de
J. C. Ryle
Tradução
Helio Kirchheim
Textos de J. C. Ryle -2-
Aquele que nasceu de novo, aquele que foi regenerado, crê que Jesus Cristo é
o único Salvador que pode perdoar-lhe a alma, que Ele é a pessoa divina designada
por Deus o Pai para esse propósito específico, e à parte dEle não existe Salvador de
forma alguma. Em si mesmo ele nada vê senão indignidade. Mas ele tem plena
confiança em Cristo; e, por crer nEle, crê que seus pecados estão todos perdoados.
Ele crê que, pelo fato de ter aceito a obra consumada de Cristo na cruz, ele é
considerado justo aos olhos de Deus, e que pode encarar a morte e o julgamento
sem amedrontar-se.
Ele talvez tenha medos e dúvidas. Às vezes ele pode dizer que se sente como
se não tivesse fé nenhuma. Mas pergunte-lhe se ele deseja confiar nalguma outra
coisa que não seja Cristo, e repare no que ele vai dizer. Pergunte-lhe se ele quer pôr
a sua esperança de vida eterna em sua própria bondade, em suas próprias obras,
suas orações, seu ministério, ou sua igreja, e ouça a sua resposta. O que o apóstolo
diria sobre você? Você já nasceu de novo?
amor peculiar pelos crentes. Ele nunca se sente tão à vontade como quando está na
companhia deles.
Ele sente que são todos membros da mesma família. Eles são soldados
companheiros seus, lutando contra o mesmo inimigo. Eles são seus companheiros
viajantes, viajando pela mesma estrada. Ele os compreende, e eles compreendem a
ele. Eles talvez sejam bastante diferentes dele em muitos aspectos — grau de
estudo, posição social e riqueza. Mas isso não importa. Eles são filhos e filhas do
seu Pai e ele não pode deixar de amá-los. O que o apóstolo diria sobre você? Você já nasceu
de novo?
O Teste
Há uma vasta diferença quanto à profundidade e à clareza dessas
características nas diferentes pessoas. Em algumas, essas características são débeis e
difíceis de detectar. Em outras, são destacadas, claras e inequívocas, de forma que
qualquer um pode percebê-las. Algumas dessas características são mais visíveis do
que outras em cada indivíduo. Raramente são todas igualmente evidentes numa
mesma pessoa.
Mas mesmo assim, depois de toda e qualquer tolerância, aqui estão expostas
de forma clara as seis características de quem nasceu de Deus.
[ Extraído de
http://www.eternallifeministries.org/jcr_bornagain.htm ]
abertos sobre todos os caminhos dos filhos dos homens, para dar a cada um
segundo o seu proceder, segundo o fruto das suas obras”.
Está escrito no Salmo 139.1-12: “SENHOR, tu me sondas e me conheces.
Sabes quando me assento e quando me levanto; de longe penetras os meus
pensamentos. Esquadrinhas o meu andar e o meu deitar e conheces todos os meus
caminhos. Ainda a palavra me não chegou à língua, e tu, SENHOR, já a conheces
toda. Tu me cercas por trás e por diante e sobre mim pões a mão. Tal
conhecimento é maravilhoso demais para mim: é sobremodo elevado, não o posso
atingir. Para onde me ausentarei do teu Espírito? Para onde fugirei da tua face? Se
subo aos céus, lá estás; se faço a minha cama no mais profundo abismo, lá estás
também; se tomo as asas da alvorada e me detenho nos confins dos mares, ainda lá
me haverá de guiar a tua mão, e a tua destra me susterá. Se eu digo: as trevas, com
efeito, me encobrirão, e a luz ao redor de mim se fará noite, até as próprias trevas
não te serão escuras: as trevas e a luz são a mesma coisa”.
Essa linguagem nos perturba e impressiona. Esta doutrina (a do Deus
onisciente) está além da nossa compreensão. É exatamente assim. Davi disse a
mesma coisa há quase três mil anos: “Tal conhecimento é maravilhoso demais para
mim: é sobremodo elevado, não o posso atingir” (Sl 139.6). Mas pelo fato de não
podermos entender essa doutrina, não significa que ela não seja verdadeira. A culpa
deve ser colocada no lugar certo — nossos pobres intelectos e mentes — e não na
doutrina. Há muita coisa em nosso mundo que poucos conseguem entender ou
explicar — contudo nenhum homem sensato se recusa a crer nessas coisas. Como
é que este mundo gira constantemente em torno do sol com incrível rapidez, mas
não sentimos movimento nenhum? Como é que a lua afeta as marés, e faz com que
avancem e recuem duas vezes a cada vinte e quatro horas? De que forma milhões
de criaturas vivas e perfeitamente organizadas existem em cada gota de água parada,
mas que não conseguimos ver a olho nu? Tudo isso são coisas bem conhecidas dos
cientistas, embora a maioria de nós não consiga explicá-las, mesmo que disso
dependa nossa sobrevivência. E devemos nós, diante desses fatos, ousar duvidar
que Deus está presente em todo lugar, pelo simples fato de que não podemos
compreender esse fenômeno? Que nunca mais nos atrevamos a dizer tal coisa!
Quantas coisas há a respeito de Deus, que possivelmente nunca chegaremos
a entender, e contudo temos de crer nelas, a não que sejamos tão estúpidos que nos
tornemos ateus! Quem pode explicar a eternidade de Deus, o infinito poder e
sabedoria de Deus, ou os atos de Deus na criação e na providência? Quem pode
compreender um Ser que é Espírito, sem um corpo, sem partes, nem paixões?
Como pode uma criatura constituída de matéria, que pode estar apenas em um
lugar de cada vez, conceber a idéia de um Ser imaterial, que existe antes da criação,
que do nada formou este mundo através da Sua palavra — e que consegue estar em
todo lugar e ver tudo ao mesmo tempo! Numa palavra, onde encontramos um só
dos atributos de Deus, que o homem mortal pode compreender por completo?
Como se pode considerar, então, bom senso ou sabedoria, a recusa em crer
na doutrina do Deus presente em todos os lugares, meramente porque nossa mente
não consegue conceber esse fato? O livro de Jó o diz muito bem: “Porventura,
Textos de J. C. Ryle -8-
que tudo vê! Quão pouco nós conhecemos de fato o nosso próprio caráter! “O
homem vê o exterior, porém o Senhor, o coração” (1 Sm 16.7). O homem não nos
vê o tempo todo, mas o Senhor está o tempo todo olhando para nós - de manhã, à
tarde, e à noite! Quem é que não precisa dizer: “Deus, tem misericórdia de mim,
pecador!”
Esses pensamentos são úteis e proveitosos a todos nós. A pessoa que não os
vê dessa maneira, deve estar numa lamentável condição de alma. Que seja um
princípio definido em nossa religião: nunca esquecer que em toda situação e lugar
estamos sob os olhos de Deus! Isso não precisa nos amedrontar, se somos
verdadeiros crentes. Os pecados de todos os crentes foram lançados para trás das
costas de Deus, e mesmo o Deus que tudo vê não percebe nenhuma mancha neles!
