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DESAPROPRIAÇÃO E POPULAÇÃO DE BAIXA RENDA

EURICO DE ANDRADE AZEVEDO'

I. Desapropriação - 2. Imissão de posse - 3. Benfeitorias em terrenos


públicos e de terceiros - 4. Indenização - 5. Possibilidade inde-
pendentemente de prova de domínio - 6. Cautelas necessárias

I. Introdução

1.1 A realização de obras públicas, muitas vezes, enfrenta uma grande dificul-
dade, quando a área desapropriada encontra-se ocupada por moradias de população
de baixa renda, com características de favela, edificadas em terrenos públicos ou de
terceiros. A imissão provisória nesses imóveis, acarretando o desalojamento dessa
população, pode vir a causar graves problemas sociais, visto que tais moradores não
têm para onde transferir-se.
1.2 Esta situação é quase sempre encontrável em obras de retificação ou cana-
lização de rios, de construção de barragens, de abertura de avenidas de vale etc. Nos
terrenos marginais, geralmente alagadiços, instalam-se contingentes de "sem-teto"
que, com o material disponível, constroem suas precárias moradias, mas que de
qualquer modo servem para abrigar a própria família. Os terrenos onde eles se
instalam são, em sua grande maioria, terrenos reservados, de terceiros, sem título de
propriedade, ou ainda em loteamentos irregulares.
1.3 O depósito do valor dessas benfeitorias, sem que seus titulares possam
levantá-lo, não resolveria o problema, visto que são pessoas de parcos recursos, que
se veriam em situação extremamente aflitiva, decorrente da perda da moradia des-
tinada à família e sem ter para onde ir. O problema que se põe, portanto, é a
possibilidade de o Poder Público efetuar o pagamento direto das indenizações devidas
por essas benfeitorias diretamente aos seus possuidores, deixando a indenização da
terra nua para a via judicial. Tal solução, todavia, encontra óbice em alguns dispo-

, Procurador da Justiça do Estado de São Paulo. aposentado. exercendo atualmente consultoria jurídica
no Escritório Andrade Azevedo e Alencar.

R. Dir. Adm .. Rio de Janeiro, 216: 39-49. abr./jun. 1999


sitivos legais. como o art. 34 do Decreto-lei 3.365/4 I e o art. 5º do Decreto-lei
271/67.
1.4 É importante ressaltar que as desapropriações que envolvem a privação da
moradia de população de baixa renda precisam ser encaradas com grande cuidado.
Se o déficit de habitações é uma constante no desenvolvimento do nosso País, como
admitir-se que o próprio Poder Público desaloje pessoas que, bem ou mal, encon-
tram-se abarracadas por conta própria, sem que se dê uma solução ao problema?
1.5 Na França - país muito mais desenvolvido do que o nosso - Laubadere
esclarece que as desapropriações que podem acarretar um distúrbio social e econô-
mico merecem um tratamento especial, incluindo entre essas situações aquelas que
provocam a dispersão de uma certa comunidade, dando como exemplo a construção
da barragem de Tignes. E acresce que, não obstante essa previsão legal, os Poderes
Públicos preferem:
" ... laisser les expropriants libres de dégager. dans les cadres de leurs négocia-
tions avec les expropriés. les mesures mieux apropriées." 2
1.6 Na Espanha, informam Garcia de Enterría e Tomás Ramón Femandez que
a execução de grandes obras hidráulicas acarreta, com freqüência, o desalojamento
de famílias que habitam as regiões ribeirinhas, caso em que o Poder Público fica
obrigado a providenciar a reinstalação daquelas pessoas em outros territórios, inde-
nizando-as inclusive de todos os prejuízos decorrentes do traslado. 3 Examinemos a
situação em nosso sistema jurídico.

