Você está na página 1de 5

Curso Integral

O estatuto da psicologia

Curso ministrado no
Instituto de Psicologia
Universidade de São Paulo (2007)

Prof. Vladimir Safatle


O estatuto da psicologia
Aula 1

Uma questão de método e de objeto

“É inevitável que, ao propor-se como teoria geral da conduta, a psicologia faça sua alguma
idéia de homem. Faz-se necessário então permitir à filosofia perguntar à psicologia de onde
ela retira tal idéia e se não seria, no fundo, de alguma filosofia”1. Esta questão de método
enunciada por Georges Canguilhem em um texto célebre a respeito dos fundamentos
epistemológicos da psicologia servirá de base para o desenvolvimento de nosso curso.
Trata-se aqui de apresentar uma certa tradição de reflexões sobre o estatuto
epistêmico da psicologia, da psicanálise e das ciências médicas que se desenvolveu em solo
francês principalmente entre os anos vinte e sessenta do século passado. Tal tradição,
embora não seja, no sentido forte do termo, uma Escola (já que era composta por
pensadores cujos programas de pesquisa eram bastante autônomos entre si), foi marcada
por uma partilha de problemas e de dispositivos de crítica determinantes para a constituição
de um modo particular de encaminhamento de questões derivadas da tentativa em
fundamentar práticas clínicas. Pois no interior desta tradição encontraremos a defesa de que
as práticas clínicas, principalmente aquelas próprias aos fatos psicológicos, seriam
dependentes, de maneira fundamental, de decisões prévias e muitas vezes não tematizadas a
respeito dos padrões de racionalidade da observação, da intervenção terapêutica e,
principalmente, da definição do objeto próprio à psicologia. Neste sentido, seguindo a
afirmação de Canguilhem, a reflexão epistêmica sobre a psicologia seria, necessariamente,
uma reflexão sobre a maneira com que uma certa antropologia filosófica guiaria, de forma
insidiosa, a racionalidade da direção do tratamento. Como se a psicologia fosse, a todo
momento, remetida a uma raiz metafísica a respeito da qual ela não seria capaz de se livrar.
Raiz metafísica que nos colocaria diante da necessidade em responder uma pergunta maior,
a saber: uma prática clínica pode abstrair de pôr, em seu horizonte de racionalidade, uma
concepção de sujeito que se desdobre em uma teoria da conduta racional, base da definição
do que se define como patologia mental ?
A tradição de reflexão a qual me refiro nunca deixou pois de colocar, à clínica dos
fatos psicológicos, duas questões maiores: o que fundamenta seu método de observação,de
intervenção e o que particulariza seu objeto, ou seja, em que condições podemos dizer
estarmos diante de um fato psicológico que pode ser reportado a um sujeito? Uma questão
de método e uma questão vinculada ao estatuto de seus objetos que converge para um
problema central que guiará o desenvolvimento do nosso curso, a saber; qual o estatuto da
objetividade dos fenômenos subjetivos? Seria ele dependente da objetividade própria aos
fenômenos físicos e orgânicos? Ou ainda: há, de fato, algo como “fenômenos subjetivos”
ou eles nada mais são do que fenômenos orgânicos descritos em um vocabulário
inflacionado do ponto de vista metafísico? Como dirá Michel Foucault, na primeira frase
que abre seu primeiro livro, Doença mental e psicologia: “Duas questões se colocam: sob
quais condições pode-se falar de doença no domínio psicológico? Quais relações é possível
estabelecer entre os fatos da patologia mental e os da patologia orgânica?”2. Estas questões

