Você está na página 1de 10

#ELENÃO #ELENUNCA: memes e

reconhecimento

11 de outubro de 2019 Dandara Bolada

https://youtu.be/-9O91aH5rzw

O link do vídeo acima apresenta uma paródia da música Bella


Ciao, famosa canção popular que se tornou um hino da
resistência italiana contra o fascismo de Mussolini e das tropas
nazistas. De lá pra cá, a canção circulou por manifestações de
trabalhadores e estudantes na Itália, Buenos Aires, Istambul e
Grécia01, reforçando sua popularidade ao tornar-se o hino dos
protagonistas da série La Casa de Papel, distribuída pela rede de
streaming Netflix. Sua popularidade, aqui no Brasil cresceu junto
com o movimento Mulheres Contra Bolsonaro, que surge como
uma ação coletiva conectada, envolta por memes que mobilizam
uma ação popular. A luta das mulheres brasileiras foi um marco
das Eleições de 2018, levando milhares de simpatizantes da causa
#EleNão para as ruas, que entoavam a canção em uma tentativa
de alertar sobre os perigos da candidatura de Jair Bolsonaro (PSL).

Bolsonaro teve uma campanha atípica, com pouco tempo de


propaganda na televisão, e um redirecionamento estratégico após
o atentado sofrido pelo candidato, que o preveniu de enfrentar os
demais concorrentes ao cargo nos debates televisivos, e, ao
mesmo tempo, garantiu a ele uma cobertura espontânea nas
emissoras de televisão, que noticiavam sua recuperação. Some-se
a isso a campanha fortemente polarizada nas mídias sociais. Em
grande medida, sua popularidade conjugou um clima de
animosidade e uma forte campanha negativa em relação ao
Partido dos Trabalhadores, e suas promessas de campanha
envolviam a proposta de um governo liberal na economia e
conservador nos costumes, sendo identificado como uma ameaça
aos direitos de diferentes minorias.

O movimento Mulheres Contra Bolsonaro, articulou-se por meio


de um grupo fechado no Facebook para reunir mulheres contra
Jair Bolsonaro e ganhou notoriedade em setembro de 2018
quando, em uma invasão da oposição, seu nome foi alterado e
diversas usuárias acabaram saindo do espaço. Esse movimento
gerou a criação de diversos outros grupos contra o candidato e
manifestações nas ruas das principais capitais do Brasil e do
mundo, articuladas por meio da hashtag #EleNão, e variantes
como #EleNunca, que, lidas como memes que promovem uma
espécie ação de base (grassroots), deram origem a um movimento
de crítica à candidatura de Bolsonaro. As hashtags foram adotadas
por anônimos, celebridades e, até mesmo, membros de outras
minorias, como o movimento LGBTQ+, indígenas e quilombolas,
que expressavam, por meio de depoimentos pessoais, suas razões
para não votar em Jair Bolsonaro. A partir dessas hashtags,
refletimos sobre como os memes podem servir como estratégias
que promovem uma ação popular e observamos seus principais
usos e apropriações. O #EleNão pode ser caracterizado também
como um evento, na esteira de exemplos semelhantes, que
propõem quadros de ação pessoal.02.

O crescimento de lutas por direitos civis, por meio dos


movimentos sociais, ganhou força na década de 60, quando
manifestações em torno do mundo, passam a exigir não apenas
reconhecimento de direitos mas maior representatividade política.
Os movimentos negro e feminista, que surgem com força nessa
época, marcam o que seria o início de uma revolução em
diferentes nichos marginalizados. Nas décadas seguintes, minorias
como os indígenas, quilombolas e LGBTQ+ performam protestos
demandando inclusão.

As recentes formas de mobilização e organização social são


herdeiras dos protestos no Mundo Árabe e na Europa, e buscam
maneiras de aprofundar o debate sobre democracia, expandindo
e ampliando a esfera pública ao ambiente online. Nesse meio,
cidadãos comprometidos podem se juntar às lutas e projetos, em
diferentes lugares do mundo. O #OccupyWallStreet é um dos
primeiros movimentos a evidenciar como nova arena as mídias
sociais, gerando um espaço híbrido de conversação e mobilização
social. Em ambos os casos, as articulações online deram suporte à
rede de pessoas que se reuniram e ocuparam espaços públicos.

O compartilhamento de experiências pessoais por meio de


memes de ação popular procura engajar os usuários em ações
políticas através do compartilhamento de experiências individuais.
A partir dessa ótica, o meme de internet pode servir como
articulador de debates com vistas ao reconhecimento de atores
ou grupos sub-representados.

