Você está na página 1de 14

1

ENTRE SINAIS E SINTOMAS, A LEITURA DA OBRA DE ARTE ATRAVÉS DOS


HERDEIROS WARBURGUIANOS

Carlo Ginzburg e Georges Didi-Huberman tornaram-se nomes reconhecidos no


meio acadêmico e intelectual, notadamente a partir do último quartel do século XX. Sendo
um historiador italiano e outro filósofo francês, ambos estabelecem uma relação direta
com a arte, colocando-a em diálogo com a psicanálise, a literatura e a antropologia.
Partindo de uma interlocução teórico-metodológica com Aby Warburg (1866-1929),
debruçam-se sobre a problemática da legibilidade da imagem na obra de arte, salientada
por aquele estudioso no entorno do século XX.
Entretanto, observando alguns textos onde os pressupostos warburguianos se
desdobram, pode-se constatar que para Ginzburg as imagens artísticas são interpretadas
em instância onde se afirma e vence a razão investigativa. Reconhecendo-as como sinais
provenientes do passado para o qual o pesquisador deve se voltar a fim de encontrar os
elementos para uma história cultural, advoga um cruzamento entre as particularidades e
as complexidades de um universo social em suas inserções temporais, permanências e
reelaborações. Neste empreendimento a história da arte aparece como um vasto campo
onde os artefatos são recolhidos enquanto indícios ou vestígios que permitem pensar a
realidade pretérita. Remetendo a uma base que legitima a diversidade e manuseio da
fonte documental, o historiador italiano acaba por fundamentar os procedimentos
metodológicos de seu próprio ofício.
Já para Didi-Huberman trata-se de considerar as imagens artísticas como
sintomas avistados em topologias intersticiais e limiares, onde habitam sensibilidades e
percepções que alimentam a própria filosofia da história, a partir de certos diálogos e
desdobramentos de matriz anti-formalista e pós-moderna. Reconhecendo não à história
da arte, mas a uma história de arte, o filósofo francês assinala que os conceitos e
formulações sobre a imagem foram inventados dentro de certas escolhas e lógicas,
configurando campos epistemológicos específicos. Ao invés de ajustar o visível ao dizível,
as nuances do legível são problematizadas e as distâncias temporais reconhecidas como
fragmentos que se combinam por uma espécie de justaposição. Suspeitando daquilo que
é dado a ver, a imagem aparece como uma espécie de fantasma ou efeito de suspensão
daquilo que se coloca entre o objeto avistado e aquele que o vê.
2

I – Referências para legitimar procedimentos metodológicos.


No ensaio intitulado De Warburg a E. H. Gombrich: notas de um problema de
método1 Ginzburg aborda a problemática da legibilidade da imagem artística a partir de
uma trajetória histórica onde o manuseio dos testemunhos figurativos e documentais
ganha destaque. Em seu cerne, o texto constrói uma espécie de trajetória da metodologia
warburguiana a partir de seus legatários no âmbito da história e da teoria da arte,
destacando particularmente Fritz Saxl, Erwin Panofsky, Edgar Wind e Ernst Gombrich,
além de outros nomes, como por exemplo o de Gertrud Bing.
Inicialmente o historiador apresenta Aby Warburg como sendo descendente de
uma família de banqueiros de Hamburgo, que empreende em fins do século XIX uma
viagem ao Novo México, trazendo em seu retorno fotografias sobre os índios pueblo, além
de ricas anotações acerca deste mundo de emoções primitivas e violentas, através das
quais irá produzir uma abertura analítica para os fenômenos culturais europeus,
sobretudo, relacionados à renascença italiana. A abrangência das fontes empíricas
permitiu-lhe recorrer a quadros obscuros, cartas amorosas e de mercadores, tapeçarias e
outros testemunhos, buscando interpretações e conexões para além do determinismo
fácil, da exaltação da genialidade ou da diluição das imagens em mero contexto.2 O autor
chama atenção para o fato de que foram os interesses variados e para além dos saberes
consagrados que possibilitaram a Warburg considerar o artefato, o traço ignorado, o
marginal e o irrelevante.
Ginzburg também assinala que o acervo documental warburguiano, vasto e
organizado em padrões absolutamente inusitados da sua biblioteca, possibilitou o
alargamento das fronteiras disciplinares passando pela psicologia, filosofia, antropologia e
arte. Produzindo uma abertura analítica para pensar a multiplicidade cultural sem diluir a
linguagem específica e conduzindo o conhecimento histórico aos fenômenos
considerados pouco relevantes, o erudito alemão produzia recombinações, tanto no
âmbito do micro como da macro-dimensão, tanto no âmbito da curta como da longa
duração.
Para discutir as características e apropriações do espólio warbuguiano, Ginzburg
analisa as leituras e comentários de seus tributários, menos de forma hierarquizada ou
seqüencial e mais através de idas e vindas, onde os mesmos despontam ora agrupados,

