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EJ Perosa Jr. Diálogos, v.22, n.

1, (2018), 190 - 204

ISSN 2177-2940
(Online)

ISSN 1415-9945
(Impresso)
http://dx.doi.org/10.4025.dialogos.v22i1

A narrativa de eventos traumáticos na história do tempo


presente: os desafios para o historiador
http://dx.doi.org/10.4025.dialogos.v22i1.34158

Edson José Perosa Junior


Doutorando em História Social pela UFR, perosaperosa@hotmail.com
__________________________________________________________________________________________
Resumo
Palavras Chave: A construção de uma narrativa sobre eventos traumáticos de extrema violência e horror
Holocausto; Ditadura Militar; esbarra nas dificuldades e limites da representação de acontecimentos e fenômenos
Testemunho; Sujeito-Objeto; históricos com verossimilhança. A linguagem escrita impossibilita que eventos como o
Representação Holocausto sejam representados e apreendidos completamente, devido a escala de
horror perpetrado que não encontra paralelo na vida cotidiana. Discute-se o conceito
de História do tempo presente, o processo de produção de uma narrativa, a natureza
. dos eventos traumáticos e a dicotomia vítimas-perpetradores.

Abstract
The Narrative of Traumatic Events in the Present Time History:
Keywords: challenges for the historian
Holocaust; Military The construction of a narrative about traumatic events of extreme violence and horror
Dictatorship; Testimony, collides with the difficulties and limits on the representation of historical occurrences
Subject-Object; Representation and phenomena with veracity. The written language hinders that events such as the
Holocaust could be portrayed and understood completely, due to the scale of horror
inflicted that has nor parallel in everyday life. It is discussed the concept of History of
the time being, the process of narrative production, the nature of traumatic events and
the dichotomy of victims-perpetrators.

Resumen
La Narrativa de Eventos Traumáticos en la Historia del Tiempo
Palabras clave:
Presente: los desafíos para el historiador
Holocausto; Dictadura Militar;
La construcción de una narrativa acerca de los eventos traumáticos de extrema violencia
Testimonio; Sujeto-Objeto; y horror se topa a las dificultades y los límites de la representación de los
Representación acontecimientos y fenómenos históricos con verosimilitud. La lenguaje escrita hace que
sea imposible para eventos como el Holocausto sean representados y aprehendidos por
completo debido a la escala del horror perpetrado que no tiene paralelo en la vida
cotidiana. Se discute el concepto de la historia del tempo presente, el proceso de
producción de una narrativa, la naturaleza de los eventos traumáticos y la dicotomía
víctimas-perpetradores.

Artigo recebido em 07/11/2016. Aprovado em 29/03/2018


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Para uma conceituação do que é História analisando o ‘‘presente’’ ou o ‘‘passado recente’’


do Tempo Presente1 podemos sopesar a recorrência desses
fenômenos, sua relação com o passado e
Para o celebrado historiador alemão implicações para o presente.
Leopold von Ranke o historiador não deveria
A História do tempo presente trata de
preocupar-se com os acontecimentos
temas e processos que ainda estão se
contemporâneos ao seu tempo. Ranke
desenrolando e que afetam diretamente o
propugnava que apenas se poderia produzir uma
presente e as projeções sobre o futuro
narrativa objetiva, isenta e ‘‘científica’’
(FRANCO; LEVÍN, 2007, p. 1). Ainda que se
(coadunando-se com as noções do positivismo)
possa discordar aí, pois eventos de um passado
se houvesse certo distanciamento entre o
mais longínquo afetam também o presente e a
historiador/sujeito e seu objeto de análise.
interpretação do passado está, invariavelmente,
Destarte, era necessário o transcorrer do tempo
atrelada ao sujeito que escreve essa História e a
e o distanciamento entre sujeito e objeto para
sua temporalidade. Há de se concordar que as
que o historiador pudesse lançar seu olhar sobre
dinastias do Egito Antigo ou o Império Sumério
determinados acontecimentos e fenômenos.
são fatos históricos concluídos de modo distinto
Koselleck (2014, p. 229-231) questiona que a antiga União Soviética, por exemplo, que
por que certos temas fazem parte da História também não existe mais e pode ser considerado
atual ou do tempo presente e outros não. Desse um ‘‘capítulo acabado’’ da História, mas cujos
questionamento surge a dúvida sobre o que é o efeitos ainda são presentes na política
presente. O presente pode ser interpretado internacional.
como o marco temporal zero em uma
O presente é uma construção cultural.
temporalidade imaginada e concebida pelo
História pode ser definida como aquilo que os
homem. Desse modo, o presente nunca o é, pois
homens consideram parte de sua experiência
ou ele já faz parte do passado ou ainda é a
vital. O presente histórico, por sua vez, pode ser
expectativa do futuro. Em outra interpretação, o
definido como um espaço de inteligibilidade
presente é tudo, pois o passado e o futuro só
intergeracional:
existem diante da existência do ser. Nesse
sentido, todo passado é ‘‘passado presente’’ e
todo futuro é ‘‘futuro presente’’. Essa tendência e percepção (a
historicização e a ação intergeracional)
Seguramente a História do tempo seriam as chaves substanciais, os
presente, e mesmo a História Contemporânea, pressupostos, que nos parece, não,
não se diferencia das outras que a precederam à desde logo, os únicos, porém sim os
fundamentais, para poder converter o
não ser pela sua periodização distinta; de modo presente num campo e num objeto de
que ‘‘toda História é História temporal, e toda estudo inteligível como a História
História foi, é e será uma História do presente’’ vivida e escrita por aqueles que a vivem2
(KOSELLECK, 2014, p. 233). A recorrência de (ARÓSTEGUI, 2004, p. 41).
certos fenômenos (guerras, genocídios, etc.)
fazem com que a História do tempo presente O historiador do tempo presente
seja um campo privilegiado de observação, pois enfrenta o problema epistemológico de construir

