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Textos

de
J. C. Ryle
Tradução
Helio Kirchheim
Textos de J. C. Ryle -2-

Você Já Nasceu de Novo?


Você já nasceu de novo? Essa é uma das mais importantes perguntas da vida.
Jesus Cristo disse: “... se alguém não nascer de novo, não pode ver o reino de
Deus” (João 3.3).
Não basta dizer: “Eu pertenço à igreja; acho que sou cristão”. Milhares de
pessoas que se dizem cristãs não apresentam as características de alguém que
nasceu de novo, que encontramos nas Escrituras — várias delas encontradas na
Primeira Epístola de João.
Eis as características do homem que nasceu de novo, segundo as Escrituras:

1ª — Ele Não Tem Mais o Hábito de Pecar


Em primeiro lugar, João escreveu: “Todo aquele que é nascido de Deus não
vive na prática de pecado...” (1 João 3.9). “todo aquele que é nascido de Deus não
vive em pecado…” (5.18).
Aquele que nasceu de novo, aquele que foi regenerado, não comete pecado
habitualmente. Ele não peca mais entregando-se com toda vontade, de coração, à
inclinação do pecado. Provavelmente houve um tempo em que ele nem mesmo se
preocupava se as suas ações eram pecaminosas ou não, e nem mesmo sentia-se
triste depois de praticar o mal. Não havia rixa entre ele e o pecado; eram ambos
amigos. Mas o verdadeiro cristão odeia o pecado, foge dele, luta contra ele,
considera-o como o seu pior incômodo, ressente-se do fardo da sua presença,
lamenta-se quando cai por influência dele, e anela ser completamente liberto do
pecado. O pecado não mais o satisfaz, nem é mais uma questão indiferente para ele;
o pecado se tornou algo terrível, que ele odeia. Contudo, não consegue eliminar a
presença dele dentro de si.
Se ele disser que não tem pecado, estará mentindo (1 João 1.8). Mas ele pode
dizer que odeia o pecado, e que o grande desejo da sua alma é não cometer pecado
de forma alguma. Ele não pode evitar que maus pensamentos lhe penetrem a
mente, nem evitar que falhas, omissões, e defeitos se insinuem tanto em suas
palavras como em suas ações. Ele sabe que “todos tropeçamos em muitas coisas”
(Tiago 3.2). Mas ele pode dizer de verdade, na presença de Deus, que essas coisas
provocam nele aflição e tristeza e que a sua natureza inteira não consente com isso.
O que o apóstolo diria sobre você? Você já nasceu de novo?

2ª — Ele Tem Fé em Cristo


Em segundo lugar, João escreveu: “Todo aquele que crê que Jesus é o Cristo
é nascido de Deus” (1 João 5.1).
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Aquele que nasceu de novo, aquele que foi regenerado, crê que Jesus Cristo é
o único Salvador que pode perdoar-lhe a alma, que Ele é a pessoa divina designada
por Deus o Pai para esse propósito específico, e à parte dEle não existe Salvador de
forma alguma. Em si mesmo ele nada vê senão indignidade. Mas ele tem plena
confiança em Cristo; e, por crer nEle, crê que seus pecados estão todos perdoados.
Ele crê que, pelo fato de ter aceito a obra consumada de Cristo na cruz, ele é
considerado justo aos olhos de Deus, e que pode encarar a morte e o julgamento
sem amedrontar-se.
Ele talvez tenha medos e dúvidas. Às vezes ele pode dizer que se sente como
se não tivesse fé nenhuma. Mas pergunte-lhe se ele deseja confiar nalguma outra
coisa que não seja Cristo, e repare no que ele vai dizer. Pergunte-lhe se ele quer pôr
a sua esperança de vida eterna em sua própria bondade, em suas próprias obras,
suas orações, seu ministério, ou sua igreja, e ouça a sua resposta. O que o apóstolo
diria sobre você? Você já nasceu de novo?

3ª — Ele Pratica a Justiça


Em terceiro lugar, João escreveu: “... todo aquele que pratica a justiça é
nascido dele” (1 João 2.29).
Aquele que nasceu de novo, aquele que foi regenerado, é um homem santo.
Ele se esforça para viver de acordo com a vontade de Deus, para fazer aquilo que
agrada a Deus e evitar aquilo que Deus odeia. Ele deseja olhar continuamente para
Cristo como seu exemplo e como seu Salvador, e mostrar-se amigo de Cristo ao
fazer tudo o que Ele manda. Ele sabe que não é perfeito. Ele está dolorosamente
consciente da sua corrupção interior. Ele se depara com um princípio perverso
dentro de si mesmo, que constantemente luta contra a graça e tenta afastá-lo de
Deus. Mas ele não consente com isso, embora não consiga evitar a presença desse
princípio maligno.
Embora por vezes se sinta tão vil, ao ponto de se perguntar se é ou não um
cristão de fato, ele será capaz de dizer, juntamente com John Newton: “Não sou o
que eu deveria ser, não sou o que eu gostaria de ser, não sou o que eu ainda espero
ser no mundo vindouro; embora não seja mais aquilo que costumava ser, e pela
graça de Deus sou o que sou”. O que o apóstolo diria sobre você? Você já nasceu de novo?

4ª — Ele Ama os Outros Cristãos


Em quarto lugar, João escreveu: “Nós sabemos que já passamos da morte
para a vida, porque amamos os irmãos” (1 João 3.14).
Aquele que nasceu de novo tem um amor especial por todos os que são
verdadeiros discípulos de Cristo. À semelhança do seu Pai celeste, ele ama todos os
homens com um grande e genérico amor, mas ele tem um amor especial por
aqueles que participam com ele da fé em Cristo. À semelhança do seu Senhor e
Salvador, ele ama o pior dos pecadores e pode chorar por eles; mas ele tem um
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amor peculiar pelos crentes. Ele nunca se sente tão à vontade como quando está na
companhia deles.
Ele sente que são todos membros da mesma família. Eles são soldados
companheiros seus, lutando contra o mesmo inimigo. Eles são seus companheiros
viajantes, viajando pela mesma estrada. Ele os compreende, e eles compreendem a
ele. Eles talvez sejam bastante diferentes dele em muitos aspectos — grau de
estudo, posição social e riqueza. Mas isso não importa. Eles são filhos e filhas do
seu Pai e ele não pode deixar de amá-los. O que o apóstolo diria sobre você? Você já nasceu
de novo?

5ª — Ele Vence o Mundo


Em quinto lugar, João escreveu: “… todo o que é nascido de Deus vence o
mundo” (1 João 5.4).
Aquele que nasceu de novo não considera a opinião do mundo como seu
padrão para o que é certo ou errado. Ele não se importa de ir contra o estilo do
mundo, contra as suas idéias e costumes. Aquilo que os homens pensam ou dizem
não mais o preocupa. Ele vence o amor pelo mundo. Ele não tem mais prazer em
coisas que parecem trazer alegria à maioria das pessoas. Para ele, parecem coisas
tolas e indignas de alguém que é imortal.
Ele prefere o elogio de Deus ao elogio dos homens. Ele teme ofender a
Deus mais do que teme ofender aos homens. Para ele, tanto faz ser censurado ou
elogiado; o seu alvo supremo é agradar a Deus. O que o apóstolo diria sobre você? Você
já nasceu de novo?

6ª — Ele Conserva-se Puro


Em sexto lugar, João escreveu: “o que de Deus é gerado conserva-se a si
mesmo” (1 João 5.18 – Versão Revista e Corrigida).
Aquele que nasceu de novo cuida da sua própria alma. Ele não apenas
procura evitar o pecado, mas também evitar tudo aquilo que pode conduzir ao
pecado. Ele é cuidadoso quanto às pessoas com quem convive. Ele sabe que as más
conversações (companhias) corrompem o coração e que o mal contagia mais do
que o bem, da mesma forma que a doença contagia mais do que a saúde. Ele é
cuidadoso com respeito ao uso do tempo; o seu maior desejo é gastar o tempo de
forma proveitosa.
O seu desejo é viver como um soldado vive numa terra inimiga — veste
continuamente a sua armadura e está preparado para a tentação. Ele é diligente na
vigilância, em oração, é humilde e é piedoso. O que o apóstolo diria sobre você? Você já
nasceu de novo?
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O Teste
Há uma vasta diferença quanto à profundidade e à clareza dessas
características nas diferentes pessoas. Em algumas, essas características são débeis e
difíceis de detectar. Em outras, são destacadas, claras e inequívocas, de forma que
qualquer um pode percebê-las. Algumas dessas características são mais visíveis do
que outras em cada indivíduo. Raramente são todas igualmente evidentes numa
mesma pessoa.
Mas mesmo assim, depois de toda e qualquer tolerância, aqui estão expostas
de forma clara as seis características de quem nasceu de Deus.

Como haveremos de reagir diante dessas coisas? Só podemos chegar a uma


conclusão — somente aqueles que nasceram de novo têm essas seis características,
e aqueles que não as têm não nasceram de novo. Essa é a conclusão a que o
apóstolo quer que cheguemos. Você apresenta essas características? Você já nasceu de novo?

[ Extraído de
http://www.eternallifeministries.org/jcr_bornagain.htm ]

A Presença Real e Verdadeira


O Que Significa Isso?
“Se a tua presença não vai comigo, não nos faças subir deste lugar” (Êx 33.15).
Há uma palavra no título do nosso texto que requer a atenção de todo
cristão. Essa palavra é presença. Há um assunto religioso associado a essa palavra, a
respeito do qual é extremamente importante ter uma concepção clara, precisa e
bíblica. Esse assunto é a presença de Deus, e em especial a presença de nosso Senhor Jesus
Cristo com os cristãos. O que é essa presença? Onde se encontra essa presença? Quais
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são as características dessa presença? A essas questões eu me proponho dar


resposta.

I. Pretendo considerar, primeiramente, a doutrina geral da presença de Deus no


mundo.
II. Em segundo lugar, pretendo considerar especificamente a doutrina da real
presença espiritual de Cristo.
III. Em terceiro lugar, pretendo considerar especificamente a doutrina da real
presença corpórea de Cristo.

O assunto todo merece ser considerado com seriedade. Se o considerarmos


meramente como questão de controvérsias, que diz respeito apenas a discussões
teológicas, com certeza temos ainda muito para aprender. Este é um assunto que
diz respeito aos próprios fundamentos da religião salvadora. É um assunto
inseparavelmente ligado a um dos mais preciosos artigos da fé cristã. É um assunto
a respeito do qual é extremamente perigoso estar errado. Errar aqui talvez conduza
um homem à igreja católica, e por fim o conduzirá ao abismo da infidelidade. Com
toda certeza, vale a pena gastar tempo estudando cuidadosamente a doutrina da
presença de Deus e do Seu Cristo.

I. O primeiro assunto que temos de considerar é a doutrina


geral da presença de Deus no mundo.
O ensinamento da Bíblia nesse ponto é claro, simples, e inequívoco. Deus
está em todo lugar! Não há lugar no céu ou na terra, onde Ele não está. Não há
lugar no ar ou na terra ou no mar, nenhum lugar acima da terra ou embaixo da
terra, nenhum lugar na cidade ou no campo, nenhum lugar na Europa, Ásia, África
ou América — onde Deus não esteja sempre presente. Entre no seu quarto e
tranque a porta — Deus ali está. Escale o mais alto topo da mais alta montanha,
onde nem mesmo um inseto se move — Deus ali está. Veleje até a mais remota ilha
do Oceano Pacífico, onde pé humano nenhum ainda pisou — Deus está ali. Ele
sempre está perto de nós — vendo, ouvindo, observando, ciente de toda ação e
obra e palavra e sussurro e olhar e pensamento e motivo e segredo de cada um de
nós — onde quer que estejamos.
O que diz a Escritura? Está escrito em Jó 34.21,22: “Os olhos de Deus estão
sobre os caminhos do homem e vêem todos os seus passos. Não há trevas nem
sombra assaz profunda onde se escondam os que praticam a iniqüidade”. Está
escrito em Provérbios 15.3: “Os olhos do Senhor estão em todo lugar,
contemplando os maus e os bons”. Está escrito em Jeremias 32.19: “[o Senhor dos
Exércitos,] grande em conselho e magnífico em obras; porque os teus olhos estão
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abertos sobre todos os caminhos dos filhos dos homens, para dar a cada um
segundo o seu proceder, segundo o fruto das suas obras”.
Está escrito no Salmo 139.1-12: “SENHOR, tu me sondas e me conheces.
Sabes quando me assento e quando me levanto; de longe penetras os meus
pensamentos. Esquadrinhas o meu andar e o meu deitar e conheces todos os meus
caminhos. Ainda a palavra me não chegou à língua, e tu, SENHOR, já a conheces
toda. Tu me cercas por trás e por diante e sobre mim pões a mão. Tal
conhecimento é maravilhoso demais para mim: é sobremodo elevado, não o posso
atingir. Para onde me ausentarei do teu Espírito? Para onde fugirei da tua face? Se
subo aos céus, lá estás; se faço a minha cama no mais profundo abismo, lá estás
também; se tomo as asas da alvorada e me detenho nos confins dos mares, ainda lá
me haverá de guiar a tua mão, e a tua destra me susterá. Se eu digo: as trevas, com
efeito, me encobrirão, e a luz ao redor de mim se fará noite, até as próprias trevas
não te serão escuras: as trevas e a luz são a mesma coisa”.
Essa linguagem nos perturba e impressiona. Esta doutrina (a do Deus
onisciente) está além da nossa compreensão. É exatamente assim. Davi disse a
mesma coisa há quase três mil anos: “Tal conhecimento é maravilhoso demais para
mim: é sobremodo elevado, não o posso atingir” (Sl 139.6). Mas pelo fato de não
podermos entender essa doutrina, não significa que ela não seja verdadeira. A culpa
deve ser colocada no lugar certo — nossos pobres intelectos e mentes — e não na
doutrina. Há muita coisa em nosso mundo que poucos conseguem entender ou
explicar — contudo nenhum homem sensato se recusa a crer nessas coisas. Como
é que este mundo gira constantemente em torno do sol com incrível rapidez, mas
não sentimos movimento nenhum? Como é que a lua afeta as marés, e faz com que
avancem e recuem duas vezes a cada vinte e quatro horas? De que forma milhões
de criaturas vivas e perfeitamente organizadas existem em cada gota de água parada,
mas que não conseguimos ver a olho nu? Tudo isso são coisas bem conhecidas dos
cientistas, embora a maioria de nós não consiga explicá-las, mesmo que disso
dependa nossa sobrevivência. E devemos nós, diante desses fatos, ousar duvidar
que Deus está presente em todo lugar, pelo simples fato de que não podemos
compreender esse fenômeno? Que nunca mais nos atrevamos a dizer tal coisa!
Quantas coisas há a respeito de Deus, que possivelmente nunca chegaremos
a entender, e contudo temos de crer nelas, a não que sejamos tão estúpidos que nos
tornemos ateus! Quem pode explicar a eternidade de Deus, o infinito poder e
sabedoria de Deus, ou os atos de Deus na criação e na providência? Quem pode
compreender um Ser que é Espírito, sem um corpo, sem partes, nem paixões?
Como pode uma criatura constituída de matéria, que pode estar apenas em um
lugar de cada vez, conceber a idéia de um Ser imaterial, que existe antes da criação,
que do nada formou este mundo através da Sua palavra — e que consegue estar em
todo lugar e ver tudo ao mesmo tempo! Numa palavra, onde encontramos um só
dos atributos de Deus, que o homem mortal pode compreender por completo?
Como se pode considerar, então, bom senso ou sabedoria, a recusa em crer
na doutrina do Deus presente em todos os lugares, meramente porque nossa mente
não consegue conceber esse fato? O livro de Jó o diz muito bem: “Porventura,
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desvendarás os arcanos [mistérios] de Deus ou penetrarás até à perfeição do Todo-


Poderoso?1 Como as alturas dos céus é a sua sabedoria; que poderás fazer? Mais
profunda é ela do que o abismo; que poderás saber?” (Jó 11.7,8). Que nossos
pensamentos a respeito de Deus sejam elevados e honrosos; com Ele temos de
tratar enquanto estivermos vivos, e diante do Seu tribunal haveremos de nos
apresentar quando morrermos. Esforcemo-nos para que seja correta a nossa
concepção do Seu poder, Sua sabedoria, Sua eternidade, Sua santidade, Seu perfeito
conhecimento, Sua presença em todo lugar.
O pecado cometido pelos homens tem sua origem em concepções erradas
do seu Criador e Juiz. Os homens são negligentes e perversos porque não pensam
que Deus os vê. Eles fazem coisas que nunca fariam, se de fato cressem que estão
sob os olhos do Deus Altíssimo! Está escrito: “pensavas que eu era teu igual”
(Salmo 50.21). Também está escrito: “E dizem: O Senhor não o vê; nem disso faz
caso o Deus de Jacó. Atendei, ó estúpidos dentre o povo; e vós, insensatos, quando
sereis prudentes? O que fez o ouvido, acaso, não ouvirá? E o que formou os olhos
será que não enxerga? Porventura, quem repreende as nações não há de punir?
Aquele que aos homens dá conhecimento não tem sabedoria?”2 (Sl 94.7-10).
Não é de admirar que o santo Jó tenha dito em seus melhores momentos:
“quando o considero, temo-o” (Jó 23.15). “Como é o seu Deus?” perguntou certa
vez um escarnecedor descrente a um humilde cristão. “Como é esse Deus a
respeito de quem você faz tanto alarde? Ele é grande ou é pequeno?” “Meu Deus”,
foi a sábia resposta, “é ao mesmo tempo um Deus grande e um Deus pequeno —
tão grande que os céus dos céus não O podem conter — e contudo tão pequeno
que Ele pode habitar no coração de um pobre pecador como eu”.
“Cadê o seu Deus, menino?” perguntou um descrente a uma criança que ele
viu sair de uma igreja. “Cadê o seu Deus, a respeito de quem vocês estavam lendo?
Mostre-me esse Deus, e eu lhe dou um prêmio”. “Diga-me onde Ele não está”,
respondeu o garoto, “e lhe dou o dobro! Meu Deus está em todo lugar!” Bem que
está dito que “Deus escolheu as coisas fracas do mundo para envergonhar as
fortes” e “Da boca de pequeninos e crianças de peito tiraste perfeito louvor” (1 Co
1.27; Mt 21.16).
Todavia é difícil compreender esta doutrina — ela é uma das mais úteis e
benéficas para nossa alma. Ter sempre presente em nossa mente que Deus sempre
está conosco; viver sempre como na presença de Deus; agir e falar e pensar estando
sempre sob Seus olhos — tudo isso com certeza tem como objetivo produzir um
bom efeito em nossa alma. Ampla, profunda, perscrutante e penetrante é a
influência deste pensamento: “Tu és o Deus que me vê!” (Gn 16.13).

