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(Des)Confiança Pública na Ciência e Tecnologia após desastres sociotécnicos: o


caso da barragem de Brumadinho

Conference Paper · July 2021

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Tiago Ribeiro Duarte


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Comitê de Pesquisa 12 - Sociologia da Ciência e da Tecnologia

(Des)Confiança Pública na Ciência e


Tecnologia após desastres sociotécnicos:
o caso da barragem de Brumadinho

Tiago Ribeiro Duarte – Universidade de Brasília


Marina Oliveira Silva – Universidade de Brasília

Financiamento: FAP-DF (Bolsa Pibic) e Universidade de


Brasília (Edital DPI 04/2019)
Resumo: Este trabalho tem por objetivo tencionar a tese da sociedade de risco
apresentada inicialmente por Ulrich Beck e posteriormente reverberada por
estudiosas dos Estudos Sociais das Ciências e Tecnologias. Nosso interesse
recai em duas partes específicas desta tese: a) as tecnociências teriam se
tornado produtoras de risco na modernidade e são publicamente percebidas
como tal; b) a percepção pública desses riscos leva a uma perda de confiança
nas ciências e tecnologias. Utilizamos um estudo de caso realizado em
Brumadinho, MG, após um desastre sociotécnico de larga escala, a saber, a
ruptura da Barragem da Mina do Córrego do Feijão, ocorrida em 2019, e que
causou 270 mortes e severos danos ambientais. A partir de entrevistas
qualitativas realizadas com moradoras da cidade, argumentamos que, em larga
medida, no contexto pós-desastre, prevalece uma percepção pública positiva
das ciências e tecnologias, as quais são vistas como neutras e dissociadas dos
riscos, que seriam resultado da ação humana. Além disso, o desastre não
gerou desconfiança generalizada nas tecnociências, mas apenas em um
modelo específico de barragens para a mineração que passou a ser
publicamente percebido como ultrapassado e pouco seguro.

Introdução

Nos anos 1980, Beck (1986/2010), em um ensaio teórico, lançou sua


célebre tese da sociedade de risco. Segundo ele, a modernidade estaria, na
segunda metade do século XX, passando por uma transição. A sociedade
industrial, que lidava fundamentalmente com o problema da escassez de
recursos, estaria se transformando na sociedade de risco, na qual os riscos
não seriam mais advindos de forças da natureza externas à sociedade, mas
seriam produzidos pelo próprio mundo industrial. Nesse cenário, as ciências e
tecnologias não seriam mais somente catalisadoras do desenvolvimento e
progresso social, tendo se tornado produtoras de risco, como é o caso das
indústrias nucleares. Como consequência, a opinião pública, antes largamente
favorável às ciências e tecnologias, teria começado a mudar, emergindo
percepções negativas sobre estas.

A tese da sociedade de risco teve impactos significativos nos Estudos


Sociais das Ciências e Tecnologias (ESCT). Como veremos nos exemplos à
seguir, diversos autores reverberaram as ideias de Beck. Funtowicz e Ravetz
(1997), por exemplo, ao introduzirem a noção de Ciência Pós-Normal,
argumentaram, baseados nos estudos de Latour (1988) sobre Pasteur, que na
sociedade industrial “A natureza passou a ser abordada não mais como algo
selvagem e ameaçador, mas, sim, passível de ser domesticado e tornado útil
para a humanidade através da ciência” (p. 221). Todavia, o resultado da
consolidação das ciências na modernidade é que

“a expertise científica conduziu-nos a dilemas políticos que ela não consegue resolver
sozinha. Não é só o controle e a previsibilidade que perdemos. Agora nos deparamos com
radical incerteza, com a ignorância e com dúvidas éticas no âmago das questões que
dizem respeito à política científica” (p. 221-222).

Jasanoff também compartilha do diagnóstico de Beck sobre a sociedade de


risco. Em seu célebre texto sobre as tecnologias da humildade (Jasanoff,
2019), ao discutir uma série de desastres tecnocientíficos ocorridos entre o final
do século XX e o início do século XXI, ela aponta que

“Ocorridos em diferentes épocas e em diferentes contextos políticos, esses eventos


[desastres sociotécnicos] ainda assim serviram de aviso coletivo de que as pretensões
humanas de controle sobre os sistemas de tecnológicos precisam de uma séria
reavaliação” (p. 566).

A autora prossegue, baseada em Beck, afirmando que desastres sociotécnicos


que vinham sendo tratados por analistas estadunidenses como falhas
humanas, poderiam ser mais bem compreendidos se considerarmos que “o
risco é parte da condição humana moderna, costurado no próprio tecido do
progresso” (p. 566-567). Nesse sentido, os sistemas sociotécnicos seriam
marcados pelo “desconhecido, o incerto, o ambíguo e o incontrolável” (p. 569).
Irwin e Michael (2003, p. ix) também reverberam a percepção de que entramos
em uma sociedade de risco:

“This is an exciting but also an undoubtedly challenging time for science and society. On the
one hand, new developments in science and technology – whether the human genome
project, medical therapies or advances in computing and information technology – promise
a bright and prosperous future. On the other, the emergence of risks, ethical concerns and
environmental problems – including mad cow disease (BSE), genetically modified foods and
global warming – reminds us of the dangers ahead. Recent scientific and technological
innovations have both opened up new social possibilities and drawn public attention to
inevitable uncertainties and limitations within our scientific knowledge”.