1
CANGHUILHEM, Georges, Qu´est ce que la psychologie?, p. 367
2
FOUCAULT, Michel; Maladie mentale et psychologia, p. 1
estão no horizonte de toda e qualquer reflexão epistêmica sobre as práticas clínicas de fatos
psicológicos.
Alguém que ouve questões desta natureza, poderia tentar esvaziá-las afirmando que
aquele que se interessa pela clínica não precisa perder seu tempo tentando resolver
intrincadas questões filosóficas sobre a essência do sujeito, assim como questões
epistemológicas a respeito da objetividade de fenômenos subjetivos. Pois a clínica mediria
sua correção a partir da eficácia em relação à cura do sofrimento. Esta profissão de fé da
soberania da clínica nos lembraria: para além de toda e qualquer questão de método e de
definição de objeto, a clínica está sempre diante de uma realidade inabalável, a saber, o
sofrimento do paciente. Minorar o sofrimento é nossa função e o único critério de
orientação da clínica. Um pouco como se a eficácia terapêutica em relação a uma categoria
fenomênica extremamente normativa como o “sofrimento” fosse condição suficiente para
assegurar a validade de dispositivos clínicos.
Lembremos apenas o que tal perspectiva tem de ideológica. Pois é ideológico todo
sistema de saber e de orientação da praxis que procura naturalizar seus dispositivos de
justificação como se estivéssemos diante de “fatos que falam por si mesmo”. Neste sentido,
podemos perguntar: afinal, o sofrimento é um “fato que fala por si mesmo” ou é um
fenômeno que é levado a falar no interior de contextos sócio-históricos determinados?
Podemos, por exemplo, tirar as conseqüências de afirmações como esta, de Foucault:
“Desde o século XVIII, a medicina tem tendência a narrar sua própria história como se o
leito dos doentes tivesse sido sempre um lugar de experiências constante e estável, em
oposição às teorias e sistemas que teriam estado em permanente mudança e mascarado, sob
sua especulação, a pureza da evidência clínica”. Na verdade, tudo se passaria como se : “Na
aurora da Humanidade, antes de toda crença vã, antes de todo sistema, a medicina residia
em uma relação imediata do sofrimento com aquilo que alivia”3. Tal pressuposição de
imediaticidade, no entanto, esquece como “o que nos faz sofrer” muda constantemente de
configuração. Poderíamos tentar dizer que a experiência da dor é algo que ancora o
sofrimento em um solo inquestionável e indiferente a contextos. Mas, novamente, não seria
difícil lembrar como não há nenhuma relação imediata entre a dor física e o desprazer de
um sofrimento vivenciado como doença que leva sujeitos a se submeterem à clínica. Basta
lembrar aqui das palavras de um “psicólogo”, Nietzsche: “Só a grande dor, esta longa e
lenta dor na qual queimamos como madeira verde nos obriga, a nós filósofos, a descer em
nossas profundezas e a nos desfazer de toda confiança (...) Duvido que tal dor nos deixe
melhor, mais eu sei que ela nos aprofunda”4
Sendo assim, se aceitarmos a inconsistência de um discurso sobre a soberania da
clínica que procure se legitimar através de uma pretensa imediaticidade do sofrimento,
então poderemos começar a medir a importância de questões vinculadas ao método e a
definição do objeto da clínica dos fatos psicológicos.
No interior da tradição que estudaremos, as respostas a tais questões foram distintas
e nem sempre convergentes. No entanto, elas constituirão um sistema de relações no qual
respostas posteriores nunca deixarão de fazer referência, mesmo que de maneira
relativamente implícita, as respostas precedentes. É a este sistema de relações dialógicas
onde a resolução de um problema é sempre, ao mesmo tempo, posição em relação a um
modo precedente de enunciar tal problema, que damos o nome de “tradição”.

3
FOUCAULT, O nascimento da clínica, pp. 59-60
4
NIETZSCHE, A gaia ciência - introdução
Georges Politzer, Maurice Merleau-Ponty, Georges Canguilhem, Michel Foucault,
Jacques Lacan. Todos estes nomes fazem parte de uma tradição de reflexão sobre a clínica
dos fatos psicológicos que marcou, de maneira decisiva, o cenário intelectual francês. É ela
que será nosso objeto de estudos neste semestre.
Em comum, tais nomes partilham uma base teórica que parte, em maior ou menos
grau, da sensibilidade às questões epistêmicas postas à clínica pelo advento da psicanálise
freudiana e da Gestalttheorie (e, em alguns casos, pelo behaviourismo). Sensibilidade que
os levam a questionar todo privilégio dado à noções como vida interior e introspecção, a
criticar toda perspectiva atomística na compreensão dos fatos psicológicos e todo
materialismo reducionista, isto em prol da defesa do centralidade das relações entre
organismo e meio ambiente, entre sujeito e meio social. A Gestalttheorie teria demonstrado
como o fato psicológico não era a simples percepção de dados sensoriais, mas um ato de
conhecimento que implica a atualização de estruturas globais de orientação da conduta, o
que, como veremos, significa deslocar o objeto de preocupação da psicologia, da análise
atomizada das funções intencionais (como, por exemplo, atenção, memória, emoção,
sentimento, volição etc.) para as estruturas que determinam o modo global de relação entre
indivíduo e meio. A psicanálise, por sua vez, teria sido responsável não apenas pela
desmedicalização das práticas clínicas através da compreensão da força performativa da
fala e da auto-reflexão, mas principalmente pela determinação dos sintomas como modos
de manifestação de demandas sociais de reconhecimento que revelam processos de
formação da história do desejo de um sujeito com suas representações maiores de confronto
com instâncias de socialização. Como se a psicanálise exigisse a submissão de toda direção
do tratamento a uma elaboração de processos de formação subjetiva.
Por outro lado, todos eles estão também engajados em um combate sem tréguas
contra o que aparece como uma falha epistêmica aberta no coração da clínica dos fatos
psicológicos. Como dirá Politzer, em um acento aceito por todos eles: “Sabemos que a
história da psicologia há cinqüenta anos é apenas uma epopéia de desilusões e que, ainda
hoje, novos programas são lançados todos os dias para fixar as esperanças novamente
disponíveis”5. Canguilhem continuará com a mesma verve ao dizer: “Na verdade, vários
trabalhos de psicologia dão a impressão de misturar, a uma filosofia sem rigor, uma ética
sem exigência e uma medicina sem controle”6.
Esta falha epistêmica estaria vinculada, principalmente, a uma herança dualista que
ainda guiaria os desenvolvimentos da psicologia. Ou seja a definição do objeto da
psicologia, assim como seu desenvolvimento, estariam ainda marcados por um certo
“dualismo cartesiano” a respeito da relação entre mente e corpo (dualismo que, diga-se de
passagem, não é completamente imputável a Descartes, como veremos em outras aulas).
Isto teria feito com que o desenvolvimento da psicologia oscilasse, indefinidamente, entre
um certo privilégio da liberdade da espontaneidade da consciência a despeito da
causalidade orgânica, isto através de um subjetivismo assentado no uso clínico de noções
como “instrospecção”, “interioridade”, “intuição” e uma acentuação inversa vinculada á
pura essencialidade da causalidade orgânica, isto através de um materialismo reducionista
para o qual todo fato psicológico deve ser reduzido a fatos orgânicos. Diríamos atualmente
que tal perspectiva materialista vê todo estado mental apenas como uma maneira mais
confusa de nomear estados cerebrais e processos físicos, o que, no limite, nos levaria a