Isso deve nos encorajar, se nosso cristianismo é genuíno e sincero. Podemos,
então, apelar a Deus com confiança, como Davi, e dizer: “Sonda-me, ó Deus, e
conhece o meu coração, prova-me e conhece os meus pensamentos; vê se há em
mim algum caminho mau e guia-me pelo caminho eterno” (Sl 139.23,24). É grande
o mistério do Deus presente em todo lugar, mas o verdadeiro homem de Deus
pode encarar isso sem medo.
3 Uma conspiração tramada para explodir o Parlamento inglês e o Rei Tiago I, em 5 de novembro de 1605, data em que o
rei abriria o Parlamento.
Textos de J. C. Ryle - 11 -
Senhor Jesus Cristo, com Sua Igreja, é o ponto que pretendo desvendar nesta parte
do meu artigo. Pretendo mostrar que Ele de fato e verdadeiramente está presente
com o Seu povo crente, espiritualmente - e que a Sua presença é um dos grandes
privilégios do verdadeiro cristão. O que, então, é a real presença espiritual de Cristo,
e em que consiste essa presença? Vejamos!
(a) Há uma real presença espiritual de Cristo com a Igreja que é Seu
corpo místico — a bendita companhia de todo o povo fiel.
É esse o sentido das palavras de despedida de nosso Senhor a Seus
apóstolos: "eis que estou convosco todos os dias até à consumação do século" (Mt
28.20). Esta palavra não diz respeito propriamente à igreja cristã visível. Rasgada
por divisões, poluída por heresias, desgraçada por superstições e corrupções, a
igreja cristã visível tem, freqüentemente, dado provas de que Cristo nem sempre
habita nela! Muitos dos seus ramos, no correr dos anos, à semelhança das Igrejas da
Ásia, decaíram e morreram!
A presença especial de Cristo se encontra com a Igreja universal, invisível,
composta dos eleitos de Deus — a Igreja da qual cada um dos membros é de fato
santificado, a Igreja dos homens e mulheres crentes e arrependidos — esta é a
Igreja a quem, a rigor, pertence a promessa! Essa é a Igreja em que se encontra
sempre uma real presença espiritual de Cristo.
Não há uma Igreja visível na terra, por mais antiga e bem organizada que
seja, que esteja seguramente guardada de se desviar. Tanto as Escrituras como a
história testificam que, à semelhança da Igreja judaica, ela pode se corromper, e
afastar-se da fé; e, apartando-se da fé, ela pode morrer. E por que isso acontece?
Simplesmente porque Cristo nunca prometeu a nenhuma igreja visível que Ele
estaria sempre com ela até à consumação do século. A palavra que Ele inspirou
Paulo a escrever à Igreja de Roma - é a mesma palavra que Ele envia a toda igreja
visível através do mundo, quer seja Episcopal, Presbiteriana ou Congregacional:
"Não te ensoberbeças, mas teme. ...para contigo, a bondade de Deus, se nela
permaneceres; doutra sorte, também tu serás cortado" (Rm 11.20-22).
Por outro lado, a contínua presença de Cristo com essa Igreja universal,
invisível, que é o Seu corpo — é o grande segredo da sua continuidade e segurança!
Ela permanece viva e não pode morrer porque Jesus Cristo está no meio dela! Ela é
um navio sacudido por tormentas e tempestades, mas não pode afundar porque
Cristo está a bordo! Talvez seus membros sejam perseguidos, oprimidos,
aprisionados, roubados, espancados, decapitados ou queimados — mas a Sua
verdadeira Igreja nunca será extinta. Ela sobrevive ao fogo e à inundação! Quando
exterminada num país, ela brota em outro. Os Faraós, os Herodes, os Neros, os
Julianos, as Marias Sanguinárias — todos têm se esforçado em vão para destruir
esta Igreja. Eles mataram os seus milhares — e depois seguiram o seu próprio
destino eterno! A verdadeira Igreja sobrevive a todos eles. Ela é uma sarça que
freqüentemente arde, contudo nunca se consome. E qual é a razão disso tudo? É a
constante presença de Jesus Cristo com o Seu povo!
Textos de J. C. Ryle - 12 -
Esta seção do nosso assunto merece muita reflexão. Essa presença espiritual
de Cristo é algo real e verdadeiro, embora os filhos deste mundo nem a conheçam
nem entendam. É precisamente a respeito de um desses assuntos que Paulo
escreveu: "o homem natural não aceita as coisas do Espírito de Deus, porque lhe
são loucura" (1 Co 2.14). Apesar disso, repito enfaticamente, essa presença
espiritual de Cristo — a Sua presença no coração e no espírito do Seu próprio povo
— é algo real e verdadeiro. Que não duvidemos, mas que, pelo contrário, nos
apoiemos nisso com firmeza e que procuremos senti-lo mais e mais. Aquele que
não sente absolutamente nada disso em seu próprio coração talvez tenha de admitir
que ainda não acertou a sua alma diante de Deus.
humano real, verdadeiro; nesse corpo humano real e verdadeiro Ele guardou a lei, e
cumpriu toda a justiça; nesse corpo humano real e verdadeiro Ele carregou nossos
pecados na cruz, e nos fez agradáveis a Deus pelo Seu sangue expiatório. Aquele
que morreu por nós no Calvário era perfeito homem, ao mesmo tempo em que era
perfeito Deus.
Este foi o primeiro aparecimento físico real de Jesus Cristo. Esta verdade é
cheia de indizível conforto a todos os que têm a consciência despertada, e
conhecem o valor de suas almas. É um pensamento que encoraja nosso coração:
“O único Mediador entre Deus e os homens é o homem Jesus Cristo”. Ele foi um
homem real — e desta forma capaz de sentir nossas fraquezas. Ele era o Altíssimo
Deus — e desta forma capaz de salvar totalmente todo aquele que se aproxima do
Pai através dEle. O Salvador em Quem todos os cansados e sobrecarregados são
convidados a confiar é Alguém que tinha um corpo real quando estava operando a
nossa redenção na terra. Não foi um anjo, nem um espírito que se pôs em nosso
lugar e Se tornou nosso substituto, que completou a obra da redenção, e que fez
aquilo que Adão deixou de fazer. Não! Quem fez isso foi Um que era um homem
real, verdadeiro! “Visto que a morte veio por um homem, também por um homem
veio a ressurreição dos mortos” (1 Co 15.21).
A batalha foi travada em nosso favor, e a vitória foi obtida pela eterna
Palavra que Se tornou carne — pela presença física real e verdadeira de Jesus Cristo
entre nós. Louvemos a Deus para sempre porque Cristo não permaneceu no céu
— mas veio ao mundo e Se fez carne para salvar pecadores; e isso num corpo, Ele
nasceu para nós, viveu para nós, morreu por nós, e ressuscitou. Quer os homens
saibam disso ou não, nossa esperança de vida eterna depende totalmente do
simples fato de que há mil e novecentos anos o Filho de Deus se fez presente em
carne, num corpo humano, por nós nesta terra. Vamos, agora, avançar mais um
passo.
ressurreição — mas ainda real e material — foi elevado até o céu, e ali está neste
exato momento.