(a) O pensamento da presença de Deus — é um forte chamado à


humildade. Quanto mal e quantas falhas não enxerga em cada um de nós o olho
1Tradução Brasileira: “Poderás descobrir perfeitamente o Todo-poderoso?”
2A tradução usada pelo Autor diz, no final do verso 10: “Ele conhece todas as coisas — não conheceria Ele também aquilo
que você está fazendo?”
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que tudo vê! Quão pouco nós conhecemos de fato o nosso próprio caráter! “O
homem vê o exterior, porém o Senhor, o coração” (1 Sm 16.7). O homem não nos
vê o tempo todo, mas o Senhor está o tempo todo olhando para nós - de manhã, à
tarde, e à noite! Quem é que não precisa dizer: “Deus, tem misericórdia de mim,
pecador!”

(b) O pensamento da presença de Deus — é uma esmagadora prova


da necessidade que temos de Jesus Cristo. Que esperança de salvação
poderíamos nós ter, se não houvesse um Mediador entre Deus e os homens? Aos
olhos do Deus sempre presente, as nossas melhores justiças são trapos de
imundícia, e nossos melhores esforços estão cheios de imperfeições! Onde
estaríamos nós se não houvesse uma fonte aberta para todo pecado - o próprio
sangue de Cristo! Sem Cristo, a perspectiva da morte, do julgamento, e da
eternidade nos conduziriam ao desespero!

(c) O pensamento da presença de Deus — nos ensina a tolice da


hipocrisia religiosa. O que poderia ser mais tolo e infantil do que vestir um mero
disfarce de cristianismo, enquanto no interior nos apegamos ao pecado, quando
Deus a tudo vê e nos vê de cabo a rabo? É fácil enganar ministros e irmãos em
Cristo, porque no geral eles nos vêem apenas aos domingos. Mas Deus nos vê de
manhã, à tarde e à noite, e não pode ser enganado. Oh, qualquer coisa que sejamos
na religião, sejamos autênticos e verdadeiros!

(d) O pensamento da presença de Deus — é um controle e um freio


para a inclinação ao pecado. A lembrança de que há Um que o tempo todo está
próximo de nós e que nos observa, que um dia haverá de ter um ajuste de contas
com toda a raça humana — bem pode nos guardar do mal! Felizes são os filhos e
as filhas que, quando saem da companhia dos pais, e vão ganhar mundo, levam
consigo a recordação do olhar de Deus. “Meus pais não estão me vendo — mas
Deus me vê!” Foi esse sentimento que preservou José quando tentado em terra
estranha: “como cometeria eu tamanha maldade e pecaria contra Deus?” (Gn 39.9).

(e) O pensamento da presença de Deus — é um estímulo à procura da


verdadeira santidade. O mais alto padrão de santificação é andar com Deus como
Enoque, e andar na presença de Deus como Abraão. Qual é o homem que não se
esforçaria para viver de modo agradável a Deus, se ele percebesse que Deus está
sempre junto dele! Sair da presença de Deus — esse é o alvo secreto do pecador.
Achegar-se a Deus — esse é o ardente desejo do santo. Os verdadeiros servos de
Deus são “povo que lhe é chegado” (Sl 148.14).
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(f) O pensamento da presença de Deus — é conforto em tempos de


calamidade pública. Quando a guerra e a fome e a peste invadem uma terra,
quando as nações são rasgadas por divisões internas, e toda ordem parece perigar
— é encorajador pensar que Deus vê e conhece e que se encontra perto — que o
Rei dos reis está junto de nós, e não dorme. Aquele que viu a armada espanhola
navegar para invadir a Inglaterra, e a espalhou com o sopro da Sua boca! Ele que
observou os planejadores da Gunpowder Plot3 — esse Deus não mudou.

(g) O pensamento da presença de Deus — é um forte consolo em


provas pessoais. Podemos ser afastados do nosso lar e da nossa terra natal — e
colocados no outro lado do mundo; podemos ser privados da esposa, dos filhos e
dos amigos — e deixados sozinhos na família, como a última árvore numa floresta.
Mas não poderemos nunca ir a lugar nenhum onde Deus não esteja, e em
circunstância nenhuma estaremos inteiramente sozinhos.

Esses pensamentos são úteis e proveitosos a todos nós. A pessoa que não os
vê dessa maneira, deve estar numa lamentável condição de alma. Que seja um
princípio definido em nossa religião: nunca esquecer que em toda situação e lugar
estamos sob os olhos de Deus! Isso não precisa nos amedrontar, se somos
verdadeiros crentes. Os pecados de todos os crentes foram lançados para trás das
costas de Deus, e mesmo o Deus que tudo vê não percebe nenhuma mancha neles!
Isso deve nos encorajar, se nosso cristianismo é genuíno e sincero. Podemos,
então, apelar a Deus com confiança, como Davi, e dizer: “Sonda-me, ó Deus, e
conhece o meu coração, prova-me e conhece os meus pensamentos; vê se há em
mim algum caminho mau e guia-me pelo caminho eterno” (Sl 139.23,24). É grande
o mistério do Deus presente em todo lugar, mas o verdadeiro homem de Deus
pode encarar isso sem medo.

II. A segunda coisa que me proponho considerar — é


a real presença Espiritual de nosso Senhor Jesus Cristo
Ao considerar essa seção de nosso assunto, temos de lembrar
cuidadosamente que estamos falando de Um que tanto é Deus como homem,
numa só Pessoa. Estamos falando de Um que, em infinito amor por nossas almas,
assumiu a natureza humana, e nasceu da virgem Maria, foi crucificado, morto e
sepultado - para ser um sacrifício pelos pecados, e contudo em momento nenhum
deixou de ser plenamente Deus. A presença peculiar dessa bendita pessoa, nosso

3 Uma conspiração tramada para explodir o Parlamento inglês e o Rei Tiago I, em 5 de novembro de 1605, data em que o
rei abriria o Parlamento.
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Senhor Jesus Cristo, com Sua Igreja, é o ponto que pretendo desvendar nesta parte
do meu artigo. Pretendo mostrar que Ele de fato e verdadeiramente está presente
com o Seu povo crente, espiritualmente - e que a Sua presença é um dos grandes
privilégios do verdadeiro cristão. O que, então, é a real presença espiritual de Cristo,
e em que consiste essa presença? Vejamos!

(a) Há uma real presença espiritual de Cristo com a Igreja que é Seu
corpo místico — a bendita companhia de todo o povo fiel.
É esse o sentido das palavras de despedida de nosso Senhor a Seus
apóstolos: "eis que estou convosco todos os dias até à consumação do século" (Mt
28.20). Esta palavra não diz respeito propriamente à igreja cristã visível. Rasgada
por divisões, poluída por heresias, desgraçada por superstições e corrupções, a
igreja cristã visível tem, freqüentemente, dado provas de que Cristo nem sempre
habita nela! Muitos dos seus ramos, no correr dos anos, à semelhança das Igrejas da
Ásia, decaíram e morreram!
A presença especial de Cristo se encontra com a Igreja universal, invisível,
composta dos eleitos de Deus — a Igreja da qual cada um dos membros é de fato
santificado, a Igreja dos homens e mulheres crentes e arrependidos — esta é a
Igreja a quem, a rigor, pertence a promessa! Essa é a Igreja em que se encontra
sempre uma real presença espiritual de Cristo.
Não há uma Igreja visível na terra, por mais antiga e bem organizada que
seja, que esteja seguramente guardada de se desviar. Tanto as Escrituras como a
história testificam que, à semelhança da Igreja judaica, ela pode se corromper, e
afastar-se da fé; e, apartando-se da fé, ela pode morrer. E por que isso acontece?
Simplesmente porque Cristo nunca prometeu a nenhuma igreja visível que Ele
estaria sempre com ela até à consumação do século. A palavra que Ele inspirou
Paulo a escrever à Igreja de Roma - é a mesma palavra que Ele envia a toda igreja
visível através do mundo, quer seja Episcopal, Presbiteriana ou Congregacional:
"Não te ensoberbeças, mas teme. ...para contigo, a bondade de Deus, se nela
permaneceres; doutra sorte, também tu serás cortado" (Rm 11.20-22).
Por outro lado, a contínua presença de Cristo com essa Igreja universal,
invisível, que é o Seu corpo — é o grande segredo da sua continuidade e segurança!
Ela permanece viva e não pode morrer porque Jesus Cristo está no meio dela! Ela é
um navio sacudido por tormentas e tempestades, mas não pode afundar porque
Cristo está a bordo! Talvez seus membros sejam perseguidos, oprimidos,
aprisionados, roubados, espancados, decapitados ou queimados — mas a Sua
verdadeira Igreja nunca será extinta. Ela sobrevive ao fogo e à inundação! Quando
exterminada num país, ela brota em outro. Os Faraós, os Herodes, os Neros, os
Julianos, as Marias Sanguinárias — todos têm se esforçado em vão para destruir
esta Igreja. Eles mataram os seus milhares — e depois seguiram o seu próprio
destino eterno! A verdadeira Igreja sobrevive a todos eles. Ela é uma sarça que
freqüentemente arde, contudo nunca se consome. E qual é a razão disso tudo? É a
constante presença de Jesus Cristo com o Seu povo!
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(b) Há uma presença verdadeira de Cristo no coração de todo cristão


autêntico.
É isso que Paulo quer dizer, quando fala de "Cristo habitar no coração pela
fé" (Ef 3.17). É isso que nosso Senhor quer dizer quando Ele se refere ao homem
que O ama e guarda a Sua Palavra: "e viremos para ele e faremos nele morada" (Jo
14.23). Em cada cristão, quer seja grande ou pequeno, rico ou pobre, novo ou
velho, ou fraco ou forte — o Senhor habita, e prossegue a obra da Sua graça pelo
poder do Espírito Santo. Da mesma forma que Ele habita em toda a Igreja, que é o
Seu corpo — sustentando, guardando, preservando, e santificando-a — assim Ele
continuamente reside em cada membro desse corpo — tanto no menor como no
maior deles.
Essa presença é o segredo de toda essa paz, e esperança, e alegria, e conforto,
que os cristãos sentem. Tudo isso nasce porque têm dentro deles um divino morador.
Essa presença é o segredo da sua persistência na fé, e sua perseverança até o fim. Em
si mesmos, são fracos e inconstantes como água. Mas eles têm dentro de si Um que
"pode salvar totalmente", e que não vai permitir que Seu trabalho fracasse.
Nenhum osso do corpo místico de Cristo haverá de ser quebrado jamais! Nenhum
cordeiro do rebanho de Cristo jamais será arrancado de Sua mão! O coração onde
Cristo Se digna habitar, embora seja muito fraco - é um coração onde jamais o
diabo haverá de entrar para tomar posse!

(c) Há uma verdadeira presença espiritual de Cristo onde quer que o


Seu povo crente se reúna em Seu nome.
É esse o significado simples e direto das Suas famosas palavras: "onde
estiverem dois ou três reunidos em meu nome, ali estou no meio deles" (Mt 18.20).
Por menor que seja o número dos cristãos verdadeiros que se reúnem com o
propósito de orar ou louvar, ou para santa conferência ou leitura da Palavra de
Deus — essa reunião é santificada pela melhor das companhias! Talvez ali não estejam
os grandes ou ricos ou nobres — mas o Próprio Rei dos reis está presente — e os
anjos o contemplam com reverência!
Os maiores prédios que os homens possam ter edificado para uso religioso
muitas vezes não são mais do que sepulcros caiados — destituídos de qualquer
influência santa — porque se prestam a cerimônias repletas de superstição,
inutilmente cheios de multidões de adoradores formais, que vêm e vão sem
nenhum sentimento. Nenhuma adoração é proveitosa à alma se Cristo não estiver
presente! Incenso, cartazes, pinturas, flores, crucifixos, e longas procissões de
religiosos ricamente vestidos — tudo isso são pobres substitutos do Próprio Sumo
Sacerdote!
A mais pobre sala, onde alguns poucos crentes arrependidos se reúnem em
nome de Jesus, é um lugar consagrado e mais santo aos olhos de Deus! Aqueles que
adoram a Deus em espírito e em verdade nunca se aproximam dEle em vão. Muitas
vezes eles voltam desse tipo de reunião aquecidos, encorajados, edificados,
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fortalecidos, confortados, e aliviados. E qual é o segredo desses seus sentimentos? É


que estiveram com o grande Mestre das assembléias — o próprio Jesus Cristo!

(d) Há uma verdadeira presença espiritual de Cristo no coração de


todo aquele que participa sinceramente da Ceia do Senhor.
Embora eu rejeite com todo o coração o infundado ensino da presença física
de Cristo na mesa do Senhor, não posso nunca duvidar que essa grande ordenança
instituída por Cristo tem uma bênção especial e peculiar ligada a ela. Essa bênção,
eu creio, consiste numa especial e peculiar presença de Cristo, dada ao coração de
todo crente que está comungando. A mim parece que essa verdade nós
encontramos nestas maravilhosas palavras de sua instituição: "Tomai, comei; isto é
o meu corpo" (Mt 26.26). "Bebei dele todos; porque isto é o meu sangue" (Mt
26.27,28). Essas palavras de forma alguma foram proferidas para ensinar que o pão
da Ceia do Senhor era literamente o corpo de Cristo, ou o vinho literalmente o
sangue de Cristo. Mas nosso Senhor pretendia ensinar que todo crente sincero que
come esse pão e bebe esse vinho em memória de Cristo, ao fazê-lo, encontra uma
presença especial de Cristo em seu coração e uma especial revelação do sacrifício
do corpo e do sangue de Cristo à sua alma.
Em resumo, há uma especial presença espiritual de Cristo na Ceia do Senhor,
conhecida somente dos fiéis comungantes, presença essa não conhecida de forma
nenhuma por aqueles que não comungam. Afinal, a experiência de todos os
melhores servos de Cristo é a melhor prova de que há uma bênção especial ligada à
Ceia do Senhor. Dificilmente você encontrará um cristão verdadeiro que não diga
que considera essa ordenança como uma grande ajuda e um dos seus maiores
privilégios. Ele lhe dirá que, se for privado dela, vai considerar essa perda como
grande prejuízo para sua alma. Ele lhe dirá que, ao comer esse pão e beber esse
cálice, ele percebe um pouco do que significa Cristo habitar nele, e seu
arrependimento se intensifica, sua fé se fortalece, seu entendimento se expande, e
se sente fortalecido na graça.
O comer do pão com fé faz o crente sentir comunhão mais chegada com o
corpo de Cristo. O beber do vinho com fé faz o crente sentir comunhão mais
chegada com o sangue de Cristo. Aquele que comunga vê mais claramente aquilo que Cristo
é para ele, e o que ele é para Cristo. Ele entende mais completamente o que significa ser
um com Cristo e Cristo estar nele. Ele sente que as raízes da sua vida espiritual são
imperceptivelmente regadas, e a obra da graça em seu interior é sutilmente
construída e levada avante. Ele não consegue nem explicar nem definir o que
acontece. É questão de experiência, que ninguém sabe a não ser aquele que dela
participa. E a verdadeira explicação do assunto todo é esta: há uma presença de
Cristo especial e espiritual na ordenança da Ceia do Senhor. Jesus Se encontra,
numa forma especial e peculiar, com aqueles que se aproximam com sinceridade da
Sua mesa!
Textos de J. C. Ryle - 14 -

