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Construção psicopedagógica

versão impressa ISSN 1415-6954versão On-line ISSN 2175-3474

Constr. psicopedag. v.13 n.10 São Paulo  2005


 
ARTIGO

 Desafios e tendências em formação continuada

 Anna Helena Altenfelder*


Instituto Sedes Sapientiae,

Faculdades Oswaldo Cruz, Universidade Prebisteriana Mackenzie

Endereço para correspondência

 RESUMO
O presente artigo tem como objetivo discutir, a partir da perspectiva da psicologia sócio-
histórica, os desafios colocados no atual contexto educacional para os formadores de
educadores, principalmente os que planejam e coordenam ações de formação continuada de
professores. Para tanto, faz-se um resgate das terminologias, concepções e tendências da
formação continuada no Brasil e uma revisão crítica da situação atual, apontando a
importância de se considerar a formação continuada como parte integrante do trabalho
docente e para a necessidade de novos estudos que ultrapassem a dicotomia entre teoria e
prática.

Palavras- chave: formação continuada de professores, concepções e tendências, atividade


docente, relação entre teoria e prática.

ABSTRACT

The aim of the present work is to discuss, based on social-historic psychology, the present
challenges of educator’s continuous development. To do so, the study presents terminologies
and conceptions, making a critical review of teachers continues formation in Brazil. The work
also emphasizes the continuous development as an integrant aspect of the teachers work and
points the need of studies to help a better understanding of the dichotomy between theory and
practices.

Key words: educator’s continuous development, conceptions, teacher’s work, relationship


between theory and practices.

 Nos últimos anos, com o acesso à escola garantido para a maioria das crianças brasileiras, é
cada vez mais crescente a preocupação com a melhoria da qualidade da educação,
principalmente na escola pública.

Para responder a esse desafio, é prioritário e urgente que a escola promova mudanças na sua
estrutura, organização e, principalmente, nas práticas pedagógicas que desenvolve.

Formação de professores, inicial ou continuada, constitui-se, portanto, tema de importância


para estudo e pesquisa, no sentido de se buscar promover as condições para que a escola
cumpra efetivamente sua função de ensinar e formar cidadãos, que sejam ativos na construção
de uma sociedade caracterizada por eqüidade e justiça.

Nesse contexto, a Psicopedagogia, como área que estuda e lida com os processos de
aprendizagem, não pode deixar de se preocupar com o tema da formação continuada, mesmo
porque, entre as várias possibilidades de atuação do psicopedagogo, encontra-se a supervisão,
elaboração ou coordenação de projetos de desenvolvimento profissional de educadores.

Mais importante ainda, acreditamos como afirma Severino (2002:19), que a Psicopedagogia
tem de estabelecer íntimo diálogo com as próprias disciplinas do campo educacional. É na
busca desse diálogo e apoiados na crença em uma Psicopedagogia que ultrapasse um enfoque
clínico, centrado nas dificuldades e problemas da aprendizagem que nos propomos, neste
artigo, discutir os desafios colocados no atual contexto educacional para os formadores de
educadores.

Atualmente, um dos principais desafios para os pesquisadores da área educacional é romper a


falta de diálogo e a insatisfação que permeiam as relações entre professores que atuam em
sala de aula do ensino médio e fundamental e os profissionais responsáveis pelo planejamento,
elaboração e coordenação dos processos de seu desenvolvimento profissional. A esse respeito
Bueno (2002:7) escreve: “Os desacordos e desencontros parecem ter origem em
incompreensões que procedem de ambos os lados”.

Nossa experiência mostra que os professores, muitas vezes, ao avaliarem os processos de


formação mencionam sentimentos como o de serem usados como objetos de pesquisa, de não
serem respeitados em seus interesses, necessidades, ritmo e processo, ou apresentam queixas
como dicotomia entre teoria e prática por parte dos formadores e sobre a falta de isomorfismo
entre a formação que recebem e o tipo de educação que lhes é pedido que desenvolvam. Os
formadores, por seu lado, apontam nos professores resistência, medo de mudar, pouco
comprometimento e falha na formação inicial.