2. Os princípios básicos da desapropriação

2.1 A desapropriação é a forma mais drástica de manifestação do poder de


império do Estado, no exercício de seu domínio eminente sobre todos os bens
existentes no território nacional. Mas esta intervenção só poderá concretizar-se nos
limites traçados pela Constituição e nos casos expressos em lei, observado o devido
prou:sso legal. 4
2.2 A desapropriação apresenta-se, pois, sob uma dupla face: de um lado, o
poocr soherano do Estado de tomar para si o bem do particular, para atendimento
de um interesse público; de outro, a soma de garantias que o sistema jurídico nacional
oferece ao administrado para resguardar-se dessa violenta intromissão do Poder
Público em seu patrimônio.
2.3 Dispõe a Constituição Federal (art. 52, incisos XXII e XXIV) que é garantido
o direito de propriedaoe. mas a Ici estabelecerá o procedimento para desapropriação
por necessidade ou utilidade pública ou por interesse social, mediante prévia e justa

ANDRÉ DE LAUBADERE. JEAN-CLAUDE VENEZIA e YVES GAUDEMET, Traité de Droit


Administratif. L. G. D. J., tomo, lI, 10 ed., p. 407.
3 GARCIA DE ENTERRÍA e TOMÁS RAMÓN FERNANDEZ. Curso de Derecho Administrativo,
Ed. Civitas, 1988, vol. lI, 2" ed., p. 303.
4 Cf. HEL Y LOPES MEIRELLES, Direito Administrativo Brasileiro, Malheiros Editores, 23" ed.
atualizada por Eurico de Andrade Azevedo e outros. 1998. p. 86.

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indenização em dinheiro. ressalvados os casos expressos no próprio texto constitu-
cional (pagamento em títulos da dívida pública. nos casos de aplicação da política
urbana. como sanção pelo mau uso do imóvel e nos casos da reforma agrária - arts.
182e 184).
2.4 A legislação básica regulamentadora da desapropriação é o Decreto-lei
3.365, de 21.6.41, com as modificações posteriores, que trata das desapropriações
por utilidade ou necessidade pública; a Lei 4.132. de 10.9.62, que define os casos
de expropriação por interesse social, e o Decreto-lei 1.075. de 22.1.70, que regula
a imissão de posse initio litis em imóveis residenciais urbanos, e cuja interpretação
é sobremaneira importante para a solução das questões postas pelas Consulentes.
2.5 Com a desapropriação, a Administração retira o bem do particular para servir
ao interesse público, mas deve repor no seu patrimônio o valor equivalente àquele
resultante da privação da coisa. Em regra, na idéia de propriedade encontram-se
enfeixadas todas as faculdades inerentes àquele direito: a posse, o uso, o gozo e a
disponibilidade do bem. Mas essas faculdades, conforme o caso, podem aparecer
desmembradas, constituindo sobre o seu objeto outro tipo de relação jurídica, real
ou pessoal, Nestes casos, como observa Sérgio Ferraz, é evidente que, "determinando
a Constituição Federal a cabal indenização de todos os prejuízos acarretados pelo
exercício da possibilidade de desapropriar, é evidente que tais direitos, reais e
pessoais, de terceiros, constituídos sobre a coisa expropriada, desde que tenham
significação econômica, devam, necessariamente, ser considerados como indenizá-
veis." 5

3. A indenização justa

3.1 É princípio assente em quase todas as legislações de que a indenização, na


desapropriação, não é um preço pago ao expropriado pela aquisição do bem, mas
tem a natureza jurídica de um ressarcimento pelos danos por ele sofridos, que tem
de suportar em virtude da necessidade pública do seu bem. É, pois, uma verdadeira
indenização. 6 E, como indenização, deve cobrir não só o valor do próprio bem
expropriado, como também todos os prejuízos advindos e todos os ganhos deixados
de auferir em virtude dessa privação.
3.2 A evolução da jurisprudência de nossos Tribunais demonstra a ampliação
cada vez maior do conceito da indenização devida pelo Poder Público nas desapro-
priações. Cuidou-se, primeiramente, da inclusão dos lucros cessantes. Autores e
acórdãos negavam a sua indenização por ser o ato expropriatório um ato lícito, sendo
devidos os lucros cessantes apenas quando decorrentes de ato ilícito. Hoje, no
entanto, é pacífico o entendimento de que devem integrar a indenização justa, desde
que não sejam meramente hipotéticos, mas decorram de demonstração evidente de
que tais ganhos tenham sido obstados pelo ato expropriatório.