Por fim, Collins e Evans (2009, p. 2) também argumentaram em linha similar à


de Beck:

“O final do século foi marcado por uma crescentes desconfiança do público com relação à
ciência em decorrência de falhas claramente visíveis de tecnologias de ponta e dos
desastres associados a elas, da manifesta politização dos debates sobre o progresso
científico em áreas relacionadas à biologia e da cada vez mais evidente falta de certeza
entre os cientistas no tocante ao legado da fissão nuclear e dos riscos colocados pelas
novas práticas agrícolas”.

Nestes textos há uma narrativa que entrelaça riscos sociotécnicos e


desconfiança pública nas ciências e tecnologias. Estaríamos vivendo em uma
época em que as tecnociências teriam começado a ser percebidas pelos
públicos não mais somente como promotoras do desenvolvimento social e do
progresso humano, mas como geradoras de riscos, como no caso das
indústrias nucleares, mudanças climáticas, biotecnologias, agrotóxicos, dentre
outros. Ao mesmo tempo, teria crescido a desconfiança com relação a
cientistas como provedoras do melhor aconselhamento em questões
relacionadas às ciências e tecnologias. A solução encontrada por governos,
instituições científicas e estimulada pelo próprio Beck e por estudiosas do
campo ESCT, particularmente de países do Norte Europeu, foi promover a
ampliação do engajamento público nas ciências e tecnologias, seja via
participação em processos decisórios, isto é, por meio da realização de
consultas públicas de diversos formatos (Rowe e Frewer, 2005), seja via
engajamento com a própria produção de conhecimento científico e tecnológico,
incluindo iniciativas como as ciências cidadãs e lojas de ciência (Irwin, 1998;
Allen, 2018; Kasperowski e Hillman, 2018). O engajamento público teria como
objetivo tanto reestabelecer a confiança perdida como estabelecer um novo
“contrato” entre as ciências, tecnologias e seus públicos de modo que aquelas
viessem a satisfazer os anseios e interesses destes. De um lado, portanto,
haveria um interesse em reestabelecer a legitimidade das ciências e
tecnologias (Collins e Evans, 2002, 2007). De outro, em estabelecer novas
bases de interação entre as ciências e sociedades com o intuito de promover o
bem público (Jasanoff, 2019).

Essa narrativa vem sendo criticada em anos recentes por estudiosos dos
ESCT que a consideram eurocêntrica (Guivant e Macnaghten, 2011; Reyes-
Galindo, 2017). Um estudo comparativo realizado em 2009 que utilizou grupos
focais para investigar a percepção pública de nanotecnologias no Brasil e no
Reino Unido chegou a resultados bastante distintos nesses países
(Macnaughten e Guivant, 2011). Entre os participantes brasileiros imperava
visões positivas a respeito das nanotecnologias, as quais eram percebidas
como solução para problemas societários e como rota para o progresso. Por
outro lado, entre os britânicos emergiram visões pessimistas, que envolviam a
possibilidade das nanotecnologias trazerem dilemas sociais profundos, como,
por exemplo, a intensificação de desigualdades e do individualismo, associados
a uma sensação de impotência. Nesse sentido, as autoras questionam a
universalidade da desconfiança pública nas ciências e tecnologias e sugerem
que se trata de um fenômeno geograficamente localizada nos países mais ricos
do Norte Global. Elas também lançam dúvidas sobre o papel da participação
pública em questões tecnocientíficas em contextos como o brasileiro, no qual
membros de diferentes públicos não parecem incomodados com uma gestão
tecnocrática das ciências e tecnologias.