Essas explicações, no nosso entender, encerram contradições que deixam dúvidas, além de
serem simplistas e até mesmo reducionistas, pois não focalizam o fenômeno em seus múltiplos
aspectos.

Além disso, dois fenômenos comuns no contexto educacional brasileiro acabam por afetar,
também, as relações entre professores e formadores: a panacéia para o problema
educacional brasileiro e o modismo na educação.

Belintane (2002:4) discute a questão da panacéia afirmando que “há no imaginário escolar
docente sempre uma esperança de que uma nova teoria, um novo material didático –
realmente eficiente - venha erradicar os problemas básicos da escola”. Ou seja, os educadores
estão à espera de um novo conjunto de saberes que possam resolver os graves problemas
educacionais de nosso País. Dessa forma, muitas vezes, novas teorias, linhas e parâmetros
acabam por se articular com essa esperança, mesmo porque, na maioria das vezes, tais
formulações não promovem uma discussão de suas possibilidades e limites.

Geglio (2003:26) reitera que há uma tendência entre nós, educadores, de, ao entrarmos em
contato com novas idéias no campo educacional, darmos hegemonia a elas desconsiderando as
anteriores. Mostra que uma análise da produção discente dos programas de pós-graduação
evidencia esses fenômenos, pois se pode constatar que o referencial adotado nessas
produções varia segundo “as tendências da moda”. Justifica esse movimento com o que
Gouvêa, 1971,1974,1976, Gatti, 1983,1992 e Warde, 1990,1993, denominaram de ‘modismo
no campo da educação’.
Sendo assim, muitas vezes, professores aderem sem crítica à teoria da moda ou, de forma
inversa, esperam dos formadores teorias que expliquem os impasses e dificuldades que
encontram em sala de aula e métodos para resolvê-los.

Por outro lado, formadores sugerem que a resolução dos problemas pode se dar a partir de
novas teorias que circulam no campo educacional, veiculando-as de forma hegemônica,
negando as contribuições anteriores e desconsiderando todos os saberes produzidos
anteriormente, inclusive os construídos pelos professores em sua prática docente.

Essas considerações, nossa experiência e o discurso educacional produzido por


educadores1 revelam que a dicotomia entre teoria e prática é um ponto recorrente e central
nos desencontros e desentendimentos entre formadores e professores, que acabam por gerar
angústias e apreensões em todos os envolvidos.

Precisamos nos debruçar mais sobre esse fenômeno para compreender melhor como e por
que, apesar de várias pesquisas e produções teóricas, a dicotomia teoria e prática se mantêm
não só no discurso, mas no cotidiano da escola e dos processos de formação continuada.

Sem a pretensão de trazer soluções, nossa intenção é contribuir para esse debate, enfocando
alguns pontos que – consideramos podem ampliar a reflexão dos formadores sobre sua
prática.

Treinamento, reciclagem, capacitação ou formação continuada? Questão semântica


ou de concepção?

Inicialmente, consideramos importante refletir sobre os termos que são muitas vezes
indistintamente usados para se referir à formação do educador que terminou a etapa inicial e
já exerce a profissão.

Aperfeiçoamento, formação em serviço, formação contínua, reciclagem, desenvolvimento


profissional, treinamento ou capacitação podem ser termos equivalentes, porém, não são
sinônimos e diferenciá-los não é uma questão semântica, muito pelo contrário, pois a escolha
dos termos muitas vezes revela as posturas e concepções que orientam as ações de formação.

Nessa direção, Marin (1995) alerta para a necessidade de rever tais termos, repensando-os
criticamente, uma vez que decisões são tomadas e ações propostas com base nos conceitos
subjacentes aos termos usados.

Assim, reciclagem, que é uma palavra usada no cotidiano para se referir a processos de


modificação de objetos e materiais, não deve ser usada no contexto educacional, pois pode se
referir a cursos rápidos, descontextualizados e superficiais, que não consideram a
complexidade do processo de ensino.

Treinamento também pode ser inadequado, se a educação continuada for pensada como um


processo mecânico que meramente modela comportamentos.