1
GINSBURG, Carlo. De Warburg a E. H. Gombrich: notas de um problema de método. In: Mitos,
emblemas e sinais, Morfologia e História. São Paulo, Cia das Letras, 1989, pg 41 a 93.
2
Num ensaio intitulado Além do exotismo: Picasso e Warburg, o autor volta a destacar as
características metodológicas de Warburg. In: GINSBURG, Carlo. Relações de força. História,
retórica, prova. S.P., Cia das Letras, 2002, pg 118 a 136
3

ora diferenciados, valendo-se de um raciocínio mais apropriado a interlocutores atentos


e/ou iniciados nos domínios das artes visuais. Desse modo, apresenta o austríaco
Friedrich Saxl (1890-1948) como o responsável pela sobrevivência da biblioteca que
acabou transferida para Londres, lembrando em suas conferências e textos uma das
frases warburguianas prediletas: Deus está no detalhe. Desdobrando sua compreensão
sobre a herança da arte antiga, transmitida e deformada pelas múltiplas mediações
medievais, assinala que esta só renascerá no quatrocento filtrada por uma distância
cultural entre os florentinos e os antigos e marcada pelo convívio de contradições e
polaridades entre o cristianismo e o paganismo, entre Deus e Fortuna. Recusando uma
leitura da obra de arte como puramente estética, tanto Warburg como Saxl reconheceram
nos testemunhos figurativos uma fonte sui generis para análise de significados culturais. É
aí que este último chama atenção para a problemática da circularidade interpretativa,
assinalando o risco de, pela obra de arte, apenas se ilustrar o já sabido, operando uma
inextrincável mistura entre sujeito e objeto e desprezando o fato de que as interpretações
são sempre produzidas como mediações, sendo que não só as sutilezas pictóricas são
constantemente enriquecidas pelo discurso racional, como as imagens guardam sempre
um caráter ambíguo e aberto para interpretações.
De outra parte, avançando para além da camada fenomênica, cujo registro pré-
iconográfico remete às descrições compositivas, e por considerar que a análise
iconográfica era insuficiente para fins de reconstrução histórica, Ginsburg remete ao
professor da Universidade de Hamburgo, Erwin Panofsky (1892-1968). Buscando
critérios científicos para análise da obra de arte e recusando-se a considerá-la pela
questão da biografia, do estilo ou do gosto, este estudioso indicaria a impossibilidade de
uma reconstrução puramente formal, tomada como registro que se relaciona a outros
registros com vistas a encontrar outros significados por parentescos e proximidades para
fins comparativos. Desse modo, remetendo à iconologia, elabora uma espécie de
culminância, por onde insidem as duas camadas anteriores na busca pelo conteúdo
último e essencial, como uma atitude de fundo em relação ao mundo, interpretação
reveladora de sentidos imanentes. A este respeito o historiador italiano salienta que em
seu Estudos de Iconologia Panofsky reconhece uma dimensão subjetiva e irracional a que
chama de intuição sintética, faculdade comparável a de um diagnóstico, cuja margem de
erros só pode ser reduzida pelo manuseio cuidadoso dos documentos que iluminam e
complementam a imagem estudada. E também lembra que as características formais e o
conteúdo histórico das obras não encontraram uma unificação conceitual neste tributário
que terminou por se dedicar predominantemente as pesquisas iconográficas.
4