SÉRGIO FERRAZ. A Justa Indenização na Desapropriação. Ed. RT. 1978. p. 31.


b Cf. HÉCTOR ESCOLA. Compendio de Derecho Administrativo. Ed. Depalma. 1990. vaI. 11. p. 1.079.

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3.3 Igualmente. a jurisprudência uniformizou-se no sentido de determinar a
indenização pela desvalorização da área remanescente; do fundo de comércio quando
o bem expropriado era utilizado para esse fim; das despesas para o levantamento do
preço (custas judiciais. honorários advocatícios); dos juros moratórios pela tardança
no pagamento do preço; dos juros compensatórios pela ocupação antecipada da coisa;
até se chegar à correção monetária, com a consideração de que a indenização é dívida
de valor.
3.4 Mas a indenização não cobre apenas o que é devido ao proprietário do bem
expropriado, mas também as benfeitorias que, eventualmente, tenham sido realizadas
por terceiros. Ainda que efetuadas clandestinamente, tais benfeitorias devem ser
indenizadas. O Tribunal de Justiça de São Paulo já decidiu que a existência de
benfeitorias clandestinas não desobriga a Municipalidade do pagamento integral
dos bens expropriados, em atendimento ao princípio constitucional da justa indeni-
zação (Ap. Cív. 170.289-2, Batatais, 12.2.92, reI. des. Clímaco de Godoy).
3.5 Em outro julgamento, considerou aquela Corte cabível ação de indenização
contra o Poder Público, movida por pessoas que haviam construído benfeitorias em
terreno alheio, posteriormente desapropriado. Neste caso, o proprietário havia reCe-
bido apenas o valor do terreno, não abrangidas as benfeitorias (TJSP Ap. Civ.
181.839-2, São Paulo, 4.4.92, reI. des. Wanderley Racy).
3.6 Verifica-se, pois, que a posse também é indenizável, quer seja do próprio
imóvel objeto do ato expropriatório, quer seja das benfeitorias levantadas sobre ele.
Não importa seja o terreno de propriedade de terceiros ou do domínio público (aí
incluindo-se os terrenos marginais). Desde que legítima ou de boa fé, a posse deve
ser indenizada, por ter valor econômico. Já pontificava o saudoso mestre Helly Lopes
Meirelles:
'''A desapropriação da propriedade é a regra', mas a 'posse' legítima ou de
boa fé também é expropriável, por ter valor econômico para o possuidor, princi-
palmente quando se trata de imóvel utilizado ou cultivado pelo posseiro. Certamente,
a posse vale menos do que a propriedade, mas nem por isso deixa de ser indenizável,
como têm reconhecido e proclamado os nossos Tribunais.,,7
3.7 Em conclusão, doutrina e jurisprudência brasileiras consideram que a inde-
nização justa deve ser a mais ampla possível, cobrindo não só o valor do bem mas
também suas rendas, danos emergentes, lucros cessantes, juros compensatórios e
moratórios, despesas judiciais, honorários de advogado e correção monetária. Mais
ainda, ela deve estender-se a terceiros que, não sendo proprietários, possuem algum
direito sobre a coisa expropriada.

