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ESTUDO

BASE PARA
UMA VIDA
CRISTÃ

BÍBLICO
SARA
TEMA 6: SALVAÇÃO
TEMA 6: SALVAÇÃO

1
SUMÁRIO
FATORES CONTEXTUAIS 5
O PAPEL DA LEI 5
O CRISTO 6

Heresias sobre a natureza de Jesus 6


Negações da humanidade de Jesus Cristo 7
Negação da divindade de Jesus Cristo 8
Negação da união pessoal de Cristo 9
Negação da distinção entre o Pai e o Filho 9
Concílio de calcedônia 10

DE QUE SOMOS SALVOS? 15


Separado de Deus: 15
Como a separação entre Deus e o homem ocorre? 16
Entregue ao Pecado 17
O homem se tornou pecador? 17
2. Do que Jesus nos salva? 18

EXPIAÇÃO 23
Termos do NT que descrevem diferentes aspectos da expiação 25
Sacrifício 26
Propiciação 26
Reconciliação 27
Redenção 28

JUSTIFICAÇÃO 32

2
REGENERAÇÃO 33
A. A Regeneração é uma obra exclusivamente de Deus 33
B. A natureza exata da regeneração é um mistério para nós 35
C. A regeneração genuína deve produzir resultados na vida 35

FILIAÇÃO 38
EVIDÊNCIAS BÍBLICAS SOBRE A DOUTRINA DA FILIAÇÃO 38
A ADOÇÃO SEGUE A CONVERSÃO E É RESULTADO DA FÉ SALVÍFICA 41
A ADOÇÃO É ALGO DISTINTO DA JUSTIFICAÇÃO 42
OS PRIVILÉGIOS DA ADOÇÃO 47

OS ESTÁGIOS DA OBRA DE CRISTO 49


Humilhação 50
A encarnação 50
A morte 53
A descida ao Hades 54
Exaltação 59
A ressurreição 59
A ascensão e a entronização à direita do Pai 60

FÉ E OBRAS 63
Fé salvadora 63
Informações gerais 66
Autor 66
Cenário e contexto 67
Esboço do conteúdo de Tiago 68
Comentário bíblico 69
A Fé Morta 69
Conclusão 74
Papel das obras em 1 João 75
Informações gerais 77
Autor 77
Cenário Contexto 78
Esboço do conteúdo de 1 João 80
O Teste Moral 81

SANTIFICAÇÃO 87
Graça comum 97
Diferença entre graça comum e graça salvífica 98
Razões para Graça Comum 99
Nossa resposta à doutrina da Graça Comum 101

3
Perguntas de Síntese 102

Anexos 103
A humanidade de Cristo 103
1. Fraquezas e Limitações Humanas 103
2. Impecabilidade 107
3. Por que era necessário que Jesus fosse plenamente humano? 111
Teria Cristo descido ao inferno? 116
Possível apoio bíblico para a descida ao inferno 116
Oposições bíblicas a uma descida ao inferno 119
Sobre o inferno 121
Hades e Geena: 121
Hades: 121
Geena: 121
Alguns termos utilizados nas Escrituras para transmitir a natureza aterrorizante do
inferno: 122
Qual é o objetivo da expiação de Cristo? 124
Descrições bíblicas da ira de Deus 132
Segurança na salvação/perseverança dos santos 134
Calvinista 135
Arminiana 136

Perguntas de Síntese 137

Referências Bibliográficas 138

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FATORES CONTEXTUAIS
O PAPEL DA LEI

A lei não deve ser vista como um elemento impessoal e estranho a Deus, mas
como a expressão de sua pessoa e vontade. Ele não ordena o amor e proíbe o
homicídio simplesmente porque assim o quer. Deus declara que o amor é bom
porque Ele mesmo é amor e que mentir é errado porque o próprio Deus não
pode mentir.

De fato, isso significa que a Lei é como uma transcrição da natureza de Deus.
Quando nos relacionamos com ela, seja de forma positiva ou negativa, não
estamos nos relacionando com um documento impessoal nem com um
conjunto de regulamentos, e sim com o próprio Deus. Desobedecer à Lei é
sério, não porque a Lei tenha algum valor ou dignidade inerentes que devam
ser preservados, mas porque a desobediência é realmente uma afronta à
natureza do próprio Deus.

Assim, o legalismo — a postura de que a Lei deve ser obedecida em razão de


si mesma — é inaceitável. Antes, a Lei deve ser encarada como um meio de
relacionamento com um Deus pessoal. Por isso, a violação da Lei, seja por
transgredi-la, seja por deixar de cumpri-la, acarreta sérias consequências de
merecimento de castigo, sobretudo a morte.

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O CRISTO

Para prosseguirmos com a exposição do tema, é importante ressaltar que


Cristo é tanto Deus quanto homem1. Ele é a segunda pessoa da Trindade,
eterno, preexistente e Deus, no mesmo sentido e grau que o Deus Pai. Ele
acrescentou a natureza humana à sua divindade.

Em nossa compreensão, a natureza humana de Jesus significa que sua obra


se aplica aos seres humanos. Como Jesus era realmente um de nós, ele era
capaz de nos redimir. Ele não era um estranho tentando fazer alguma coisa em
nosso favor, era um ser humano autêntico representando todos nós.

Além disso, a morte de um ser humano comum dificilmente teria o valor


necessário para cobrir os próprios pecados, menos ainda os pecados de toda a
humanidade. Porém, a morte de Jesus tem um valor infinito. Por ser Deus,
Jesus não precisava morrer. Ao morrer, ele fez algo que Deus jamais teria de
fazer. Como não tinha pecados, ele não precisava morrer para pagar por seus
pecados. Assim, sua morte pôde expiar os pecados de toda a humanidade.

Heresias sobre a natureza de Jesus


Nos primeiros cinco séculos, os pais da igreja lutaram para entender quem é
Jesus Cristo, como revelado nas Escrituras. Ele é Deus? Ele é humano de
fato? Como Jesus pode ser tanto humano como divino? Como essas duas
naturezas se relacionam na pessoa de Cristo? Em vários concílios ocorridos
nesta época, a igreja chegou a conclusões que se tomaram padrão para a fé

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cristã. A seguir, serão apresentadas as principais heresias (doutrinas falsas)
dessa época e, em seguida, as respectivas respostas dadas pela igreja.

As heresias antigas sobre a pessoa de Cristo podem ser agrupadas da


seguinte forma:

Negações da humanidade de Jesus Cristo

Em primeiro lugar, podemos mencionar as negações da humanidade de Jesus


Cristo, que seriam o docetismo, o apolinarianismo e o eutiquianismo.

Para os docetas, adeptos de uma heresia surgida em fins do primeiro século,


Cristo não foi plenamente encarnado na carne, pois a matéria é
intrinsecamente má. As epístolas de Colossenses e João argumentam contra
esta noção pré-gnóstica. Esta posição tem reaparecido atualmente no ensino
dos evangelistas da prosperidade.

Apolinário, bispo de Laodicéia, defendia a divindade de Jesus, mas o fez


sacrificando sua real humanidade. Ele entendia que, em Cristo, a alma divina
(ou Logos) tomou o lugar da alma humana. Foi Gregório de Nazianzo que
entrou em polêmica contra Apolinário, afirmando que “o que não é assumido
não é curado”. O Concílio de Constantinopla, ocorrido em 381, condenou o
apolinarianismo.

Eutiques, monge em Constantinopla, era protegido de Dióscoro, o sucessor de


Cirilo no bispado de Alexandria. Ele afirmava que a natureza divina de Cristo
absorveu a natureza humana. Cristo teria somente uma natureza após a união,
a divina, revestida de carne humana. Em resposta a esta questão, Flaviano, o
bispo de Constantinopla, baniu Eutiques de Constantinopla. Por sua vez,
Dióscoro organizou um sínodo em Éfeso, em 449, para apoiar Eutiques. Nessa
reunião, este tomou providências para depor Flaviano do bispado de

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Constantinopla. Por sua vez, Flaviano recorreu ao apoio do bispo de Roma,
Leão. Somente após amargas lutas, o eutiquianismo, conhecido posteriormente
como monofisismo (do grego monos, “apenas uma”, e physis, “natureza”), foi
condenado em Calcedônia, continuando a exercer influência sobre cristãos do
Egito, Etiópia, Síria, Armênia e outras regiões. A posição do Concílio de
Calcedônia, que reconhecia a dupla natureza de Cristo, algumas vezes foi
chamada diofisismo (termo grego que significa “duas naturezas”)

Negação da divindade de Jesus Cristo

Em segundo lugar, podemos mencionar as negações da divindade de Cristo,


que seriam o ebionismo, o adocionismo e o arianismo. Os ebionistas foram
defensores de uma heresia surgida em Israel, no final do primeiro século. O
nome é derivado do hebraico ( ’ebyôri), que significa “pobre”, “necessitado”,
“miserável”, “mendingo”, “pedinte de esmolas”. Eles ensinavam que Jesus era
um profeta extraordinário, que se identificava com os pobres, mas não era
Deus, sendo filho natural de José e Maria. Esta posição também tem
reaparecido atualmente no ensino do unitarismo e de alguns teólogos liberais e
adeptos da teologia da libertação.

Para os adocionistas que, às vezes, têm sido identificados com os modalistas,


Jesus era um homem tão submisso ao Pai, que o Pai o adotou como o seu
Cristo e Salvador dos homens. Assim, Jesus tomou-se Cristo, e agora possui
uma posição exaltada e divina.

O arianismo foi a principal heresia dos primeiros séculos da história da igreja.


Ário, um diácono de Alexandria, ensinava que Cristo era apenas uma criatura,
não o Deus eterno. Mas, mesmo não acreditando na divindade de Cristo, Ário e
seus seguidores usavam a linguagem ortodoxa. A frase-chave que resume a
compreensão cristológica deste movimento é: “houve um tempo quando Cristo

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não era”. O resultado dos debates em tomo desta doutrina foi a formulação de
uma das mais importantes confissões de fé cristãs, o Credo de Nicéia,
elaborado no primeiro grande concílio da igreja, realizado na cidade de Nicéia,
em maio de 325, e que foi estudado no capítulo 5. Esta posição tem
reaparecido na atualidade no ensino das testemunhas de Jeová.

Negação da união pessoal de Cristo

Em terceiro lugar, podemos mencionar a negação da união pessoal de Cristo,


que seria o nestorianismo. O bispo de Constantinopla, Nestório, ensinou que
Maria não era “Mãe de Deus” (theotokos), afirmando que Maria não deu à luz o
verdadeiro Deus. Antes, ela deu à luz o Jesus humano, cuja humanidade —
embora unida ao Logos divino — devia ser entendida como separada e distinta
de sua natureza divina. Para Nestório, ocorreu em Cristo uma união mecânica
de suas duas naturezas. Maria, então, é a “portadora de Cristo” (Christotokos)
ou “portadora da humanidade” (anthropotokos), porque, segundo ele, o corpo
de Jesus pertenceu à natureza humana e não à natureza divina. O
nestorianismo foi rejeitado no Concílio de Éfeso, ocorrido em junho de 431, e
dirigido por Cirilo, bispo de Alexandria.

Negação da distinção entre o Pai e o Filho

Em quarto lugar, podemos mencionar as negações da distinção entre o Pai e o


Filho, que seriam o sabelianismo e o modalismo. Sábelio, presbítero de
Ptolemaida, cria na noção de que só existe uma Pessoa divina, Deus Pai, que
se manifesta nas três formas, Pai, Filho e Espírito Santo. Deus, então, é uma
pessoa que se transformou no processo da história. Tertuliano e Epifânio, bispo
de Salamis, refutaram esta posição em fins do século ni e começo do século iv.
O modalismo, que surgiu com Paulo de Samosata, bispo de Antioquia,

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entendia que Deus apresentou-se em três modos, mas não existe eternamente
como três pessoas. Intrinsecamente, Deus é somente uma pessoa. Esta
posição tem reaparecido na atualidade no ensino dos pentecostais unidos. Esta
posição foi rejeitada no Sínodo de Antioquia, ocorrido em 268. O gráfico a
seguir ajuda a visualizar as falsas concepções sobre a pessoa de Cristo que
acabamos de considerar.

Concílio de calcedônia

Trataremos, agora, do Concílio de Calcedônia, ocorrido no contexto da heresia


eutiquiana. A posição deste concílio foi preparada pela carta que Leão, bispo
de Roma, enviou em resposta ao pedido de Flaviano, bispo de Constantinopla.
Esta carta foi conhecida como Tomo a Flaviano. A resposta a Flaviano, que foi
morto em decorrência de uma surra recebida por monges que apoiavam
Dióscoro, durante aquele que Leão posteriormente chamou de o “sínodo dos
ladrões”, ocorrido em Éfeso, afirmou claramente a doutrina da encarnação —
Jesus é uma única “pessoa” com duas “naturezas”. Louis Berkhof resume os
cinco pontos que são mencionados no Tomo a Flaviano:

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“(a) Existem duas naturezas em Cristo, que são permanentemente distintas, (b)
Essas duas naturezas são unidas em uma Pessoa, cada uma das quais
realizou sua própria função apropriada na vida encarnada, (c) Da unidade da
Pessoa segue-se a comunicação de atributos (communicatio idiomatum). (d) A
obra de redenção requeria um Mediador ao mesmo tempo humano e divino,
temporal e não-temporal, mortal e imortal. A encarnação foi um ato de
condescendência da parte de Deus, porém, o Logos não deixou de ser
verdadeiro Deus. A forma servi [“forma de servo”] não depreciava a forma dei
[“forma de Deus”], (e) A varonilidade de Cristo é permanente, e sua negação
implica na negação docética da realidade dos sofrimentos de Cristo.”

Mark Noll lembra que Leão mostrou que a questão da humanidade e da


divindade de Cristo relaciona-se diretamente com a esperança da salvação.
Assim sendo, o nascimento de Cristo “ocorreu para que a morte pudesse ser
vencida e para que o diabo, que antes exercia o domínio da morte, pudesse ser
destruído pelo seu poder, pois nós não poderíamos vencer o autor do pecado e
da morte, a menos que aquele, que o pecado não pôde manchar nem a morte
pôde reter, assumisse a nossa natureza e a fizesse sua”. Além disso, Leão
acrescentou algumas afirmações cuidadosas sobre as maneiras pelas quais
era apropriado, e as maneiras pelas quais não era apropriado, dizer que os
atributos humanos e divinos foram permutados na pessoa única terrena de
Cristo. Nesse ponto ele tratou da complexa questão da comunicação de
atributos (communicatio idiomatum) entre as naturezas. É apropriado, por
exemplo, dizer que “Deus morreu” na cruz ou que “o homem Jesus conhecia
todas as coisas”? Leão, caminhando sobre uma linha tênue, manteve juntas a
distinção das naturezas e a unidade da pessoa: “Cada forma” de Cristo, como
Deus e ser humano, “desempenha as suas atividades próprias em comunhão
com a outra”. Depois da inesperada morte do imperador Teodósio II, que
apoiou o “sínodo dos ladrões”, seu sucessor, Marciano, um soldado
profissional, e novo imperador do Oriente, começou a desfazer os terríveis atos

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ocorridos naquele sínodo. Ele mandou trazer o corpo de Flaviano de Éfeso
para Constantinopla, onde foi sepultado com honras, na catedral de Santa
Sofia, que ficava no centro da capital. E em 23 de maio de 451, o imperador
convocou um concílio de bispos que, segundo ele esperava, iria “pôr fim às
disputas e estabelecer a verdadeira fé mais claramente e para sempre”. Com
este concílio esperava-se sanar uma série de controvérsias que se seguiram
ao “sínodo dos ladrões”. Leão queria que o concílio fosse realizado na Itália,
mas se contentou com a Calcedônia (a moderna Kadikõy, na Turquia), na
região da Bitínia, na Ásia Menor, por estar mais perto da capital do império.
Leão não participou do encontro, mas enviou alguns representantes. O Concílio
de Calcedônia iniciou-se em 8 de outubro de 451.

O concílio se reuniu na Basílica de Santa Eufêmia, onde os 520 bispos


presentes consumaram seu chamado à unidade de três formas: reafirmando a
fé como confessada em Nicéia e Constantinopla, aceitando como documento
ortodoxo o Tomo escrito por Leão e oferecendo uma definição de fé para tratar
do mistério do Verbo que se fez carne. Depois de intensas deliberações, em
que as decisões do “sínodo dos ladrões” foram rejeitadas e Dióscoro foi
enviado para o exílio, o próprio Marciano leu a definição, em 25 de outubro de
451:

“Fiéis aos santos padres, todos nós, perfeitamente unânimes, ensinamos que
se deve confessar um só e mesmo Filho, nosso Senhor Jesus Cristo, perfeito
quanto à divindade, perfeito quanto à humanidade, verdadeiro Deus e
verdadeiro homem, constando de alma racional e de corpo; consubstancial,
segundo a divindade, e consubstancial a nós, segundo a humanidade; em
todas as coisas semelhante a nós, excetuando o pecado,26 gerado segundo a
divindade antes dos séculos pelo Pai e, segundo a humanidade, por nós e para
nossa salvação, gerado da Virgem Maria, mãe de Deus; Um só e mesmo
Cristo, Filho, Senhor, Unigênito, que se deve confessar, em duas naturezas,

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inconfundíveis e imutáveis, indivisíveis e inseparáveis; a distinção das
naturezas de modo algum é anulada pela união, mas, pelo contrário, as
propriedades de cada natureza permanecem intactas, concorrendo para formar
uma só pessoa e subsistência; não dividido ou separado em duas pessoas.
Mas um só e mesmo Filho Unigênito, Deus Verbo, Jesus Cristo Senhor;
conforme os profetas outrora a seu respeito testemunharam, e o mesmo Jesus
Cristo nos ensinou e o credo dos padres nos transmitiu.”

O que ocupou a mente dos homens que formularam este credo era o fato de
que somente um salvador que é verdadeiramente Deus e verdadeiramente
homem pode salvar os homens. As mais importantes implicações desta
declaração são assim resumidas:

1. As propriedades de ambas as naturezas podem ser atribuídas a uma só


Pessoa, como, por exemplo, onisciência e conhecimento limitado.

2. Os sofrimentos do Deus-homem podem ser reputados como real e


verdadeiramente infinitos, ao mesmo tempo em que a natureza divina não é
passível de sofrimento.

3. E a divindade, e não a humanidade, que constitui a raiz e a base da


personalidade de Cristo.

4. O Logos não se uniu a um indivíduo humano distinto, e sim à natureza


humana. Não houve primeiro um homem já existente com quem o eterno Filho
de Deus se teria associado. A união foi efetuada com a substância da
humanidade no ventre da virgem.

Houve uma aceitação quase imediata da Definição de Calcedônia no Ocidente.


E, em pouco tempo, grande parte da igreja oriental reconheceu que a Definição
era uma declaração fiel do mistério que está no âmago da fé cristã. Deve-se

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notar que o que estava em jogo era algo muito mais importante do que
questões teológicas ou eclesiásticas. A questão central era esclarecer as
questões acerca da pessoa de Cristo. Nenhuma pessoa daquela época
expressou isso de modo mais claro que Leão, e da forma como ele relacionou
a humanidade e a divindade em Cristo com a questão mais ampla de como os
seres humanos podem ser redimidos:

“Salvaguardadas, pois, as propriedades de ambas as naturezas e substâncias,


unidas numa só Pessoa, foi assumida a humildade pela majestade, pela força a
fraqueza, pela eternidade a mortalidade. Para obter o débito de nossa
condição, a natureza inviolável uniu-se à passível. Assim, como remédio
conveniente à nossa cura, um só e mesmo mediador entre Deus e o homem, o
homem Jesus Cristo, de um lado podia morrer, e doutro lado, não o podia.
Nasceu o verdadeiro Deus com a íntegra e perfeita natureza de um verdadeiro
homem, todo o que é seu, todo inteiro no que é nosso. (...) No princípio
assumiu a condição de servo, mas não a mancha do pecado; exaltou o
humano, sem subtrair coisa alguma do divino. (...) Condescendência não é
deficiência de poder. (...) Cada uma das duas naturezas conservou sem alterar
suas propriedades. Como a natureza de Deus não eliminou a natureza de
servo, assim a natureza de servo não diminuiu a natureza de Deus. (...) O
Senhor do universo assumiu a condição de servo, velando a imensidão de sua
majestade. Dignou-se o Deus impassível tornar-se homem passível e o imortal
submeter-se às leis da morte.”

Ao colocar percepções como essas em uma definição, os cristãos reunidos em


Calcedônia reafirmaram sua confiança na grande obra de salvação que este
“único Filho” realizou. O Concílio de Calcedônia não pretendeu definir o que
não pode ser definido, mas sim confessar Cristo como verdadeiro Deus e
verdadeiro homem. Precisamos ter em mente que os famosos quatro adjetivos
negativos de Calcedônia (“inconfundíveis e imutáveis, indivisíveis e

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inseparáveis”) são como bóias de sinalização, mapeando o estreito canal em
que o barco da fé cristã pode navegar, alertando-nos contra os perigos
ameaçadores dos dois lados deste canal.36 Muitos continuaram a se opor à
Definição de Calcedônia, mas esta se tomou o padrão da ortodoxia cristã. Scott
Horrell afirma:

“Quaisquer que sejam as tradições teológicas, historicamente, a cristologia de


Calcedônia tem sido o divisor de águas entre o verdadeiro e o falso
cristianismo. Conforme elaborada e discutida em profundidade por Anselmo de
Cantuária, Martinho Lutero, João Calvino, Karl Barth (...) e centenas de outros,
a Definição de Calcedônia — embora vista como obsoleta por muitos —
continua sendo o modelo clássico para cristologia, porque procura ser fiel às
Escrituras.”

Então, diante do mistério proclamado por Calcedônia, só nos resta adorar a


Cristo Jesus, o verdadeiro Deus e verdadeiro homem, que veio ao mundo para
nossa salvação.

DE QUE SOMOS SALVOS?


Separado de Deus:

Além de Rei, Legislador e Juiz do Universo, Deus também é Salvador, somente


ele tem poder para salvar. Mas salvar do que? Em Gênesis 18 após ser
questionado por Abraão acerca do destino dos ímpios e dos justos que
moravam em Sodoma e Gomorra, Deus responde a Abraão, em Gênesis
18:25: -“Longe de ti fazer tal coisa: matar o justo com o ímpio, tratando o justo
e o ímpio da mesma maneira. Longe de ti! Não agirá com justiça o Juiz de toda
a terra?”, ou seja, Ele punirá os ímpios conforme as suas dívidas. Vivemos em

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uma época de relativismo moral em que qualquer menção a um Deus justo é
ridicularizada como primitiva. A humanidade e a história estão caminhando
para um Julgamento Final, que estão recebendo com raiva ou escárnio, como
descrito por Pedro em 2 Pedro 3:3-4: - “Tendo em conta, antes de tudo, que,
nos últimos dias, virão escarnecedores com os seus escárnios, andando,
segundo as próprias paixões e dizendo: ‘Onde está a promessa da sua vinda?
Porque, desde que os pais dormiram, todas as coisas permanecem como
desde o princípio da criação”. É certo, haverá o Dia do Juízo Final, que está
próximo. Será um dia em que Deus e Sua justiça serão vindicados, e cada
homem será recompensado de acordo com o que ele fez. Enquanto esse dia
não chega, é importante termos uma auto-análise do rumo que estamos
traçando na nossa história, pois talvez você esteja longe de Deus e nem saiba,
e é exatamente sobre isso que iremos falar.

1. Como a separação entre Deus e o homem ocorre?

Como já abordado antes, a natureza do homem é pecaminosa, e o pecado que


cometemos resulta possivelmente o maior e mais fundamental de todos os
julgamentos: a separação ou o afastamento de Deus. Assim como a morte
física é a separação da alma do corpo, a morte espiritual é a separação da
alma de Deus. Deus sendo moralmente perfeito é separado de todo mal, é
impossível para Ele sentir prazer no pecado ou ter comunhão com o pecador. A
grande muralha entre Deus e o homem é pecado, se o pecado não for tirado do
caminho, o homem está sujeito a viver e morrer fora da comunhão e ser
separado da plenitude da benção de Deus.

O pecado implica diretamente em algumas verdades sobre Deus, como:

1. Deus é autor de toda vida, tanto física como espiritual. Estar distante de
Deus, portanto, é estar diante da própria vida.

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2. Deus é a fonte de todo o conhecimento e luz. Estar distante de Deus,
portanto, é estar entregue à ignorância das trevas.

3. Deus é o manancial infinito da glória, valor e maravilha. Estar distante de


Deus, portanto, é estar unido a tudo o que é inferior, sem valor e mundano.

4. Deus é padrão de tudo o que é certo é bom. Estar distante de Deus,


portanto, é estar entregue a tudo que é injusto, pervertido e mau.

5. Deus é a razão da existência do homem. Estar distante de Deus, portanto,


é estar distante do propósito e significado da existência, ao mesmo tempo em
que se está entregue à futilidade e desesperança.

Entregue ao Pecado

1. O homem se tornou pecador?

Através do pecado, o homem conseguiu reverter toda a sua natureza, de tal


modo que aquele que pratica o mal, não é só considerado pecador, mas sim
inimigo de Deus. Nós somos descendentes de Adão, portanto a nossa origem é
a mesma, somos pecadores e precisamos do poder de Deus, em Jesus Cristo
para sermos salvos. Desde a queda, a humanidade foi condenada, ao ponto
que nesse mundo natural, o pecado é visto como algo normal do ser humano.
Um exemplo simples disso é: uma criança, que tem os seus pais pecadores,
que por sua vez tiveram os pais também pecadores e assim por diante. Essa
determinada criança, não precisa ser ensinada a pecar, pois assim como os
seus pais, ela fez isso naturalmente, o que mostra o quão perdida a
humanidade está.

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2. Do que Jesus nos salva?

Em Romanos 1:16-32, Paulo é claro, Deus contra toda a impiedade e injustiça


dos homens, revelou a sua ira, entregando o homem ao seu próprio pecado. O
homem passou a ter um potencial enorme em ser perverso, como a Bíblia diz:
“Esse mundo jaz no maligno”. Porém graças à misericórdia de Deus em Jesus
Cristo, Ele intervém no mundo e devido a esse ato de graça nós podemos ser
novas criaturas em Jesus Cristo e não mais em Adão.

a. Ira de Deus:
i. A Ira de Deus no Antigo e Novo Testamento

A ira de Deus é resultado do confronto entre sua santidade, justiça e amor


versus a depravação, injustiça e falta de amor do homem. No Antigo
Testamento a palavra “ira” possui três traduções diferentes do hebraico:

● qetsep - ira, raiva, indignação


● hema - ira, raiva, nojo, desgosto, furia, cólera, ardor, veneno
● aph2 - narina, nariz

No Novo Testamento, a palavra ira possui duas traduções no grego:

● orgê - ira, raiva


● thumós - raiva, indignação, paixão, fúria, ira

Biblicamente, a ira divina é o descontentamento santo de Deus e Sua justa


indignação direcionada ao pecador e seu pecado.

ii. A ira de Deus é uma emoção?

2
Aph vem ressaltar a raiva como um dilatar das narinas - como nós mesmos fazemos quando estamos
nervosos.

18
A ira de Deus não se trata de uma emoção descontrolada, irracional, e egoísta
- aquela que, geralmente, nós temos. A ira do Senhor é resultado do Seu
caráter e um elemento necessário para o seu governo.

Em sua natureza, Deus reage fortemente contra o pecado. Por Ele ser santo,
rejeita o mal e quebra sua comunhão com aqueles que não creem, os ímpios.
Por ser amor, ama zelosamente tudo que é bom, e manifesta ódio por tudo que
é mal. Deus é justo, por isso julga a maldade e a condena.

Se nós somos alvo da ira de Deus, isso se deve pois desafiamos a soberania
do Senhor, violamos Sua vontade santa e nos colocamos, por escolha própria,
em julgamento. A seguir, serão apresentados aspectos da ira de Deus de
acordo com as Escrituras.

iii. Por que a ira de Deus cai sobre o homem?

Ler Romanos 1:18 (ARA)

De acordo com o versículo, a palavra detém vem do grego katécho, que


também pode ser traduzida como “restringir, impedir, suprimir ou reter”. A
revelação da ira de Deus não é um ato movido por puro capricho, mas a
resposta justa de um Deus santo à injustiça do homem.

iv. Como Deus manifesta sua ira?

Ler Êxodo 15:7 (ARA)

No versículo a palavra "excelência" é traduzida da palavra hebraica gaon, que


também significa exaltação, glória, majestade e superioridade. A ira do homem
é frequentemente uma revelação de alguma falha ou fraqueza em seu caráter.
Ao contrário disso, a ira de Deus é uma revelação de Sua perfeição,
excelência.

19
v. É possível compreender a ira de Deus?

Ler Salmos 90:11, Jeremias 10:10, 23:19-20, Naum 1:6 (ARA)

Ninguém jamais conheceu toda a extensão da ira de Deus para com os ímpios.
O temor do homem ao Senhor deve estar de acordo com a grandeza de Deus.
Deve ser sempre a busca de todos nós, pois nenhuma pessoa conhece a ira de
Deus como ela realmente é e, portanto, ninguém teme a Deus como realmente
deveria.

vi. Ira é apenas um assunto exclusivo do Antigo Testamento?

Ler Romanos 2:5-6, Efésios 5:3-6 e Colossenses 3:5-6 (ARA)

A ira de Deus é claramente revelada no Novo Testamento. Entre os versículos


citados, é possível analisar que por meio de sua desobediência, os homens
acumulam ira como um tesouro. Além disso, a referência ao fim dos tempos e
ao julgamento universal de todos clarifica o momento de ira do Senhor.

vii. Qual é a postura de todos os homens diante da ira de Deus?

Ler 2 Pedro 3:3-4, Salmos 76:7, 90:11-12 (ARA)

Os pecadores muitas vezes negam a realidade do juízo e da ira divinos, além


de zombarem dessas doutrinas e dos que as proclamam. Diante da ira do
Senhor, devemos agir com temor, sempre. Buscar o aprendizado com Cristo,
aprender dEle, para termos um coração sábio.

viii. Mesmo a Ira de Deus existindo, como se manifesta a Sua misericórdia?

Ler Êxodo 34:6-7 (ARA)

20
A misericórdia de Deus é revelada através do Seu perdão concedido ao
arrependido e aquele que crê.

b. Morte:

O primeiro homem foi criado à imagem de Deus, porém, tanto se perdeu com o
advento do pecado que a existência do homem se tornou tragicamente
distorcida e deformada, ficando irreconhecível. O homem tornou-se um ser de
curta duração, de cansaço e de futilidade (Eclesiastes 3:19-20 e Salmos
49:10-14).

