Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Artigo do Psicanalista Dr. Daniel Kupermann para a Revista Cult (Edição 2015)
Tudo indica que Freud, longe do front, temendo a morte dos filhos que lutavam
nas trincheiras e vivendo uma situação desfavorável nas condições de trabalho e bastante
ameaçadora em relação às perspectivas de futuro, dedicara-se, durante e imediatamente
após a Primeira Guerra, à especulação acerca das tendências destrutivas inerentes à
condição humana. Porém, se a guerra é, efetivamente, uma vicissitude possível – talvez até
provável – da civilização, a hipótese metapsicológica da pulsão de morte não contribui
especialmente para a compreensão do contexto histórico-cultural da sua produção.
Desse modo, a psicanálise dos anos 1920 apostava suas fichas na concepção
de trauma intrapsíquico, afastando-se cada vez mais das concepções relacionais de
traumatismo, para as quais, dentre as condições consideradas necessárias para a
simbolização dos excessos e para elaboração psíquica das feridas sofridas, está a presença
sensível do semelhante.
A desautorização traumatizante
Uma cena do filme A vida é bela, dirigido no final dos anos 1990 por Roberto
Benigni, me permite ilustrar, pelo avesso, do que se trata a confusão de línguas traumática. O
cenário é o interior de um pavilhão-dormitório de um campo de concentração. Nele estão os
recém-chegados, perplexos com a sua nova e inusitada realidade. Um oficial nazista entra e
começa a bradar as “regras” que regerão o cotidiano dos prisioneiros; entre eles há uma
criança italiana, um menino pequeno, como todos, muito assustado, que não entende alemão.
Seu pai, interpretado pelo próprio Benigni, decide então “traduzir” as palavras de ordem que
ecoam pelo local como se fossem as regras de uma brincadeira que teria início logo mais,
mantendo, porém, o tom elevado e o ritmo entrecortado da fala do soldado, o que cria um
efeito tragicômico pelo absurdo da tentativa de conciliar a forma militarizada do discurso com
um conteúdo lúdico-infantil. A tentativa – fictícia, evidentemente – seria a de poupar o menino
do sofrimento por meio da inversão da linguagem da paixão em linguagem da ternura,
constituindo uma espécie de proteção antitraumatizante. O recurso ao cômico nos parecer
ser, longe de uma ofensa ao sofrimento das vítimas, como alguns argumentaram na época,
uma manobra estilística de Benigni para expressar, em um contexto de desgaste do público
com as imagens tradicionais representativas do universo concentracionário, o insuportável
dos horrores impingidos à humanidade durante a Segunda Guerra Mundial. Ao mesmo tempo,
ainda que não fosse a intenção do diretor, denunciavam-se, abolindo-se radicalmente as
fronteiras entre o trágico e o cômico, os limites possíveis do testemunho. O espectador ri
constrangido com a evocação de uma situação de horror incapaz de ser, efetivamente,
transmitida pelos meios linguageiros encontrados, até então, a sua disposição.
Phármakon
Em contrapartida, sabe-se que abrir uma ferida – mesmo acreditando que esse
seja o caminho da cura – arrisca sempre desestabilizar um tênue equilíbrio, obtido muitas
vezes por meio do emprego de todas as forças das quais o sujeito dispõe no seu íntimo.
Nesse caso, a prudência indica que não convém menosprezar o fato de que, em muitas
situações, o testemunho pode ter o efeito contrário do pretendido, e nos convida a recordar
Roland Barthes: obrigar a dizer pode ser tão violento quanto forçar a calar.