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GINSBURG, Carlo. De Warburg a E. H. Gombrich: notas de um problema de método. In: Mitos,
emblemas e sinais, Morfologia e História. São Paulo, Cia das Letras, 1989, pg 41 a 93.
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Num ensaio intitulado Além do exotismo: Picasso e Warburg, o autor volta a destacar as
características metodológicas de Warburg. In: GINSBURG, Carlo. Relações de força. História,
retórica, prova. S.P., Cia das Letras, 2002, pg 118 a 136
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fisiognomônico. Crítico de Arnold Hauser, também não reconhece o artista como mero
espelho onde se refletem as injunções materiais e nem mesmo, à maneira de Hegel, as
injunções espirituais do tempo. Desconfiando da análise iconológica, Gombrich salienta o
lugar da tradição na história da arte, considerando como tarefa desta disciplina a
reconstrução dos vínculos que unem ou contrapõem as obras de arte, sendo que as
mesmas só possuem sua forma modificada quando ocorre a mudança de sua função. Em
clave aproximada de Adolf Arheim, que considera na obra de arte as mudanças de atitude
em relação à vida, toma a história da arte como uma história das concepções do mundo,
enquanto toca no problema dos estilos ao abordar o papel da tradição. Recorrendo a uma
postura mental mais aguçada e sensível, procura desvios e modificações para ver e ouvir
uma coisa em vez de outra, refletindo que é o estilo que determina um certo horizonte de
atitudes e expectativas acerca das imagens figurativas.
Ainda no plano da história da história da arte, analisando os usos da herança
warburguiana, Ginzburg lembra Gertrud Bing (1892-1964), assistente de Warburg e
apresentadora dos seus textos para a edição italiana intitulada La Rinascita. Salientando
naquele estudioso alemão uma aversão aos clichês e uma ausência de reservas à
reconstituição histórica, a historiadora frisou seu esforço para compreender os elos entre
gosto e mentalidade, derivando a partir da filiação e das preocupações de Burckardt uma
relação entre a obra de arte e o quadro da época. Para Ginzburg é precisamente aí que
reside a história da imagem do ponto de vista da teoria da cultura, ponto sobre o qual
insidem as reflexões de seu ensaio e que serve como referência para legitimar seus
próprios pressupostos teórico-metodológicos, particularmente no que diz respeito à
escolha e manuseio das fontes documentais, bem como a importância destas para o
estudo da história cultural.
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DIDI-HUBERMAN, Georges. L’image survivante, histoire de l’art et temps de fantoms Selon
Aby Warburg. Paris, Les Éditions de Minuit, 2002.
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narrativa histórica. Das cópias romanas da estatutária grega à imitação dos originais
antigos, Winkelmann discutiria um percurso de origem, auge e decadência artística,
assinalando uma travessia das imagens no tempo, impulsionadas pelo paradoxo da
imitação renascente. Ponto que o filósofo francês aponta como sendo uma espécie de
symptome/fantôme na história da arte uma vez que, pela imitação de ideal, a intensidade
do ausente se faz presente.
Como estratégia para apresentar melhor o protagonista de seu texto, o autor
francês salienta que, ao estudar os índios do Novo México, Warburg produziu uma
espécie de incorporação do estrangeiro, tomando-a como base diferencial e comparativa
para compreender os fenômenos culturais e buscando aquilo que sobrevive na forma de
sedimentações parciais, cujos traços gerais, destruídos pelo tempo, só permanecem em
certos detalhes capazes de produzir uma potência mítico-poética reveladora de
significantes culturais. Salientando aquilo que reaparece de longe a enunciar uma
realidade quanto à origem, trata-se de algo que nem se pode reconhecer claramente e
nem se consegue esquecer.
É aqui que o autor de L’image survivante destaca o conceito warburguiano de
Nachleben, reconhecendo nas imagens da arte elementos iluminadores de sintomas
culturais, onde o anacrônico se impõe como sobrevivência, caracterizando-a como
permanência ou arquétipo não do mais e sim do menos adaptado. Voltando-se para o
inacabado ou inapto como aquilo que persiste oriundo de um passado não resolvido,
Warburg teria tomado de empréstimo uma teoria de cultura advinda do romantismo de
Thomas Carlyle, explorando a noção de fósseis viventes.
Lembrando que no século XIX a renascença tornou-se foco das polêmicas sobre o
estatuto dos estilos e dos discursos históricos e colocando Warburg em diálogo com
Burckardt, Didi-Huberman avista em ambos a recusa de uma síntese hegeliana para
chegar ao momento do saber conclusivo e absoluto; razão pela qual teriam visto a
antiguidade como uma espécie de estrondo, capaz de produzir um grande movimento de
terreno que não teria cessado de ressoar através da massa de conhecimentos históricos.
Mas, segundo o historiador-filósofo francês, Warburg foi perfeitamente capaz de avistar
em Burckardt preferências decadentistas e passadistas que acabaram imobilizando a
compreensão do seu presente, remetendo-o a uma espécie de celebração do passado,
sem reconhecer a renascença florentina como organismo heterogêneo e enigmático,
datado de energia vital própria.
Para Warburg a renascença se constituía menos como evocação do estilo e mais
como sobrevivência de problemas tão religiosos e sociais como artísticos, sendo que, de
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GINSBURG, Carlo. Sinais: raízes de uma paradigma indiciário. In: Mitos, emblemas e sinais.
Morfologia e História. São Paulo, Cia das Letras, 1989, pg 143 a 179.