Quanto ao historiador e filósofo Edgar Wind (1900-1971), o autor de De Warburg


a Gombrich registra a influência das discussões com Ernst Cassirer, também interlocutor
de Warburg, responsabilizando-os por conduzirem a questão simbólica ao centro da arte
e da própria vida cultural. Num esforço para avistar seus precedentes intelectuais, Wind
diferencia Warburg de teóricos mais formalistas quanto ao estudo do estilo artístico, tais
como Alois Riegl (1858-1905) e Enrich Wöefflin (1864-1945) quais não teriam visto
relação entre a história da arte e a história cultural, distanciando-o também de Hegel e de
Dilthey, por avistarem na história do espírito uma unidade cultural apriorística. Mas
aproxima-o do suíço Jacob Burckhardt (1818-1877), pelo fato de que ambos salientaram
uma unidade entre os diversos aspectos da vida cultural, tais como o artístico, o religioso
e o político. Ao situar o papel simbólico das imagens, Wind afirma ser quase impossível
detectar no criador de uma obra o sentido de um mito, quer na íntegra ou fragmento, ao
que Ginzburg, tal como já havia feito no caso de Panofsky, alerta para um certo grau de
coerência interna e correspondência entre textos e imagens necessário para que a
interpretação iconográfica seja verdadeiramente aceitável. E reconhece que a margem de
risco e de mal entendido interpretativo só pode ser superada pelo critério de plausibilidade
e coerência entre as fontes textuais e visuais, sem as quais se incorre no perigo de ler
nos testemunhos figurativos somente aquilo que se quer.
Presença importante no conjunto do ensaio, é apresentado também um dos
diretores do Instituto Warburg em Londres, Ernst Gombrich, (1909-2001) 43 anos mais
jovem que Warburg e 19 mais jovem do que Saxl. Caracterizando a obra warburguiana
como assistemática, indaga se seus legatários, especialmente Saxl e Panofsky, não
teriam substituído as filiações por analogias, inscrevendo nos estudos da relação do
renascimento com a antiguidade, paralelismos culturais muito fáceis. Assim, a história das
imagens seria portadora de coincidências individuais, sem poder alcançar um panorama
mais amplo, limitando-se as opiniões que os homens de várias épocas tiveram. Reflexão
a que Ginzburg recorrre para salientar a importância de evitar tanto as conexões
apressadas e generalizações caricatas ou idealizadoras, como a imediatez de paralelos
entre história e obra de arte, nem sempre sustentáveis pelos registros documentais. Tal
como Gombrich, o historiador italiano concorda que a obra de arte não deve ser entendida
como mera expressão da personalidade artística, mas sim como veículo de uma
mensagem particular, acessível ao espectador que conhece o contexto lingüístico em que
a mesma se situa.
Considerando que o contexto histórico não explica a diversidade estilística,
Gombrich recusa a leitura da obra de arte pelo seu caráter expressionista e
5

fisiognomônico. Crítico de Arnold Hauser, também não reconhece o artista como mero
espelho onde se refletem as injunções materiais e nem mesmo, à maneira de Hegel, as
injunções espirituais do tempo. Desconfiando da análise iconológica, Gombrich salienta o
lugar da tradição na história da arte, considerando como tarefa desta disciplina a
reconstrução dos vínculos que unem ou contrapõem as obras de arte, sendo que as
mesmas só possuem sua forma modificada quando ocorre a mudança de sua função. Em
clave aproximada de Adolf Arheim, que considera na obra de arte as mudanças de atitude
em relação à vida, toma a história da arte como uma história das concepções do mundo,
enquanto toca no problema dos estilos ao abordar o papel da tradição. Recorrendo a uma
postura mental mais aguçada e sensível, procura desvios e modificações para ver e ouvir
uma coisa em vez de outra, refletindo que é o estilo que determina um certo horizonte de
atitudes e expectativas acerca das imagens figurativas.
Ainda no plano da história da história da arte, analisando os usos da herança
warburguiana, Ginzburg lembra Gertrud Bing (1892-1964), assistente de Warburg e
apresentadora dos seus textos para a edição italiana intitulada La Rinascita. Salientando
naquele estudioso alemão uma aversão aos clichês e uma ausência de reservas à
reconstituição histórica, a historiadora frisou seu esforço para compreender os elos entre
gosto e mentalidade, derivando a partir da filiação e das preocupações de Burckardt uma
relação entre a obra de arte e o quadro da época. Para Ginzburg é precisamente aí que
reside a história da imagem do ponto de vista da teoria da cultura, ponto sobre o qual
insidem as reflexões de seu ensaio e que serve como referência para legitimar seus
próprios pressupostos teórico-metodológicos, particularmente no que diz respeito à
escolha e manuseio das fontes documentais, bem como a importância destas para o
estudo da história cultural.

II- Referências para fundamentar pressupostos teóricos.


Em livro publicado sob título L’image survivante, histoire de l’art et temps de
fantômes selon Aby Warburg3 Didi-Huberman insere Warburg numa tradição que remete
ao historiador e arqueólogo alemão Johan Joackim Winkelmann como antecessor de uma
preocupação específica, no sentido de apresentar um novo entendimento para o estudo
da arte já em meados do século XVIII. Indo além da curiosidade das obras como objeto
de antiquário, aquele estudioso iluminista saltaria para fora dos debates acerca do
julgamento de gostos, atentando para uma dimensão singular que acompanharia a