Nas inspiradas palavras de Atos, “...foi Jesus elevado às alturas, à vista deles,
e uma nuvem o encobriu dos seus olhos” (At 1.9). Nas palavras do Evangelho de
Lucas, “Aconteceu que, enquanto os abençoava, ia-se retirando deles, sendo
elevado para o céu” (Lc 24.51). Nas palavras de Marcos, “De fato, o Senhor Jesus,
depois de lhes ter falado, foi recebido no céu e assentou-se à destra de Deus” (Mc
16.19). O quarto artigo da Igreja da Inglaterra estabelece o assunto de forma plena
e acurada: “Cristo de fato ressurgiu dos mortos com Seu próprio corpo, com carne,
ossos, e todas as coisas pertencentes à natureza humana completa, e com esse
corpo ascendeu ao céu, onde está assentado até que volte para julgar todos os
homens no último dia”. Dessa forma, voltando ao ponto onde começamos — de
fato há, no céu, a real presença física de Jesus Cristo.
A doutrina que estamos considerando é especialmente rica em conforto e
consolação a todo cristão verdadeiro. Esse divino Salvador no céu, sobre quem o
Evangelho nos orienta a lançar o fardo de nossa alma cheia de pecado, não é um
Ser que é Espírito apenas — mas um Ser que é homem, além de ser também Deus.
Ele é Um que foi ao céu com um corpo igual ao nosso; e nesse corpo está
assentado à mão direita de Deus, para ser nosso Sacerdote e nosso Advogado,
nosso Representante e nosso Amigo. Ele entende nossas fraquezas e pode
compadecer-Se delas, porque Ele mesmo sofreu no próprio corpo, ao ser tentado.
Ele conhece por experiência tudo que se pode sentir no corpo — dor, e cansaço, e
fome, e sede, e trabalho; e levou consigo esse mesmo corpo que sofreu a
contradição dos pecadores e que foi pregado no madeiro!
Quem pode duvidar que esse corpo no céu é uma contínua alegação de
defesa em favor dos crentes, e os faz aceitáveis na presença do Pai? Ele é uma
lembrança perpétua do perfeito sacrifício expiatório feito por nós na cruz. Deus
não haverá de esquecer que nossas dívidas já foram pagas, enquanto estiver no céu,
diante dos Seus olhos, o corpo que as pagou derramando o próprio sangue. Quem
pode duvidar que, quando derramamos as nossas petições e orações perante o
trono da graça, nós as colocamos nas mãos de Um cuja simpatia ultrapassa todo
entendimento? Ninguém pode se condoer de pobres crentes que lutam aqui no
corpo — como Ele que, no corpo, está assentado implorando por eles no céu.
Bendigamos para sempre a Deus porque de fato há uma presença corpórea real no
céu. Avancemos, agora, mais um passo.
(c) Na ceia do Senhor, não existe a presença física real de Cristo nos
elementos consagrados (o pão e o vinho). Esse é um ponto especialmente difícil
de tratar, porque de há muito divide cristãos em dois partidos, e mancha um
assunto solene com severa controvérsia. Apesar disso, o assunto não pode ser
evitado ao tratarmos a presente questão. Além disso, é um ponto de enorme
importância, e exige tratamento franco e aberto.
Textos de J. C. Ryle - 18 -
4Doutrina de Ário, sacerdote norte-africano, que viveu no 4º século. Negava a divindade de Cristo.
5Doutrina de Fausto Socino (1539-1604). Socino considerava que a ceia do Senhor era mera comemoração. Negava a
divindade de Cristo.
Textos de J. C. Ryle - 19 -
que ensinam o erro com o pretexto de, adorando os seus elementos, reverenciar
mais essa ordenança de Cristo.
Tomemos cuidado: se acatarmos essas confusas e místicas noções de alguma
inexplicável presença do corpo e do sangue de Cristo em forma de pão e vinho, de
repente nos descobriremos envolvidos nos ensinos heréticos a respeito da natureza
humana de Cristo. Junto ao ensino de que Cristo não é Deus, mas somente
homem, não há nada mais perigoso do que a doutrina de que Cristo não é homem,
mas somente Deus. Se não queremos cair nesse buraco, temos de nos manter
firmes no ensino de que não pode haver a presença física literal do corpo de Cristo
na santa ceia; porque o Seu corpo está no céu, e não na terra; embora como Deus
Ele esteja em todos os lugares. Avancemos, agora, um pouco mais, para chegarmos
a uma conclusão.
(d) Cristo estará de fato presente corporalmente quando Ele vier pela
segunda vez, para julgar o mundo. Esse é um assunto que a Bíblia trata com
tanta clareza, que não há como duvidar nem discutir. Quando nosso Senhor subiu
ao céu diante dos Seus discípulos, os anjos lhes disseram: “Esse Jesus que dentre
vós foi assunto ao céu virá do modo como o vistes subir” (At 1.11).
Não há como errar quanto ao sentido dessas palavras. Visivelmente e
corporalmente o nosso Senhor deixou este mundo, e visivelmente e corporalmente
Ele retornará no dia que, enfaticamente, é chamado de dia da “revelação de Jesus
Cristo” (1 Pe 1.7). A concepção que o mundo tem de Cristo sempre é distorcida.
Inúmeras pessoas falam e pensam dEle como se fosse alguém que realizou suas
obras neste mundo, morreu e tem seu lugar na História, à semelhança de algum
estadista ou filósofo, nada mais deixando a seu respeito do que lembranças.
Terrivelmente, o mundo haverá de acordar, um dia, do seu engano. Esse mesmo
Jesus que veio dezenove séculos atrás em humilde condição e pobreza, para ser
desprezado e crucificado — Esse mesmo Jesus virá outra vez um dia, em poder e
glória, para ressuscitar os mortos e transformar os vivos, e para recompensar cada
homem de acordo com as suas obras!
Felizes são aqueles que fazem disso uma parte da sua fé, e vivem na
constante expectativa da segunda vinda de Cristo. Daí — e somente daí — o diabo
será amarrado, a maldição será tirada da terra, o mundo será restaurado à sua
pureza original, a doença e a morte não mais existirão, as lágrimas serão enxugadas
de todos os olhos, e a redenção do santo, tanto do corpo como da alma, se
completará. “Amados, agora, somos filhos de Deus, e ainda não se manifestou o
que haveremos de ser. Sabemos que, quando ele se manifestar, seremos
semelhantes a ele, porque haveremos de vê-lo como ele é” (1 Jo 3.2). O mais alto
título do cristão é ser chamado de alguém que deseja a verdadeira presença do seu
Mestre, e que ama “a sua vinda” (2 Tm 4.8).
Neste breve estudo, expus, da melhor forma que pude, a verdade sobre a
presença de Deus e do Seu Cristo. As verdades expostas foram as seguintes:
(1) a doutrina geral da presença de Deus em todos os lugares;
(2) a doutrina bíblica da presença verdadeira de Cristo, presença
espiritual;
(3) a doutrina bíblica da presença verdadeira de Cristo, presença física.