Aperfeiçoamento, entendido como um conjunto de ações capaz de completar alguém, de


torná-lo perfeito, de concluí-lo, leva à negação da própria educação, ou seja, a idéia da
educabilidade do ser humano.

Capacitação, termo atualmente muito usado, pode ser congruente com a idéia de formação
continuada, se considerarmos a ação de capacitar no sentido de tornar capaz, habilitar, uma
vez que, para exercer sua função de educadora, a pessoa necessita adquirir as condições de
desempenho próprias à profissão, ou seja, se tornar capaz.

No entanto, a adoção da concepção de capacitação como convencimento e persuasão se


mostra inadequada para ações de formação continuada, uma vez que os profissionais da
Educação não podem e não devem ser persuadidos ou convencidos sobre idéias, mas sim
conhecê-las, analisá-las, criticá-las ou até mesmo aceitá-las.

Marin (1995) explica que Educação permanente, formação continuada, educação continuada
são termos que podem ser colocados no mesmo bloco, pois são similares. Embora admitindo
que existam nuanças entre esses termos, considera que são complementares e não
contraditórios, uma vez que colocam como eixo da formação o conhecimento que se constitui
no suporte das interações que possibilitam a superação dos problemas e das dificuldades.

Constatando a multiplicidade de significados, a autora indica que lhe parece que a terminologia
educação continuada.

Pode ser utilizada para uma abordagem mais ampla, rica e potencial, na medida em que pode
incorporar as noções anteriores – treinamento, capacitação, aperfeiçoamento – dependendo da
perspectiva, do objetivo específico ou dos aspectos a serem focalizados no processo educativo,
permitindo que tenhamos visões menos fragmentárias, mais inclusivas, menos maniqueístas
ou polarizadoras (Marin, 1995:19).

Dentro desse contexto, optamos pelo uso de formação continuada, para nos referirmos aos
processos de formação do educador que já concluiu sua formação inicial e exerce sua
profissão, uma vez que é o termo usado pela maioria dos educadores que apontam para a
discussão e/ou para a proposição de projetos que levam em conta um professor inserido em
um contexto sócio-histórico, que tem como função transmitir o conhecimento socialmente
acumulado em uma perspectiva transformadora da realidade (Mazzeu, 1998; Lima, 2001;
Belintane, 2002; Pimenta, 2002; Gatti, 2003; e Geglio, 2003, entre outros).

Tendências da formação continuada no Brasil

Como pudemos constatar na análise da terminologia, diferentes concepções, originadas em


diferentes pressupostos filosóficos, epistemológicos e metodológicos, coexistem e se
confrontam no campo da formação continuada. Não podemos, assim, pensar a formação de
professores sem uma análise crítica que possibilite pensar a serviço de que estão as ações de
formação e em que medida podem caminhar na superação da dicotomia entre teoria e prática.

Fusari (1997) amplia este debate em um estudo bastante detalhado, no qual apresenta uma
análise das tendências em formação continuada no Brasil. Em seu trabalho, identifica algumas
tendências, movimentos, concepções presentes na educação brasileira em diferentes
momentos históricos que tiveram repercussão na concepção de ações e programas de
formação continuada no século passado e no atual.

Compreender essas tendências permite ao formador, no dizer de Fusari, “descobrir, desvelar


aquilo que está coberto, velado, permitindo o seu posicionamento consciente”. Nesse sentido,
acreditamos que esse posicionamento implica uma visão crítica para que o formador possa
desenvolver ações que levem em conta as necessidades do professor e que promovam
condições para que ele cumpra efetivamente sua função de ensinar e formar cidadãos.

As tendências analisadas por Fusari, embora situadas pelo autor em momentos históricos e
relacionadas a contextos específicos, estão até hoje, no nosso entender, subjacentes e muitas
vezes sobrepostas em ações de formação continuada; sendo assim, optamos por apresentar as
posturas e as ações que as caracterizam.