A maior prova da ira de Deus contra a injustiça do homem é a morte física -


separação da alma do corpo. Essa consequência está diretamente ligada ao
pecado. E é importante ressaltar que a morte do homem não significa sua
aniquilação, mas sim que deixam de existir na vida terrena e passam a existir
ou em eterna comunhão com Deus ou em eterna separação dele.

A morte é um lembrete de Deus para o homem sobre sua mortalidade e grande


necessidade de redenção, que ele volte das preocupações deste mundo para
as preocupações da eternidade. Esta é inegável ao homem, mas sua natureza
exata é um mistério ao homem, não se pode confiar em relatos de pessoas que
dizem ter ido ao “outro lado” e voltaram, se quisermos ter uma palavra
garantida sobre esse mistério devemos buscar na Bíblia.

Em alguns textos da Palavra podemos aprender 2 pontos sobre a morte. O


primeiro é que a morte não é o fim da existência humana consciente. O
segundo, na morte, o corpo do homem volta ao pó (Gênesis 3:19), até a
ressurreição e assim seu espírito retorna a Deus.

A Bíblia é clara e não se preocupa em atenuar a dura realidade sobre a morte


do homem: eles morrem porque são pecadores. Em Gênesis 2:17, é possível
ver que a morte não foi mesclada ao tecido da criação desde o princípio, mas a

21
morte entrou em nosso mundo através do pecado de Adão e passou para
todos os homens. É importante ressaltar, que a morte é sempre a manifestação
da ira de Deus, entretanto, não se pode dizer que aqueles que morrem mais
cedo, morreram mais cedo por serem mais pecadores que os demais.

Descrever a morte como uma manifestação do juízo de Deus é simplesmente


dizer que cada um de nós faz parte de uma raça caída e pecadora, e que a
morte é uma manifestação do julgamento de Deus contra todos.

A morte é universal, todos os homens morrem. Temos que ter esse


entendimento de que somos mortais e que não temos como escapar ou impedir
esta verdade.

c. Inferno:

A maior manifestação da ira de Deus é o inferno. A consequência do pecado


não está relacionada apenas a uma morte física, mas além disso, há um
julgamento final e aqueles que morrerem em seus pecados são condenados a
passar a eternidade no inferno. Mesmo que essa doutrina seja frequentemente
ridicularizada e rejeitada, não podemos ignorar isso. Quando se é estudado a
respeito do inferno é necessário ter cuidado em se prender em fantasias
criadas pelo mundo, também cuidado de invalidar ou diminuir o que as
escrituras dizem sobre ele.

I. Exclusão da presença bendita de Deus:

22
O inferno representa a exclusão da presença bendita de Deus. E a ausência da
presença dele é que faz o inferno ser um lugar de tormento3. De fato, o inferno
é o inferno porque Deus está lá na plenitude da sua justiça e ira.

III. Um sofrimento indescritível:

As escrituras dizem que o inferno é um local de extremo sofrimento,


principalmente os evangelhos. Mas a escritura é clara de que Deus é justo, por
tanto, os ímpios não são cruelmente torturados, eles sofrem a justiça perfeita
pelo seu pecado. Deus não tem prazer na morte dos ímpios (Ezequiel
18:23,32), no entanto, Deus é um Deus de justiça e o inferno é o lugar onde ela
é dispensada sobre os ímpios, estes recebem a medida exata da punição que
lhes é devida.

Os escritores bíblicos usaram os maiores terrores conhecidos pelo homem na


terra para descrever os terrores do inferno, porém, podemos ter a certeza de
que o terror do inferno é pior do que qualquer coisa encontrada na terra. Fogo,
escuridão, enxofre e fumaça, são apenas modestas tentativas de descrever
uma realidade muito mais aterradora do que essas palavras podem transmitir.
Da mesma forma que as glórias do céu não podem ser compreendidas pela
mente humana ou comunicadas através da linguagem humana, os terrores do
inferno estão além da nossa compreensão e capacidade de descrever.

EXPIAÇÃO
Podemos definir a expiação como a obra que Cristo realizou em sua vida e
morte para obter nossa salvação. Essa definição indica que usamos a palavra

3
Lucas 16:28 - Da palavra grega básanos, que se refere a dor severa, frequentemente associada à
tortura. No entanto, é importante ressaltar que o inferno não é um lugar de tortura demoniaca, como
descrito na literatura “A divina Comédia” do poeta Dante Alghien, antes, é um lugar de perfeita justiça,
onde cada homem recebe a medida exata daquilo que merece. É por isso, que temos que ter cuidado
quando estudamos, para não deixar que ilusões criadas pelo mundo interfiram no nosso entendimento.

23
expiação num sentido mais amplo em que às vezes é utilizada. Ela é
empregada de vez em quando para se referir apenas ao fato de Jesus morrer e
pagar nossos pecados na cruz. Mas, uma vez que os benefícios salvíficos
chegam até nós também pela vida de Cristo, ela foi incluída em nossa
definição.

Pensando nisso, podemos perguntar: Qual foi a causa última que levou Cristo a
vir para este mundo e morrer pelos nossos pecados? Para encontrar a
resposta, devemos estudar o assunto em alguma coisa no caráter do próprio
Deus. E aqui as Escrituras apontam para duas coisas: o amor e a justiça de
Deus.

O amor de Deus como uma das causas da expiação é descrito na passagem


mais conhecida da Bíblia:

“Porque Deus amou ao mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito, para que
todo o que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna” (Jo 3.16).

Mas a justiça de Deus também exigia que ele encontrasse um meio pelo qual a
pena pelos nossos pecados fosse paga, pois ele não podia aceitar-nos em
comunhão consigo mesmo a menos que a penalidade fosse paga.

Portanto, o amor e a justiça de Deus foram a causa última da expiação. No


entanto, não nos ajudará em nada perguntar qual dos dois é mais importante,
pois sem o amor de Deus, ele nunca teria dado nenhum passo para nos
redimir, mas sem ajustiça de Deus, não teria sido cumprida a exigência
específica de que Cristo obtivesse nossa salvação morrendo pelos nossos
pecados. Tanto o amor como a justiça de Deus foram igualmente importantes.

24
Outro questionamento que pode surgir é se havia alguma outra maneira de
Deus salvar os seres humanos além de enviar seu Filho para morrer em nosso
lugar?

Antes de responder a essa pergunta, é importante entender que Deus não


tinha ne­nhuma necessidade de salvar ninguém. Quando nos conscientizamos
de que “Deus não poupou anjos quando pecaram, antes, precipitando-os no
inferno, os entregou a abismos de trevas, reservando-os para juízo” (2Pe 2.4),
percebemos que Deus poderia também ter escolhido com perfeita justiça
deixar-nos em nossos pecados, esperando o julgamento; ele poderia ter
escolhido não salvar ninguém, assim como fez com os anjos pecaminosos.
Assim, nesse sentido a expiação não era absolutamente necessária.

Mas, uma vez que Deus, em seu amor, decidiu salvar os seres humanos, então
várias passagens nas Escrituras indicam que não havia outra maneira de Deus
fazê-lo a não ser pela morte de seu Filho. Portanto, a expiação não era
absolutamente necessária, mas, como consequência da decisão divina de
salvar alguns seres humanos, a expiação era absolutamente necessária.

Termos do NT que descrevem diferentes aspectos da expiação

A obra expiatória de Cristo é um evento complexo que tem vários efeitos sobre
nós. O Novo Testamento usa diferentes palavras para descrevê-los; vamos
examinar quatro termos mais importantes. Eles mostram como a morte de
Cristo atendeu a quatro necessidades que temos como pecadores:

1. Merecemos morrer como castigo pelo pecado.


2. Merecemos receber a ira de Deus contra o pecado.
3. Estamos separados de Deus pelos nossos pecados.
4. Estamos escravizados pelo pecado e pelo reino de Satanás.

25
Essas quatro necessidades são atendidas pela morte de Cristo da seguinte
maneira:

Sacrifício

Para pagar a pena de morte que merecemos por causa de nossos pecados,
Cristo morreu como sacrifício por nós. Ele “se manifestou uma vez por todas,
para aniquilar, pelo sacrifício de si mesmo, o pecado” (Hb 9.26).

Propiciação

Para nos livrar da ira de Deus que merecemos, Cristo morreu como propiciação
pelos nossos pecados.

“Nisto consiste o amor: não em que nós tenhamos amado a Deus, mas em que ele nos
amou e enviou o seu Filho como propiciação pelos nossos pecados” (IJo 4.10).

Propiciação significa literalmente “propiciatório” — a tampa da arca da aliança,


no Tabernáculo, em que o sangue do sacrifício era aspergido pelo sumo
sacerdote no dia da expiação. Deus, então, concedia o perdão a Israel. A morte
de Jesus Cristo na cruz é o antítipo4 daquele ritual. A propiciação é uma ação
dirigida à pessoa ofendida com o propósito de mudar a sua atitude, de ira para
reconciliação (Rm 3.25-26; Hb 2.17; lJo 2.2; 4.10).

As numerosas passagens que tratam da ira de Deus contra o pecado são


provas de que a morte de Cristo foi necessariamente propiciatória. Lemos
sobre a ira de Deus contra o pecado em Romanos 1.18; 2.5, 8; 4.15; 5.9; 9.22;
12.19; 13.4-5; Efésios 2.3; 5.6; Colossenses 3.6 e I Tessalonicenses 1.10; 2.16;
5.9.

4
Antítipo é uma figura utilizada como representação de uma outra

26
A propiciação, então, é dirigida à necessidade que surge com a ira de Deus. A
propiciação é a provisão do amor divino. Ela não é cruel e nem caprichosa,
mas a manifestação do amor, uma ação amorosa pela qual o propósito
gracioso de Deus é posto em efeito de acordo com sua justiça.

Portanto, em seu sofrimento na cruz, Cristo se tornou objeto da ira plena de


Deus. Ele foi amaldiçoado e abandonado, sendo feito pecado por nós, como se
ele mesmo tivesse quebrado a aliança e violado a lei justa e perfeita de Deus.
Ele sofreu toda a fúria da ira do Deus santo contra a imundície, a rebelião e a
maldade que provêm do coração contaminado dos pecadores. O que ele
passou foi muito além das exigências da justiça humana. Foi a justiça perfeita
de Deus que foi satisfeita na cruz. E isto exige um preço muito maior que
qualquer tribunal humano poderia exigir. Mas Jesus fez tudo isso
voluntariamente por nós.

Na sua plenitude, propiciação não é apenas expiação (anulação) dos pecados.


Propiciação pressupõe a ira e o desprazer de Deus, e o propósito da
propiciação é a remoção deste desprazer.

Reconciliação

Para vencer a nossa separação de Deus, precisávamos de alguém que


proporcionasse reconciliação e dessa forma nos trouxesse de volta à
comunhão com Deus. Paulo diz que Deus “nos reconciliou consigo mesmo por
meio de Cristo e nos deu o ministério da reconciliação” (2Co 5.18-19).

A palavra “reconciliação” (Rm 5.6-11) tem o sentido de “fazer a paz”, “trocar


inimizade por amizade” — a reconciliação é dirigida à necessidade criada por
nossa alienação de Deus. A base da reconciliação é o amor sacrificial de Deus

27
em Cristo. Somos reconciliados, de um lado, pela morte de Jesus Cristo na
cruz (5.6-8), e, por outro lado, pela ressurreição do mesmo salvador (5.9-11).

No processo, toda a iniciativa é de Deus, como bem atesta o ensino bíblico:


“nos reconciliou consigo mesmo por meio de Cristo” (2Co 5.18) , “ele os
reconciliou pelo corpo físico de Cristo, mediante a [sua] morte” (Cl 1.20-22).

Esta reconciliação é principalmente de Deus para conosco, e somente depois é


efetuada a nossa reconciliação com ele. Não é que Deus esteja simplesmente
sendo “bonzinho” e amoroso para conosco, como se a nossa inimizade contra
ele fosse o único impedimento para essa reconciliação. Em primeiro lugar,
Deus é inimigo de todo pecador, e é esta inimizade que tem de ser
primeiramente removida, por meio da propiciação da ira de Deus.

Em outras religiões, o homem tenta se reconciliar com a divindade. Mas, no


cristianismo, é Deus quem primeiro tem se reconciliado com pecadores,
oferecendo perdão e amizade por meio da fé, e somente por meio da fé.

Redenção

Uma vez que como pecadores estamos escravizados ao pecado e a Satanás,


precisamos de alguém que nos proporcione redenção e, dessa forma, nos
“redima” de nossa servidão.

Quando falamos em redenção, entra em foco a ideia de “resgate”. Resgate é o


preço pago para redimir alguém da escravidão ou cativeiro. Jesus disse de si
mesmo: “Pois o próprio Filho do Homem não veio para ser servido, mas para
servir e dar a sua vida em resgate por muitos” (Mc 10.45).

Se perguntarmos a quem foi pago o resgate, percebemos que a analogia


humana de pagamento de resgate não se ajusta à expiação de Cristo em todos

28
os detalhes. Embora estivéssemos escravizados ao pecado e a Satanás, não
havia nenhum “resgate” a ser pago nem ao “pecado” nem ao próprio Satanás,
pois eles não tinham poder para exigir tal pagamento, nem era Satanás aquele
cuja santidade foi ofendida pelo pecado e que requeria que uma pena fosse
paga por isso.

Como vimos anteriormente, a pena pelo pecado foi cumprida por Cristo e
recebida e aceita por Deus Pai. Mas hesitamos em falar em pagamento de
“resgate” a Deus Pai, porque não era ele que nos mantinha como escravos,
mas sim Satanás e nossos próprios pecados. Portanto, neste ponto a ideia de
pagamento de resgate não pode ser forçada em todos os detalhes. É suficiente
observar que um preço foi pago (a morte de Cristo), e como resultado fomos
“redimidos” da servidão.

Fomos redimidos da escravidão a Satanás porque “o mundo todo está debaixo


do poder do Maligno” (lJo 5.19), e quando Cristo veio, ele morreu para que
“livrasse todos que, pelo pavor da morte, estavam sujeitos à escravidão por
toda a vida” (Hb 2.15). De fato, Deus Pai “nos libertou do império das trevas e
nos transportou para o reino do Filho do seu amor” (Cl 1.13).

Quanto à libertação da escravidão do pecado, Paulo diz:

“Assim também vós considerai-vos mortos para o pecado, mas vivos para Deus, em
Cristo Jesus. [...] Porque o pecado não terá domínio sobre vós; pois não estais debaixo
da lei, e sim da graça” (Rm 6.11, 14).

Por meio da redenção, fomos resgatados tanto da maldição da lei (G1 3.10-13),
como da necessidade da lei cerimonial (G1 4.4-5), que, como vimos
anteriormente, tinha um caráter provisório e tipológico, e encontrou
cumprimento e fim em Cristo. Por causa da redenção, os que crêem são
resgatados da maldição do pecado. E uma vez resgatados, os pecadores
culpados são justificados e recebem o perdão de Deus (Rm 3.24; Ef 1.7; Cl

29
1.14; Hb 9.15). Também recebem poder, que os liberta do maldito cativeiro do
pecado (Tt 2.14; IPe 1.18) e lhes dá vitória sobre Satanás (Jo 12.31; Cl 2.15;
Hb 2.14,15).

30
31
JUSTIFICAÇÃO
As Escrituras nos ensinam que Deus é um Deus justo. Suas obras são
perfeitas e todos os seus caminhos são justos. Ele é um Deus de fidelidade
que não perverterá o que é correto. Sendo justo, ele não pode ser moralmente
neutro ou apático. Ele ama a justiça e odeia o mal (Salmos 45:7 / Hebreus 1:9).
Seus olhos são puros demais para aprovar o mal, e ele não pode olhar para a
perversidade com favor. Ele estabeleceu seu trono para julgamento e julgará o
mundo em retidão. Ele é um Deus que sente indignação todos os dias (Salmos
7:11). Se um homem não se arrepende, ele afia sua espada e apronta seu arco
para o julgamento. O testemunho da Escritura a respeito da justiça de Deus e
do mal do homem nos leva a um grande problema teológico e moral: como o
homem pecaminoso pode permanecer diante da justiça de Deus? Como pode
um Deus justo associar-se com homens perversos? O salmista descreveu o
problema desta forma: “Quem subirá ao monte do Senhor? Quem há de
permanecer no seu santo lugar? O que é limpo de mãos e puro de coração,
que não entrega a sua alma à falsidade, nem jura dolosamente. Este obterá do
Senhor a bênção e a justiça do Deus da sua salvação.” ( Salmos 24:3-6 )

Ser justo diante de Deus requer absoluta ou completa perfeição moral. Cada
pensamento, palavra e ação desde o momento do nascimento até o momento
da morte devem ser encontrados em perfeita conformidade com a natureza e a
vontade de Deus. A mais leve falha ou o menor desvio desse padrão resulta
em uma imediata desqualificação. Nós só precisamos olhar para o pecado e a
queda de Adão para aprender que há um grande rigor e severidade na justiça
de Deus.

A palavra justificado vem do verbo grego dikaióo, que significa provar ou


declarar alguém como justo, ou como ele deveria ser. No contexto da Escritura

32
e da doutrina da salvação, a palavra justificado é uma declaração forense ou
legal. O homem que crê em Deus é justificado, isto é, a justiça foi creditada em
sua conta. Ele é reconhecido ou declarado justo diante de Deus, e Deus o trata
como tal. “Pois que diz a Escritura? ‘Abraão creu em Deus, e isso lhe foi
imputado para justiça” (Romanos 4:3).

A Escritura e as mais úteis confissões e ministros ao longo da história da igreja


testificam que a justificação é uma posição legal diante do trono de Deus. O
homem que crê no testemunho de Deus a respeito de seu Filho é perdoado por
todos os seus pecados e é declarado justo diante do trono de julgamento de
Deus. A Confissão de Westminster (11.1) afirma que: “Os que Deus chama
eficazmente, também livremente os justifica. Esta justificação não consiste em
Deus infundir neles a justiça, mas em perdoar os seus pecados e em
considerar e aceitar as suas pessoas como justas. Deus não os justifica em
razão de qualquer coisa neles operada ou por eles feita, mas somente em
consideração da obra de Cristo... imputando-lhes a obediência e a satisfação
de Cristo.”

REGENERAÇÃO
Explicação e base bíblica:

Podemos definir regeneração da seguinte maneira: Regeneração é um ato


secreto de Deus pelo qual ele nos concede nova vida espiritual. Isso é às
vezes chamado “nascer de novo” (na linguagem de João 3.3-8).

A. A Regeneração é uma obra exclusivamente de Deus

Na obra de regeneração não desempenhamos papel algum. Ao contrário, é


uma obra exclusivamente de Deus. Vemos isso, por exemplo, quando João fala

33
a respeito daqueles a quem Cristo deu poder de se tornarem filhos de Deus -
eles não nasceram do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do
homem, mas de Deus” (Jo 1.13). Aqui João específica que os filhos de Deus
são os que “nasceram [...] de Deus” e que nossa vontade humana (“a vontade
do homem”) não realiza esse tipo de nascimento.

O fato de que somos passivos na regeneração fica evidente quando as


Escrituras se referem a ela como “nascer” ou “nascer de novo” (Tg 1.18; 1Pe
1.3; Jo 3.3-8). Não escolhemos nos tornar fisicamente vivos e não escolhemos
nascer.

Essa obra soberana de Deus na regeneração também foi predita na profecia de


Ezequiel. Por meio dele Deus prometeu que haveria um tempo no futuro
quando ele daria nova vida espiritual a seu povo:

“Dar-vos-ei coração novo e porei dentro de vós espírito novo; tirarei de vós o coração de
pedra e vos darei coração de carne. Porei dentro de vós o meu Espírito e farei que
andeis nos meus estatutos, guardeis os meus juízos e os observeis” (Ez 36.26-27).

Qual dos membros da Trindade causa a regeneração? Quando Jesus fala de


ser “nascido do Espírito” (Jo 3 .8), ele indica que é especialmente Deus Espírito
Santo quem produz a regeneração. Porém, outros versículos indicam também
o envolvimento de Deus Pai na regeneração: Paulo específica que é Deus
quem “nos deu vida juntamente com Cristo” (Ef 2.5; Cl 2.13). Tiago diz que é o
“Pai das luzes” quem nos deu o novo nascimento: “Pois, segundo o seu querer,
ele nos gerou pela palavra da verdade, para que fôssemos como que primícias
das suas criaturas” (Tg 1.17-18). Finalmente Pedro diz que Deus “segundo a
sua abundante misericórdia, tem nos dado um novo nascimento [...] através da
ressurreição de Jesus Cristo dentre os mortos” (1Pe 1.3). Podemos concluir
que ambos (Deus Pai e Deus Espírito Santo) produzem a regeneração.

34
B. A natureza exata da regeneração é um mistério para nós

O que ocorre na regeneração de forma exata é um mistério para nós. Sabemos


que de algum modo nós, que estávamos espiritualmente mortos (Ef 2.1), fomos
vivificados por Deus e num sentido muito verdadeiro “nascemos de novo” (Jo
3.3, 7; Ef 2.5; Cl 2.13). Mas não entendemos como isso ocorre ou o que
exatamente Deus faz para nos dar essa nova vida espiritual. Jesus diz: “O
vento sopra onde quer. Você o escuta, mas não pode dizer de onde vem nem
para onde vai. Assim acontece com todos os nascidos do Espírito" (Jo 3:8).

As Escrituras vêem a regeneração como algo que nos afeta como pessoas
integrais. Naturalmente, nosso “espírito é vida” para Deus depois da
regeneração (Rm 8.10), mas isso simplesmente se deve ao fato de sermos
afetados pela regeneração como pessoas integrais. Não se trata de apenas
nosso espírito estar morto antes - nós estávamos mortos para Deus em
transgressões e pecados (Ef 2.1). E não é correto dizer que a única coisa que
ocorre na regeneração é que nosso espírito é vivificado (como alguns têm
ensinado), porque cada parte de nós é afetada pela regeneração: “Se alguém
está em Cristo, é nova criatura; as coisas antigas já passaram; eis que se
fizeram novas” (2Co 5.17).

C. A regeneração genuína deve produzir resultados na vida

Vimos um exemplo resultado da regeneração na vida de uma pessoa, quando


Paulo pregou a mensagem do evangelho a Lídia, a quem “o Senhor abriu o
coração para atender às cousas que Paulo dizia” (At 16.14; Jo 6.44, 65; 1Pe
1.3). De modo semelhante, João diz: “Todo aquele que crê que Jesus é o Cristo
é nascido de Deus” (1Jo 5.1). Mas também há outros resultados da
regeneração, muitos dos quais especificados na primeira epístola de João. Por

35
exemplo: “Todo aquele que é nascido de Deus não pratica o pecado, porque a
semente de Deus permanece nele; ele não pode estar no pecado, porque é
nascido de Deus” (1Jo 3.9) Aqui João explica que a pessoa que nasceu de
novo tem essa “semente” espiritual (que faz gerar a vida e crescer o poder)
dentro dela, e que isso tudo mantém-na levando uma vida isenta do pecado
contínuo. Naturalmente, isso não significa que a pessoa terá uma vida perfeita,
mas que o padrão da vida será de contínuo afastamento do pecado. Quando
se pede às pessoas que caracterizem a vida de uma pessoa regenerada, o
adjetivo que vem à mente não deveria ser “pecador”, mas algo como
“obediente a Cristo” ou “obediente às Escrituras”. Devemos observar que João
diz que isso se aplica a todo aquele que é verdadeiramente nascido de novo:
“Todo aquele que é nascido de Deus não pratica o pecado”. Outro modo de
considerar isso é dizer que “todo aquele que pratica a justiça é nascido dele”
(1Jo 2.29).

Um genuíno amor semelhante ao de Cristo será um resultado específico na


vida: “Aquele que ama é nascido de Deus e conhece a Deus” (1Jo 4.7 n v i).
Outro efeito do novo nascimento é vencer o mundo: “E os seus mandamentos
não são pesados. O que é nascido de Deus vence o mundo” (1Jo 5.3-4). Aqui
João explica que a regeneração nos dá capacidade para vencer as pressões e
tentações do mundo, que de outra maneira nos impediriam de obedecer aos
mandamentos de Deus e de seguir suas veredas. João diz que nós
venceremos essas pressões e, portanto, não será “pesado” obedecer aos
mandamentos de Deus, mas, em vez disso, conclui ele, será jubiloso. Ele
explica que o processo através do qual obtemos a vitória sobre o mundo é
continuar na fé: “Esta é a vitória que venceu o mundo: a nossa fé” (1Jo 5.4).

Finalmente, João menciona que outro resultado da regeneração é a proteção


contra o próprio Satanás: “Sabemos que todo o que é nascido de Deus não
está no pecado; aquele que nasceu de Deus [Jesus] o protege, e o Maligno

36
não o atinge” (1Jo 5.18). Embora possa haver ataques da parte de Satanás,
João tranquiliza seus leitores ao dizer que “aquele que está em vocês é maior
do que aquele que está no mundo” (1Jo 4.4), e esse poder maior do Espírito
Santo dentro de nós mantém-nos a salvo do mal espiritual definitivo da parte do
Maligno.

Devemos perceber que João enfatiza essas coisas como resultados


necessários na vida dos nascidos de novo. Se houver regeneração genuína na
vida da pessoa, ela irá crer que Jesus é o Cristo, irá abster-se de um padrão de
vida de pecado contínuo, amará seu irmão e vencerá as tentações do mundo.
E se manterá a salvo do mal definitivo da parte do Maligno. Essas passagens
mostram que é impossível que uma pessoa seja regenerada e não se torne
verdadeiramente convertida.

Outros resultados da regeneração são listados por Paulo quando ele fala do
“fruto do Espírito”, isto é, o resultado na vida produzido pelo poder do Espírito
Santo trabalhando no interior de todo crente: “Mas o fruto do Espírito é: amor,
alegria, paz, longanimidade, benignidade, bondade, fidelidade, mansidão,
domínio próprio” (G1 5.22-23). Se houver verdadeira regeneração, então esses
elementos do fruto do Espírito estarão cada vez mais evidentes na vida da
pessoa. Mas, pelo contrário, os incrédulos, incluindo os que se dizem crentes e
não são, terão falta desses traços de caráter na vida. Jesus falou a seus
discípulos:

Acautelai-vos dos falsos profetas, que se vos apresentam disfarçados em ovelhas, mas
por dentro são lobos roubadores. Pelos seus frutos os conhecereis. Colhem-se,
porventura, uvas dos espinheiros ou figos dos abrolhos? Assim, toda árvore boa produz
bons frutos, porém a árvore má produz frutos maus. Não pode a árvore boa produzir
frutos maus, nem a árvore má produzir frutos bons. Toda árvore que não produz bom
fruto é cortada e lançada ao fogo. Assim, pois, pelos seus frutos os conhecereis (Mt
7.15-20).

37
De fato, imediatamente depois dos versículos citados acima, Jesus adverte que
no dia do juízo muitos lhe dirão: “Senhor, Senhor! Porventura, não temos nós
profetizado em teu nome, e em teu nome não expelimos demônios, e em teu
nome não fizemos muitos milagres? Então, lhes direi explicitamente: nunca vos
conheci. Apartai-vos de mim, os que praticais a iniquidade” (Mt 7.22-23).
Profecia, muitos milagres e obras poderosas no nome de Jesus (sem falar dos
outros tipos de atividade eclesiástica no decorrer da vida de uma pessoa) não
fornecem evidência convincente de que uma pessoa é verdadeiramente
nascida de novo. Aparentemente todas essas coisas podem ser produzidas
pela própria força natural do homem ou da mulher, ou até mesmo com a ajuda
do Maligno.

Mas o genuíno amor por Deus e seu povo, obediência sincera a seus
mandamentos e traços de caráter semelhantes aos de Cristo, os quais Paulo
chama de fruto do Espírito, demonstrados sistematicamente no decorrer de um
período na vida de uma pessoa, simplesmente não podem ser produzidos por
Satanás ou pela obra do homem ou da mulher natural em sua própria força.
Isso só pode acontecer pela obra do Espírito de Deus em nosso interior,
concedendo-nos vida nova.

FILIAÇÃO
EVIDÊNCIAS BÍBLICAS SOBRE A DOUTRINA DA FILIAÇÃO
Podemos definir adoção da seguinte maneira: adoção é um ato de Deus por
meio do qual ele nos faz membros de sua família. João menciona a adoção no
começo do seu evangelho, em que diz: “Mas, a todos quantos o receberam,
deu-lhes o poder de serem feitos filhos de Deus, a saber, aos que crêem no
seu nome” (Jo 1.12). Em contraste com isso, aqueles que não crêem em Cristo

38
não são filhos de Deus nem adotados na sua família, mas são “filhos da ira” (Ef
2.3) e “filhos da desobediência” (Ef 2.2; 5.6). Embora aqueles judeus que
rejeitaram a Cristo tentaram alegar que Deus era o pai deles (Jo 8.41), Jesus
disse-lhes: “Se Deus fosse, de fato, vosso pai, certamente, me havéis de amar
[...]. Vós sois do diabo, que é vosso pai, e quereis satisfazer-lhes os desejos”
(Jo 8.42-44). As epístolas do Novo Testamento dão repetido testemunho do
fato de que agora somos filhos de Deus num sentido especial, membros de sua
família. Paulo diz:

“Pois todos os que são guiados pelo Espírito de Deus são filhos de Deus.
Porque não recebestes o espírito de escravidão, para viverdes, outra vez,
atemorizados, mas recebestes o espírito de adoção, baseados no qual
clamamos: Aba, Pai. O próprio Espírito testifica com o nosso espírito que
somos filhos de Deus. Ora, se somos filhos, somos também herdeiros,
herdeiros de Deus e co-herdeiros com Cristo; se com ele sofremos, também
com ele seremos glorificados.“(Rm 8.14-17)

Mas se nós somos filhos de Deus, não somos nós então parentes uns dos
outros como membros de uma família? Certamente sim. De fato, essa adoção
na família de Deus nos torna co-participantes de uma única família até mesmo
com os crentes judeus do Antigo Testamento, porque Paulo diz que nós
também somos filhos de Abraão: “Nem por serem descendentes de Abraão são
todos seus filhos; mas: Em Isaque será chamada a tua descendência. Isto é,
estes filhos de Deus não são propriamente os da carne, mas devem ser
considerados como descendência os filhos da promessa” (Rm 9.7-8). Ele mais
adiante explica em Gálatas: “Vós, porém, irmãos, sois filhos da promessa,
como Isaque [...] somos filhos não da escrava e sim da livre” (G1 4.28, 31; cf.
IPe 3.6, onde Pedro vê as mulheres crentes como filhas de Sara no novo
pacto). Paulo explica que esse estado de adoção como filhos de Deus não foi
totalmente realizado no antigo pacto.