3
DIDI-HUBERMAN, Georges. L’image survivante, histoire de l’art et temps de fantoms Selon
Aby Warburg. Paris, Les Éditions de Minuit, 2002.
6

narrativa histórica. Das cópias romanas da estatutária grega à imitação dos originais
antigos, Winkelmann discutiria um percurso de origem, auge e decadência artística,
assinalando uma travessia das imagens no tempo, impulsionadas pelo paradoxo da
imitação renascente. Ponto que o filósofo francês aponta como sendo uma espécie de
symptome/fantôme na história da arte uma vez que, pela imitação de ideal, a intensidade
do ausente se faz presente.
Como estratégia para apresentar melhor o protagonista de seu texto, o autor
francês salienta que, ao estudar os índios do Novo México, Warburg produziu uma
espécie de incorporação do estrangeiro, tomando-a como base diferencial e comparativa
para compreender os fenômenos culturais e buscando aquilo que sobrevive na forma de
sedimentações parciais, cujos traços gerais, destruídos pelo tempo, só permanecem em
certos detalhes capazes de produzir uma potência mítico-poética reveladora de
significantes culturais. Salientando aquilo que reaparece de longe a enunciar uma
realidade quanto à origem, trata-se de algo que nem se pode reconhecer claramente e
nem se consegue esquecer.
É aqui que o autor de L’image survivante destaca o conceito warburguiano de
Nachleben, reconhecendo nas imagens da arte elementos iluminadores de sintomas
culturais, onde o anacrônico se impõe como sobrevivência, caracterizando-a como
permanência ou arquétipo não do mais e sim do menos adaptado. Voltando-se para o
inacabado ou inapto como aquilo que persiste oriundo de um passado não resolvido,
Warburg teria tomado de empréstimo uma teoria de cultura advinda do romantismo de
Thomas Carlyle, explorando a noção de fósseis viventes.
Lembrando que no século XIX a renascença tornou-se foco das polêmicas sobre o
estatuto dos estilos e dos discursos históricos e colocando Warburg em diálogo com
Burckardt, Didi-Huberman avista em ambos a recusa de uma síntese hegeliana para
chegar ao momento do saber conclusivo e absoluto; razão pela qual teriam visto a
antiguidade como uma espécie de estrondo, capaz de produzir um grande movimento de
terreno que não teria cessado de ressoar através da massa de conhecimentos históricos.
Mas, segundo o historiador-filósofo francês, Warburg foi perfeitamente capaz de avistar
em Burckardt preferências decadentistas e passadistas que acabaram imobilizando a
compreensão do seu presente, remetendo-o a uma espécie de celebração do passado,
sem reconhecer a renascença florentina como organismo heterogêneo e enigmático,
datado de energia vital própria.
Para Warburg a renascença se constituía menos como evocação do estilo e mais
como sobrevivência de problemas tão religiosos e sociais como artísticos, sendo que, de
7

acordo com Didi-Huberman, a compreensão de Nachleben remete a um problema capital


para a teoria da história: o da tradição e o da transmissão. Por considerar que a
permanência das imagens conteria sempre um tempo impuro, tal entendimento
anacronizaria o presente, corroendo a noção de espírito do tempo ou zeitgeist. O mesmo
ocorreria em relação ao passado, uma vez que lá também estariam presentes os
hibridismos e sedimentações, propensões e perversões que se constituíram como parte
da temporalidade impura. Igualmente, a noção de sobrevivência associada à impureza do
tempo anacronizaria o futuro, uma vez que a emergência de estilos pressupõe uma força
formadora que ocorre através de trocas não retilíneas e deslizantes.
Em seguida o autor de L’image survivante aborda os interlocutores da noção de
nachleben, indiretamente remetendo para o uso limitado que os herdeiros warburguianos
fizeram dela. Inicia afirmando que, embora Edgar Wind não tenha abordado as questões
relativas ao tempo com tanta profundidade, ao discutir a complexidade simbólica
compreendeu a sobrevivência da antiguidade para além da metáfora biológica. Incluindo
todo um conjunto de operações de ordem não natural mas cultural, onde se colocam o
esquecimento e as transformações de sentidos, as lembranças provocadas e os
esquecimentos casuais, num jogo incessante de pausas e crises, saltos e retornos
periódicos, Wind teria sido fiel a seu mentor, conferindo a narrativa histórica menos como
arquivo de memória e mais como um drama que se passa como o curso de um rio e seus
turbilhões.
Já em Erwin Panofsky a noção de Nachleben cederia lugar a da influência e a
questão do pathosformeln daria lugar a da tipificação, conferindo à renascença sua
própria história e significação ideal. Contudo, segundo Didi-Huberman, se havia iniciado
com a compreensão warburguiana sobre a impureza dos tempos, Panofsky acabaria
privilegiando uma abordagem mais voltada para os fenômenos históricos bem definidos
do que pelas incertezas da sobrevivência. Almejando reintegrar forma e conteúdo,
reconhecia nas imagens idéias imortais mas recusava-as como fantasmas.
Depois é a vez de Didi-Huberman remeter a Ernst Gombrich, o qual debatia-se
contra um certo revival warburguiano nos ano 70, insistindo em negar o duplo movimento
tanto entre sobrevivência e renascença como entre sobrevivência e estrutura anacrônica.
Sua leitura remetia para além da tenacidade das sobrevivências medievais e da
flexibilidade inventiva das imitações à antiga que marcariam a renascença. Porém, abria
brecha tanto para periodizações cada vez mais distintas e precisas na história da arte
como para o uso da noção intemporal de arquétipos ou ciclos eternos que marcariam as
continuidades e variações da história das imagens.
8

