Você está na página 1de 3

Deve Fundamental de Pagar Imposto

Com este presente trabalho, procuramos trazer para o centro do debate jurídico-
constitucional os deveres comunitários, e em particular o dever fundamental de pagar
impostos. Num contexto de euforia na afirmação dos direitos do indivíduo e de relativo
esquecimento dos deveres comunitários, impõe-se o apelo ao estatuto constitucional do
indivíduo. Com efeito, apresentando-se este como um ser simultaneamente livre e
responsável, como uma pessoa, o seu estatuto convoca tanto os direitos como os deveres
fundamentais. Por isso, estes hão-de ser vistos como uma categoria jurídico constitucional
autónoma, embora integrando a matéria dos direitos fundamentais enquanto domínio
polarizador de todo o estatuto constitucional ou (sub)constituição do indivíduo. Passando
ao dever de pagar impostos, é de referir que este é um dever incontornável no estado
contemporâneo. Na verdade, este é, por força da própria constituição e por imperativos da
realidade, um estado fiscal, ou seja, um estado que tem nos impostos o seu suporte
financeiro fundamental. O que leva à rejeição tanto de um estado patrimonial, proprietário
ou empresarial, como foram, no essencial, o estado absoluto do iluminismo e, mais
recentemente, os estados socialistas, como de um estado suportado preferentemente por
tributos de natureza bilateral. Pois bem, perante um dever que aumenta em extensão e
intensidade, evidente na percentagem crescente do PIB que passa pelos impostos, exigem-
se barreiras constitucionais eficazes contra o poder tributário. Barreiras que não podem
limitar-se às exigências constitucionais de natureza formal, tradicionalmente centradas no
princípio da legalidade. Antes implicam a intervenção de princípios de carácter material
como os da igualdade fiscal aferida pela capacidade contributiva, da consideração fiscal da
família, do respeito pelos direitos fundamentais e do carácter social do estado, etc. Tais
princípios, compreensíveis no respeitante aos impostos com o objectivo principal de
obtenção de receitas, já não podem valer relativamente às medidas de natureza económica e
social adoptadas por via fiscal. Na verdade, esta instrumentalização extrafiscal do direito
dos impostos, na medida em que seja admissível, não pode deixar de guiar-se por
exigências mais flexíveis.
Na transição da análise dos deveres fundamentais em geral para o exame do dever
fundamental de pagar impostos em especial, Casalta Nabais ressalta a relevância de se
identificar que os Estados modernos são, majoritariamente, Estados Fiscais, ou seja, estados
cujas necessidades financeiras são essencialmente cobertas por impostos. O autor sustenta,
então, lição entre nós defendida por Ricardo Lobo Torres, no sentido de que o tributo é o
preço da liberdade. Para Nabais a ideia de estado fiscal parte do pressuposto,
frequentemente considerado ultrapassado ou superado com a instauração do estado social,
de que há uma separação essencial e irredutível entre estado e sociedade. Não uma
separação estanque ou absoluta (rectius, uma oposição total) como esta característica do
estado liberal oitocentista, mas sim uma separação que imponha que o estado se preocupe
fundamentalmente com a política e a sociedade (civil) se preocupe fundamentalmente com
a economia, sendo assim esta, no essencial, não estadual. E prossegue o autor afirmando
que a estadualidade fiscal significa assim uma separação fundamental entre estado e
economia e a consequente sustentação financeira daquele através da sua participação nas
receitas da economia produtiva pela via do imposto.
O tema dos deveres fundamentais foi pouco abordado pela doutrina nos últimos anos,
nitidamente sendo colocado num segundo plano para que mais energias fossem
direcionadas ao estudo dos direitos fundamentais. Tal preterimento não se justifica como
tentará se demonstrar nas linhas que seguirão, principalmente pelo fato que se não há um
necessária correlação fático-existencial entre direitos e deveres fundamentais, a
implementação concreta e garantia de um dependerá da observância do outro. Falar em
direitos fundamentais, como já demonstrara a teoria dos custos dos direitos, sem pensar
necessariamente em como proporcionar os meios necessários para que o Estado possa lhes
garantir, ao fim e ao cabo seria um mero exercício de retórica, onde a força normativa
da Constituição se transmutaria uma mera carta de (boas) intenções.
A despeito das ponderações acima, contudo, a verdade é que houve por parte dos estudiosos
maior simpatia para com o estudo dos direitos fundamentais. Fruto direto disso foram as
diversas constituições que emergiram durante o século XX, que como ponto em comum
poderia se apontar a afirmação e proteção dos direitos e liberdades fundamentais. Claro é
que tais direitos e liberdades, salvo alguns tidos por universais no atual contexto histórico-