(e) Por último, mas não menos importante, há uma verdadeira


presença espiritual de Cristo, dada ao cristãos em tempos específicos de
tribulação e dificuldade.
Essa é a presença a respeito da qual Paulo recebeu garantia em mais de uma
ocasião. Em Corinto, por exemplo, o Senhor lhe disse: "Não temas; pelo contrário,
fala e não te cales; porquanto eu estou contigo, e ninguém ousará fazer-te mal, pois
tenho muito povo nesta cidade" (At 18.9,10). Em Jerusalém, novamente, quando o
Apóstolo estava em perigo de vida, lemos: "Na noite seguinte, o Senhor, pondo-se
ao lado dele, disse: Coragem! Pois do modo por que deste testemunho a meu
respeito em Jerusalém, assim importa que também o faças em Roma" (At 23.11).
Outra vez, na última epístola que Paulo escreveu, encontramo-lo dizendo: "Na
minha primeira defesa, ninguém foi a meu favor; antes, todos me abandonaram.
Que isto não lhes seja posto em conta! Mas o Senhor me assistiu e me revestiu de
forças, para que, por meu intermédio, a pregação fosse plenamente cumprida, e
todos os gentios a ouvissem; e fui libertado da boca do leão" (2 Tm 4.16,17).
Essa presença especial de Cristo com o Seu povo é a razão da singular e miraculosa
coragem que muitos dos filhos de Deus às vezes demonstraram sob circunstâncias
de invulgar prova, em todas as épocas da Igreja. Quando os três jovens hebreus
foram lançados na fornalha de fogo, preferindo morrer a cometer idolatria, somos
informados que Nabucodonosor exclamou: "Eu ... vejo quatro homens soltos, que
andam passeando dentro do fogo, sem nenhum dano; e o aspecto do quarto é
semelhante a um filho dos deuses" (Dn 3.25). Quando Estêvão foi atacado por
cruéis inimigos ao ponto de apedrejá-lo, lemos que ele disse: "Eis que vejo os céus
abertos e o Filho do Homem, em pé à destra de Deus" (At 7.56).
Também não devemos duvidar que essa presença especial foi o segredo do
destemor com que muitos dos antigos mártires cristãos enfrentaram a morte, e da
maravilhosa coragem que os mártires de Maria (a sanguinária), como Bradford,
Latimer e Rogers mostraram quando foram executados na fogueira. Um singular
senso de que Cristo estava com eles — esta é a correta explicação de todos esses
casos. Esses homens morreram da forma que morreram porque Cristo estava com
eles. Nenhum crente precisa temer, pois essa mesma presença auxiliadora haverá de
estar com ele, não importa quando sua especial hora de necessidade chegar.
Muitos crentes estão excessivamente ansiosos, imaginando o que farão em sua
doença final, e quando estiverem no seu leito de morte. Muitos se inquietam com
pensamentos de ansiedade, como o que fariam se o marido ou esposa morresse, ou
se de repente se vissem sem casa onde morar. Creiamos que, quando a necessidade
surgir, o auxílio também virá. Não carregue sua cruz antes que seja colocada sobre
você! Aquele que disse a Moisés: "Certamente eu estarei contigo!" jamais falhará com
qualquer crente que O invocar. Quando chegar a hora da peculiar tormenta, o Senhor
que anda por sobre as águas chegará e dirá: "Acalma-te! Emudece!" Há milhares de
santos apreensivos cruzando o rio da morte, que descem às águas com medo e
tremor, e contudo se vêem capacitados, por fim, a dizer com Davi: "Ainda que eu
ande pelo vale da sombra da morte, não temerei mal nenhum, porque tu estás
comigo" (Sl 23.4).
Textos de J. C. Ryle - 15 -

Esta seção do nosso assunto merece muita reflexão. Essa presença espiritual
de Cristo é algo real e verdadeiro, embora os filhos deste mundo nem a conheçam
nem entendam. É precisamente a respeito de um desses assuntos que Paulo
escreveu: "o homem natural não aceita as coisas do Espírito de Deus, porque lhe
são loucura" (1 Co 2.14). Apesar disso, repito enfaticamente, essa presença
espiritual de Cristo — a Sua presença no coração e no espírito do Seu próprio povo
— é algo real e verdadeiro. Que não duvidemos, mas que, pelo contrário, nos
apoiemos nisso com firmeza e que procuremos senti-lo mais e mais. Aquele que
não sente absolutamente nada disso em seu próprio coração talvez tenha de admitir
que ainda não acertou a sua alma diante de Deus.

III. O último ponto que me proponho a considerar é a


verdadeira presença Física de nosso Senhor Jesus Cristo.

Onde a encontramos? O que devemos pensar a respeito desse assunto? O


que devemos rejeitar e a que devemos nos apegar firmemente? É muito importante,
a respeito dessa seção do meu assunto, ter opiniões claras e bem definidas. É
assunto rodeado de rochas, onde muitos estão naufragando. Não há dúvida que a
esse assunto se relacionam coisas profundas, e várias dificuldades. Mas isso não
deve impedir que o examinemos, tanto quanto pudermos, à luz das Escrituras.
Qualquer coisa que a Bíblia ensina claramente a respeito da presença física de
Cristo é nossa obrigação reter e crer. Não crer nesta verdade pelo fato não não
conseguirmos harmonizar com ela alguma tradição humana, ou o ensino de algum
pregador, ou algum preconceito absorvido quando jovens, é presunção e não
humildade. À lei e ao testemunho! O que é que dizem as Escrituras a respeito da
presença física de Cristo? Vamos examinar o assunto passo a passo.

(a) O Senhor Jesus Cristo esteve presente fisicamente durante o


tempo em que esteve aqui na terra, no seu primeiro advento. Por trinta e três
anos, no intervalo entre o Seu nascimento e a Sua ascensão, Ele se fez presente
num corpo, neste mundo. Manifestando infinita misericórdia para com nossas
almas, aprouve ao eterno Filho de Deus assumir a nossa natureza, e nascer
miraculosamente de uma mulher, com um corpo exatamente como o nosso. Ele Se
tornou exatamente como um de nós em todas as coisas, exceto quanto ao pecado.
Como um de nós, Ele cresceu da infância até a juventude, e da juventude à
maturidade. Como um de nós, Ele comeu, e bebeu, e dormiu, e teve fome, e teve
sede, e chorou, e sentiu cansaço e dor. Ele tinha um corpo que estava sujeito a
todas as condições a que está sujeito um corpo físico. Apesar de estar, como Deus,
no céu e na terra ao mesmo tempo; como homem, Seu corpo estava somente em
um lugar de cada vez. Quando Ele estava na Galiléia, Ele não estava na Judéia, e
quando Ele estava em Cafarnaum, não estava em Jerusalém. Ele viveu num corpo
Textos de J. C. Ryle - 16 -

humano real, verdadeiro; nesse corpo humano real e verdadeiro Ele guardou a lei, e
cumpriu toda a justiça; nesse corpo humano real e verdadeiro Ele carregou nossos
pecados na cruz, e nos fez agradáveis a Deus pelo Seu sangue expiatório. Aquele
que morreu por nós no Calvário era perfeito homem, ao mesmo tempo em que era
perfeito Deus.
Este foi o primeiro aparecimento físico real de Jesus Cristo. Esta verdade é
cheia de indizível conforto a todos os que têm a consciência despertada, e
conhecem o valor de suas almas. É um pensamento que encoraja nosso coração:
“O único Mediador entre Deus e os homens é o homem Jesus Cristo”. Ele foi um
homem real — e desta forma capaz de sentir nossas fraquezas. Ele era o Altíssimo
Deus — e desta forma capaz de salvar totalmente todo aquele que se aproxima do
Pai através dEle. O Salvador em Quem todos os cansados e sobrecarregados são
convidados a confiar é Alguém que tinha um corpo real quando estava operando a
nossa redenção na terra. Não foi um anjo, nem um espírito que se pôs em nosso
lugar e Se tornou nosso substituto, que completou a obra da redenção, e que fez
aquilo que Adão deixou de fazer. Não! Quem fez isso foi Um que era um homem
real, verdadeiro! “Visto que a morte veio por um homem, também por um homem
veio a ressurreição dos mortos” (1 Co 15.21).
A batalha foi travada em nosso favor, e a vitória foi obtida pela eterna
Palavra que Se tornou carne — pela presença física real e verdadeira de Jesus Cristo
entre nós. Louvemos a Deus para sempre porque Cristo não permaneceu no céu
— mas veio ao mundo e Se fez carne para salvar pecadores; e isso num corpo, Ele
nasceu para nós, viveu para nós, morreu por nós, e ressuscitou. Quer os homens
saibam disso ou não, nossa esperança de vida eterna depende totalmente do
simples fato de que há mil e novecentos anos o Filho de Deus se fez presente em
carne, num corpo humano, por nós nesta terra. Vamos, agora, avançar mais um
passo.

(b) Jesus Cristo está de fato presente fisicamente no Céu, à mão


direita de Deus. Sem dúvida, este assunto é misterioso e difícil de entender. O que
Deus o Pai é, e onde Ele habita, qual a natureza da habitação dEle, que é Espírito
— esses são assuntos elevados, os quais não temos capacidade de entender. Mas
aquilo que a Bíblia expõe claramente, isso é nossa responsabilidade crer, e é
sabedoria fazê-lo. Quando nosso Senhor ressurgiu dentre os mortos, Ele
ressuscitou com um corpo humano real — um corpo que não podia estar em dois
lugares ao mesmo tempo — um corpo a respeito do qual os anjos disseram: “Ele
não está aqui, mas ressuscitou” (Lc 24.6). Nesse corpo, depois de completar Sua
obra redentora sobre a terra, Ele ascendeu visivelmente ao céu. Ele subiu com o
seu corpo, e não o deixou para trás, como o manto de Elias. Esse corpo, no final,
não ficou no túmulo, e não virou pó e cinza nalguma vila da Síria, como o corpo
dos santos e mártires. O mesmo corpo que caminhou nas ruas de Cafarnaum, e
sentou-se na casa de Maria e Marta, e foi crucificado no Gólgota, e foi depositado
na tumba de José — esse mesmo corpo — indubitavelmente glorificado depois da
Textos de J. C. Ryle - 17 -

ressurreição — mas ainda real e material — foi elevado até o céu, e ali está neste
exato momento.
Nas inspiradas palavras de Atos, “...foi Jesus elevado às alturas, à vista deles,
e uma nuvem o encobriu dos seus olhos” (At 1.9). Nas palavras do Evangelho de
Lucas, “Aconteceu que, enquanto os abençoava, ia-se retirando deles, sendo
elevado para o céu” (Lc 24.51). Nas palavras de Marcos, “De fato, o Senhor Jesus,
depois de lhes ter falado, foi recebido no céu e assentou-se à destra de Deus” (Mc
16.19). O quarto artigo da Igreja da Inglaterra estabelece o assunto de forma plena
e acurada: “Cristo de fato ressurgiu dos mortos com Seu próprio corpo, com carne,
ossos, e todas as coisas pertencentes à natureza humana completa, e com esse
corpo ascendeu ao céu, onde está assentado até que volte para julgar todos os
homens no último dia”. Dessa forma, voltando ao ponto onde começamos — de
fato há, no céu, a real presença física de Jesus Cristo.
A doutrina que estamos considerando é especialmente rica em conforto e
consolação a todo cristão verdadeiro. Esse divino Salvador no céu, sobre quem o
Evangelho nos orienta a lançar o fardo de nossa alma cheia de pecado, não é um
Ser que é Espírito apenas — mas um Ser que é homem, além de ser também Deus.
Ele é Um que foi ao céu com um corpo igual ao nosso; e nesse corpo está
assentado à mão direita de Deus, para ser nosso Sacerdote e nosso Advogado,
nosso Representante e nosso Amigo. Ele entende nossas fraquezas e pode
compadecer-Se delas, porque Ele mesmo sofreu no próprio corpo, ao ser tentado.
Ele conhece por experiência tudo que se pode sentir no corpo — dor, e cansaço, e
fome, e sede, e trabalho; e levou consigo esse mesmo corpo que sofreu a
contradição dos pecadores e que foi pregado no madeiro!
Quem pode duvidar que esse corpo no céu é uma contínua alegação de
defesa em favor dos crentes, e os faz aceitáveis na presença do Pai? Ele é uma
lembrança perpétua do perfeito sacrifício expiatório feito por nós na cruz. Deus
não haverá de esquecer que nossas dívidas já foram pagas, enquanto estiver no céu,
diante dos Seus olhos, o corpo que as pagou derramando o próprio sangue. Quem
pode duvidar que, quando derramamos as nossas petições e orações perante o
trono da graça, nós as colocamos nas mãos de Um cuja simpatia ultrapassa todo
entendimento? Ninguém pode se condoer de pobres crentes que lutam aqui no
corpo — como Ele que, no corpo, está assentado implorando por eles no céu.
Bendigamos para sempre a Deus porque de fato há uma presença corpórea real no
céu. Avancemos, agora, mais um passo.

(c) Na ceia do Senhor, não existe a presença física real de Cristo nos
elementos consagrados (o pão e o vinho). Esse é um ponto especialmente difícil
de tratar, porque de há muito divide cristãos em dois partidos, e mancha um
assunto solene com severa controvérsia. Apesar disso, o assunto não pode ser
evitado ao tratarmos a presente questão. Além disso, é um ponto de enorme
importância, e exige tratamento franco e aberto.
Textos de J. C. Ryle - 18 -

As pessoas amáveis e bem-intencionadas, que pensam que pouco importa o


que se pensa sobre a presença de Cristo na Ceia do Senhor — que é assunto de
pouca monta, e que no final tudo dá na mesma — essas pessoas estão total e
completamente enganadas. Elas precisam com urgência aprender que um ponto de
vista não bíblico sobre o assunto pode conduzi-las pouco a pouco a uma perigosa
heresia. Vejamos por quê.
A razão por que afirmo que não ocorre a presença física de Cristo na Ceia do
Senhor, ou no pão consagrado e no vinho, é simplesmente esta: essa alegada
presença não é ensinada em lugar nenhum nas Sagradas Escrituras. Não se pode,
honesta e justamente, encontrar tal ensino na Bíblia. Examinem-se e avaliem-se
com imparcialidade as três descrições da instituição da Ceia do Senhor, nos
Evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas, e aquela fornecida por Paulo na Primeira
Carta aos Coríntios, e eu não tenho dúvidas quanto ao resultado. Essas passagens
ensinam que o Senhor Jesus, na noite em que foi traído, tomou o pão, e o deu a
Seus discípulos, dizendo: “Tomai, comei, isto é o meu corpo”; por semelhante
modo, tomou o cálice de vinho e o deu aos discípulos, dizendo: “Tomai dele todos,
porque isto é o meu sangue”.
Mas nada encontramos na própria narrativa ou nos versos seguintes que
mostre que os discípulos pensavam que o corpo e o sangue do Mestre estivessem
de fato presentes no pão e no vinho que eles receberam. Não há, nas Epístolas,
uma só palavra que mostre que, após a ascensão do Senhor para o céu, os cristãos
criam que Seu corpo e Seu sangue estivessem presentes nalguma ordenança
celebrada na terra; ou que o pão da Santa Ceia, depois de consagrado, não fosse
mais verdadeira e literalmente pão, e o vinho verdadeira e literalmente vinho.
Algumas pessoas, estou ciente disso, supõem que textos como “Este é meu
corpo” e “Este é o meu sangue” são provas de que o corpo e o sangue de Cristo,
de alguma forma misteriosa, estão fisicamente presentes no pão e no vinho da
Santa Ceia, depois que esses elementos são consagrados. Mas satisfazer-se com
apenas esses textos mostra uma tendência de aceitar poucas provas para estabelecer
uma verdade. A citação de uma pequena frase, isolada de seu contexto, é um
método de argumentar que acabaria confirmando o Arianismo4 ou o Socinianismo5.
O contexto dessas famosas citações demonstra, claramente, que aqueles que
ouviram essas palavras e que estavam acostumados com a maneira de falar de
nosso Senhor entenderam que elas significavam “Isto representa meu corpo” e
“Isto representa meu sangue”. A comparação com outras citações prova que não
há nada de incorreto nesta interpretação. É incontestável que as palavras é e são
freqüentemente significam representa nas Escrituras. Os discípulos, sem dúvida,
se lembravam de que o Mestre havia dito coisas como “O campo é o mundo, a boa
semente são os filhos do reino” (Mt 13.38). Paulo, ao escrever sobre o Sacramento,