Ainda na perspectiva da história das imagens artísticas, o filósofo francês lembra


que, tanto para Warburg como para Burckhardt, a sobrevivência das mesmas estaria
relacionada a questão de Lebem, noção tomada como sinônimo de vida, porém
considerada menos pelo elemento natural e biomórfico e mais pelos elementos de
impureza que aparecem como um jogo de funções, formas e forças. No jogo de funções a
vida seria concebida como cultura em seus elementos móveis entre o local e o global, o
individual e o contextual. No jogo de formas a vida seria concebida como cristalizações
morfológicas, tomadas como formas psíquicas da cultura e expressas pelas formas
escritas, quadros e ornamentos arquiteturais, vestimentas e paisagens refeitas pelo
homem, incluindo-se também as figuras mais marginais e grotescas.
Quanto ao jogo das forças, embora seja muito difícil analisar a relação tanto entre
forças fixas ou estabelecidas e forças moventes ou vacilantes, como entre forças
dominantes e forças que escoam, lebem é concebida no jogo entre as potências latentes
e manifestas. De sua parte, retornando à idéia contida no título do livro, Didi-Huberman
ratifica que o tempo realiza um jogo impuro, tenso e violento, o qual só pode ser pensado
através das imagens sobreviventes. Eis o terreno em que as obras de arte são
reconhecidas como lâminas que se justapõem, produzindo aparições que relacionam
temporalidades distintas.

III – Os sinais como vestígios reveladores de um contexto.


Avançando na compreensão das nuances e desdobramentos do espólio
warburguiano, voltemos a Carlo Ginzburg num outro ensaio intitulado Sinais: raízes de
uma paradigma indiciário,4 onde o problema da interpretação das imagens artísticas como
sinais é discutido no âmbito dos paradigmas que atravessam a própria trajetória da
linguagem. Relacionando a questão dos sinais à problemática da leitura das imagens, o
autor apresenta um contexto onde é o próprio conhecimento que se inscreve através de
um percurso histórico. Embora a presença e importância de Warburg não seja explicitada
neste ensaio, podemos reconhecê-lo como uma espécie de referência de um caminho
investigativo, responsável pela ampliação de um patrimônio epistemológico herdado e
cuja preocupação metodológica permite analisar muito de perto aquilo que poderia ser
chamado de fenômenos aparentemente negligenciados, reagrupados numa série de
pormenores e em seguida considerados numa perspectiva temporal mais ampla.

4
GINSBURG, Carlo. Sinais: raízes de uma paradigma indiciário. In: Mitos, emblemas e sinais.
Morfologia e História. São Paulo, Cia das Letras, 1989, pg 143 a 179.
9

O estudioso italiano registra em fins do século XIX o surgimento de uma


epistemologia para as ciências humanas pautada no esforço de ultrapassagem tanto do
modelo das ciências naturais como de um olhar meramente desavisado e superficial.
Indicando uma nova relação entre o visível e o legível, toma como ponto de partida o
conhecimento médico no qual foram formados três nomes importantes deste padrão
cognitivo nascente: Conan Doyle, Sigmund Freud e Giovani Morelli. Partindo dos indícios
como fonte de investigação, Ginzburg assinala para a literatura policial, a interpretação
psicanalítica e o especialista em arte, o valor atribuído à leitura dos detalhes, lapsos e
gestos inconscientes, mais do que qualquer atitude ou intencionalidade formal.
Inacessível ao investigador desatento, definia-se na literatura policial, na
psicanálise e na teoria da arte uma leitura oblíqua sobre dados considerados residuais,
detritos ou refugos emergidos de pistas infinitesimais ou de vestígios reveladores. Mas,
exatamente no período em que tais especialidades foram engendradas, Ginzburg também
assinala a crescente valorização do indivíduo em suas mínimas singularidades e
minúcias, relacionando-as aos novos sistemas de identificação sobre a sociedade por
parte do Estado e suas instituições, as quais legitimavam os sinais indeléveis de
reconhecimento e controle, enquadrando, patologizando e criminalizando. Pela superfície
aparente dos fenômenos, tornava-se possível decifrar individualidades de modo cada vez
mais sútil e inescapável. Eis para Ginzburg o ponto em que a ciência e a arte confluem,
onde a questão da legibilidade das imagens torna o visível, como equivalente do dizível
desde uma longa trajetória compreendida pela leitura contextual da qual este estudioso
também se reconhece como herdeiro.

IV – As imagens como fantasmas que retornam.


