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No afresco1 Sogno di Costantino (1458/66) (ver Figura 1), de Piero della Francesca,
que ilustra a revelação da cruz em sonho por um anjo ao imperador Constantino, enquanto
este dorme ladeado por um companheiro e mais dois soldados num acampamento, podemos
notar a forma estática e hierática das personagens, dispostas de maneira rígida, assim como o
espaço em perspectiva euclidiana, tendo, no primeiro plano, os soldados em pé, em
movimento complementar, um de frente e outro de costas, no segundo plano, o companheiro
vigilante sentado, cujo olhar se dirige para o espectador da cena, velando o sono do
imperador e, por sua vez, no terceiro plano, deitado em sono profundo, o próprio imperador
Constantino, numa região mais iluminada pela vinda, do alto, do anjo trazendo em sua mão o
símbolo da cruz, num céu azul de estrelas.
1 Um afresco geralmente se refere a uma obra pictórica realizada sobre um muro, parede ou teto,
cuja base é feita de gesso ou nata de cal úmida. No caso deste afresco específico, que compõe o
ciclo de afrescos A lenda da cruz, Piero della Francesca o pintou em uma parede da Basílica de São
Francisco de Assis, em Arezzo, Itália.
Figura 1: Sogno di Costantino [Sonho de Constantino] (1458-1466)
Fonte: Wikimedia
E comecemos nossa análise de Un dimanche après-midi à l’Île de la Grande Jatte
(1884/86) (ver a Figura 2), de Georges-Pierre Seurat, pelo universo dos chapéus. Nestes
encontramos toda sorte de formas geométricas, ovais, cônicos, cilíndricos, e quase todas as
figuras humanas os portam. Destaquemos, por exemplo, a boina esportiva do homem semi
deitado, fumando seu charuto, o quepe do instrumentista em pé, ou mesmo os dois grandes
chapéus dos guardas nacionais uniformizados ao fundo, além das sóbrias cartolas pretas
masculinas e dos chapéus de verão, levando em geral uma flor, nas figuras femininas. Sem
contar as sombrinhas, inúmeras, em formato de semicírculos, bem como as bengalas, leques e
livros repousados na grama.
Figura 2: Un dimanche après-midi à l’Île de la Grande Jatte [Um domingo à tarde na Ilha
Grande Jatte (1884/86)
Fonte: Wikimedia
De acordo com Gombrich, olhando para o afresco de Piero della Francesca, podemos
observar um palco iluminado no qual se desenrola a cena principal: “Existe um palco
nitidamente marcado e nada distrai a nossa atenção da ação essencial.” (GOMBRICH, 1993,
p. 180). Como em Mantegna, compara Gombrich, a disposição das personagens no afresco é
bastante teatral. Não poderíamos dizer o mesmo das personagens sólidas de Seurat? Assim,
imaginamos o verde gramado metamorfoseando-se em palco, em um grande e monumental
palco de teatro, com luz e sombra, no qual, organizados de maneira meticulosa por este
“talentoso diretor teatral” que fora Seurat, as figuras se dispõem numa típica tarde de
2 Para uma compreensão sobre uma história anacrônica das imagens poderíamos citar os trabalhos
atuais do historiador da arte francês Georges Didi-Huberman que, em íntima relação com a “Escola
de Warburg” e com a psicanálise freudiana, nos daria bastante a pensar nesse sentido, o que, no
entanto, demandaria muito mais do que nos propusemos aqui inicialmente com a trinca Janson,
Argan, Gombrich.
domingo de verão. Se nos atentarmos aos gestos, às ações – diferentemente da ação essencial
do afresco do pintor italiano – pulverizadas em sua pintura: indo do instrumentista tocando
uma corneta, da menina correndo de braços abertos e levando na mão esquerda quiçá um
cesto, passando pelo grave cavaleiro em pé segurando entre os dedos um charuto, na moça
sentada segurando um punhado de flores, da senhora com uma vara a pescar, até ao senhor
acostado empunhando curiosamente sua pipe etc.