Concluo, agora, o assunto, com uma palavra final de aplicação à nossa vida, e
sugiro que se preste muita atenção. Numa época de pressa e correria em busca de
coisas mundanas, numa época de desprezíveis discussões e controvérsias sobre
religião — imploro ao leitor que não negligencie as grandes verdades que estas
páginas contêm.
de Cristo no pão e no vinho. Essas coisas não estão na Bíblia; são perigosas
invenções humanas, que conduzem à superstição! Sejamos cuidadosos, então.
(4) Mantenhamos em mente, sempre, a segunda vinda de Cristo, e a
verdadeira presença que ainda virá. Mantenhamos nossas mentes cingidas e
nossas lâmpadas acesas, e a nós mesmos como homens que diariamente aguardam
o retorno do seu Mestre. Então, e somente então, haveremos de ter satisfeitos
todos os desejos de nossas almas. Até lá, quanto menos esperarmos deste mundo,
melhor. Que seja este o nosso clamor diário: “Amém! Vem, Senhor Jesus!”
Vejamos algumas coisas que as altas exigências deste texto nos sugerem
como necessárias, que devemos seguir e praticar.
1. Primeiro, ele exige inteira devoção ao grande trabalho para o qual
fomos ordenados
Quando o Salvador ordenou que certo homem O seguisse, ouviu em
resposta: “Permite-me ir primeiro sepultar meu pai”. Foi aí que Ele pronunciou
estas solenes palavras: “Deixa aos mortos o sepultar os seus próprios mortos. Tu,
porém, vai e prega o reino de Deus”. Ainda outro disse: “Seguir-te-ei, Senhor; mas
deixa-me primeiro despedir-me dos de casa”; e a ele foi dirigida esta memorável
frase: “Ninguém que, tendo posto a mão no arado, olha para trás é apto para o
reino de Deus”.
“... a ninguém saudeis pelo caminho”6 foi a ordem de Cristo aos setenta
discípulos. Com certeza essas declarações bíblicas nos ensinam que, em todas as
nossas atividades ministeriais, devemos possuir um padrão elevado. Devemo-nos
esforçar para ser homens de uma só coisa — e essa coisa é a obra de Jesus Cristo.
6 Lucas 9.59-10.4.
Textos de J. C. Ryle - 24 -
7 Neemias 6.3.
Textos de J. C. Ryle - 25 -
8 Lucas 6.26.
9 Gálatas 1.10.
Textos de J. C. Ryle - 26 -
Extraído de www.biblebb.com
Textos de J. C. Ryle - 27 -
Fariseus e Saduceus
“E Jesus lhes disse: Vede e acautelai-vos do fermento dos fariseus e dos saduceus” (Mateus 16.6).
tristes de que até mesmo os ministros mais distintos podem, por certo tempo,
desviar-se. Quem nunca ouviu de Cranmer a desmentir e retroceder das opiniões
que de forma tão decidida defendeu, embora, pela misericórdia de Deus, tenha
voltado novamente a sustentar uma gloriosa confissão no final? Quem nunca ouviu
de Jewell a assinar documentos que ele desaprovava inteiramente, e de cuja
assinatura mais tarde se arrependeu amargamente? Quem não sabe que muitos
outros podem ser citados, que, numa ocasião ou outra, foram vencidos de falhas,
caíram em erro, e se desviaram? E quem não conhece o triste fato que muitos deles
jamais retornaram à verdade, mas morreram duros de coração, e sustentaram seus
erros até o fim?
Essas coisas deveriam nos tornar humildes e cautelosos. Elas nos orientam
a desconfiar de nosso próprio coração e a orar para sermos guardados de cair.
Hoje, quando somos chamados de forma especial a nos apegarmos firmemente às
doutrinas da Reforma Protestante, sejamos cautelosos para que nosso zelo pelo
protestantismo não nos inche e nos encha de orgulho. Não digamos nunca em
nossa arrogância: “Eu nunca haverei de cair nos mesmos erros do catolicismo
romano ou da nova teologia: eu nunca vou concordar com as idéias deles”.
Lembremo-nos de que há muitos que começaram bem e correram bem por certo
tempo, e contudo mais tarde se desviaram do caminho certo. Sejamos cuidadosos
para sermos tanto homens espiritualmente corretos como protestantes, e tanto
verdadeiros amigos de Cristo como inimigos do anticristo. Oremos para sermos
guardados do erro, e nunca esqueçamos que até mesmo os doze apóstolos
precisaram ouvir da parte da Cabeça da Igreja estas palavras: “Vede e acautelai-
vos”.
do ensino deles era abalar a fé que as pessoas tinham na revelação, e jogar uma
nuvem de dúvida sobre a mente das pessoas, o que era apenas um pouco melhor
do que o próprio paganismo. E de todo esse modo de doutrina — livre-
pensamento, ceticismo e racionalismo — diz o nosso Senhor: “Vede e acautelai-
vos”.
Agora surge a questão: Por que razão nosso Senhor Jesus Cristo fez esse
alerta? Ele sabia, sem dúvida, que dentro de quarenta anos as escolas dos fariseus e
dos saduceus estariam completamente acabadas. Aquele que sabe todas as coisas
desde o princípio, sabia perfeitamente bem que em quarenta anos Jerusalém, com
seu magnífico templo, seria destruída, e os judeus seriam dispersos pela face da
terra. Por que, então, nós O encontramos fazendo esse alerta sobre “o fermento
dos fariseus e dos saduceus”?
Eu creio que nosso Senhor fez essa solene advertência para o benefício
perpétuo da Igreja, que Ele veio estabelecer na terra. Ele falou com conhecimento
profético. Ele conhecia bem as mazelas a que está sujeita a natureza humana. Ele
anteviu que as duas grandes pragas da Sua Igreja na terra seriam sempre a doutrina
dos fariseus e a doutrina dos saduceus. Ele sabia que essas doutrinas se
assemelhariam a duas grandes rochas, entre as quais a Sua verdade seria
perpetuamente comprimida e machucada até que Ele venha a segunda vez. Ele
sabia que sempre haveria, entre os que se professam cristãos, os fariseus em
espírito, e os saduceus em espírito. Ele sabia que os seus sucessores jamais
haveriam de faltar, e que jamais se extinguiria a sua geração, e que, embora não
existam mais os nomes fariseus e saduceus, contudo os seus princípios haveriam de
existir sempre. Ele sabia que, durante o tempo em que a Igreja existir, até o Seu
retorno, haveria sempre alguém que faria acréscimos à Palavra, e alguém que
haveria de excluir algo da Palavra, alguém que a desmereceria por meio de adição
de outras coisas, e alguém que a sangraria até a morte ao subtrair dela as suas
principais verdades. E essa é a razão por que nós O encontramos fazendo esta
solene advertência: “Vede e acautelai-vos do fermento dos fariseus e dos
saduceus”.