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HUCHET, Stephane. Prefácio à edição brasileira. Passos e caminhos de uma Teoria da arte. In:
DIDI-HUBERMAN, Georges. Op., cit., pg 07 a 23.
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entre a ausência e o excesso, o aquém e o além, quando se abre o antro escavado pelo
que nos olha no que vemos.
Diante da máxima minimalista, cara sobretudo a Donald Judd e Frank Stella, no
sentido de que o que vemos é só o que vemos, o filósofo comenta que na escolha das
estruturas geométricas e ocas reside uma força que olha. Ainda que se
desantropomorfise e nada deseje dar além de si e de sua materialidade, a problemática
da interioridade escultórica legitima um antropomorfismo, uma vez que na experiência
ótica ocorre uma espécie de conversão sobre uma forma que faz sentir e perceber e que
acaba por revelar o limite variante que se coloca entre o próximo e o distante.
Constatando um distanciamento invasor Didi-Huberman coloca um paradoxo no jogo
presente-ausente, bem lá onde se pretendia recusá-lo, uma vez que o que vemos vale
também pelo que nos olha.
Numa outra fábula, o filósofo analisa um objeto encontrado numa escavação,
destacando o problema de sua legibilidade. Abordando a relação tensa entre a imagem e
a palavra, assinalando que esta se constitue como experiência de luto pela perda
instalada no exercício do olhar, recusa a reconciliação hegeliana que encontra no
fragmento a sobrevivência da totalidade verdadeira, assinalando apenas as dilacerações
a que as imagens estão sujeitas. Sendo a história das imagens caracterizada como
operação anacrônica, diante de um objeto escavado que se impõe, produz-se um
presente reminiscente. Face à impossibilidade que se descortina sobre algo que jamais
tivemos nem teremos, longe do inventário que busca a origem ou gênese das imagens,
resta-nos o consolo e a condenação das recordações encobridoras que se confrontam
com seu próprio destino, conflagrando o presente a produzir um pretérito.
Recorrendo ao Drama Barroco Alemão, Didi-Huberman lembra que as idéias estão
para as coisas assim como as constelações para os planetas, enquanto reconhece nas
transformações as deformações da imagem, restos noturnos do inexprimível como
potência que incendeia a obra e faz avistar os traços condensados, destroços daquilo que
um dia foi símbolo. A partir deste trabalho em que Walter Benjamin faz referências a
Warburg partilhando aproximações teóricas acerca da arte, da filosofia e da história,
particularmente em relação à concepção de melancolia e de alegoria, o filósofo francês
salienta que a experiência do olhar conjuga dois movimentos: um que avista na imagem
uma espécie de aparição saída da sombra e outro que se detém sobre uma sorte de
dissimulação sobre o que deveria permanecer em segredo.
Assim, a história da arte apresenta-se como a luta de todas as experiências óticas,
dos espaços inventados e das figurações, devendo-se buscar nas imagens uma espécie
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PORTO, Celmo Celeno. Exame clínico. Bases para a prática médica. R.J., Editora Guanabara,
1996, 3ª ed., pg 36 e 37.
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ignorados. Diferenciando entre sintomas e sinais, mas mantendo uma perspectiva não
excludente entre os mesmos, a semiologia médica remete aos limites da decifração da
doença visto que essa só pode ser expressa pelo modo cifrado. Ademais, tanto como dor
e doença não podem ser concebidas como peças perfeitamente ajustáveis de uma
engrenagem, também a decifração da dor pelo médico não é menos cifrada do que a
linguagem apresentada pelo paciente: Na verdade, os sinais e os sintomas são a
linguagem das enfermidades. Ela se torna cifrada ou simbólica ao ser interpretada pelo
paciente, que nos transmite suas sensações pela linguagem verbal, com base em sua
cultura e suas vivências, complementando-as por linguagem não-verbal, que inclui gestos
e expressões fisionômicas.
Não é difícil estabelecer outras conexões: onde se lê paciente, leia-se
testemunhos históricos e onde se lê médico, leia-se aquele que toma para si a tarefa de
significar ou produzir sentidos a partir dos dados que dispõe ou seleciona. Onde se lê dor,
leia-se as tensões que sobrevivem e proliferam, ora de modo mais racional e controlável,
ora de modo mais descontrolado e sutil, cujas manifestações permitem compor um
quadro no qual se reconhecem certas renitências e reverberações que por diversos
labirintos se fazem perceber, ainda que a posteriori.
Eis os desafios que se colocam para quem desejar pensar os fenômenos da arte e
da história. Entre as possibilidades que as imagens artísticas contêm e os afetos
explicativos que as significam, o que se coloca para a análise da obra é a possibilidade de
estabelecer conexões, quer buscando alcançar as imagens por aproximação e
familiaridade, quer remetendo ao contraponto de sua infinita alteridade. Bem verdade que,
como lembra Nietzsche, ”somente pela teia rígida e regular do conceito o homem
acordado tem certeza clara de estar acordado,e justamente por isso chega às vezes à
crença de que sonha ,se alguma vez aquela teia conceitual é rasgada pela arte (...) então
a cada instante ,como no sonho ,tudo é possível.” 8 Mas isso já é pretexto para retornar o
assunto,refazendo o percurso. Fica para outra vez!
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Nietzsche,Friedrich .Obras incompletas/ Coleção Os Pensadores. SP, Nova Cultural,1987,pg 36 e 37,vl I