O presente estudo tem como objetivo contribuir para a literatura crítica a


respeito da tese da sociedade de risco. Apesar de compactuarmos com a
noção de que as ciências e tecnologias na modernidade se tornaram
produtoras de risco, queremos avançar o argumento de Guivant e Macnaghten
sobre percepção de risco e (des)confiança pública na ciência no contexto
brasileiro. Assim, exploraremos duas partes da tese da sociedade de risco.
Primeiramente, estamos interessados em compreender em que medida após
um desastre sociotécnico de larga escala os riscos são compreendidos pelos
públicos como inerentes a empreendimentos tecnocientíficos ou como
resultado de erros humanos. Além disso, examinamos se um desastre
sociotécnico de larga escala abala a ampla confiança pública de que desfrutam
as ciências e tecnologias no contexto brasileiro (CGEE, 2015, 2019). Dito de
outro modo, estamos interessados em situações em que os riscos de grandes
empreendimentos sociotécnicos se materializam em desastre e quais os
impactos da concretização do risco na confiança dos públicos com relação às
ciências e tecnologias. Tomaremos como estudo de caso a ruptura da
Barragem I da Mina Córrego do Feijão, ocorrida em Brumadinho (MG), em 25
de janeiro de 2019. A ruptura liberou um lamaçal de resíduos tóxicos que
matou 270 pessoas, sendo que equipes de resgate, no momento da escrita
deste trabalho, em Junho de 2021, continuavam a buscar dez desaparecidas 1.
Para se ter uma ideia da magnitude da tragédia de Brumadinho, deve-se notar
que a população do município, em 2019, de acordo com o IBGE, era de
aproximadamente 40 mil habitantes. A morte repentina de centenas de
habitantes nesta cidade de pequeno porte trouxe um enorme impacto
emocional para a população. Durante a pesquisa de campo, todos nossos
interlocutores relataram conhecer pessoas falecidas devido à ruptura da
barragem e, mesmo tendo as incursões ocorrido vários meses após o desastre,
uma atmosfera de luto pairava durante as entrevistas. Além dos impactos
humanos, o desastre também teve impactos ambientais consideráveis. Os
resíduos contaminaram o rio Paraopeba, mataram animais e destruíram a
vegetação. O desastre de Brumadinho é juntamente com a ruptura da
barragem do Fundão, ocorrida em Mariana, MG, em 2015, um dos maiores
desastres sociotécnicos recentes da história do país. A barragem de Mariana
era administrada pelo consórcio Samarco, um empreendimento conjunto da
Vale com a BHP Billiton.

Assim, neste trabalho nos perguntamos: em um contexto de elevada


confiança pública nas ciências e tecnologias, qual o impacto de desastres
sociotécnicos de larga escala nos significados atribuídos às tecnociências? Em
que medida tais desastres podem resultar em uma visão mais pessimista com
relação às ciências e tecnologias em geral e a barragens de rejeitos de
mineração em particular? Em que medida o desastre de Brumadinho dá
suporte para a tese desenvolvida no Norte Global que implica uma relação
entre percepção de riscos sociotécnicos e desconfiança pública nas ciências e
tecnologias?

Este artigo é baseado em vinte e cinco entrevistas semi-estruturadas com


moradores de Brumadinho. Foram realizadas duas incursões a campo entre o
final de 2019 e o início de 2020 nas quais foram realizadas dezesseis
entrevistas presenciais. Como durante as visitas a campo não foi possível
entrevistar todas as pessoas contatadas, posteriormente foram realizadas nove
entrevistas via vídeo chamada. A amostragem foi realizada a partir da

1
https://g1.globo.com/mg/minas-gerais/noticia/2021/05/27/brumadinho-mais-uma-vitima-da-
tragedia-da-vale-e-identificada-diz-governador-romeu-zema.ghtml.
estratégia da “bola de neve” (Vinuto, 2014). Duarte é nascido em Belo
Horizonte, cidade próxima a Brumadinho, onde passou da sua infância até o
início da sua vida adulta, e conhece pessoas nascidas na cidade onde ocorreu
o desastre. A partir destas redes informais ele obteve o contato de moradoras
de Brumadinho que se dispuseram a participar da pesquisa e,
subsequentemente, indicaram outras pessoas que também aceitaram ser
entrevistadas. A amostragem não ambicionou ser representativa da população
de Brumadinho, estando mais interessada na variedade de significados que
emergiria nas entrevistas. Ainda assim, buscou-se incluir moradoras com perfis
de renda e educacionais variados, o que resultou em uma amostra com
participantes de diversificados níveis educacionais e pertencentes a diferentes
classes sociais. Não foram percebidas diferenças significativas nas respostas
entre membros dos grupos com diferentes níveis de escolaridade e renda, de
modo que nos nossos resultados esses recortes não são explorados.

O artigo, além desta introdução, possui cinco seções. Nas duas


primeiras realizamos um exercício de contextualização, apresentando
brevemente a dinâmica da mineração em Brumadinho e em Córrego do Feijão
e, posteriormente, as causas que foram apontadas por especialistas e
investigadoras da Polícia Federal para o desastre. A seguir, abordamos a
percepção de nossas entrevistadas sobre as ciências e tecnologias em geral,
na qual apontamos para a persistência da crença na neutralidade e no
potencial das tecnociências em promover o progresso para as sociedades
humanas. Na seção seguinte, examinamos a confiança em barragens de rejeito
de mineração e argumentamos que, para as participantes da pesquisa, em
linhas gerais, somente a tecnologia utilizada na Mina Córrego do Feijão se
tornou alvo de desconfiança. Na seção final elencamos as conclusões do
estudo.