4. A imissão provisória na posse dos bens expropriados

4.1 A Lei Geral das Desapropriações. admitia a imissão provisória na posse do


bem expropriado, mesmo antes da citação inicial, desde que o poder expropriante

7 HEL Y LOPES MEIRELLES. ob. cil.. p. 487. grifos do original.

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declarasse a urgência da medida e efetuasse o depósito prévio segundo o critério
legal (art. 15 do Decreto-lei 3.365/41). Posteriormente, foi editado o Decreto-lei
1.075170 exigindo que, na imissão de prédio urbano residencial, a imissão só poderia
dar-se com o depósito do valor oferecido e, se este fosse contestado pelo expropriado,
com o depósito de metade do valor do imóvel fixado pelo juiz, com base em laudo
pericial (arts. Iº a 3º).
4.2 Com o advento da Constituição Federal de 1988, uma forte corrente juris-
prudencial passou a entender que aqueles dispositivos não haviam sido recepcionados
pela nova Carta, visto que os ínfimos depósitos efetuados pelo expropriante, decor-
rentes dos critérios legais, não atendiam à exigência de prévia e justa indenização
em dinheiro estabelecida como garantia individual contra a desapropriação (art. 52,
XXIV). Segundo essa corrente, a perda da posse significa a supressão de quase todos
os poderes inerentes ao domínio e por isso só poderia ser autorizada com o depósito
do valor apurado em avaliação prévia.
4.3 Tal entendimento, que se tomou pacífico no Superior Tribunal de Justiça,8
foi, entretanto, superado por decisões posteriores do Supremo Tribunal Federal,9 ao
considerar que a garantia constitucional da justa indenização, nas desapropriações,
diz respeito ao pagamento do valor definitivo do preço fixado, seja por acordo das
partes, seja por decisão judicial, momento em que ocorre a transferência do domínio.
Não obstante, é importante considerar a relevância que a jurisprudência vem dando
ao valor que a posse representa para o expropriado. Acórdão do Tribunal de Justiça
de São Paulo chega a declarar que" a imissão rotulada de provisória na verdade é
definitiva" , motivo pelo que justo seria indenizar o expropriado pelo valor integral
do bem. 10 Outra decisão demonstra que o não pagamento do valor real do bem, na
imissão de posse, gera para o expropriado graves dificuldades, pois não mantém
um mínimo de disponibilidade sobre a coisa, enquanto o expropriante já passa a
atuar como dominus do bem. 11
4.4 Estas considerações são sumamente importantes para o tema em estudo,
visto que, no caso exposto, a desapropriação está atingindo, em boa parte, pessoas
que efetuaram edificações em terrenos públicos ou de terceiros e que, portanto, só
tem a receber o valor dessas benfeitorias. Deixar de pagá-las na imissão provisória
é deixá-las completamente ao desabrigo. causando graves problemas sociais.

5. A unidade da indenização nas desapropriações

5.1 A nossa legislação adotou o princípio da indenização única nas desapropria-


ções. O art. 31 do Decreto-lei 3.365/41 dispõe que" ficam sub-rogados no preço

8 STl, RJSTJ 711168, RT 7061169 e vários outros.


9 STF, RE 167.656-6-SP, DJU 23.2.97; RE 195.789-SP, DJU 5.12.97; RE In.890-SP, DJU 6.2.98;
RE 216.717-SP, DJU 20.2.98 e muitos outros.
10 TlSP Ag. Instr. 238.657-2, Guarulhos. reI. Scarance Fernandes. julg. 17.5.94.
11 TJSP Recurso MS 185.649-2. São Paulo, reI. Erix Ferreira, julg. 18.2.92.