Persistindo na busca das diferentes apropriações que o espólio warburguiano
enfrentou e tentando melhor distinguir suas implicações, tomemos agora um livro de Didi-
Huberman intitulado O que vemos, o que nos olha5. Nas páginas iniciais o autor toma de
Stephen Dedalus, personagem de Ulisses escrito por James Joyce, a seguinte questão:
quando vemos o que está diante de nós, porque uma outra coisa sempre nos olha,
impondo um em, um dentro? Interessado em destacar o jogo rítmico entre superfície e
fundo, onde uma potência visual se impõe como inexprimível, pois ver é sentir que algo
inelutável nos escapa, recorre a Merleau-Ponty,(1908-1961) para quem todo visível é
talhado no tangível, voltando-se para a condição do objeto que nos mostra uma perda.
Crítico tanto do objetivismo científico como do subjetivismo filosófico, este representante
5
DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. S.P., Ed. 34, 1998.
10

singular da fenomenologia defende que a consciência perceptiva se constitue na maneira


pela qual nos instalamos no mundo, sendo que a percepção deste só existe na relação
simbólica entre o corpo que percebe e o objeto percebido. Assim a imagem não é o
vestígio de algo que pode ser encontrado, mas é algo que foi inexoravelmente perdido,
restando-nos apenas uma espécie de traço de semelhança por onde captamos este
extravio.
Explicitando uma apropriação benjaminiana de aura, ao discutir sobre o ausente
que se faz presente, numa distância que invade e num impacto que exprime uma latência,
Didi-Huberman relaciona o que olha ao que é olhado através de uma espécie de retorno
de um recalque, cujo poder incendiário une o tempo de outrora ao agora, conferindo à
imagem o poder de adornar-se de quem a olha. Porém, o autor também observa que as
imagens se constituem como lugares de uma memória cultural, histórica e involuntária,
onde o arqueólogo-historiador-vidente as faz emergir como se o artista e o escritor fossem
algum tipo de sábio das constelações virtuais do tempo, guardadas nas dobras do
imponderável e do imprescritível.
Como Warburg comparece neste texto de Didi-Huberman? Nem como
protagonista nem como figurante, mas como uma referência metodológica renovadora da
história da arte, no sentido de salientar a questão da legibilidade das imagens. Para o
filósofo francês, diferentemente de Ginsburg, estas alimentam não uma história cultural,
mas uma história de sensibilidades e percepções sobre a experiência do visível. Crítico
acirrado das leituras processuais e da abordagem iconológica que reduz os signos, temas
e símbolos a um contexto cultural totalizante, onde o particular induz ao geral, busca em
Warburg, os surtos iluminadores que insidem sobre recalques e renitências, inscrevendo
as imagens como fendas dadas a ver enquanto fulgurações que justapõem
temporalidades diversas. Eis porque os sintomas são como fantasmas que espreitam
pelos interstícios e habitam indefinidamente um território que, por não ser evidente,
acolhe a suspeita infinita.
Distante das referências semióticas de matriz pierciana e americana e das
abordagens que salientam o pragmatismo anglo-saxão, longe da abordagem
fenomenológica que vigorou na França em meados dos anos 60, em cuja tônica lírica e
literária avista-se uma substância ontológica da essência artística6, Didi-Huberman
empreende um esforço para distanciar-se da história da arte que se oferece como
catálogo ou se coloca entre a biografia e a bibliografia. Seus precedentes epistemológicos

6
HUCHET, Stephane. Prefácio à edição brasileira. Passos e caminhos de uma Teoria da arte. In:
DIDI-HUBERMAN, Georges. Op., cit., pg 07 a 23.
11

filiam-se à problemática da linguagem advinda da História dos Analles e passa por