39
Ele afirma “antes que viesse a fé, estávamos sob a tutela da lei [...] a lei nos
serviu de Aio para nos conduzir a Cristo, a fim de que fôssemos justificados por
fé. Mas, tendo vindo a fé, já não permanecemos subordinados ao Aio. Pois
todos vós sois filhos de Deus mediante a fé em Cristo Jesus" (G13.23-26). Isso
não quer dizer que o Antigo Testamento omitiu completamente que Deus é
nosso Pai, porque Deus chamou a si mesmo Pai dos filhos de Israel e
chamou-os seus filhos em diversos lugares (Sl 103.13; Is 43.6-7; Ml 1.6; 2.10).
Mas ainda que houvesse uma consciência de Deus como Pai de todo o povo
de Israel, os plenos benefícios e privilégios de ser membro da família de Deus
e a plena realização desse processo de filiação não ocorreu até que Cristo
viesse e o Espírito do Filho de Deus fosse derramado em nosso coração,
dando testemunho com nosso espírito de que somos filhos de Deus.

Que evidência vemos em nossa vida de que somos filhos de Deus? Paulo vê
clara evidência no fato de que o Espírito Santo dá testemunho em nosso
coração de que somos filhos de Deus: “Vindo, porém, a plenitude do tempo,
Deus enviou seu Filho, nascido de mulher, nascido sob a lei, para resgatar os
que estavam sob a lei, a fim de que recebêssemos a adoção de filhos. E,
porque vós sois filhos, enviou Deus ao nosso coração o Espírito de seu Filho,
que clama: Aba, Pai! De sorte que já não és escravo, porém filho; e, sendo
filho, também herdeiro por Deus” (G1 4.4-7). A primeira epístola de João
enfatiza nossa condição de filhos de Deus: “Vede que grande amor nos tem
concedido o Pai, a ponto de sermos chamados filhos de Deus; e, de fato,
somos filhos de Deus [...]. Amados, agora, somos filhos de Deus” (IJo
3.1-2;João várias vezes dirige-se a seus leitores como “filhos” ou “filhinhos”).

Embora Jesus nos chame seus “irmãos” (Hb 2.12 n v i), sendo, portanto, em
certo sentido, nosso irmão mais velho na família de Deus (cf. Hb 2.14), e possa
ser chamado “o primogênito entre muitos irmãos” (Rm 8.29), ele é todavia
cuidadoso ao fazer uma distinção clara entre o modo pelo qual Deus é nosso

40
Pai celestial e o modo pelo qual ele se refere a Deus Pai. Ele diz a Maria
Madalena: “Subo para meu Pai e vosso Pai, para meu Deus e vosso Deus” (Jo
20.17), fazendo assim uma clara distinção entre o sentido bem maior e eterno
no qual Deus é seu Pai e o sentido no qual Deus é nosso Pai.

Embora o Novo Testamento diga que agora somos filhos de Deus (IJo 3.2),
devemos notar que há outro sentido no qual nossa adoção é ainda futura
porque não receberemos os plenos benefícios e privilégios da adoção até que
Cristo retorne e nós ressuscitamos. Paulo fala sobre esse sentido mais pleno e
posterior da adoção quando diz: “Porque sabemos que toda a criação, a um só
tempo, geme e suporta angústias até agora. E não somente ela, mas também
nós, que temos as primícias do Espírito, igualmente gememos em nosso
íntimo, aguardando a adoção de filhos, a redenção do nosso corpo” (Rm 8.23).
Aqui Paulo vê a ressurreição como o cumprimento de nossos privilégios de
adoção, tanto que pode referir-se a ela como “adoção de filhos”.

A ADOÇÃO SEGUE A CONVERSÃO E É RESULTADO DA FÉ SALVÍFICA


Podemos inicialmente pensar que nos tornaríamos filhos de Deus pela
regeneração, visto que a imagem de ser “nascido de novo” na regeneração
faz-nos pensar a respeito de filhos nascidos numa família humana. Mas o Novo
Testamento nunca associa a adoção com a regeneração: de fato a idéia de
adoção é oposta à idéia de ser nascido em uma família!

Antes, o Novo Testamento associa adoção com a fé salvífica e diz que em


resposta à nossa confiança em Cristo, Deus nos adota em sua família. Paulo
diz: “Pois todos vós sois filhos de Deus mediante a fé em Cristo Jesus” (G1
3.23-26). E João escreve: “Mas, a todos quantos o receberam, deu-lhes o
poder de serem feitos filhos de Deus, a saber, aos que crêem no seu nome”(Jo
1.12).2 Esses dois versículos tomam claro que a adoção vem depois da
conversão e que é a resposta de Deus à nossa fé. Pode-se levantar objeção a

41
isso com base na seguinte declaração de Paulo: “E, porque vós sois filhos,
enviou Deus ao nosso coração o Espírito de seu Filho, que clama: Aba, Pai!”
(G14.6). Alguém pode entender esse versículo como significando que primeiro
Deus nos adotou como filhos e depois nos deu o Espírito Santo para trazer
regeneração ao nosso coração. Mas poucos versículos antes Paulo tinha dito
que somos feitos filhos de Deus “mediante a fé” (G1 3.26).

Portanto a declaração de Paulo em Gálatas 4.6 é mais bem entendida não


como se referindo à concessão do Espírito Santo na regeneração, mas antes a
outra atividade do Espírito Santo, na qual ele começa a dar testemunho ao
nosso espírito e a garantir-nos que somos membros da família de Deus. Essa
obra do Espírito Santo dá- nos garantia de nossa adoção, e é nesse sentido
que Paulo diz que, depois de sermos feitos filhos, Deus faz com que seu
Espírito Santo dentro de nosso coração clame “Aba, Pai” (cf. Rm 8.15-16).

A ADOÇÃO É ALGO DISTINTO DA JUSTIFICAÇÃO


Embora a adoção seja um privilégio que vem a nós ao mesmo tempo em que
nos tornamos cristãos (Jo 1.12; G1 3.26; IJo 3.1-2) é, contudo, um privilégio
distinto da justificação e da regeneração. Na regeneração tornamo-nos
espiritualmente vivos, capazes de falar com Deus em oração e adoração e
capazes de ouvir sua Palavra com coração receptivo. Porém, é possível que
Deus tenha criaturas espiritualmente vivas e que, contudo, não são membros
de sua família e não compartilham os privilégios especiais de m em bros da
família - os anjos, por exemplo, aparentemente se enquadram nessa categoria.

Portanto, teria sido possível para Deus decidir dar-nos regeneração sem o
grande privilégio da adoção na sua família. Além disso, Deus poderia ter nos
dado a justificação sem os privilégios da adoção em sua família, porque
poderia ter perdoado nossos pecados e nos dado o direito legal de estar diante
dele sem tomar-nos seus filhos. É importante entender isso porque nos ajuda a

42
reconhecer quão grandes são os nossos privilégios na adoção. A regeneração
tem que ver com nossa vida espiritual interior.

A justificação tem que ver com nossa posição diante da lei de Deus. Mas a
adoção tem que ver com nossa comunhão com Deus como nosso Pai, e por
causa da adoção são-nos dadas muitas das maiores bênçãos, das quais nos
lembraremos por toda a eternidade. Quando começamos a perceber a
excelência dessas bênçãos e compreendemos que Deus não tem a obrigação
de dar-nos nenhuma delas, então somos capazes de exclamar com o apóstolo
João: “Vede que grande amor nos tem concedido o Pai, a ponto de sermos
chamados filhos de Deus; e, de fato, somos filhos de Deus” (ljo 3.1). nossa
disposição, porque somos filhos do Rei, membros da família real, príncipes e
princesas que reinarão com Cristo sobre os novos céus e a nova terra (Ap
2.26-27; 3.21).

Como um antegozo desse grande privilégio, os anjos são já agora enviados


para nos ministrar e nos servir (Hb 1.14). E no contexto dessa comunhão com
Deus como nosso Pai celestial que devemos entender a oração que jesus
ensinou seus discípulos a fazer diariamente: “Pai nosso, que estás nos céus
[...] perdoa-nos os nossos pecados, assim como nós temos perdoado aqueles
que têm pecado contra nós” (Mt 6.9-12, tradução do autor). Essa oração diária
pelo perdão de pecados não é um pedido para Deus nos dar a justificação
muitas vezes por toda a nossa vida, porque a justificação é um evento anterior
que ocorre imediatamente depois que confiamos em Cristo com fé salvífica.

Antes, a oração pelo perdão diário dos pecados é um pedido para que a
comunhão paternal de Deus conosco, rompida pelo pecado que o desagradou,
seja restaurada, e que ele se relacione conosco mais uma vez como Pai que se
alegra com os filhos a quem ama. Na oração “perdoa-nos os nossos pecados”,
portanto, não estamos dirigindo-nos a Deus como eterno juiz do universo, mas
como a um Pai. E uma oração pela qual desejamos restaurar o relacionamento

43
com nosso Pai, interrompido por causa do pecado (veja também IJo 1.9;
3.19-22).

O privilégio de ser guiado pelo Espírito Santo é também um benefício da


adoção. Paulo indica ser esse um benefício moral pelo qual o Espírito Santo
põe em nós o desejo de obedecer a Deus e de viver conforme sua vontade. Ele
diz: “Todos os que são guiados pelo Espírito de Deus são filhos de D ^ í M(Rm
8.14), e ele concede isso como a razão pela qual os cristãos devem “mortificar
os feitos do corpo” por meio do Espírito Santo trabalhando dentro deles (v. 13;
observe o “pois” no começo do v. 14). Ele vê o Espírito Santo conduzindo e
guiando os filhos de Deus pelas veredas da obediência ao Pai. Outro privilégio
da adoção na família de Deus, embora nem sempre o reconheçamos como um
privilégio, é o fato de que Deus nos disciplina como seus filhos. “Filho meu, não
menosprezes a correção que vem do Senhor, nem desmaies quando por ele és
reprovado; porque o Senhor corrige a quem ama e açoita a todo filho a quem
recebe” (Hb 12.5-6, citando Pv 3.11-12).

O autor de Hebreus explica: “(Deus vos trata como filhos); pois que filhos há
que o pai não corrige? [...] Deus, porém, nos disciplina para aproveitamento, a
fim de sermos participantes da sua santidade” (Hb 12.7, 10). Assim como os
filhos naturais crescem em obediência e justiça quando disciplinados de modo
próprio por seus pais humanos, também crescemos em justiça e santidade
quando disciplinados por nosso Pai celestial.

Associado à disciplina paternal de Deus está o fato de que, como filhos de


Deus e herdeiros junto com Cristo, temos o privilégio de compartilhar tanto de
seus sofrimentos como de sua glória posterior. Assim como “convinha que o
Cristo padecesse e entrasse na sua glória” (Lc 24.26), também Deus nos dá o
privilégio de percorrer o mesmo caminho que Cristo percorreu, suportando
sofrimentos nesta vida para que possamos também receber grande glória na
vida do porvir: “... se somos filhos, somos também herdeiros, herdeiros de

44
Deus e co-herdeiros com Cristo, se com ele sofremos, também com ele
seremos glorificados” (Rm 8.17).

Além desses grandes privilégios que dizem respeito à nossa comunhão com
Deus e à nossa relação com ele, também temos os privilégios da adoção que
afetam a maneira pela qual nos referimos um ao outro e afetam nossa própria
conduta pessoal. Porque nós somos filhos de Deus, nossa comunhão mútua é
muito mais profunda e mais íntima do que a comunhão que os anjos, por
exemplo, têm uns com os outros, pois somos todos membros de uma família.
Muitas vezes o Novo Testamento se refere aos cristãos como “irmãos” e
“irmãs” em Cristo (Rm 1.13; 8.12; ICo 1.10; 6.8; Tg 1.2; Mt 12.50; Rm 16.1; ICo
7.15; Fm 1.2; Tg 2.15).

Além disso, os muitos versículos nos quais todos os membros de diversas


igrejas são mencionados como “irmãos” não devem ser entendidos como
referência exclusiva aos homens da congregação, mas antes como referências
genéricas a toda a igreja e, exceto quando o contexto explicitamente indica de
outra maneira, devem ser entendidos como “irmãos e irmãs no Senhor”. A
designação “irmão” é tão comum nas epístolas que parece ser a maneira
predominante pela qual os autores do Novo Testamento dirigem-se aos outros
cristãos a quem estão escrevendo. Isso indica a forte consciência que eles
tinham da natureza da igreja como família de Deus.

De fato, Paulo pede a Timóteo que se dirija à igreja em Éfeso e aos indivíduos
dentro da igreja como a membros de uma grande família: “Não repreendas ao
homem idoso; antes, exorta-o como a pai; aos moços, como a irmãos, às
mulheres idosas, com a mães; às moças, como irmãs, com toda a pureza” (ITm
5.1-2). Esse conceito de igreja como família de Deus deve dar-nos uma nova
perspectiva sobre a obra da igreja; é “trabalho em família”, e os vários
membros da família nunca devem competir uns com os outros ou atrapalhar
uns aos outros, mas devem encorajar uns aos outros e ser gratos por todo e

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qualquer bem ou progresso que qualquer membro da família receba, porque
todos estão contribuindo para o bem da família e para a honra de Deus, nosso
Pai.

De fato, assim como os membros de uma família terrena frequentemente têm


momentos de alegria e comunhão quando trabalham juntos num mesmo
projeto, também nossos momentos trabalhando juntos ao edificar a igreja
devem ser momentos de grande alegria e comunhão uns com os outros. Além
disso, assim como os membros de uma família natural honram seus pais e
cumprem os propósitos da família, acolhendo com zelo todos os irmãos e irmãs
que possam ser adotados na família, também nós devemos dar as boas vindas
aos novos membros da família de Cristo com zelo e amor. Outro aspecto da
filiação na família de Deus é que nós, como filhos de Deus, devemos imitar
nosso Pai do céu em todo procedimento.

Paulo diz: “Sede, pois, imitadores de Deus, como filhos amados” (Ef 5.1).
Pedro reflete esse mesmo tema quando diz: “Como filhos da obediência, não
vos amoldeis às paixões que tínheis anteriormente na vossa ignorância; pelo
contrário, segundo é santo aqueles que vos chamou, tornai-vos santos também
vós mesmos em todo o vosso procedimento, porque está escrito: Sede santos,
porque eu sou santo” (IPe 1.14-16). Tanto Pedro como Paulo perceberam que
é natural para os filhos imitar seus pais terrenos. Eles apelam a esse senso
natural que os filhos têm a fim de nos lembrar de que devemos imitar nosso Pai
celestial - na verdade, isso deve ser algo que naturalmente desejamos fazer e
tenhamos prazer nisso.

Se Deus, nosso Pai celeste, é santo, devemos também ser santos como filhos
obedientes. Quando percorremos as veredas do procedimento justo honramos
nosso Pai celestial e a ele prestamos glória. Quando agimos para agradar a
Deus, fazemos com que outros vejam as vossas boas obras e glorifiquem a
vosso Pai que está nos céus” (Mt 5.16). Paulo incentiva os filipenses a manter

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uma conduta pura diante dos incrédulos “para que vos torneis irrepreensíveis e
sinceros, filhos de Deus inculpáveis no meio de uma geração pervertida e
corrupta, na qual resplandeceis como luzeiros no mundo” (Fp 2.15). De fato,
um modelo de conduta moral coerente também é evidência de que somos
verdadeiramente filhos de Deus. João diz: “Nisto são manifestos os filhos de
Deus e os filhos do diabo: todo aquele que não pratica justiça não procede de
Deus, nem aquele que não ama a seu irmão” (ljo 3.10).

OS PRIVILÉGIOS DA ADOÇÃO
Os benefícios ou privilégios que acompanham a adoção são vistos
primeiramente no modo como Deus se refere a nós e também no modo como
nós nos referimos uns aos outros como irmãos e irmãs na família de Deus. Um
dos maiores privilégios da nossa adoção é a possibilidade de falar com Deus e
de nos referirmos a ele como um Pai bom e amoroso. Nós oramos: “Pai nosso,
que estás nos céus” (Mt 6.9), e compreendemos que “já não somos escravos,
porém filhos” (G1 6.7).

Portanto, agora dirigimo-nos a Deus não como um escravo se dirige ao senhor


de escravos, mas como um filho se dirige ao pai. De fato, Deus nos dá um
testemunho interno oriundo do Espírito Santo que faz com que instintivamente
chamemos Deus de nosso Pai. “Mas recebestes o espírito de adoção,
baseados no qual clamamos: Aba, Pai. O próprio Espírito testifica com o nosso
espírito que somos filhos de Deus” (Rm 8.15-16). A comunhão com Deus como
nosso Pai é o fundamento de muitas outras bênçãos da vida cristã e torna-se o
principal meio pelo qual nos dirigimos a Deus. Certamente é verdade que Deus
é nosso Criador, nosso Juiz, nosso Senhor e Mestre, nosso Instrutor, Provedor
e Protetor, aquele que por meio de seu cuidado providencial sustenta nossa
existência.

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Contudo, o papel mais íntimo e que transmite os mais altos privilégios de
associação com Deus pela eternidade é o seu papel como nosso Pai celestial.
O fato de Deus referir-se a nós como um Pai mostra muito claramente que ele
amor nos tem concedido (ljo 3.1), que ele nos entende (“como um pai se
compadece de seus filhos, assim o Senhor se compadece dos que o temem.
Pois ele conhece a nossa estrutura e sabe que somos pó” (SI 103.13-14) e que
ele toma cuidado de nossas necessidades (“Porque os gentios é que procuram
todas estas coisas; pois vosso Pai celeste sabe que necessitais de todas elas”,
Mt 6.32).

Além disso, nos seu papel de nosso Pai, Deus nos dá muitas boas dádivas:
“Ora, se vós, que sois maus, sabeis dar boas dádivas aos vossos filhos, quanto
mais vosso Pai, que está nos céus, dará boas coisas aos que lhe pedirem?”
(Mt 7.11). Ele nos dá especialmente a dádiva do Espírito Santo para nos
confortar, nos capacitar para o ministério e para viver a vida cristã (Lc 11.13).

De fato, não são apenas dádivas nesta vida que Deus nos dá, mas também
uma grande herança no céu, porque temo-nos tornado herdeiros junto com
Cristo. Paulo diz: “Já não és escravo, porém filho; e, sendo filho, também
herdeiro por Deus”(Gl 4.7); somos de fato “herdeiros de Deus e co-herdeiros
com Cristo”(Rm 8.17). Como herdeiros nós temos direito a uma grande e
eterna “herança incorruptível, sem mácula, imarcescível, reservada nos céus
para vós outros” (IPe 1.4). Todos os grandes privilégios e bênçãos do céu estão
armazenados para nós e postos à nossa disposição, porque somos filhos do
Rei, membros da família real, príncipes e princesas que reinarão com Cristo
sobre os novos céus e a nova terra (Ap 2.26-27; 3.21). Como um antegozo
desse grande privilégio, os anjos são já agora enviados para nos ministrar e
nos servir (Hb 1.14).

É no contexto dessa comunhão com Deus como nosso Pai celestial que
devemos entender a oração que jesus ensinou seus discípulos a fazer

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diariamente: “Pai nosso, que estás nos céus [...] perdoa-nos os nossos
pecados, assim como nós temos perdoado aqueles que têm pecado contra
nós” (Mt 6.9-12, tradução do autor). Essa oração diária pelo perdão de pecados
não é um pedido para Deus nos dar a justificação muitas vezes por toda a
nossa vida, porque a justificação é um evento anterior que ocorre
imediatamente depois que confiamos em Cristo com fé salvífica. Antes, a
oração pelo perdão diário dos pecados é um pedido para que a comunhão
paternal de Deus conosco, rompida pelo pecado que o desagradou, seja
restaurada, e que ele se relacione conosco mais uma vez como Pai que se
alegra com os filhos a quem ama. Na oração “perdoa-nos os nossos pecados”,
portanto, não estamos dirigindo-nos a Deus como eterno juiz do universo, mas
como a um Pai. E uma oração pela qual desejamos restaurar o relacionamento
com nosso Pai, interrompido por causa do pecado (veja também IJo 1.9;
3.19-22).

OS ESTÁGIOS DA OBRA DE CRISTO


Quando nos aprofundamos mais no estudo da obra de Jesus, descobrimos que
ela ocorreu em dois estágios básicos, tradicionalmente chamados de estado de
humilhação e estado de exaltação. Cada estágio, por sua vez, consiste em
uma série de passos. Primeiro, Cristo deu uma série de passos ao deixar sua
glória e, depois, outra série de passos de volta à glória anterior, indo, inclusive,
além dela a humilhação

49
Humilhação

A encarnação

O fato da encarnação de Jesus é declarado algumas vezes de forma direta,


como em João 1.14, em que o apóstolo simplesmente escreve: “E o Verbo se
fez carne”. Outras vezes, há uma ênfase naquilo que Jesus deixou para trás ou
no que ele assumiu. Filipenses 2.6,7 é um exemplo do que ele deixou: Jesus
Cristo “não considerou o fato de ser igual a Deus algo a que devesse se
apegar, mas, pelo contrário, esvaziou a si mesmo, assumindo a forma de servo
e fazendo-se semelhante aos homens....”. Gálatas 4.4 é um exemplo do que
ele assumiu: “Deus enviou seu Filho, nascido de mulher, nascido debaixo da
lei”.

Ao vir para este mundo, Jesus fez uma imensa renúncia. Deixando uma
posição de “igualdade com Deus”, que incluía a presença próxima e não
mediada do Pai e do Espírito Santo, além dos louvores contínuos dos anjos,
ele veio a este mundo, onde não havia nada disso. A magnitude de sua
renúncia está além até mesmo do que podemos imaginar, pois nunca vimos
como é o céu. Quando chegarmos lá, é provável que nos surpreendamos ao
ver o esplendor de tudo a que ele renunciou. Aquele que se entregou à
pobreza era o príncipe mais exaltado. Mesmo que Cristo viesse para receber
todo o esplendor que este mundo poderia lhe oferecer, a humilhação ainda
assim seria imensa. A maior das riquezas ou a mais alta honra na corte de
qualquer soberano nada seriam se comparadas às condições das quais ele
abriu mão.

Todavia, não foi para receber a mais alta condição humana que ele veio ao
mundo. Ao contrário, Jesus assumiu a forma de servo, de um escravo. Ele
nasceu no seio de uma família muito comum, em Belém, uma pequena cidade

50
desconhecida. E o que mais impressiona é que ele nasceu na pobreza de um
estábulo e foi colocado em uma manjedoura.

As circunstâncias de seu nascimento parecem simbolizar a condição de


humildade para a qual ele veio. Ele nasceu debaixo da Lei. Aquele que a havia
instituído e dela era Senhor submeteu-se à Lei, cumprindo-a de modo perfeito.
Seria como um oficial que, tendo promulgado um decreto para ser obedecido
por seus subordinados, também se colocasse em uma condição inferior que o
obrigasse a obedecer ao próprio decreto. Jesus se sujeitou completamente à
Lei.

Por isso, foi circuncidado aos oito dias de vida e, no devido tempo, levado ao
templo para o rito de purificação de sua mãe (Lc 2.22-40). Paulo declara que,
ao se submeter à Lei, Jesus tornou-se capaz de redimir os que também
estavam debaixo da Lei (G14.5). E o que aconteceu com seus atributos de
divindade durante o período de humilhação? Já sugerimos (p. 705-6) que a
segunda pessoa da Trindade se esvaziou de sua igualdade com Deus ao
acrescentar ou assumir a natureza humana. Há diversas posições possíveis
quanto ao que Jesus fez com seus atributos divinos durante esse período:

1. O Senhor abriu mão de seus atributos divinos. De fato, ele deixou de ser
Deus, transformando-se em um ser humano.12 Os atributos divinos foram
substituídos por atributos humanos. No entanto, essa posição equivale à
metamorfose e não à encarnação, e é contestada por diversas afirmações que
Jesus fez sobre sua divindade, durante o tempo em que esteve neste mundo.

2. O Senhor renunciou a alguns atributos divinos, fossem naturais ou


relativos.13 Afirmar que Jesus abriu mão de seus atributos divinos naturais
significa que ele preservou os atributos morais, como amor, misericórdia e
verdade. Ele renunciou a atributos como onisciência, onipotência e
onipresença. Declarar que Jesus abriu mão de seus atributos divinos relativos

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significa que ele preservou as qualidades absolutas que tinha em si e por si
mesmo, como imutabilidade e autoexistência, mas abandonou as qualidades
relacionadas à criação, como onipotência e onisciência.No entanto, ao menos
em parte, essa posição também parece descaracterizá-lo como Deus. Se a
natureza de algo é a soma dos atributos que a compõem, fica difícil imaginar
como Jesus poderia, de fato, ter renunciado a certos atributos divinos sem
deixar de ser Deus.

3. Jesus abriu mão do exercício independente de seus atributos divinos. Isso


não quer dizer que ele tenha renunciado a alguns (ou a todos) os atributos
divinos, mas que ele, de livre e espontânea vontade, renunciou à capacidade
de exercê-los por si próprio. Ele poderia exercê-los apenas em uma relação de
dependência do Pai e de posse de uma natureza plenamente humana.
Portanto, ele tinha condições de utilizar seu poder divino, como realmente fez
em inúmeras ocasiões, por exemplo, na realização de milagres e ao ler os
pensamentos das pessoas, mas dependia do Pai para exercer o próprio poder.
Tanto a vontade do Pai quanto a sua eram necessárias para que ele utilizasse
seus atributos divinos. Uma analogia adequada é a de um cofre particular em
um banco; são necessárias duas chaves para abri-lo: a do cliente e a do banco.
De modo semelhante, para que Jesus exercesse seu poder divino, era
necessário que as duas vontades concordassem em agir de determinada
maneira para que tal ação ocorresse. Assim, podemos dizer que Jesus ainda
tinha onisciência, mas ela estava limitada à parte inconsciente de sua
personalidade; ele não podia trazê-la ao nível da consciência sem o auxílio do
Pai. Isso pode ser comparado à ação de um psiquiatra, ou psicólogo, que
auxilia um paciente a recuperar lembranças guardadas no subconsciente (seja
administrando algum medicamento, seja por hipnose, seja por qualquer outra
técnica).

52
4. Cristo abriu mão do uso de seus atributos divinos.15 Isso quer dizer que ele
continuou a possuir esses atributos e o poder para exercê-los com autonomia,
mas optou por não fazê-lo. Portanto, Jesus não dependia do Pai para
empregá-los. Mas, se este é o caso, como explicaremos suas orações e sua
clara dependência em relação ao Pai?

5. Embora ainda possuísse seus atributos divinos, Jesus agia como se não os
tivesse. Ele fingia ter limitações. Porém, se isso fosse verdade, então Jesus
poderia ser acusado de ter feito declarações falsas ou de haver sido
descaradamente desonesto quando, por exemplo, alegou desconhecer o
momento de sua segunda vinda (Mc 13.32). Entre essas cinco concepções a
respeito do que Jesus fez com seus atributos divinos durante o período de sua
vida como ser humano, a terceira é a que mais se harmoniza com todos os
dados disponíveis — ele abriu mão de sua capacidade de exercer o poder
divino independentemente. Portanto, assumir a natureza humana foi um ato de
humilhação imensurável. Ele não podia exercer de forma livre e autônoma
todas as capacidades que tinha quando estava no céu.

A humilhação lhe acarretou todas as condições da natureza humana. Por isso,


Jesus podia sentir cansaço, exaustão, dor, sofrimento, fome e até angústia
causada pela traição, negação e pelo abandono daqueles que lhe eram mais
íntimos. Ele experimentou a decepção, o desânimo e a aflição próprios de um
ser plenamente humano. Sua humanidade foi total.

A morte

O último passo na humilhação de Jesus foi sua morte. Ele, que era “a vida” (Jo
14.6), o Criador, o doador da vida e da nova vida que constitui a vitória sobre a
morte, sujeitou-se à morte. Ele, que não havia cometido pecado algum, sofreu
a morte, a consequência ou o “salário” do pecado. Ao se tornar humano, Jesus
sujeitou-se à possibilidade da morte, ou seja, ele se tornou mortal. Mas a morte

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não foi uma simples possibilidade; ela se transformou em realidade. Além
disso, Jesus sofreu não apenas a morte, mas uma morte humilhante! Ele foi
submetido a um tipo de execução que o Império Romano reservava para os
piores criminosos. Foi uma morte lenta e dolorosa, praticamente uma morte por
tortura.

Acrescente-se, a essa morte torturante, a vergonha daquela circunstância. A


zombaria e os insultos da multidão, os maus-tratos impostos pelos líderes
religiosos e pelos soldados romanos e o questionamento de cada uma de suas
funções constituíram sua humilhação. Sua posição como profeta foi posta em
dúvida quando compareceu perante o sumo sacerdote: “O Cristo, profetiza-nos
quem foi que te bateu” (Mt 26.68). Sua realeza e soberania foram alvos de
zombaria na inscrição colocada no alto da cruz (“o Rei dos judeus”) e
desafiadas pelos insultos dos soldados (“Se tu és o rei dos judeus, salva a ti
mesmo”— Lc 23.37). Sua função sacerdotal foi questionada pelas autoridades,
que o ridicularizavam: “Salvou os outros, então salve a si mesmo, se é o Cristo,
o escolhido de Deus” (Lc 23.35). Assim, a crucificação contradizia tudo o que
ele alegava ser.

Aparentemente, o pecado vencera; a impressão era a de que os poderes do


mal haviam derrotado Jesus. A morte parecia ser o fim de sua missão: ele
havia fracassado no cumprimento de sua tarefa. Os discípulos não mais dariam
atenção aos seus ensinamentos nem executariam suas ordens, pois foram
dispersados e derrotados. Sua voz havia sido silenciada, de modo que ele não
podia mais pregar e ensinar; seu corpo estava sem vida, era incapaz de curar,
ressuscitar os mortos ou acalmar as tempestades.

A descida ao Hades

Alguns teólogos acreditam haver outra dimensão na humilhação. Jesus não


somente foi sepultado em um túmulo emprestado (uma indicação de sua

54
pobreza), mas, no Credo apostólico, há uma referência à sua descida ao
inferno ou Hades. Com base em certos textos bíblicos, principalmente Salmos
16.10; Efésios 4.8-10; lTimóteo 3.16; IPedro 3.18,19 e 4.4-6, e na declaração
contida no credo, afirma-se que a humilhação de Cristo incluiu sua descida real
ao inferno ou ao Hades, no período entre a morte na cruz, na sexta-feira, e a
ressurreição, na manhã do domingo. Trata-se de uma questão bem
controvertida; na realidade, alguns teólogos são categóricos em rejeitá-la. Entre
eles está Rudolf Bultmann, que se opõe à crença com base no fato de que ela
subentende uma cosmologia obsoleta (i.e., um Universo de três andares).