1 Essa expressão se tornou corrente no vocabulário dos historiadores após o final da Segunda Guerra Mundial. A delimitação
do recorte temporal desse conceito não é consenso. Pode-se tentar delimitá-lo tendo como referência rupturas, lembranças,
memórias ou fenômenos hodiernos que afetam o próprio historiador (FERREIRA, 2000, p. 8-9). Talvez a definição mais
precisa seja aquela que enfatiza o fato de sujeito e objeto compartilharem a mesma temporalidade.
2 Tradução livre
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narrativas sobre pessoas e instituições que não Diferentes historiadores divergem sobre
estão concluídos, ou seja, ainda encontram-se como se dá a relação entre História e memória.
em curso e ativos no momento em que se A primeira posição define essa relação como
escreve. Aróstegui (2004, p. 44) se indaga como uma de ruptura, de modo que a delimitação do
é possível tratar de um devenir histórico não campo da História se dá por oposição ao da
consumado ainda e como se pode abordar memória. A outra posição entende que existe
historicamente um presente que também é uma contiguidade entre História e memória e
tratado por outras disciplinas como Sociologia, que não se podem separá-las completamente
Antropologia, Ciência Política, etc. (MUDROVCIC, 2000, p. 2). História e memória
encontram-se intimamente imbricadas quando
Para o historiador espanhol, deve-se
se trata da História do tempo presente. Todavia
considerar o presente como um processo global
esse não é um problema peculiar ao historiador
que pode ter diferentes temporalidades e ser
apenas, qualquer pesquisador não se furta
decomposto em processos diacrónicos passíveis
plenamente das condicionantes sociais de seu
da análise pelo historiador. O historiador do
meio e como isso inevitavelmente afeta seu olhar
tempo presente dificilmente conseguiria analisar
sobre o objeto de sua análise (ARÓSTEGUI,
cabalmente processos globais, mas a
2004, p. 50). Nesse sentido, o historiador, como
decomposição desses processos com o mero
outros pesquisadores sociais, deve saber manejar
intuito de análise pode ser uma boa resposta para
suas limitações no que concerne a busca por
os desafios epistemológicos de se escrever sobre
o tempo presente. Ao fazer a análise desses parcialidade e objetividade.
fenômenos, o historiador deve manter certa A produção de historiografia sobre
perspectiva temporal, o que o diferencia de eventos traumáticos requer que o historiador se
outras disciplinas. distancie das memórias sobre aqueles eventos,
com o intuito de construir uma narrativa mais
A noção de processos acabados em
objetiva e neutra (LVOVICH, 2007, p. 98).
História é puramente teórica, sendo uma
Memória e História podem ser entendidas em
construção puramente mental. Da mesma
última instância como duas modalidades de
forma, falar em processos inacabados em
relação com o passado, e essas modalidades não
História do tempo presente é uma construção do
podem ser plenamente separadas – elas
produtor desse discurso (FRANCO; LEVÍN,
2007, p. 17). Destarte, afirmar que processos representam um continuum.
inacabados são um obstáculo para o estudo do A noção de ‘‘verdade histórica’’ já há
tempo presente é epistemologicamente criticável tempos está descreditada. A plêiade de
– já que a própria noção de processo é um interpretações possíveis sobre determinados
constructo. eventos é ainda mais evidente na História do
tempo presente, pois as vozes que emitem
A História do tempo presente se
diferentes narrativas, não raro, vivenciaram e
caracteriza por tensões que lhe são peculiares.
vivenciam aquilo que pretendem narrar. Dessa
Não raro os objetos da narrativa produzida pelo
forma, o relato das testemunhas tem lugar
historiador do tempo presente estão vivos no
privilegiado, e incontornável, na História do
momento em que se escreve sobre os eventos
que tomaram parte. Desse modo, sujeito e tempo presente.
objeto partilham da mesma temporalidade O tempo presente mantém uma relação
(FICO, 2012, p. 45), o que enseja problemas estreita com a ideia de memória coletiva, que está
peculiares para o historiador do tempo presente, constantemente em transformação na medida
que outros historiadores de outros períodos em que a sociedade enfrenta diferentes situações
históricos não enfrentam da mesma maneira. no presente que a fazem tentar compreender
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eventos no passado (ROUSSO, 2000, p. 33-34). ‘‘lembrada’’, pois essas gerações sequer viveram
A memória coletiva pode ser definida como uma aquele passado para que ele pudesse ser
lembrança coletiva que é conformada pelas recordado. O que ocorre é a transmissão desse
diferentes memórias individuais, mas que não é passado ou dessa memória através de ‘‘canais da
meramente a soma destas. A memória individual memória’’, na expressão de Pierre Nora3. Essa
pode ser definida como um ponto de vista sobre memória é, destarte, transmitida de geração para
a memória coletiva – que muda de acordo com geração por meio da narrativa do passado. O
o lugar e o tempo que o indivíduo ocupa. Essa esquecimento coletivo segue a mesma lógica:
memória coletiva nasce das experiências vividas como se pode esquecer o que não se viveu.
por diferentes grupos. Ela só pode se manter A memória coletiva não é algo
enquanto memória pela interação dos indivíduos predeterminado, ela opera de modo seletivo. As
que experimentaram aqueles eventos e só pode lembranças coletivas são fruto da interação
ser lembrada de forma coletiva pela interação e humana, não havendo apenas um grupo que
contato desses mesmos indivíduos. A memória controle o que deve ou não ser lembrado. A
coletiva pode ser perder na medida em que esses historiografia estabelece uma relação dialética
grupos, que as produziram, desaparecem
com a memória, influenciando-a, mas de modo
(HALBWACHS, 2008, p. 29-38). algum controlando-a (SELIGMANN-SILVA,
Nossas memórias são evocadas por meio 2003, p. 61-62). Deve-se ressaltar que essa
do que Halbwachs (2008, p. 42) chama de distinção entre História e memória é uma
‘‘instituições sensíveis’’, que é um estado de construção analítica e metodológica (CATELA,
consciência individual e que compreendem toda 2002, p. 391).
a gama de percepções e idiossincrasias. As A História do tempo presente dispõe de
‘‘instituições sensíveis’’ estão sempre no uma superabundância de fontes, o que é
presente e aquilo que nos lembramos ou não concomitantemente uma vantagem e um desafio
lembramos está relacionado intimamente com para o historiador. A subjetividade na escolha
os condicionantes do presente. Existe, portanto, das fontes se torna ainda mais acentuada e a
um condicionamento social e temporal na decisão de entrevistar ou não aqueles que
memória coletiva. viveram os eventos que se pretendem narrar
Essa inter-relação entre tempo presente pode modificar substancialmente a forma e a
e memória coletiva é tão importante, porque a direção da narrativa. Essa possibilidade de o
memória coletiva é uma construção do presente historiador do tempo presente produzir sua
sobre eventos passados, e no caso do tempo fonte (ARÓSTEGUI, 2004, p. 61) é um
presente a memória coletiva é sobre eventos que, elemento metodologicamente delicado para o
não raro, foram vividos pelas mesmas gerações pesquisador, pois pode comprometer sua
que produzem essa memória coletiva. Nesse pretensão de imparcialidade se ele não tiver o
sentido, há um imbricamento entre tempo rigor metodológico necessário.
presente e memória coletiva de uma geração que Há de se destacar também a
foi parte nos eventos que ela quer recordar. peculiaridade das fontes orais construídas e
Para Yerushalmi (1989, p. 27), o conceito estandardizadas, fenômeno muito evidente no
de memória coletiva é tão escorregadio quando tempo presente. Essas fontes orais provêm de
de esquecimento coletivo. A memória de experiências coletivas como genocídios ou
eventos passado que não foram vividos por guerras e exigem um tratamento mais delicado,
gerações presentes não pode, de certo modo, ser pois tendem a influenciar a memória sobre