diálogos com o semiólogo Louiz Marin, o qual desde os anos 70 destacava o paradoxo da
presença-ausente, encarando a pintura como uma espécie de magia, coloca o paradoxo
entre tudo o que se pode dizer e o que só um pode ver. Acreditando ser possível suavizar
o indissolúvel sofrimento que acompanha o prazer mudo de ver, trata-se de tentar
transcrever o rumor que está na cabeça de quem olha o quadro como o ruído instalado no
fim de um poema, no fragmento de uma história, no eco de uma conversação. Partícipe
de semelhante concepção também comparece Hubert Damish, o qual procura desmontar
os mecanismos sobre o significado das imagens e a leitura unívoca de seu sentido,
recusando a interpretação como metafísica do signo.
Assim, considerando o olho como objeto capaz de avistar fantasmas, Didi-
Huberman assinala pela história das imagens o poder da signalidade como múltiplo e
heterogêneo. Recusando a sujeição mecânica entre o visível e o legível, rejeita também a
padronização e privilegia, tal como nos sonhos, aquilo que chama de jorro simbólico
exponencial. Contra uma história da arte em que ver é saber, busca um acesso às
estruturas complexas, fugidias e abissais, em cujas latências indômitas pulsam a
dimensão patológica, enigmática e desemelhante. E citando novamente Joyce, observa: a
pintura pensa. Como? É uma questão infernal, pois aquilo que vemos vale, vive apenas
por aquilo que nos olha. Desdobrando tal questão através de uma antropologia da forma,
uma metapsicologia da imagem, suas reflexões se inscrevem numa sorte de fábula
filosófica da experiência visual.
Discutindo sobre a angústia que segreda o próprio destino ao olhar o fundo vazio
de uma tumba, o filósofo francês observa que pode ocorrer uma sutura da dor pelo
recalque, através de um esforço para permanecer aquém dela. Então a percepção sobre
aquele espaço vazio será preenchida por uma verdade tautológica, que traduz a
indiferença ao jacente e ignora a aura do objeto, privilegiando uma abordagem descritiva,
formal e rasa, cujo efeito é o de constituir uma vitória miserável da linguagem pelo olhar.
Também pode ocorrer uma outra sutura da angústia, onde volume e corpo, vazio e morte
são ultrapassados pelo consolo numa crença que preenche o horror vacui, produzindo-se
uma vitória obssessional do invisível, quer de fundamento metafísico ou teológico.
Nisso que chama de fábula sobre o retângulo vazio, o autor de O que vemos, o
que nos olha encontra elementos para relacionar a iconografia tumular pagã e cristã aos
cubos minimalistas, salientando que aquelas imagens retornam a um olhar sobre nossas
memórias, nossos temores, nossos desejos. E reflete que, entre a tautologia e a crença,
seria necessário buscar não o pensamento binário, mas uma inquietação que se impõe
12

entre a ausência e o excesso, o aquém e o além, quando se abre o antro escavado pelo
que nos olha no que vemos.
Diante da máxima minimalista, cara sobretudo a Donald Judd e Frank Stella, no
sentido de que o que vemos é só o que vemos, o filósofo comenta que na escolha das
estruturas geométricas e ocas reside uma força que olha. Ainda que se
desantropomorfise e nada deseje dar além de si e de sua materialidade, a problemática
da interioridade escultórica legitima um antropomorfismo, uma vez que na experiência
ótica ocorre uma espécie de conversão sobre uma forma que faz sentir e perceber e que
acaba por revelar o limite variante que se coloca entre o próximo e o distante.
Constatando um distanciamento invasor Didi-Huberman coloca um paradoxo no jogo
presente-ausente, bem lá onde se pretendia recusá-lo, uma vez que o que vemos vale
também pelo que nos olha.
Numa outra fábula, o filósofo analisa um objeto encontrado numa escavação,
destacando o problema de sua legibilidade. Abordando a relação tensa entre a imagem e
a palavra, assinalando que esta se constitue como experiência de luto pela perda
instalada no exercício do olhar, recusa a reconciliação hegeliana que encontra no
fragmento a sobrevivência da totalidade verdadeira, assinalando apenas as dilacerações
a que as imagens estão sujeitas. Sendo a história das imagens caracterizada como
operação anacrônica, diante de um objeto escavado que se impõe, produz-se um
presente reminiscente. Face à impossibilidade que se descortina sobre algo que jamais
tivemos nem teremos, longe do inventário que busca a origem ou gênese das imagens,
resta-nos o consolo e a condenação das recordações encobridoras que se confrontam
com seu próprio destino, conflagrando o presente a produzir um pretérito.
Recorrendo ao Drama Barroco Alemão, Didi-Huberman lembra que as idéias estão
para as coisas assim como as constelações para os planetas, enquanto reconhece nas
transformações as deformações da imagem, restos noturnos do inexprimível como
potência que incendeia a obra e faz avistar os traços condensados, destroços daquilo que
um dia foi símbolo. A partir deste trabalho em que Walter Benjamin faz referências a
Warburg partilhando aproximações teóricas acerca da arte, da filosofia e da história,
particularmente em relação à concepção de melancolia e de alegoria, o filósofo francês
salienta que a experiência do olhar conjuga dois movimentos: um que avista na imagem
uma espécie de aparição saída da sombra e outro que se detém sobre uma sorte de
dissimulação sobre o que deveria permanecer em segredo.
Assim, a história da arte apresenta-se como a luta de todas as experiências óticas,
dos espaços inventados e das figurações, devendo-se buscar nas imagens uma espécie
13

de fissura do visível instalada na compreensão sobre a forma e aquilo que possibilita a


existência dos objetos artísticos. Reconhecendo o visível como uma experiência sensorial
relacionada ao tangível, Didi-Huberman conecta o que olha ao que é olhado através da
instância onde insidem os sentimentos mudos, guardando uma conexão secreta entre o
que toca e o que é tocado. Eis porque a experiência de olhar refere-se também à
experiência de ser atingido por algo que pertence ao intraduzível.