E agora surge a questão: Será que nosso Senhor Jesus Cristo tinha boas
razões para fazer esse alerta? Eu apelo a todos que conhecem alguma coisa da
História da Igreja — não havia, de fato, uma razão para isso? Eu apelo a todos que
se lembram do que aconteceu logo depois da morte dos apóstolos. Não lemos que
na primitiva Igreja de Cristo surgiram dois partidos distintos; um que sempre se
inclinava para o erro, como os arianos, sustentando menos que a verdade, e o outro
que sempre se inclinava para o erro, como os adoradores de relíquias e adoradores
de santos (da igreja católica romana), sustentando mais do que a verdade como a
encontramos em Jesus? Não vemos nós a mesma coisa surgindo mais tarde, na
forma do catolicismo romano? Essas coisas são antigas. Num artigo breve como
este me é impossível entrar em maiores detalhes sobre o assunto. São coisas muito
bem conhecidas de todos que têm familiaridade com os registros históricos.
Sempre houve esses dois grandes partidos, o partido que representa os princípios
dos fariseus, e o partido que representa os princípios dos saduceus. Por isso nosso
Textos de J. C. Ryle - 32 -
Senhor tinha boas razões para dizer a respeito desses dois grandes princípios:
“Vede e acautelai-vos”.
Mas eu desejo apresentar o assunto com mais detalhes agora. Peço a meus
leitores que considerem se advertências desse tipo não são especialmente
necessários em nossos dias. Temos, sem sombra de dúvida, muito que agradecer
aqui na Inglaterra. Fizemos grandes avanços nas artes e nas ciências nos últimos
três séculos, e temos muitos costumes e demonstrações morais e religiosas. Mas eu
pergunto a qualquer pessoa que consegue ver além das portas da sua própria casa:
não estamos vivendo em meio aos perigos de doutrinas falsas?
Por um lado, temos entre nós um grupo de homens que, intencionalmente
ou não, facilitam as coisas para a Igreja de Roma (catolicismo) — uma escola que
afirma extrair seus princípios da tradição primitiva, os escritos dos Pais, e a voz da
Igreja — um ensino que fala e escreve tanto acerca da Igreja, do ministério, e dos
sacramentos, que fazem deles algo semelhante à vara de Arão que engoliu tudo o
mais do Cristianismo, um ensino que atribui grande importância às formas
exteriores e cerimônias religiosas, a gestos, posturas, mesuras, cruzes, água benta,
lugares de honra para os clérigos, vestimentas sagradas, incenso, estátuas, faixas,
procissões, enfeites, e muitas outras coisas semelhantes a essas, a respeito das quais
não se encontra uma só palavra nas Escrituras Sagradas para dizer que têm lugar na
adoração cristã. Refiro-me, é claro, à escola dos clérigos chamada Ritualista.
Quando examinamos os procedimentos dessa escola, só se pode chegar a uma
conclusão. Eu creio que, qualquer que seja o significado e a intenção dos seus
mestres, embora sejam devotos, zelosos, e se neguem a si mesmos (como
efetivamente muitos deles agem), recai sobre eles o manto dos fariseus.
Por outro lado, temos uma escola de homens que, intencionalmente ou
não, facilitam as coisas para o Socinianismo, uma escola que sustenta estranhos
pontos de vista sobre a absoluta inspiração das Sagradas Escrituras, e estranhos
pontos de vista sobre a doutrina do sacrifício, e sobre a Expiação de nosso Senhor
e Salvador Jesus Cristo, estranhos pontos de vista sobre a condenação eterna, e do
amor de Deus pelo homem, uma escola forte em negar, mas muito fraca em
afirmar, hábil em suscitar dúvidas, mas impotente em removê-las, esperta em
perturbar e abalar a fé das pessoas, mas impotente para oferecer um descanso firme
para elas. E, quer os líderes dessa escola queiram isso ou não, eu creio que sobre
eles recai a capa dos saduceus.
Essas coisas soam como rudes, cruéis. Ficamos livres de muita encrenca se
fecharmos os olhos e dissermos: “Eu não vejo perigo nenhum”, e, por não ver, não
acreditar que o perigo exista. É fácil tapar os ouvidos e dizer: “Eu não escuto
nada”, e, por não ouvir nada, não se assustar com nada. Mas nós sabemos muito
bem quem são os que se regozijam com as coisas que temos de deplorar em alguns
lares da nossa própria Igreja. Nós sabemos o que o católico romano pensa;
sabemos o que os socinianos pensam. O católico romano se regozija com o
florescimento do catolicismo; o sociniano se regozija com a multiplicação de
pessoas que sustentam esses pontos de vista sobre a expiação e a inspiração, que
vemos espalhadas na atualidade. Eles não se alegrariam dessa forma se não vissem
Textos de J. C. Ryle - 33 -
progresso no seu trabalho, e a sua causa sendo promovida. Eu creio que o perigo é
muito maior do que somos capazes de supor. Os livros que se lêem em muitos lares
são extremamente prejudiciais, e o tom do pensamento sobre assuntos religiosos,
especialmente das pessoas que ocupam posições de destaque, é profundamente
insatisfatório. A praga se espalhou. Se amamos a vida, devemos examinar nosso
próprio coração, e provar nossa própria fé, e certificar-nos de que estamos firmes
no fundamento certo. Acima de tudo, deveríamos nos acautelar de não ingerir o
veneno da doutrina falsa, e fazer tudo para retornar ao nosso primeiro amor.
Eu sinto profundamente a angústia de falar abertamente desses assuntos.
Eu sei muito bem que falar com clareza sobre doutrinas falsas é muito impopular, e
que aquele que fala deve resignar-se com ser considerado como alguém sem
caridade, muito incômodo, e de mente muito estreita. Há milhares de pessoas que
jamais conseguirão distinguir as diferenças que existem na religião. Para a maioria
das pessoas, um clérigo é um clérigo, e um sermão é um sermão; e, se porventura
existe alguma diferença entre um ministro e outro, ou entre um sermão e outro,
elas são inteiramente incapazes de entender essa diferença. Eu não posso esperar
que essas pessoas aprovem qualquer alerta que se fizer sobre doutrinas falsas. Eu
preciso adequar minha mente à sua desaprovação, e tenho de lidar com isso da
melhor forma que puder.
Mas eu peço a todo leitor da Bíblia intelectualmente honesto e não
preconceituoso que se volte para o Novo Testamento e veja o que vai encontrar ali.
Ele haverá de encontrar muitos alertas claros contra as doutrinas falsas:
“Acautelai-vos dos falsos profetas” (Mateus 7.15).
“Cuidado que ninguém vos venha a enredar com sua filosofia e vãs
sutilezas” (Colossenses 2.8).
“Não vos deixeis envolver por doutrinas várias e estranhas” (Hebreus
13.9).
“Amados, não deis crédito a qualquer espírito; antes, provai os espíritos se
procedem de Deus” (1 João 4.1).
Ele haverá de encontrar grande parte de várias das epístolas inspiradas
expondo a doutrina verdadeira e alertando contra os falsos ensinos. Eu me
pergunto: como é que um ministro que toma a Bíblia como regra de fé pode
esquivar-se de fazer alertas contra erros doutrinários?