3 Nora elabora esse conceito em sua obra Les Lieux de Mémoire.


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aqueles eventos e também a memória individual histórica demanda o embasamento documental,


de outros sobreviventes. Nesse sentido, o que é a estrutura que sustenta a explicação e
sobrevivente do Holocausto, por exemplo, tem interpretação de acontecimentos e fenômenos
sua memória moldada no presente de acordo passados (RICOUER, 1999). Tudo isso inserido
com a narrativa ‘‘hegemônica’’ – construída pelo na busca de uma narrativa objetiva e isenta.
grupo a que pertence – em torno daquele evento. Na dicotomia entre História e memória,
Não é novidade que a memória é construída e a História tem a função de tentar conferir
modificada continuamente no presente, mas no veracidade à narrativa do passado e à
caso de eventos traumáticos isso tende a se transmissão de relatos e testemunhos que
tornar ainda mais evidente. passaram ao crivo metodológico do historiador.
Portanto, a História do tempo presente O historiador também é produtor da memória,
é, naturalmente, definida como um período o que LaCapra (2008, p. 34-35) chama de
próximo, ou mesmo coetâneo, ao historiador. memória secundária, por oposição à memória
Ela também é definida pela peculiar relação entre primária. A memória primária é aquela de quem
sujeito e objeto, na qual ambos podem pertencer efetivamente vivenciou os eventos que são
a mesma temporalidade ou a mesma geração. O narrados. A memória secundária, por sua vez, é
presente histórico, por sua vez, pode ser produzida, com base na avaliação crítica da
definido como o espaço em que as experiências memória primária, pelo
de diferentes gerações estão imbrincadas, ou observador/pesquisador/historiador.
seja, ainda que não tenham compartilhado a LaCapra (2001, p. 1) identifica duas
mesma vivência, diferentes gerações partilham o
abordagens na historiografia: a primeira está
mesmo tempo histórico (MUDROVCIC, 2000, relacionada com a produção de afirmativas tidas
p. 3). como verdadeiras com base na pesquisa e coleta
Sendo a História do tempo presente um de evidências/documentos; a segunda se refere a
campo legítimo de pesquisa histórica – e uma forma de construtivismo radical em que a
podemos dizer consolidado. A produção da produção de afirmativas consideradas
narrativa e de interpretação história sobre esse verdadeiras se restringe a alguns fatos e o
período apresenta problemas metodológicos principal é a construção de estruturas (hipóteses,
singulares para o historiador, especialmente o argumentos, interpretações, etc.) em que essas
aspecto da coexistência temporal entre sujeito e afirmações com pretensão de verdade estão
objeto. inseridas.

A produção da narrativa e a questão dos A narrativa é antes de mais nada uma


testemunhos forma de transmitir conteúdo. Toda narrativa
tem elementos estéticos e sua parte fundamental
A escrita da História não é nem a não se restringe às afirmações com pretensões de
memória coletiva, nem uma mera recordação de verdade. Eventos traumáticos, como o
fatos singulares. Com métodos peculiares a essa Holocausto e outros, estão, geralmente,
disciplina, a História tem uma pretensão relacionados com sentimentos de compaixão e
científica. A História rompe com o discurso da empatia pelas vítimas – o que invariavelmente
memória nos níveis documental, explicativo e afeta a narrativa desses eventos. LaCapra (2001,
interpretativo. A construção da narrativa p.19) alude para a solução de Hayden White para
esse problema: a utilização de uma ‘‘voz média’’4,