A tendência tradicional pode ser identificada em ações que visam à aquisição do


conhecimento, ao desenvolvimento de habilidades específicas e atitudes e que são
desenvolvidas a partir de atividades como aulas expositivas, painéis, sínteses de textos
discutidos a partir de folhas-tarefas, baseadas na crença de que a aquisição do conhecimento
por si só levaria à mudança de atitude na prática.
Essa tendência acaba por gerar uma dicotomia entre teoria e prática muitas vezes expressa
pelos professores em comentários como: “O curso foi bom, mas na prática a realidade é
outra”, “a teoria é muito bonita, mas difícil é fazer”.

A tendência escolanovista está subjacente em ações nas quais o foco é individual, as


relações são interpessoais e os aspectos, psicológicos. O planejamento é centrado nas
atividades a serem aplicadas e enfatiza as dinâmicas de grupo, jogos das mais diferentes
formas e dramatizações aplicadas ao ensino sem se debruçar sobre o objeto de conhecimento
ou sobre a atividade docente propriamente dita.

Diferentemente da tendência tradicional, a tendência escolanovista concebe que a mudança de


comportamento do educador se dá não por meio do domínio de conteúdos, mas, sim, pela
vivência das experiências propostas nos encontros.

Esses encontros podem gerar mudanças no discurso dos professores, mas a falta de subsídios
e instrumentos para desenvolver a prática acaba por gerar uma postura ‘espontaneísta’, ou
uma prática baseada no ensino tradicional. Dessa maneira, de forma inversa, a dicotomia
entre teoria e prática ainda se faz presente.

Fusari, ao analisar essa tendência, mostra preocupação com processos que acabam por não
considerar a atividade docente do professor em sua totalidade, e, citando Saviani, alerta: “a
escola tradicional, na medida em que se compromete com a transmissão de conteúdo, mesmo
de forma autoritária, revela-se mais democrática, de fato, do que a proclamada liberdade da
‘escola nova’, com mais atividades e menos conteúdo” (Saviani, 1986:52/53, apud Fusari,
1987:169).

Os processos de formação de educadores refletem a tendência tecnicista, ao tomarem como


elemento principal a organização racional dos meios, as tecnologias e os procedimentos de
ensino. A habilidade de planejar bem o trabalho, de executá-lo com controle e de avaliá-lo
segundo critérios previamente estabelecidos são competências desejáveis nos educadores para
os que desenvolvem ações nessa perspectiva.

A dicotomia entre teoria e prática não é superada, muito pelo contrário, subsiste uma visão de
educação fragmentada. Professores e especialistas cuidam cada qual do seu espaço, descolado
da realidade social, cujo compromisso maior seria a preparação para o mercado de trabalho,
com uma ênfase na tecnologia e, mais ainda, na crença de que os recursos tecnológicos
podem resolver os problemas educacionais.

A tendência crítica-reprodutivista transparece nas denúncias das desigualdades produzidas


pelo sistema capitalista e no papel ideológico da escola na manutenção dessa ordem. Se, por
um lado, representa um avanço ao compreender de forma clara a relação de dependência
entre a educação e a sociedade capitalista, por outro, não supera a dicotomia entre teoria e
prática no exercício da função docente, atendo-se a denunciar, não apresentando nenhuma
teoria para orientar a prática dos professores.

Além disso, ao não considerar o fazer pedagógico e postular que a escola, ao manter o sistema
vigente, exclui a possibilidade de transformação das condições existentes, acaba por mobilizar
no educador um sentimento de inércia à espera de mudanças na estrutura social para que, a
partir daí, possa mudar sua prática.

A proposta crítica supera a articulação mecanicista entre educação e sociedade, pois analisa


essa relação como essencialmente dialética e contraditória, ao mesmo tempo em que pensa na
possibilidade de transformações no quadro educacional e social (Meira, 2003:17).

Essa perspectiva considera que função própria da escola é transmitir de forma democrática a
cultura construída pelos homens através dos tempos, dando instrumentos para o aluno
perceber criticamente a realidade social e comprometer-se com a sua transformação.
É na e pela interação entre dois sujeitos reais, concretos, situados em determinado espaço e
tempo sócio-histórico que a aprendizagem dos conteúdos escolares ocorre. O trabalho do
educador assume então, nessa perspectiva, importância fundamental, uma vez que este se
constitui como mediador entre o aluno e os conteúdos de ensino.