Contextualização: Brumadinho e a Mina do Córrego do Feijão

Brumadinho se localiza na região de Minas Gerais conhecida como


quadrilátero ferrífero, um dos mais importantes centros de extração de minério
de ferro do Brasil. Mariana, onde ocorreu em 2015 o desastre da Samarco,
também se localiza nessa região. A mineração é uma das principais fontes de
renda da cidade, seja pela arrecadação tributária, como a Compensação
Financeira pela Exploração de Recursos Minerais (CFEM), ou pela relação de
empregos que as empresas mineradoras geram com suas atividades (Millanez
et al., 2019, Coelho, 2020). Em 2019, o então prefeito do município de
Brumadinho, Avimar de Melo Barcelos, afirmou que a mineração representaria
60% da arrecadação do município e que a Vale seria uma das principais
empresas que contribuiriam para essa arrecadação por meio da CFEM2. A
situação nesse município, assim como em todo o quadrilátero ferrífero, é de
dependência econômica da mineração, aquilo que Coelho (2012, 2017, 2018,
2020) denomina como minério-dependência. As mineradoras utilizam os
pretextos do desenvolvimento econômico, arrecadação tributária e geração de
emprego para manter a dependência das populações locais, que veem o
trabalho na mineração como o “local de atendimento das necessidades
humanas básicas” (Coelho, 2012, p.140). Como resultado, acaba por haver
uma falta de diversificação econômica, que é estimulada pelas próprias
mineradoras, resultando em uma economia local pouco diversificada.

No caso específico de Córrego do Feijão, região rural de Brumadinho onde


ocorreu o desastre, a mineração foi iniciada na década de 1950 com a então
Companhia de Mineração Ferro e Carvão (Pereira et. al, 2019). Em 1973, a
Ferteco S.A. assumiu a mina e, em 1976, começou a construção da Barragem
I. A tecnologia utilizada na época foi a montante, a qual é reconhecidamente
mais barata e com maior propensão à instabilidade (Araujo, 2006). No início
dos anos 2000, houve a compra da Ferteco S.A. pela então Vale do Rio Doce 3.
No ano de 2016, a Barragem I foi desativada4 pela Vale, o que, todavia, não fez
com que ela deixasse de apresentar riscos devido a problemas em sua
estrutura que acabaram por levar à sua ruptura.

2
Disponível em https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2019-01/mineracao-representa-
60-da-arrecadacao-de-brumadinho. Acessado em 04 de Setembro de 2020.
3
Sobre a compra da Ferteco S.A. pela Vale do Rio Doce ver:
http://www.vale.com/brasil/pt/investors/information-market/press-releases/paginas/cvrd-compra-
ferteco.aspx. Acessado em 04 de setembro de 2020.
4
Nota Semad disponível em: http://www.meioambiente.mg.gov.br/noticias/3740-nota-de-
esclarecimento-5-brumadinho Acessado em: 04 de setembro de 2020
A ruptura da Barragem I

Investigações apontam que a ruptura da Barragem I se deveu à negligência


e a equívocos cometidos pela Vale e empresas terceirizadas que trabalhavam
para ela, assim como à falta de uma fiscalização mais detalhada por parte do
Estado. Como veremos abaixo, essa narrativa também entremeou as respostas
de várias de nossas entrevistadas. O relatório de um painel de experts
contratados pela Vale para avaliar as causas do colapso da barragem indicou
que o desastre ocorreu devido a falhas em seu design e construção, as quais
resultaram em uma estrutura muito íngreme e sem drenagem suficiente
(Robertson et al, 2019, p. 69). Conforme relato das investigações da Polícia
Federal realizado por Ragazzi e Rocha (2019), a Vale estava ciente, ao menos
desde 2017, quando foi sucessivamente alertada por membros de seu quadro
de funcionárias, consultoras externos e empresas terceirizadas, de que a
barragem apresentava instabilidade e que seu nível de segurança era inferior
aos padrões recomendados. As recomendações das especialistas para sanar
os problemas da Barragem I, todavia, foram em larga medida ignoradas pela
empresa, que decidiu utilizar uma técnica de drenagem desaconselhada por
diversas experts.

Além disso, Ragazzi e Rocha (2019) acrescentam outras informações que


ajudam a compreender como o desastre veio a ocorrer. A Tüv Süd, empresa
contratada meses antes do desastre para emitir relatórios técnicos sobre a
segurança da barragem, os quais eram posteriormente enviados para agências
fiscalizadoras estatais, realizou uma manobra que contribuiu de modo central
para a ruptura. Funcionárias da empresa inseriram em relatórios sobre a
estabilidade da Barragem I coeficientes de segurança abaixo daqueles
recomendados de modo a garantir que a estrutura, que apresentava um quadro
de risco elevado, fosse vista como estável. A mudança no coeficiente foi
endossada pela Vale e não foi coibida pelos órgãos públicos de fiscalização.
Ademais, é digno de nota que as sirenes que deveriam tocar meia hora antes
de potenciais desastres, sequer foram acionadas no dia da ruptura.

Por fim, logo abaixo da Barragem I havia várias instalações da Vale,


incluindo um refeitório com capacidade para 90 pessoas, o qual se encontrava
cheio no momento do desastre, além de um centro administrativo, um centro
médico e um auditório (Ragazzi e Rocha, 2019, p. 24). A lama expelida pela
barragem engoliu essas construções em menos de um minuto, sendo
impossível a fuga das pessoas que ali se encontravam. Se a Vale não as
tivesse construídos em local tão perigoso, ou ao menos as desativado quando
a barragem começou a apresentar instabilidade, o número de mortes poderia
ter sido bem menor.