4Doutrina de Ário, sacerdote norte-africano, que viveu no 4º século. Negava a divindade de Cristo.
5Doutrina de Fausto Socino (1539-1604). Socino considerava que a ceia do Senhor era mera comemoração. Negava a
divindade de Cristo.
Textos de J. C. Ryle - 19 -

confirma essa interpretação quando expressamente chama o pão consagrado pão, e


não o corpo de Cristo, pelo menos três vezes (1 Co 11.26-28).
Algumas pessoas consideram o capítulo seis de João, onde nosso Senhor fala
de “comer a Sua carne e beber o Seu sangue”, como prova de que há uma presença
corporal de Cristo no pão e no vinho da Santa Ceia. Mas não existe nenhuma prova
convincente de que esse capítulo se refira à Santa Ceia! Isso é mera cogitação!
Naquela ocasião, a Santa Ceia não havia nem sido instituída, nem sequer existia; a
instituição da Ceia ocorreu pelo menos um ano depois de Jesus ter proferido as
palavras de João seis. Basta dizer que a grande maioria dos comentaristas
protestantes rejeita a idéia de que esse capítulo se refira à Santa Ceia; além do fato
de que mesmo alguns comentaristas católicos também pensam dessa forma. O
comer e o beber, aqui, são o comer e o beber da fé — e não uma ação relacionada
com nosso corpo.
Algumas pessoas imaginam que as palavras de Paulo aos coríntios —
“Porventura, o cálice da bênção que abençoamos não é a comunhão do sangue de
Cristo? O pão que partimos não é a comunhão do corpo de Cristo?” (1 Co 10.16)
— são prova suficiente para a presença física de Cristo na Santa Ceia. Mas,
infelizmente para o argumento deles, Paulo não diz “O pão é o corpo”, mas “a
comunhão do corpo de Cristo”. E o sentido óbvio dessas palavras é o seguinte: “O
pão que um comungante digno ingere na Ceia do Senhor é um meio pelo qual a sua
alma mantém comunhão com o corpo de Cristo”. Eu não creio que se possa extrair
mais do que isso dessas palavras. Acima de tudo, permanece o argumento
irrespondível de que, se nosso Senhor estava de fato segurando nas mãos o Seu
próprio corpo, quando disse a respeito do pão “Este é o meu corpo”, então o
corpo dEle forçosamente tinha de ser um corpo diferente de um ser humano
comum. E, é evidente, se o Seu corpo não era como o nosso, a Sua humanidade
não existiu. Nesse caso, cai por terra total e completamente a bendita e confortante
doutrina da inteira identificação de Cristo com o Seu povo, a qual vem da verdade
de que Ele é de fato e verdadeiramente homem.
Finalmente, se o corpo com o qual nosso bendito Senhor ascendeu ao céu
pode ao mesmo tempo estar no céu e na terra, e em dez mil diferentes lugares na
mesa de comunhão, então não é possível que seja um verdadeiro corpo humano, de
forma nenhuma.
Com muita propriedade diz o Livro de Orações da Igreja da Inglaterra: “O
pão sacramental e o vinho mantêm suas propriedades naturais, e por essa causa não
devem ser adorados (pois isso é idolatria, e deve ser detestada por todo cristão fiel);
e o corpo e o sangue naturais de nosso Salvador Cristo estão no céu, e não aqui na
terra; não é verdade que o corpo natural de Cristo está, ao mesmo tempo, em mais
do que um lugar.” Palavras sãs, essas, que não se podem contestar. Que bom seria
para a igreja, se todos os sacerdotes pudessem ler, prestar atenção, aprender, e
digerir interiormente aquilo que o Livro de Orações ensina a respeito da presença
de Cristo na santa ceia. Se amamos nossas almas e desejamos que prosperem,
sejamos zelosos a respeito da doutrina da Santa Ceia. Permaneçamos firmes no
ensino simples e claro das Escrituras, e não nos deixemos desviar dele por aqueles
Textos de J. C. Ryle - 20 -

que ensinam o erro com o pretexto de, adorando os seus elementos, reverenciar
mais essa ordenança de Cristo.
Tomemos cuidado: se acatarmos essas confusas e místicas noções de alguma
inexplicável presença do corpo e do sangue de Cristo em forma de pão e vinho, de
repente nos descobriremos envolvidos nos ensinos heréticos a respeito da natureza
humana de Cristo. Junto ao ensino de que Cristo não é Deus, mas somente
homem, não há nada mais perigoso do que a doutrina de que Cristo não é homem,
mas somente Deus. Se não queremos cair nesse buraco, temos de nos manter
firmes no ensino de que não pode haver a presença física literal do corpo de Cristo
na santa ceia; porque o Seu corpo está no céu, e não na terra; embora como Deus
Ele esteja em todos os lugares. Avancemos, agora, um pouco mais, para chegarmos
a uma conclusão.

(d) Cristo estará de fato presente corporalmente quando Ele vier pela
segunda vez, para julgar o mundo. Esse é um assunto que a Bíblia trata com
tanta clareza, que não há como duvidar nem discutir. Quando nosso Senhor subiu
ao céu diante dos Seus discípulos, os anjos lhes disseram: “Esse Jesus que dentre
vós foi assunto ao céu virá do modo como o vistes subir” (At 1.11).
Não há como errar quanto ao sentido dessas palavras. Visivelmente e
corporalmente o nosso Senhor deixou este mundo, e visivelmente e corporalmente
Ele retornará no dia que, enfaticamente, é chamado de dia da “revelação de Jesus
Cristo” (1 Pe 1.7). A concepção que o mundo tem de Cristo sempre é distorcida.
Inúmeras pessoas falam e pensam dEle como se fosse alguém que realizou suas
obras neste mundo, morreu e tem seu lugar na História, à semelhança de algum
estadista ou filósofo, nada mais deixando a seu respeito do que lembranças.
Terrivelmente, o mundo haverá de acordar, um dia, do seu engano. Esse mesmo
Jesus que veio dezenove séculos atrás em humilde condição e pobreza, para ser
desprezado e crucificado — Esse mesmo Jesus virá outra vez um dia, em poder e
glória, para ressuscitar os mortos e transformar os vivos, e para recompensar cada
homem de acordo com as suas obras!

Os maus verão o Salvador que eles desprezaram — tarde demais, porém —


e suplicarão às rochas que caiam sobre eles para escondê-los da face do Cordeiro!
As solenes palavras que Jesus dirigiu ao Sumo Sacerdote na noite anterior à Sua
crucificação se haverão de cumprir plenamente: “vereis o Filho do Homem
assentado à direita do Todo-Poderoso e vindo sobre as nuvens do céu” (Mt 26.64).
Os piedosos verão o Salvador a respeito de Quem leram, ouviram, e em
Quem creram; e a reação deles será como a da rainha de Sabá - que, de toda a Sua
excelência, nem mesmo a metade eles conheciam! Eles descobrirão que ver é muito
melhor do que crer, e que na real presença de Cristo há plenitude de alegria. Essa é
a verdadeira presença corporal de Cristo, pela qual todo autêntico cristão deveria
ansiar e orar todos os dias.
Textos de J. C. Ryle - 21 -

Felizes são aqueles que fazem disso uma parte da sua fé, e vivem na
constante expectativa da segunda vinda de Cristo. Daí — e somente daí — o diabo
será amarrado, a maldição será tirada da terra, o mundo será restaurado à sua
pureza original, a doença e a morte não mais existirão, as lágrimas serão enxugadas
de todos os olhos, e a redenção do santo, tanto do corpo como da alma, se
completará. “Amados, agora, somos filhos de Deus, e ainda não se manifestou o
que haveremos de ser. Sabemos que, quando ele se manifestar, seremos
semelhantes a ele, porque haveremos de vê-lo como ele é” (1 Jo 3.2). O mais alto
título do cristão é ser chamado de alguém que deseja a verdadeira presença do seu
Mestre, e que ama “a sua vinda” (2 Tm 4.8).

Neste breve estudo, expus, da melhor forma que pude, a verdade sobre a
presença de Deus e do Seu Cristo. As verdades expostas foram as seguintes:
(1) a doutrina geral da presença de Deus em todos os lugares;
(2) a doutrina bíblica da presença verdadeira de Cristo, presença
espiritual;
(3) a doutrina bíblica da presença verdadeira de Cristo, presença física.

Concluo, agora, o assunto, com uma palavra final de aplicação à nossa vida, e
sugiro que se preste muita atenção. Numa época de pressa e correria em busca de
coisas mundanas, numa época de desprezíveis discussões e controvérsias sobre
religião — imploro ao leitor que não negligencie as grandes verdades que estas
páginas contêm.

(1) O que conhecemos de Cristo, pessoalmente? Temos ouvido falar


dEle milhares de vezes. Consideramo-nos cristãos. Mas o que é que conhecemos de
Cristo experimentalmente, como nosso próprio Salvador pessoal, nosso próprio
Pastor, nosso próprio Amigo, o Remédio para a nossa consciência, o Confortador
do nosso coração, o Perdoador dos nossos pecados, a Fundação da nossa
esperança, a Segurança das nossas almas? Em que pé estamos?
(2) Não descansemos enquanto não sentirmos Cristo presente em
nosso próprio coração, enquanto não soubermos o que significa ser um com
Cristo e perceber Cristo em nós. Isso é religião verdadeira. Viver olhando para trás,
para Cristo na cruz, para cima, para Cristo à mão direita de Deus, e para frente,
para Cristo vindo outra vez — esse é o único Cristianismo que dá conforto na vida,
e boa esperança na morte. Lembre-se disso.
(3) Acautelemo-nos de abrigar concepções errôneas a respeito da
Santa Ceia, especialmente sobre a verdadeira natureza da presença de Cristo na
Ceia. Cuidado para não nos enganarmos a respeito dessa bendita ordenança,
instituída com o propósito de ser alimento para a alma — para que não se torne,
em vez disso, veneno para nossa alma! Não ocorre nenhum sacrifício na Ceia do
Senhor, não há sacerdote que ofereça sacrifício, não há altar, não há presença física
Textos de J. C. Ryle - 22 -

de Cristo no pão e no vinho. Essas coisas não estão na Bíblia; são perigosas
invenções humanas, que conduzem à superstição! Sejamos cuidadosos, então.
(4) Mantenhamos em mente, sempre, a segunda vinda de Cristo, e a
verdadeira presença que ainda virá. Mantenhamos nossas mentes cingidas e
nossas lâmpadas acesas, e a nós mesmos como homens que diariamente aguardam
o retorno do seu Mestre. Então, e somente então, haveremos de ter satisfeitos
todos os desejos de nossas almas. Até lá, quanto menos esperarmos deste mundo,
melhor. Que seja este o nosso clamor diário: “Amém! Vem, Senhor Jesus!”

Dedica-te Inteiramente a Elas


(Este sermão foi pregado na Inglaterra, em Agosto de 1859)

“dedica-te inteiramente a elas” (1 Timóteo 4.15 – Tradução Brasileira)


Não é nem preciso lembrá-los que no grego a expressão traduzida como
“dedica-te inteiramente a elas” é um tanto fora do comum. Ela poderia ter sido
traduzida, mais literalmente, como “ponha-se dentro dessas coisas”. Não temos
nada que corresponda exatamente a essa expressão em nossa língua, e as palavras
que os tradutores escolheram foram muito bem escolhidas para transmitir a idéia
que o Espírito Santo colocou na mente de Paulo.
Quando o apóstolo diz: “dedica-te inteiramente a elas”, parece que está
olhando para as “coisas” de que estava falando nos versículos anteriores, a começar
com as palavras “torna-te o exemplo dos fiéis na palavra, no procedimento, no
amor, na fé e na pureza”.
Temos aqui um alvo colocado diante dos ministros do Novo Testamento,
que todos nós devemos mirar, e do qual temos todos de confessar que estamos
longe. Apesar disso, é comum dizer que aquele que mira mais alto tem mais
chances de acertar o que está mais alto, e que aquele que atira para cima alcança
mais longe do que aquele que atira mirando para baixo.

Parece-me que o apóstolo está dando a entender que o ministro tem


de ser um homem de uma coisa só: nas próprias palavras dele, “um homem
de Deus”.
Textos de J. C. Ryle - 23 -

Ouvimos falar de homens de negócios, homens sensuais, homens de ciência.


O alvo do ministro deveria ser tornar-se “um homem de Deus”; ou para usar uma
frase usada em alguns países pagãos, ser “um homem de Jesus Cristo”. Algumas
vezes se usa uma expressão relacionada ao exército que podemos aplicar aos
soldados do Grande Capitão da nossa salvação. Há homens que entram no exército
por interesse pessoal, e não são dignos de serem chamados soldados. Mas existem
muitos que a opinião pública reconhece como “inteiramente soldados, soldados de
coração”. Esse deveria ser o alvo para colocar diante de nós, deveríamos procurar
ser “inteiramente ministros de Jesus Cristo”.
Deveríamos ter como objetivo ser os mesmos homens em todo o tempo, em
toda e qualquer posição e lugar; não apenas no domigo, mas nos dias de semana
também; não meramente no púlpito, mas em todo lugar — em nossa sala de estar,
e na casa dos mais pobres.
Existem aqueles que, quando estão no púlpito, ninguém quer que saiam dali,
e que, quando estão fora do púlpito, ninguém quer que subam até lá. Queira Deus
nos conceder graça para acolhermos isso de coração! Possamos nós viver de tal
forma, e falar de tal forma, e trabalhar de tal forma, e nos dar tão completamente à
ocupação do nosso chamado, que essa amarga observação nunca seja feita a nosso
respeito. Nossa ocupação é muito especial. Os outros têm ocasiões em que podem
relaxar, quando podem deixar completamente de lado o seu trabalho. Mas o fiel
ministro de Jesus Cristo nunca pode fazer isso. Uma vez assumido o ofício, não
mais poderá largá-lo. Em casa, na rua, em férias, à beira-mar, ele sempre tem de
levar consigo o seu trabalho. Um juiz pode dizer da túnica que veste quando está
no tribunal: “Descanse aqui, Sr. Juiz”. Mas isso não deve nunca ser a mentalidade
do ministro de Cristo.

Vejamos algumas coisas que as altas exigências deste texto nos sugerem
como necessárias, que devemos seguir e praticar.
1. Primeiro, ele exige inteira devoção ao grande trabalho para o qual
fomos ordenados
Quando o Salvador ordenou que certo homem O seguisse, ouviu em
resposta: “Permite-me ir primeiro sepultar meu pai”. Foi aí que Ele pronunciou
estas solenes palavras: “Deixa aos mortos o sepultar os seus próprios mortos. Tu,
porém, vai e prega o reino de Deus”. Ainda outro disse: “Seguir-te-ei, Senhor; mas
deixa-me primeiro despedir-me dos de casa”; e a ele foi dirigida esta memorável
frase: “Ninguém que, tendo posto a mão no arado, olha para trás é apto para o
reino de Deus”.
“... a ninguém saudeis pelo caminho”6 foi a ordem de Cristo aos setenta
discípulos. Com certeza essas declarações bíblicas nos ensinam que, em todas as
nossas atividades ministeriais, devemos possuir um padrão elevado. Devemo-nos
esforçar para ser homens de uma só coisa — e essa coisa é a obra de Jesus Cristo.

6 Lucas 9.59-10.4.
Textos de J. C. Ryle - 24 -

2. Em segundo lugar, o texto demanda uma inteira separação das


coisas do mundo
Eu creio que é da maior importância, a fim de manter a função ministerial,
que nos mantenhamos, o máximo que pudermos, separados e desligados de tudo o
que é secular. Espero que a cada ano que passa possamos ouvir de cada vez menos
ministros do Evangelho que são magistrados, e cada vez menos ministros que
participam de leilões de produtos agrícolas, e que procuram melhores preços pelo
quilo do porco, do boi, e das abundantes colheitas de nabo. Não há sucessão
apostólica nesse tipo de ocupação. Mas isso não é tudo. Deveríamos separar-nos
dos prazeres do mundo, bem como dos seus negócios. Há muitos tipos inocentes
de entretenimentos, para os quais o ministro de Cristo não deveria ter tempo. Ele
deveria dizer: “Não tenho tempo para essas coisas. Estou fazendo uma grande
obra, e não posso descer”7.
3. Em terceiro lugar, o texto demanda uma cuidadosa vigilância sobre
nossa conduta social
Não deveríamos estar sempre aceitando convites para fazer visitas de
cortesia, nem para jantares, como os outros fazem. Alguém talvez argumente que,
pelo fato de nosso Senhor ter ido a um casamento, e ter-Se assentado para jantar na
casa dos fariseus, também podemos fazer o mesmo. Eu recomendo o seguinte:
Vamos no Seu espírito, com a Sua fidelidade e coragem, a fim de dizer uma palavra
apropriada, fazendo com que a conversa seja proveitosa, e então podemos ir em
segurança. Se não fizermos isso, devemos cuidar aonde vamos, com quem
sentamos, e onde passamos as noites. João Wesley tinha uma curiosa
recomendação aos seus ministros, citada por Cecil, como um pensamento que
continha muita verdade: “Não tenha por alvo ser considerado um cavalheiro; ser
um cavalheiro não significa nada para você tanto quanto não significa nada ser
especialista em dança”. Nosso alvo não deveria ser que nos considerem como
agradáveis companhias na mesa de jantar, mas que sejamos conhecidos em todo
lugar como fiéis e constantes ministros de Jesus Cristo.
4. Em quarto lugar, o texto demanda uma diligente administração do
tempo
Devemos gastar tempo com leitura cada dia da nossa vida. Devemos nos
esforçar para que toda a nossa leitura tenha relação com o nosso trabalho.
Devemos manter os olhos bem abertos constantemente, e sempre coletar idéias
para nossos sermões — à medida que andamos no caminho, quando sentamos
junto à lareira, quando aguardamos na estação do trem. Devemos guardar na
memória o trabalho do Mestre — observando, registrando, olhando, reunindo
alguma coisa que vai jogar nova luz em nosso trabalho, e nos capacitar a apresentar
a verdade de uma forma melhor. Aquele que se dispõe a aprender e começa a
procurar, sempre vai aprender alguma coisa.