Finalmente, peço a todos que percebam o que está acontecendo na
Inglaterra neste exato momento. É verdade ou não é, que centenas de pessoas
abandonaram a Igreja Oficial e se transferiram para a Igreja de Roma (igreja católica
romana) nesses últimos trinta anos? É verdade ou não é, que centenas de pessoas
permanecem conosco mas que, no coração, são pouco melhores do que os
católicos? É verdade ou não é, que milhares de jovens, tanto de Oxford como de
Cambridge, se veem seduzidos e arruinados pela debilitante influência do ceticismo,
e perderam todos os princípios positivos da religião? Zombarias nos jornais
religiosos, declarações em alto e bom som contra as “denominações”, frases
Textos de J. C. Ryle - 34 -
III. A terceira coisa para a qual pretendo chamar sua atenção é o nome
peculiar que o nosso Senhor Jesus Cristo dá à doutrina dos fariseus e dos
saduceus.
As palavras usadas por nosso Senhor foram sempre as mais sábias e as
melhores que se poderiam usar. Ele poderia ter dito: “Vede e acautelai-vos da
doutrina, ou do ensino, ou das opiniões dos fariseus e dos saduceus”. Mas Ele não
disse assim. Ele usou uma palavra de significado especial — Ele disse: “Vede e
acautelai-vos do fermento dos fariseus e dos saduceus”.
Ora, todos nós sabemos qual é o verdadeiro significado da palavra fermento.
O fermento é adicionado à massa de farinha quando se faz o pão. Esse fermento é
uma porção mínima da farinha a que é misturado; nosso Senhor queria que
soubéssemos que é exatamente assim que o começo da falsa doutrina é ínfimo se
comparado ao corpo do Cristianismo. Ele age silenciosa e sossegadamente; é
exatamente assim, diz o Senhor, que agem as falsas doutrinas no caráter da massa
toda com a qual são misturadas; exatamente assim, diz o Senhor, as doutrinas dos
fariseus e dos saduceus viram tudo de cabeça para baixo, uma vez que são
admitidas na Igreja ou no coração do homem. Prestemos atenção a esses pontos:
eles lançam luz em muita coisa que vemos em nossos dias. É de grande importância
acolher as lições de sabedoria que a palavra fermento contém.
A falsa doutrina não se apresenta aos homens cara a cara, e proclama que é
falsa. Ela não toca trombeta diante de si, nem se esforça abertamente para nos
desviar da verdade como ela é em Jesus. Ela não se achega aos homens à luz do dia
para chamá-los a se renderem. Ela se aproxima de nós discretamente, quietamente,
traiçoeiramente, de forma aceitável, e dessa forma desativa as suspeitas do homem,
e o demove da posição de alerta e defesa. É o lobo em pele de cordeiro, e Satanás
vestido de anjo de luz, que sempre se têm mostrado os mais perigosos inimigos da
Igreja de Cristo.
Eu creio que o mais poderoso defensor dos fariseus não é o homem que
honesta e abertamente pede que você venha e se junte à igreja de Roma. É o
homem que diz concordar com você em todos os pontos da sua “doutrina”. Ele
não vai recusar nenhum dos pontos de vista evangélicos que você sustenta; não
exige que você faça nenhuma modificação; tudo que ele pede é que você “adicione”
Textos de J. C. Ryle - 35 -
alguma coisa a mais ao que você crê, para tornar perfeito o seu Cristianismo.
“Creia-me”, diz ele:
Nós não queremos que você desista de nada. Queremos apenas que
você passe a sustentar alguns pontos de vista claros a respeito da Igreja e dos
sacramentos. Queremos que você adicione às suas atuais opiniões um pouco
mais a respeito das funções dos ministros, e um pouco mais a respeito da
autoridade episcopal, e um pouco mais a respeito do livro de orações, e um
pouco mais a respeito da necessidade de ordem e de disciplina. Queremos
apenas que você adicione “um pouco mais” dessas coisas ao seu sistema
religioso, e assim você estará perfeitamente certo.
Mas quando alguém fala com você dessa forma, é hora de lembrar o que
nosso Senhor disse: “Vede e acautelai-vos”. Esse é o fermento dos fariseus, contra
o qual devemos nos levantar e nos acautelar.
Por que estou dizendo isso? Eu o digo porque não há segurança contra a
doutrina dos fariseus, a não ser que resistamos aos seus princípios assim que se
apresentam:
1. Começando com “um pouco mais a respeito da Igreja” — Um dia você
pode chegar a pôr a Igreja no lugar de Cristo.
2. Começando com “um pouco mais a respeito do ministério” — Um dia
você pode honrar o ministro como “o mediador entre Deus e o homem”.
3. Começando com “um pouco mais a respeito dos sacramentos” — Um
dia você pode chegar ao ponto de rejeitar completamente a doutrina da justificação
pela fé sem as obras da lei.
4. Começando com “um pouco mais de reverência pelo livro de orações”
— Um dia você pode colocá-lo acima das Escrituras Sagradas do próprio Deus.
5. Começando com “um pouco mais de honra aos bispos” — Você pode,
por fim, recusar a salvação a quem não pertença a uma Igreja Episcopal.
Vou contar-lhes uma velha história. Vou assinalar caminhos que foram
trilhados por centenas de membros da Igreja da Inglaterra nos últimos anos
recentes. Eles começaram encontrando falhas nos reformadores, e acabaram
engolindo os decretos do Concílio de Trento (Concílio doutrinário da Igreja
católico-romana). Eles começaram reclamando das coisas como estavam, e
acabaram por juntar-se formalmente à Igreja de Roma. Eu creio que quando
ouvimos pessoas nos pedindo que “acrescentemos um pouco mais” a nossos bons,
velhos e claros pontos de vista evangélicos, deveríamos ficar alertas. Deveríamos
lembrar o aviso do nosso Senhor: “Acautelai-vos do fermento dos fariseus”.
Eu considero que o mais perigoso defensor da escola dos saduceus não é a
pessoa que lhe diz abertamente que ele quer que você deixe de lado alguma parte da
verdade, e que se torne um livre-pensador e um cético. Mas é a pessoa que começa
sutilmente com insinuantes dúvidas a respeito da nossa posição quanto às coisas
religiosas, dúvidas sobre se devemos ser tão positivos ao ponto de dizer “isto é
Textos de J. C. Ryle - 36 -
verdade, e aquilo é falso”, dúvidas sobre se devemos pensar que estão erradas as
pessoas que diferem das nossas opiniões religiosas, uma vez que elas podem estar,
afinal, tão corretas como nós mesmos estamos.
É o homem que nos diz que não deveríamos condenar os pontos de vista
de ninguém, a fim de que não erremos por falta de amor. É o homem que sempre
começa falando de uma forma vaga sobre Deus ser um Deus de amor, e aconselha
que talvez devêssemos crer que talvez todos os homens, qualquer que seja a
doutrina que professam, no final haverão de ser salvos. É o homem que está
sempre nos lembrando que deveríamos tomar cuidado com a forma que
consideramos os grandes intelectos (embora esses sejam deístas e céticos) que não
pensam como nós, e que, afinal, “grandes mentes são todas, de uma forma ou de
outra, ensinadas por Deus”!