A confiança nas ciências e tecnologias após o desastre


O primeiro ponto que examinaremos é como as entrevistadas percebem as
ciências e tecnologias de uma maneira em geral. A maioria das entrevistadas
expressou uma visão próxima daquilo que Irwin (1995) intitulou “ciência como
progresso” e Paula como tecnoentusiasmo (2020). De acordo com essa
concepção, as ciências e tecnologias são livres de valores, não sendo
intrinsecamente ruins nem boas para as sociedades. Seus efeitos dependeriam
do modo como são utilizadas. De modo algo paradoxal, apesar de serem vistas
como neutras, elas também são tidas como benéficas, atuando como motores
do progresso humano de modo a para aprimorar a vida em sociedade. Todavia,
isso só ocorre se as ciências e tecnologias forem utilizadas da forma “correta”.
Os trechos a seguir exemplificam esse ponto:

“A tecnologia bem usada é a solução para os nossos problemas. A tecnologia


com pessoas de bem atrás, essa tecnologia é a solução mundial para tudo”
(Jonas).
“Na verdade eu acho que a tecnologia é uma coisa boa, as pessoas que
utilizam talvez utilizam da forma errada ou fazem o mal. Mas eu acho que ela
vem pra somar, basta a gente entender isso e querer fazer uma melhor…
Baseado também na questão de… Pra mim, é uma questão muito de ética, se
você quiser destruir qualquer coisa com a tecnologia você consegue fazer isso
e você faz para a utilização para o bem e não só para o mal” (Carla).
“(...) A tecnologia por si faz coisas boas e o uso dela que tem o malefício. Não
vejo maldade em tecnologia. (...) eu concluo sempre que a tecnologia é boa, o
mal é mais do homem” (Ronaldo).
“Eu acho que a tecnologia sempre ajuda a gente em tudo, ela não atrapalha em
nada. (…) Então assim, a tecnologia ela te ajuda muito, se você souber usar.
Se você não souber, não adianta” (Washington).
“(...) eu acredito muito na ciência e na tecnologia, eu acho que ela pode ajudar
sim desde que eles usem ela de uma forma justa, uma forma assim, com muito
cuidado porque para acabar com as barragens, eu acho que ela vai ajudar sim”
(Luísa).
“(...) eu sou uma pessoa otimista em relação à ciência e à tecnologia. Eu acho
que no geral a tecnologia surge para resolver problema, às vezes acaba
criando outros, mas vêm com uma solução” (Vanessa).

Esses trechos são interessantes porque mostram que a percepção das


entrevistadas a respeito das ciências e tecnologias em larga medida se afasta
da tese da sociedade de risco segundo a qual sistemas sociotécnicos seriam
intrinsecamente perigosos, não podendo ser controlados pela humanidade. Na
visão tecnoentusiasta das ciências e tecnologias, expressa de modo majoritário
pelas participantes de nosso estudo, os riscos só emergem quando estas são
mal utilizadas. Apenas algumas poucas entrevistadas apresentaram uma
perspectiva mais próxima daquela da tese da sociedade de risco. Ainda assim,
acreditavam no potencial de aprimoramento das ciências e tecnologias e na
possibilidade de serem aperfeiçoadas trazendo benefícios para a humanidade.
Seguem alguns exemplos:

“Ciência e tecnologia, ela também não é uma ciência exata e fechada. Ela
busca melhorar, mas nem sempre é possível. Cito um exemplo, nos anos 80
quando a Nasa foi lançar o foguete Challenger, mais ciência e tecnologia que
tem a Nasa... logo no primeiro impulso, na primeira propulsão do foguete ele
explodiu. Então, a ciência e tecnologia elas precisam continuar um trabalho ad
aeternum, elas precisam continuar um trabalho de busca de melhorias,
implantação de métodos de segurança para a população e para o planeta num
todo. Aí inclui tudo, meio ambiente, inclui tudo” (Marcos).
“Olha, ela [ciências e tecnologias] ajuda bastante, agora é como eu tinha
falado um pouco antes, ajuda, mas é falha, não dá para confiar 100%. Mas, se
for olhar ela é bem benéfica, se não tivesse tecnologia, como é que iria ser? Já
é uma dificuldade danada, se não tiver creio que coisas piores já teriam
acontecido” (Antônio).

Assim, apesar de não se poder falar que a percepção de risco na linha


daquilo proposto por Beck não teve nenhuma penetração em Brumadinho no
contexto pós-desastre, ela foi minoritária e amplamente suplantada por visões
mais otimistas com relação às ciências e tecnologias.
Vejamos na próxima seção, a percepção de risco das entrevistadas com
relação a barragens de rejeitos da mineração e a (des)confiança nessas
tecnologias após o desastre de Brumadinho.

