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Cada vez mais pessoas estão trocando o analista por medicamentos, novos tratamentos
psicológicos e terapias alternativas para aliviar o sofrimento da mente. Será que as
idéias de Freud estão morrendo?
Freud explica” é um dos grandes clichês do século XX. Mesmo quem nunca leu sequer
um parágrafo dos mais de 20 livros do fundador da psicanálise já esbarrou com termos
como complexo de Édipo, desejos reprimidos, inveja do pênis, símbolos fálicos, ego, id
e superego. A figura do gênio de cabelos grisalhos, barba bem aparada, com seu
sugestivo charuto e um olhar que parece penetrar nas profundezas da alma humana faz
parte do inconsciente de nossa época. Aliás, a própria noção do inconsciente está para
Freud como a Teoria da Relatividade para Einstein ou a evolução para Darwin. Ainda
hoje, pessoas em todo o mundo se submetem ao mesmo ritual que ele desenvolveu para
tratar dos males da mente: vão a um especialista, sentam-se num móvel acolchoado e
começam a falar.
Apesar de tão popular, a psicanálise (nome que Freud deu a esse método, em 1896),
nunca foi alvo de tantas críticas como nos últimos anos. Neurologistas e estudiosos da
mente dizem que boa parte dela está mais próxima da ficção do que da ciência e que as
obras de Freud hoje não passam de boa literatura (ele escrevia muito bem). Psicólogos
sociais acusam a ênfase dada por Freud às relações familiares e à sexualidade como
modelos limitados de interpretação do sofrimento psíquico, propondo novos caminhos
para cuidar dos problemas existenciais. Contribuindo para esvaziar ainda mais os
consultórios dos psicanalistas, milhares de pessoas procuram alívio para o sofrimento da
alma em psicoterapias não-freudianas e até mesmo na filosofia oriental e na
redescoberta da própria espiritualidade.
“Só quem tem pouco bom senso levaria hoje a sério a maioria das idéias de Freud”, diz
a psicóloga Sophie, professora da Faculdade Simmons, em Boston, nos Estados Unidos.
Sua declaração seria mais uma dentre o coro de críticos de Freud, não fosse por um
detalhe importante. O último nome de Sophie é Freud. Isso mesmo: a neta do fundador
da psicanálise disse à Super que é bastante cética diante das teorias do avô e acha que
pouca coisa de suas teses ainda pode ser considerada.
Não é a primeira vez que Sophie faz críticas à psicanálise. Em 1995, ela participou,
junto com diversos críticos de Freud, nos Estados Unidos, de uma manifestação contra o
tom “adulatório” de uma exposição sobre seu avô que seria inaugurada naquele ano, na
Biblioteca do Congresso Americano. Além de ser adiada para 1998, quando finalmente
foi aberta, a exposição incorporou uma “visão mais crítica de Freud” e foi um indício de
que os ataques à psicanálise não iriam parar por aí.
Afinal, vale ou não a pena pagar por anos de análise? Os psicanalistas afirmam que sim
e rebatem as críticas dizendo que elas são típicas de uma época em que as pessoas
querem resolver seus problemas existenciais na farmácia, como se fosse possível
encontrar a felicidade em cartelas de antidepressivos, como o Prozac. O problema com
as drogas é que elas atuariam nos sintomas e não nas causas do sofrimento psíquico.
Passado o efeito do medicamento, todas as insatisfações voltariam porque seus nós não
teriam sido desatados. “Ninguém tem dúvidas de que muitas das novas drogas podem
aliviar os sintomas de diversas doenças da mente”, diz Peter Gay, psicanalista,
historiador, professor emérito da Universidade de Yale e autor da famosa biografia
Freud: Uma Vida para o Nosso Tempo. “Mas elas não podem curar ninguém. A técnica
do tratamento pela fala, criação de Freud, é e permanecerá essencial.” (Veja as
principais idéias de Freud e suas críticas na página ao lado.)
Talvez seja cedo para afirmar se, no futuro, Freud será mais lembrado como o médico
que inventou um tratamento revolucionário para as doenças mentais ou como um dos 26
autores mais importantes da literatura, na seleção que o crítico literário Harold Bloom
fez em seu livro O Cânone Ocidental.