Daí a necessidade fundamental de o educador conhecer muito bem o conteúdo que ensina,
sabê-los criticamente em relação ao social concreto e saber transformá-los em algo que
modifique o indivíduo, no próprio processo de aquisição desse saber (Fusari, 1987:181).

A postura crítica ao questionar as tendências tradicionalista e tecnicista presentes no cenário


da formação de professores, ao ultrapassar o espontaneísmo da tendência escolanovista e ao
ampliar a discussão que concebe a formação docente sob o foco das relações sociais, permitiu
um avanço importante no patamar das discussões sobre formação docente.

A conjuntura histórica e social dos anos 90 acirrou este debate e trouxe para a educação -
mais especificamente, para a formação continuada ---- a contribuição de autores e de
pesquisas que, se por um lado permitiram avanços e ampliações, por outro, suscitaram novas
dúvidas e indagações.

Nesta época é difundido no Brasil o livro Os professores e sua formação, coordenado pelo
português Antonio Nóvoa, que traz textos de pesquisadores da Espanha, Portugal, França,
Estados Unidos e Inglaterra, como Thomas S. Popekewitz, Carlos Marcelo Garcia, Donald
Schön, Angel Perez Gomes, Ken Zeichener, Lise Chantrine-Demailly (Pimenta, 2002:36).

Esses autores e outros, como Philipp Perrenoud, Maurice Tardiff, Gimeno Sacristán, Bernard
Charlot, Maria Tereza Estrela, Rui Canário e Isabel Alarcão, passaram, a partir de então, a
referenciar vários estudos sobre formação docente e, até mesmo, documentos oficiais como as
Diretrizes Curriculares para a Formação do Professor e os Parâmetros Curriculares Nacionais.

Em síntese, esses autores discutem uma formação de professores concentrada no trabalho


docente, nas relações que se estabelecem dentro da escola e na importância da vinculação
entre formação docente e práticas escolares como currículo, didática, avaliação e gestão de
sala, o que, no nosso entender, tem trazido uma contribuição relevante para a educação em
geral e a formação continuada mais especificamente.

No entanto, essa produção foi rapidamente absorvida por professores e pesquisadores


brasileiros, muitas vezes de forma hegemônica, refletindo os fenômenos (já discutidos na
introdução deste artigo) da panacéia para o problema educacional brasileiro e do modismo na
educação. Tendo em vista esse quadro – a tendência de se adotar, de forma acrítica, um
referencial “da moda”, de forma hegemônica, como a solução para os problemas da Educação,
negando as contribuições anteriores, consideramos importante promover uma discussão crítica
dessa literatura que passou a referenciar pesquisas e estudos sobre formação docente na
década de noventa.

Pesquisadores como Schön, Nóvoa e Perrenoud, entre outros, ao discutirem em suas obras a
importância de se romper com a racionalidade técnica, que privilegia a teoria em detrimento
da prática, podem inspirar ações que invertam o pêndulo e caiam no que alguns
autores2 chamam de praticismo, pragmatismo, ou até mesmo correr o risco de levar
educadores a desconsiderar as importantes contribuições que os aportes teóricos podem trazer
à reflexão.

Geglio (2003), analisando mais especificamente o pensamento de Donald Schön, aponta que o
autor, ao privilegiar a prática em detrimento da teoria, não estabelece entre ambas uma
relação dialética. Sua proposta de reflexão na ação não apresenta a prática como elemento de
síntese de construção e reconstrução teórica; sendo assim, não supera em sua obra a
dicotomia, ao contrário, desloca o foco da aprendizagem centrada na teoria para a
aprendizagem centrada na prática.

O autor chama a atenção para o fato de que centrar a formação profissional no fazer cotidiano
não ajuda a ultrapassar a ineficiência dos projetos que priorizam a produção acadêmica, pois
pode levar a um pragmatismo que restringe a ação profissional a um determinado fazer, além
de não oferecer subsídios para lidar com situações inesperadas.