Barragens, risco e desconfiança


A maioria das participantes relatou que antes do desastre já sabiam da
existência de barragens de rejeitos de mineração em Brumadinho, mas que
não tinham medo de uma possível ruptura, mesmo depois do rompimento da
barragem da Samarco, em 2015. Em geral, não acreditavam que a Vale, após
um desastre da magnitude do ocorrido em Mariana, cometeria o mesmo erro
novamente. Além disso, houve relatos sobre o cuidado meticuloso da empresa
com a segurança no trabalho. Assim, em geral, havia confiança na empresa e
uma percepção de que não havia riscos significativos de desastre no município.

Após o desastre, a confiança na Vale foi amplamente corroída, assim


como nas barragens a montante, mas não nas barragens de maneira
generalizada. As barragens a montante (figura 1) utilizam os próprios rejeitos
em sua construção, os quais são depositados a montante de um dique inicial
(Cardozo et. al, 2016). Esse tipo de barramento é atrativo para as empresas de
mineração por ser o mais barato, mas é também o menos seguro, sendo mais
propenso a apresentar instabilidade (Araujo, 2006).

Figura 1 – Seção típica de uma barragem com alteamento a montante (Albuquerque-Filho,


2004: 21)

Além das barragens a montante, há outros tipos que podem ser empregados
na contenção de rejeitos e que são mais seguros. Dentre elas existe o
alteamento a jusante (figura 2), no qual se constrói um dique inicial e os
alteamentos são construídos a jusante do rejeito. Isso gera mais estabilidade
para a estrutura, uma vez que a barragem cresce sobre ela mesma e não
sobre os próprios resíduos consolidados (Araujo, 2006; Cardozo et. al, 2016).
Esse tipo de estrutura tem os custos mais elevados, implica em área
desmatada maior, mas apresenta segurança significativamente maior.
Figura 2 - Seção típica de uma barragem com alteamento a jusante (Albuquerque-Filho, 2004:
23)

A barragem de linha de centro (figura 3) é uma estrutura intermediária entre o


modelo a montante e a jusante. Os diques são construídos sobre os rejeitos,
mas os alteamentos continuam seguindo um eixo vertical, chamado de linha de
centro (Araujo, 2006; Cardozo et. al, 2016). Esse método tenta unir as
vantagens dos alteamentos a montante (menor custo) e a jusante (mais
estabilidade).

Figura 3 - Seção típica de uma barragem com alteamento pela linha de centro (Albuquerque-
Filho, 2004: 24)

Após o desastre, os métodos de alteamentos de barragem de rejeitos da


mineração entraram no debate público. Na mídia foi amplamente noticiado que
havia diferentes métodos de alteamento e que nas barragens que romperam
em Brumadinho e Mariana era utilizado o método a montante5. Esta tecnologia
acabou sendo proibida no país no ano de 20206.

5
https://epocanegocios.globo.com/Brasil/noticia/2019/01/modelo-de-barragem-usado-em-
brumadinho-e-mariana-e-o-mais-barato-e-menos-seguro.html;
https://g1.globo.com/economia/noticia/2019/01/31/brasil-tem-88-barragens-do-tipo-a-montante-
ou-desconhecido-metade-com-alto-potencial-de-dano-diz-agencia.ghtml;
O fato de a Vale ter utilizado um modelo de barragem de custo menor e
com menor segurança foi algo que apareceu com frequências nas entrevistas.
Todavia, entre as entrevistadas não emergiu uma visão pessimista sobre as
barragens de contenção de rejeitos da mineração de um modo generalizado,
nem sobre a capacidade humana de controlá-las. As entrevistadas
majoritariamente desenvolveram desconfiança com relação ao método de
alteamento à montante, mas continuaram favoráveis à mineração e ao uso de
barragens para o armazenamento de rejeitos. Esse ponto é exemplificado
pelas seguintes falas:

“Agora essas barragens de rejeitos [a montante] praticamente, já estão


praticamente descartadas, rejeitáveis, né. Porque nós sabemos que depois do
acidente de Mariana e Brumadinho não funciona mais. Nós temos que ter
técnicas e outros tipos de barragens, outros tipos de lavagens de minério, que
não causem prejuízo para a população” (Conrado).
“Eu acho que deveriam achar novas formas como já estão sendo colocadas
em prática, mas o problema é que elas são mais caras, mas esse tipo de
barragem [a montante] eu acho que tinha que acabar para evitar mais
tragédias” (Miguel).
“Ah eu acho que tem que melhorar essa tecnologia, porque agora tem essas
barragens que não são iguais a essas de Brumadinho. Já melhorou um pouco,
eu quero mais é que eles tirem esse tipo de barragem, que elas deixem de
existir” (Luísa).
“(...) eu percebo é que eles querem gastar menos, eles querem fazer com o
menor custo. E barragem não foi feita para estourar, existe um processo todo.
Mas como eu acompanhei lá foi negligência, fazer com o menor custo. Porque
o custo lá é o mesmo de refazer, altear ela, menor custo. É que nem tem a
jusante e a montante, uma cresce pra dentro do corpo da barragem e a outra
cresce desde o pé e vem subindo. Esta é bem mais caro o processo dela. E
pra mim isso foi negligência, se a coisa for bem-feita não estoura não, mas
querem fazer com menos investimento” (Claudio).