4 A ‘‘voz média’’, uma espécie de anti-narrativização modernista, não está presente na maioria das línguas modernas (sendo
grego uma exceção) e seria uma forma de ‘‘escrita intransitiva’’, na qual o sujeito agente é interior a ação verbal. Esse tipo de
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por oposição à voz ativa e passiva, como meio Existe a tendência de o historiador de envolver-
mais adequado para narrar eventos traumáticos. se emocionalmente com testemunhos
traumáticos, ‘‘contaminando’’ sua narrativa com
Todavia, White transfere muita
o subjetivismo das vítimas (LACAPRA, 2008, p.
confiança para essa narrativa orientada pela ‘‘voz
25).
média’’, afirmando que seria a única maneira de
representar eventos traumáticos de forma Por outro lado, Calveiro (2008, p. 30)
realista - essa interpretação é questionada pelo chama a atenção para o uso excessivo de cifras e
próprio LaCapra (2001, p. 26). Além da número quando se produz narrativas sobre
dificuldade de se escrever nessa voz, existe o eventos traumáticos. Os números acabam por
problema de estar-se eliminando a distinção desumanizar esses eventos de extrema violência,
inerente entre vítimas e perpetradores. Isso pois eles mistificam esses fenômenos, retirando
prejudicaria a própria interpretação desses sua dimensão humana. Certamente, esses dados
fenômenos ao elidir a dicotomia entre vítimas e estatísticos são de suma importância para a
algozes, que é fulcral para a compreensão de compreensão desses fenômenos, todavia o
eventos dessa natureza. testemunho dos sobreviventes também deve
Ocorre que qualquer voz ou estilo de compor a narrativa do historiador (seguindo o
rigor metodológico necessário), pois ela lhe
narrativa utilizado pelo historiador é
fornece a perspectiva do indivíduo que sofreu
problemático em algum nível. Certamente não se
tais agressões.
pode reconhecer que a ‘‘voz média’’ seja a única
maneira de produzir uma narrativa objetiva e O problema em torno dos testemunhos
isenta. A supressão de qualquer forma de é até que ponto podem ser confiáveis ou
empatia e solidariedade com as vítimas não é por considerados verdadeiros. Invariavelmente, o
si só a garantia de objetividade – tampouco é testemunho representa uma perspectiva em
desejável em todos os casos. LaCapra (2001, p. torno de um acontecimento, por isso é sempre
35-36) reconhece que a hipérbole5 pode ser uma subjetivo e parcial. No caso de eventos
maneira legítima de representar o trauma na traumáticos o testemunho das vítimas se torna
narrativa histórica, pois a noção de uma ainda mais desafiador, no sentido de que a
representação transparente e autossuficiente é, experiência vivida por elas não encontra paralelo
em última instância, impossível de ser atingida. na vida cotidiana da maioria das pessoas. Isso
Todo pesquisador inicia sua pesquisa inserido torna esse tipo de testemunho mais complexo
em um contexto histórico e sua relação com seu ainda, impondo limites e desafios na
objeto de estudo é dialética – sendo que é representação desses acontecimentos.
afetado e afeta a compreensão de seu objeto de O testemunho se insere numa relação
pesquisa. entre o passado e o presente, ou seja, o
No caso do Holocausto, o testemunho testemunho produzido no presente e
dos sobreviventes ganha força de verdade e tencionando esclarecer eventos passados é uma
irrefutabilidade diante do sofrimento e trauma janela de compreensão não apenas do passado,
por eles sofrido. Todavia, diante desses mas também do presente (RICOUER, 2007, p.
testemunhos vale a mesma regra aplicada em 171-175). O testemunho, como qualquer outro
qualquer outro: de que devem ser submetidos à documento, só adquire sentido e eloquência em
crítica e ao cotejamento com outras fontes. relação as perguntas e hipóteses que lhe são

escrita foi proposto também por Barthes. Essa voz deveria ser utilizada para descrever eventos sem precedentes como o
Holocausto, paradigmático nesse sentido (MARQUEZ, 2008, p. 110-124).
5 Figura de linguagem resultante do exagero na representação linguística.
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propostas. É no confrontamento de provas e do cotejamento dos testemunhos,