V – Entre sinais e sintomas, horizontes sobre a legibilidade da imagem.


Ao considerar diferentes percursos relacionados ao espólio de Aby Warburg, pode-
se observar que há mais de um século as questões sobre a legibilidade das imagens,
particularmente no âmbito da produção artística, têm recebido análises bastante diversas
e até mesmo antagônicas. Embora nenhuma delas seja necessariamente simplificadora
ou mecanicista, podendo tanto conter riscos como contemplar possibilidades bastante
complexas, faz-se necessário reconhecer que avistar a imagem como documento que
traduz e representa uma realidade, é diferente de considerar que aquela é seu simulacro.
Se há as abordagens que pressupõem a relação ver-dizer como traduzir ou interpretar, há
também aquelas que destacam a incompletude destas instâncias, salientando a distância
profunda e silenciosa que as separa. Fenômeno que poderíamos considerar como uma
herança intelectual em disputa, trata-se de duas importantes matrizes acerca das
sensibilidades e percepções sobre as imagens, cujos critérios para estudo e análise
nascidos na modernidade chegam aos pressupostos da contemporaneidade.
Baseados num argumento ginsburguiano, cujo mérito consiste em remeter a um
ponto do século XIX, quando os paradigmas da literatura policial, da psicanálise e das
artes visuais foram colocados em conformidade com a episteme científica, citemos um
texto médico7, onde as distinções entre sintomas e sinais é assim explicitada:
Tradicionalmente, o termo sintoma designaria as sensações subjetivas anormais sentidas
pelo paciente e não visualizadas pelo médico (exemplos: dor, má digestão, náuseas),
enquanto sinais seriam as manifestações objetivas, reconhecíveis por intermédio da
inspeção, palpação, percussão, ausculta ou meios subsidiários (exemplos: edema,
cianose, tosse, presença de sangue na urina).
O texto prossegue afirmando que nem sempre é possível uma distinção tão nítida
entre sinais e sintomas, destacando que os sintomas atípicos também não podem ser

7
PORTO, Celmo Celeno. Exame clínico. Bases para a prática médica. R.J., Editora Guanabara,
1996, 3ª ed., pg 36 e 37.
14

ignorados. Diferenciando entre sintomas e sinais, mas mantendo uma perspectiva não
excludente entre os mesmos, a semiologia médica remete aos limites da decifração da
doença visto que essa só pode ser expressa pelo modo cifrado. Ademais, tanto como dor
e doença não podem ser concebidas como peças perfeitamente ajustáveis de uma
engrenagem, também a decifração da dor pelo médico não é menos cifrada do que a
linguagem apresentada pelo paciente: Na verdade, os sinais e os sintomas são a
linguagem das enfermidades. Ela se torna cifrada ou simbólica ao ser interpretada pelo
paciente, que nos transmite suas sensações pela linguagem verbal, com base em sua
cultura e suas vivências, complementando-as por linguagem não-verbal, que inclui gestos
e expressões fisionômicas.
Não é difícil estabelecer outras conexões: onde se lê paciente, leia-se
testemunhos históricos e onde se lê médico, leia-se aquele que toma para si a tarefa de
significar ou produzir sentidos a partir dos dados que dispõe ou seleciona. Onde se lê dor,
leia-se as tensões que sobrevivem e proliferam, ora de modo mais racional e controlável,
ora de modo mais descontrolado e sutil, cujas manifestações permitem compor um
quadro no qual se reconhecem certas renitências e reverberações que por diversos
labirintos se fazem perceber, ainda que a posteriori.
Eis os desafios que se colocam para quem desejar pensar os fenômenos da arte e
da história. Entre as possibilidades que as imagens artísticas contêm e os afetos
explicativos que as significam, o que se coloca para a análise da obra é a possibilidade de
estabelecer conexões, quer buscando alcançar as imagens por aproximação e
familiaridade, quer remetendo ao contraponto de sua infinita alteridade. Bem verdade que,
como lembra Nietzsche, ”somente pela teia rígida e regular do conceito o homem
acordado tem certeza clara de estar acordado,e justamente por isso chega às vezes à
crença de que sonha ,se alguma vez aquela teia conceitual é rasgada pela arte (...) então
a cada instante ,como no sonho ,tudo é possível.” 8 Mas isso já é pretexto para retornar o
assunto,refazendo o percurso. Fica para outra vez!

8
Nietzsche,Friedrich .Obras incompletas/ Coleção Os Pensadores. SP, Nova Cultural,1987,pg 36 e 37,vl I

Você também pode gostar