Freud x neurociência
Pouca gente sabe, mas antes de criar a psicanálise o próprio Freud passou anos de sua
vida tentando entender o funcionamento da fisiologia do cérebro e como ele poderia
desencadear os distúrbios mentais, igualzinho a qualquer neurocientista moderno. Entre
1882 e 1885, Freud trabalhou com pacientes que sofriam de lesão cerebral no Hospital
Geral de Viena, já tendo pesquisado o sistema nervoso de lampréias e lagostins. Então
por que boa parte dos neurocientistas atuais vive criticando suas idéias?
Esse déficit geraria uma falha na chamada memória de trabalho (a memória usada para
nos orientar no aqui e agora), fazendo com que o esquizofrênico perceba a realidade
como alucinação. “Para controlar os mecanismos que disparam essas alucinações, a
medicação é fundamental”, diz o neurocientista. “Utilizar o modelo freudiano para
tentar curar alguns desses distúrbios pode ser tão inútil quanto tentar encontrar um erro
num programa de computador quando a base do problema está na máquina.”
Máquina? Não seria uma simplificação comparar um homem a um computador,
traçando uma linha clara entre um hardware, formado pelo cérebro e suas interações
químicas, e um software, constituído por nossas emoções, pensamentos e experiências
de vida? Izquierdo diz que é claro que a divisão não é tão simples e há uma série de
interações entre as predisposições orgânicas e história de vida. “Se você tem uma
tendência para a depressão, por exemplo, é óbvio que ela vai estar associada a algumas
passagens de sua vida”, diz Izquierdo. “Mas a predisposição já estava lá, enquanto
outras pessoas, com experiências semelhantes, reagem de outra forma apenas por não
terem a mesma tendência.”
Ele diz que isso não significa que um evento como a perda de uma pessoa querida ou
um trauma de guerra não possa causar um distúrbio numa pessoa normal. “É claro que
pode”, diz Izquierdo. Mas mesmo nesses casos, conhecidos como síndrome pós-trauma,
ele diz que a psicanálise freudiana nem sempre é útil e às vezes pode até ter efeito
negativo. “Trabalhar com a memória nesses casos pode despertar sensações terríveis
que agravam o estado do paciente”, diz.
“É claro que é fundamental fazer algum tratamento psicológico, mas outras terapias
não-freudianas podem ser mais indicadas.”
O neurocientista Renato Sabattini, da Unicamp, diz ter a resposta para essa pergunta: “A
psicanálise funciona, sim. Mas não pela validade de suas teorias, e sim pelo efeito
placebo que a fala tem no tratamento de distúrbios da mente”. Sabattini diz que em
casos de depressão e ansiedade esse efeito pode ter resultados favoráveis de até 40%.
Sabattini. “Trata-se de reconhecer que não há nenhuma base científica que sustente a
psicanálise.”
Como exemplo, ele cita o papel que Freud deu aos sonhos em seu livro
“É claro que, se você procurar, pode encontrar no seu sonho padrões e significados para
o que quiser”, diz Sabattini. “Da mesma forma que você pode dar inúmeros significados
a um quadro abstrato numa exposição de arte moderna.” Mas isso é ciência?
O primeiro seria a falta de evidências de que o tratamento psicanalítico tem uma boa
relação custo/benefício – para ele, há tratamentos mais rápidos e baratos, e ninguém
conseguiu provar que a psicanálise é mais eficiente do que esses tratamentos. A segunda
razão seria a ascensão dos novos medicamentos. Aliadas a psicoterapias de curto prazo,
as novas drogas estariam tomando o lugar da psicanálise.
Não deixa de ser uma ironia, mas enquanto a neurociência critica o método freudiano
pela falta de objetividade, uma corrente da psicologia contemporânea diz que a
psicanálise não pode ajudar o homem moderno exatamente pelo motivo oposto: ela
estaria excessivamente fechada num modelo de indivíduo do tempo de Freud, não
levando em consideração que há uma infinidade de outras causas que podem ser
responsáveis pelos distúrbios mentais.
Michel Foucault, Gilles Deleuze e Félix Guattari são os três filósofos franceses que
serviram de base para esse questionamento da psicanálise. Em 1972, Guatarri e Deleuze
escreveram juntos o livro O Anti-Édipo, criticando as idéias de Freud e seus seguidores
por sempre buscarem um evento ou um trauma original para enquadrar o analisado
numa certa categoria. Segundo os dois filósofos franceses, essa é uma visão
extremamente reducionista do homem. O problema é: se já era complicado para um
psicanalista vasculhar o mundo interior de uma pessoa, como lidar com o sofrimento
pessoal de alguém alargando essas fronteiras para outras fatores como a política, a
economia? Parece impossível na prática, não?