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quaisquer ônus ou direitos que recaiam sobre o bem expropriado", ou seja, sobre a
indenização judicialmente determinada. Mas, como observa Seabra Fagundes, "esse
princípio não satisfaz ao amparo de todos os direitos atingidos pela desapropriação.
A rigor, só os direitos reais de garantia e alguns dentre os direitos reais sobre coisa
alheia comportam cômoda aplicação do preceito legal, porque excluem o secciona-
mento indeterminado do valor pago entre dois ou mais beneficiários" . Na verdade,
ressalta o eminente e saudoso jurista:
"Ao Estado compete cobrir com indenização adequada os terceiros, tão preju-
dicados em seus interesses pelo decreto expropriatório quanto o dono, exceto se a
indenização a este paga puder amparar, simultaneamente, o interesse daqueles, pela
sub-rogação do ônus no valor pago, como sucede no caso do usufruto. Nem seria
justo que o terceiro prejudicado pela desapropriação ficasse no desembolso do valor
retirado do seu patrimônio, nem que se fizesse responder por tal prejuízo o proprie-
tário, também destituído do seu direito por ato unilateral do Estado, imperativamente
imposto à sua vontade." 12
5.2 Por essa razão, em casos evidentes de extinção de direitos de terceiros em
decorrência do ato expropriatório, a jurisprudência brasileira tem determinado o
pagamento da necessária indenização. É o caso do fundo de comércio, quando o
comerciante não é o proprietário do bem desapropriado, ou o caso de locação não
comercial,u É o caso da construção de benfeitorias efetuadas de boa fé em terreno
alheio, já citado acima. Ou em terreno público, insuscetível de desapropriação.
5.3 Assim sendo, compete ao Poder Público mitigar os efeitos perversos da
desapropriação, cuidando de efetuar desde logo o pagamento das benfeitorias efe-
tuadas pelos moradores da área expropriada, a fim de possibilitar-lhes encontrar
alternativas para o alojamento de suas famílias. Já vimos que a nossa doutrina e
jurisprudência têm admitido a indenização de todos os direitos atingidos pela desa-
propriação, ainda que desvinculados do proprietário do bem. Examinemos, contudo,
as diversas situações encontradas.

6. Benfeitorias em loteamentos irregulares

6.1 A respeito deste tema, Hely Lopes Meirelles elaborou parecer, posterior-
mente publicado na série "Estudos e Pareceres de Direito Público" 14, no qual deixou
claro que o art. 52 do Decreto-lei 271/67 dirige-se aos loteadores e não aos adqui-
rentes dos lotes, sendo, conseqüentemente, legítimo o pagamento de benfeitorias em
desapropriações de imóveis em loteamentos não registrados.
6.2 Realmente, o citado art. 52 do Decreto-lei 271/67 determina:

12 SEABRA FAGUNDES. Da Desapropriação no Direito Brasileiro, Freitas Bastos, 1949, pp. 424 e
420.
13 SÉRGIO FERRAZ. ob. cit.. pp. 106/8.
14 HELY LOPES MEIRELLES. Estudos e Pareceres de Direito Público, Ed. RT. vol. IV. 1981. p. 319.

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"Art. 5º - Nas desapropriações, não se indenizarão as benfeitorias ou constru-
ções realizadas em lotes ou loteamentos irregulares, nem se considerarão como
terrenos loteados ou loteáveis, para fins de indenização, as glebas não inscritas ou
irregularmente inscritas como loteamentos urbanos ou para fins urbanos."
O preceito está inserido em norma legal dirigida precipuamente ao loteador,
norma essa cuja finalidade era coibir os loteamentos clandestinos que superabun-
davam na periferia das cidades brasileiras (fato que, lamentavelmente, vem ocorren-
do até hoje). Não era seu propósito sancionar o incauto comprador do lote, geralmente
pessoa de baixa renda e cultura, que se via ludibriado na sua boa fé. Esse o espírito
e o objetivo do mencionado art. 52: reprimir a atividade clandestina do loteador, que
desmembra a gleba e nela implanta benfeitorias, sem antes aprovar e registrar o
loteamento.
6.3 Ora, como argumentava o ilustre publicista, se a obrigação de indenizar
construção existe até mesmo quando esta é levantada, de boa fé, em terreno alheio
(Código Civil, art. 147), com maior razão quando ela é efetuada em terreno do
próprio comprador, este sim, iludido pela esperteza do loteador. Mais do que posse,
as pessoas que edificaram nesses lotes têm domínio sobre as construções erguidas
em seus lotes. Como a indenização do bem expropriado deve ser justa (garantia
constitucional), deve ser a mais ampla possível, abrangendo, em conseqüência, as
benfeitorias existentes, ainda que efetuadas em loteamento irregular.
6.4 Por conseguinte, o art. 5º do Decreto-lei 271167 há de ser interpretado como
dirigido ao loteador, não atingindo o adquirente do lote, que ali edificou sua moradia
de boa fé. O pagamento das benfeitorias ali existentes é absolutamente legal.

