tarde na Ilha
Grande Jatte (1884/86)

Fonte: Wikimedia

Assim como no afresco de Piero della Francesca, as personagens de Seurat parecem


seres petrificadas, cristalizadas, solidificadas. Para Argan, a cena no parque suscita a ideia de
peças de um jogo de xadrez: “Os personagens são manequins geometrizados, colocados na
aléia gramada como peões sobre um tabuleiro de xadrez, em intervalos num ritmo calculado
quase matematicamente, segundo a lei da proporção áurea.” (ARGAN, 2006, p. 118). No
centro calculado do quadro está uma mulher com sombrinha, segurando uma menina pela
mão e por todos os lados vemos uma disposição de linhas verticais e horizontais, como as
figuras humanas erguidas ou deitadas e as árvores.

Com esta associação geométrica entre os dois pintores, verificamos um verdadeiro


salto histórico de mais de 400 anos, do renascimento para o neoimpressionismo, num resgate
– se assim pudéssemos dizer – talvez muito pouco consciente por parte de Seurat das formas
geométricas de Piero della Francesca, assim como uma premonição inesperada quer do
cubismo quer do abstracionismo por parte deste último, que, no entanto, ele virtualmente
contribuiu. Fenômenos afirmativos de uma concepção anacrônica 2 acerca da história da arte?
Talvez possamos dizer que sim, visto que testemunham contra qualquer suposta e ingênua
visão linear, progressiva ou evolutiva desta história. Neste ponto, ainda, seria válido nos
lembrarmos de uma passagem de Gombrich a respeito da invenção da perspectiva e do estudo
da natureza pelos grandes mestres renascentistas, marcando a diferença entre arte e ciência,
passagem na qual o historiador da arte nos adverte o seguinte:
Mas não devemos esquecer que a arte é inteiramente diferente da ciência.
Os meios do artista, seus recursos técnicos, podem ser desenvolvidos, mas
dificilmente se poderá afirmar que a arte progride do mesmo modo que a
ciência avança. (GOMBRICH, 1993, p. 181)

Todavia, para além dessa aproximação geométrica, apoiando-nos nas sugestões de


Gombrich, especialmente sobre Piero della Francesca – e que nos sentimos aqui autorizados a
estendê-las livremente também a Georges Seurat –, podemos notar em ambos a presença
tanto de uma teatralidade quanto de uma musicalidade. Senão retomemos as obras há pouco
analisadas.

De acordo com Gombrich, olhando para o afresco de Piero della Francesca, podemos
observar um palco iluminado no qual se desenrola a cena principal: “Existe um palco
nitidamente marcado e nada distrai a nossa atenção da ação essencial.” (GOMBRICH, 1993,
p. 180). Como em Mantegna, compara Gombrich, a disposição das personagens no afresco é
bastante teatral. Não poderíamos dizer o mesmo das personagens sólidas de Seurat? Assim,
imaginamos o verde gramado metamorfoseando-se em palco, em um grande e monumental
palco de teatro, com luz e sombra, no qual, organizados de maneira meticulosa por este
“talentoso diretor teatral” que fora Seurat, as figuras se dispõem numa típica tarde de

2 Para uma compreensão sobre uma história anacrônica das imagens poderíamos citar os trabalhos
atuais do historiador da arte francês Georges Didi-Huberman que, em íntima relação com a “Escola
de Warburg” e com a psicanálise freudiana, nos daria bastante a pensar nesse sentido, o que, no
entanto, demandaria muito mais do que nos propusemos aqui inicialmente com a trinca Janson,
Argan, Gombrich.
domingo de verão. Se nos atentarmos aos gestos, às ações – diferentemente da ação essencial
do afresco do pintor italiano – pulverizadas em sua pintura: indo do instrumentista tocando
uma corneta, da menina correndo de braços abertos e levando na mão esquerda quiçá um
cesto, passando pelo grave cavaleiro em pé segurando entre os dedos um charuto, na moça
sentada segurando um punhado de flores, da senhora com uma vara a pescar, até ao senhor
acostado empunhando curiosamente sua pipe etc.

Acreditando no enriquecimento em nossa análise aproximativa, que o diálogo entre as


artes, no caso entre a pintura e o teatro, nos possibilitou até aqui ir mais além da
geometrização apontada inicialmente por Janson e Argan, com a ajuda de Gombrich,
poderíamos ainda acrescentar a relação destas duas obras pictóricas com a música.

No afresco, como em uma peça musical, encontramos nos dois soldados em pé um


movimento e um contramovimento, um de frente e o outro de costas, ponto e contraponto,
como ocorre também entre a luz no centro da pintura emanada como um raio do anjo até
Constantino e a sombra em que permanecem os soldados no primeiro plano; bem como no
tratamento dado às cores primárias – vermelho, amarelo e azul – e ao branco na composição:
a troca melódica e luminosa, por exemplo, entre as cores presentes na vestimenta do vigia
sentado e o panejamento do leito do imperador.