7 Neemias 6.3.
Textos de J. C. Ryle - 25 -

Depois de sugerir essas coisas, quero perguntar o seguinte: Qual será


a conseqüência de nos dedicarmos inteiramente a essas coisas?
Lembre-se, não devemos receber o louvor dos homens. Talvez sejamos
considerados radicais, e isolados, e santinhos. Aqueles que desejam servir a Deus e
ao dinheiro ao mesmo tempo considerarão o nosso padrão alto demais, e a nossa
prática muito severa. Eles dirão que estamos fora de compasso com o mundo em
que vivemos. Que jamais nos preocupemos com o que dizem de nós, desde que
andemos na luz da Palavra de Deus! Esforcemo-nos e oremos para sermos
inteiramente independentes e indiferentes à opinião dos homens, contanto que
agrademos a Deus! Possamos nós lembrar a palavra de nosso Mestre: “Ai de vós,
quando todos vos louvarem!”8, e as palavras de Paulo: “Se agradasse ainda a
homens, não seria servo de Cristo”9.

Mas, não obstante “nos dedicarmos inteiramente a essas coisas”, e


não alcançarmos o louvor dos homens, devemos alcançar um objetivo muito
mais importante: ser úteis às almas
Confesso e reconheço de todo o coração a doutrina da soberania de Deus na
salvação dos pecadores. Reconheço que aqueles que pregam melhor, e vivem mais
perto de Deus, nem sempre têm sido honrados em vida com a salvação de muitas
almas. Apesar disso, o homem que é mais completamente um homem de Jesus
Cristo — um homem de uma só coisa, que vive a semana toda — de domingo a
domingo — em todo lugar, em casa e lá fora, como um homem cujo único esforço
é dar-se a si mesmo ao trabalho de Jesus Cristo — esse é o homem, esse é o
ministro que, em geral, no final das contas, causará maior bem.
O caso do Sr. Simeon se aplica aqui. Vocês todos conhecem que ele era
perseguido quando começou a testificar de Cristo, em Cambridge. Vocês sabem
quantos havia que não falavam com ele, e como lhe apontavam constantemente o
dedo escarnecedor. Mas nós sabemos como ele perseverou no trabalho, e como, ao
morrer, toda Cambridge se apresentou para lhe conceder honra, e como chefes de
família, e colegas de escola, e homens que haviam feito troça dele enquanto vivia, o
honraram quando ele morreu. Eles testificaram que a vida que ele viveu tinha
causado seu efeito, e que eles viram e sabiam que Deus estava com ele.
Certa vez eu vi em Dundee uma mulher que conhecia muito a respeito de
Robert Murray McCheyne, aquele santo homem. Ela me contou que aqueles que
liam suas cartas e sermões tinham uma idéia muito vaga do que ele era. Ela me
disse: “Depois de ler todas as obras dele, você ainda não vai saber nada a respeito
dele. Você devia ter visto o homem, e devia tê-lo ouvido, e conhecido, e deveria ter
estado na companhia dele para saber que homem de Deus ele era”.

8 Lucas 6.26.
9 Gálatas 1.10.
Textos de J. C. Ryle - 26 -

Além do mais, dedicar-nos inteiramente a essas coisas nos trará


alegria e paz à consciência
Estou falando agora entre amigos, e não entre pessoas mundanas, entre
quem eu teria de tomar certos cuidados e explicar o que pretendo dizer. Não quero
que meus ouvintes pensem que creio na justificação pelas obras. Estou-me
referindo a um tipo de consciência limpa a que o apóstolo se refere em Hebreus
13.18: “estamos persuadidos de termos boa consciência”. Ter essa boa consciência
está claramente atrelado a objetivos elevados, motivos elevados, um elevado padrão
de vida ministerial e prática. Estou absolutamente seguro de que quanto mais nos
entregamos ao trabalho do ministério, provavelmente maior será nossa alegria
interior, maior será nosso senso da aprovação de Deus.
O assunto é profundamente humilhante. Quem é que não se sente assim:
“Minhas fraquezas, minhas fraquezas! Quão inútil eu sou! Como estou longe desse
alvo elevado”? Quanta razão não temos nós, que recebemos misericórdia, de
desfalecer!
Quanto motivo não temos nós, havendo sido poupados pela grande
paciência de Deus, de ser abundantes no trabalho do Senhor, e nos dar totalmente
ao nosso ministério! O grande segredo é olhar sempre para Jesus, e viver uma vida
de íntima comunhão com Ele.
Em Cambridge, outro dia, reparei numa figura de Henry Martyn, legada em
herança pelo Sr. Simeon à biblioteca pública. Um amigo me disse que essa figura
costumava ficar no quarto do Sr. Simeon, e que, quando ele sentia-se inclinado a
folgar no trabalho do ministério, ele costumava parar diante dela e dizer: “Parece
que ela me diz: ‘Charles Simeon, não fique à toa, não fique à toa; Charles Simeon,
lembre-se de quem você é, e a quem você serve”. E então esse homem digno, do
seu jeito peculiar, curvava-se respeitosamente, e dizia: “Não vou ficar à toa, não
vou ficar à toa; eu não vou me esquecer”.
Em conclusão, que nós possamos mirar um padrão muito mais alto do que
qualquer homem — Martyn, McCheyne, ou qualquer outro. Que possamos mirar o
Grande Pastor, o grande padrão, em cujos passos devemos andar! Que
permaneçamos nEle, e nunca fiquemos à toa! Que agüentemos firme onde
estamos, olhando para Jesus, guardando-nos do mundo, dos seus prazeres, e das
suas tolices, sem nos importar com a desaprovação do mundo, nem nos
entusiasmar com os seus sorrisos — olhando para a frente, para aquele dia quando
o Grande Pastor nos dará — a todos que tivermos feito o Seu trabalho, e pregado
o Seu Evangelho — a coroa da glória que jamais murchará! Quanto mais tivermos
a mente de Cristo, mais entenderemos o que significa “dedicar-nos inteiramente a
essas coisas”.

Extraído de www.biblebb.com
Textos de J. C. Ryle - 27 -

Fariseus e Saduceus
“E Jesus lhes disse: Vede e acautelai-vos do fermento dos fariseus e dos saduceus” (Mateus 16.6).

Toda e qualquer palavra dita pelo Senhor Jesus é cheia de profunda


instrução para os cristãos. É a voz do Sumo Pastor. É a grande Cabeça da Igreja
falando a todos os seus membros — o Rei dos reis falando a Seus súditos — o
Dono da casa falando a Seus servos — o Capitão da nossa salvação falando aos
Seus soldados. Acima de tudo, é a voz dAquele que diz: “Porque eu não tenho
falado por mim mesmo, mas o Pai, que me enviou, esse me tem prescrito o que
dizer e o que anunciar” (João 12.49). O coração de todo crente no Senhor Jesus
deveria arder no peito quando ouve as palavras do seu Mestre: ele deveria dizer: “É
a voz do meu amado!”10 (Cantares 2.8).
E cada palavra proferida pelo Senhor Jesus é de imenso valor. As Suas
palavras de doutrina e ensino são preciosas como ouro; preciosas são todas as Suas
parábolas e profecias; preciosas são todas as Sua palavras de conforto e de
consolação; preciosas, e não menos importantes, são todas as Suas palavras de
cautela e advertência. Não devemos apenas ouvi-lO quando Ele diz: “Vinde a mim,
todos os que estais cansados e sobrecarregados”; devemos ouvir também quando
Ele diz: “Tende cuidado e guardai-vos”.
Vou concentrar minha atenção, agora, a uma das mais solenes e enfáticas
advertências que o Senhor jamais pronunciou: “Vede e acautelai-vos do fermento
dos fariseus e dos saduceus”. Por meio deste texto pretendo levantar um farol para
todos que desejam salvar-se, para preservar algumas almas, se possível, de naufragar
na vida. Nossos tempos exigem em alta voz esse tipo de farol: os naufrágios
espirituais dos últimos vinte e cinco anos têm sido lamentavelmente numerosos. Os
vigias da Igreja deveriam levantar claramente a voz agora, ou então calar-se para
sempre.

I. Em primeiro lugar, peço a meus leitores que observem quem eram as


pessoas a quem a advertência foi dirigida.
Nosso Senhor Jesus Cristo não estava falando a homens mundanos,
descrentes, e profanos, mas falava a Seus próprios discípulos, Seus companheiros e
amigos. Ele Se dirigiu a homens que, com exceção do apóstata Judas Iscariotes,
eram retos de coração aos olhos de Deus. Ele falou aos doze apóstolos, os
fundadores da Igreja de Cristo, e os primeiros ministros da Palavra da salvação. Foi
a eles que Ele endereçou a solene advertência do nosso texto: “Vede e acautelai-
vos”.

10 Tradução Brasileira da Bíblia (Bíblia Online da SBB, versão eletrônica).


Textos de J. C. Ryle - 28 -

Esse acontecimento traz em si algo extraordinário. Talvez fosse nosso


parecer que os apóstolos tivessem pouca necessidade de uma advertência dessa
espécie. Não tinham eles deixado tudo por Cristo? Tinham, sem dúvida. Não
tinham eles enfrentado dificuldades por Cristo? Tinham, sim. Não tinham eles
crido em Jesus, seguido a Jesus, amado a Jesus, quando quase todo o mundo se
mostrava incrédulo? Tudo isso é verdade; e contudo foi a eles que Jesus dirigiu a
advertência: “Vede e acautelai-vos”. Talvez pensássemos que de qualquer maneira
os discípulos tivessem pouco a temer do “fermento dos fariseus e dos saduceus”.
Eles eram pobres e iletrados, a maioria pescadores ou coletores de impostos; não
tinham interesse de seguir os ensinos dos fariseus e dos saduceus; sua tendência era
mais contra do que a favor dos fariseus e dos saduceus; absolutamente nada os
atraía para eles. Tudo isso é a mais absoluta verdade; contudo foi exatamente para
eles que foi feita a solene advertência: “Vede e acautelai-vos”.
Há um conselho muito útil aqui para todos que sinceramente professam
amar o Senhor Jesus Cristo. Ele nos diz em alta voz que os mais eminentes servos
de Cristo não se encontram além da necessidade de advertências, e deveriam estar
sempre vigilantes. Ele nos mostra claramente que o mais santo dos crentes deveria
andar humildemente com seu Deus, e vigiar e orar para não entrar em tentação, e
ser surpreendido pelo pecado. Não há ninguém que seja tão santo, que não possa
cair — não de forma definitiva, não de tal forma que não haja mais esperança, mas
para o seu próprio prejuízo e desconforto, para o escândalo da Igreja, e para o
triunfo do mundo: ninguém há que seja tão forte que não possa, por certo tempo,
ser vencido. Os crentes, embora escolhidos por Deus Pai, embora justificados pelo
sangue e pela justiça de Jesus Cristo, embora santificados pelo Espírito Santo — os
crentes são ainda meramente homens: estão ainda no corpo, e permanecem ainda
no mundo. Eles estão sempre próximos da tentação: estão sempre sujeitos a julgar
mal, tanto na doutrina como na prática. Seu coração, embora renovado, é muito
débil; seu entendimento, embora iluminado, continua ainda muito turvo. Eles
deveriam viver como aqueles que habitam em campo inimigo, e cada dia revestir-se
da armadura de Deus. O diabo não dá trégua: nunca descansa nem dorme.
Lembremo-nos da queda de Noé, e Abraão, e Ló, e Moisés, e Davi, e Pedro; e,
lembrando-nos deles, sejamos humildes e cuidadosos, para não cairmos também.
Creio que estou autorizado a dizer que ninguém precisa mais de
advertências do que os ministros do Evangelho de Cristo. Nosso ofício e nossa
ordenação não são seguro contra erros e enganos. A verdade é que as maiores
heresias se introduziram na Igreja de Cristo por meio de homens ordenados. A
ordenação não preserva nem confere nenhuma imunidade contra o erro e a falsa
doutrina. A própria familiaridade que temos com o Evangelho muitas vezes cria em
nós uma mente insensível. Somos capazes de ler as Escrituras, e pregar a Palavra, e
dirigir cultos públicos, e dirigir o trabalho de Deus com o espírito seco, duro,
formal, insensível. A nossa própria familiaridade com as coisas sagradas, se não
vigiarmos o coração, haverá de nos desviar. Nas palavras de um antigo escritor,
“Em nenhum outro lugar se encontra a alma de um homem em tanto perigo como
no escritório de um ministro”. A História da Igreja de Cristo contém muitas provas
Textos de J. C. Ryle - 29 -

tristes de que até mesmo os ministros mais distintos podem, por certo tempo,
desviar-se. Quem nunca ouviu de Cranmer a desmentir e retroceder das opiniões
que de forma tão decidida defendeu, embora, pela misericórdia de Deus, tenha
voltado novamente a sustentar uma gloriosa confissão no final? Quem nunca ouviu
de Jewell a assinar documentos que ele desaprovava inteiramente, e de cuja
assinatura mais tarde se arrependeu amargamente? Quem não sabe que muitos
outros podem ser citados, que, numa ocasião ou outra, foram vencidos de falhas,
caíram em erro, e se desviaram? E quem não conhece o triste fato que muitos deles
jamais retornaram à verdade, mas morreram duros de coração, e sustentaram seus
erros até o fim?
Essas coisas deveriam nos tornar humildes e cautelosos. Elas nos orientam
a desconfiar de nosso próprio coração e a orar para sermos guardados de cair.
Hoje, quando somos chamados de forma especial a nos apegarmos firmemente às
doutrinas da Reforma Protestante, sejamos cautelosos para que nosso zelo pelo
protestantismo não nos inche e nos encha de orgulho. Não digamos nunca em
nossa arrogância: “Eu nunca haverei de cair nos mesmos erros do catolicismo
romano ou da nova teologia: eu nunca vou concordar com as idéias deles”.
Lembremo-nos de que há muitos que começaram bem e correram bem por certo
tempo, e contudo mais tarde se desviaram do caminho certo. Sejamos cuidadosos
para sermos tanto homens espiritualmente corretos como protestantes, e tanto
verdadeiros amigos de Cristo como inimigos do anticristo. Oremos para sermos
guardados do erro, e nunca esqueçamos que até mesmo os doze apóstolos
precisaram ouvir da parte da Cabeça da Igreja estas palavras: “Vede e acautelai-
vos”.