7. Benfeitorias em terrenos particulares, com ou sem título de propriedade, e em


terrenos de domínio público

7.1 Outro problema levantado diz respeito às benfeitorias existentes em terrenos


particulares, com ou sem título de propriedade, e em terrenos de domínio público.
Essas benfeitorias - como já se disse anteriormente - têm, em sua maioria,
características de favela, com algumas construções modestas de alvenaria, cujos
possuidores são pessoas de parcos recursos, que se veriam em situação extremamente
aflitiva, decorrente da perda da moradia destinada à família.
7.2 Tais pessoas - da mesma forma que aquelas outras que edificaram em
loteamentos irregulares - também têm direito de receber a indenização pelas ben-
feitorias que realizaram em terrenos públicos ou de terceiros. Na maioria das vezes,
são os denominados" sem teto" que procuram levantar sua moradia onde encontram
espaço, sem qualquer preocupação com o título jurídico do terreno.
7.3 Ora, já vimos que a garantia constitucional do direito de propriedade - a
indenização justa pela desapropriação - abrange não só as coisas corpóreas como
as incorpóreas, não só o próprio dono do bem como os terceiros prejudicados pelo
ato expropriatório. 15 Conseqüentemente, não pode o Poder Público deixar de inde-

15 Cf. SEABRA FAGUNDES. ob. cit.. pp. 414 e ss.

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nizar as benfeitorias encontradas nas áreas compreendidas pelo decreto governamen-
tal e necessárias à execução do projeto pretendido.
7.4 É irrelevante que tais benfeitorias se encontrem em terrenos particulares ou
de domínio público. A indenização da terra nua pode ser deixada para a via judicial
(verificação dos títulos de propriedade etc.), cumprindo à Administração, aqui e
agora. evitar o agravamento do problema social, com o desalojamento dessa popu-
lação ribeirinha.
7.5 Não se argumente com o disposto no art. 34 do Decreto-lei 3.365/41:
.. Art. 34 - O levantamento do preço será deferido mediante prova de proprie-
dade. de quitação de dívidas fiscais que recaiam sobre o bem expropriado, e publi-
cação de editais, com o prazo de dez dias, para conhecimento de terceiros."
7.6 Tal preceito será aplicado na indenização do terreno, mas não impede o
pagamento da indenização das benfeitorias sobre ele levantadas, desde que obser-
vadas certas cautelas procedimentais, que examinaremos adiante. O Tribunal de
Justiça de São Paulo já teve oportunidade de se pronunciar a respeito, em incisivo
acórdão:
"Indenização - Desapropriação - Quantia referente às benfeitorias realiza-
das - Levantamento deferido - Art. 34 da Lei de Desapropriações c.c. o art. 5º
da Lei de Introdução do Código Civil - Recurso provido." (JTJ 132/303).
7.7 Como se vê, a E. Corte paulista procurou dar ao art. 34 da Lei de Desapro-
priações uma interpretação razoável, tendo em vista o disposto no art. 5º da Lei de
Introdução ao Código Civil: "Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a
que ela se dirige e às exigências do bem comum." Ora, o citado art. 34 cuida de
prova do domínio do bem expropriado, geralmente imóvel. No caso, trata-se de
benfeitorias que servem de moradia a pessoas de baixa renda, e que precisam ser
indenizadas desde logo, a fim de se evitarem problemas sociais mais graves.
7.8 Em caso de apossamento administrativo, aquela mesma Corte autorizou o
levantamento do valor da indenização depositada, independentemente do cumprimento
das exigências do mencionado art. 34 da Lei de Desapropriações (RT 602/109).
7.9 Na verdade, o que se pretende é separar a indenização das benfeitorias -
a ser paga na imissão provisória da posse - da indenização devida pelo terreno
onde elas se encontram, mesmo porque, em sua quase totalidade, pertencem a
titulares diversos.
7.10 O mesmo Tribunal de Justiça de São Paulo já admitiu o levantamento de
porcentagem equivalente à parte efetivamente desapropriada, relegando à via judicial
a indenização dos remanescentes e das benfeitorias, decisão tomada em obediência
ao princípio da justa e prévia indenização em dinheiro (Agr. Instr. 247.078-2, São
Paulo, ReI. Scarance Fernandes, julgo 18.10.94), aceitando, assim, a cisão da inde-
nização devida a todos aqueles que possuem algum direito de cunho patrimonial
incidente sobre o bem expropriado e diverso do direito do proprietário.
7.11 Embora essa cisão não seja a regra em nosso direito, ela tem sido admitida
em situações excepcionais, como demonstram as várias decisões jurisprudenciais
citadas anteriormente. Alguns doutrinadores, como Carlos Ari Sundfeld, vão mais
longe. entendendo que a desapropriação - e a conseqüente indenização - é o
meio adequado para a imposição de qualquer sacrifício de direito, para concluir,