Outra crítica importante a ser considerada é a de que a abordagem reflexiva, embora revele a
tentativa de uma perspectiva crítica, tente responder à necessidade de mudanças de nossa
época e coloque o professor como eixo central da formação docente, acaba, em suas
formulações, por desvincular a profissão do professor do desenvolvimento histórico da
sociedade.

Nessa direção, Facci (2003:53) alerta para o fato de que, embora as pesquisas sobre o
professor reflexivo busquem compreender no processo educativo a subjetividade e o
profissionalismo do professor, não se preocupam em compreender e até mesmo não
consideram as condições histórico-sociais em que a subjetividade é produzida e a profissão se
desenvolve.

Como podemos constatar, uma das principais questões apontadas em relação às teorias que
postulam um professor reflexivo refere-se exatamente ao entrelaçamento entre teoria e
prática, questão que permeia como já apontamos a formação de educadores.

Afirmamos também que a superação dessa dicotomia ainda é um desafio a ser vencido e que
ainda são necessários, apesar dos vários avanços, estudos mais aprofundados nesse campo.
Por outro lado, não podemos desconsiderar as contribuições de autores que concebem a
formação continuada como parte integrante da função docente, contendo e estando contida
nesta em uma relação dialética.

Formação continuada como parte integrante do trabalho docente

O homem, ao longo da vida, se apropria da cultura acumulada pelas gerações anteriores ao


mesmo tempo em que cria novas objetivações correspondentes às suas idéias e aos desafios
de seu tempo. Sendo assim, a educação é um processo fundamental, pois é por meio dela que
tal apropriação ocorre e que o indivíduo adquire instrumentos para criar essas novas
objetivações.

A apropriação do conhecimento socialmente construído se efetiva na interação entre membros


da cultura no interior de práticas sociais. Em nossa sociedade, essa apropriação se dá nas
esferas do cotidiano e em instituições criadas para esse fim, como a escola.

A função da escola é transmitir democraticamente a cultura construída ao longo do tempo,


instrumentalizando o aluno para perceber criticamente a realidade social e comprometer-se
com a sua transformação.

Ao professor cabe a função social de fazer a mediação entre o que o aluno aprende
espontaneamente na vida cotidiana e a formação do aluno no que não é reiterativo na vida
social, garantindo a apropriação de instrumentos culturais básicos que permitam elaboração de
entendimento da realidade social e promoção do desenvolvimento individual. Assim, a
atividade pedagógica do professor é um conjunto de ações intencionais, conscientes, dirigidas
para um fim específico.

Compreender a natureza da escola e da atividade docente nessa perspectiva implica articular a


aprendizagem do aluno à formação continuada do professor, e, como afirma Lima,
compreender que: a formação contínua deve estar “a serviço da reflexão e da produção de um
conhecimento sistematizado, que possa oferecer a fundamentação teórica necessária para a
articulação com a prática criativa do professor em relação ao aluno, à escola e à sociedade”
(Lima, 2001:32).

Para realizar seu trabalho docente é preciso que o professor se aproprie constantemente dos
avanços das ciências e das teorias pedagógicas. Há, ainda, uma razão muito mais premente e
mais profunda, como apontam Barbieri, Carvalho e Ulhe (1995:32), que é a própria natureza
do fazer pedagógico, que, sendo domínio da práxis é, portanto, histórico e inacabado.

Lima (2001) traz uma contribuição importante nesse sentido, ao elaborar um conceito de
formação continuada que parte de dois princípios de perspectiva marxista: o trabalho como
categoria fundante da vida humana e a práxis da atividade docente.

Formação contínua é a articulação entre o trabalho docente, o conhecimento e o


desenvolvimento profissional do professor, como possibilidade de postura reflexiva dinamizada
pela práxis (Lima, 2001:30).

A autora afirma, também, que a formação continuada não pode se efetivar se não estiver
conectada com os sonhos, a vida e o trabalho do professor.