Os pontos na pintura de Georges Seurat, por sua vez, assemelham-se às notas


silenciosas de uma extensa composição musical. Os tons sem brilho dão equilíbrio a peça e,
como vimos no afresco de Piero della Francesca, aqui também podemos encontrar
correspondências como nos pontos verdes do gramado no primeiro plano com os das copas
das árvores, cujo centro horizontalizado é ultrapassado pela luz; ou ainda, neste ponto, os
tons azuis das vestimentas da direita com os azuis do rio Sena e do céu da esquerda do
quadro. E com a força da imaginação podemos imaginar cada par ou grupo de pessoas como
frases de uma partitura que passamos a escutar uma a uma e de uma só vez com o nosso
olhar, pois, afinal, se uma partitura, em si matematicamente estabelecida, só toma movimento
quando tocada pelo artista, assim também a pintura, somente ao ser visada ela enche-se
plenamente de vida a vibrar por todos os nossos sentidos.

Dissemos no começo de nosso texto que as passagens citadas de Janson e Argan nos
propunham duas questões. A primeira sobre a geometrização já discutimos longamente até
aqui, propondo, inclusive, outras relações, restando-nos, portanto, desbravar a segunda, a
saber, o “novo espaço” criado por Seurat. Para o historiador italiano Argan, na pintura de
Seurat, embora a forma e a luz sejam geometrizadas, o tratamento dado ao espaço é novo.
Nas palavras do próprio autor: “Não é, portanto, um retorno à geometria do espaço
perspectivo e à concretude física das coisas; o espaço que Seurat reduz à lógica geométrica é
o espaço empírico dos impressionistas, que assim é transformado em espaço teórico.”
(ARGAN, 2006, p. 118).

Assim sendo, Seurat teria traduzido teoricamente para seu pincel o espaço en plein-
air dos impressionistas. Isto é, se os impressionistas, na recusa declarada das “regras de
ateliê” (como a perspectiva, por exemplo), partem então para o ar livre, para a imediatidade
das sensações, Seurat retornará para o “ateliê”, para o seu estúdio, contrariando talvez mais
de um impressionista, mas agora munido de uma “nova ciência” (que Argan, mais a frente
em seu texto, denomina antes de ideologia da “mentalidade científico-tecnológica do homem
moderno” do que ciência). É o que podemos notar na sua íntima relação com os estudos
teóricos a respeito da visão de que compartilhava lendo obras sobre a percepção visual e os
efeitos psicológicos no espectador, e pondo essas teorias em prática na sua técnica pictural.

E, no entanto, o que Seurat pinta, apesar de mais próximo de uma suposta intenção de
realidade, que em Piero della Francesca com todo seu trabalho em perspectiva jamais
alcançaria, sendo seu tema uma lenda, como vimos – repetimos – em Seurat mesmo esse
contato mais próximo com a realidade – sem anjo algum – não é capaz de alcançá-la,
resultando numa percepção geometrizada, inventada, imaginada; é que, como em Piero della
Francesca, mutatis mutandis, sua percepção visual é também uma construção, no caso uma
construção altamente “racional da visão” (ARGAN, 2006, p. 122).

Como diz Merleau-Ponty3, na epígrafe que escolhemos para o nosso texto e com a
qual gostaríamos de encerrá-lo, mesmo quando tentamos compreender o mundo percebido o
mais perto possível, com “ferramentas” científicas as “mais potentes”, como em Seurat, ele, o
mundo, nos parece ainda mais distante de nossa decifração, como se estivesse sempre a fugir,
como se a “objetividade” do percebido, sua “completa” e “verdadeira” apreensão,
permanece-se para o artista (e para nós também) um exercício sempre a ser recomeçado de
maneira diferente, como se, enfim, a realidade estivesse “sempre mais longe” do que

3 Nossa escolha por Merleau-Ponty não é aleatória. O filósofo fenomenólogo francê tornou-se
célebre com suas investigações sua a percepção e, apesar de não citarmos, fomos movidos em
nossa leitura, além da obra inacabada O visível e o invisível, esta sim citada, por outros dois
pequenos textos de estética do autor: O olho e o espírito (1963) e A dúvida de Cézanne (1965).
conseguimos capturar, mantendo-se o figurado, a coisa percebida, muito antes de Piero della
Francesca e mesmo depois de Seurat, ainda hoje um eterno enigma.

Referências Bibliográficas

ARGAN, Giulio Carlo. Capítulo Dois: A realidade e a consciência In: Arte Moderna. São
Paulo: Companhia das Letras, 2006.

GOMBRICH, Ernst Hans Josef. 13. Tradição e Inovação: I; 24. A Ruptura na Tradição; 26.
Em busca de novos padrões: o final do século XIX In: História da Arte. Rio de Janeiro:
Editora Guanabara, 1993.

JANSON, Horts Waldemar. Capítulo 2: O realismo e o impressionismo In: História Geral


da Arte. São Paulo: Martins Fontes, 1993.

MERLEAU-PONTY, Maurice. O visível e o invisível.

Fontes Imagéticas

Figura 1: Sogno di Costantino (1458-1466). Disponível em:


https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/6/67/Piero_della_francesca
%2C_cappella_bacci%2C_1452-69_circa%2C_sogno_di_costantino_01.jpg Acesso em:
04/10/2021.

Figura 2: Un dimanche après-midi à l’Île de la Grande Jatte (1884/86). Disponível em:


https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/6/67/A_Sunday_on_La_Grande_Jatte
%2C_Georges_Seurat%2C_1884.png Acesso em: 05/10/2021.

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