Dissemos no começo de nosso texto que as passagens citadas de Janson e Argan nos
propunham duas questões. A primeira sobre a geometrização já discutimos longamente até
aqui, propondo, inclusive, outras relações, restando-nos, portanto, desbravar a segunda, a
saber, o “novo espaço” criado por Seurat. Para o historiador italiano Argan, na pintura de
Seurat, embora a forma e a luz sejam geometrizadas, o tratamento dado ao espaço é novo.
Nas palavras do próprio autor: “Não é, portanto, um retorno à geometria do espaço
perspectivo e à concretude física das coisas; o espaço que Seurat reduz à lógica geométrica é
o espaço empírico dos impressionistas, que assim é transformado em espaço teórico.”
(ARGAN, 2006, p. 118).
Assim sendo, Seurat teria traduzido teoricamente para seu pincel o espaço en plein-
air dos impressionistas. Isto é, se os impressionistas, na recusa declarada das “regras de
ateliê” (como a perspectiva, por exemplo), partem então para o ar livre, para a imediatidade
das sensações, Seurat retornará para o “ateliê”, para o seu estúdio, contrariando talvez mais
de um impressionista, mas agora munido de uma “nova ciência” (que Argan, mais a frente
em seu texto, denomina antes de ideologia da “mentalidade científico-tecnológica do homem
moderno” do que ciência). É o que podemos notar na sua íntima relação com os estudos
teóricos a respeito da visão de que compartilhava lendo obras sobre a percepção visual e os
efeitos psicológicos no espectador, e pondo essas teorias em prática na sua técnica pictural.
E, no entanto, o que Seurat pinta, apesar de mais próximo de uma suposta intenção de
realidade, que em Piero della Francesca com todo seu trabalho em perspectiva jamais
alcançaria, sendo seu tema uma lenda, como vimos – repetimos – em Seurat mesmo esse
contato mais próximo com a realidade – sem anjo algum – não é capaz de alcançá-la,
resultando numa percepção geometrizada, inventada, imaginada; é que, como em Piero della
Francesca, mutatis mutandis, sua percepção visual é também uma construção, no caso uma
construção altamente “racional da visão” (ARGAN, 2006, p. 122).
Como diz Merleau-Ponty3, na epígrafe que escolhemos para o nosso texto e com a
qual gostaríamos de encerrá-lo, mesmo quando tentamos compreender o mundo percebido o
mais perto possível, com “ferramentas” científicas as “mais potentes”, como em Seurat, ele, o
mundo, nos parece ainda mais distante de nossa decifração, como se estivesse sempre a fugir,
como se a “objetividade” do percebido, sua “completa” e “verdadeira” apreensão,
permanece-se para o artista (e para nós também) um exercício sempre a ser recomeçado de
maneira diferente, como se, enfim, a realidade estivesse “sempre mais longe” do que
3 Nossa escolha por Merleau-Ponty não é aleatória. O filósofo fenomenólogo francê tornou-se
célebre com suas investigações sua a percepção e, apesar de não citarmos, fomos movidos em
nossa leitura, além da obra inacabada O visível e o invisível, esta sim citada, por outros dois
pequenos textos de estética do autor: O olho e o espírito (1963) e A dúvida de Cézanne (1965).
conseguimos capturar, mantendo-se o figurado, a coisa percebida, muito antes de Piero della
Francesca e mesmo depois de Seurat, ainda hoje um eterno enigma.
Referências Bibliográficas
ARGAN, Giulio Carlo. Capítulo Dois: A realidade e a consciência In: Arte Moderna. São
Paulo: Companhia das Letras, 2006.
GOMBRICH, Ernst Hans Josef. 13. Tradição e Inovação: I; 24. A Ruptura na Tradição; 26.
Em busca de novos padrões: o final do século XIX In: História da Arte. Rio de Janeiro:
Editora Guanabara, 1993.
Fontes Imagéticas