Na mesma direção, Gatti ressalta que os processos de formação continuada

Só mostram efetividade quando levam em consideração as condições sociopsicológicas e


culturais de existência das pessoas em seus nichos de habitação e convivência, e não apenas
suas condições cognitivas. Mas apenas o levar em consideração essas questões como
premissas abstratas não cria mobilização para mudanças efetivas. O que é preciso conseguir é
uma integração na ambiência de vida e de trabalho daqueles que participarão do processo
formativo.(...) Metaforicamente, diríamos que a alavanca tem que se integrar ao terreno para
mover o que pretende mover (Gatti, 2003:6).

A autora chama a atenção, também, sobre a importância de se considerar os eventos sociais,


políticos, econômicos ou culturais que permeiam a vida grupal ou comunitária e também se
constituem como determinantes que moldam as concepções sobre educação, ensino, papel
profissional e as práticas a elas ligadas.

Altenfelder (2004:151) aponta que “a formação continuada de professores deve se concentrar


no trabalho docente e nas relações que se estabelecem na escola, o que resgata o próprio
espaço escolar como lócus importante de formação continuada”.

Ressalta, ainda, que o trabalho coletivo é fundamental para que os educadores possam vencer
os enormes desafios impostos pela realidade educacional brasileira. Alerta, também, que para
que o trabalho coletivo ocorra é fundamental um investimento nas relações interpessoais da
equipe escolar (Altenfelder, 2004:152).

Conclusão
São muitos os avanços e as contribuições teóricas que permitem aos formadores desenvolver
ações que levam em conta um professor inserido em um contexto sócio-histórico, que tem
como função transmitir o conhecimento socialmente acumulado em uma perspectiva
transformadora da realidade.

Para tanto, é fundamental que o formador tenha claros conceitos, idéias e concepções que
orientem suas ações e que encare as contribuições teóricas como subsídios que possibilitam a
reflexão sobre a prática e não como a solução final para todos os problemas, aceita de forma
hegemônica.

Essas constatações devem mobilizar todos aqueles que planejam e desenvolvem projetos de
formação continuada para a revisão e aprofundamento do tema a partir de questões de fundo,
como as propostas por Candau (2001:67): “Que tipo de Educação queremos promover? Para
que tipo de sociedade?”.

Ao mesmo tempo em que constatamos avanços, identificamos que ainda restam desafios,
principalmente em se ultrapassar a dicotomia entre teoria e prática, pois, como já apontamos
em estudos anteriores (Altenfelder, 2004:154), temos na área da formação continuada uma
crise análoga à que Vigotski (1999:2003) apontava na Psicologia no início do século passado 3.

Reconhecemos a necessidade de uma formação continuada que ultrapasse a dicotomia entre


teoria e prática, porém temos dificuldades em promover processos de formação continuada
nos quais a articulação teoria e prática seja reconhecida pelos professores.

Nesse sentido, acreditamos que ainda são necessários estudos e pesquisas que tragam novas
luzes a essa questão, apontando caminhos que nos possibilitem compreender melhor as
relações entre teoria e prática nos processos de formação continuada de professores.

Caminho esse que só poderá ser trilhado se formadores e pesquisadores levarem em conta a
necessidade de olhar, compreender, considerar e respeitar as necessidades dos professores,
considerando-os como parceiros na construção desse saber.

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  Endereço para correspondência:


Rua Itápolis, 1588.
CEP 01245-000, São Paulo, SP
E-mail ahaltenfelder@uol.com.br

 Notas
*Mestre em Psicologia da Educação; pesquisadora e formadora do CENPEC - Centro de Estudos
e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária; professora dos cursos de
Psicopedagogia do Instituto Sedes Sapientiae, das Faculdades Oswaldo Cruz e da Universidade
Prebisteriana Mackenzie.

1 - A esse respeito ver: Altenfelder, 2004; Bueno, 2002; Candau, 2002; Gatti, 2003, 2002;
Pimenta, 2002, entre outros.

2 - Ver Pimenta, 2002:22.

3 - Para Vigotski, no início do século XX, a Psicologia passava por uma crise que se revelava na
contradição entre o fato de já ter reconhecido a necessidade de uma ciência geral, que se
configurasse como metodologia, e, ao mesmo tempo, não ser capaz de produzi-la.

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