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invocando a lição de Pontes de Miranda: .. a desapropriação não é modo de adquirir.
é modo de perder a propriedade" .16
7.12 Assim. é indubitável que os titulares das benfeitorias existentes sobre os
terrenos públicos ou de terceiros. abrangidos pelo ato expropriatório - ainda que
meros possuidores - têm direito de receber a indenização correspondente àquelas
benfeitorias. A simples imissão provisória na posse daqueles bens corresponde ao
sacrifício de seu direito de moradia, que deve ser indenizado convenientemente.

8. Benfeitorias em terrenos marginais

8.1 Os terrenos marginais de rios públicos, na faixa denominada reservada pelo


Código de Águas (art. 14), vem sendo considerados não indenizáveis nas desapro-
priações, nos termos da Súmula 479 do Supremo Tribunal Federal. Não obstante, o
Superior Tribunal de Justiça tem entendido que os terrenos reservados são de pro-
priedade particular e, portanto, indenizáveis, seguindo a opinião de Hely Lopes
Meirelles (RJSTJ 68/162; 71/287).17
8.2 No caso, porém, não está posta a discussão na indenização dos terrenos
reservados, mas sim das benfeitorias sobre eles levantadas. Assim sendo, tais ben-
feitorias devem ser indenizadas, a elas se aplicando os mesmos argumentos utilizados
no item 7. Ainda que o terreno seja público e não indenizável. os possuidores das
precárias construções edificadas naquela terra fazem jus à indenização correspon-
dente aos respectivos valores. Este ponto é pacífico, hoje, na jurisprudência de nossos
Tribunais.

9. Procedimentos cautelares necessários

9.1 É evidente que a indenização dessas benfeitorias não deve ser paga sem as
cautelas necessárias. Primeiramente, todos os terrenos e benfeitorias abrangidos pelo
ato expropriatório devem ser perfeitamente identificados, em suas características e
dimensões, por empresa especializada, utilizando-se inclusive o levantamento fisi-
co-planimétrico, com base nos cadastros dos municípios onde se encontram.
9.2 Em seguida, é relevante que se demonstre a situação calamitosa em que se
encontram a maioria dos moradores da área desapropriada. utilizando-se fotografias,
vídeos e outras formas que possam revelar a grave situação social decorrente do
desalojamento daquela população.
9.3 Igualmente, é indispensável a avaliação criteriosa daqueles bens e a iden-
tificação de seus respectivos titulares, bem como o título que sobre elas detêm: de
propriedade, de posse ou de simples detenção. Como se trata de construções modes-

16 CARLOS ARI SUNDFELD. DireilO Administratim Ordenador. Malheiros Editores, 1993. pp. 99-
100.
17 HEL Y LOPES MEIRELLES, ob. cit.. p. 504.