A médica e analista carioca Ana Rego Monteiro garante que é perfeitamente viável. Ela
diz que, em vez de privilegiar, como na psicanálise, as relações familiares e a infância
como uma das fontes mais importantes para o sofrimento de alguém, o analista tem que
levar em conta que outras forças como a pressão no trabalho ou mesmo a exigência de
se enquadrar num padrão de beleza não devem ter necessariamente um peso menor que
aqueles fatores para desencadear uma depressão. “No lugar de classificar o paciente
dentro de um quadro de doença psíquica, é preciso analisar as forças que estão atuando
para produzir esse sofrimento”, diz a analista. Ela propõe, por exemplo, que o aumento
de transtornos como a síndrome de pânico estaria ligado às mudanças econômicas,
políticas e tecnológicas do mundo moderno. “É inútil querer curar alguém apenas com
medicamentos ou tentando solucionar conflitos interiores”, afirma. “É preciso entender
o conjunto de outras forças políticas que agem na mente dessa pessoa.”
Você já deve ter notado que esse tipo de crítica a Freud é totalmente diferente das feitas
pelos neurocientistas ou por novas correntes da psicologia. Não se trata de acusar a
psicanálise de falta de rigor científico ou de negligência diante do contexto social.
Trata-se de criticá-la por ignorar a existência de outros estados transcendentais da mente
que nem a teoria de Freud nem a psicologia ocidental e muito menos a psiquiatria levam
em consideração.
A americana Suzan Andrews, monja de meditação radicada em São Paulo, diz que essa
limitação da psicanálise freudiana não existe à toa. “De William James a Freud, a
psicologia ocidental tem pouco mais de 200 anos”, diz Suzan. “Já a psicologia oriental
estuda esses estados mentais há cerca de 7000 anos.”
Suzan, que passou 30 anos entre a Índia e a China estudando técnicas de meditação, diz
que o método freudiano de cura pela fala não é o melhor caminho para tratar do
sofrimento da mente. “Em vez de alívio, ficar falando de suas angústias despende ainda
mais energia do corpo”, diz Suzan. “A meditação pode trazer resultados melhores que o
tratamento verbal.” Mas isso, por acaso, não seria uma fuga dos problemas existenciais
que a psicanálise traria à tona?
Ela garante que não. “Não se trata de fugir dos nossos conflitos internos”, diz Suzan.
“Trata-se de fortalecer a mente para que você responda a esses conflitos com
compaixão, até mesmo porque a origem deles não está necessariamente restrita a
passagens da infância.”
A insistência em procurar a origem da infelicidade humana com base apenas nessa vida
é, para as correntes espiritualistas, a maior limitação da psicanálise. Isso mesmo: para
eles, boa parte do que você é hoje em dia é produto de inúmeras reencarnações.
É nisso que acreditam, por exemplo, as milhares de pessoas que lêem e seguem a
filosofia budista do Dalai Lama, líder espiritual do povo tibetano. (Leia a reportagem de
capa da
O futuro de Freud
É bem provável que a essa altura você já esteja pensando em como vai dizer a seu
psicanalista que pretende suspender suas sessões. Mas será que os críticos de Freud
conseguirão, realmente, enterrá-lo no passado? “Freud sobreviverá”, garante o
historiador Peter Gay. Quanto às críticas de que a psicanálise não tem base científica e
sempre arruma um jeito de ter resposta para tudo, ele rebate: “Esse ataque é
extremamente simplista. Freud deixou clara sua aversão ao analista com respostas
prontas para tudo. Só um irresponsável se comportaria dessa forma.” O problema é:
quem pode definir quais parâmetros um terapeuta tem que seguir para ser chamado de
psicanalista?
O historiador Peter Gay diz que, no futuro, um caminho promissor para o estudo da
mente terá até que contar com a parceria de neurologistas e psicanalistas. “Já existem
pessoas nesse momento que estão tentando formular uma nova teoria da mente que
possa congregar o trabalho dos neurologistas com o dos psicanalistas”, diz Gay.
“O problema é que falta um grande inovador como Freud para unir a produção dessas
diferentes áreas.” O psiquiatra Henrique Del Nero, da USP, diz que se a psicanálise não
fizer isso ela se tornará apenas “uma forma sofisticada e cara de buscar
autoconhecimento.” Mas, afinal, as idéias de Freud morreram ou não?