Entre as razões da controvérsia, encontra-se o fato de que não existe um único


texto bíblico que mencione a doutrina da descida ao inferno de forma completa
nem que a expresse de modo claro e inequívoco. Ademais, essa doutrina não
se encontra nas primeiras versões do Credo apostólico; ela apareceu pela
primeira vez na versão de Rufino de Aquileia, que data de aproximadamente
390 d.C. A doutrina foi formulada mediante a união de diversos textos bíblicos
em um único quadro: Jesus desceu ao Hades; ali, pregou aos espíritos em
prisão antes de ser ressuscitado no terceiro dia. Observe-se que, nessa versão
da doutrina, a descida ao Hades é tanto o último degrau da humilhação quanto
o primeiro da exaltação, visto que envolve a proclamação triunfal aos espíritos
escravizados pelo pecado, pela morte e pelo inferno de que Jesus subjugou
essas forças opressoras. Mas o que afirmam as passagens mais relevantes?

A primeira passagem a ser considerada, e a única em todo o AT, é Salmos


16.10: “Pois não deixarás a minha vida no túmulo, nem permitirás que teu
santo sofra deterioração” (cf. SI 30.3). Alguns teólogos veem nesse texto uma
profecia de que Jesus desceria ao inferno e de lá retornaria. No entanto,
quando examinado de modo mais profundo, esse versículo parece uma
simples referência ao livramento da morte, não do inferno. “Sheol”é um termo
frequentemente utilizado em relação ao estado de morte para o qual,

55
presumivelmente, todos caminham. Mas Pedro e Paulo interpretaram Salmos
16.10 com o sentido de que o Pai não permitiria que Jesus ficasse sob os
poderes da morte, de modo que não visse corrupção, isto é, seu corpo não
entraria em processo de decomposição (At 2.27-31; 13.34,35). Em vez de
ensinar que Jesus desceria a um lugar chamado Hades e depois seria liberto, o
salmista estava afirmando que a morte não teria poder permanente sobre
Jesus.

A segunda passagem é Efésios 4.8-10. Nos versículos 8 e 9, lemos: “Por isso


foi dito: Subindo para o alto, levou cativo o cativeiro e deu dons aos homens. O
que significa que ele subiu, senão que também desceu às partes mais baixas
da terra?”. O versículo 10 esclarece que ele subiu “muito acima de todos os
céus”, ou seja, o que aconteceu foi um retorno da terra para o céu. Portanto, a
descida ocorreu do céu para a terra e não para algum lugar abaixo da terra.

Por isso, “as partes mais baixas da terra” (v. 9) é uma expressão que deve ser
entendida em uma relação de aposição: “ele também havia descido às regiões
inferiores [do Universo], ou seja, às regiões terrenas”. Em lTimóteo 3.16, lemos:
“Sem dúvida, grande é o mistério da fé: Aquele que se manifestou em carne foi
justificado no Espírito, visto pelos anjos, pregado entre os gentios, crido no
mundo e recebido acima na glória”. Há quem sugira que esses anjos são anjos
caídos que viram Jesus quando desceu ao inferno.

No entanto, deve-se observar que, a menos que haja alguma qualificação


associada à palavra anjos, ela sempre se refere a anjos bons. Parece que está
mais em harmonia com o restante da passagem a compreensão da expressão
“visto pelos anjos” simplesmente como parte de uma lista de testemunhas,
terrenas e celestiais, do importante fato de que Deus se manifestou em carne,
não como prova de que Jesus desceu ao inferno, onde supostamente foi visto
por anjos caídos ou demônios.

56
A passagem mais importante e, sob muitos aspectos, a mais difícil é IPedro
3.18,19: “Porque também Cristo morreu uma única vez pelos pecados [...]
morto na carne, mas vivificado pelo Espírito, no qual também foi e pregou aos
espíritos em prisão”. Há diversas interpretações dessa passagem: 1) a posição
da Igreja Católica Romana é que Jesus foi ao “limbus patrum”, lugar de
habitação dos santos que já haviam vivido e morrido, e lhes proclamou as
boas-novas de sua vitória sobre o pecado, a morte e o inferno, tirando-os então
daquele lugar; 2) a posição luterana é que Jesus desceu ao Hades não para
anunciar as boas-novas nem para oferecer libertação para os que estavam lá,
e sim para proclamar e concluir sua vitória sobre Satanás, pronunciando uma
sentença de condenação; 3) a posição anglicana tradicional é que Jesus foi ao
Hades, especificamente à parte chamada Paraíso, e ali apresentou aos justos
uma exposição completa da verdade. Nenhuma dessas interpretações é
adequada. 1) A ideia católica de uma segunda oportunidade para aceitar a
mensagem do evangelho após a morte parece incompatível com outros
ensinamentos das Escrituras (e.g., Lc 16.19-31). 2) Embora, em outras
passagens bíblicas, a palavra κηρύσσω (kêryssõ — “pregar”) sempre se refira
à proclamação do evangelho, na interpretação luterana de IPedro 3.19, ela
evidentemente se refere a uma declaração de juízo. 3) A interpretação
anglicana tem dificuldade para explicar por que os justos no Paraíso são
descritos como “espíritos em prisão”. Com certeza não é fácil apresentar uma
interpretação de IPedro 3.18,19 que tenha, ao mesmo tempo, coerência interna
e consistência com os ensinamentos encontrados no restante das Escrituras.

Uma possibilidade é entender a passagem à luz do versículo 20: Jesus pregou


aos espíritos em prisão, “os quais, noutro tempo, foram rebeldes, quando a
paciência de Deus esperava enquanto a arca era construída nos dias de Noé;
poucas pessoas, isto é, oito, salvaram-se nela por meio da água”. De acordo
com essa interpretação, Jesus foi vivificado no mesmo espírito pelo qual havia
pregado por meio de Noé aos que viveram nos dias anteriores ao Dilúvio.

57
Essas pessoas não deram ouvidos à sua mensagem e, portanto, foram
destruídas. Tal pregação foi um exemplo do ministério profético de Jesus
pré-encarnado.

Todavia, alguns expositores diriam que a referência aos dias de Noé é


representativa ou ilustrativa. Jesus havia pregado no poder do Espírito aos
pecadores de seus dias. A semelhança dos pecadores dos dias de Noé, eles
não deram ouvidos à mensagem; assim também ocorrerá com outros que não
atentarem para ela logo antes da segunda vinda (Mt 24.37-39). O mesmo
Espírito que conduziu Jesus ao deserto para ser tentado (Mt 4.1), o capacitou a
expulsar demônios (Mt 12.28) e o ressuscitou foi a fonte de sua pregação
durante seu tempo de vida para aqueles que estavam aprisionados em pecado.
Observe-se que não há nenhum indicador de sequência cronológica quanto à
sua vivificação pelo Espírito e à sua pregação aos espíritos em prisão.

A última passagem é IPedro 4.4-6, especialmente o versículo 6: “Pois é por


isso que o evangelho foi pregado também aos mortos, para que, embora
julgados segundo os homens quando na carne, vivam segundo Deus pelo
Espírito”. Há quem proponha que esse versículo indica Jesus descendo ao
inferno a fim de pregar aos espíritos que ali se achavam. No entanto, a
suposição de que Pedro estava dizendo que o evangelho foi pregado a
pessoas que estavam fisicamente mortas enfrenta uma das dificuldades
mencionadas em relação a IPedro 3.18,19 — em nenhum lugar das Escrituras
existe indício de uma segunda oportunidade de salvação para os que já
morreram. Além disso, nada indica que Pedro estivesse pensando em uma
pregação feita por Cristo. Portanto, parece melhor considerar IPedro 4.6 uma
referência geral à proclamação da mensagem do evangelho a pessoas que a
ouviram e depois morreram, ou a pessoas espiritualmente mortas (cf. Ef 2.1,5;
Cl 2.13).

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Resumindo a análise das passagens citadas como provas de que Cristo
desceu ao Hades: na melhor das hipóteses, elas são vagas ou ambíguas, e a
tentativa de reuni-las para formular uma doutrina não é convincente. Embora
possam ser interpretadas como sugestões de que Jesus desceu ao inferno,
não há evidências suficientes para estabelecer a descida ao inferno como uma
doutrina do cristianismo.

Exaltação
A ressurreição

Vimos que a morte de Jesus foi o último degrau em sua humilhação; a vitória
sobre a morte por meio da ressurreição foi o primeiro passo de volta ao
processo de exaltação. A ressurreição tem uma importância especial, pois a
imposição da morte era a pior coisa que o pecado e seus poderes podiam fazer
contra Cristo. A morte não foi capaz de detê-lo, e isso simboliza a plenitude de
sua vitória. O que mais as forças do mal poderiam fazer se alguém que elas
mataram não permanecesse morto? Samuel Rayan considera a ressurreição o
início dos últimos dias, um período em que Cristo está presente de forma mais
radical.

Por ser tão importante, a ressurreição gerou muita polêmica. Logicamente, não
houve testemunhas humanas no momento da ressurreição, pois Jesus estava
sozinho no túmulo quando ela ocorreu. Encontramos, porém, dois tipos de
evidências. Primeiro, o túmulo onde Jesus havia sido colocado estava vazio, e
seu cadáver nunca foi encontrado. Segundo, um grande número de pessoas
testemunhou ter visto Jesus vivo. Ele foi visto em diversas ocasiões e em
diferentes locais. A explicação mais natural para esses testemunhos é a de que
Jesus, de fato, estava vivo novamente. Acima de tudo, não há outra (ou, ao
menos, melhor) maneira de explicar a transformação dos discípulos, que

59
deixaram de ser pessoas derrotadas e assustadas e passaram a ser corajosos
pregadores da ressurreição.

Uma questão que merece atenção especial é a natureza do corpo ressurreto.


Parece haver dados conflitantes nesse ponto. Por um lado, somos informados
de que carne e sangue não herdarão o reino de Deus (I Co 15.50), e há outros
indicadores de que não teremos um corpo material no céu. Por outro lado,
Jesus comeu depois da ressurreição e, aparentemente, podia ser reconhecido.
Além disso, as marcas dos pregos em suas mãos e a ferida causada pela lança
em seu lado dão a entender que ele ainda possuía um corpo material (Jo
20.25-27).

A fim de harmonizarmos esse aparente conflito, é importante ter em mente que,


àquela altura dos acontecimentos, Jesus havia ressuscitado, mas ainda não
havia subido ao céu. No momento de nossa ressurreição, nosso corpo será
transformado de imediato. No caso de Jesus, porém, a transformação ocorreu
em dois eventos: a ressurreição e a ascensão. Portanto, o corpo que ele tinha
no momento da ressurreição ainda passaria por uma transformação completa
na hora da ascensão. Ele ainda se tornaria um “corpo espiritual”, conforme
Paulo escreve em ICoríntios 15.44.25 Mas, assim como não devemos pensar
no nascimento virginal como uma questão essencialmente biológica, da mesma
forma a ressurreição não deve ser encarada como um fato físico
principalmente. Ela constituiu a vitória de Jesus sobre o pecado e a morte com
todas as ramificações decorrentes dela. Foi o ponto fundamental de sua
exaltação — ele foi liberto da maldição que lhe havia sido imposta, por sua
disposição de assumir o pecado de toda a humanidade.

A ascensão e a entronização à direita do Pai

O primeiro passo na humilhação de Jesus envolveu a renúncia da condição


que ele desfrutava no céu e a aceitação das condições deste mundo; o

60
segundo passo na exaltação implicou deixar as condições deste mundo e
reassumir seu lugar junto ao Pai.

Em diversas ocasiões, o próprio Jesus predisse que voltaria para o Pai (Jo
6.62; 14.2,12; 16.5,10,28; 20.17). Lucas é quem apresenta os relatos mais
detalhados do momento da ascensão (Lc 24.50,51; At 1.6-11). Paulo também
escreve sobre o assunto (E f 1.20; 4.8-10; lT m 3.16), assim como o autor da
Carta aos Hebreus (1.3; 4.14; 9.24). Em tempos pré-modernos, a ascensão
geralmente era considerada uma espécie de transição de um lugar (a terra)
para outro (o céu).

No entanto, hoje sabemos que o espaço é de tal natureza que o céu não está
simplesmente acima da terra, e também parece provável que a diferença entre
terra e céu não seja apenas geográfica. É impossível chegar até Deus
simplesmente por meio de uma longa viagem em um foguete de altíssima
velocidade. Deus está em outra dimensão da realidade, e a transição daqui
para lá exige não apenas mudança de lugar, como também de estado.

Portanto, em algum momento, a ascensão de Jesus não foi simplesmente uma


mudança física e espacial, mas também espiritual. Foi o momento em que
Jesus passou pelo restante da metamorfose iniciada com a ressurreição de seu
corpo. A importância da ascensão está no fato de que Jesus deixou para trás
as condições associadas à vida nesta Terra.

Portanto, o sofrimento, tanto físico quanto psicológico, experimentado pelas


pessoas aqui não faz mais parte da experiência atual de Jesus. A oposição, a
hostilidade, a descrença e a infidelidade que ele aqui encontrou foram
substituídas pelo louvor dos anjos e pela presença não mediada do Pai. Deus o
exaltou e lhe deu um “nome que está acima de qualquer outro nome; para que
ao nome de Jesus se dobre todo joelho [...] e toda língua confesse que Jesus
Cristo é o Senhor, para glória de Deus Pai” (Fp 2.9-11). Os anjos retomaram

61
seus cânticos de louvor, pois o Senhor dos céus estava de volta. Que contraste
com os maus-tratos e os insultos que ele suportou enquanto esteve na Terra! E
agora os cânticos de louvor se estendem além do que era entoado antes da
encarnação. Uma nova estrofe foi acrescentada. Jesus realizou algo que não
havia feito antes de sua encarnação: ele experimentou pessoalmente a morte e
triunfou sobre ela. Há uma diferença também sob outro aspecto. Agora, Jesus
é o Deus-homem. A encarnação é permanente.

Paulo afirma em lTimóteo 2.5: “Porque há um só Deus e um só Mediador entre


Deus e os homens, Cristo Jesus, homem”. Esse texto mostra nitidamente que
Jesus, em sua condição atual, é o homem que medeia a relação entre Deus e
nós. Mas não se trata da mesma natureza humana que nós temos nem da
natureza que ele tinha enquanto esteve aqui. É uma natureza humana
aperfeiçoada, do tipo que possuímos depois de nossa ressurreição. Por isso,
sua encarnação permanente não impõe limitação alguma à sua divindade.
Assim como muitas limitações de nosso corpo serão removidas, o mesmo
ocorreu com a natureza humana perfeita e glorificada de Jesus, que se
mantém unida à divindade e, portanto, sempre será radicalmente superior
àquilo que seremos um dia. Houve razões bem claras para Jesus ter deixado a
Terra. Uma delas é que ele foi preparar um lugar para nossa habitação futura,
embora não detalhe como ela será (Jo 14.2,3).

Outra razão pela qual Cristo precisava ir era para que o Espírito Santo, a
terceira pessoa da Trindade, pudesse vir. Também, neste caso, ele não disse
aos discípulos por que uma coisa estava atrelada a outra, mas disse que assim
deveria ocorrer (Jo 16.7). O envio do Espírito Santo era importante, pois Jesus
podia agir na vida dos discípulos apenas pelos ensinamentos e exemplos
externos, mas o Espírito Santo poderia atuar neles internamente (Jo 14.17).
Com um acesso mais profundo ao cerne da vida dos discípulos, ele seria capaz
de agir por meio deles com maior liberdade.

62
Consequentemente, os cristãos poderiam realizar as mesmas obras que Jesus
realizou e até obras maiores (Jo 14.12). Por fim, mediante o ministério do
Espírito Santo, o Deus trino e uno estaria presente com eles; por isso, Jesus
pôde dizer que estaria com seus discípulos para sempre (Mt 28.20). A
ascensão de Jesus significa que ele agora está assentado à direita do Pai. O
próprio Jesus predisse isso em sua declaração ao sumo sacerdote (Mt 26.64).
Pedro referiu-se à entronização de Jesus à direita do Pai em seu sermão de
Pentecostes (At 2.33-36) e também perante o Sinédrio (At 5.31). Essa
realidade ainda é afirmada em Efésios 1.20-22; Hebreus 10.12; IPedro 3.22 e
Apocalipse 3.21; 22.1. A importância de tudo isso é que a destra é o lugar de
distinção e poder. Lembremo-nos como Tiago e João desejavam se assentar à
direita e à esquerda de Cristo (Mc 10.37-40). O fato de Jesus se assentar à
direita de Deus não deve ser interpretado como sinal de descanso ou
inatividade. Trata-se de uma linguagem que simboliza autoridade e domínio.
Além disso, é à direita do Pai que Jesus está sempre intercedendo junto a ele
em nosso favor (Hb 7.25).

FÉ E OBRAS
Fé salvadora

A fé salvadora pode ser definida como a convicção produzida pelo Espírito


Santo no coração, sendo Cristo o objeto da fé salvadora, pois quando cremos
nele, acreditamos nas promessas de Deus.

Ao falarmos dos diferentes elementos da fé, não devemos perder de vista o


fato de que a fé é uma atividade do homem como um todo, e não de alguma

63
parte dele. Basicamente fé é um exercício realizado pela alma humana,
englobando três elementos que fazem parte da concepção de fé:

a. Elemento do intelecto;
b. Elemento emocional;
c. Elemento vontade.

Para falar do objeto da fé salvadora, antes é preciso fazer uma distinção da fé


salvadora no sentido geral e no sentido especial. O sentido geral implica que a
fé salvadora exige dos crentes a crença nas Escrituras, onde estão as
principais revelações divinas e onde está tudo o que precisamos saber, sendo
todos esses ensinamentos o objeto dessa fé. Já a fé especial (adotada hoje em
algumas religiões) é a fé salvadora no sentido mais limitado da expressão,
embora a verdadeira fé na Bíblia como a Palavra de Deus seja absolutamente
necessária, esse ainda não é o fato específico de fé que justifica e, portanto,
salva diretamente o pecador crente. Para o homem ser salvo ele tem que crer
na Obra de Jesus Cristo e a promessa de salvação por intermédio dele. O ato
especial de fé consiste em receber a Cristo e descansar nele como Ele é
apresentado no Evangelho, pois somente através dele que seremos salvos.

Papel das obras em Tiago

O livro de Tiago é um texto extremamente importante para o cânon bíblico e


expõe o papel das obras no Novo Testamento. Entretanto, muitos estudiosos
não conseguiram entendê-lo. Um exemplo disso foi Lutero, que via Tiago como
uma contradição de Paulo (Rm 3.28 - Tg 2.24; Rm 4.2-3 - Tg 2.21).

Tal pensamento permanece causando dúvidas atualmente e, como resposta a


essa questão, muitos afirmam que Paulo e Tiago dão sentidos diferentes à

64
palavra “obras”. Alega-se que Paulo exclui somente as “obras da lei”, que
podem ser interpretadas como obras específicas — os regulamentos
cerimoniais da antiga aliança — ou como obras praticadas com um espírito
“legalista”. Já as “obras” exigidas por Tiago são interpretadas como atos de
caridade que cumprem a lei do amor.

Entretanto, há motivos para que essa afirmação seja questionada. Pois, o


conceito de Paulo sobre “obras” é muito mais amplo do que essa interpretação
sugere. Em Romanos 9.10-11 é possível observar o texto que mais nos coloca
próximos da definição de “obras” na literatura paulina:

“E não ela somente, mas também Rebeca ao conceber de um só, Isaque nosso pai. E
ainda não eram os gêmeos nascidos, nem tinham praticado o bem ou o mal (para que o
propósito de Deus, quanto à eleição prevalecesse, não por obras, mas por aquele que
chama)...”

Nestes versículos, fica claro que “obras” inclui qualquer coisa praticada, seja
boa ou má. Em Romanos 4, as “obras” de Abraão, nas quais ele não podia se
vangloriar, evidentemente devem ser “boas obras”. E ainda Romanos 4 está
intimamente associado com o argumento em 3.20-28, onde se emprega a
expressão “obras da lei”.

Então, pode-se dizer que Paulo vê “obras da lei” como um tipo específico de
“obras”, as praticadas em obediência à lei mosaica. Por isso, o propósito de
Paulo é excluir todas as obras — não simplesmente algumas ou aquelas
praticadas com um determinado espírito — como base para a justificação.

Também não está claro que em Tiago podemos limitar as “obras” aos atos de
caridade. Seguramente, nos versículos 15 e 16, Tiago fala de atividades que
cumprem a lei do amor e menciona como ilustração atos de caridade. Mas os

65
exemplos específicos, extraídos das vidas de Abraão e Raabe (v. 21-25), não
incluem claramente atos de caridade. No caso de Abraão em particular, o que
está em vista é sua obediência a Deus, sem nenhuma referência a qualquer
ato de caridade demonstrado a terceiros.

Desta forma, conclui-se que Paulo e Tiago estão tratando de interpretações


basicamente semelhantes para a palavra “obras”: qualquer coisa feita em
obediência a Deus e a serviço dele.

Portanto, para que possamos entender com mais clareza o papel das obras no
Novo Testamento, iremos analisar com mais profundidade o livro de Tiago e
suas afirmações.

Informações gerais

Autor
Tiago, como todas as epístolas gerais, com exceção de Hebreus, leva o nome
do seu autor (1:1). Dos quatro homens que se chamam Tiago no Novo
Testamento, somente dois são candidatos à autoria dessa epístola. Ninguém
tem considerado seriamente Tiago, o menor, filho de Alfeu (Mt 10:3; At 1:13),
nem Tiago, pai de Judas, não o Iscariotes (Lc 6:16; At 1:13).

Alguns sugeriram Tiago, filho de Zebedeu e irmão de João (Mt 4:21), mas ele
foi martirizado muito cedo para tê-la escrito (At 12:2). Resta-nos somente
Tiago, o meio-irmão mais velho de Cristo (Mc 6:3) e irmão de Judas (Mt 13:55).

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A princípio, Tiago havia rejeitado Jesus como Messias (Jo 7:5), mas depois
creu (1Co 15:7). Tornou-se o principal líder na igreja de Jerusalém (At 12:17;
15:13; 21:18; Gl 2:12), sendo chamado de uma das “colunas” dessa igreja,
juntamente com Pedro e João (Gl 2:9).

Também conhecido como Tiago, o justo, por causa de sua devoção à justiça,
ele foi martirizado por volta de 62 d.C., segundo Josefo, historiador judeu do
século I. Outro argumento que respalda a teoria de que ele foi o autor dessa
epístola reside numa comparação do vocabulário original de Tiago na carta que
ele escreveu, que está registrada em Atos 15, com o que se encontra na
epístola de Tiago.

Cenário e contexto

A carta de Tiago provavelmente foi escrita para igrejas da Palestina ou da Síria.


Os destinatários dessa carta eram cristãos judeus que haviam sido dispersados
(1:1), possivelmente em consequência do martírio de Estêvão (At 7; 31-34
d.C.); porém, o mais provável é que a causa da dispersão tenha sido a
perseguição sob o governo de Herodes Agripa I (At 12; aproximadamente em
44 d.C.).

O autor refere-se ao seu público como “irmãos” por quinze vezes (1:2,16,19;
2:1,5,14; 3:1,10,12; 4:11; 5:7,9-10,12,19), o que era comum entre os judeus do
século primeiro. É possível que Tiago estivesse escrevendo aos judeus que
haviam rejeitado a justiça pelas obras do judaísmo e, em vez disso, aceitado a
noção equivocada de que, uma vez que não eram eficazes para a salvação, as
obras justas e a obediência à vontade de Deus não eram necessárias em
absoluto. Assim, eles reduziram a fé a uma mera aceitação mental dos fatos
sobre Cristo, ao que Tiago declara que tal fé é inútil.

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Então, não é de surpreender que Tiago tenha um conteúdo judaico. Por
exemplo, a palavra grega traduzida por “reunião” (2:2) é a palavra usada para
“sinagoga”. Além disso, Tiago contém mais de quarenta referências ao Antigo
Testamento (e mais de vinte ao Sermão da Montanha, Mt 5—7).

Esboço do conteúdo de Tiago

Há várias maneiras de esboçar o livro de Tiago para compreender a disposição


de seu conteúdo. Uma delas é dispô-lo ao redor de uma série de provas
mediante as quais a genuinidade da fé de uma pessoa pode ser medida:

I. A prova da perseverança no sofrimento (1:2-12)


II. A prova da culpa na tentação (1:13-18)
III. A prova da resposta à Palavra (1:19-27)
IV. A prova do amor imparcial (2:1-13)
V. A prova das obras justas (2:14-26)
VI. A prova da língua (3:1-12)
VII. A prova da sabedoria humilde (3:13-18)
VIII. A prova da indulgência do mundo (4:1-12)
IX. A prova da dependência (4:13-17)
X. A prova da paciência que persevera (5:1-11)
XI. A prova da veracidade (5:12)
XII. A prova da oração (5:13-18)
XIII. A prova da verdadeira fé (5:19-20)

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Comentário bíblico

Em primeira análise, é importante ressaltar que Tiago não afirma que uma
pessoa é salva pelas obras. Ele afirmou com clareza que a salvação é um dom
gratuito de Deus (1:17-18). Antes, sua preocupação é mostrar que existe um
tipo de fé aparente que é inútil e que não salva (2:14,17,20,24,26). Seu ensino
é consistente com o restante da Escritura (Mt 3:7-8; 5:16; 7:21; 13:18-23; Jo
8:30-31; 15:6).

Tiago também falou que nascemos da Palavra (1.18), ouvimos a Palavra


(1.19), acolhemos a Palavra (1.21), mas devemos também praticar a Palavra
(1.23). Tiago mostra que a maneira como nos comportamos com as pessoas
indica o que realmente nós cremos sobre Deus. Ele também diz que a fé
verdadeira é conhecida pelo relacionamento imparcial com as pessoas (2.1-4).
Favoritismo e acepção de pessoas não são atitudes de um cristão. Além disso,
para maior compreensão do tema, iremos expor os principais versículos a
respeito de Fé e Obras em Tiago.

A Fé Morta

A fé é uma doutrina chave no cristianismo. O pecador é salvo pela fé (Ef 2.8,9),


o justo vive pela fé (Rm 1.17). Sem fé é impossível agradar a Deus (Hb 11.6).
Tudo o que é feito sem fé é pecado (Rm 14.23). Mas a Bíblia também afirma
que nem todas as pessoas que dizem crer em Jesus estão salvas (Mt 7.21).
Então, qual é o tipo de fé que salva uma pessoa? Será que a nossa fé tem sido
verdadeira? Tiago nos explicará mais sobre isso.

69
“Meus irmãos, que vantagem há se alguém disser que tem fé e
não tiver obras? Essa fé poderá salvá-lo?” Tiago 2.14

Nesse versículo, Tiago confronta aqueles que têm uma fé meramente baseada
em palavras. Pessoas que conhecem as doutrinas, mas não as praticam. Têm
discurso, mas não têm vida. Possuem fé apenas na mente, mas não na ponta
dos dedos. Há um abismo entre o que essas pessoas professam e o que
vivem. As igrejas estão cheias de pessoas assim, que dizem crer, mas não
vivem o que crêem. Isso é o que Tiago chama de fé morta e será descrito nos
próximos versículos.

Para exemplificar essa questão, imagine que certo pastor, ao ser confrontado
em razão de seu adultério, respondesse: “E daí se eu estou cometendo
adultério? Eu prego melhores sermões do que antes”. Esse homem estaria
dizendo que enquanto ele acreditasse e pregasse doutrinas ortodoxas, não
importava como ele levava a vida. Mas Tiago ataca esse tipo de pensamento.

“Se um irmão ou irmã estiverem necessitados de roupas e do


alimento de cada dia, e algum de vós lhes disser: Ide em paz,
aquecei-vos e saciai-vos, e não lhes derdes as coisas
necessárias para o corpo, que vantagem há nisso?” Tiago
2.15-16

Comida e roupa são necessidades básicas (ITm 6.8; Gn 28.20). Como crentes,
devemos ajudar a todos e, principalmente, aos que professam a mesma fé (G1
6.10). Seremos julgados por esse critério (Mt 25.40). Deixar de ajudar o
necessitado é fechar o coração ao amor de Deus (IJo 3.17,18).

Neste aspecto, Tiago se coloca ao lado de uma tradição bíblica longa e bem
representada. Isaías convoca o povo de seus dias a que desse um significado
real a seus ritos religiosos: “repartas o teu pão com o faminto, recolhas em

70
casa os pobres desabrigados, e se vires o nu o cubras... então clamarás, e o
Senhor te responderá...” (Is 58.7-9).

Jesus prometeu o reino àqueles que dessem de comer e vestissem “a um


destes meus pequeninos irmãos” (Mt 25.31-46). E João negou que qualquer
pessoa que deixe de auxiliar a um irmão em necessidade possa ter o
verdadeiro amor; pois o amor não é “de palavra, nem de língua, mas de fato e
de verdade” (1 Jo 3.17-18).

Esta advertência precisa constantemente ser ouvida pela igreja. Muitas vezes
nos contentamos em oferecer simples palavras, quando Deus pode estar nos
chamando à ação. Palavras — sermões, orações, confissões de fé, conselhos
sábios, encorajamento — são indispensáveis ao cristianismo verdadeiro. Mas a
fé verdadeira e viva não é incompleta, não se restringe apenas ao falar.

Tiago nos lembra de que as palavras provam ter um significado real quando as
pessoas vêem as ações que correspondem a elas. A partir da ilustração, ele
conclui:

“Assim também a fé por si mesma é morta, se não tiver obras.


Mas alguém dirá: Tu tens fé, e eu tenho obras; mostra-me tua fé
sem obras, e eu te mostrarei minha fé por meio de minhas obras.”
Tiago 2.17-18

Através deste versículo, podemos perceber que o contraste não é entre fé e


obras, mas entre fé “com obras” e fé “sem obras”. Esta última assemelha-se a
um corpo sem espírito (2.26), sem vida, e não traz proveito algum para o dia do
julgamento.

Tiago quer que seus leitores demonstrem em sua vida as qualidades de uma fé
viva. Tal fé viva é mais do que meramente conhecimento e consentimento —
inclui verdadeira confiança que persevera e obedece a Deus. Tiago contrasta a

71
fé viva com a fé morta ou vazia. A fé morta não resulta na vida transformada
que é característica da fé viva.