.+7
tas, com características de favela, o título, muitas vezes, é apenas um recibo, que
vai passando de morador a morador. Mas todos esses elementos devem ser cuida-
dosamente recolhidos pelos agentes do Poder Público, para que constem dos respec-
tivos processos de indenização amigável.
9.4 A partir dessa identificação e da avaliação cuidadosa das benfeitorias, deve
o Poder Público proceder aos acordos administrativos, efetuando o pagamento da
indenização somente com a sua imissão na posse daquelas benfeitorias e a saída
dos respectivos ocupantes, de forma que possa efetuar a sua imediata demolição.
impedindo a volta dos seus antigos moradores e possibilitando. assim. o início das
obras,
9,5 O modus faciendi desses acordos administrativos deve ser diligentemente
preparado pela Administração, com todas as cautelas necessárias, de forma a se
precaver contra possíveis alegações posteriores quanto à sua legitimidade,
9,6 A legalidade é um dos princípios básicos do regime administrativo brasileiro.
mas suas normas hão de ser interpretadas segundo as diretrizes da Lei de Introdução
ao Código Civil. Como explica Maria Helena Diniz, ela não é simplesmente uma
lei introdutória àquele direito; ela é muito mais do que sua nomenclatura possa
indicar. Na verdade. trata-se de uma norma preliminar à totalidade do ordenamento
jurídico nacional. aplicando-se a todas as normas brasileiras. sejam de direito
público ou privado. Trata-se de uma lex legum, ou seja, um conjunto de normas
sobre normas, um direito sobre direito, um superdireito, um direito coordenador do
direito. 18
9.7 Conseqüentemente, ao preceituar que, na aplicação da lei, o juiz atenderá
aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum (art. 511 da LICC),
as normas legais administrativas, inclusive as referentes à desapropriação, deverão
ser interpretadas segundo aquela diretriz. Aliás, foi o que decidiu o Tribunal de
Justiça de São Paulo, ao autorizar o levantamento da quantia referente às benfeito-
rias realizadas: independentemente do cumprimento das exigências do art. 34 da
Lei de Desapropriações, em face do preceito do art. 5º da Lei de Introdução ao
Código Civil (JTJ 132/303).
9.8 Dentre os administrativistas brasileiros mais rigorosos a respeito da aplica-
ção do princípio da legalidade está Celso Antônio Bandeira de Mello, o ilustre
Professor da Universidade Católica de São Paulo. Não obstante, invocando a lição
de Kelsen, destaca que" a norma é uma moldura que comporta mais de uma inter-
pretação. Ora, como não é o direito que pode fornecer a opção entre as interpretações
possíveis, resulta que esta provirá de fatores extrajurídicos e, portanto, políticos,
sociológicos, morais etc." 19.
9.9 De tudo o que ficou exposto, segue-se que é perfeitamente legítimo e justo
o pagamento das benfeitorias existentes nas áreas expropriadas, mediante acordo

18 MARIA HELENA DINIZ, Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro Interpretada, Ed. Saraiva,
pp.3/4.
19 CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO, Curso de Direito Administrativo, Malheiros Editores,
10" ed .• 1998. p. 454.

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com seus possuidores, deixando a indenização da terra nua para a via judicial. Tal
procedimento não só encontra apoio em nossa legislação, doutrina e jurisprudência,
como também atende ao propósito social de dar àquela população carente o mínimo
de recursos necessários para encontrar novas moradias, em consonância com a
política habitacional do Governo,

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