social da humanidade, variaram de acordo com cada realidade albergada por tais estatutos.
Apesar de causar algum espanto tal constatação nos dias de hoje é de compreensível
explicação, qual seja a atenção deslocada quase que de forma integral para os direitos
fundamentais, esquecendo-se do necessário e benéfico aprofundamento dos deveres
fundamentais. O século passado foi marcado por duas grandes guerras, onde a segunda
servira de um grande aviso à humanidade dos riscos de se respeitar mais a autoridade do
Estado, através de seus poderes constituídos, à proteção do homem e de sua dignidade.
Preocupou-se mais com o contrato social em si (aspecto formal) que com a figura de um
dos contratantes, aquele que sempre se considerada o mais frágil, mas também justamente a
sua ratio essendi (aspecto material). Ocorrera, então, neste passado recente da humanidade
um período histórico dominado por deveres, ou melhor, por deveres sem direitos.
Uma resposta da sociedade, até certo ponto necessária, foi, então, a concentração de
esforços nos direitos fundamentais, dando-lhes uma nova função, qual seja a de servirem de
limites ao (s) poder (es) do Estado. Atormentados com as lições que lhes foram ensinadas
pela história recente, as maiores mentes deste ramo do saber acabaram por descuidar do
estudo dos deveres fundamentais, abstraindo, também e por inevitável, o relevante papel
que tais deveres desempenham na solidariedade, que fazem dos indivíduos seres não só
livres, mas também responsáveis.
Se por razões históricas os deveres fundamentais não foram objeto de maior destaque, ao se
operar a mudança desse contexto para outro onde a solidariedade e responsabilidade
comunitária ganharam força, percebeu-se a necessidade de se reconhecê-los categoria
jurídica constitucional própria. Uma categoria que, apesar disso, integra o domínio ou a
matéria dos direitos fundamentais, na medida em que este domínio ou esta matéria polariza
todo o estatuto (activo e passivo, os direitos e os deveres do indivíduo)
Os deveres fundamentais, justamente por não terem sido estudados por tanto tempo e nem
com tanto afinco como os direitos fundamentais, normalmente são confundidos com alguns
institutos que, apesar de lhes serem próximos, não possuem uma singela relação de espécie
e gênero ou de gradação. Como exemplo, poderíamos lembrar aqui a lição de José Casalta
Nabais, que nos ensinou que deveres fundamentais não são os deveres constitucionais
orgânicos ou organizatórios; nem os deveres correlativos aos direitos fundamentais, que são
a face passiva dos direitos fundamentais; ou as garantias institucionais; e muito menos os
limites (imanentes ou restrições) legislativas aos direitos fundamentais; e as tarefas
constitucionais stricto sensu, que possuem como destinatário exclusivo o estado.
O dever fundamental de pagar impostos é uma contrapartida antecedente e necessária à
manutenção do próprio estado, pois sem as receitas dos impostos, caso fossem estes pagos
ao alvitre dos cidadãos, os próprios direito fundamentais não existiriam além do papel.
Ressalte-se que estamos aqui nos referindo a tão somente impostos pelos motivos acima
explicitados, ou seja, não estamos aqui fazendo qualquer referência a uma impensável
inexigibilidade de outras espécies que não os impostos. Em outras palavras, o dever de
pagar uma taxa ou contribuição, vez que foram instituídas respeitando todo o sistema
constitucional, não se confunde com o dever fundamental de pagar impostos, por este se
respaldar não somente em questões formais, mas, sim, por razões de ordens políticas.
Podemos perceber, então, que o dever fundamental de pagar impostos é o modo de se
efetivar os direitos previstos na Carta Constitucional, sejam tais direitos de cunho
prestacionais ou não, pois, apesar de existirem importantes vozes na doutrina no sentido de
reconhecer explicitamente a incidência de tal dever aos direitos prestacionais, certo é que
todos possuem um custo a ser arcado, não importando se maior ou menor a depender da
geração de cada direito. O pagamento de impostos é atribuído a todos os sujeitos que
possuam capacidade contributiva para arcar com esse o dever, possibilitando a realização
dos deveres do estado em benefício de todos.
Disso tudo, pode-se concluir que a tributação não constitui um fim em si mesmo, ou seja,
não é a razão de ser do próprio estado que ele exista simplesmente para tributar seus
indivíduos. Pelo contrário, o que se percebe é que a tributação é um meio existente, dentre
outros, para que o estado preste aos indivíduos aqueles direitos que lhes foram outorgados
pela constituição. Importa deixar claro que, num estado fiscal, malgrado existam outros
meios idôneos para angariar recursos para os cofres públicos, não resta dúvida que a
tributação é principal delas.

Você também pode gostar