testemunhos divergentes que o historiador pode todavia apenas o juiz sentencia (RICOEUR,
produzir uma narrativa histórica minimamente 2007, p. 335). Não cabe ao historiador imputar
plausível. criminosos ou absolver vítimas quando da
narrativa de eventos traumáticos.
Talvez a questão central na produção de
uma narrativa sobre eventos traumáticos seja a No caso latino-americano, a destruição
empatia que o historiador pode ter ou não com de documentos pelas ditaduras militares do cone
as vítimas. A empatia apresenta um problema sul, fizeram com que o historiador tivesse de
peculiar para a pretensão de objetividade e buscar outras fontes – e o testemunho de vítimas
parcialidade, pois acaba por estabelecer uma desses regimes adquire um lugar de destaque na
relação íntima de identificação do sujeito construção de narrativas (FRANCO; LEVÍN,
produtor da narrativa e seu objeto. A empatia 2007, p. 20). O desenvolvimento da História
consiste em reconhecer a alteridade e Oral no pós-Segunda Guerra Mundial,
humanidade do outro. Em uma disciplina que se especialmente nos anos 1960 e 1970, se tornou
quer objetiva, a empatia, segundo LaCapra o principal meio para o registro desses
(2001, p. 40-41), tem um papel a cumprir desde testemunhos (MUDROVCIC, 2000, p. 1).
que a identificação do produtor dessa narrativa Na produção de narrativas,
com seu objeto não seja absoluta. particularmente sobre eventos traumáticos, há
Nesse sentido, a contextualização e a uma demanda social pela exposição da
pesquisa exaustiva são importantes ferramentas ‘‘verdade’’ desses acontecimentos, isto é, da
para que a empatia com as vítimas não se torne interpretação ‘‘verdadeira’’ e fidedigna sobre o
um obstáculo para a explicação de fenômenos que ocorreu. Essa demanda esbarra no problema
históricos. A empatia do historiador pela vítima da ‘‘verdade histórica’’ (ROUSSO, 1996, p. 85-
não deve ser a apropriação da experiência dessa 86; ROUSSO, 2000, p. 30). O historiador deve
vítima, mas meramente um recurso com o qual estar atento a essas demandas e tentar supri-las
o historiador aprimora a sua produção dessa na medida do possível cônscio dos limites
narrativa por meio de métodos ou mesmo epistemológicos que enfrenta.
recursos estilísticos. O próprio interesse sobre determinados
O distanciamento de posições binárias, temas está relacionado com a demanda social
que assumem a perspectiva das vítimas ou dos sobre esses acontecimentos. O caso mais
perpetradores, deve ser o objetivo do historiador marcante nesse sentido é a historiografia sobre o
para a construção de uma narrativa mais isenta e Holocausto, que até o início dos anos 1960 não
rica em interpretação. Há uma tendência de foi profundamente debatido na Europa. As
inserir a narrativa de eventos traumáticos dentro cicatrizes da guerra, a necessidade de uma
de um enredo predeterminado e moralizador, reaproximação entre os antigos adversários na
que colima condenar as ações criminosas e guerra e a preocupação com a ameaça soviética
violentas cometidas por um ou outro grupo. fizeram com que esse tema fosse pouco
Esse talvez seja o maior desafio que o historiador explorado e pouco debatido. Apenas com a
que se envereda por escrever esse tipo de gradual mudança no cenário político foi que o
narrativa enfrenta. Holocausto adquiriu maior repercussão
historiográfica (LVOVICH, 2007, p. 102).
É cediço que o historiador não deve
assumir o papel de juiz, todavia esses dois Dessa maneira, a produção da narrativa
compartilham a pretensão de isenção ao tratar de pelo historiador do tempo presente é complexa
eventos passados. Ambos tratam do manejo das e deve seguir o rigor metodológico que a
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disciplina demanda. O uso dos testemunhos se aquilo que se chama de ‘‘hipermnésia’’, isto é, a
torna mais delicado quando essas testemunhas recordação obsessiva em torno de alguns
estão vivas e são contemporâneas do sujeito eventos traumáticos.
produtor da narrativa. Devemos nos voltar agora Uma questão nevrálgica sobre eventos
para o lugar dos eventos traumáticos na História traumáticos é se podem ser abordados como
do tempo presente e sua relação com a produção outros períodos históricos. O historiador alemão
da narrativa histórica. Martin Broszat se questionava se o nazismo
Os eventos traumáticos poderia ser estudado como outros períodos da
História alemã. Fenômenos como o nazismo,
A História do tempo presente é marcada explica Broszat, dada a magnitude de seus
por eventos traumáticos. Dada sua proximidade crimes, afetaria o sujeito/historiador de tal modo
com nosso tempo, a narrativa de eventos que sua narrativa estaria condicionada a uma
traumáticos, como o genocídio armênio, é mais condenação a priori desse regime (LVOVICH,
complexa para o historiador no sentido das 2007, p. 113).
resistências que pode enfrentar6 do que em Friedländer tem postura distinta, ao
comparação com o genocídio ameríndio7 afirmar que não é possível separar
provocado pela colonização na América. A completamente a pretensão de objetividade e a
abundância de relatos sobre esses eventos inevitável condição do historiador de sujeito de
traumáticos, no caso do tempo presente, faz seu tempo. A historicização de fenômenos como
com que esses acontecimentos ganhem uma o nazismo seria, nesse sentido, uma ilusão, pois
ressonância peculiar em meio a outros eventos não se poderia defenestrar as subjetividades do
trágicos que não dispõem de tamanho volume de historiador. Nessa postura, a pergunta
relatos e testemunhos (FRANCO; LEVÍN, fundamental seria sobre as limitações do
2007, p. 10). conhecimento histórico, ao invés de tentar
O Holocausto é, seguramente, a atingir critérios de objetividade que não são
paradigma mais usado sobre o que é um evento plausíveis (SELIGMANN-SILVA, 2003, p. 73).
traumático. Há autores, como Friedländer, que Assim sendo, é necessário que o
consideram o Holocausto inenarrável, de forma historiador tenha rigor epistemológico e
que não pode ser expressado ou representado metodológico para abordar eventos traumáticos
por uma narrativa dado seu caráter de absoluto com a mesma diligência que outros períodos
horror e estranheza (unheimlichkeit) para aqueles históricos. O esforço de historiar eventos
que não viveram esse evento. Mesmo para as traumáticos não pode esbarrar em narrativas
vítimas desse genocídio, tal evento parece difícil maniqueístas que enfatizam apenas o aspecto
de ser crível e algumas tendem a reprimir suas inerentemente maligno de fenômenos como o
memórias daquele período. Todavia, ao mesmo nazismo.
tempo em que esses eventos traumáticos são
Segundo LaCapra (2007, p. 345), existe
pautados no inacreditável e no indizível, existe
uma tendência para a sacralização do trauma e da
uma tendência para se manter o olhar fixo neles
violência. Esses são dois conceitos que estão
(AGAMBEN, 2008, p. 42-43). Ocorre aqui,