II. Em segundo lugar, proponho-me a explicar quais são os perigos


contra os quais nosso Senhor alertou os apóstolos. Ele disse: “Vede e acautelai-
vos do fermento dos fariseus e dos saduceus”.
O perigo a respeito do qual Ele os alerta é a doutrina falsa. Ele não diz
nada a respeito da espada da perseguição, ou sobre o amor ao dinheiro, ou sobre o
amor ao prazer. Todas essas coisas sem dúvida são perigos e armadilhas a que
estavam expostas as almas dos apóstolos; mas contra essas coisas nosso Senhor não
levanta aqui a voz de advertência. O Seu alerta se restringe a um único ponto: o
“fermento dos fariseus e dos saduceus”. E não somos deixados na dúvida quanto
ao que nosso Senhor queria dizer com “fermento”. O Espírito Santo, poucos
versículos mais adiante do nosso texto, claramente nos diz que fermento era a
“doutrina” dos fariseus e dos saduceus.
Vamos tentar entender o que se pretende dizer quando falamos da
“doutrina dos fariseus e dos saduceus”.
(a) A doutrina dos fariseus talvez possa ser resumida com três
características: eles eram formalistas, veneradores de tradições, e justos aos próprios
olhos. Eles atribuíam tanto peso às tradições humanas que na prática
consideravam-nas de maior importância do que os escritos inspirados do Antigo
Textos de J. C. Ryle - 30 -

Testamento. Eles davam excessivo valor à severidade com que seguiam os


requisitos cerimoniais da lei mosaica. Eles davam muita importância ao fato de
serem descendentes de Abraão, e intimamente se gloriavam: “Nós temos Abraão
como nosso pai”. Iludiam-se, porque tinham Abraão como pai, que não corriam
perigo de ir para o inferno como os outros homens, e que o fato de serem seus
descendentes era uma espécie de garantia para o céu. Atribuíam grande valor a
lavagem de mãos e purificações cerimoniais do corpo, e criam que o mero tocar em
uma mosca ou mosquito mortos os poluía. Eles davam grande importância aos
aspectos exteriores da religião, e a coisas que podiam ser vistas pelos homens.
Alargavam os seus filactérios, e encompridavam as franjas dos seu vestuário.
Orgulhavam-se de prestar grandes homenagens aos santos já falecidos, e de
ornamentar os túmulos dos justos. Eram extremamente zelosos em fazer novos
convertidos. Orgulhavam-se de terem domínio, status e preeminência, e de serem
chamados pelos homens de “Mestre, mestre”. Essas coisas, e muitas outras
semelhantes a essas, eram a prática dos fariseus. Todo cristão bem instruído pode
encontrar essas coisas nos Evangelhos de Mateus e de Marcos (Veja Mateus 15 e
23; Marcos 7).
Lembre-se de que eles, o tempo todo, enquanto praticavam o que
acabamos de citar, não negavam formalmente nenhuma parte das Escrituras do
Antigo Testamento. Mas eles introduziram, acima dele, tanta invenção humana que,
na prática, puseram as Escrituras de lado, e as enterraram sob suas tradições. Essa é
a espécie de religião a que o nosso Senhor se referiu aos Seus apóstolos: “Vede e
acautelai-vos”.
(b) A doutrina dos saduceus, por outro lado, pode ser resumida com outras
três características: livre-pensamento, ceticismo e racionalismo. O credo deles era
muito menos popular do que o dos fariseus, e, por isso, os vemos mencionados
menos vezes nas Escrituras do Novo Testamento. Pelo que podemos julgar do
Novo Testamento, parece que eles sustentavam a doutrina da inspiração gradual;
eles sempre atribuíam maior valor ao Pentateuco (os cinco primeiros livros do
Antigo Testamento) em comparação com as outras partes do Antigo Testamento,
isto se não desconsideravam por completo essas últimas.
Eles não criam nem na ressurreição, nem em anjos, nem em espíritos, e
tentavam dissuadir as pessoas de crer nesses fatos por meio de questões difíceis.
Temos um exemplo da maneira em que eles argumentavam no episódio em que
eles propõem ao nosso Senhor o caso da mulher que teve sete maridos, quando os
saduceus perguntam: “Na ressurreição, de quem dos sete será ela mulher?” Dessa
forma, ao apresentar um absurdo religioso ridicularizando as suas principais
doutrinas, eles provavelmente pretendiam levar as pessoas a desistir da fé que
haviam recebido das Escrituras.
Lembre-se, todo esse tempo, não podemos dizer que os saduceus eram
totalmente pagãos: eles não o eram. Nem podemos dizer que eles negavam a
revelação: eles não faziam isso. Eles observavam a lei de Moisés. Muitos deles se
encontravam entre os sacerdotes nos tempos descritos no livro de Atos dos
Apóstolos. Caifás, que condenou o nosso Senhor, era saduceu. Mas o efeito prático
Textos de J. C. Ryle - 31 -

do ensino deles era abalar a fé que as pessoas tinham na revelação, e jogar uma
nuvem de dúvida sobre a mente das pessoas, o que era apenas um pouco melhor
do que o próprio paganismo. E de todo esse modo de doutrina — livre-
pensamento, ceticismo e racionalismo — diz o nosso Senhor: “Vede e acautelai-
vos”.
Agora surge a questão: Por que razão nosso Senhor Jesus Cristo fez esse
alerta? Ele sabia, sem dúvida, que dentro de quarenta anos as escolas dos fariseus e
dos saduceus estariam completamente acabadas. Aquele que sabe todas as coisas
desde o princípio, sabia perfeitamente bem que em quarenta anos Jerusalém, com
seu magnífico templo, seria destruída, e os judeus seriam dispersos pela face da
terra. Por que, então, nós O encontramos fazendo esse alerta sobre “o fermento
dos fariseus e dos saduceus”?
Eu creio que nosso Senhor fez essa solene advertência para o benefício
perpétuo da Igreja, que Ele veio estabelecer na terra. Ele falou com conhecimento
profético. Ele conhecia bem as mazelas a que está sujeita a natureza humana. Ele
anteviu que as duas grandes pragas da Sua Igreja na terra seriam sempre a doutrina
dos fariseus e a doutrina dos saduceus. Ele sabia que essas doutrinas se
assemelhariam a duas grandes rochas, entre as quais a Sua verdade seria
perpetuamente comprimida e machucada até que Ele venha a segunda vez. Ele
sabia que sempre haveria, entre os que se professam cristãos, os fariseus em
espírito, e os saduceus em espírito. Ele sabia que os seus sucessores jamais
haveriam de faltar, e que jamais se extinguiria a sua geração, e que, embora não
existam mais os nomes fariseus e saduceus, contudo os seus princípios haveriam de
existir sempre. Ele sabia que, durante o tempo em que a Igreja existir, até o Seu
retorno, haveria sempre alguém que faria acréscimos à Palavra, e alguém que
haveria de excluir algo da Palavra, alguém que a desmereceria por meio de adição
de outras coisas, e alguém que a sangraria até a morte ao subtrair dela as suas
principais verdades. E essa é a razão por que nós O encontramos fazendo esta
solene advertência: “Vede e acautelai-vos do fermento dos fariseus e dos
saduceus”.
E agora surge a questão: Será que nosso Senhor Jesus Cristo tinha boas
razões para fazer esse alerta? Eu apelo a todos que conhecem alguma coisa da
História da Igreja — não havia, de fato, uma razão para isso? Eu apelo a todos que
se lembram do que aconteceu logo depois da morte dos apóstolos. Não lemos que
na primitiva Igreja de Cristo surgiram dois partidos distintos; um que sempre se
inclinava para o erro, como os arianos, sustentando menos que a verdade, e o outro
que sempre se inclinava para o erro, como os adoradores de relíquias e adoradores
de santos (da igreja católica romana), sustentando mais do que a verdade como a
encontramos em Jesus? Não vemos nós a mesma coisa surgindo mais tarde, na
forma do catolicismo romano? Essas coisas são antigas. Num artigo breve como
este me é impossível entrar em maiores detalhes sobre o assunto. São coisas muito
bem conhecidas de todos que têm familiaridade com os registros históricos.
Sempre houve esses dois grandes partidos, o partido que representa os princípios
dos fariseus, e o partido que representa os princípios dos saduceus. Por isso nosso
Textos de J. C. Ryle - 32 -

Senhor tinha boas razões para dizer a respeito desses dois grandes princípios:
“Vede e acautelai-vos”.
Mas eu desejo apresentar o assunto com mais detalhes agora. Peço a meus
leitores que considerem se advertências desse tipo não são especialmente
necessários em nossos dias. Temos, sem sombra de dúvida, muito que agradecer
aqui na Inglaterra. Fizemos grandes avanços nas artes e nas ciências nos últimos
três séculos, e temos muitos costumes e demonstrações morais e religiosas. Mas eu
pergunto a qualquer pessoa que consegue ver além das portas da sua própria casa:
não estamos vivendo em meio aos perigos de doutrinas falsas?
Por um lado, temos entre nós um grupo de homens que, intencionalmente
ou não, facilitam as coisas para a Igreja de Roma (catolicismo) — uma escola que
afirma extrair seus princípios da tradição primitiva, os escritos dos Pais, e a voz da
Igreja — um ensino que fala e escreve tanto acerca da Igreja, do ministério, e dos
sacramentos, que fazem deles algo semelhante à vara de Arão que engoliu tudo o
mais do Cristianismo, um ensino que atribui grande importância às formas
exteriores e cerimônias religiosas, a gestos, posturas, mesuras, cruzes, água benta,
lugares de honra para os clérigos, vestimentas sagradas, incenso, estátuas, faixas,
procissões, enfeites, e muitas outras coisas semelhantes a essas, a respeito das quais
não se encontra uma só palavra nas Escrituras Sagradas para dizer que têm lugar na
adoração cristã. Refiro-me, é claro, à escola dos clérigos chamada Ritualista.
Quando examinamos os procedimentos dessa escola, só se pode chegar a uma
conclusão. Eu creio que, qualquer que seja o significado e a intenção dos seus
mestres, embora sejam devotos, zelosos, e se neguem a si mesmos (como
efetivamente muitos deles agem), recai sobre eles o manto dos fariseus.
Por outro lado, temos uma escola de homens que, intencionalmente ou
não, facilitam as coisas para o Socinianismo, uma escola que sustenta estranhos
pontos de vista sobre a absoluta inspiração das Sagradas Escrituras, e estranhos
pontos de vista sobre a doutrina do sacrifício, e sobre a Expiação de nosso Senhor
e Salvador Jesus Cristo, estranhos pontos de vista sobre a condenação eterna, e do
amor de Deus pelo homem, uma escola forte em negar, mas muito fraca em
afirmar, hábil em suscitar dúvidas, mas impotente em removê-las, esperta em
perturbar e abalar a fé das pessoas, mas impotente para oferecer um descanso firme
para elas. E, quer os líderes dessa escola queiram isso ou não, eu creio que sobre
eles recai a capa dos saduceus.
Essas coisas soam como rudes, cruéis. Ficamos livres de muita encrenca se
fecharmos os olhos e dissermos: “Eu não vejo perigo nenhum”, e, por não ver, não
acreditar que o perigo exista. É fácil tapar os ouvidos e dizer: “Eu não escuto
nada”, e, por não ouvir nada, não se assustar com nada. Mas nós sabemos muito
bem quem são os que se regozijam com as coisas que temos de deplorar em alguns
lares da nossa própria Igreja. Nós sabemos o que o católico romano pensa;
sabemos o que os socinianos pensam. O católico romano se regozija com o
florescimento do catolicismo; o sociniano se regozija com a multiplicação de
pessoas que sustentam esses pontos de vista sobre a expiação e a inspiração, que
vemos espalhadas na atualidade. Eles não se alegrariam dessa forma se não vissem
Textos de J. C. Ryle - 33 -

progresso no seu trabalho, e a sua causa sendo promovida. Eu creio que o perigo é
muito maior do que somos capazes de supor. Os livros que se lêem em muitos lares
são extremamente prejudiciais, e o tom do pensamento sobre assuntos religiosos,
especialmente das pessoas que ocupam posições de destaque, é profundamente
insatisfatório. A praga se espalhou. Se amamos a vida, devemos examinar nosso
próprio coração, e provar nossa própria fé, e certificar-nos de que estamos firmes
no fundamento certo. Acima de tudo, deveríamos nos acautelar de não ingerir o
veneno da doutrina falsa, e fazer tudo para retornar ao nosso primeiro amor.
Eu sinto profundamente a angústia de falar abertamente desses assuntos.
Eu sei muito bem que falar com clareza sobre doutrinas falsas é muito impopular, e
que aquele que fala deve resignar-se com ser considerado como alguém sem
caridade, muito incômodo, e de mente muito estreita. Há milhares de pessoas que
jamais conseguirão distinguir as diferenças que existem na religião. Para a maioria
das pessoas, um clérigo é um clérigo, e um sermão é um sermão; e, se porventura
existe alguma diferença entre um ministro e outro, ou entre um sermão e outro,
elas são inteiramente incapazes de entender essa diferença. Eu não posso esperar
que essas pessoas aprovem qualquer alerta que se fizer sobre doutrinas falsas. Eu
preciso adequar minha mente à sua desaprovação, e tenho de lidar com isso da
melhor forma que puder.
Mas eu peço a todo leitor da Bíblia intelectualmente honesto e não
preconceituoso que se volte para o Novo Testamento e veja o que vai encontrar ali.
Ele haverá de encontrar muitos alertas claros contra as doutrinas falsas:
“Acautelai-vos dos falsos profetas” (Mateus 7.15).
“Cuidado que ninguém vos venha a enredar com sua filosofia e vãs
sutilezas” (Colossenses 2.8).
“Não vos deixeis envolver por doutrinas várias e estranhas” (Hebreus
13.9).
“Amados, não deis crédito a qualquer espírito; antes, provai os espíritos se
procedem de Deus” (1 João 4.1).
Ele haverá de encontrar grande parte de várias das epístolas inspiradas
expondo a doutrina verdadeira e alertando contra os falsos ensinos. Eu me
pergunto: como é que um ministro que toma a Bíblia como regra de fé pode
esquivar-se de fazer alertas contra erros doutrinários?
Finalmente, peço a todos que percebam o que está acontecendo na
Inglaterra neste exato momento. É verdade ou não é, que centenas de pessoas
abandonaram a Igreja Oficial e se transferiram para a Igreja de Roma (igreja católica
romana) nesses últimos trinta anos? É verdade ou não é, que centenas de pessoas
permanecem conosco mas que, no coração, são pouco melhores do que os
católicos? É verdade ou não é, que milhares de jovens, tanto de Oxford como de
Cambridge, se veem seduzidos e arruinados pela debilitante influência do ceticismo,
e perderam todos os princípios positivos da religião? Zombarias nos jornais
religiosos, declarações em alto e bom som contra as “denominações”, frases
Textos de J. C. Ryle - 34 -

altissonantes e ambíguas sobre “pensamento profundo, visão alargada, nova luz,


manejo livre e sem restrições das Escrituras, e a estéril fraqueza de certas escolas de
teologia” são o que compõem o Cristianismo de muitos dessa nova geração. E
contudo, em face desses fatos notórios, as pessoas gritam: “Fique quieto quanto às
doutrinas falsas. Deixe-as pra lá!” Eu não posso calar a boca. A fé na Palavra de
Deus, o amor às almas dos homens, os votos que fiz quando fui ordenado — tudo
isso me constrange a testemunhar contra os erros de hoje. E eu creio que aquilo
que nosso Senhor disse se aplica exatamente aos nossos dias: “Vede e acautelai-vos
do fermento dos fariseus e dos saduceus”.