“Crês que Deus é um só? Fazes bem, pois os demônios também


creem e estremecem.” Tiago 2.19

Tiago retrata a pobreza da fé morta comparando-a com a “fé” que os demônios


possuem. Eles crêem que Deus é um só, assim como faz qualquer cristão ou
judeu convicto. A confissão da unidade de Deus, extraída de Deuteronômio 6.4,
fazia parte da Shema, uma confissão de doutrinas básicas recitada duas vezes
ao dia pelo judeu. Os cristãos também afirmavam a unidade de Deus, em vista
das religiões politeístas de muitos gentios (1 Co 8.4-6; G1 3.20; Ef 4.6; 1 Tm
2.5).

Então, este versículo introduz um novo estágio na resposta que Tiago dá à


declaração de que a fé pode existir sem as obras correspondentes. Ele
mostrou que este tipo de fé “vazia” não passa de informação sobre Deus, tal
como a dos demônios, e que ela conduz a nada mais do que um temor abjeto
diante de Deus.

Agora ele irá mostrar, a partir do Antigo Testamento, que a fé real sempre é
acompanhada de obras e que esta “fé operante” leva à aceitação perante
Deus.

“Mas, ó homem insensato, queres ser convencido de que a fé


sem obras é inútil? Não foi pelas obras que nosso pai Abraão foi
justificado quando ofereceu sobre o altar seu filho Isaque? Vês
que a fé cooperou com suas obras, e pelas obras a fé foi
aperfeiçoada. Assim se cumpriu a Escritura que diz: Abraão creu
em Deus, e isso lhe foi atribuído como justiça, e ele foi chamado
amigo de Deus. Vedes então que o homem é justificado pelas

72
obras e não somente pela fé. De igual modo, a prostituta Raabe
não foi também justificada pelas obras, quando acolheu os espias
e os fez sair por outro caminho? Pois assim como o corpo sem o
espírito está morto, também a fé sem obras está morta.” Tiago
2.20-26

Tiago se dirige à pessoa que defendeu a separação entre fé e obras como


homem insensato e afirma que Abraão praticou obras, as quais foram usadas
como critério no julgamento final de Deus sobre a vida de Abraão. Ele
pressupõe que Abraão tinha fé e que aquela fé foi um elemento básico em sua
aceitação por parte de Deus (v. 22-23). Mas ele enfatiza que a vida de alguém
que tenha sido aceito por Deus precisa revelar o fruto desse relacionamento,
através de boas obras. Paulo se concentra naquilo que precede e torna
possível estas obras.

Além do mais, é de extrema importância esclarecer que Tiago não está


condenando o estudo e conhecimento das escrituras, mas está chamando a
atenção para a prática desses ensinamentos. Por isso, não podemos usar o
livro de Tiago para justificar falsas doutrinas que veem o estudo da palavra
como algo errado, tais doutrinas são criadas para que as pessoas tenham
medo de buscar conhecimento e, por isso, permaneçam manipuladas. Para
refletirmos, se o cristão não conhece a palavra, a qual Deus ele serve: ao
Deus que se revela através das escrituras ou ao deus que ele criou em sua
mente?

Por isso, a fé salvadora pode ser sintetizada em três palavras: conteúdo,


concordância e confiança. A fé verdadeira inclui o intelecto, as emoções e a
vontade. O conteúdo da fé é a verdade de Deus. Eu recebo essa verdade e
confio nela e por ela sou transformado. Como Tiago descreve a fé verdadeira?
Em primeiro lugar, a fé salvadora está baseada na Palavra de Deus. A fé
salvadora é o conteúdo intelectual expresso como doutrinas básicas do

73
cristianismo. Em segundo lugar, a fé salvadora envolve todo o ser humano. A fé
morta toca apenas o intelecto. Em terceiro lugar, a fé salvadora conduz à ação.

Conclusão

Paulo e Tiago se complementam. Enquanto Paulo afirma que a causa da


salvação é a justificação somente pela fé, Tiago diz que a evidência da
salvação são as obras da fé. Paulo olha para a causa da salvação e fala da fé.
Tiago olha para a consequência da salvação e fala das obras. Paulo deixa isso
claro:
“Porque pela graça sois salvos, por meio da fé; e isto não vem de
vós, é dom de Deus; não vem das obras, para que ninguém se
glorie. Porque somos feitura sua, criados em Cristo Jesus para
boas obras, as quais Deus antes preparou para que andássemos
nelas” (Ef 2.8-10).

Por isso, a diferença entre Paulo e Tiago está na sequência das obras e da
conversão: Paulo nega a eficácia de obras praticadas antes da conversão,
enquanto Tiago apela à necessidade absoluta de obras praticadas depois dela.

A questão levantada por Paulo era: “Como a salvação é recebida?” A resposta


é: “Pela fé somente”. A pergunta de Tiago era: “Como essa fé verdadeira é
reconhecida?” A resposta é: “Pelas obras!” Assim, Tiago e Paulo não estão se
contradizendo, mas se completando. Somos justificados diante de Deus pela
fé, somos justificados diante dos homens pelas obras. Deus pode ver a nossa
fé, mas os homens só podem ver as nossas obras.

74
“A salvação é só pela fé, mas a fé salvadora não vem só. Ela se
evidencia pelas obras.” - João Calvino

Papel das obras em 1 João


A Primeira Epístola de João não é uma carta no mesmo sentido da epístola aos
Hebreus ou das epístolas de Pedro e Tiago. Ela também não é uma carta no
estilo das epístolas de Paulo. Ela tem sido entendida como um ensaio, tratado
ou sermão. Embora seja difícil defini-la, ela tem todas as marcas da obra de um
pastor cujo propósito era a edificação do seu povo na fé. Outras porções do
Novo Testamento têm esse mesmo propósito, mas essa epístola se sobressai.
Suas distinções não estão baseadas no seu propósito ou seu estilo de escrita,
nem no seu conteúdo, mas na intensa paixão de um pastor. A familiaridade
íntima de João com seus leitores tornou desnecessária qualquer saudação ou
referência pessoal e seu amor fervoroso, que é evidente em toda parte, o
tornou ousa- do, mesmo áspero, em sua forma de se expressar. “O espírito de
[...] João é um espírito imponente; sentimos que ele quase fica aflito pela
grandiosidade dos pensamentos dessa epístola, que são como música celestial
aos ouvidos do leitor”.
Nenhum outro livro da Bíblia trata de tantas doutrinas de forma tão concisa e
tão adequada. Tratando desde o pecado e sua confissão, passando pela
expiação e purificação e chegando à vida de santidade cristã, o autor
apresenta as reivindicações do evangelho de forma tão clara que “os viajantes,
mesmo sendo insensatos, não poderão se desviar nesses assuntos”. No
entanto, não é doutrina para formar um sistema de teologia, mas doutrinas
como base para a comunhão com Deus e uma vida de amor perfeito. A
teologia se torna viva aos filhos de Deus. O autor foi o último escritor do Novo
Testamento e, nessa epístola, derramou a essência de uma vida de comunhão

75
com o seu Senhor ressuscitado e seu conhecimento profundo dos outros livros
do Novo Testamento. Sem dúvida, sua memória lhe foi útil — ele tinha visto e
ouvido e lidado com “a Palavra da vida” — mas foi a memória elevada ao nível
da percepção espiritual e revivida no domínio do Espírito.
“Na avaliação de algumas mentes profundamente espirituais, a primeira
epístola de João ocupa o lugar mais elevado nos escritos inspirados que
constituem a Bíblia''. John Wesley a chamou de “a parte mais profunda das
Escrituras Sagradas”. Robert Law percebeu nessa epístola três testes de vida:
o teste teológico, ou seja, se acreditamos que Jesus é o Filho de Deus; o teste
moral, se vivemos vida justa; e o teste social, se amamos uns aos outros.3
Essa epístola busca tornar real na vida dos crentes a oração de Jesus em João
17.15: “Não peço que os tires do mundo, mas que os livres do mal”.
Mesmo o leitor casual deve estar ciente de que as idéias dessa epístola e do
evangelho de João, bem como sua maneira de expressão, são similares. O Dr.
James Moulton diz que ninguém, mesmo que tenha uma vaga compreensão de
estilo, separaria as epístolas de João do quarto evangelho. Para B. F. Westcott,
a epístola “está intimamente conectada com o quarto evangelho no que tange
ao vocabulário, estilo, pensamento e escopo; por isso, esses dois livros só
podem ser considerados obras do mesmo autor”.6 William Alexander diz: “Os
dois documentos não só são semelhantes em pensamento, mas
interpenetram-se mutuamente; assim, a epístola está constantemente
propondo perguntas que somente o evangelho pode responder”.6 A grande
semelhança entre os dois livros pode ser vista na comparação de algumas
passagens paralelas (em que a referência à epístola é colocada primeiro em
cada par): 1.1 e 1.1; 1.2 e 3.2; 1.2 e 1.1; 1.6 e 8.12; 2.3 e 14.15; 2.5 e 14.21;
2.6 e 15.5; 2.8 e 13.34; 2.25 e 17.2.

76
Informações gerais

Autor

Essas semelhanças, no entanto, de forma alguma garantem unidade de


autoria. A epístola tem compartilhado da prolongada discussão acerca da
autoria do quarto evangelho e dos resultados incertos acerca dessa discussão
entre os estudiosos modernos. Até o século XVI, ninguém parecia duvidar que
a primeira epístola e o evangelho eram do mesmo autor. Os argumentos a
favor do ponto de vista tradicional apresentados por A. E. Brooke têm se
tornado mais ou menos normativos. C. H. Dodd apresenta um ponto de vista
oposto. Os dois homens concordam que as idéias dos dois escritos bem como
a sua forma de expressão são semelhantes. Brooke conclui que é impossível
provar uma autoria comum em contraste com a imitação ou semelhança
produzidas pela formação comum na mesma escola de pensamento. Mas ele
não encontra razões adequadas para descartar a visão tradicional que atribui a
epístola e o evangelho ao mesmo autor — ela continua sendo a explicação
mais provável dos fatos.
A conclusão é que nenhuma evidência tem desalojado de maneira
bem-sucedida o apóstolo João do seu lugar tradicional como o autor, e há
pouca evidência nova para continuar essa discussão. João continua
estabelecido firmemente como o autor tanto do evangelho como da epístola. A
epístola de 1 João quase certamente foi escrita numa época próxima da do
evangelho. Ela provavelmente foi escrita mais tarde e pode ser datada no meio
da última década do primeiro século, em torno de 95 d.C.

77
Cenário Contexto
João escreveu com o propósito de dar garantia aos que creram em Cristo
acerca da sua salvação (1 Jo 5:13). A primeira prova é a doutrinária, ou seja, a
fé em Cristo. Aquele que nega que Jesus veio em carne e nega que Jesus é o
Cristo não procede de Deus. Esse é o enganador e o anticristo. Ninguém pode
se considerar cristão negando a encarnação de Jesus. Ninguém pode ser salvo
negando a natureza divino-humana de Cristo Jesus. Ele não é meio Deus e
meio homem. Ele é Deus-Homem.
A segunda prova é o amor: Quem não ama permanece na morte, jamais viu a
Deus e não procede de Deus.
A terceira, e pertinente para a abordagem de fé e obras aqui discutidas, é a
prova moral ou o teste moral. Aqueles que amam a Cristo devem andar assim
como Ele andou. O que cremos deve desembocar naquilo que fazemos. Não
existe um abismo entre fé e ética. Se não há ética, não há fé.
Além desse motivo, João escreve para defender a fé e fortalecer as igrejas
contra os falsos mestres e sua herética doutrina. Esses falsos mestres haviam
saído de dentro da própria igreja (2.19). Eles se desviaram dos preceitos
doutrinários. João identificou o surgimento de um perigo a heresia que atacaria
implacavelmente a igreja no segundo século, a heresia do gnosticismo.
O gnosticismo era uma espécie de filosofia religiosa que tentava fazer um
concubinato entre a fé cristã e a filosofia grega. Os gnósticos, influenciados
pelo dualismo grego, acreditavam que a matéria prima essencialmente má e o
espírito essencialmente bom. Esse engano filosófico desembocou em grave
erro doutrinário. Os gnósticos diziam que o corpo, sendo matéria, não podia
ser bom. Por conseguinte, negavam a encarnação de Cristo. Essa posição
resultou em duas atitudes diferentes em relação ao corpo: ascetismo ou
libertinagem. William Barclay diz que a ideia de que o celibato é meIhor do que
o matrimônio e que o sexo equivale a pecado e influência das crenças
gnósticas. De igual forma, a imoralidade desbragada e perversão moral que

78
assolam a sociedade contemporânea também são produtos dessa perversa
filosofia.
"O gnosticismo é termo amplo e abrange vários sistemas pagãos, judaicos e
semicristãos. Na origem era pagão, combinando do elemento" intelectualismo
ocidental e do misticismo oriental ". sincrético em seu gênio, uma espécie de
guisado misto teosófico. Ele não hesitou em grudar-se primeiro ao judaísmo e
depois ao cristianismo, e em corromper ambos. O gnosticismo é totalmente na
mesma ordem. As principais crenças do gnosticismo são: a impureza da
matéria e a supremacia do conhecimento. A filosofia gnóstica produziu uma
aristocracia espiritual por um lado e uma acentuada imoralidade por outro. O
gnosticismo ensinava que a recuperação podia ser obtida por intermédio do
conhecimento, em vez da fé. Esse conhecimento era esotérico e somente
poderia ser adquirido por aqueles que haviam sido iniciados nos mistérios do
sistema gnóstico.
O gnosticismo ensinava que o corpo era uma vil prisão em que a parte racional
ou espiritual do homem estava encarcerada, e da qual precisava ser libertada
pelo conhecimento (gnose), Os gnósticos acreditavam na salva pela
iluminação. Essa iluminação podia ser mediante uma comunicação de um
conhecimento esotérico em alguma informação secreta de iniciação. Os
iniciados eram os pneumatikoi, pessoas verdadeiramente "espirituais", que
desprezavam os não iniciados como psuchikoi, condenados a uma vida animal
na terra.
A heresia atingiu as verdades essenciais do cristianismo. A primeira delas foi a
doutrina da Criação. Os gnósticos estavam errados quando afirmavam que a
matéria era essencialmente má. Deus criou o mundo deu uma nota: "Muito
bom" (Gn 1,31). A segunda verdade que foi afetada pela heresia gnóstica foi a
doutrina da Encarnação. Para os gnósticos, era impossível que Deus
houvesse assumido um corpo físico, material. Essa heresia em sua forma mais

79
radical é chamada de docetismo. O verbo grego dokein significa "parecer" e os
docetistas pensavam que Jesus só parecia ter um corpo.

Esboço do conteúdo de 1 João

I. Introdução, 1.1 -4

II. Fundamentos do Evangelho, (1 .5— 2 .2 9


A. A Mensagem de Vida — Deus é Luz, (1.5-7)
B. Do Pecado para a Vida, (1.8-10)
C. Para que Não Pequeis, (2.1,2)
D. O Teste da Obediência, (2.3-6)
E. O Teste da Vida,(2.7,8)
F. O Teste do Amor, (2.9-11)
G. Filhinhos, Pais, Jovens, (2.12-14)
H. Amor do Mundo, (2.15-17)
I. O Mundo Passa, (2.18-26)
J. Permanecendo em Cristo, (2.27-29)
III. O Caráter dos Filhos de Deus, (3 .1 -2 4)
A. Os Filhos de Deus, (3.1-3)
B. Uma Definição de Pecado, (3.4-6)
C. Filhos de Deus Versus Filhos do Diabo, (3.7,8)
D. Impecabilidade, (3.9-12)
E. Amor e Ódio, (3.13-17)
F. O Amor Revelado em Ação, (3.18-24)
IV. A F onte de Filiação, (4 .1 — 5 .1 2)
A. Verdade e Erro, (4.1-6)

80
B. O Amor é de Deus, (4.7-12)
C. Deus é Amor, (4.13-21)
D. A Fé é a Vitória, (5.1-5)
E. A Vida Eterna, (5.6-12)
V. Conclusão, (5 .1 3 -2 1)
A. O Motivo de Confiança, (5.13-17)
B. O Conhecimento Espiritual, (5.18-21)

O Teste Moral
“Esta é a mensagem que dele ouvimos e transmitimos a vocês: Deus é luz;

nele não há treva alguma. Se afirmarmos que temos comunhão com ele, mas
andamos nas trevas, mentimos e não praticamos a verdade. Se, porém,
andarmos na luz, como ele está na luz, temos comunhão uns com os outros, e
o sangue de Jesus, seu Filho, nos purifica de todo pecado.”
(1 João 1:5-7)
Os falsos mestres, que haviam desembarcado na Ásia Menor, traziam em sua
bagagem uma teologia falsa acerca de Deus, de Cristo, do homem, do pecado
e da salvação. No pacote de suas heresias, esses falsos mestres
desconectavam a religião da vida, afirmando que podiam ter comunhão com
Deus e ao mesmo tempo viver nas trevas (1.6). Eles chegavam a ponto de
negar a própria existência do pecado (1.8) e afirmar que não eram susceptíveis
a ele (1.10).
A oposição aqui é feita entre luz e trevas. Moralmente, luz é pureza e trevas,
mal. Por conseguinte, a pretensão dos falsos mestres gnósticos de conhecer a
Deus, que é luz, e de manter comunhão com ele apesar de sua indiferença
para com a moralidade é vista como sendo absurdo.

81
Deus é luz no sentido de sua perfeição moral absoluta. Deus é santo e puro.
Não há mácula em seu caráter. Ele é imaculado. Ele é puríssimo em seu ser,
em suas palavras e em suas obras. Não há trevas que ocultam algum mal
secreto em Deus nem sombra de alguma coisa que tema essa luz. João diz
que não há nele treva nenhuma. Andar nas trevas, aqui, significa viver no erro,
no pecado, na ignorância de Deus e em hostilidade a ele. Nesse caso,
mentimos e não praticamos a verdade. Andamos em trevas quando as coisas
mais cruciais da vida passam sem o exame da luz de Cristo. Se nossa carreira,
nossa vida sexual, dinheiro, família, autoimagem, esperanças e sonhos jamais
lhe foram abertos, nosso cristianismo e vida eclesiástica são uma mentira
eloquente.
Uma outra vez que percebemos o teste moral na carta é em:
“Sabemos que o conhecemos, se obedecemos aos seus mandamentos.
Aquele que diz: “Eu o conheço”, mas não obedece aos seus mandamentos, é
mentiroso, e a verdade não está nele. Mas, se alguém obedece à sua palavra,
nele verdadeiramente o amor de Deus está aperfeiçoado. Desta forma
sabemos que estamos nele: aquele que afirma que permanece nele deve
andar como ele andou. “
(1Jo 2:3-6 )

Primeiramente, os gregos pensavam que podiam conhecer a Deus


simplesmente por intermédio da razão. Os falsos mestres do gnosticismo
desprezavam os cristãos julgando-se superiores a eles, uma vez que estes
tinham fé, enquanto eles tinham conhecimento. O gnosticismo defendia a
supremacia do conhecimento. Eles se consideravam superiores aos outros
homens. Eles viam a si mesmos como uma casta espiritual. Para os gregos, o
caminho para Deus era o intelecto.
O conhecimento estava separado da ética. Vemos, ainda hoje, resquícios
dessa visão equivocada. Há aqueles que têm conhecimento, mas não têm vida.

82
São ortodoxos de cabeça, mas hereges de conduta. Conhecer nas Escrituras e
especialmente em João (2.3,4,13,14) não significa nunca um conhecimento
intelectual, teórico, mas um conhecimento experimental do coração. O que
João está dizendo é que nenhum conhecimento é verdadeiro se não for
transformador. John Stott tem razão quando diz que nenhuma experiência
religiosa é válida se não tiver consequências morais (Tt 1.16). Não
conhecemos a Deus pelo tanto de informações que temos na mente, mas pelo
grau de obediência que manifestamos na vida. As palavras de um homem
devem ser provadas por suas obras. Se a sua vida contradiz as suas palavras,
o seu conhecimento de Deus é falso. João não pode conceber um verdadeiro
conhecimento de Deus que não resulte em obediência. O conhecimento de
Deus só pode ser provado pela obediência a Deus, e só pode ser adquirido
obedecendo a Deus. Conhecer a Deus é experimentar o amor de Cristo e
devolver esse amor em obediência.
Em segundo lugar, a inconsistência moral é a negação do conhecimento de
Deus (2.4). “Aquele que diz: Eu o conheço e não guarda os seus mandamentos
é mentiroso, e nele não está a verdade.” O pior dos enganos é o autoengano.
Há aqueles que estão certos de que conhecem a Deus, mas estão enganados,
são mentirosos, porque sua vida está plantada na areia movediça da
inconsistência moral. Alguém poderá dizer: “Eu sou cristão, eu estou no
caminho do céu, eu pertenço a Cristo”. Mas se não fizer o que Cristo lhe
manda, é mentiroso.
Em terceiro lugar, a obediência à Palavra é a prova de que Deus está em nós e
nós nele (2.5). “Aquele, entretanto, que guarda a sua palavra, nele,
verdadeiramente, tem sido aperfeiçoado o amor de Deus. Nisto sabemos que
estamos nele...” O amor de Deus por nós é aperfeiçoado na obediência à
Palavra. Nosso amor por Deus é demonstrado pela observância dos
mandamentos de Cristo (5.3; Jo 14.15,21,23). Como podemos saber que
estamos em Deus? João responde com uma sucessão de declarações:

83
Quando estamos nele (2.5), quando permanecemos nele (2.6) e quando
andamos assim como ele andou (2.6). Concordo com John Stott quando diz
que o verdadeiro amor a Deus se expressa, não em linguagem sentimental ou
em experiência mística, mas na obediência moral. A prova do amor é a
lealdade.
Em quarto lugar, a imitação de Cristo é a prova de que pertencemos a ele (2.6).
“Aquele que diz que permanece nele, este deve também andar assim como ele
andou.” Cristo não é apenas nosso mestre; é também nosso exemplo.
Qualquer pessoa que diga que é cristáo deve viver como Cristo viveu. A
tradução Phillips deixa isso claro: “A vida daquele que professa viver em Deus
deve produzir perfeitamente o caráter de Cristo”. Não basta conhecer seus
mandamentos e sua Palavra, precisamos também imitá-lo (2.6; 3.3).
Precisamos andar como ele andou. Como Cristo andou? Ele andou regido pela
humildade. Ele se esvaziou a si mesmo. Ele andou em total submissão ao Pai.
Ele se entregou a si mesmo. Ele andou por toda a parte fazendo o bem e
curando os oprimidos do diabo. Ele andou em amor e perdoou até mesmo os
seus algozes. E assim devemos andar, uma vez que o conhecimento de Deus
não é apenas intelectual ou emocional, mas sempre desembocará na
obediência moral.
Um terceiro texto é 1 Jo 3:7-10:
“Filhinhos, não deixem que ninguém os engane. Aquele que pratica a justiça é
justo, assim como ele é justo. Aquele que pratica o pecado é do Diabo, porque
o Diabo vem pecando desde o princípio. Para isso o Filho de Deus se
manifestou: para destruir as obras do Diabo. Todo aquele que é nascido de
Deus não pratica o pecado, porque a semente de Deus permanece nele; ele
não pode estar no pecado, porque é nascido de Deus. Desta forma sabemos
quem são os filhos de Deus e quem são os filhos do Diabo: quem não pratica a
justiça não procede de Deus, tampouco quem não ama seu irmão.”

84
Em primeiro lugar, a prática da justiça é a verdadeira imitação do Deus justo
(3.7). “Filhinhos, não vos deixeis enganar por ninguém: aquele que pratica a
justiça é justo, assim como ele é justo.” Os gnósticos queriam enganar os
cristãos teológica (2.26) e moralmente (2.7). No entanto, para João, o fazer é a
prova do ser.300 Não imitamos a Deus por intermédio de ritos místicos, mas
pela prática da justiça. Deus é justo (1.9; 2.9) e Jesus Cristo é justo (2.1).
Quem é nascido de Deus é justo mediante a obra substitutiva de Cristo e a
imputação de sua justiça. Por conseguinte, vive na prática da justiça.301
Em segundo lugar, a prática do pecado é a verdadeira identificação com o
diabo (3.8a). “Aquele que pratica o pecado procede do diabo, porque o diabo
vive pecando desde o princípio...”. Se a prática da justiça é a imitação de Deus,
a prática do pecado é a imitação do diabo. A prática da justiça e a prática do
pecado identificam a nossa paternidade. Aqueles que são filhos de Deus
praticam a justiça; aqueles que são filhos do diabo praticam o pecado.
Não somos o que falamos, mas o que fazemos. Não é o nosso discurso que
nos torna filhos de Deus, mas provamos a nossa filiação divina pelas nossas
obras.
Em terceiro lugar, a prática do pecado é impossível para os filhos de Deus
(3.9). “Todo aquele que é nascido de Deus não vive na prática de pecado; pois
o que permanece nele é a divina semente; ora, esse não pode viver pecando,
porque é nascido de Deus.” Alguns críticos veem contradição no apóstolo João
ao examinarem o que ele escreveu (1.8,10; 2.1) e o que escreve agora (3.9).
Contudo, não há aqui qualquer contradição. Em cada capítulo João está
combatendo um erro diferente. A primeira posição, capítulo 1, é cega para o
pecado e nega a sua gravidade; a segunda posição, capítulo 3, é indiferente
para com o pecado e nega a sua gravidade. João refuta as duas, mostrando no
capítulo 1 a universalidade do pecado e no capítulo 3 a incompatibilidade do
pecado no cristão. “Pecar” aqui está no presente contínuo. E isto significa que
o cristão não pode viver na prática e no hábito do pecado. O cristão não pode

85
viver deliberada e insistentemente no pecado. O pecado não é mais a
atmosfera da sua vida. Simon Kistemaker, nessa mesma linha de pensamento,
diz que no grego o verbo expressa ação contínua, e não uma única ocorrência.
Assim, ao usar o tempo presente dos verbos gregos, João está dizendo que o
crente não pode praticar o pecado como um hábito. O pensamento que está
sendo transmitido em 1 João 3.9 não é que o nascido de Deus jamais comete
um ato pecaminoso, mas que ele não persistirá no pecado. O pecado
deliberado é uma conspiração contra o amor do Pai, contra o sacrifício
expiatório do Filho e contra a obra regeneradora do Espírito Santo. João lista
duas razões eloquentes pelas quais os filhos de Deus não podem viver na
prática do pecado:
- Por causa da divina semente neles implantada. A semente divina,
semente, foi implantada em nós. O princípio divino da vida verdadeira foi
dado para a concepção da nova pessoa dentro de nós. E assim como o
filho natural cresce com as características do pai que o gerou, também
nós cada vez mais crescemos na natureza espiritual de nosso Pai
celeste. Augustus Nicodemus diz corretamente que João usa aqui o
quadro da reprodução humana. O sêmen carrega a vida e transfere as
características paternas. Portanto, os que são filhos de Deus herdam a
natureza divina (2Pe 1.4), e como decorrência, o nascido de Deus não
pode viver pecando, porque é nascido de Deus. A divina semente é a
Palavra de Deus que habita em nós. Fomos gerados dessa semente
incorruptível
- Por causa do novo nascimento. Somos nascidos de Deus e Deus é
santo, portanto, devemos carregar a imagem do nosso Pai. Nascidos de
Deus é a ideia central dos capítulos 3-5 (3.9; 4.7; 5.1,4,18). Não
podemos viver na prática do pecado, pois essa é a marca dos filhos do
diabo. Concordo com o que diz Warren Wiersbe: “Por certo, nenhum

86
cristão é impecável, mas Deus espera que o verdadeiro cristão não
peque de modo habitual”.
Assim, é evidente que a fé e as boas obras caminham juntas na caminhada
cristã, sendo indissociáveis.

SANTIFICAÇÃO

A santificação é uma aplicação da redenção que é progressiva e Deus e o


homem cooperam, cada um desempenhando papéis distintos. Essa parte da
aplicação da redenção é chamada santificação, assim definida: santificação é
uma obra progressiva da parte de Deus e do homem que nos torna cada vez
mais livres do pecado e semelhantes a Cristo em nossa vida presente.
A Santificação começa com uma mudança moral definida ocorre em nossa vida
no momento da regeneração, porque Paulo fala sobre o “o lavar regenerador e
renovador do Espírito Santo” (Tt 3.5). Uma vez nascidos de novo não podemos
continuar pecando como um hábito ou como um padrão de vida (IJo 3.9),
porque o poder da nova vida espiritual em nós impede-nos de render-nos a
uma vida de pecados. Essa mudança moral é o primeiro estágio na
santificação.
Nesse sentido, há uma coincidência entre regeneração e santificação, porque
essa mudança moral é realmente uma parte da regeneração. Mas quando a
vemos da perspectiva da mudança moral interior, podemos considerá-la o
primeiro estágio da santificação. Paulo fala sobre um evento completado
quando diz aos coríntios: “Mas vós vos lavastes, mas fostes santificados, mas
fostes justificados em o nome do Senhor Jesus Cristo e no Espírito do nosso
Deus” (ICo 6.11).