Limor Shifman03 afirma que os memes podem ser definidos como


conteúdos da cultura popular que, circulados, imitados ou
transformados pelos usuários, criam uma experiência cultural
compartilhada. Dessa forma, sua sugestão é de que olhemos para
o fenômeno como um grupo de itens que são criados com
consciência mútua e que compartilham características em comum.

Os memes compreendidos pela campanha #EleNão assumem


diferentes formatos, das hashtags (sendo as principais
engajadoras da campanha a #EleNão e #EleNunca) às imagens e
vídeos, e compõem paródias a partir de outros textos (como a
paródia à canção Bella Ciao, que tornou-se o hino do movimento
nas ruas). Seu conteúdo varia de acordo com sua forma, mas
identificamos muitos casos de depoimentos e desafios entre
celebridades a favor do movimento, imagens persuasivas com
frases ditas por Bolsonaro que argumentam contra sua
capacidade de governança e depoimentos em texto, que
apresentavam os motivos pessoais de cada mulher para não votar
“nele, não”, acompanhados da hashtag da campanha. 04.

Apesar de serem conhecidos por explorarem o uso do humor, os


memes de internet podem divergir nesse sentido, especialmente
quando falamos de temáticas políticas, que podem ser divididas
dentro das três categorias não excludentes de: memes
persuasivos, memes de discussão pública e memes de ação
popular.

Os memes persuasivos são estrategicamente construídos para


serem viralizados, geralmente são imagens bem trabalhadas, que
têm intenção de convencer e informar, como no caso dos memes
com frases racistas, misóginas ou xenófobas do próprio Bolsonaro
ou com frases no estilo call-to-actions (chamadas para ações). Os
memes de discussão pública são os que são tidos como mais
humorísticos, dentre os exemplos, sendo uma forma do usuário
fazer e compartilhar comentários sobre política e se engajar em
discussões públicas, esses memes são caricatos e geralmente
brincam com eventos e situações capturadas e brincam com
momentos ou frases ditas no meio político. No caso do #EleNão,
vimos alguns desses memes, por exemplo, desenvolvendo piadas
a partir do posicionamento conservador do candidato.
Os memes de ação popular são caracterizados por nascerem de
um sentimento coletivo ou mobilização por uma causa e são mais
comumente encontrados na militância política. Eles também se
utilizam, em muitos casos, do depoimento pessoal como forma de
ação coletiva e, por isso, podem ser definidos como dinâmicas de
ações coletivas mediadas que, isoladamente, mal podem ser
reconhecidas como memes.05 Os memes de ação popular do
#EleNão agiram principalmente através de depoimentos pessoais,
que acompanhados da hashtag, relatam parte da história da
pessoa e seus motivos pessoais para não eleger o candidato.
Trata-se de formato que se popularizou dentre as manifestações
online de cunho feminista.

A campanha #MeuAmigoSecreto surgiu em 2015, próxima ao


período de festas de fim de ano. A hashtag acompanhava relatos
que contavam casos de amigos, familiares e companheiros que
cometiam atos machistas, misóginos e/ou homofóbicos no dia-a-
dia. Já a hashtag #PrimeiroAssédio foi lançada pelo coletivo
feminista Think Olga, após diversos casos de assédio direcionados
a uma participante, de apenas 12 anos, do programa Masterchef
Júnior. Na ocasião, o coletivo incentivou, a partir da hashtag, que
mulheres dessem seu relato de como e quando foi o seu primeiro
caso de assédio. Como exemplo de memes de ação popular na
luta de povos indígenas, temos casos como Somos Todos Guarani
Kaiowá, tribo que vive um genocídio de sua linhagem e, como
forma de alertar a respeito desse extermínio que vem
acontecendo, usuários de sites de redes sociais passaram a inserir
no campo do sobrenome o nome da tribo Guarani Kaiowá e
também no nicho LGBTQ+, com ações como It Gets Better,
investigado por GAL et al (2016)06.

No caso do meme It Gets Better, há uma matriz de respostas


meméticas que formula uma identidade coletiva, que surge a
partir da produção de vídeos com relatos pessoais de pessoas
LGBTQ+ a respeito de como as coisas melhoram (do termo em
inglês It Gets Better) com o passar dos anos e conforme vão se
aproximando de sua comunidade.

