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31 de maio de 2021
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apartheid racial. Ou seja, eu já estudava nesses trabalhos o racismo institucional –
presente em museus, faculdades de direito, faculdades de medicina e institutos históricos.
Em As barbas do imperador, procuro mostrar como o imperador construiu sua
popularidade apoiada na ideia de um império tropical, tratando, no segundo reinado, de
invisibilizar as populações negras. Em O sol do Brasil, mostro como o pintor francês
Nicolas-Antoine Taunay trabalhava com contradição fundamental de um homem
iluminista como ele, inclusive amigo de Rousseau, possuir escravos. Em Brasil: uma
biografia, bem como em Sobre o autoritarismo brasileiro, a questão racial aparece como
uma das vigas-mestra.
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desigualdade –, pilares que atravessam nossa história até os dias atuais, formando certa
contrarrevolução conservadora que desencadeou o impeachment de Dilma. Você aborda
essa onda conservadora no mundo, mas sem dar tanta ênfase ao governo Bolsonaro e algo
que parece novo em nosso caso específico, um nacionalismo exacerbado que reabilita o
integralismo aparentemente esquecido, um neofascismo verde e amarelo. Então, sob à luz
da tua gênese do conservadorismo e do autoritarismo, como você entende o bolsonarismo
de hoje?
No Brasil, creio que não devemos personificar a questão, colocar a culpa toda em
Bolsonaro, que é o vem acontecendo agora por aqui. Por exemplo, tivemos recentemente
um manifesto dos presidenciáveis a favor da democracia; ora, esses presidenciáveis
deveriam dizer também qual foi o papel, sendo que cada um deles teve um papel
específico, para que Bolsonaro fosse eleito. É muito fácil fazermos as partes de defensores
da democracia, mas precisamos entender porque tantos brasileiros votaram em Jair
Bolsonaro sabendo quem era Jair Bolsonaro. Ele foi eleito como representando da
antipolítica, mas não havia pessoa mais política do que ele: estava na política há 27 anos;
seus filhos ocupavam e ocupam cargos políticos. Devemos consideram que quem votou
nele, sabia quem ele era e o que ele representava. Estamos falando do Brasil, um país
muito racista, muito misógino, que não admite o surgimento de agentes que apareceram
nos últimos 30 anos: negros, LGBTQI+, mulheres, quilombolas. Basta ver o que
Bolsonaro fala de cada um desses segmentos sociais para entender a sua posição. Esse
grupo autoritário sempre existiu, mas tomou forma a partir de 2016 – um ano
emblemático: eleição de Trump, Brexit, golpe contra Dilma Rousseff. Você pode ser
contra, ser favorável – eu creio que foi um golpe –, mas ninguém pode negar que o
impeachment da Presidente Dilma desandou a democracia no Brasil, fazendo surgir essas
pessoas que sempre existiram, que passaram a ir às ruas. Nós não notamos isso na época,
mas existiam, no primeiro momento, duas avenidas que não bifurcavam. Essa
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polarização, esse ódio, são muito importantes para entender o fenômeno do
bolsonarismo. Não se trata só de Jair Bolsonaro, mas do bolsonarismo como fenômeno,
caracterizado, sobretudo, por 30% da população brasileira – mas que foram mais de 50%
em momento de eleição. E ninguém pode negar que grande parte desses novos líderes foi
eleita democraticamente. Racismo, autoritarismo e misoginia brasileiros estavam lá,
compondo isso tudo.
Um dos últimos capítulos do meu livro é sobre a intolerância, algo que se avoluma muito
a partir de 2018; intolerância religiosa, racial, de gênero. Isso tudo mostra o caldo odioso
do bolsonarismo. Mas é importante que não nos enganemos, porque não se trata só de
Jair Bolsonaro, pois alguém votou nele, alguém o elegeu. O próximo ano será importante,
é ano eleitoral. Teremos avaliar como o bolsonarismo incidiu em um país que não é pobre,
mas de pobres, e quais as consequências disso nesse momento pandêmico em que
vivemos. Uma pandemia não traz nada de bom, ela apenas escancara as dificuldades. No
nosso caso, ela escancarou nossas desigualdades. Estão morrendo mais negros pobres do
que brancos de classe média e alta.