87
Semelhantemente, em Atos 20.32, ele pode referir-se aos cristãos como “todos
os que são santificados”.2 Esse passo inicial da santificação envolve uma
ruptura definitiva com o poder preponderante do pecado, bem como com o
amor ao pecado, para que o crente não mais seja regido nem dominado por ele
e não mais ame o pecado. Paulo diz: “Assim também vós considerai-vos
mortos para o pecado, mas vivos para Deus, em Cristo Jesus [...] Porque o
pecado não terá domínio sobre z;óí” (Rm 6.11, 14). Paulo diz que os cristãos
foram “libertados do pecado” (Rm 6.18). Nesse contexto, estar morto para o
pecado ou ser libertado dele envolve o poder de superar os atos ou padrões do
comportamento pecaminoso na vida de uma pessoa.
Paulo fala aos romanos que não deixem que “reine, portanto, o pecado em
vosso corpo mortal”, e também diz: “Nem ofereçais cada um os membros do
seu corpo ao pecado, como instrumentos de iniqüidade; mas oferecei-vos a
Deus” (Rm 6.12- 13). Estar morto para o poder reinante do pecado significa
que nós como cristãos, por meio da virtude do poder do Espírito Santo e do
Cristo ressurreto atuando em nós, temos poder para superar as tentações e
seduções do pecado. O pecado não mais será nosso senhor, como fora antes
de nos tornarmos cristãos. Em termos práticos, isso significa que devemos
afirmar duas verdades. Por um lado, nunca seremos capazes de dizer: “Estou
completamente livre do pecado”, porque nossa santificação nunca estará
completa (veja abaixo). Mas por outro lado, um cristão nunca deve dizer (por
exemplo): “Este pecado me derrotou. Eu desisto. Faz 37 anos que tenho um
péssimo temperamento, e o terei até o dia em que eu morrer, e as pessoas têm
de me aceitar do jeito que eu sou!” Dizer essas coisas seria o mesmo que dizer
que o pecado foi vitorioso. E permitir que o pecado reine em nosso corpo. E
admitir a derrota. E negar a verdade das Escrituras, que nos falam: “Assim
também vós considerai-vos mortos para o pecado, mas vivos para Deus em
Cristo Jesus" (Rm 6.11). É negar a verdade bíblica que nos diz que “o pecado
não terá domínio sobre vós” (Rm 6.14). O rompimento inicial com o pecado,

88
então, envolve a reorientação de nossos desejos para que não tenhamos mais
amor pelo pecado dominando nossa vida.
Ainda que o Novo Testamento fale sobre um começo definido da santificação,
também a vê como um processo que continua por toda nossa vida cristã.
Geralmente esse é o sentido principal com que o termo santificação é usado na
teologia sistemática e nas conversas cristãs de hoje.4 Embora Paulo diga que
seus leitores foram libertados do pecado (Rm 6.18) e que estão “mortos para o
pecado, mas vivos para Deus” (Rm 6.11), ele todavia reconhece que o pecado
permanece na vida deles; por essa razão, aconselha-os a não deixá-lo reinar e
a nem se renderem a ele (Rm 6.12-13).
Portanto, o dever deles como cristãos é crescer cada vez mais na santificação,
assim como antes cresciam cada vez mais em pecado: “Assim como
oferecestes os vossos membros para a escravidão da impureza e da maldade
para a maldade, assim oferecei, agora, os vossos membros para servirem a
justiça, para a santificação” (Rm 6.19; as palavras “assim como [...] assim [...]
agora” [gr. hõsper. . . houtõs] indicam que Paulo quer que eles façam isso da
mesma maneira: “assim como” antes se ofereciam cada vez mais ao pecado,
“da mesma maneira” devem agora se oferecer cada vez mais à justiça para a
santificação). Paulo diz que por toda a vida cristã “todos nós [...] somos
transformados, de glória em glória, na sua própria imagem” (2Co 3.18).
Gradualmente nos tornamos cada vez mais semelhantes a Cristo, conforme
avançamos na vida cristã. Portanto, ele diz: "Esquecendo-me das coisas que
para trás ficam e avançando para as que diante de mim estão, prossigo para o
alvo, para o prêmio da soberana vocação de Deus em Cristo Jesus” (Fp
3.13-14); em outras palavras, embora Paulo não houvesse ainda alcançado a
perfeição, prosseguia para alcançar todos os propósitos pelos quais Cristo o
salvará (v. 9-12). Paulo orienta os colossenses a não mentirem uns aos outros,
visto que eles se revestiram “do novo homem que se refaz para o pleno
conhecimento, segundo a imagem daquele que o criou” (Cl 3.10), mostrando

89
assim que a santificação certamente envolve aumentar a semelhança de Deus
em nossos pensamentos, palavras e ações.
O autor de Hebreus diz a seus leitores: “desembaraçando-nos de todo peso e
do pecado que tenazmente nos assedia” (Hb 12.1), e exorta “segui a paz com
todos e a santificação, sem a qual ninguém verá o Senhor” (Hb 12.14). Tiago
encoraja seus leitores: “Tornai-vos, pois, praticantes da palavra e não somente
ouvintes” (Tg 1.22), e Pedro recomenda: "Tornai Vos santos também vós
mesmos em todo o vosso procedimento” (IPe 1.15). Não é necessário listar
múltiplas citações, porque grande parte do Novo Testamento dirige-se ao
ensino dos crentes de diversas igrejas sobre como devem crescer à
semelhança de Cristo. Todas as exortações e mandamentos de natureza moral
das epístolas do Novo Testamento se aplicam aqui, pois exortam crentes a
observar um ou outro aspecto, visando maior santificação na vida. A
expectativa de todos os autores do Novo Testamento é que nossa santificação
aumente no curso de nossa vida cristã.

Por causa do pecado que ainda permanece em nosso coração, embora


tendo-nos tornado cristãos (Rm 6.12-13; IJo 1.18), nossa santificação nunca se
completará nesta vida (veja abaixo). Mas uma vez que morramos e estejamos
com o Senhor, então nossa santificação se completa nesse sentido, porque
nossa alma é libertada do pecado que habita em nós aperfeiçoada. O autor de
Hebreus diz que quando chegamos à presença de Deus para adorar,
chegamos “aos espíritos dos justos aperfeiçoados” (Hb 12.23). Isso é bem
apropriado, porque prevê o fato de que “nunca jamais penetrará coisa alguma
contaminada” na presença de Deus, a cidade celestial (Ap 21.27). Entretanto,
quando consideramos que a santificação envolve a pessoa toda, incluindo
nosso corpo (veja 2Co 7.1; ITs 5.23), então compreendemos que ela não se
completará inteiramente antes que o Senhor retorne e ressuscitemos. Nós
esperamos a vinda de nosso Senhor Jesus Cristo do céu, quando ele

90
“transformará o nosso corpo de humilhação, para ser igual ao corpo da sua
glória” (Fp 3.21). E “na sua vinda” (ICo 15.23) que seremos vivificados com o
corpo da ressurreição e então iremos levar conosco plenamente “a imagem do
celestial” (ICo 15.49).5 Podemos diagramar o processo da santificação
conforme a figura 38.1, mostrando que somos escravos do pecado antes da
conversão, (1) que há um começo definido da santificação no momento da
conversão, (2) que a santificação deve aumentar no decorrer da vida cristã, e
(3) que a santificação é aperfeiçoada na morte.
Visto que a santificação é principalmente uma obra de Deus, a oração de Paulo
torna-se apropriada: “O mesmo Deus da paz vos santifique em tudo” (ITs 5.23).
Um papel específico de Deus Pai na santificação é seu processo de nos
disciplinar como seus filhos (veja Hb 12.5-11). Paulo diz aos filipenses que
“Deus é quem efetua em vós tanto o querer como o realizar, segundo a sua
boa vontade” (Fp 2.13), mostrando assim um pouco da maneira como Deus os
santifica - tanto causando neles o querer sua vontade como dando-lhes poder
para fazê-la. O autor de Hebreus fala sobre o papel do Pai e sobre o papel do
Filho numa bênção conhecida: “Ora, o Deus da paz [...] vos aperfeiçoe em todo
o bem, para cumprirdes a sua vontade, operando em vós o que é agradável
diante dele, por Jesus Cristo, a quem seja a glória para todo o sempre” (Hb
13.20-21).
O papel de Deus Filho, Jesus Cristo, na santificação é, primeiro, que ele
conquistou nossa santificação para nós. Portanto, Paulo podia dizer que Deus
fez com que Cristo se nos tornasse “sabedoria, e justiça, e santificação, e
redenção” (ICo 1.30). Além disso, no processo de santificação, Jesus é
também nosso exemplo, porque corremos a carreira da vida “olhando
firmemente para o Autor e Consumador da fé, Jesus” (Hb 12.2). Pedro fala a
seus leitores: “Também Cristo sofreu em vosso lugar, deixando-vos exemplo
para seguirdes os seus passos” (IPe 2.21). Também João diz: “Aquele que diz
que permanece nele, esse deve também andar assim como ele andou” (IJo

91
2.6). Mas é especificamente Deus Espírito Santo quem atua dentro de nós para
nos transformar e nos santificar, dando-nos maior santidade na vida. Pedro fala
da “santificação do Espírito” (IPe 1.2), assim como também Paulo (2Ts 2.13). É
o Espírito Santo quem produz em nós o “fruto do Espírito” (G1 5.22), os traços
de caráter que geram santificação cada vez maior. Se crescemos na
santificação, andamos “no Espírito” e somos “guiados pelo Espírito”
(G15.16-18; cf. Rm 8.14), isto é, somos cada vez mais susceptíveis aos
desejos e às orientações do Espírito Santo em nossa vida e caráter. O Espírito
Santo é o espírito da santidade e produz santidade dentro de nós.
O papel que desempenhamos na santificação é tanto passivo, pelo qual
dependemos de que Deus nos santifique, como ativo, pelo qual nos
esforçamos para obedecer a Deus e dar os passos que aumentarão a nossa
santificação. Podemos considerar agora os dois aspectos de nosso papel na
santificação. Primeiro, aquele que pode ser chamado papel “passivo” que
desempenhamos na santificação é visto em textos que nos encorajam a confiar
em Deus ou a orar pedindo que ele nos santifique.
Paulo fala a seus leitores romanos: “Oferecei-vos a Deus, como ressurretos
dentre os mortos” (Rm 6.13; cf. v. 19), e também: “... apresenteis o vosso corpo
por sacrifício vivo, santo e agradável a Deus” (Rm 12.1). Paulo compreende
que somos dependentes da obra do Espírito Santo para crescer na
santificação, porque ele diz: “Se, pelo Espírito, mortificardes os feitos do corpo,
certamente, vivereis” (Rm 8.13). Infelizmente, hoje esse papel “passivo” na
santificação, a idéia de oferecer-se a Deus e de confiar que ele efetue em nós
“tanto o querer como o realizar, segundo a sua boa vontade” (Fp 2.13), é às
vezes tão fortemente enfatizado que é a única coisa que as pessoas conhecem
sobre o caminho da santificação. Às vezes a expressão popular “entregar nas
mãos de Deus” é usada como um resumo de como viver a vida cristã. Mas isso
é uma trágica distorção da doutrina da santificação, porque fala apenas de
metade do que devemos desempenhar e, por isso mesmo, leva os cristãos a

92
se tornarem indolentes e a negligenciar o papel ativo que as Escrituras ordena
que desempenhem na sua própria santificação.
Esse papel ativo que devemos desempenhar é indicado em Romanos 8.13,
onde Paulo diz: “Se, pelo Espírito, mortificardes os feitos do corpo, certamente,
vivereis”. Aqui Paulo reconhece que é “pelo Espírito” que somos capazes de
fazer isso. Mas também diz que devemos fazê-lo! Não é ao Espírito Santo que
se ordena a mortificação dos feitos do corpo, mas sim aos cristãos! De forma
semelhante, Paulo fala aos filipenses: “Assim, pois, amados meus, como
sempre obedecestes, não só na minha presença, porém, muito mais agora, na
minha ausência, desenvolvei a vossa salvação com temor e tremor; porque
Deus é quem efetua em vós o querer como o realizar, segundo a sua boa
vontade” (Fp 2.12-13). Paulo os incentiva a obedecer até mesmo mais do que
faziam quando ele estava presente. Ele diz que a obediência é o modo pelo
qual eles “desenvolvem a [própria] salvação”, querendo dizer que eles
“desenvolvem” a concretização dos benefícios da salvação na vida cristã.
Os filipenses desenvolvem esse crescimento na santificação e o fazem
solenemente com reverência (“com temor e tremor”), porque o fazem na
presença do próprio Deus. Porém há mais: a razão pela qual eles atuam e
desenvolvem e esperam que sua própria obra produza resultados positivos é
que “Deus é quem efetua em vós” - a obra de Deus anterior e fundamental na
santificação significa que a obra deles próprios é capacitada por Deus;
portanto, ela valerá a pena e produzirá resultados positivos. Há muitos
aspectos nesse papel ativo que devemos desempenhar na santificação. Nós
devemos seguir “a santificação, sem a qual ninguém verá o Senhor” (Hb 12.14)
e obedecer à vontade de Deus, que é a nossa “santificação” (lTs 4.3). João diz
que aqueles que esperam ser semelhantes a Cristo quando ele aparecer
trabalharão ativamente na purificação de si mesmos nesta vida: “E a si mesmo
se purifica todo o que nele tem esta esperança, assim como ele é puro” (ljo
3.3). Paulo fala aos coríntios que fujam da impureza (ICo 6.18) e que não se

93
associem com incrédulos (2Co 6.14). Ele também diz: “Purifiquemo-nos de
toda impureza, tanto da carne como do espírito, aperfeiçoando a nossa
santidade no temor de Deus” (2Co 7.1). Esse tipo de empenho na obediência a
Deus e na santidade deve envolver grande diligência da nossa parte, porque
Pedro fala a seus leitores que estivessem “reunindo toda a vossa
diligência”para. crescer nos traços de caráter que se harmonizam com a
piedade (2Pe 1.5). Muitas passagens específicas do Novo Testamento
incentivam atenção detalhada a vários aspectos da santidade e da piedade na
vida (veja Rm 12.1-13.14; Ef 4.17-6.20; Fp 4.4-9; Cl 3.5-4.6; IPe 2.11-5.11).
Devemos desenvolver continuamente padrões e hábitos de santidade, porque
essa medida de maturidade é que faz com que os cristãos maduros tenham “as
suas faculdades exercitadas para discernir não somente o bem, mas também o
mal” (Hb 5.14). O Novo Testamento não sugere quaisquer atalhos pelos quais
possamos crescer na santificação, mas simplesmente nos encoraja
repetidamente a dedicar-nos à antiga e consagrada fórmula de leitura da Bíblia
e meditação (SI 1.2; Mt 4.4; 17.17), oração (Ef 6.18; Fp 4.6), adoração (Ef
5.18-20), testemunho (Mt 28.19-20), comunhão cristã (Hb 10.24-25) e
autodisciplina ou domínio próprio (G1 5.23; Tt 1.8).
É importante que continuemos a crescer tanto em nossa confiança passiva de
que Deus nos santifica como em nosso esforço ativo em busca de santidade e
maior obediência em nossa vida. Se negligenciamos o esforço ativo de
obedecer a Deus, tornamo-nos cristãos passivos, indolentes. Se
negligenciamos o papel passivo de confiar em Deus e de nos oferecer a ele,
tornamo-nos orgulhosos e excessivamente confiantes em nós mesmos. Em
qualquer caso, nossa santificação será grandemente prejudicada. Devemos
manter a fé e a diligência em obedecer simultaneamente. O antigo hino
sabiamente diz: “Crer e observar ”, porque não há nenhum outro modo de ser
feliz em Jesus, senão crendo e observando.14 Mais um ponto deve ser
discutido sobre nosso papel na santificação: a santificação é comumente um

94
processo corporativo no Novo Testamento. É algo que ocorre na comunidade.
Somos admoestados: “Consideremo-nos também uns aos outros, para nos
estimularmos ao amor e às boas obras. Não deixemos de congregar-nos, como
é costume de alguns; antes, façamos admoestações e tanto mais quanto vedes
que o Dia se aproxima” (Hb 10.24-25). Juntos, os cristãos são “edificados casa
espiritual” para serem “sacerdócio santo” (IPe 2.5); juntos são uma “nação
santa” (IPe 2.9); juntos se consolam uns aos outros e edificam-se
reciprocamente (ITs 5.11).
Quando Paulo diz “andeis de modo digno da vocação a que fostes chamados”
(Ef 4.1), está dizendo que se deve viver de modo especial em comunidade -
“com toda a humildade e mansidão, com longanimidade, suportandovos uns
aos outros em amor, esforçando-vos diligentemente por preservar a unidade do
Espírito no vínculo da paz” (Ef 4.2-3). Quando isso acontece, o Corpo de Cristo
funciona como um todo unificado, com cada parte trabalhando
convenientemente de modo que a santificação conjunta “efetua o seu próprio
aumento para a edificação de si mesmo em amor” (Ef 4.16; cf. ICo 12.12-26;
G1 6.1-2). É interessante que o fruto do Espírito inclui muitas coisas que
edificam a comunidade (“amor, alegria, paz, longanimidade, benignidade,
bondade, fidelidade, mansidão, domínio próprio”, G1 5.22-23), enquanto “as
obras da carne” destroem a comunidade (“prostituição, impureza, lascívia,
idolatria, feitiçarias, inimizades, porfias, ciúmes, iras, discórdias, dissensões,
facções, invejas, bebedices, glutonarias e coisas semelhantes a estas”, G1
5.19-21).
Os cristãos às vezes deixam de reconhecer o alcance dos motivos para a
obediência a Deus encontrados no Novo Testamento. (1) E verdade que o
desejo de agradar a Deus e de expressar nosso amor por ele é um motivo
muito importante para a obediência; Jesus diz: “Se me amais, guardareis os
meus mandamentos” (Jo 14.15), e: “Aquele que tem os meus mandamentos e
os guarda, esse é o que me ama” (Jo 14.21; cf. ljo 5.3). Mas muitos outros

95
motivos nos são dados também: (2) a necessidade de manter uma consciência
limpa diante de Deus (Rm 13.5; ITm 1.5, 19; 2Tm 1.3; IPe 3.16); (3) o desejo
de ser um “utensílio para honra” e ter a eficiência aumentada na obra do reino
(2Tm 2.20-21); (4) o desejo de ver os incrédulos vindo a Cristo por terem
observado nossa vida (IPe 3.1-2, 15-16); (5) o desejo de receber as bênçãos
atuais de Deus sobre nossa vida e ministério (IPe 3.9-12); (6) o desejo de evitar
o desprazer e a disciplina de Deus sobre nós (às vezes chamado “temor de
Deus”; At 5.11; 9.31; 2Co 5.11; 7.1; Ef 4.30; Fp 2.12; ITm 5.20; Hb 12.3-11; IPe
1.17; 2.17; cf. a condição dos incrédulos em Rm 3.8); (7) o desejo de buscar
maior galardão celestial (Mt 6.19-21; Lc 19.17-19; ICo 3.12-15; 2Co 5.9-10);17
(8) o anseio por um andar mais próximo de Deus (Mt 5.8; Jo 14.21; ljo 1.6;
3.21-22; e, no Antigo Testamento, Sl 66.18; Is 59.2); (9) o desejo de que os
anjos glorifiquem a Deus por causa da nossa obediência (ITm 5.21; IPe 1.12);
(10) o desejo de paz (Fp 4.9) e alegria (Hb 12.1-2) em nossa vida; e (11) o
anseio de fazer o que Deus ordena, simplesmente porque seus mandamentos
são corretos, e nós nos deleitamos em fazer o que é correto (Fp 4.8; cf. Sl
40.8)
Não seria correto terminar nossa discussão sem observar que a santificação
nos traz alegria. Quanto mais crescemos à semelhança de Cristo, tanto mais
experimentamos a “alegria" e a “paz” que são parte do fruto do Espírito Santo
(G1 5.22) e tanto mais nos aproximamos do tipo de vida que teremos no céu.
Paulo diz que à medida que nos tornamos cada vez mais obedientes a Deus,
temos o nosso “fruto para a santificação e, por fim, a vida eterna” (Rm 6.22).
Ele entende ser essa a fonte da nossa verdadeira alegria. “Porque o reino de
Deus não é comida nem bebida, mas justiça, e paz, e alegria no Espírito Santo”
(Rm 14.17). À medida que crescemos em santidade, crescemos em
conformidade à imagem de Cristo, e cada vez mais a beleza de seu caráter é
vista em nossa própria vida. Essa é a meta da perfeita santificação que
esperamos e almejamos, e que será nossa quando Cristo retornar. “E a si

96
mesmo purifica todo o que nele tem esperança, assim como ele é puro” (IJo
3.3).

Graça comum

Sob essa análise, cabe perguntar como é possível que descrentes, ainda não
regenerados, possam realizar boas obras. A resposta é a graça comum.
Graça comum é a graça de Deus pela qual ele dá às pessoas inumeráveis
bênçãos que não fazem parte da salvação. A palavra comum aqui significa
alguma coisa comum a todas as pessoas, não restrita aos crentes ou aos
eleitos. Para distinção da graça comum, a graça de Deus que conduz as
pessoas à salvação é frequentemente denominada “graça salvífica”. É claro
que quando falamos a respeito de “graça com um ” e de “graça salvífica” não
estamos concluindo que há duas classes diferentes de graça no mesmo Deus,
mas apenas que a graça de Deus se manifesta no mundo de duas maneiras
diferentes.
A graça comum é diferente da graça salvífica em seus resultados (ela não
conduz à salvação), em seus recebedores (ela é dada igualmente a crentes e

97
incrédulos), e em sua fonte (ela não flui diretamente da ação resgatadora de
Cristo, porque para os incrédulos a morte de Cristo não representou remissão
alguma; portanto, tampouco eles se tornaram merecedores das bênçãos da
graça comum). Entretanto, sobre esse último ponto é necessário dizer que a
graça comum flui indiretamente da obra redentora de Cristo, visto que Deus
não julgou o mundo imediatamente quando o pecado se introduziu porque ele
planejou finalmente salvar alguns pecadores através da morte de seu Filho.

Diferença entre graça comum e graça salvífica


Apesar disso tudo, devemos compreender que a graça comum é diferente da
graça salvífica. A graça comum não transforma o coração humano nem conduz
as pessoas ao genuíno arrependimento e à fé - ela não pode salvar e, sendo
assim, não as salva (embora na esfera intelectual e moral ela possa fornecer
alguma preparação que torna as pessoas mais inclinadas a aceitar o
evangelho). A graça comum reprime o pecado, mas não muda em medida
alguma a disposição fundamental de alguém, nem purifica a natureza humana
decaída.
Devemos reconhecer também que as ações dos incrédulos realizadas por meio
da virtude da graça comum não os tornam merecedores da aprovação e do
favor de Deus. Essas ações não brotam da fé (“E tudo o que não provém de fé
é pecado” Rm 14.23), nem são elas motivadas pelo amor a Deus (Mt 22.37),
mas antes pelo amor a si mesmo, de uma forma ou de outra. Portanto, embora
devamos reconhecer prontamente que as obras dos incrédulos que se
conformam externamente às leis de Deus sejam até certo ponto “boas”, elas
não são boas no sentido de merecer a aprovação de Deus, nem, de alguma
forma, torná-lo comprometido com o pecador.

98
Razões para Graça Comum

Para redimir os que serão salvos: Pedro diz que o dia do juízo e da execução
final da punição está sendo adiado porque há ainda mais pessoas que serão
salvas: “Não retarda o Senhor a sua promessa, como alguns a julgam
demorada; pelo contrário, ele é longânimo para convosco, não querendo que
nenhum pereça, senão que todos cheguem ao arrependimento. Virá,
entretanto, como ladrão, o Dia do Senhor” (2Pe 3.9-10). De fato, essa razão é
verdadeira desde o começo da história humana, porque se Deus quisesse
salvar qualquer pessoa fora de toda massa da humanidade pecaminosa, ele
não poderia destruir todos os pecadores imediatamente (porque nesse caso
não haveria raça humana restante). Ele fez o melhor, escolheu permitir que os
seres humanos pecaminosos vivessem por algum tempo, para que tivessem a
oportunidade de se arrepender e também porque eles produziram filhos, o que
possibilitaria que as gerações posteriores vivessem, e então ouvissem o
evangelho, e assim pudessem se arrepender também.

Para demonstrar a bondade e a misericórdia de Deus: A bondade e a


misericórdia de Deus não são apenas percebidas na salvação dos crentes,
mas também nas bênçãos que ele concede aos pecadores indignos. Quando
Deus “é benigno até com os ingratos e maus” (Lc 6.35), sua benignidade é
revelada no universo, para sua glória. Davi diz: “O Senhor é bom para todos, e
as suas ternas misericórdias permeiam todas as suas obras” (SI 145.9). Por
isso é que lemos sobre Jesus falando com o jovem rico: “E Jesus, fitando-o, o
amou” (Mc 10.21), ainda que o homem fosse um incrédulo e que, num
momento, desviar-se-ia de Jesus por causa de suas grandes posses. Berkhof
diz que Deus “derrama incalculáveis bênçãos sobre todos os homens, e

99
também indica claramente que essas bênçãos são as expressões de uma
disposição favorável de Deus e que, apesar de tudo, não alcançam a dimensão
de uma volição positiva para perdoar seus pecados, para suspender sua
sentença de morte e para lhes conceder a salvação”. Não é injusto da parte de
Deus adiar a execução da punição sobre o pecado e conceder bênçãos
temporárias aos seres humanos, porque a punição não está esquecida, mas
apenas adiada. Ao adiar a punição, Deus mostra claramente que ele não tem
prazer em executar o juízo final, ao contrário, ele se deleita na salvação de
todos os homens e mulheres. “Tão certo como eu vivo, diz o Senhor Deus, não
tenho prazer na morte do perverso, mas em que o perverso se converta do seu
caminho e viva” (Ez 33.11). Deus “deseja que todos os homens sejam salvos e
cheguem ao pleno conhecimento da verdade” (lTm 2.4). Assim sendo, o
adiamento da punição dá evidência clara da misericórdia, da bondade e do
amor de Deus.

Para demonstrar a justiça de Deus: Quando Deus repetidamente convida os


pecadores a que se acheguem à fé, e quando eles repetidamente recusam seu
convite, a justiça de Deus ao condená-los é percebida muito mais claramente.
Paulo adverte que aqueles que persistem na incredulidade estão simplesmente
acumulando mais ira para si mesmos: “Segundo a tua dureza e coração
impenitente, acumulas contra ti mesmo ira para o dia da ira e da revelação do
justo juízo de Deus” (Rm 2.5). No dia do juízo “toda boca” será “calada” (Rm
3.19) e ninguém será capaz de objetar que Deus seja injusto.

Para demonstrar a glória de Deus: a glória de Deus é demonstrada de muitas


maneiras através das atividades dos seres humanos em todas as áreas na
quais a graça comum atua. Ao desenvolver e exercitar o domínio sobre a terra,
homens e mulheres demonstram e refletem a sabedoria de seu Criador,
demonstram qualidades semelhantes às de Deus como perícia, virtude moral,

100
autoridade sobre o universo e assim por diante. Embora todas essas atividades
sejam maculadas por razões pecaminosas, assim mesmo refletem a excelência
do nosso Criador, e portanto trazem glória a Deus, não total ou perfeitamente,
mas de modo expressivo.

Nossa resposta à doutrina da Graça Comum

Devemos ser cautelosos para não rejeitar as coisas boas que os incrédulos
fazem como se fossem totalmente más: Pela graça comum, os incrédulos
fazem o bem até certo ponto, e devemos enxergar a mão de Deus nisso e ser
gratos pela graça comum que de certo modo opera em toda amizade, todo ato
de bondade, e por todas as maneiras pelas quais ela traz bênçãos a outros.
Tudo isso, no final das contas - embora o incrédulo não o saiba - provém de
Deus e, também por isso, ele merece ser glorificado.

A graça comum deve conduzir nosso coração a uma extrema gratidão a Deus:
Quando passeamos pela rua e observamos casas e jardins, e famílias morando
em segurança, ou quando fazemos negócios no mercado e percebemos os
abundantes resultados do progresso tecnológico, ou quando andamos através
das florestas e vemos a formosura da natureza, ou quando somos protegidos
pelo governo,7 ou quando recebemos a educação com o vasto tesouro do
conhecim ento hum ano, devemos perceber, no final das contas, que Deus em
sua soberania é o responsável não apenas por todas essas bênçãos, mas
também que ele as tem concedido a pecadores totalmente indignos de sequer
uma delas! Essas bênçãos no mundo são não apenas evidência do poder e
sabedoria de Deus, mas são também manifestação de sua abundante graça. A

101
compreensão desse fato deve fazer com que nosso coração se eleve com
ações de graças a Deus em todas as atividades da vida.

Perguntas de Síntese

102
1. O que foi defendido no Concílio de Calcedônia?
2. De maneira geral, Cristo nos salvou do que?
3. Defina, sucintamente, o que é a expiação.
4. Quais os estágios da obra de Cristo?
5. Diferencie justificação de santificação.
6. Como é apresentada a relação de fé e obras em Tiago e 1 João?
7. O que é a graça comum?

Anexos

A humanidade de Cristo

1. Fraquezas e Limitações Humanas

a. Jesus possuía um corpo humano.

O fato de que Jesus possuía um corpo humano exatamente como o nosso é


visto em muitas passagens das Escrituras. Ele nasceu assim como nascem
todos os bebês humanos (Lc 2.7). Ele passou da infância para a maturidade

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assim como crescem todas as outras crianças: “Crescia o menino e se
fortalecia, enchendo-se de sabedoria; e a graça de Deus estava sobre ele” (Lc
2.40). Além disso, Lucas nos diz que “crescia Jesus em sabedoria, estatura e
graça, diante de Deus e dos homens” (Lc 2.52). Jesus ficava cansado
exatamente como nós, pois lemos que “Cansado da viagem, assentara-se
Jesus junto à fonte, por volta da hora sexta” em Samaria (Jo 4.6). Ele tinha
sede, pois quando estava na cruz disse: “Tenho sede” (Jo 19.28). Depois de
jejuar por quarenta dias no deserto, lemos que “teve fome” (Mt 4.2). Às vezes
ficava fisicamente fraco, pois durante sua tentação no deserto jejuou quarenta
dias (o ponto em que a força física humana se esvai quase totalmente, além do
qual ocorrem danos físicos irreparáveis, caso o jejum prossiga). Naquele
momento “vieram anjos e o serviram” (Mt 4.11), aparentemente para cuidar
dele e lhe dar alimento até que recuperasse força suficiente para sair do
deserto. Quando Jesus estava caminhando para a crucificação, os soldados
forçaram Simão Cireneu a carregar sua cruz (Lc 23.26), mais provavelmente
porque Jesus estava tão fraco depois dos açoites que havia recebido, que não
tinha forças suficientes para carregá-la por si. O auge das limitações de Jesus
quanto ao seu corpo humano é visto quando ele morreu sobre a cruz (Lc
23.46). Seu corpo humano deixou de conter a vida e parou de funcionar, assim
como acontece com o nosso quando morremos. Jesus também ressuscitou dos
mortos num corpo humano, físico, ainda que aperfeiçoado e já não sujeito à
fraqueza, enfermidade ou morte. Ele demonstra várias vezes aos discípulos
que possui de fato um corpo real. Ele diz: “Vede as minhas mãos e os meus
pés, que sou eu mesmo; apalpai-me e verificai, porque um espírito não tem
carne nem ossos, como vedes que eu tenho” (Lc 24.39). Ele lhes mostra e
ensina que era “carne e ossos” e não só um “espírito” sem corpo. Outro indício
desse fato é que “lhe apresentaram um pedaço de peixe assado e ele comeu
na presença deles” (Lc 24.42; cf. v. 30; Jo 20.17, 20, 27; 21.9, 13). Nesse
mesmo corpo humano (ainda que ressurreto e tornado perfeito), Jesus também

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ascendeu ao céu. Ele disse antes de partir: “Vim do Pai e entrei no mundo;
todavia, deixo o mundo e vou para o Pai” (Jo 16.28; cf. 17.11). A maneira pela
qual Jesus ascendeu ao céu foi planejada para demonstrar a continuidade
entre sua existência num corpo físico aqui sobre a terra e sua existência
contínua no céu nesse corpo. Poucos versículos depois de dizer-lhes: "... um
espírito não tem carne nem ossos, como vedes que eu tenho” (Lc 24.39),
lemos no evangelho de Lucas que Jesus “os levou para Betânia e, erguendo as
mãos, os abençoou. Aconteceu que, enquanto os abençoava, ia-se retirando
deles, sendo elevado para o céu” (Lc 24.50-51). De modo semelhante, lemos
em Atos: “... foi Jesus elevado às alturas, à vista deles, e uma nuvem o
encobriu dos seus olhos” (At 1.9). Todos esses versículos juntos mostram que,
no que diz respeito ao corpo humano, Jesus era como nós em todos os
aspectos antes da ressurreição, e após a ressurreição ainda era um corpo
humano com “carne e ossos”, mas tornado perfeito, o tipo de corpo que
teremos quando Cristo voltar e formos também ressuscitados. Jesus continua
existindo nesse corpo humano no céu, conforme a ascensão tem o propósito
de ensinar.

b. Jesus possuía uma mente humana.