6 O Estado turco nega abertamente que tal evento se caracterizaria como genocídio, sendo um fenômeno pouco discutido e
pesquisado no país. Pesquisadores e países que ousaram contestar a versão de Ancara sobre os eventos por vezes sofreram
represália. Em 2012 a assembleia nacional francesa aprovou uma lei que tipificava como crime a negação do genocídio
armênio. Essa decisão fez com que a Turquia suspendesse as relações diplomáticas com a França (SELIGMANN-SILVA,
2012, p. 104)
7 Ver: <<http://historynewsnetwork.org/article/7302>> Acesso em 09/07/15.
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vinculados e fazem parte do real ‘‘não questionável se essa cultura do medo seria um
simbolizável’’ – significa dizer que esses elemento apenas das sociedades latino-
fenômenos são inerentemente difíceis de serem americanas – ou mesmo se se pode identificar
representados numa narrativa. Em algumas uma cultura do medo.
narrativas mais engajadas e militantes a violência O grande desafio em torno da
pode ser visto como um fenômeno positivo e abordagem sobre eventos traumáticos é trata-los
regenerador desde que vinculado ao fim político como outros eventos históricos. Isso não
esposado pelo autor dessa narrativa. significa não reconhecer a singularidade desses
Esses eventos traumáticos, por vezes, eventos, como é o caso do Holocausto, mas sim
também servem de identidade para povos ou manter o rigor metodológico com que se aborda
grupos atingidos por atos de extrema violência. outros períodos ou eventos de menor impacto.
As narrativas engajadas com essas identidades Nesses eventos traumáticos, por definição, está
frequentemente produzem uma interpretação inserida a dicotomia entre vítimas e
quase sagrada desses eventos (LACAPRA, 2011, perpetradores. O historiador precisa estar atento
p. 23). Destarte, o historiador enfrenta o dilema a essa dicotomia e a forma de abordá-la de modo
da limitação inerente à representação da a não comprometer a capacidade interpretativa
violência/trauma e o risco de endossar essa que a narrativa história pretende se conferir.
violência de alguma maneira.
Vítimas e perpretadores
No caso latino-americano, Koonings e
Kruijt (2002, p. 37), defendem que existe uma A dicotomia entre vítimas e
cultura do medo impregnada na América Latina, perpetradores é fundamental na construção de
fruto de uma violência institucionalizada e narrativas sobre eventos traumáticos e insere-se
sistemática. Esse legado de violência e repressão no problema da utilização de fontes. De que
continuou presente após o fim das ditaduras forma as fontes extraídas desses atores (por meio
militares e seria um dos aspectos marcantes das de entrevistas ou relatos escritos) podem ser
sociedades latino-americanas hodiernas. Os utilizadas na construção da narrativa
governos democráticos que se seguiram ao fim historiográfica. Geralmente encontramos o
do período autoritário fizeram uso do aparato de desejo das vítimas em preservarem sua memória
inteligência e repressor dos antigos regimes e a ânsia dos perpetradores em terem essa
militares. Essa violência coletiva está entranhada memória esquecida.
na mente dos povos latino-americanos em que o
horror e o medo se tornaram rotineiros. Ao discorrer sobre os campos de
concentração argentinos, Calveiro argumenta
Nesse sentido, o historiador deveria ser que não se pode reduzir a relação de vítimas e
capaz de elucidar os diferentes estratos e perpetradores a um maniqueísmo bicolor em
dimensões de medo e de violência que os que ou se está do lado do mal ou do bem. Para a
variados povos sofreram – incorporando essa historiadora argentina, o que ocorria nos campos
característica em sua narrativa. Para os autores de concentração do país sul-americano era ‘‘un
que defendem essa posição, a questão da abanico de color que incluye muchos otros tonos’’
violência assume um lugar singular na (CALVEIRO, 2008, p. 131). Nesse sentido,
construção de narrativas históricas. De modo vítimas e perpetradores podem ser encarados
que, ignorar essa aspecto de violência e medo como tipos ideais – no sentido weberiano do
poderia ser um falseamento da História latino- termo. A realidade social de eventos traumáticos
americana. Ainda que possamos concordar que não pode ser reduzida a simples oposição entre
a América Latina seja uma região marcada pela atores distintos. A construção de ‘‘heróis’’ e
violência ao longo de sua História, é
199 EJ Perosa Jr. Diálogos, v.22, n.1, (2018), 190 - 204

‘‘vilões’’ ao abordar esses eventos é uma tentar entender esses atos fazem com
elaboração da narrativa produzia a posteriori sobre que se torne impossível não apenas a
minha História, mas a História de
esse passado. qualquer algoz para além da caricatura
No caso da Ditadura Militar Brasileira, unidimensional8 (BROWNING, 1992,
Fico (2012, p. 49) pondera que esse é um evento p. 36).
marcado mais pela frustração de esperanças do
que pelo trauma. Frustração pela Lei de Anistia, Ao desconsiderarmos o relato dos
pela malograda campanha das Diretas Já, enfim, algozes ou inseri-los em uma trama pré-
pela democracia suprimida. Ainda segundo Fico, constituída de condenação sem embasamento
o problema das comissões da verdade que foram interpretativo corremos o risco de tornar esses
instituídas após o fim desses regimes é que essas atores inumanos – sendo que o que ocorre é
comissões tentam construir uma memória oficial exatamente o oposto, precisamos compreender
desses eventos passados, que acarreta a as ações desses atores pois eles eram humanos e
construção de ‘‘heróis’’ e ‘‘vilões’’, como é racionais. Fico (2012, p. 48) destaca que
frequentemente o caso de memórias oficiais compreender o passado não significa justificá-lo.
produzidas pelo Estado. A interpretação da atuação do algoz, do
torturador, daquele que perpetra o abjeto ato de
A multiplicidade de interpretações e
extrema violência não significa referendar essa
perspectivas sobre um evento presenciado por
mesma violência.
diferentes algozes e diferentes vítimas é
gigantesca. Ocorre que não há uma clara Ainda que seja admissível, mesmo
distinção entre ‘‘fatos’’ e ‘‘interpretações’’. inevitável, a empatia do historiador pela vítima,
Ambos estão em uma relação dialética e são o é necessário manter certo distanciamento e não
material que o historiador se utiliza para produzir identificar-se com a vítima de modo a assumir
sua narrativa – que não deixa se ser sua sua mundividência. A compreensão de fatos
interpretação sobre os ‘‘fatos’’ (BROWNING, históricos deve ser holística abarcando tanto
1992, p. 29). O papel do historiador deve ser vítimas, quanto perpetradores. Rousso (2000, p.
condensar essas perspectivas em uma narrativa 32) defende que uma das formas de o historiador
coesa e elucidativa. atingir certo distanciamento e objetividade ao
tratar de questões do tempo presente é conceber
Tem-se discutido em que medida a
uma História da memória. Essa abordagem nada
narrativa de um evento com base nos relatos dos
mais é do que averiguar o uso contemporâneo
perpetradores ou algozes pode ser válida ou
que se faz da memória do passado por grupos de
mesmo desejável. O risco de empatia para com
interesse (Igreja, empresários, sindicados, classe
as vítimas existe e deve ser levado em conta, mas
não pode servir de óbice para a construção de média, etc.).
um entendimento histórico de suas ações. O De modo algum o historiador pode
seguinte excerto esclarece bem esse dilema: assumir o papel de juiz ao tratar dos
perpetradores. O julgamento dos algozes, como
O que não aceito, entretanto, são os no caso de Nuremberg e de Eichmann, faz com
velhos clichês em que explicar é que se corra o risco de confundir categorias
escusar, em que entender é perdoar. éticas e jurídicas. Nesse sentido, a narrativa do
Explicar não é escusar; entender não é historiador não deveria estar orientada para
perdoar. A noção de que alguém precisa
rejeitar os atos dos perpetradores e não evidenciar a responsabilidade criminal – ao
menos não da mesma forma que num