Nos trechos acima é possível perceber que, mesmo quando paira uma
desconfiança com relação a uma tecnologia específica, no caso, as barragens
com alteamento a montante, a crença no potencial das ciências e tecnologias
para promoverem o progresso permanece em larga medida inabalada. Ao
tratarem das barragens, a percepção de grande parte das entrevistadas é que
o risco não é intrínseco às tecnociências, mas é algo que emerge quando se

https://g1.globo.com/economia/noticia/2019/01/28/entenda-como-funciona-a-barragem-da-vale-
que-se-rompeu-em-brumadinho.ghtml; https://www.bbc.com/portuguese/brasil-47048439.
6
https://noticias.uol.com.br/meio-ambiente/ultimas-noticias/redacao/2020/09/30/bolsonaro-
sanciona-lei-que-proibe-barragens-como-a-de-brumadinho-mg.htm.
opta por tecnologias baratas, de baixa qualidade. A solução para evitar novos
desastres é o desenvolvimento de novas tecnologias.

Alguns outros pontos surgiram nas entrevistas que vão em direção semelhante,
isto é, da crença no potencial da inovação tecnológica e na possibilidade da
humanidade controlar as ciências e tecnologias e utilizarem-nas em prol do
progresso e desenvolvimento. Uma forma na qual isso se apresentou foi na
ideia de que as empresas deveriam buscar tecnologias de segurança ou
monitoramento mais efetivas:

“(...) acho que elas [empresas] poderiam investir mais em mais informação,
mais inovações também. É aquilo que eu tinha falado um pouco antes, é
buscar alternativas para atestar mais segurança. Porque aí sim, você vai ter
bem mais segurança, vai ser mais confiável todo o sistema, todo o processo”
(Antônio).

“(...) tecnologicamente estamos vivendo na era dos avanços tecnológicos,


talvez até o acompanhamento de uma instalação de equipamento, alguma
coisa que possa monitorar mais ainda essas barragens” (Arminda).

Outra forma em que apareceu a crença na capacidade humana de controlar as


ciências e tecnologias foi na argumentação sobre a necessidade de
intensificação da fiscalização do Estado, de modo que possíveis erros sejam
prevenidos e as barragens possam atuar de modo a trazer benefícios para a
população:

“(...) eu acho assim, tem que fazer esses desenvolvimentos em tecnologia e


tudo, o país precisa disso para crescer também, ao mesmo lado tem que
melhorar essa questão da fiscalização, ser rígida e não corrompível” (Felipe).

“Creio que sim, [deveria ser autorizado a existência de barragens de rejeitos


no Brasil], eu acho que tudo que for bem fiscalizado, tudo que for bem
planejado, não teria o que dar errado. Claro que pode acontecer, ninguém é
perfeito, tudo está sujeito ao erro, mas se for tudo patenteado, se for tudo
fiscalizado e diariamente e não uma vez ou outra, creio que sim” (Daniel).

“Olha, essas tecnologias que eu vejo, essas anteriores, já foram descartadas,


que não tem segurança nenhuma. Agora essas novas eu acredito que sim,
porque eu vejo que é a questão da fiscalização. A partir do momento que você
não tem uma fiscalização corrompida e onde o Estado realmente preserve a
vida das pessoas, preserve a população, eu acredito nós realmente temos
segurança para isso. Porque queira ou não queira o Estado hoje no Brasil
depende da mineração. A mineração hoje ela traz benefícios, traz emprego,
traz recurso para a população. Nós não podemos demonizar a mineração
também por causa disso. Mas eu acho que ela não pode ser corrompida, como
nós sabemos que os laudos foram corrompidos” (Conrado).

Nos trechos acima aparece um elemento interessante, que é uma falta de


confiança no Estado enquanto instância fiscalizadora. Em consonância com a
crença de que as ciências e tecnologias são em geral benéficas, controláveis e
podem promover o progresso desde que se utilizadas corretamente, o desastre
de Brumadinho foi largamente associado pelos entrevistados à negligência e
falta de compromisso ético do Estado e da Vale. O Estado, de um lado, não
cumpriu sua função de fiscalização. A Vale, de outro, utilizou tecnologias
baratas e de menor qualidade e negligenciou cuidados importantes para
preservar a barragem em boas condições. A desconfiança na Vale é ilustrada
pelas falas abaixo:

“Eles (a Vale) fizeram um levantamento de onde a barragem iria romper, os gastos que
eles iam ter, olharam no cofre e viu que eles tinham caixa suficiente pra poder arcar
com os negócios e pegou e falou ‘Vamos deixar arder, melhor a gente deixar estourar
do que parar nossa produção’” (Joaquim).
“Agora eu falo, a Vale teve lucro, não teve prejuízo. Isso é fato, tá aí notório para quem
quiser pesquisar. A Vale teve lucro. Ela sabia da probabilidade de rompimento, só que
ela contabilizou vidas e dinheiro e ainda está se aproveitando da situação.” (Jonas).
“Olha, eu atribuo [o desastre] ao descaso mesmo. Principalmente da direção [da Vale],
de quem sabia do risco. Porque há pessoas que sabiam. Então assim, a ganância,
também a ganância. Porque poderia ter parado, poderia ter reparado a barragem.
Ainda que perdesse um ano de trabalho e tudo, mas iria ter poupado as vidas. Tanto é
que nesse tempo parado a Vale, ela está lucrando muito mais do que estava antes.
Então assim, ela já recuperou todo o valor que foi perdido ali em Córrego do Feijão ela
já recuperou. Então assim, eu vejo mais pela ganância, falta de cuidado. Teve as falhas
mecânicas, da sirene que não tocou, mas foi mais humano, esse erro. Porque as
pessoas poderiam ter evitado isso” (Antônio).
“É o descaso das empresas e das autoridades. É o descaso porque uma vez que tinha
acontecido isso em Mariana e pelo que a gente vê falar, a Vale tinha ciência disso, que
poderia acontecer isso, poderia ser evitado. Como é que você constrói um alojamento,
um restaurante debaixo de uma barragem? Onde você não tem a menor chance de
fuga se acontecesse aquilo. Com uma empresa que é tão rigorosa com relação à
segurança. Você descer no caminhão da Vale para fazer uma forra de uma faixa você
é notificado, você deixar comida na bandeja, por exemplo, você é notificado, se você
não usar o equipamento de segurança você é notificado. Como é que uma empresa
desta deixa uma barragem, um alojamento e um restaurante? Isso que não dá para
entender” (Conrado).

Conclusão

Algumas conclusões podem ser tiradas a partir do material analisado acima.


Primeiramente, pode-se dizer que um desastre da magnitude do ocorrido em 2019 em
Brumadinho não foi capaz de abalar a confiança pública nas ciências e tecnologias. A
maioria das entrevistadas passou a desconfiar de uma tecnologia específica, as
barragens a montante, mas possuem uma fé na capacidade da humanidade de
controlar as ciências e tecnologias e uma crença no potencial destas de trazerem o
progresso para as sociedades. Nesse sentido, pode-se afirmar que os dados estão em
ampla consonância com o estudo de Macnaghten e Guivant (2011) sobre a percepção
pública sobre as nanotecnologias no Brasil. O desastre de Brumadinho não levou as
entrevistadas a adotarem visões mais pessimistas com relação às tecnociências, tais
como aquelas expressas no Reino Unido. Além disso, é digno de nota que poucas
entrevistadas percebiam o risco como intrínseco às ciências e tecnologias. Para a
maioria das participantes, o risco seria decorrência de falhas humanas. Assim, eles
seriam controláveis, contanto que gerenciados por pessoas honestas e sem uma
ambição desmedida. Portanto, os dois aspectos da tese da sociedade de risco que
examinamos neste trabalho, a saber, percepção pessimista das ciências e tecnologias
e descrença na capacidade humana de controlá-las, encontraram pouco eco na
estrutura de significação compartilhada por nossas participantes.

É interessante também notar que as narrativas produzidas na mídia, pelas


investigadoras da Polícia Federal e por experts sobre a ruptura da barragem tiveram
frequente reverberação em nossas entrevistas. Assim, os significados relacionados ao
desastre foram bastante alinhados com discursos de instituições que na modernidade
detêm elevado poder epistêmico. Há aqui um contraste relevante com a atual
pandemia da Covid-19, na qual o negacionismo e a produção de “realidades
alternativas” e de teorias da conspiração estão em proliferação (Duarte, 2020; Castro,
2021; Kalil et al. no prelo). Esse ponto é relevante e traz questões para pesquisas
futuras que busquem refinar o entendimento de como se manifestaria a chamada era
da pós-verdade no contexto brasileiro. Cesarino (2021) apontou que um dos
elementos que caracterizariam esse período seria a fragilização epistêmica das mídias
tradicionais e da expertise científica. Apesar de concordarmos que em vários temas de
debate público contemporâneo, como no caso da Covid-19, tal fragilização é evidente,
ela não se apresenta de maneira transversal.

Por fim, e retomando a linha argumentativa central deste trabalho relacionada à


teoria da sociedade de risco, reforçamos o argumento de autores como Guivant e
Macnaughten (2011) e Reyes-Galindo (2017) de que não se pode generalizar teses
produzidas em contextos do Norte Global para outros contextos assumindo uma
pretensa universalidade. Procuramos, portanto, contribuir não apenas para a
compreensão da percepção de risco e da confiança nas ciências e tecnologias em
contextos posteriores a grandes desastres sociotécnicos, mas também para um
esforço no sentido de provincializar (Chakrabarty, 2000) os ESCT.

Tiago Ribeiro Duarte é Doutor em Sociologia pela Universidade de Cardiff e


Professor Adjunto do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília.
Marina Oliveira Silva é Licenciada em Ciências Sociais pela Universidade de Brasília.

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