O fato de Jesus ter crescido em sabedoria (Lc 2.52) significa que ele passou
por um processo de aprendizado assim como acontece com todas as outras
crianças - ele aprendeu a comer, a falar, a ler e a escrever, e a ser obediente a
seus pais (veja Hb 5.8). Esse processo normal de aprendizado fazia parte da
genuína humanidade de Cristo. Também vemos que Jesus possuía uma mente
humana como a nossa quando ele fala do dia em que retornará à terra: “Mas a
respeito daquele dia ou da hora ninguém sabe; nem os anjos no céu, nem o
Filho, senão o Pai” (Mc 13.32).

c. Jesus possuía alma humana e emoções humanas.

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Vemos várias indicações de que Jesus possuía alma humana (ou espírito).
Logo antes de sua crucificação, ele disse: “Agora, está angustiada a minha
alma” (Jo 12.27). João escreve um pouco depois: “Ditas estas coisas,
angustiou-se Jesus em espírito” (Jo 13.21). Em ambos os versículos a palavra
angustiar representa o termo grego “tarasso”, palavra muitas vezes empregada
em referência a pessoas ansiosas ou que de repente são surpreendidas por
um perigo.6 Além disso, antes da crucificação, percebendo o sofrimento que
enfrentaria, Jesus disse: “A minha alma está profundamente triste até à morte”
(Mt 26.38), tamanha a aflição que sentia, a ponto de parecer que, caso se
intensifique um pouco mais, lhe roubaria a vida. Jesus experimentou toda uma
sucessão de emoções humanas. Ele “admirou-se” com a fé demonstrada pelo
centurião (Mt 8.10). Chorou de tristeza com a morte de Lázaro (Jo 11.35). E
orou com o coração repleto de emoção, pois ofereceu “com forte clamor e
lágrimas, orações e súplicas a quem o podia livrar da morte” e foi “ouvido por
causa da sua piedade” (Hb 5.7). Além disso, o autor nos diz: “... embora sendo
Filho, aprendeu a obediência pelas coisas que sofreu e, tendo sido
aperfeiçoado, tomou-se o Autor da salvação eterna para todos os que lhe
obedecem” (Hb 5.8-9). Mas se Jesus jamais pecou, como poderia “aprender a
obediência”? Ao que parece, à medida que crescia rumo à maturidade, Jesus,
como todas as outras crianças humanas, pôde ir assumindo mais e mais
responsabilidades. Quanto mais velho ficava, tanto mais seus pais podiam
exigir dele obediência, e tanto mais seu Pai celestial podia-lhe atribuir tarefas
na força de sua natureza humana. Com cada tarefa cada vez mais difícil,
mesmo quando implicava algum sofrimento (como específica Hb 5.8),
aumentava a habilidade moral de Jesus, sua capacidade de obedecer sob
circunstâncias cada vez mais difíceis. Podemos dizer que essa “espinha moral”
foi fortalecida por exercícios cada vez mais difíceis. Mas em tudo isso ele
jamais pecou. A completa ausência de pecado na vida de Jesus é ainda mais
notável pelas tentações severas que enfrentou, não só no deserto, mas durante

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toda a vida. O autor de Hebreus afirma que Jesus foi “tentado em todas as
coisas, à nossa semelhança, mas sem pecado” (Hb 4.15). O fato de ter
enfrentado tentações significa que possuía natureza genuinamente humana
que podia ser tentada, pois as Escrituras são claras em nos dizer que “Deus
não pode ser tentado pelo mal” (Tg 1.13).

d. As pessoas próximas de Jesus consideravam-no apenas humano.

Mateus registra um incidente no meio do ministério de Jesus. Ainda que Jesus


tivesse ensinado por toda a Galiléia, quando chegou à própria cidade de
Nazaré, o povo que o conhecia havia muitos anos não o recebeu:

Tendo Jesus proferido estas parábolas, retirou-se dali. E, chegando à sua terra,
ensinava-os na sinagoga, de tal sorte que se maravilhavam e diziam: Donde
lhe vêm - esta sabedoria e estes poderes miraculosos? Não é este o filho do
carpinteiro? Não se chama sua mãe Maria, e seus irmãos, Tiago, José, Simão
e judas? Não vivem entre nós todas as suas irmãs? Donde lhe vem, pois, tudo
isto? E escandalizavam-se nele. [...] E não fez ali muitos milagres, por causa da
incredulidade deles (Mt 13.53-58).

Essa passagem indica que aqueles que mais conheciam Jesus, os vizinhos
com quem vivera e trabalhara por trinta anos, consideravam-no não mais que
homem comum - bom homem, sem dúvida, justo, bondoso e confiável, mas
certamente não o próprio Deus encarnado.

2. Impecabilidade

Ainda que o Novo Testamento seja claro em afirmar que Jesus era plenamente
humano exatamente como nós, também afirma que Jesus era diferente em um
aspecto importante: ele era isento de pecado e jamais cometeu um pecado
durante sua vida. Alguns objetam que se Jesus não pecou, então não era

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verdadeiramente humano, pois todos os humanos pecam. Mas os que fazem
tal objeção simplesmente não percebem que os seres humanos estão agora
numa situação anormal Deus não nos criou pecaminosos, mas santos e justos.
Adão e Eva no jardim do Éden eram verdadeiramente humanos antes de pecar,
e nós agora, apesar de humanos, não nos conformamos ao padrão que Deus
deseja que preenchamos quando nossa humanidade plena, impecável, for
restaurada. A impecabilidade de Jesus é ensinada com frequência no Novo
Testamento. Vemos indicações disso no início da vida dele quando se encheu
de sabedoria e quando “a graça de Deus estava sobre ele” (Lc 2.40). Depois
vemos que Satanás foi incapaz de obter sucesso ao tentar Jesus, não
conseguindo, após quarenta dias, convencê-lo a pecar: “Passadas que foram
as tentações de toda sorte, apartou-se dele o diabo, até momento oportuno”
(Lc 4.13). Também não vemos nos evangelhos sinóticos (Mateus, Marcos e
Lucas) nenhum indício de erros da parte de Jesus. Para os judeus que se
opunham a ele, Jesus perguntou: “Quem dentre vós me convence de pecado?”
(Jo 8.46) e não recebeu resposta. As declarações a respeito da impecabilidade
de Jesus são mais explícitas no evangelho de João. Jesus fez a surpreendente
proclamação: “Eu sou a luz do mundo” (Jo 8.12). Se compreendermos que a
luz representa tanto a fidedignidade como a pureza moral, então aqui Jesus
está alegando ser a fonte da verdade e a fonte da pureza moral e da santidade
no mundo - uma alegação estarrecedora que poderia ser feita só por alguém
isento de pecado. Além disso, com respeito à obediência a seu Pai no céu, ele
disse: “eu faço sempre o que lhe agrada” (Jo 8.29; o tempo presente dá o
sentido de atividade contínua: “estou sempre fazendo o que lhe agrada”). Ao
final da vida, Jesus pôde dizer: “... eu tenho guardado os mandamentos de meu
Pai e no seu amor permaneço” (Jo 15.10). É significativo que quando Jesus foi
julgado diante de Pilatos, apesar das acusações dos judeus, Pilatos só pôde
concluir: “Eu não acho nele crime algum” (Jo 18.38). No livro de Atos, muitas
vezes Jesus é chamado “o Santo”, “o Justo” ou alguma expressão semelhante

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(veja At 2.27; 3.14; 4.30; 7.52; 13.35). Quando Paulo fala de Jesus vivendo
como homem, tem o cuidado de não dizer que ele assumiu “carne
pecaminosa”, mas, antes, que Deus enviou o próprio filho “em semelhança de
carne pecaminosa e no tocante ao pecado” (Rm 8.3). E ele se refere a Jesus
como “aquele que não conheceu pecado” (2Co 5.21). O autor de Hebreus
afirma que Jesus foi tentado mas, ao mesmo tempo, insiste que ele não pecou:
Jesus foi “tentado em todas as coisas, à nossa semelhança, mas sem pecada
(Hb 4.15). Ele é um sumo sacerdote “santo, inculpável, sem mácula, separado
dos pecadores e feito mais alto do que os céus” (Hb 7.26). Pedro fala de Jesus
como “cordeiro sem defeito e sem mácula” (IPe 1.19), empregando figuras do
Antigo Testamento para afirmar sua isenção de qualquer mácula moral. Pedro
declara diretamente que ele “não cometeu pecado, nem dolo algum se achou
em sua boca” (IPe 2.22). Quando Jesus morreu, foi “o justo pelos injustos”,
para nos conduzir a Deus (IPe 3.18). E João, na primeira epístola, chama-o
‘Jesus Cristo, o Justo”, e diz que “nele não existe pecado” (ljo 3.5). E difícil
negar, portanto, que a impecabilidade de Cristo é ensinada de maneira clara
em todas as seções importantes do Novo Testamento. Ele era realmente
humano, mas sem pecado. Juntamente com a impecabilidade de Jesus,
devemos notar de modo mais detalhado a natureza de suas tentações no
deserto (Mt 4.1-11; Mc 1.12-13; Lc 4.1-13). A essência dessas tentações era
uma tentativa de convencer Jesus a escapar da dura trilha da obediência e do
sofrimento que lhe fora designada como o Messias. Jesus “foi guiado pelo [...]
Espírito, no deserto, durante quarenta dias, sendo tentado pelo diabo” (Lc
4.1-2). Em muitos aspectos, essa tentação forma um paralelo com a tentação
enfrentada por Adão e Eva no jardim do Éden, mas foi muito mais difícil. Adão
e Eva tinham comunhão com Deus e um com o outro e abundância de todos os
tipos de comida, pois receberam ordens só de não comer de uma árvore.
Contrastando com isso, Jesus não tinha comunhão com seres humanos nem
comida com que se alimentar e, depois de jejuar quarenta dias, estava a ponto

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de morrer fisicamente. Em ambos os casos, o que se exigia não era um a
obediência a um princípio moral eterno arraigado no caráter de Deus, mas um
teste de obediência pura a uma instrução específica de Deus. A Adão e Eva,
Deus ordenou que não comessem da árvore do conhecimento do bem e do
mal, e a questão era se obedeceriam simplesmente por Deus lhes ter falado.

No caso de Jesus, “guiado pelo Espírito” por quarenta dias no deserto, ao que
parece, ele compreendeu que era vontade do Pai que nada comesse durante
aqueles dias e simplesmente permanecesse ali até que o Pai, pela direção do
Espírito Santo, lhe dissesse que a tentação estava encerrada e que ele podia
partir. Podemos compreender, portanto, o significado da tentação: “Se és o
Filho de Deus, manda que esta pedra se transforme em pão” (Lc 4.3). É claro
que Jesus era o Filho de Deus, e é claro que ele tinha o poder para transformar
instantaneamente qualquer pedra em pão. A tentação era intensificada pelo
fato de parecer que perderia a vida, caso não comesse logo. Mas ele viera para
obedecer perfeitamente a Deus, em nosso lugar, e deveria fazê-lo como
homem. Isso significava que tinha de obedecer só em seu poder humano. Se
tivesse recorrido a seus poderes divinos para tornar mais fácil para si a
tentação, não teria obedecido plenamente a Deus como homem. A tentação
era empregar seu poder divino para “fraudar” o cumprimento das exigências,
tomando a obediência um pouco mais fácil. Mas Jesus, em contraste com Adão
e Eva, recusou-se a comer o que parecia bom e necessário para si, optando
por obedecer à ordem de seu Pai celestial. A tentação de curvar-se e cultuar
Satanás por um momento e depois receber autoridade sobre “todos os reinos
do mundo” (Lc 4.5) era a tentação de receber o poder não pelo caminho da
obediência vitalícia a seu Pai celestial, mas pela submissão ilícita ao Príncipe
das Trevas. De novo, Jesus rejeitou o caminho aparentemente fácil e escolheu
o caminho da obediência que levava à cruz. De modo semelhante, a tentação
de jogar-se do pináculo do templo (Lc 4.9-11) era a tentação de “forçar” Deus a
realizar um milagre e resgatá-lo de maneira espetacular, atraindo assim grande

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séquito dentre o povo, sem prosseguir no duro caminho que tinha à frente, o
caminho que incluía três anos ministrando às necessidades das pessoas,
ensinando com autoridade e exemplificando a santidade absoluta de vida em
meio a dura oposição. Mas, de novo, Jesus resistiu a esse “caminho fácil” para
cumprimento de seus alvos como o Messias (de novo, uma rota que de fato
não cumpriria, de maneira alguma, aqueles alvos). Essas tentações eram de
fato a culminação de um processo vitalício de fortalecimento e amadurecimento
moral que ocorreu durante toda a infância e início da vida adulta de Jesus,
enquanto ele “crescia [...] em sabedoria, estatura e graça, diante de Deus” (Lc
2.52) e quando “aprendeu a obediência pelas coisas que sofreu” (Hb 5.8).
Nessas tentações no deserto e nas várias tentações que enfrentou durante os
trinta e três anos de sua vida, Cristo obedeceu a Deus em nosso lugar e como
nosso representante, obtendo dessa forma sucesso onde Adão falhou, onde o
povo de Israel no deserto falhou e onde nós falhamos (veja Rm 5.18-19). Por
mais difícil que nos seja compreender, as Escrituras afirmam que nessas
tentações Jesus tomou-se capaz de nos compreender e de nos ajudar em
nossas tentações. “Pois, naquilo que ele mesmo sofreu, tendo sido tentado, é
poderoso para socorrer os que são tentados” (Hb 2.18). O autor prossegue e
liga a capacidade de Jesus em entender nossas fraquezas ao fato de ter sido
tentado como nós somos:

3. Por que era necessário que Jesus fosse plenamente humano?

Quando João escreveu sua primeira epístola, circulava na igreja um ensino


herético, segundo o qual Jesus não era homem. Essa heresia tornou-se
conhecida como docetismo. Essa negação da verdade acerca de Cristo era tão
séria que João podia dizer que se tratava de uma doutrina do anticristo: “Nisto
reconheceis o Espírito de Deus: todo espírito que confessa que Jesus Cristo
veio em carne é de Deus; e todo espírito que não confessa a Jesus não
procede de Deus; pelo contrário, este é o espírito do anticristo” (l Jo 4.2-3). O

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apóstolo João entendia que negar a verdadeira humanidade de Jesus era
negar um fato bem central do cristianismo, de modo que ninguém que negasse
que Jesus veio em carne era enviado por Deus. Quando examinamos o Novo
Testamento, vemos vários motivos pelos quais Jesus tinha de ser plenamente
humano para ser o Messias e obter nossa salvação. Podemos alistar aqui sete
razões:

a. Para possibilitar uma obediência representativa.

Jesus era nosso representante e obedeceu em nosso lugar naquilo que Adão
falhou e desobedeceu. Vemos isso nos paralelos entre a tentação de Jesus (Lc
4.1-13) e a ocasião da prova de Adão e Eva no jardim (Gn 2.15-3.7). Também
se reflete claramente na discussão de Paulo sobre os paralelos entre Adão e
Cristo, na desobediência de Adão e na obediência de Cristo:

Pois assim como, por uma só ofensa, veio o juízo sobre todos os homens para
condenação, assim também, por um só ato de justiça, veio a graça sobre todos
os homens para a justificação que dá vida. Porque, como, pela desobediência
de um só homem, muitos se tornaram pecadores, assim também, por meio da
obediência de um só, muitos se tomarão justos (Rm 5.18-19).

E esse o motivo pelo qual Paulo chama Cristo “o último Adão” (ICo 15.45) e
pode chamar Adão “o primeiro homem”, e Cristo, “o segundo homem” (ICo
15.47). Jesus tinha de ser homem para ser nosso representante e obedecer em
nosso lugar.

b. Para ser um sacrifício substitutivo.

Se Jesus não tivesse sido homem, não poderia ter morrido em nosso lugar e
pago a penalidade que nos cabia. O autor de Hebreus nos diz: “Pois ele,
evidentemente, não socorre anjos, mas socorre a descendência de Abraão. Por

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isso mesmo, convinha que, em todas as coisas, se tornasse semelhante aos
irmãos, para ser misericordioso e fiel sumo sacerdote nas coisas referentes a
Deus e para fazer propiciação pelos pecados do povo” (Hb 2.16-17; cf. v. 14).
Jesus tinha de se tornar homem, não um anjo, porque Deus estava interessado
em salvar homens, não anjos. Mas para isso “convinha” que fosse como nós
em todos os sentidos, de modo que pudesse ser a “propiciação” para nós, o
sacrifício substitutivo aceitável em nosso lugar. Ainda que essa ideia seja
discutida com mais pormenores no capítulo 27, sobre expiação, é importante
aqui perceber que a menos que Cristo fosse plenamente homem, ele não
poderia ter morrido para pagar a pena dos pecados do homem. Ele não poderia
ter sido um sacrifício substitutivo por nós.

c. Para ser o único mediador entre Deus e os homens.

Porque estávamos alienados de Deus por causa do pecado, necessitávamos


de alguém que se colocasse entre Deus e nós e nos levasse de volta a ele.
Precisávamos de um mediador que pudesse representar-nos diante de Deus e
que pudesse representar Deus para nós. Só há uma pessoa que preencheu
esse requisito: “Porquanto há um só Deus e um só Mediador entre Deus e os
homens, Cristo Jesus, homem” (ITm 2.5). Para cumprir essa função de
mediador, Jesus tinha de ser plenamente homem e plenamente Deus.

d. Para cumprir o propósito original do homem de dominar a criação.

Como vimos em nossa discussão sobre o propósito para o qual Deus criou o
homem, Deus colocou o ser humano sobre a terra para subjugá-la e dominá-la
como representante divino. Mas o homem não cumpriu esse propósito, pois
caiu em pecado. O autor de Hebreus percebe que Deus pretendia que tudo
fosse sujeitado ao homem, mas reconhece: “Agora, porém, ainda não vemos
todas as coisas a ele sujeitas” (Hb 2.8). Então, quando Jesus veio como
homem, foi capaz de obedecer a Deus e, assim, teve o direito de dominar a

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criação como homem, cumprindo o propósito original de Deus ao colocar o
homem sobre a terra. Hebreus reconhece isso quando diz que agora “vemos
[...] Jesus” em posição de autoridade sobre o universo, “coroado de glória e de
honra” (Hb 2.9; cf. a mesma frase no v. 7). Jesus de fato recebeu “toda a
autoridade [...] no céu e na terra” (Mt 28.18), e Deus lhe “pôs todas as coisas
debaixo dos pés, e para ser o cabeça sobre todas as coisas, o deu à igreja” (Ef
1.22). Aliás, um dia reinaremos com ele em seu trono (Ap 3.21) e
experimentaremos, em sujeição a Cristo nosso Senhor, o cumprimento do
propósito de Deus de reinarmos sobre a terra (cf. Lc 19.17, 19; ICo 6.3). Jesus
tinha de ser homem para cumprir o propósito original de Deus de que o homem
dominasse sobre sua criação.

e. Para ser nosso exemplo e padrão na vida.

João nos diz: “... aquele que diz que permanece nele, esse deve também andar
assim como ele andou” (IJo 2.6), e nos lembra que “quando ele se manifestar,
seremos semelhantes a ele” e que essa esperança de futura conformidade com
o caráter de Cristo confere mesmo agora pureza moral cada vez maior à nossa
vida (IJo 3.2-3). Paulo nos diz que estamos continuamente sendo
“transformados [...] na sua própria imagem” (2Co 3.18), avançando, assim, para
o alvo para o qual Deus nos salvou: sermos “conformes à imagem de seu
Filho” (Rm 8.29). Pedro nos diz que, especialmente no sofrimento, temos de
considerar o exemplo de Cristo: “pois que também Cristo sofreu em vosso
lugar, deixando-vos exemplo para seguirdes os seus passos” (IPe 2.21). Em
toda nossa vida cristã, devemos correr a carreira colocada diante de nós
“olhando firmemente para o Autor e Consumador da fé, Jesus” (Hb 12.2). Se
ficarmos desanimados com a hostilidade e a oposição dos pecadores, devem
os considerar “atentamente [...] aquele que suportou tamanha oposição dos
pecadores contra si mesmo” (Hb 12.3). Jesus é também nosso exemplo na
morte. O alvo de Paulo é conformar-se “com ele na sua morte” (Fp 3.10; cf. IPe

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3.17-18 com 4.1). Nosso alvo deve ser a conformidade com Cristo em nossos
dias, até à morte, e morrer com obediência inabalável a Deus, com forte
confiança nele e com amor e perdão aos outros. Jesus tinha de tornar-se
homem como nós para viver como nosso exemplo e padrão na vida.

f. Para ser o padrão de nosso corpo redimido.

Paulo nos diz que quando Jesus ressuscitou dos mortos, ressuscitou num novo
corpo “na incorrupção [...] ressuscita em glória [...] ressuscita em poder [...]
ressuscita corpo espiritual” (ICo 15.42-44). Esse novo corpo ressurreto que
Jesus possuía quando ressurgiu dos mortos é o padrão do que será nosso
corpo quando formos ressuscitados dos mortos, porque Cristo é “as primícias”
(ICo 15.23) - uma metáfora agrícola que compara Cristo à primeira amostra da
colheita, que demonstra como será o outro fruto daquela colheita. Temos agora
um corpo físico como o de Adão, mas teremos um como o de Cristo: “... assim
como trouxemos a imagem do que é terreno, devemos trazer também a
imagem do celestial” (ICo 15.49). Jesus tinha de ser ressuscitado como homem
para ser “o primogênito de entre os mortos” (Cl 1.18), o padrão para o corpo
que teremos mais tarde.

g. Para compadecer-se como sumo sacerdote.

O autor de Hebreus lembra-nos de que “naquilo que ele mesmo sofreu, tendo
sido tentado, é poderoso para socorrer os que são tentados” (Hb 2.18; cf.
4.15-16). Se Jesus não tivesse existido na condição de homem, não teria sido
capaz de conhecer por experiência o que sofremos em nossas tentações e
lutas nesta vida. Mas porque viveu como homem, ele é capaz de
compadecer-se mais plenamente de nós em nossas experiências.

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Teria Cristo descido ao inferno?

Mesmo que a frase “desceu ao inferno” não aparece na Bíblia, muitos


argumentam que isso ocorreu. Então, faremos um exame dos indícios bíblicos
para analisarmos a questão.

Possível apoio bíblico para a descida ao inferno

O apoio para a ideia de que Cristo desceu ao inferno encontra-se


principalmente em cinco passagens: Atos 2.27; Romanos 10.6-7; Efésios 4.8-9;
1 Pedro 3.18-20 e 1 Pedro 4.6.

Em uma análise mais detida, será que alguma dessas passagens sustenta
claramente esse ensino?

Atos 2.27: “porque não deixarás a minha alma no inferno, nem permitirás que o
teu Santo veja corrupção.” (KJV)

Isso significaria que Cristo entrou no inferno após a morte? Não


necessariamente, porque é certamente possível haver outro sentido nesses
versículos.

A palavra “inferno” aqui representa um termo grego do Novo Testamento


(hades) e um termo hebraico do Antigo Testamento (shc’ôl, popularmente
traduzido por sheol) que pode significar simplesmente “o túmulo” ou “morte” (o
estado de morte).

Assim, a nvi traduz: “Porque tu não me abandonarás no sepulcro, nem


permitirás que o teu Santo sofra decomposição” (At 2.27). Esse sentido é

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preferível porque o contexto salienta que o corpo de Cristo se levantou do
túmulo, ao contrário do de Davi, que permaneceu na sepultura.

O raciocínio é o seguinte: “minha própria carne repousará em esperança” (v.


26), “porque não deixarás a minha alma na sepultura” (v. 27). Pedro emprega o
salmo de Davi para mostrar que o corpo de Cristo não se deteriorou - ele é,
portanto, diferente de Davi, que “morreu e foi sepultado, e o seu túmulo está
entre nós até hoje” (v. 29). Assim, essa passagem não apoia de modo
convincente a ideia de que Cristo desceu ao inferno.

Romanos 10.6-7: “todavia, a justiça que vem da fé declara: “Não digas em teu
coração: ‘Quem subirá aos céus? Isto é, para trazer do alto a Cristo. Ou, ainda:
‘Quem descerá ao abismo?’, isto é, para fazer Cristo subir dentre os mortos.”

Esses versículos contêm duas perguntas retóricas, de novo citações do Antigo


Testamento (de Dt 30.13): “Quem subirá ao céu? isto é, para trazer do alto a
Cristo; ou: Quem descerá ao abismo? isto é, para levantar Cristo dentre os
mortos”. Mas essa passagem dificilmente ensina que Cristo desceu ao inferno.

O centro da passagem é que Paulo está dizendo às pessoas que não façam
essas perguntas, porque Cristo não está longe - está perto - e a fé nele está
tão próxima quanto confessar com nossa boca e crer em nosso coração (v. 9).

Essas perguntas proibidas são perguntas de incredulidade, não declarações


daquilo que as Escrituras ensinam. Entretanto, alguns podem objetar que Paulo
não preveria que seus leitores fariam essas perguntas, a menos que não fosse
amplamente sabido que Cristo de fato desceu “ao abismo”.

Contudo, mesmo que isso fosse verdade, as Escrituras não estariam dizendo
ou insinuando que Cristo foi ao “inferno” (no sentido de um lugar de punição

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para os mortos, normalmente expresso pelo grego geenna), antes, que ele foi
para “o abismo”.

Paulo aqui emprega a palavra “abismo” (abyssos) em contraposição a “céu”,


para dar o sentido de um lugar inatingível, inacessível a seres humanos. O
contraste não é: “Quem irá encontrar Cristo num lugar de grande bênção (céu)
ou em um lugar de grande punição (inferno)?”, antes, “Quem irá encontrar
Cristo num lugar inacessível e elevado (céu) ou num lugar inacessível e
profundo (o abismo, ou o reino da morte)?”

Não se encontra nenhuma afirmação ou negação de “desceu ao inferno” nessa


passagem.

Efésios 4.8-9: “... que quer dizer subiu, senão que também havia descido às
regiões inferiores da terra?”

Isso significa que Cristo “desceu” ao inferno? À primeira vista não fica claro o
que significa “às regiões inferiores da terra”, mas outra tradução parece dar o
melhor sentido: “Que quer dizer ‘ele subiu’, senão que também desceu às
regiões terrenas inferiores?”.

Aqui a niv entende que “desceu” refere-se à vinda de Cristo à terra como
criança (a encarnação). As últimas quatro palavras são uma interpretação
aceitável do texto grego, tomando a frase “regiões inferiores da terra” como
“regiões inferiores que são a terra” (a forma gramatical no grego seria chamada
genitivo de aposição). Fazemos o mesmo, por exemplo, com a frase “a cidade
de São Paulo”, uma vez que queremos dizer “a cidade que é Chicago”.

118
Oposições bíblicas a uma descida ao inferno

Acrescentando-se ao fato de haver pouco ou nenhum apoio bíblico para a


descida de Cristo ao inferno, há alguns textos do Novo Testamento que
argumentam contra a possibilidade de Cristo ter ido ao inferno após sua morte.

As palavras de Jesus ao ladrão na cruz: “hoje estarás comigo no paraíso” (Lc


23.43), implicam que depois de sua morte, a alma (ou espírito) de Jesus foi
imediatamente à presença do Pai no céu, ainda que seu corpo permanecesse
sobre a terra, sendo sepultado. Alguns negam isso alegando que “paraíso” é
um lugar distinto do céu, mas em ambos os outros usos no Novo Testamento, a
palavra significa claramente “céu”: em 2Coríntios 12.4 é o lugar a que Paulo foi
levado em sua revelação do céu, e em Apocalipse 2.7 é o lugar em que
encontramos a árvore da vida - que é, sem dúvida, o céu em Apocalipse 22.2 e
14.31

Além disso, o clamor de Jesus, “Está consumado” (Jo 19.30), dá forte


indicação de que o sofrimento de Cristo terminou naquele momento e, assim,
sua alienação do Pai pelo fato de suportar nosso pecado. Isso implica que não
teria descido ao inferno, mas teria ido de imediato à presença do Pai.

Por fim, o clamor “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito” (Lc 23.46)
também dá a entender que Cristo esperava (corretamente) que seu sofrimento
e separação chegassem ao fim de imediato e seu espírito fosse recepcionado
no céu por Deus Pai (observe clamor semelhante de Estêvão em At 7.59).

Esses textos indicam, portanto, que Cristo em sua morte experimentou o


mesmo que os crentes na era presente experimentam quando morrem: seu
corpo morto permaneceu na terra e foi sepultado (como será o nosso), mas seu

119
espírito passou de imediato à presença de Deus no céu (assim como ocorrerá
com o nosso).

120
Sobre o inferno

Hades e Geena:

No novo testamento, os termos “hades” e “geena” são usados para fazer


referência ao inferno.

Hades:

A palavra hades vem da palavra grega “hades”, que aparece dezes vezes no
novo testamento (Mateus 11:23; Mateus 16:18; Lucas 10:15; Lucas 16:23; Atos
2:27 e 31; Apocalipse 1:18; Apocalipse 6:8; Apocalipse 20:13-14).
Frequentemente, ela faz referência à morte e à morada geral dos mortos, é
claramente usada em Lucas 16:23, com referência a um lugar onde os ímpios
são atormentados.