Para Gal et al. a formação da identidade coletiva é um processo


de produção contínua de performances e validação de valores,
códigos e normas através do discurso. Seu argumento é de que a
inclusão ou exclusão de um indivíduo em uma comunidade pode
definir sua posição social e, também, ajudar na construção do
coletivo. E apontam as tecnologias digitais como facilitadores na
acessibilidade das minorias diante do discurso público. Nesse
sentido, as mídias digitais possibilitam a reunião de grupos em
esferas alternativas, que criam narrativas que “se desviam da linha
hegemônica dominante”.07 Essa mídia, chamada por eles de mídia
participativa, aumenta as possibilidades de representações de
identidade diversificadas.

Apontamentos como esse são importantes para nos lembrar de


que forma os memes servem como ferramenta de negociação
entre as normas sociais e sua consolidação. O processo pelo qual
normas sociais são consolidadas é caracterizado pelo padrão de
evolução memética. Dessa forma, mesmo que memes sejam peças
sem um autor definido, que circulam pela internet e se
estabelecem dentro de certas comunidades virtuais, em muitos
casos, refletem o background social vivido por quem o criou. Em
outros casos, os memes podem ser usados como forma de
subversão, criando um discurso polivocal que expressa múltiplos
viéses ideológicos.

O conceito de reconhecimento tem sido amplamente discutido ao


longo das últimas décadas. Segundo a teoria de reconhecimento
de Taylor08, é possível perceber algumas correntes políticas, que
giram em torno da exigência de reconhecimento, advinda das
forças propulsoras dos movimentos políticos, em favor de grupos
minoritários, como o feminismo. A ideia de que nossa identidade
é moldada por parte do reconhecimento (ou a ausência dele),
pode gerar uma distorção, caso as pessoas ou a sociedade lhes
devolvam um quadro desmerecedor ou desprezível. Taylor parte
assim do não-reconhecimento para explicar como as formas de
opressão podem aprisionar e causar danos a alguém que esteja
envolvido numa modalidade distorcida ou redutora. Esse não-
reconhecimento, pode causar às vítimas ódio por si mesmas e, por
isso, devemos conceder o devido reconhecimento às pessoas.

Taylor argumenta que a democracia introduz a política do


reconhecimento igualitário, que assume formas de exigências na
igualdade de status social entre as diferentes culturas e gêneros.
Esse argumento é interessante pois identifica que a descoberta da
identidade passa pela negociação por meio do diálogo com o
outro. De forma semelhante, os memes de internet, em especial
os de ação popular, operam dentro das comunidades virtuais por
onde circulam informações que são reconhecidas por um grupo
minoritário que é afetado pela causa ou assunto.

As reivindicações por direitos de minorias, no ambiente online,


reavaliam estigmas e marginalizações. Os memes surgem como
canal de articulação dessa participação na dimensão sociocultural,
agindo como ferramenta discursiva dentro do meio virtual.

Grupos ou indivíduos sub-representados ou desrespeitados


dentro do âmbito social, que buscam por reconhecimento,
encontram nos memes uma ferramenta de potencial ainda pouco
explorado porém com exemplos significativos de mobilizações,
por todo o mundo.

Apoiadores de Bolsonaro relacionam o movimento Mulheres


Contra Bolsonaro a um crescimento na intenção de voto que o
candidato teve durante o segundo turno de campanha, travado
contra Fernando Haddad (PT). Posto desta forma, #EleSim teria
sido uma ação mais eficiente do que #EleNão. Entretanto, o que
procuramos levantar é a defesa de que o movimento e os memes
vinculados a ele ganharam notoriedade como estratégia da luta
democrática por direitos, com vistas a agendar a opinião pública.

O meme, nesse sentido, tem sua eficácia evidenciada,


independentemente do resultado final das eleições, pois
demonstra como o engajamento popular se estende para o
modos de expressão da vida cotidiana, e, ao mesmo tempo,
funciona como crítica diante da injustiça social de gênero,
operando como forma de transgressão do sujeito político.09 Um
meme de ação popular pode, dessa forma, agir e ter impactos
positivos – como a abertura de diálogos entre grupos, mesmo que
não gere resultado imediato no cenário político-eleitoral.
O movimento Mulheres Contra Bolsonaro, mais do que se colocar
contra um candidato por meio de manifestações públicas, gerou
um ambiente de circulação informacional e constituiu uma rede
de sujeitos políticos que se mantém ativa, fazendo oposição ao
governo, por exemplo, disseminando memes informativos com o
objetivo de combater a disseminação de fake news, levantar
debates, e compartilhar seus relatos pessoais de forma a lutar
contra a opressão e o não-reconhecimento do Estado.

Você também pode gostar