É o homem que está sempre batendo na tecla das dificuldades da
inspiração das Escrituras, e levantando questões sobre se todos os homens não
serão salvos no final, e se porventura não estão todos certos aos olhos de Deus. É
o homem que coroa sua agradável conversa com algumas tranquilas zombarias
contra o que ele gosta de chamar de “pontos de vista ultrapassados” e “teologia de
mentalidade estreita”, e “inveja cega” e a “falta de liberalidade e amor” dos nossos
dias. Mas quando alguém começa a falar dessa forma, é hora de vigiar e nos
acautelar. Aí é hora de lembrar as palavras de nosso Senhor Jesus Cristo: “Vede e
acautelai-vos do fermento”.
Pergunto outra vez: Por que estou dizendo isso tudo? Eu o faço porque
não existe seguro contra o saduceísmo, como também não existe seguro contra o
farisaísmo, a não ser que resistamos aos seus princípios no seu estado inicial.
Começando com uma vaga e despretenciosa conversa sobre “amor”, você pode
acabar dando na doutrina da salvação universal, enchendo o céu com uma multidão
mista de maus e bons, e negar a existência do inferno. Começando com umas
poucas frases sonoras sobre intelecto e luz interior no homem, você pode acabar
negando a obra do Espírito Santo, e sustentar que Homer e Shakespeare foram tão
inspirados quanto Paulo, e dessa forma descartando a Bíblia. Começando com
alguma mirabolante e mística idéia de que “todas as religiões contêm mais ou
menos uma porção de verdade”, você pode acabar negando completamente a
necessidade das missões, e achar que o melhor que se pode fazer é deixar os outros
em paz.
Começando por indispor-se à “religião evangélica” como ultrapassada, de
mente estreita e separatista, você pode acabar rejeitando as principais doutrinas do
Cristianismo — a expiação, a necessidade da graça, e a divindade de Cristo. Eu
repito que estou-lhe falando algo que não é novo: estou-lhe dando apenas um
vislumbre do caminho que multidões de pessoas têm trilhado nesses últimos anos.
Essas multidões estiveram, noutros tempos, satisfeitas com a teologia de Newton,
Scott, Cecil, e Romaine; e agora imaginam que encontraram um caminho melhor
nos princípios propostos pelos teólogos da escola do caminho largo! Eu penso que
não existe segurança para a alma humana a não ser que nos lembremos da lição
Textos de J. C. Ryle - 37 -
viajantes. Eles nunca jamais haverão de descobrir qualquer coisa que contradiga a
Bíblia de Deus. Eu estou certo de que, se um homem se dispuser a escavar cem
cidades de Nínive, não encontrará jamais nem uma simples inscrição que seja
contrária a um simples fato registrado na Palavra de Deus.
Além do mais, temos de sustentar com firmeza que essa Palavra de Deus é
a única regra de fé e prática, que tudo quanto não está escrito nela não pode ser
requerido de homem nenhum como algo necessário à sua salvação, e que embora
se admita que podem surgir novas doutrinas, se elas não estão na Palavra de Deus,
não são dignas de nossa atenção. Não importa quem está falando, quer seja um
bispo, um arquidiácono, um deão, ou um presbítero. Não importa se a idéia é bem
apresentada, com eloquência, de forma atraente, ou por imposição, e de tal forma
que você seja ridicularizado. Nós não haveremos de crer nela a não ser que se
prove pelas Escrituras Sagradas.
Em último lugar, mas não menos importante, temos de usar a Bíblia
crendo de fato que ela foi dada por meio de inspiração. Temos de usá-la com
reverência, e lê-la com o carinho com que leríamos as palavras de um pai ausente.
Não devemos nos surpreender se encontrarmos no livro inspirado pelo Espírito de
Deus algum mistério. Temos, antes, de lembrar que na natureza há muita coisa que
não conseguimos entender; e que, assim como acontece no livro da natureza, assim
acontecerá sempre no livro da Revelação. Devemos nos aproximar da Palavra de
Deus no espírito de piedade recomendado pelo Lorde Bacon, muitos anos atrás.
“Lembre-se”, disse ele, a respeito do livro da natureza, “que o homem não é o
mestre, mas é o intérprete desse livro”. E da forma que lidamos com o livro da
natureza, assim temos de lidar com o Livro de Deus. Temos de nos aproximar dele
não para ensinar, mas para aprender, não como quem o domina, mas como um
humilde aluno, procurando compreendê-lo.
(c) Outro ponto: temos de prestar atenção à nossa doutrina a respeito da
“expiação e do ofício sacerdotal de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo”. Temos
de sustentar ousadamente que a morte de nosso Senhor na cruz não foi uma morte
comum. Não foi a morte de alguém que morreu como Cranmer, Ridley, e Latimer,
como mártir. Não foi a morte de alguém que morreu apenas para nos dar um
poderoso exemplo de auto-sacrifício e auto-negação. A morte de Cristo foi uma
oferta a Deus do Seu próprio corpo e sangue (de Cristo), em benefício do pecado e
da transgressão do homem. Essa morte foi um sacrifício de apaziguamento; um
sacrifício tipificado em cada oferta da lei mosaica, um sacrifício que produziu
poderosa influência sobre toda a humanidade. Sem o derramamento desse sangue
não poderia haver e nunca jamais haveria de ocorrer nenhuma remissão de
pecados.
Além do mais, temos de sustentar ousadamente que esse Salvador
crucificado está assentado para sempre à mão direita de Deus, para interceder por
todo aquele que por Ele se achega a Deus; que Ele ali representa e suplica por
aqueles que colocam nEle a sua confiança; e que Ele não delegou — a homem
nenhum, nem a nenhum grupo de homens na face desta terra — o Seu ofício de
Sacerdote e Mediador. Nós não precisamos de ninguém mais além dEle mesmo.
Textos de J. C. Ryle - 40 -
11 Lucas 7.48-50.
12 João 6.55.
Textos de J. C. Ryle - 41 -
(3) Em seguida, aconselho a cada leitor que tem razões para considerar-se
sadio tanto naquilo que crê como no coração, que preste atenção à proporção das
verdades. O que eu quero dizer é que se deve ter cautela para dar a cada verdade do
Cristianismo o mesmo lugar e posição em nosso coração que essa verdade recebe
na Palavra de Deus. As coisas que devem vir primeiro não devem ser colocadas em
segundo lugar, nem as que estão em segundo lugar devem ocupar o primeiro lugar
em nossa religião. A Igreja não deve ser colocada acima de Cristo. Os ministros não
devem ser exaltados acima do lugar designado por Cristo para eles; os meios de
graça não devem ser considerados como fins em vez de meios. É de grande
importância dar atenção a esse ponto: os erros que surgem da negligência disso não
são nem poucos nem pequenos. Aqui reside a tremenda importância de estudar
toda a Palavra de Deus, sem nada omitir, evitando parcialidade ao ler uma parte
mais do que a outra. Eis o valor de possuir bem claro na mente o sistema do
Cristianismo.