III. A terceira coisa para a qual pretendo chamar sua atenção é o nome
peculiar que o nosso Senhor Jesus Cristo dá à doutrina dos fariseus e dos
saduceus.
As palavras usadas por nosso Senhor foram sempre as mais sábias e as
melhores que se poderiam usar. Ele poderia ter dito: “Vede e acautelai-vos da
doutrina, ou do ensino, ou das opiniões dos fariseus e dos saduceus”. Mas Ele não
disse assim. Ele usou uma palavra de significado especial — Ele disse: “Vede e
acautelai-vos do fermento dos fariseus e dos saduceus”.
Ora, todos nós sabemos qual é o verdadeiro significado da palavra fermento.
O fermento é adicionado à massa de farinha quando se faz o pão. Esse fermento é
uma porção mínima da farinha a que é misturado; nosso Senhor queria que
soubéssemos que é exatamente assim que o começo da falsa doutrina é ínfimo se
comparado ao corpo do Cristianismo. Ele age silenciosa e sossegadamente; é
exatamente assim, diz o Senhor, que agem as falsas doutrinas no caráter da massa
toda com a qual são misturadas; exatamente assim, diz o Senhor, as doutrinas dos
fariseus e dos saduceus viram tudo de cabeça para baixo, uma vez que são
admitidas na Igreja ou no coração do homem. Prestemos atenção a esses pontos:
eles lançam luz em muita coisa que vemos em nossos dias. É de grande importância
acolher as lições de sabedoria que a palavra fermento contém.
A falsa doutrina não se apresenta aos homens cara a cara, e proclama que é
falsa. Ela não toca trombeta diante de si, nem se esforça abertamente para nos
desviar da verdade como ela é em Jesus. Ela não se achega aos homens à luz do dia
para chamá-los a se renderem. Ela se aproxima de nós discretamente, quietamente,
traiçoeiramente, de forma aceitável, e dessa forma desativa as suspeitas do homem,
e o demove da posição de alerta e defesa. É o lobo em pele de cordeiro, e Satanás
vestido de anjo de luz, que sempre se têm mostrado os mais perigosos inimigos da
Igreja de Cristo.
Eu creio que o mais poderoso defensor dos fariseus não é o homem que
honesta e abertamente pede que você venha e se junte à igreja de Roma. É o
homem que diz concordar com você em todos os pontos da sua “doutrina”. Ele
não vai recusar nenhum dos pontos de vista evangélicos que você sustenta; não
exige que você faça nenhuma modificação; tudo que ele pede é que você “adicione”
Textos de J. C. Ryle - 35 -

alguma coisa a mais ao que você crê, para tornar perfeito o seu Cristianismo.
“Creia-me”, diz ele:
Nós não queremos que você desista de nada. Queremos apenas que
você passe a sustentar alguns pontos de vista claros a respeito da Igreja e dos
sacramentos. Queremos que você adicione às suas atuais opiniões um pouco
mais a respeito das funções dos ministros, e um pouco mais a respeito da
autoridade episcopal, e um pouco mais a respeito do livro de orações, e um
pouco mais a respeito da necessidade de ordem e de disciplina. Queremos
apenas que você adicione “um pouco mais” dessas coisas ao seu sistema
religioso, e assim você estará perfeitamente certo.
Mas quando alguém fala com você dessa forma, é hora de lembrar o que
nosso Senhor disse: “Vede e acautelai-vos”. Esse é o fermento dos fariseus, contra
o qual devemos nos levantar e nos acautelar.
Por que estou dizendo isso? Eu o digo porque não há segurança contra a
doutrina dos fariseus, a não ser que resistamos aos seus princípios assim que se
apresentam:
1. Começando com “um pouco mais a respeito da Igreja” — Um dia você
pode chegar a pôr a Igreja no lugar de Cristo.
2. Começando com “um pouco mais a respeito do ministério” — Um dia
você pode honrar o ministro como “o mediador entre Deus e o homem”.
3. Começando com “um pouco mais a respeito dos sacramentos” — Um
dia você pode chegar ao ponto de rejeitar completamente a doutrina da justificação
pela fé sem as obras da lei.
4. Começando com “um pouco mais de reverência pelo livro de orações”
— Um dia você pode colocá-lo acima das Escrituras Sagradas do próprio Deus.
5. Começando com “um pouco mais de honra aos bispos” — Você pode,
por fim, recusar a salvação a quem não pertença a uma Igreja Episcopal.
Vou contar-lhes uma velha história. Vou assinalar caminhos que foram
trilhados por centenas de membros da Igreja da Inglaterra nos últimos anos
recentes. Eles começaram encontrando falhas nos reformadores, e acabaram
engolindo os decretos do Concílio de Trento (Concílio doutrinário da Igreja
católico-romana). Eles começaram reclamando das coisas como estavam, e
acabaram por juntar-se formalmente à Igreja de Roma. Eu creio que quando
ouvimos pessoas nos pedindo que “acrescentemos um pouco mais” a nossos bons,
velhos e claros pontos de vista evangélicos, deveríamos ficar alertas. Deveríamos
lembrar o aviso do nosso Senhor: “Acautelai-vos do fermento dos fariseus”.
Eu considero que o mais perigoso defensor da escola dos saduceus não é a
pessoa que lhe diz abertamente que ele quer que você deixe de lado alguma parte da
verdade, e que se torne um livre-pensador e um cético. Mas é a pessoa que começa
sutilmente com insinuantes dúvidas a respeito da nossa posição quanto às coisas
religiosas, dúvidas sobre se devemos ser tão positivos ao ponto de dizer “isto é
Textos de J. C. Ryle - 36 -

verdade, e aquilo é falso”, dúvidas sobre se devemos pensar que estão erradas as
pessoas que diferem das nossas opiniões religiosas, uma vez que elas podem estar,
afinal, tão corretas como nós mesmos estamos.
É o homem que nos diz que não deveríamos condenar os pontos de vista
de ninguém, a fim de que não erremos por falta de amor. É o homem que sempre
começa falando de uma forma vaga sobre Deus ser um Deus de amor, e aconselha
que talvez devêssemos crer que talvez todos os homens, qualquer que seja a
doutrina que professam, no final haverão de ser salvos. É o homem que está
sempre nos lembrando que deveríamos tomar cuidado com a forma que
consideramos os grandes intelectos (embora esses sejam deístas e céticos) que não
pensam como nós, e que, afinal, “grandes mentes são todas, de uma forma ou de
outra, ensinadas por Deus”!
É o homem que está sempre batendo na tecla das dificuldades da
inspiração das Escrituras, e levantando questões sobre se todos os homens não
serão salvos no final, e se porventura não estão todos certos aos olhos de Deus. É
o homem que coroa sua agradável conversa com algumas tranquilas zombarias
contra o que ele gosta de chamar de “pontos de vista ultrapassados” e “teologia de
mentalidade estreita”, e “inveja cega” e a “falta de liberalidade e amor” dos nossos
dias. Mas quando alguém começa a falar dessa forma, é hora de vigiar e nos
acautelar. Aí é hora de lembrar as palavras de nosso Senhor Jesus Cristo: “Vede e
acautelai-vos do fermento”.
Pergunto outra vez: Por que estou dizendo isso tudo? Eu o faço porque
não existe seguro contra o saduceísmo, como também não existe seguro contra o
farisaísmo, a não ser que resistamos aos seus princípios no seu estado inicial.
Começando com uma vaga e despretenciosa conversa sobre “amor”, você pode
acabar dando na doutrina da salvação universal, enchendo o céu com uma multidão
mista de maus e bons, e negar a existência do inferno. Começando com umas
poucas frases sonoras sobre intelecto e luz interior no homem, você pode acabar
negando a obra do Espírito Santo, e sustentar que Homer e Shakespeare foram tão
inspirados quanto Paulo, e dessa forma descartando a Bíblia. Começando com
alguma mirabolante e mística idéia de que “todas as religiões contêm mais ou
menos uma porção de verdade”, você pode acabar negando completamente a
necessidade das missões, e achar que o melhor que se pode fazer é deixar os outros
em paz.
Começando por indispor-se à “religião evangélica” como ultrapassada, de
mente estreita e separatista, você pode acabar rejeitando as principais doutrinas do
Cristianismo — a expiação, a necessidade da graça, e a divindade de Cristo. Eu
repito que estou-lhe falando algo que não é novo: estou-lhe dando apenas um
vislumbre do caminho que multidões de pessoas têm trilhado nesses últimos anos.
Essas multidões estiveram, noutros tempos, satisfeitas com a teologia de Newton,
Scott, Cecil, e Romaine; e agora imaginam que encontraram um caminho melhor
nos princípios propostos pelos teólogos da escola do caminho largo! Eu penso que
não existe segurança para a alma humana a não ser que nos lembremos da lição
Textos de J. C. Ryle - 37 -

envolvida nestas solenes palavras: “Vede e acautelai-vos do fermento dos


saduceus”.
Acautelemo-nos do elemento traiçoeiro da doutrina falsa. À semelhança do
fruto que Eva e Adão comeram, à primeira vista ela parece agradável e boa, algo
desejável. Não se vê a palavra “veneno” escrito nela, de forma que as pessoas não
ficam com medo. Como uma moeda falsificada, ela não contém o aviso: “Coisa
ruim”. Ela se passa por verdadeira porque se parece muito com a verdade.
Acautelemo-nos contra “os primeiros indícios” da doutrina falsa. Toda e
qualquer heresia tem o seu início por meio do afastamento da verdade. Basta uma
pequena semente de erro para dar origem a uma grande árvore. São as pequenas
pedras que edificam o majestoso edifício. Foram as pequenas tábuas que deram
origem à grande arca que transportou Noé e sua família nas águas do dilúvio que
cobriu o mundo. É o pequeno fermento que leveda toda a massa. É a omissão ou a
adição de um pequeno item da prescrição do médico que estraga o remédio todo,
fazendo dele um veneno. Não toleramos calados uma pequena desonestidade, ou
uma pequena fraude, ou uma pequena mentira; dessa mesma forma, jamais
permitamos que uma pequena doutrina falsa nos arruíne, pensando que “é só uma
coisa pequenina” que não pode nos causar dano. Aos gálatas parecia que não
estavam fazendo nada muito perigoso quando começaram a guardar “dias, e meses,
e tempos, e anos”; contudo Paulo disse a eles: “Receio de vós...” (Gálatas 4.10,11).
Finalmente, acautelemo-nos contra a suposição de que “de forma alguma
nos encontramos em perigo”. “Nossos pontos de vista são saudáveis; nossos
passos são firmes; talvez os outros possam desviar-se, mas nós estamos a salvo!”
Centenas de pessoas pensaram dessa mesma forma, e acabaram terminando mal.
Na sua autoconfiança, lidaram com pequenas tentações e pequenas formas de
doutrina falsa; na sua prepotência, aproximaram-se demais do perigoso precipício; e
agora estão perdidos para sempre. Eles cederam ao engano, acabaram crendo na
mentira. Alguns deles oram à virgem Maria, e se curvam diante de imagens. Outros
estão-se desfazendo de uma doutrina após a outra, desistindo de todo tipo de
religião, a não ser uns farrapos de deísmo. É impressionante a visão, no livro O
Peregrino, que descreve a Montanha do Erro como “muito íngreme” e, “quando
Cristão e Esperançoso olharam para baixo, viram no sopé da montanha vários
homens que se rebentaram ao despencar lá do topo dessa montanha”. Nunca,
nunca esqueçamos o alerta para nos acautelarmos do “fermento”; e, se pensamos
estar em pé, cuidemos para não cair!

IV. Em quarto e último lugar, proponho-me a sugerir alguns meios de


proteção e tratamentos contra os perigos do momento — o fermento dos
fariseus e o fermento dos saduceus.
Eu percebo que todos nós precisamos mais e mais da presença do Espírito
Santo em nosso coração, para guiar, ensinar, e nos guardar sadios na fé. Todos nós
temos de vigiar mais, e temos de orar para sermos mantidos de pé, e preservados
de quedas e desvios. Contudo, há certas verdades essenciais que, em dias como os
Textos de J. C. Ryle - 38 -

nossos, estamos de forma especial obrigados a conservar bem vivas na mente. Há


ocasiões quando uma determinada região é invadida por alguma epidemia simples,
quando os remédios que sempre funcionaram adquirem um valor especial. Há
lugares onde um tipo incomum de malária se manifesta, onde os remédios que são
valiosos em qualquer outro lugar, ali são mais valiosos do que nunca em
consequência dessa moléstia incomum. Eu acredito que dessa mesma forma há
tempos e épocas na Igreja de Cristo quando somos obrigados a intensificar a ênfase
sobre certas verdades fundamentais e essenciais, a fim de agarrá-las com mais
firmeza do que normalmente, a fim de imprimi-las em nosso coração, e não deixar
que nos escapem. Pretendo apresentar essas doutrinas de forma ordenada, como a
grande prescrição contra o fermento dos fariseus e dos saduceus. Quando Saul e
Jônatas foram mortos pelos arqueiros, Davi ordenou que os filhos de Israel
recebessem instruções para saberem usar o arco e a flecha.
(a) Em primeiro lugar, se nos quisermos manter sadios na fé, temos de
prestar atenção à nossa doutrina da “depravação total da natureza humana”. A
depravação da natureza humana não é uma doutrina fácil. Ela não é parcial nem
superficial, mas é a radical e universal corrupção da vontade humana, do intelecto,
dos sentimentos, e da consciência. Nós não somos meros pobres e coitados
pecadores aos olhos de Deus: nós somos pecadores culpados; somos pecadores e
fizemos por merecer esse nome: merecemos com justiça a ira e a condenação de
Deus. É minha convicção pessoal que há muito poucos erros e doutrinas falsas
cujo início não esteja associado a um ponto de vista distorcido sobre a depravação
e a corrupção da natureza humana. Uma compreensão errada de uma doença
sempre acarretará orientação errada sobre o remédio necessário. A compreensão
errada da depravação da natureza humana sempre haverá de trazer consigo a
compreensão errada do grande tratamento e da cura dessa depravação.
(b) Em seguida, temos de prestar atenção na doutrina da “inspiração e
autoridade das Escrituras Sagradas”. Temos de manter com firmeza, mesmo à vista
de todos os que se opõem, que a Bíblia toda nos foi dada pela inspiração do
Espírito Santo, que ela é totalmente inspirada, e não uma parte mais do que a outra,
e que há um imenso abismo entre a Palavra de Deus e qualquer outro livro deste
mundo. Não devemos temer as dificuldades que existem no caminho da doutrina
da absoluta inspiração. Talvez haja coisas elevadas demais para serem
compreendidas: ela é um milagre, e todos os milagres são necessariamente
misteriosos. Mas se nos recusarmos a crer em qualquer coisa até que tenhamos
condições de explicar tudo, haverá bem poucas coisas que poderemos crer. Não é
preciso temer todos esses ataques produzidos pela crítica contra a Bíblia. Esse
julgamento contra a Palavra do Senhor já vem acontecendo desde os dias dos
apóstolos, mas ela jamais deixou de apresentar-se como ouro, incólume, imaculada.
Não precisamos ficar apreensivos por causa das descobertas científicas. Os
astrônomos podem varrer os céus com seus telescópios, e os geólogos podem
escavar até o centro da terra, e nunca jamais abalarão a autoridade da Bíblia: “A voz
de Deus e as obras das mãos de Deus nunca jamais serão encontradas em
contradição mútua”. Não precisamos ficar apreensivos com as investigações dos
Textos de J. C. Ryle - 39 -

viajantes. Eles nunca jamais haverão de descobrir qualquer coisa que contradiga a
Bíblia de Deus. Eu estou certo de que, se um homem se dispuser a escavar cem
cidades de Nínive, não encontrará jamais nem uma simples inscrição que seja
contrária a um simples fato registrado na Palavra de Deus.
Além do mais, temos de sustentar com firmeza que essa Palavra de Deus é
a única regra de fé e prática, que tudo quanto não está escrito nela não pode ser
requerido de homem nenhum como algo necessário à sua salvação, e que embora
se admita que podem surgir novas doutrinas, se elas não estão na Palavra de Deus,
não são dignas de nossa atenção. Não importa quem está falando, quer seja um
bispo, um arquidiácono, um deão, ou um presbítero. Não importa se a idéia é bem
apresentada, com eloquência, de forma atraente, ou por imposição, e de tal forma
que você seja ridicularizado. Nós não haveremos de crer nela a não ser que se
prove pelas Escrituras Sagradas.
Em último lugar, mas não menos importante, temos de usar a Bíblia
crendo de fato que ela foi dada por meio de inspiração. Temos de usá-la com
reverência, e lê-la com o carinho com que leríamos as palavras de um pai ausente.
Não devemos nos surpreender se encontrarmos no livro inspirado pelo Espírito de
Deus algum mistério. Temos, antes, de lembrar que na natureza há muita coisa que
não conseguimos entender; e que, assim como acontece no livro da natureza, assim
acontecerá sempre no livro da Revelação. Devemos nos aproximar da Palavra de
Deus no espírito de piedade recomendado pelo Lorde Bacon, muitos anos atrás.
“Lembre-se”, disse ele, a respeito do livro da natureza, “que o homem não é o
mestre, mas é o intérprete desse livro”. E da forma que lidamos com o livro da
natureza, assim temos de lidar com o Livro de Deus. Temos de nos aproximar dele
não para ensinar, mas para aprender, não como quem o domina, mas como um
humilde aluno, procurando compreendê-lo.
(c) Outro ponto: temos de prestar atenção à nossa doutrina a respeito da
“expiação e do ofício sacerdotal de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo”. Temos
de sustentar ousadamente que a morte de nosso Senhor na cruz não foi uma morte
comum. Não foi a morte de alguém que morreu como Cranmer, Ridley, e Latimer,
como mártir. Não foi a morte de alguém que morreu apenas para nos dar um
poderoso exemplo de auto-sacrifício e auto-negação. A morte de Cristo foi uma
oferta a Deus do Seu próprio corpo e sangue (de Cristo), em benefício do pecado e
da transgressão do homem. Essa morte foi um sacrifício de apaziguamento; um
sacrifício tipificado em cada oferta da lei mosaica, um sacrifício que produziu
poderosa influência sobre toda a humanidade. Sem o derramamento desse sangue
não poderia haver e nunca jamais haveria de ocorrer nenhuma remissão de
pecados.
Além do mais, temos de sustentar ousadamente que esse Salvador
crucificado está assentado para sempre à mão direita de Deus, para interceder por
todo aquele que por Ele se achega a Deus; que Ele ali representa e suplica por
aqueles que colocam nEle a sua confiança; e que Ele não delegou — a homem
nenhum, nem a nenhum grupo de homens na face desta terra — o Seu ofício de
Sacerdote e Mediador. Nós não precisamos de ninguém mais além dEle mesmo.
Textos de J. C. Ryle - 40 -