O exército se constrói, após a guerra do Paraguai, como salvador da pátria, e não perde
mais essa banca. Se pensarmos no que o exército já fez, como na República, por exemplo,
que foi proclamada através de um golpe, um golpe interno. Originalmente foi um golpe
civil-militar, mas o exército dá um golpe dentro do golpe e toma o primeiro golpe para si,
com Floriano. Se pensarmos na Revolução de 30: o que foi, se não um golpe? Foram uma
série de golpes, contragolpes e quarteladas até chegarmos no golpe da ditadura militar de
1964, e sabemos que parte do bolsonarismo é interessado em tentar recontar a história,
fazer da história uma espécie de bula de remédio, o que ela não é. Essa questão é muito
complexa. Para ficarmos em um exemplo, a ditadura nos entregou um Estado falido e
inflacionado: entre 1964 e 1985, tivemos, comprovadamente, muita corrupção. Assim,
toda essa banca do exército, de que eles seriam os não corruptos, os que saneariam nossa
economia, nada disso corresponde à realidade histórica. Estamos lidando com uma
representação, não com uma realidade. Além do que, Bolsonaro também não tem uma
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carreira de sucesso no exército; ele faz uma greve por salário e cai do cargo. Mas mesmo
assim ele se entende como um membro do exército, usando a retórica da guerra, de uma
guerra contra todos. Essa é uma questão que teremos que enfrentar, o porquê de lidarmos
tanto com esse tipo de representação.
Dystopia: Você lançou recentemente um livro que trata de um tema atual, a pandemia.
Esse tipo de acontecimento acaba por suscitar uma série de respostas políticas:
negacionismos, curas milagrosas, responsabilização de culpados, apontamento de
inimigos etc. O paralelo entre o tema desse livro, a gripe espanhola, e a pandemia atual é
inevitável. São gripes, doenças que funcionam em uma lógica semelhante, e também
pode-se fazer certo paralelo nas questões políticas e econômicas, as respostas e crises que
são geradas a partir das doenças. Irresistível lembrar a famosa frase de Marx, de que a
história se repete, primeiro como tragédia, depois como farsa; e parece que não
aprendemos nada, que não suspeitamos da possibilidade e do risco de uma pandemia em
um sistema capitalista que vai destruindo a natureza e aproximando as distâncias,
ignorando também os evidentes efeitos econômicos. Tendo em mente esse paralelo, como
entender as respostas do governo Bolsonaro à crise atual, se comparadas às respostas
dadas à crise da gripe espanhola no início do século passado?
Lilia Schwarcz: No caso das pandemias e epidemias, a primeira vez é uma tragédia, e na
segunda, outra tragédia. O Brasil foi alcançado, em 1918, pela segunda onda da grande
epidemia da gripe espanhola. Tudo chegou como um susto. Havia a notícia de que a
Europa sofria uma grande epidemia, mas não se achava que ela chegaria por aqui, e é
claro que chegou! Ela chegou ao Brasil de navio, sendo o mais conhecido o Demerara, que
aportou com a tripulação totalmente infectada, contaminando as cidades de Recife,
Salvador, Rio de Janeiro e São Paulo, de onde o contágio interiorizado, chegando ao Rio
Grande do Sul, passando por Santa Catarina, matando um número gigantesco da
população indígena até chegar ao norte, arrasando Belém e Manaus. Aliás, uma
coincidência terrível, porque Manaus voltou a ser fortemente abatida na crise atual.
A grande diferença entre 1918 e agora se encontra na sociedade civil. Em 1918 houve, por
exemplo, governos que negaram a pandemia por conta de eleições, como foi o caso do Rio
Grande do sul; houve governos que tentaram desacreditar o risco de contaminação etc.
Mas o que vimos foi que, se a negação é um fenômeno normal, pois somos uma sociedade
criada para um corpo saudável, uma segunda atitude não foi negacionista, o que estamos
vendo agora. Naquela época, igrejas, escolas, comércio, clubes, todos foram fechados. As
igrejas, por exemplo, só abriram como hospitais de campanha, muito diferente da briga
que hoje assistimos, das igrejas lutando para manterem as portas abertas. Os clubes
também, só foram abertos para atuarem como hospitais de campanha. A sociedade civil
pressionou para os estabelecimentos fossem mantidos fechados. Em Belém, por exemplo,
um cinema que insistia em se manter aberto, foi fechado pela população. Além disso, as
autoridades políticas da época não buscaram placebos.