Existem duas interpretações em relação a Hades e sua relação com a Geena:

1. Hades é morada temporada dos ímpios até o julgamento final, quando


os ímpios são reunidos com seus corpos ressuscitados e ordenados
para um lugar eterno de tormento conhecido como Geena;
2. Hades e Geena são referências para o mesmo lugar de tormento. Nesta
interpretação, pode-se entender que os ímpios sofrem em um estado
desencarnado antes do juízo final e da ressurreição. Então, após a
ressurreição e o juízo final, os ímpios são unidos aos seus corpos
ressuscitados, retornando ao mesmo local de tormento.

Geena:

A palavra geena (traduzida como “inferno” nas escrituras) é forma latina da


expressão aramaica "gehinnom", referindo-se ao vale de Hinom (Josué 15:8),

121
que fica ao sul de Jerusalém (hoje é conhecido como Wadi er-Rababi). A forma
grega dessa palavra é géena, que aparece 12 vezes no novo testamento
(Mateus 5:22, 29-30; Mateus 10:28; Mateus 18:9; Mateus 23:15 e 33). No
reinado dos reis ímpios Acaz e Manassés, era um lugar onde os pais ofereciam
seus filhos em sacrifícios ao deus amonita Moloque (Jeremias 32:35; 2 Reis
16:3; 2 Reis 21:6). Durante o reinado de Josias, a prática do sacrifício de
crianças acabou e o vale do Hinom foi profanado (2 Reis 23:10-14).

Por fim, tornou-se uma espécie de depósito ou amontoado para lixo, carcaças
de animais mortos e corpos de criminosos executados. Era um lugar de fogo
contínuo e fumaça, e estava infestado de larvas, vermes e insetos. Na época
de Cristo, a palavra era comumente usada para indicar o lugar da punição e do
tormento final para os ímpios - um lugar de morte eterna, poluição, corrupção e
miséria.

Alguns termos utilizados nas Escrituras para transmitir a


natureza aterrorizante do inferno:

- Fogo (Mateus 3:10 e 7:19) - Nas Escrituras, a ideia de fogo é usada


para transmitir o julgamento e a ira de Deus, revelados contra o pecado
e o pecador. É a reação santa e justa de Deus a tudo que contradiz sua
natureza e vontade. É feroz, aterrorizante e irresistível. Porém, por mais
que seja tão aterrorizante quanto o fogo literal é para um homem em
chamas, não consegue sequer começar a descrever o terrível fogo da
ira de Deus que é derramado contra todos os ímpios no inferno.
- Fogo eterno (Mateus 18:8 e 25:41) - A ênfase aqui é que os sofrimentos
dos ímpios no inferno durarão para sempre. Não há esperança de
redenção ou restauração para os que estão no inferno.

122
- Fogo inextinguível (Mateus 3:12) - A ideia transmitida aqui é que os
tormentos do inferno não serão apenas eternos, mas também contínuos.
Nunca haverá qualquer momento de alívio para os condenados.
- Lago de fogo e enxofre (Apocalipse 20:10) - Essa descrição é dada
para nos mostrar a imensidão e o poder do inferno. A sentença do
inferno não é apenas uma pitada ou um pequeno riacho de tormento. Os
habitantes do inferno são como homens naufragados em um mar
gigantesco e revolto da ira de Deus, espancados e lançados de um lado
para o outro pelas ondas violentas e intermináveis da justa indignação
de Deus. Serão como homens se afogando em um enorme e agitado
caldeirão de fogo.
- Fornalha acesa (Mateus 13:42) - A verdade transmitida aqui é a
intensidade do inferno. Em uma fornalha, não há muita brecha para o
calor escapar, nem chuva para abrandar, tampouco brisa para trazer
refrigério ou alívio. Da mesma forma, a intensidade dos sofrimentos no
inferno nunca diminuirá.
- Lançados nas trevas (Mateus 22:13) - A verdade transmitida aqui é do
afastamento dos habitantes no inferno. Eles são expulsos e não há mais
lugar para eles. São afastados não só de Deus, mas também da
comunhão com os outros. O inferno é um lugar de isolamento absoluto e
insuportável, completamente separado da vida e da luz de Deus.
- Negridão das trevas (Judas 1:13) - Existem poucas coisas tão solitárias
ou aterrorizantes do que a escuridão profunda. Em tal lugar reina um
grande sentimento de desesperança, relacionado com a destruição de
tão imensa treva.
- Segunda Morte (Apocalipse 21:8) - O destino dos ímpios é o oposto do
crente. Não haverá mais medo da morte para os crentes (Hebreus
2:14-15), porque ela não mais existirá (Apocalipse 21:14). Em contraste,
os ímpios viverão em um estado de morte incessante. Eles terão uma

123
existência consciente, mas eles não terão nenhuma das bençãos,
esperanças e alegrias da vida.

Qual é o objetivo da expiação de Cristo?

Até aqui, nossa discussão partiu do princípio de que o propósito da morte de


Cristo foi o de eliminar os efeitos do pecado, ou seja, a culpa e a condenação.
Por isso, as principais consequências da aceitação e da aplicação da obra
expiatória são: o perdão, a redenção e a reconciliação. Mas seriam estes os
únicos resultados que a expiação tinha como objetivo?

No século 20, uma nova ênfase surgiu. Houve um crescimento impressionante


do interesse pelo tema da cura divina do corpo. Esse crescimento ocorreu em
três fases distintas, mas interligadas. O movimento pentecostal, que surgiu e se
desenvolveu nos Estados Unidos no início do século 20, enfatizava a volta de
alguns dos dons mais espetaculares do Espírito Santo. Em seguida, mais ou
menos na metade do século, iniciou-se o movimento neopentecostal ou
carismático; muitas de suas ênfases eram as mesmas do pentecostalismo. Nas
décadas de 1980 e 1990, surgiu a “Terceira Onda”. Esses movimentos,
comparados com o cristianismo de modo geral, dão muito mais destaque aos
milagres de cura divina. Em muitos casos, eles não se preocupam em
apresentar uma base ou explicação teológica para tais curas. Mas, quando
questionados, uma das respostas que muitas vezes se ouve é que a cura é um
dos elementos da expiação, tanto quanto o perdão dos pecados e a salvação.
Cristo morreu para levar sobre si não apenas o pecado, como também as
enfermidades físicas.

Um dos aspectos mais visíveis na concepção de que a morte de Cristo resulta


em cura para o corpo é a ideia de que a presença de doenças no mundo é
consequência da Queda. Quando o pecado passou a fazer parte da realidade

124
da espécie humana, uma maldição foi pronunciada contra a humanidade (na
verdade, uma série de maldições), e as doenças faziam parte dela. Segundo os
partidários dessa ideia, uma vez que as doenças são consequência da Queda
e não apenas da ordem natural das coisas, elas não podem ser combatidas
unicamente por meios naturais. Por terem origem espiritual, as enfermidades
devem ser combatidas da mesma forma que os outros efeitos da Queda: por
meios espirituais, especificamente mediante a obra de expiação efetuada por
Cristo. Com o objetivo de combater os efeitos da Queda, sua morte cobre não
apenas a culpa originada pelo pecado, como também as doenças. Assim, a
cura física faz parte do nosso grande direito de redenção.

Para dar sustentação a essa ideia, alguns textos bíblicos são citados,
principalmente Mateus 8.17. Depois da cura da sogra de Pedro, muitos doentes
foram levados a Jesus. Ele expulsou os espíritos com uma palavra e curou
todos os enfermos. Mateus nos informa que isso ocorreu “para que se
cumprisse o que havia sido falado pelo profeta Isaías: Ele tomou sobre si as
nossas enfermidades e carregou as nossas doenças”. Parece que, ao citar
Isaías 53.4, Mateus está associando as curas de Cristo à sua morte, pois o
versículo seguinte em Isaías se refere claramente à morte expiatória do
Salvador. Com base nisso, conclui-se que a morte de Cristo, além de reverter a
maldição do pecado, reverteu também a maldição das enfermidades, a qual se
originou na Queda.

Mateus 8.17 tem sido interpretado de diversas maneiras:

1. A referência em Isaías significa que Cristo levou nossas enfermidades sobre


si de modo vicário. Mateus interpreta literalmente a declaração de Isaías e vê
seu cumprimento na obra de Cristo na cruz.

2. A referência em Isaías significa que Cristo levou nossas enfermidades —


expressão usada de forma figurada (ou seja, levou nossos pecados) — sobre si

125
de modo vicário. Mateus interpreta literalmente o que foi dito de modo figurado
por Isaías, aplicando uma passagem do AT que se refere a Jesus carregando
nossos pecados ao ministério de cura dele.

3. Tanto Isaías quanto Mateus estão realmente se referindo às enfermidades


físicas. E nesse sentido literal que devem ser interpretadas ambas as
referências. Nos dois casos, porém, o que se tem em vista não é Cristo
carregando vicariamente nossas enfermidades, ou seja, eliminando as
doenças. Antes, a referência é a uma relação de empatia com nossas
enfermidades, uma participação em nossos sofrimentos. Existe um elemento
figurado — mas ele está ligado ao fato de Cristo levar sobre si nossas
enfermidades, e não às enfermidades em si.

Antes de tentar avaliar a posição de que a morte de Cristo envolveu tanto as


enfermidades quanto o pecado, é preciso definir algumas questões básicas:
“Qual é a origem e a causa das enfermidades?”. Além disso: “Existe alguma
ligação intrínseca entre doença e pecado e, portanto, entre as ações de Jesus
de curar enfermidades físicas e perdoar pecados?”.

Parece que a origem das doenças em geral encontra-se na Queda e que, como
consequência dela, uma série de males foi introduzida neste mundo. As
enfermidades estavam entre as maldições pronunciadas por Deus sobre o
povo de Israel por sua iniquidade (Dt 28.22). A criação inteira foi submetida ao
cativeiro e à inutilidade por causa do pecado (Rm 8.20-23). Embora algumas
descrições bíblicas da maldição resultante do pecado não sejam específicas,
parece existir lógica na atribuição dessa origem às dificuldades encontradas na
humanidade hoje, inclusive as doenças e enfermidades.

No mundo antigo, era muito comum a crença de que as doenças eram


enviadas pela divindade ou causadas por espíritos maus. Até o povo de Israel
esteve sujeito a essas superstições e chegou a fazer uso de amuletos para

126
afastar as doenças. Alguns também criam que a enfermidade era um sinal
característico da reprovação divina, uma punição do pecado cometido pelo
indivíduo. Jesus não aceitou nem endossou essa visão. No caso do homem
que havia nascido cego, quando os discípulos perguntaram: “Rabi, quem pecou
para que ele nascesse cego: ele ou seus pais?”, Jesus foi direto em sua
resposta: “Nem ele pecou nem seus pais, mas isso aconteceu para que nele se
manifestem as obras de Deus” (Jo 9.2,3). Evidentemente, Jesus não acreditava
que uma doença fosse causada pelo pecado de um indivíduo — ao menos não
nesse caso específico.

Jesus também não vinculou suas curas de enfermidades físicas ao perdão de


pecados. No exemplo mencionado, nada se diz sobre perdão. Jesus
simplesmente curou o cego. É fato que, em muitas ocasiões, ele fez uma
correlação entre cura e perdão de pecados, mas com certeza não se pode
dizer que Jesus enxergava uma íntima ligação entre pecado e doença.

Qual era a base para as curas de Jesus? Em muitos casos, era preciso existir
fé. É isso que poderíamos esperar se as enfermidades são consequência do
pecado do indivíduo, pois, nesse caso, a cura física exigiria o perdão do
pecado causador da doença. Uma vez que é necessário haver fé para que os
pecados sejam perdoados, ela também seria indispensável para que a cura
ocorresse. E de fato há muitos casos em que a cura realizada por Jesus
dependeu do exercício de fé da pessoa a ser curada: a mulher que tinha uma
hemorragia havia doze anos (Mt 9.20-22), os dez leprosos (Lc 17.11-19) e
Bartimeu, o mendigo cego (Mc 10.46-52). De vez em quando, porém, a cura
acontece após o exercício de fé de terceiros: a cura da filha da mulher
siro-fenícia (Mc 7.24-30), do servo do centurião (Mt 8.5-13) e do rapaz
endemoninhado (Mc 9.14-29). Em alguns desses casos, a pessoa curada era
capaz de exercer, sozinha, a fé. No entanto, quando se tratava de perdão de
pecados, a fé que se exigia era sempre da pessoa beneficiada, não de

127
terceiros. Portanto, parece improvável que, nos casos da cura da filha da
mulher siro-fenícia, do servo do centurião e do rapaz endemoninhado,
houvesse alguma ligação entre a cura e o perdão de pecados.

Vamos agora resumir o que dissemos até aqui. A argumentação dos partidários
da mesma linha de pensamento é que as enfermidades são decorrentes da
Queda e que Jesus, por meio de sua morte expiatória, anulou não apenas as
consequências espirituais do pecado, como também as consequências de
natureza física. A premissa parece ser a existência de uma íntima ligação entre
doença e pecado; logo, os dois devem ser combatidos da mesma forma. Já
observamos, porém, que Jesus não atribuiu a pecados individuais todos os
casos de doença, nem suas curas estavam sempre relacionadas ao perdão de
pecados. Pois, mesmo que a fé parece ser indispensável tanto para o perdão
quanto para a cura, no caso desta, ao contrário do perdão, nem sempre a fé
exercida precisava ser a do beneficiário da bênção. Evidentemente, não há
uma íntima ligação entre a doença e o pecado de um indivíduo e, por isso,
também não há relação entre os atos de cura e de perdão de pecados
realizados por Jesus, ao contrário do que Simpson pressupõe.

Tudo o que dissemos, no entanto, é apenas uma introdução à análise dos


textos de Mateus 8.17 e Isaías 53.4. Se a Bíblia ensina que Jesus, após sua
morte, levou sobre si nossas enfermidades, então a cura é uma bênção a que
temos direito, uma dádiva que devemos reivindicar. Começamos nossa análise
com a passagem de Isaías: "Verdadeiramente ele tomou sobre si as nossas
enfermidades e levou sobre si as nossas dores”. O primeiro substantivo é ‫חלי‬
(hõlí). O sentido mais comum da palavra é “doença física” embora possa ser
usada metaforicamente, conforme se vê em Isaías 1.5 e Oseias 5.13. Isaías
coloca o termo em uma posição de destaque na frase. O significado básico do
verbo ‫( א ש נ‬nãsã) é “erguer, levantar”. Brown, Driver e Briggs listam quase
duzentos casos em que a palavra tem esse sentido. Eles também arrolam

128
cerca de sessenta casos em que a palavra significa “levar [embora]” e quase
uma centena de versículos em que o sentido é “levar, carregar”. Entre esses
cem versículos, apenas trinta estão relacionados com a ideia de carregar culpa
e somente seis se referem ao ato de carregar culpa de modo vicário; um deles
é Isaías 53.12. Portanto, embora ‫( א ש נ‬nãsã’) possa se referir ao ato vicário de
carregar, a tradução mais provável em Isaías 53.4 é “assumiu”. Deve-se notar
também que Isaías não põe o verbo numa posição de destaque:
aparentemente o que realmente importa é o que o Servo Sofredor assumiu,
não como ele o assumiu. O segundo substantivo, ‫( ב ו כא מ‬mak’ob), ocorre
apenas quinze vezes no AT; em três casos, ele parece se referir ao sofrimento
físico. A ideia básica transmitida pela palavra é a de sofrimento mental, tristeza
ou angústia resultantes de elementos difíceis da vida, incluindo os de natureza
física. Portanto, o sentido mais provável aqui é doença ou aflição (tristeza)
mental, talvez resultante de enfermidades físicas. O segundo verbo é ‫)ל ב ס‬
sãbal). Ele significa, basicamente, “carregar uma carga pesada”. De suas nove
ocorrências no AT, duas delas, Isaías 53.11 e Lamentações 5.7, transmitem a
ideia do ato de carregar ou suportar algo de modo vicário, o que fica mais claro
no primeiro texto. Nas outras ocorrências, ‫( ל ב ס‬sãbal) significa apenas
“carregar uma carga”; não existe conotação alguma de uma qualidade vicária.
Mais uma vez, assim como na primeira oração, a ênfase está naquilo que o
Servo Sofredor carrega, não em como ele carrega. Resumindo Isaías 53.4:
embora diversas interpretações possam ser corroboradas, aquela que parece
satisfazer melhor os dados linguísticos é a de que o profeta esteja se referindo
a enfermidades e angústias físicas e mentais, mas não necessariamente a um
ato com efeito vicário. Na citação que Mateus faz do texto de Isaías,
encontramos algo muito semelhante. Os dois substantivos são άσθενείας
(astheneias) e νόσους (nosous). Ambos se referem a enfermidades físicas,
mas o primeiro enfatiza especialmente a ideia de fraqueza. O primeiro verbo, λ
α μ βά νω (lambanõ), é muito comum e sem nuance especial. Em essência,

129
significa “levar, pegar; receber”. Em nenhum lugar ele aparece associado a
algum ato vicário de carregar a culpa ou algo semelhante. O segundo verbo, β
α σ τά ζω (bastazõ), aproxima-se bastante do sentido de ‫( ל ב ס‬sãbal). Ele
significa “levar ou carregar”; em nenhuma dessas ocorrências tem o sentido de
“levar de modo vicário”.

Em Gálatas 6.2, o sentido é “levar solidariamente os fardos uns dos outros”, e


este é também o sentido mais provável em Mateus 8.17.29 Mateus, que
frequentemente citava a Septuaginta, alterou aqui os verbos, substituindo o
verbo φερω (pherõ) pelo verbo de sentido neutro λα μ βά νω, o que permitiria a
tradução “carregou com efeito vicário”. Portanto, estamos sugerindo que tanto
Mateus quanto Isaías se referem a doenças físicas e a angústias mentais, não
a pecados. No entanto, eles não têm em vista o ato de suportar esses males de
modo vicário. Parece mais provável que estejam descrevendo o ato solidário
de carregar as dificuldades desta vida. Se esta é a interpretação mais
adequada, Jesus “tomou sobre si as nossas enfermidades e levou nossas
dores” ao encarnar e não ao oferecer a expiação. Ao vir a este mundo, ele
assumiu as condições que encontramos aqui, incluindo tristeza, doença e
sofrimento. Ao experimentar, ele mesmo, as doenças e as tristezas e ao se
solidarizar (σττλαγχνίζομαι — splanchnizomai) com o sofrimento humano,
Jesus foi levado a aliviar as misérias desta vida. Observe-se que essa
explicação sobre o cumprimento da profecia de Isaías não acarreta dificuldades
cronológicas. Se, porém, cremos que o foco da profecia é a expiação, teremos
um problema, pois, nesse caso, será difícil explicar por que Mateus cita esse
versículo em um contexto em que relata curas ocorridas antes da morte de
Cristo. Resta uma questão a ser discutida, que trata do relacionamento de I
Pedro 2.24 com as demais passagens que examinamos. Lemos no texto: “Ele
mesmo levou nossos pecados em seu corpo sobre o madeiro”. Fica claro que
Pedro está falando dos pecados, pois emprega a palavra mais comumente
traduzida por pecado, αμαρτία (hamartia), que também é o primeiro substantivo

130
na tradução que a Septuaginta faz de Isaías 53.4. E o verbo que ele escolhe,
αναφέρω (anaferò), pode certamente ser usado no sentido de carregar algo de
modo vicário. No entanto, ao contrário do que alguns supõem, não fica
totalmente claro se Pedro está fazendo aqui uma citação de Isaías 53.4. Ele
não dá sinal algum de que se trata de uma citação. Não encontramos no texto
as palavras: “Está escrito”, ou qualquer fórmula equivalente. Parece mais
provável que ele esteja se referindo a Isaías 53 de modo geral, especialmente
ao versículo 12. Resumindo: Jesus curou durante seu ministério na Terra e
ainda cura em nossos dias. Entretanto, essa cura não deve ser considerada
uma manifestação ou aplicação do ato vicário de levar sobre si nossas
enfermidades, do mesmo modo que levou nossos pecados. Antes, seus
milagres de cura são simplesmente uma questão de introduzir uma força
sobrenatural na esfera da natureza, da mesma forma que qualquer outro
milagre. De modo geral, é claro, a expiação cancela todos os efeitos da Queda,
mas alguns de seus benefícios não se concretizarão antes do final dos tempos
(Rm 8.19-25). Portanto, não podemos esperar que cada pedido de cura seja
atendido da mesma forma que os pedidos de perdão dos pecados. Paulo
aprendeu essa lição (2C0 12.1-10) e nós também devemos aprendê-la. Nem
sempre o plano de Deus é curar. Esse fato não deve nos incomodar se nos
lembrarmos que não viveremos para sempre neste corpo terreno (Hb 9.27).

Como já mencionado, o capítulo no qual este anexo é parte, tem como objetivo
explorar sobre um dos mais importantes tópicos para nós, cristãos, sejam
novos ou antigos na fé: salvação. Neste complemento, iremos discorrer sobre
as concepções existentes de salvação. Tais concepções são fundamentadas
em determinadas teologias. Observa-se que a última concepção, Teologia
Evangélica, é aquela que seguimos.

131
Descrições bíblicas da ira de Deus

A ira de Deus, de acordo com Naum 1:2, é algo ardente e acumulado. No dia
do juízo e revelação de Deus será dada a cada um na medida que foi
armazenada individualmente (Romanos 2:5-6). Além disso, é importante saber
que a ira divina não é meramente uma consequência natural para as ações
pecaminosas, mas a aplicação da ira de Deus é aplicada de forma justa sobre
o pecador impenitente.

Em Hebreus 12:19, é relatado que “Deus é um fogo consumidor.


Frequentemente, a palavra “fogo” é utilizada na bíblia para descrever a ira de
Deus, pois este elemento possui uma força terrível de destruição. A palavra
consumir vem do grego katanalísko, que significa “esgotar ou gastar”. Por
tanto, a ira de Deus tem o poder de destruir até o fim.

Há diferentes termos para se referir à ira de Deus, através destes termos,


podemos ver que a ira de Deus é a expressão de sua fúria raiva, sendo algo
que pode exterminar as criaturas. Por exemplo:

- Furor (Êxodo 15:7 e Deuteronômio 9:19) - No primeiro texto, a palavra


furor vem da do hebraico charon, que significa queimação, ferocidade e
fúria. No segundo texto, vem do hebraico chema, que significa ardor,
raiva, cólera e ira.
- Ira (Salmos 11:7) - texto, vem do hebraico zaam, que significa raiva
intensa.
- Cólera (Salmos 90:11) - Do hebraico ebrah, significa passar por cima ou
transbordar ortanto, a ira de Deus é como um rio furioso, transbordando
suas margens e arrastando tudo o que está em seu caminho.
- Brasume da ira (Jeremias 30:24) - Brasume vem do hebraico charon
que significa queimação, ferocidade ou fúria. A segunda, ‘aph, significa

132
narina ou nariz, e traz uma conotação de expressão de raiva, como um
sinal de dilatação das narinas.

Além de termos, a palavra de Deus, traz algumas metáforas que são utilizadas
para transmitir a natureza feroz da ira de Deus contra o pecador e seu pecado,
como por exemplo:

- Fogo que consome - Deuteronômio 32:22


- Espada Afiada - Salmos 7:12
- Setas inflamadas - Salmos 7:13
- Redemoinho tempestuou - Jeremias 30:23
- Inundação transbordante - Naum 1:8

Por fim, em Salmos 7:11-13, diz “Deus é um juiz justo, um Deus que manifesta
cada dia o seu furor. Se o homem não se arrepende, Deus afia a sua espada,
arma o seu arco e o aponta, prepara as suas armas mortais e faz de suas
setas flechas flamejantes.”. Por isso, é de extrema importância buscarmos
intimidade com o Espírito Santo, e buscar o arrependimento genuíno de cada
pecado que cometemos. Além disso, com este texto podemos aprender que a
indignação de Deus é um resultado da sua justiça e não alguma imperfeição no
seu caráter. E, a indignação de Deus é o resultado da contínua rebelião do
homem. Deus é compassivo e gracioso, tardio em irar-se e abundante em
benignidade, tanto que ele perdoa o pecador arrependido, mas o pecador
impenitente se torna um objeto de sua ira.

133
Segurança na salvação/perseverança dos santos

Durante a vida cristã, somos assolados por diversas dúvidas, pensamentos e


questionamentos sobre nossa fé. Um deles, talvez seja o seu, é se um crente
pode perder a sua salvação durante a caminhada cristã.

É necessário entender que nós estamos seguros em Jesus Cristo. Mesmo se


cairmos em pecado, um Cristão verdadeiramente salvo se arrepende dos seus
pecados e volta a Jesus Cristo. Assim, nossa salvação depende unicamente do
sacrifício de Cristo em nosso lugar.

Convém notar que essa questão é um ponto de forte discordância entre os


cristãos evangélicos há muito tempo. Muitos da tradição wesleyana/arminiana
sustentam que é possível que alguém realmente nascido de novo venha a
perder a salvação, enquanto os cristãos reformamos/Calvinistas defendem que
isso é impossível para uma pessoa verdadeiramente nascida de novo. Essas
duas posições apresentam alguns conceitos em comum. Elas concordam que
Deus é poderoso e fiel, disposto a cumprir suas promessas e capaz de
realizá-las. Também estão de acordo, ao menos em suas formas comuns, que
a salvação não é obtida nem mantida por obras humanas. Concordam ainda
que o Espírito Santo está em ação em todos os crentes (embora possa haver
alguma discordância quanto à presença e à atividade do Espírito). Ambas
estão convictas da integralidade da salvação que Deus provê. As duas insistem
que o crente pode realmente saber que atualmente tem a salvação. Também, é
interessante salientar que as visões Wesleyana/Arminiana e Calvinista
transcendem a questão, não se limitando apenas a este assunto. Entretanto,
será de proveito destrinchar os posicionamentos a título de aprofundamento.

Vejamos, então, as duas visões:

134
Calvinista

A posição calvinista é clara e direta nessa questão: “Os que Deus aceitou em
seu Amado, chamou eficazmente e santificou pelo seu Espírito, não podem cair
do estado de graça de forma total nem final; mas com toda a certeza
perseverarão nesse estado até o fim, e serão eternamente salvos”. Esse ponto
é consistente com o restante do sistema teológico calvinista. Visto que Deus
elegeu certos indivíduos dentre a multidão da humanidade caída para receber
vida eterna, e os assim escolhidos necessariamente receberão essa vida,
segue-se que sua salvação deve ser permanente. Se os eleitos pudessem, em
algum momento, perder sua salvação, a eleição deles por Deus para a vida
eterna não seria verdadeiramente eficaz. Portanto, a doutrina da eleição, como
entendida pelos calvinistas, requer também a perseverança. Como Loraine
Boettner declara:

“Essa doutrina [da perseverança] não se mantém sozinha, mas é parte


necessária do sistema teológico calvinista. As doutrinas da eleição e da
graça eficaz logicamente implicam a salvação garantida dos que recebem
essas bênçãos. Se Deus escolheu as pessoas de modo absoluto e
incondicional para a vida eterna, e se o Espírito Santo aplica a elas de forma
eficaz os benefícios da redenção, a conclusão inescapável é que essas
pessoas serão salvas.”

o calvinista encontra a maior fonte de encorajamento a respeito desse assunto


nas promessas diretas de cuidado do Senhor. Uma das mais diretas e claras é
a afirmação de Jesus a seus discípulos: “Estas [minhas ovelhas] ouvem a
minha voz, eu as conheço, e elas me seguem. Dou-lhes a vida eterna, e jamais
perecerão; e ninguém as arrancará da minha mão. Meu Pai, que as deu para
mim, é maior do que todos; e ninguém pode arrancá-las da mão de meu Pai.
Eu e o Pai somos um” (Jo 10.27-30).

135
Arminiana

A primeira classe importante de textos bíblicos citados pelos arminianos sobre


essa questão da perseverança consiste em advertências contra a apostasia.
Jesus advertiu seus discípulos sobre o perigo de serem enganados (M t
24.3-14). Ele disse especificamente: “Tende cuidado para que ninguém vos
engane” (v. 4). E, depois de descrever diversos eventos que acontecerão antes
de sua segunda vinda, ele acrescentou: “Também surgirão muitos falsos
profetas e enganarão a muitos. E, por se multiplicar a maldade, o amor de
muitos esfriará. Mas quem perseverar até o fim será salvo” (v. 11-13). Teria
Jesus feito tal advertência a seus discípulos se não houvesse a possibilidade
de eles apostarem na fé e, assim, perderem a salvação?

O arminiano também cita textos que exortam o crente a permanecer na fé. Um


exemplo dessas exortações à fidelidade, que aparece frequentemente em
combinação com advertências como as que acabamos de observar, é Hebreus
6.11,12: “E desejamos que cada um de vós mostre o mesmo esforço dedicado
até o fim, para a completa certeza da esperança, para que não vos torneis
indiferentes, mas sejais imitadores dos que herdam as promessas por meio da
fé e da paciência”. Paulo deu testemunho dos próprios Esforços e diligência
para se manter fiel: “Pelo contrário, aplico socos no meu corpo e o torno meu
escravo, para que, depois de pregar aos outros, eu mesmo não venha a ser
reprovado” (I Co 9.27). A insistência dos esforços de Paulo para evitar ser
desqualificado sugere que até ele podia perder a salvação.

136
Perguntas de Síntese
1. O que foi defendido no Concílio de Calcedônia?
2. De maneira geral, Cristo nos salvou do que?
3. Defina, sucintamente, o que é a expiação.
4. Quais os estágios da obra de Cristo?
5. Diferencie justificação de santificação.
6. Como é apresentada a relação de fé e obras em Tiago e 1 João?
7. O que é a graça comum?

137
Referências Bibliográficas
Millard J. Erickson Editora: Vida Nova; Teologia Sistematizada

Wayne Grudem. Editora: Vida Nova; Teologia Sistemática - Atual e Exaustiva

Aliester E. McGrath Editora: Shedd; Teologia sistemática, histórica e filosófica

Franklin Ferreira Editora: Vida Nova; Teologia Sistemática uma análise


histórica, bíblica e apologética para o contexto atual

Louis Berkhof; Editora: Cultura Cristã; Teologia Sistemática

Grant R. Osborne Editora: Vida Nova; A Espiral Hermenêutica - uma nova


abordagem à interpretação bíblica

Gordon d. Fee & Douglas Stuart; Editora: Vida Nova; Entendes o que lês

Michael J. Gorman Editora: Thomas Nelson Brasil; Introdução à Exegese


Bíblica

John Piper; Editora: Fiel; Lendo a Bíblia de modo sobrenatural

Louis Berkhof; Editora: Cultura Cristã;Princípios de interpretação bíblica

William W. Klein, Craig L. Blomberg, Robert L. Hubbard Jr. Editora: Thomas


Nelson Brasil; Introdução à interpretação Bíblica

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Terra - Granja Vianna

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