5
POLITZER, Georges; Critique des fondements de la psychologie, p. 2
6
CANGUILHEM, idem, p. 366
questionar a própria realidade de uma noção como a de “consciência”. Limite este que foi
transposto por alguns nomes maiores da filosofia anglo-saxã da mente, como Daniel
Dennet.
Mas, para esta tradição de reflexão sobre a clínica dos fatos psicológicos que será
nosso objeto de estudos, tratava-se de recuperar uma perspectiva monista na definição dos
fenômenos vinculados à subjetividade, mas sem que isto implicasse em redução
materialista. No entanto, viabilizar tal monismo não-reducionista significava problematizar
a própria concepção de sujeito pressuposto pelas práticas clínicas a fim de se livrar do peso
do dualismo. Por outro lado, tratava-se também de determinar a especificidade das
determinações causais em operação na constituição dos fatos psicológicos, em especial na
definição do que estaria em jogo em uma “doença mental”.
Assim, duas vias complementares se abriam para a reflexão epistêmica sobre a
clínica. A primeira dizia respeito à crítica das figuras do sujeito (ou dos modos de negação
do sujeito) pressupostas pelos métodos e direções do tratamento de práticas clínicas
hegemônicas. Crítica que poderia chegar ao desvelamento de como, através da
pressuposição de certas estruturas da subjetividade como horizonte da clínica, a psicologia
mostrava que sua essência era ser uma “prática disciplinar” que visava, na verdade, formar
subjetividades através da constituição de quadros de patologias Maneira de submeter a
reflexão epistemológica a uma crítica do poder, crítica que visava, principalmente,
demonstrar como as exigências de racionalidade podem ser invertidas em processos de
dominação. Michel Foucault, principalmente através de seus trabalhos que visavam
demonstrar como a razão determinava e era solidária do seu Outro (a loucura) é um nome
maior desta tendência. Lembremos, por exemplo, do sentido de sua afirmação: “Há uma
boa razão para que a psicologia nunca possa dominar a loucura; é que a psicologia só foi
possível no nosso mundo uma vez dominada a loucura e já excluída do drama”7. Ou seja, a
experiência trágica e dramática da loucura, experiência no interior da qual a própria partilha
entre razão e loucura advém nebulosa, não é objeto da psicologia porque a psicologia é
solidária de uma determinação da loucura através de processos de constituição de estruturas
nosográficas que são, na verdade, fenômenos da ordem das práticas de dominação. Como
se a verdadeira mola do poder não estivesse diretamente vinculada à determinação positiva
de padrões de conduta, mas à gestão dos modos de ruptura da norma racional. Uma
perspectiva que, de uma certa forma, encontramos também em Jacques Lacan, quando este
afirma: “A psicologia é veículo de ideais: nela, a psique não representa mais do que o
patrocínio que a faz qualificar de acadêmica. O ideal é servo da sociedade”8. Ideal que se
manifesta mais através da determinação do patológico do que através da enunciação da
norma.
Tais críticas a respeito daquilo que forneceria os fundamentos de decisões clínicas
sobre perspectivas de orientação de dispositivos de intervenção devem, no entanto, abrir
espaço para um conceito positivo de razão que fornecer fundamentos renovados para a
clínica dos fatos psicológicos. Veremos como cada um dos nomes que estudaremos tentou
dar conta desta questão, seja negando a própria autonomia da clínica através de um recurso
a alguma forma de guinada ética (Foucault), seja através da reconstrução da clínica sobre
novas bases fornecidas pela psicanálise (Lacan), por uma reavaliação da medicina
(Canguilhem) ou por gêneros de hermenêutica (Politzer).

7
FOUCAULT, Maladie mentale e psychologie, p. 104
8
LACAN, Ecrits, p. 832

Você também pode gostar