Além disso, não existia vacina. Claro que existiram farmácias e inventores oferecendo
soluções falsas. Falava-se e vendia-se sal de quinino – inclusive, em uma farmácia de Belo
Horizonte, era vendida a cloroquinina. Naquele contexto, assim como hoje, as autoridades
sanitárias desautorizavam o uso dessas substâncias. Nenhuma autoridade política
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endossou seus usos, o que é muito diferente do que estamos presenciando hoje, com o
presidente virando garoto propaganda da cloroquina. Ou seja, infelizmente, nós
involuímos. Por isso eu disse que a segunda vez é uma tragédia dupla. Vários dos acertos
que tomamos em 1918, o que talvez tenha feito com que a crise da gripe espanhola
passasse mais rapidamente, muito mais rapidamente, não estamos experienciando agora,
em 2020 e 2021. Hoje, a população recusa lockdown, acredita em tratamento precoce,
tomando cloroquina – o que é ruim para o organismo. Enfim, é um claro caso de
involução.
Dystopia: Lilia, para encerrarmos, uma pergunta que abrange tua atuação acadêmica,
mas também tua atuação como intelectual pública. Vivemos hoje um ambiente muito
acirrado de disputa de narrativas, algo que se espalhou pela rede e que muitos chamam de
cultura do cancelamento, o que acabou virando um cavalo de batalha na retórica da
direita. Você sempre foi uma intelectual que defendeu articulação e dialogo entre os
diferentes, não apenas pela inclusão, mas também pela troca de ideias, pela ampliação da
esfera pública. Por outro lado, estamos hoje em um ponto de inflexão, já o acirramento e o
recrudescimento dos posicionamentos parecem às vezes minar a capacidade da esquerda
de propor uma política solidária que não seja divisiva – o que acabaria reforçando o
maniqueísmo que interessa à direita. Se adotarmos o identitarismo de forma pouco
crítica, não corremos o risco de que algumas pautas justas e necessárias, de igualdade e
reparação histórica, sejam cooptadas por um individualismo neoliberal, tirando do
horizonte a reestruturação possível do sistema? Não haveria também o risco de que
grupos privilegiados adotem o identitarismo como uma estratégia de discurso que os
coloquem como inclusivos, embora não fazendo uma necessária crítica estrutural?
Lilia Schwarcz: Acredito que sejam duas questões diferentes. Durante muito tempo as
esquerdas alegaram não ser possível tratar dessas questões chamadas de “identitárias” –
eu não concordo com o uso desse termo – porque isso dividiria o partido. Mas não
atentamos para o fato de que o partido sempre foi eminentemente masculino, branco e
colonial. Creio que a agenda dos movimentos sociais – prefiro chama-los assim – foi
fundamental para a esquerda se reinventar. Da mesma forma que a direita entendeu que
deveria se reinventar, a esquerda também precisa se reinventar. Não mais possível que
façamos um discurso de branquitude como se ele estivesse acima de tudo e de todos. O
discurso das minorias, desses novos agentes sociais, veio para questionar esses grandes
modelos.
Porém, existe aqui outra questão: na história do Brasil, a direita sempre se entendeu,
sempre fechou junto; a esquerda, por outro lado, sempre dividiu. Ou seja, a esquerda não
precisa dos assim alcunhados “identitaristas” para se dividir, ela é capaz de fazer isso
sozinha. Logo, o problema não é o identitarismo, é a esquerda que não sabe formas
frentes. Concordo muito com Marcos Nobre quando ele argumenta que o sistema eleitoral
brasileiro, dividido em dois turnos, nos dá uma grande oportunidade; no primeiro turno,
é o momento de votarmos em quem a gente quer – mesma oportunidade, aliás, de escolha
de deputados, vereadores e senadores; o segundo turno, porém, não é um cardápio à la
carte, é um cardápio fixo – peixe ou carne; não adianta você querer macarrão. O problema
é que, uma vez no segundo turno, a esquerda divide. Precisamos aprender a formar
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frentes democráticas. Como diz meu grande mestre Alberto da Costa e Silva: a gente faz
frente com o inimigo, com o adversário político. Enquanto a esquerda continuar a
defender esse falso purismo, não conseguiremos formar frente. E confesso que tenho
muito medo do que acontecerá em 2022, porque a direita vai fechar junto novamente,
enquanto a esquerda vai partir novamente. A escusa do identitarismo não passa de uma
escusa. O grande inimigo da esquerda, muitas vezes, é a própria esquerda – que é também
sectarista. Temos que aprender a não criar um adversário onde ele não existe. Os
discursos das minorias são discursos basicamente progressistas. Eu aprendo muito com
eles. Es tamos no século XXI – ou pelo menos queremos estar –, então é de aprender que
não existe grande e pequena política; aprender a incluir, escutar, dividir; ouvir essas
novas pautas, que são pautas que vieram pra ficar; vieram para nos fazer mais plurais, e,
quanto mais plurais nós formos, melhores nós seremos.
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