Não precisamos da Virgem Maria, não precisamos de anjos, de santos, de


sacerdotes, de nenhuma pessoa ordenada ou não ordenada, que precise se interpôr
entre nós e Deus, além do único Mediador, Cristo Jesus.
Além disso, temos de sustentar ousadamente que a paz da consciência não
se adquire por meio da confissão a um sacerdote, e por meio da absolvição do
pecado recebida de um homem. Essa paz só se consegue quando se vai ao grande
Sumo Sacerdote, Cristo Jesus; por meio da confissão a Ele, não a um homem; e
pela absolvição que somente Ele concede. Ele que é o único que pode dizer:
“Perdoados são os teus pecados; vai em paz”11.
Em último lugar, mas não menos importante, temos de sustentar
ousadamente que a paz com Deus, uma vez obtida pela fé em Cristo, deve ser
preservada, não por meio de meros atos exteriores de adoração cerimonial, não por
receber o sacramento da Ceia do Senhor todos os dias, mas pelo hábito diário de
olhar para o Senhor Jesus Cristo pela fé, comendo do Seu corpo pela fé, e bebendo
pela fé do Seu sangue. Foi a respeito desse comer e beber que nosso Senhor disse:
aquele que come e bebe haverá de constatar que a Sua carne é verdadeira comida e
o Seu sangue é verdadeira bebida12. John Owen declarou, muito tempo atrás, que se
existe algo a que Satanás mais do que tudo deseja pôr fim, é o ofício Sacerdotal de
nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo. Satanás sabe muito bem, disse Owen, que
esse é o “principal fundamento da fé e da consolação da Igreja”. Concepções
corretas a respeito desse ofício são de importância fundamental em nossos dias, se
queremos que os homens não caiam no erro.
(d) Preciso mencionar mais um remédio. Temos de prestar atenção à nossa
doutrina sobre “a obra de Deus o Espírito Santo”. Tenhamos bem claro em nossa
mente que o Seu trabalho não é uma operação invisível e incerta no coração, e que
onde Ele está, Ele não está oculto, não deixa de manifestar-Se, não passa
despercebido. O orvalho, quando cai, não deixa de ser percebido, ou quando existe
vida numa pessoa isso não deixa de ser percebido por sua respiração. É assim
também com a influência do Espírito Santo. Ninguém tem direito de reivindicar
essa influência a não ser que os seus frutos, os seus efeitos experimentais possam
ser vistos na sua vida. Onde Ele está, haverá sempre uma nova criação, uma nova
fé, uma nova santidade, novos frutos na vida, na família, no mundo, na Igreja. E
onde não se veem essas novas coisas, bem podemos dizer com segurança que ali
não existe a operação do Espírito Santo. Estes nossos tempos exigem que
estejamos todos atentos quanto à doutrina da obra do Espírito. Madame Guyon
disse, muito tempo atrás, que talvez chegasse um tempo quando os homens
tivessem de ser mártires por causa da obra do Espírito Santo. Parece que não está
muito longe esse tempo. De qualquer modo, se há uma verdade na religião que tem
sido motivo de desprezo mais do que qualquer outra, essa verdade é a obra do
Espírito.

11 Lucas 7.48-50.
12 João 6.55.
Textos de J. C. Ryle - 41 -

Quero enfatizar a enorme importância desses quatro pontos a todo leitor


do nosso artigo:
(a) Uma clara visão da pecaminosidade da natureza humana;
(b) Uma clara visão da inspiração das Escrituras;
(c) Uma clara visão da Expiação e do ofício Sacerdotal de nosso Senhor
e Salvador Jesus Cristo;
(d) Uma clara visão da obra do Espírito Santo.
Eu acredito que doutrinas estranhas a respeito da Igreja, do ministério, e
dos sacramentos, a respeito do amor de Deus, da morte de Cristo, e do castigo
eterno — não encontrarão ponto de apoio no coração que está doutrinariamente
sadio quanto a esses quatro pontos. Creio que são quatro grandes meios de
proteção contra o fermento dos fariseus e dos saduceus.
Pretendo concluir agora meu estudo com algumas observações à guisa de
aplicação prática. Meu desejo é tornar o assunto todo útil àqueles que lerem este
texto, e prover resposta às questões que talvez possam surgir em algum coração. O
que haveremos de fazer? O que você aconselha para tempos como os nossos?
(1) Em primeiro lugar, peço a cada leitor que se certifique se já se
reconciliou pessoalmente com Deus. Afinal, essa é a coisa principal. De nada
adiantará pertencer a uma boa igreja, se a pessoa mesma não pertence a Cristo.
Uma pessoa não será beneficiada em coisa nenhuma se intelectualmente for sadia
na fé, e aprovar a sã doutrina, mas se ela não tiver o coração sadio (regenerado). É
esse o seu caso, leitor? Você pode afirmar que o seu coração está correto aos olhos
de Deus? Ele foi renovado pelo Espírito Santo? Cristo habita em seu coração pela
fé? Oh! Não descanse, não descanse enquanto você não pode responder
satisfatoriamente a essas perguntas! A pessoa que morre sem se converter, mesmo
que tenha as mais adequadas e sadias crenças, está tão perdida para sempre como o
pior dos fariseus ou dos saduceus que já viveram sobre esta terra.
(2) Em segundo lugar, imploro a cada leitor que deseja uma fé sadia, que
estude diligentemente a Bíblia. Esse livro bendito nos foi dado para ser uma
lâmpada para nossos pés, uma luz para os nossos caminhos. Ninguém que leia esse
livro com reverência, suplicando a ajuda de Deus, com humildade, e regularmente
haverá de se perder no caminho para o céu. É por meio desse livro que se deve
avaliar cada sermão, cada livro religioso e cada ministro.
Você quer saber o que é a verdade? Sente-se confuso e desconcertado com
a guerra de palavras que ouve por todo lado a respeito da religião? Quer saber o
que é que você deve crer, e o que você deve ser e fazer, a fim de ser salvo? Pegue a
sua Bíblia, e pare de dar ouvidos aos homens. Leia a sua Bíblia com sincera oração
para que o Espírito Santo o ensine; leia-a com honesta determinação de viver
conforme ela ensina. Faça isso constante e perseverantemente, e você verá a luz:
você será preservado do fermento dos fariseus e dos saduceus, e será guiado à vida
eterna. Comece a fazer isso sem demora. É essa a forma de conhecer a verdade de
Deus.
Textos de J. C. Ryle - 42 -

(3) Em seguida, aconselho a cada leitor que tem razões para considerar-se
sadio tanto naquilo que crê como no coração, que preste atenção à proporção das
verdades. O que eu quero dizer é que se deve ter cautela para dar a cada verdade do
Cristianismo o mesmo lugar e posição em nosso coração que essa verdade recebe
na Palavra de Deus. As coisas que devem vir primeiro não devem ser colocadas em
segundo lugar, nem as que estão em segundo lugar devem ocupar o primeiro lugar
em nossa religião. A Igreja não deve ser colocada acima de Cristo. Os ministros não
devem ser exaltados acima do lugar designado por Cristo para eles; os meios de
graça não devem ser considerados como fins em vez de meios. É de grande
importância dar atenção a esse ponto: os erros que surgem da negligência disso não
são nem poucos nem pequenos. Aqui reside a tremenda importância de estudar
toda a Palavra de Deus, sem nada omitir, evitando parcialidade ao ler uma parte
mais do que a outra. Eis o valor de possuir bem claro na mente o sistema do
Cristianismo.
(4) Em seguida, imploro a cada servo genuíno de Cristo a não deixar-se
enganar pelo disfarce com que as falsas doutrinas muitas vezes se insinuam em
nossas almas em nosso tempo. Acautele-se de pensar que um mestre de religião
merece confiança porque, embora sustente alguns pontos de vista falsos, ele
contudo “ensina um bocado de verdade”. Esse é exatamente o tipo de pessoa que
causará dano a você: o veneno é sempre mais perigoso quando é servido em
pequenas doses e misturado a comida saudável. Acautele-se de ser enganado pela
aparente honestidade de muitos dos mestres que sustentam e propagam falsas
doutrinas. Lembre-se de que zelo e sinceridade e fervor não são, de forma
nenhuma, prova de que uma pessoa está trabalhando por Cristo e que por isso
merece nossa confiança.
Não há dúvida de que Pedro estava sendo profundamente sincero quando
disse a nosso Senhor: “Tem compaixão de ti, Senhor”, para que Cristo não fosse
para a cruz; contudo nosso Senhor lhe disse: “Arreda, Satanás!” Saulo, sem dúvida,
era sincero quando perseguia os cristãos por todo lado; contudo ele o fez na
ignorância, e o seu zelo não era com entendimento. Os autores da Inquisição
Espanhola sem dúvida eram sinceros, e pensavam estar realizando a obra de Deus
ao queimar vivos os santos de Deus; contudo na verdade eles estavam perseguindo
os membros de Cristo e andando nos passos de Caim. É uma terrível verdade que
“o próprio Satanás se transforma em anjo de luz” (2 Coríntios 11.14). De todos
enganos que existem nesses últimos tempos, nenhum é maior do que a idéia de que
“se uma pessoa é séria em sua religião, com certeza essa deve ser uma boa pessoa”!
Acautele-se desse terrível engano; acautele-se de ser desviado por “pessoas sérias e
sinceras”! A seriedade e a sinceridade são, em si mesmas, excelentes coisas; mas
tem de ser seriedade conforme Cristo e conforme toda a Sua verdade, ou essa
seriedade e sinceridade não servem para absolutamente nada. As coisas que são
altamente consideradas entre os homens são, muitas vezes, abomináveis aos olhos
de Deus.
(5) A seguir, aconselho a todo verdadeiro servo de Cristo a “examinar o
próprio coração” com frequência e com cuidado, para saber como se encontra
Textos de J. C. Ryle - 43 -

diante de Deus. Essa é uma prática útil em todo o tempo: e é especialmente


recomendada para os nossos dias. Na época da grande praga que assolou a cidade
de Londres, as pessoas percebiam e davam importância aos menores sintomas que
lhes apareciam no corpo, de uma forma que nunca antes haviam reparado. Uma
mancha aqui ou ali, que em tempos de saúde ninguém pensaria que fosse alguma
coisa, recebia profunda atenção quando a praga estava dizimando as famílias,
derrubando um após o outro! Assim deve ser conosco, nestes tempos em que
vivemos. Devemos vigiar nosso coração com atenção redobrada. Devemos gastar
mais tempo em meditação, auto-exame, e reflexão. Vivemos numa época apressada,
agitada: se quisermos ser preservados de quedas, temos de arranjar tempo para estar
com frequência sozinhos com Deus.
(6) Para encerrar, encorajo a todos os verdadeiros crentes a batalhar,
“diligentemente, pela fé que uma vez por todas foi entregue aos santos”13. Não há
porque nos envergonharmos dessa fé. Estou firmemente persuadido que não existe
sistema que infunda vida, sistema tão bem projetado para despertar os que
dormem, que convença os indecisos, e edifique os santos, como esse que se chama
sistema Evangélico do Cristianismo. Onde quer que seja pregado com fidelidade, e
transmitido com eficiência, e consistentemente adornado pela vida daqueles que o
professam, ele é o poder de Deus. Talvez alguns falem mal dele e zombem; mas
isso acontecia também no tempo dos apóstolos. Talvez ele seja promovido e
defendido de forma deficiente por muitos dos seus advogados; mas, no final de
tudo, os seus frutos e resultados merecem o mais alto louvor. Não há nenhum
outro sistema religioso que chega a esse tipo de resultado. Em nenhum outro lugar
há tantas almas convertidas a Deus como nas congregações onde o Evangelho de
Jesus Cristo é pregado em toda a sua plenitude, sem mistura da doutrina dos
fariseus e dos saduceus. Nós não somos chamados, de forma nenhuma, para ser
meros polemistas; mas nunca nos devemos envergonhar de dar testemunho da
verdade como ela é em Jesus, e sustentar ousadamente a religião Evangélica. Nós
temos a verdade, e não precisamos ter medo de afirmar isso. O dia do juízo haverá
de mostrar quem está certo, e é a esse dia que com ousadia podemos apelar.

─────────

Há mais de um século, J. C. Ryle foi o líder do partido evangélico da Igreja da


Inglaterra. Sua estratégia foi encorajar os conservadores a permanecer na igreja em
vez de abandonar o barco e deixar que os liberais executassem seu programa sem
nenhum impedimento.
J. C. Ryle é mais bem conhecido por seus escritos claros e vívidos a respeito de
temas práticos e espirituais. Seu grande alvo no ministério era encorajar a vida cristã
séria e viril. Mas ele não era ingênuo quanto à forma em que isso deveria ser feito.
Ele reconhecia que, como pastor do rebanho de Deus, tinha a responsabilidade de
guardar as ovelhas de Cristo e alertá-las toda vez que via o perigo aproximar-se. Os

13 Judas 3.
Textos de J. C. Ryle - 44 -

seus comentários perspicazes são tão sábios e relevantes hoje como o foram
quando os escreveu. Os seus sermões e outros escritos têm tido amplo
reconhecimento, e a sua utilidade e impacto se estendem até os nossos dias, da
mesma forma que o fizeram na Inglaterra daqueles dias.
Tony Capoccia

[Texto transcrito por Tony Capoccia, no site www.biblebb.com]

Murmuração,
Descontentamento
e
Inquietação
"Seja a vossa vida sem avareza. Contentai-vos com as coisas que tendes; porque ele tem dito:
De maneira alguma te deixarei, nunca jamais te abandonarei" (Hb 13.5).

Estas palavras são muito simples. Até mesmo uma criança pode facilmente
entendê-las. Elas não contêm nenhuma doutrina elaborada; não envolvem
nenhuma profunda questão metafísica; e, contudo, simples como são — nos
prescrevem um dever da mais alta importância a todos os cristãos.
O contentamento é uma das mais raras graças divinas. Como todas as coisas
preciosas, ela é extremamente incomum. É muito difícil praticar o contentamento.
Falar de contentamento quando se está com saúde e prosperando é bastante fácil;
mas estar contente no meio da pobreza, da doença, da tribulação, dos
desapontamentos e das perdas — esse é um estado mental que poucos têm
condições de alcançar!
Os anjos caídos tinham o próprio céu para habitar, e a própria presença de
Deus e o Seu favor — mas não estavam contentes com isso. Adão e Eva tinham o
jardim do Éden para morar, com a livre permissão de aproveitar todas as coisas
exceto uma árvore — mas eles não estavam contentes. Acabe tinha o trono e o
Textos de J. C. Ryle - 45 -

reino, mas enquanto a vinha de Nabote não se tornou sua, ele não estava contente.
Hamã era o líder predileto do rei persa, mas porque Mordecai ficou sentado à porta,
ele não podia estar contente.
É exatamente a mesma coisa em todos os lugares ainda hoje. Deparamo-nos,
a todo momento, com murmuração, descontentamento e inquietação com o que
temos. Dizer com Jacó "Eu tenho o suficiente" parece bater de frente com o âmago da
natureza humana. Dizer "Eu quero mais" parece a língua materna de cada filho de
Adão.
A orientação de Paulo deve bater com poder em nossa consciência:
"Contentai-vos com as coisas que tendes", não com as coisas que vocês estavam
acostumados a ter, não com as coisas que vocês esperam ter, mas com as coisas que
vocês agora têm. Com essas coisas, quaisquer que sejam, devemos estar contentes.
Com a nossa atual moradia, nossa atual família, nossa atual saúde, nosso atual
salário, nosso atual trabalho, nossas atuais circunstâncias — exatamente as que
agora possuímos — com essas devemos estar contentes.
Ah! Leitor, se você quer de fato ser feliz, busque a felicidade no lugar certo,
no único em que ela pode ser encontrada. Não a busque no dinheiro, não a procure
nos prazeres, nem nos amigos, nem mesmo no estudo. Procure a felicidade na
conformação da sua vontade com a vontade de Deus, em colocar sua vontade em
perfeita harmonia com a dEle. Busque a felicidade aprendendo a estar contente.
Talvez você diga: "Falar é fácil, mas como é que se pode estar sempre
contente num mundo como este?" Eu respondo: você tem de lançar fora seu
orgulho, e reconhecer a sua própria deserção de Deus, para tornar-se grato em toda
e qualquer situação. Se os homens de fato soubessem que nada merecem, e que são
devedores à misericórdia de Deus todos os dias — então logo parariam de se
queixar.
Vou contar-lhe por que existe tão pouco contentamento neste mundo. A
resposta é simples: a situação é essa porque existe pouca boa-vontade, e pouca
piedade genuína. Poucos há que conhecem o seu próprio pecado; poucos sentem a
sua deserção dos caminhos de Deus, e tão poucos estão contentes com aquilo que
têm. Humildade, auto-conhecimento, uma clara visão de nossa completa vileza e
corrupção — essas são as verdadeiras raízes do contentamento.
Se você quiser ser contente, eu lhe direi o que tem de fazer. Você tem de
conhecer o seu próprio coração, buscar a Deus como a sua porção, achegar-se a
Cristo como seu Salvador, e alimentar-se diariamente da Palavra de Deus. O
contentamento tem de ser aprendido aos pés de Jesus Cristo. Aquele que tem Deus
como seu amigo, e o céu como seu lar — esse pode pode aguardar de lá boas
coisas, e estar contente com pouco aqui em baixo.

Extraído de www.gracegems.org

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