Talvez tenha sido o americano John Horgan, ex-editor da revista Scientific American e
bastante conhecido pelo seu ceticismo, quem tenha dado a resposta mais perspicaz a
essa pergunta. Em seu livro A Mente Desconhecida, ele diz que não, Freud ainda não
está morto. Mas, em vez de atribuir essa sobrevivência à validade intrínseca das teorias
do fundador da psicanálise, ele aponta uma razão mais singela para a persistência das
idéias de Freud: “Se os modelos da psicanálise são deficientes, a neurologia também
estaria longe, muito longe de desvendar o maior mistério da ciência: a mente humana.
E, para aumentar o nível de felicidade de alguém que sofre, vale o que funcionar, seja a
ciência ou não. É isso, aparentemente, que as pessoas estão dizendo aos estudiosos.
Frases
Teoria trincada: será que o tratamento psicanalítico criado por Freud sobreviverá até o
fim do século XXI?
Perguntado certa vez se o seu charuto não seria um símbolo fálico, Freud teria
respondido: “Às vezes, um charuto é apenas um charuto”
A teoria psicanalítica teria sido escrita para a sociedade vienense na passagem do século
XIX para o século XX – e não traduziria mais a psique humana de hoje
Freud editando o manuscrito de um de seus últimos livros: no final da vida, ele chegou a
prever que os medicamentos teriam papel destacado no tratamento dos distúrbios da
mente
Sigmund Freud, numa foto de 1939, ano de sua morte: mais de meio século depois, o
mundo ainda é freudiano
Inconsciente
Apesar de não ter sido o primeiro a usar esse conceito, Freud inovou ao tratá-lo como
uma espécie de depósito dos nossos desejos reprimidos ligados à sexualidade ou à
agressão que ficam atuando sobre a mente consciente. Ao ouvir o paciente falar
livremente no divã, o psicanalista o ajuda a compreender como a pressão do
inconsciente está produzindo seus distúrbios para que ele possa se libertar deles.
Sonhos
Com a publicação do seu livro A Interpretação dos Sonhos (1900), Freud diz que o
sonho é a linguagem simbólica pela qual se manifesta o inconsciente, com todos os seus
conflitos não resolvidos e desejos reprimidos.
Infância e sexualidade
Freud acredita que a mente adulta vai sendo moldada na infância, de acordo com as
experiências de prazer e desprazer que ela vivencia em cada fase do desenvolvimento da
libido – libido, para Freud, é a energia corporal expressa pelos instintos sexuais. Ela já
estaria presente no bebê, por exemplo, ao se relacionar com seus pais. Se o bebê for
menino, ele deseja ter a mãe para si e enxerga o pai como um rival que reprime seu
desejo (complexo de Édipo). Já a menina desejaria o pai – mas também reprime essa
vontade por temer perder o amor de sua mãe por isso. Mesmo permanecendo ocultos no
inconsciente, esses desejos poderiam gerar distúrbios na mente do adulto.
Ainda que reconheçam o pioneirismo de Freud em descobrir que a criança também
sente prazer sexual (não expressa ainda pelos órgãos genitais), seus opositores dizem
que ele exagera na atenção que dá às relações da criança com seus pais como
determinantes para definir o equilíbrio da vida mental do adulto. Para esses críticos,
essa abordagem seria válida apenas no conceito da família da sociedade vienense em
que Freud viveu.
Para Freud, a personalidade está dividida em três partes. A primeira delas, o id, seria a
mais profunda da psique humana. Lá estariam depositados os impulsos instintivos
dominados pelo desejo de prazer. Ou seja: é o lado animal do homem, quase todo
insconsciente. Já o superego seria uma espécie de polícia interna. É aquela voz que
parece ser o senhor da razão, julgando nossos atos e, na maioria das vezes, censurando-
nos. No meio do conflito entre os desejos do id e a censura do superego, estaria o ego. O
ego é a parte da personalidade que está em contato direto com a realidade externa.
Criado a partir do id, tem a função de garantir a saúde, a segurança e a sanidade da
pessoa.
Alguns críticos dizem que esse modelo de Freud não tem nenhuma contrapartida com a
neurociência – mas a neurociência tampouco parece ter algum modelo completo do
funcionamento da mente. Enquanto psicólogos sociais consideram essa divisão
reducionista, os espiritualistas dizem que a mente não está dividida apenas em três
partes. Haveria outras forças, transcendentais, atuando sobre ela.
NA LIVRARIA
Freud - Uma Vida para o Nosso Tempo, Peter Gay, Companhia das Letras, 1990