8 Tradução livre.
EJ Perosa Jr. Diálogos, v.22, n.1, (2018), 190 - 204 200

julgamento – dos perpetradores. (AGAMBEN, em 1983 surgiu uma interpretação que tentava
2008, p. 33). explicar o que havia ocorrido nos anos
anteriores. A teoria dos dois demônios considera
A dificuldade de basear uma narrativa no
que a violência da direita se equivale a violência
relato dos perpetradores (como é o caso quando
da esquerda. Essa teoria ganhou ampla
estão sendo julgados) é o dilema de quão
repercussão e aceitação nos primeiros anos pós-
confiável pode ser seu relato sobre os eventos
ditadura. O Presidente Raul Afonsín era um dos
que tomaram parte. No caso do Holocausto, as
que falavam em ‘‘demônios’’ para explicar o
primeiras narrativas sobre esse acontecimento
ocorrido nos anos 1970. Todavia essa
era baseadas nos relatos dos perpetradores
interpretação aparece equivocada no sentido de
(extraídos do julgamento de Nuremberg),
que a violência, independentemente de ser de
apresentados como criminosos e degenerados
esquerda ou de direita, é violência. De modo que
(BROWNING, 1992, p. 25-27). Essa narrativa
essa interpretação apenas pode ser válida na
carregada de adjetivos condenando as ações dos
medida em que corrobora a noção de que a
algozes era inerentemente parcial e pobre em
violência é sempre condenável
interpretação e compreensão em torno do
independentemente de qual lado do espectro
fenômeno do Holocausto.
político ela provêm.
LaCapra (2008, p. 57-58) entende que o
Essa teoria é criticada, pois ela se presta
historiador deve ocupar uma posição subjetiva
a relativização do terrorismo de Estado
entre a posição de vítimas e perpetradores. Essa
praticado pela Ditadura Militar argentina
posição deve ser a mais próxima de um
(FRANCO, 2014, p. 25). Lvovich (2007, p. 116),
testemunho isento e imparcial dos
critica essa teoria na medida em que ela
acontecimentos. Entretanto, no caso de
transforma a sociedade argentina em vítima da
acontecimentos extremos como o Holocausto, a
ação desses dois grupos extremistas,
busca desse tipo de posição se torna mais difícil
desconsiderando qualquer responsabilidade da
e a tendência para construir uma narrativa
sociedade como um todo no desenrolar desses
‘‘simpática’’ com a vítima e ‘‘antipática’’ com o
eventos. Assim sendo, a teoria dos dois
algoz. É esse tipo de narrativa que deve ser
demônios acaba por isentar qualquer
evitada, construir uma narrativa que não se
responsabilidade coletiva da sociedade argentina
identifique com a vítima não é o mesmo que
nesses eventos traumáticos. Adensando a essas
chancelar a violência que ela sofreu.
críticas, Calveiro sintetiza a teoria dos dois
Para os grupos de esquerda argentinos demônios nessa passagem: ‘‘aqueles dois
que engajaram-se na luta armada, eles demônios malvados que se destroem entre si e
acreditavam estar respondendo a uma violência que nada teriam a ver com a sociedade argentina,
já instalada na sociedade argentina por grupos a verdadeira, a bondosa, a que está contra toda
rivais, como os militares. Os militares, por sua violência, a da democracia nascente9’’
vez, acreditavam estar evitando um mal maior, (CALVEIRO, 2008, p. 163).
representado pelos grupos de extrema-esquerda
Portanto, a teoria dos dois demônios
(CALVEIRO, 2008, p. 14-15). Nesse sentido a
apresenta uma tentativa de lidar com a memória
violência praticada por um grupo parecia
de um evento traumático logo após o seu
legitimar e respaldar a violência praticada por
acontecimento. Ela emparelha a violência dos
outro.
dois grupos em combate (guerrilha X militares)
Logo após o fim da ditadura argentina e, de certa maneira, exime a sociedade argentina

9 Tradução livre
201 EJ Perosa Jr. Diálogos, v.22, n.1, (2018), 190 - 204

pelo ocorrido. Essa teoria é também uma forma assunto:


de assentar os rumos da sociedade argentina e
superar o evento traumático que dividiu a nação. O negacionista mata novamente as
vítimas e toca na ferida da memória do
A teoria dos dois demônios se prestava sobrevivente. Este só poderá ter uma
para o processo de redemocratização argentina memória do mal amis apaziguada se
em que situava as vítimas desses dois grupos tiver uma esfera pública mais aberta
como inocentes em meio ao embate desses dois para a escuta do seu testemunho e a
demônios (FRANCO, 2014, p. 45). Observa-se possibilidade de ver a sociedade
aí o uso do passado e da memória com claros engajada na busca de reparação dessas
injustiças históricas, o que, ainda que
fins políticos. A questão mais pertinente parece minimamente, poderá restituir sua
ser, no caso das ditaduras sul-americanas, dignidade (SELIGMANN-SILVA,
condenar o uso do aparato repressor do Estado 2012, p. 113).
para a consecução de um fim político voltado
contra adversários políticos. Ademais, o trauma apenas pode ser
Para além da dicotomia de vítimas e superado (se tornar pós-traumático) com a
perpetradores, tem-se que consideram também compreensão dos eventos que o ensejaram. A
aqueles que não foram parte ativa em memória desses acontecimentos deve ser
acontecimentos traumáticos (bystanders). A processada historicamente e juridicamente.
incorporação desse segmento na construção de Encontrar uma posição intermediária entre
narrativas sobre eventos traumáticos também é vítimas, perpetradores e expectadores é difícil,
um grande desafio para o historiador. Os riscos mas o esforço do historiador nesse sentido é
de uma narrativa centrada exclusivamente na válido na busca por uma narrativa com
dicotomia vítimas e perpetradores é criar uma capacidade interpretativa.
interpretação falha e restrita de acontecimentos
históricos mais amplos. Da mesma maneira, não Conclusão: o papel do historiador
se pode tratar esse grupo intermediário como
A definição e conceituação da História
meros expectadores dos acontecimentos. Uma
do tempo presente é exercício perfeitamente
análise holística deve abarcar esses três grupos.
válido e necessário, todavia muito desse esforço
No caso da ditadura argentina, como em é voltado para legitimar e referendar esse campo
outras ditaduras do cone sul, os ‘‘indecisos’’ de estudos diante de uma academia ainda muito
(KOONINGS; KRUIJT, 2002, p. 141-142) – conservadora em certo sentido e que por vezes
aqueles que não tomaram parte em prol dos considera esse campo alheio à História devido a
militares, nem da guerrilha – representam a sua proximidade temporal e as implicações
maioria da população. Esse grupo despertava a políticas e ideológicas – presente em outros
desconfiança e a ojeriza tanto dos militares, campos da História, mas mais evidentes no caso
quanto da guerrilha. do tempo presente.
A função do historiador pode ser a de As diferenças metodológicas entre
despertar o interesse do público em geral por outros campos e períodos de estudo da História
ouvir o testemunho das vítimas desses eventos são mínimas, afinal como afirmado
traumáticos. A vítima tem uma tendência a anteriormente, o passado é uno, não existe
esquecer seu passado traumático, não porque passado mais ou menos passado que outro. As
quer que os perpetradores sejam perdoados, mas dificuldades metodológicas e epistemológicas da
porque não consegue conviver com a memória História do tempo presente são semelhantes a
do horror. Seligmann-Silva discorre sobre esse outros campos da História. Ainda assim, a
EJ Perosa Jr. Diálogos, v.22, n.1, (2018), 190 - 204 202

problematização desse período tão próximo ao ao adentrar o arquivo deve-se estar atendo não
nosso tempo é importante como contribuição apenas ao que se encontra, mas também ao que
geral à disciplina. não se encontra, ao que não está lá. O arquivo,
como qualquer outro lugar da memória, é uma
O argumento de que o estudo do tempo
construção seletiva dos fatos e acontecimento a
presente não deve ser objeto do historiador, pois
supostamente seria necessário maior serem lembrados.
distanciamento temporal é ultrapassado e não se Mesmo se tratando de eventos que, prima
sustenta. Ainda que o historiador de sua própria facie, apresentam uma abundância de
época esteja exposto às influências ideológicas e documentos, o historiador não pode ignorar a
políticas de forma mais evidente isso, per se, não relevância dos vestígios – isto é, as evidências
compromete sua pretensão de cientificidade e não documentadas e incertas sobre
objetividade. Há inúmeros exemplos de acontecimentos ou fatos. Nesse sentido, Rousso
historiadores de passados mais remotos que (1996, p. 90-91), defende que o historiador deve
produzem uma historiografia militante e estar atendo não apenas para os documentos que
engajada com os debates políticos de seu tempo. existem ou que ele tem acesso, mas também para
Podemos citar os casos de Karl Wittfogel10 e a sua falta ou o seu não acesso. A historiografia
François Furet11. Hobsbawn (1998, p. 253-256) se faz com documentos, mas também com sua
entende que o distanciamento temporal não é falta. É dever do Historiador questionar aquilo
garantia de isenção e objetividade por parte do que está presente, bem o que não está.
historiador. A objetividade não é apenas uma Desse modo, os desafios do historiador
questão de distanciamento temporal, mas
do tempo presente são, grosso modo, os
fundamentalmente de método. mesmos de qualquer outro historiador. A
A dificuldade do acesso as fontes na produção de narrativas sobre eventos
História do tempo presente é um desafio real ao traumáticos encontra óbice nos limites da
historiador, que em países menos democráticos representação desses acontecimentos. O horror
enfrenta enormes obstáculos para acessar esses e a violência extrema que caracterizam o trauma
arquivos. Mesmo em países mais democráticos impedem, em alguma medida, que o mesmo seja
como EUA, Inglaterra e o Brasil o acesso a representado e apreendido de forma fidedigna
fontes mais recentes e sensíveis pode demorar 30 por aqueles que não viveram essa experiência. O
anos ou mais. Ainda assim, isso não impossibilita historiador do tempo presente encontra
o historiador de se debruçar sobre questões dificuldades não apenas em representar esses
hodiernas. As suas limitações nesse sentido se acontecimentos, mas também em lidar com a
dão pelo própria restrições de fontes e sendo questão das vítimas e dos perpetradores.
assim o próprio historiador deve saber as
Não há solução simples para esses
limitações da análise que está produzindo.
dilemas. Em última análise, cada historiador
Os arquivos são lugares de memória e deve buscar, dentro dos critérios metodológicos
são a principal ferramenta de trabalho do da disciplina, a melhor forma de produzir sua
historiador. Cotela (2002, p. 393-394) afirma que narrativa sobre esses eventos traumáticos. O

10 Wittfogel elaborou a ‘‘hipótese causal hídrica’’ sobre o surgimento das primeiras grandes civilizações e a conformação do
chamado ‘‘despotismo oriental’’. Wittfogel, inicialmente comunista, se tornou um proeminente conservador anticomunista no
pós-Segunda Guerra Mundial. Ele se usou dessa noção de ‘‘despotismo oriental’’ para explicar – e criticar – a situação na
União Soviética (LINTON, 2011).
11 Furet, inicialmente marxista, se tornou especialista em Revolução Francesa e sua posição conservadora refletia no seu
entendimento sobre essa revolução, revisando-a na perspectiva dos ‘‘totalitarismos’’ do século XX. Furet veio a considerar a
Revolução Francesa, especialmente o período jacobino, como totalitário e antidemocrático (DESAN, 2000).
203 EJ Perosa Jr. Diálogos, v.22, n.1, (2018), 190 - 204

fundamental é que essa narrativa não perca sua perspectivas y desafíos para um campo en
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