(4) Em seguida, imploro a cada servo genuíno de Cristo a não deixar-se
enganar pelo disfarce com que as falsas doutrinas muitas vezes se insinuam em
nossas almas em nosso tempo. Acautele-se de pensar que um mestre de religião
merece confiança porque, embora sustente alguns pontos de vista falsos, ele
contudo “ensina um bocado de verdade”. Esse é exatamente o tipo de pessoa que
causará dano a você: o veneno é sempre mais perigoso quando é servido em
pequenas doses e misturado a comida saudável. Acautele-se de ser enganado pela
aparente honestidade de muitos dos mestres que sustentam e propagam falsas
doutrinas. Lembre-se de que zelo e sinceridade e fervor não são, de forma
nenhuma, prova de que uma pessoa está trabalhando por Cristo e que por isso
merece nossa confiança.
Não há dúvida de que Pedro estava sendo profundamente sincero quando
disse a nosso Senhor: “Tem compaixão de ti, Senhor”, para que Cristo não fosse
para a cruz; contudo nosso Senhor lhe disse: “Arreda, Satanás!” Saulo, sem dúvida,
era sincero quando perseguia os cristãos por todo lado; contudo ele o fez na
ignorância, e o seu zelo não era com entendimento. Os autores da Inquisição
Espanhola sem dúvida eram sinceros, e pensavam estar realizando a obra de Deus
ao queimar vivos os santos de Deus; contudo na verdade eles estavam perseguindo
os membros de Cristo e andando nos passos de Caim. É uma terrível verdade que
“o próprio Satanás se transforma em anjo de luz” (2 Coríntios 11.14). De todos
enganos que existem nesses últimos tempos, nenhum é maior do que a idéia de que
“se uma pessoa é séria em sua religião, com certeza essa deve ser uma boa pessoa”!
Acautele-se desse terrível engano; acautele-se de ser desviado por “pessoas sérias e
sinceras”! A seriedade e a sinceridade são, em si mesmas, excelentes coisas; mas
tem de ser seriedade conforme Cristo e conforme toda a Sua verdade, ou essa
seriedade e sinceridade não servem para absolutamente nada. As coisas que são
altamente consideradas entre os homens são, muitas vezes, abomináveis aos olhos
de Deus.
(5) A seguir, aconselho a todo verdadeiro servo de Cristo a “examinar o
próprio coração” com frequência e com cuidado, para saber como se encontra
Textos de J. C. Ryle - 43 -
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13 Judas 3.
Textos de J. C. Ryle - 44 -
seus comentários perspicazes são tão sábios e relevantes hoje como o foram
quando os escreveu. Os seus sermões e outros escritos têm tido amplo
reconhecimento, e a sua utilidade e impacto se estendem até os nossos dias, da
mesma forma que o fizeram na Inglaterra daqueles dias.
Tony Capoccia
Murmuração,
Descontentamento
e
Inquietação
"Seja a vossa vida sem avareza. Contentai-vos com as coisas que tendes; porque ele tem dito:
De maneira alguma te deixarei, nunca jamais te abandonarei" (Hb 13.5).
Estas palavras são muito simples. Até mesmo uma criança pode facilmente
entendê-las. Elas não contêm nenhuma doutrina elaborada; não envolvem
nenhuma profunda questão metafísica; e, contudo, simples como são — nos
prescrevem um dever da mais alta importância a todos os cristãos.
O contentamento é uma das mais raras graças divinas. Como todas as coisas
preciosas, ela é extremamente incomum. É muito difícil praticar o contentamento.
Falar de contentamento quando se está com saúde e prosperando é bastante fácil;
mas estar contente no meio da pobreza, da doença, da tribulação, dos
desapontamentos e das perdas — esse é um estado mental que poucos têm
condições de alcançar!
Os anjos caídos tinham o próprio céu para habitar, e a própria presença de
Deus e o Seu favor — mas não estavam contentes com isso. Adão e Eva tinham o
jardim do Éden para morar, com a livre permissão de aproveitar todas as coisas
exceto uma árvore — mas eles não estavam contentes. Acabe tinha o trono e o
Textos de J. C. Ryle - 45 -
reino, mas enquanto a vinha de Nabote não se tornou sua, ele não estava contente.
Hamã era o líder predileto do rei persa, mas porque Mordecai ficou sentado à porta,
ele não podia estar contente.
É exatamente a mesma coisa em todos os lugares ainda hoje. Deparamo-nos,
a todo momento, com murmuração, descontentamento e inquietação com o que
temos. Dizer com Jacó "Eu tenho o suficiente" parece bater de frente com o âmago da
natureza humana. Dizer "Eu quero mais" parece a língua materna de cada filho de
Adão.
A orientação de Paulo deve bater com poder em nossa consciência:
"Contentai-vos com as coisas que tendes", não com as coisas que vocês estavam
acostumados a ter, não com as coisas que vocês esperam ter, mas com as coisas que
vocês agora têm. Com essas coisas, quaisquer que sejam, devemos estar contentes.
Com a nossa atual moradia, nossa atual família, nossa atual saúde, nosso atual
salário, nosso atual trabalho, nossas atuais circunstâncias — exatamente as que
agora possuímos — com essas devemos estar contentes.
Ah! Leitor, se você quer de fato ser feliz, busque a felicidade no lugar certo,
no único em que ela pode ser encontrada. Não a busque no dinheiro, não a procure
nos prazeres, nem nos amigos, nem mesmo no estudo. Procure a felicidade na
conformação da sua vontade com a vontade de Deus, em colocar sua vontade em
perfeita harmonia com a dEle. Busque a felicidade aprendendo a estar contente.
Talvez você diga: "Falar é fácil, mas como é que se pode estar sempre
contente num mundo como este?" Eu respondo: você tem de lançar fora seu
orgulho, e reconhecer a sua própria deserção de Deus, para tornar-se grato em toda
e qualquer situação. Se os homens de fato soubessem que nada merecem, e que são
devedores à misericórdia de Deus todos os dias — então logo parariam de se
queixar.
Vou contar-lhe por que existe tão pouco contentamento neste mundo. A
resposta é simples: a situação é essa porque existe pouca boa-vontade, e pouca
piedade genuína. Poucos há que conhecem o seu próprio pecado; poucos sentem a
sua deserção dos caminhos de Deus, e tão poucos estão contentes com aquilo que
têm. Humildade, auto-conhecimento, uma clara visão de nossa completa vileza e
corrupção — essas são as verdadeiras raízes do contentamento.
Se você quiser ser contente, eu lhe direi o que tem de fazer. Você tem de
conhecer o seu próprio coração, buscar a Deus como a sua porção, achegar-se a
Cristo como seu Salvador, e alimentar-se diariamente da Palavra de Deus. O
contentamento tem de ser aprendido aos pés de Jesus Cristo. Aquele que tem Deus
como seu amigo, e o céu como seu lar — esse pode pode aguardar de lá boas
coisas, e estar contente com pouco aqui em baixo.
Extraído de www.gracegems.org