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Brasil, um país sem memória que mata seu povo duas

vezes: entrevista com Lilia Schwarcz


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31 de maio de 2021

por Matheus Lock

Nessa entrevista exclusiva para a Revista Dystopia, a historiadora, antropóloga,


professora da USP, Lilia Moritz Schwarcz fala sobre como o Brasil, desde seu
descobrimento até a gestão desastrosa de Bolsonaro na pandemia, insiste em acabar
com sua memória e forjar uma história conservadora que esconde violências que
cruzam raça, gênero, religião e classe sob o mito da democracia racial. Lilia é
historiadora, antropóloga, professora da USP, curadora adjunta do MASP, colunista do
Nexo Jornal, e também autora de obras como: O espetáculo das raças, As barbas do
imperador, Brasil: uma biografia, A bailarina da morte – seu último livro, em parceria
com Heloisa Murgel Starling – entre outros.

Dystopia: Ao longo do teu trabalho, percebemos um resgate histórico da construção do


Brasil por diversos ângulos; são personagens, camadas e nuances que vão trazendo à tona
tópicos que funcionam como eixos da construção do Brasil que conhecemos hoje: o
racismo das instituições brasileira no final do século XIX, a construção do mito da
monarquia no Brasil, os jogos de poder do período colonial e da Independência, as raízes
da permanência do autoritarismo político brasileiro e assim por diante. Talvez o racismo
seja, dentre esses temas que sua obra aborda, o de maior centralidade. Sabemos que é
uma página não virada de nossa história. Pelo contrário, o racismo é reforçado não só
pelas instituições, que insistem em excluir negros e populações vulneráveis, mas também
por uma pandemia não menos excludente e por um governo que nega o racismo,
colocando, por exemplo, na liderança da Fundação Palmares um sujeito que fala que a
escravidão foi benéfica e que procura acabar com a memória de luta dos negros. A partir
dos recortes históricos que tu fazes, como podemos entender essa resistência estrutural
que o Brasil apresenta em não permitir a emancipação cidadã dos negros e das pessoas
vulneráveis?

Lilia Schwarcz: Primeiramente, muito obrigado pelo convite. Gostaria de começar


dizendo que acabei de lançar um novo livro, que tem relação direta com essa primeira
pergunta. O livro se chama Enciclopédia negra, escrito em parceria com Jaime Lauriano e
Flávio Gomes, apresentando mais de 550 personagens divididos pelo tempo – do século
XVI até o século XXI –, por gênero e sexo – mostrando uma paridade entre homens,
mulheres e população LGBTQI+ – e fazendo uma forte discussão regional, contemplando
todos os estados. Começo falando desse último projeto porque ele está ligado com essa
linha mestra dos meus estudos que, de uma maneira ou de outra, recaem na questão
racial brasileira. Meu mestrado se chama Espetáculo em branco e negro, e foi um
trabalho que investigava como negros e negras escravizados foram representados nos
jornais do século XIX em São Paulo. Meu doutorado foi o Espetáculo das raças,
mostrando que o país da suposta “democracia racial” estava, na verdade, a um passo do

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apartheid racial. Ou seja, eu já estudava nesses trabalhos o racismo institucional –
presente em museus, faculdades de direito, faculdades de medicina e institutos históricos.
Em As barbas do imperador, procuro mostrar como o imperador construiu sua
popularidade apoiada na ideia de um império tropical, tratando, no segundo reinado, de
invisibilizar as populações negras. Em O sol do Brasil, mostro como o pintor francês
Nicolas-Antoine Taunay trabalhava com contradição fundamental de um homem
iluminista como ele, inclusive amigo de Rousseau, possuir escravos. Em Brasil: uma
biografia, bem como em Sobre o autoritarismo brasileiro, a questão racial aparece como
uma das vigas-mestra.

Acredito que o racismo é um fenômeno construído pelas populações brancas no Brasil: a


escravidão foi construída pelos colonizadores europeus, e as teorias raciais foram
construídas, em meados do século XIX, pelas elites brancas. Isso diz respeito à construção
da branquitude como um espaço de privilégio e poder. Claro, depois tivemos ditadura
militar, redemocratização, mas agora é hora de qualificarmos nossa democracia. Não
penso que seja possível falar de um país entre iguais se vivemos em um país que pratica
um racismo estrutural – que está em todas nossas áreas: educação, saúde, taxas de
natalidade e de mortalidade – e um racismo institucional – que sistematicamente
inviabiliza a entrada da população negra nas instituições. Paradoxalmente, chamamos
essas populações de minorias sociais, algo que elas não são. Veja, nos EUA, a população
afro-americana corresponde a algo em torno de 13 a 16% da população geral, enquanto
que no Brasil a população preta e parda corresponde a 56,1% da população, segundos
dados do IBGE. Ou seja, trata-se de uma minoria no campo da representação, mas não
são uma minoria política. Desde os tempos da escravidão, sempre existiu ativismo,
reação. Essa questão não é apenas a grande contradição da sociedade brasileira, é
também um tema fundamental da nossa agenda. Estamos em um momento no qual,
como dizem Toni Morrisson, Angela Davis e Djamila Ribeiro, não basta dizermos que não
somos racistas, temos que tomar atitudes antirracistas. A Enciclopédia eu fiz junto com o
Flávio Gomes, um historiador negro sensacional, e com Jaime Lauriano, um pesquisador
e artista negro igualmente sensacional. O livro apresenta uma utopia. A ideia de que
entremos em 2022, um ano que será muito carregado – avaliação da política de cotas,
centenário da Semana de Arte Moderna, bicentenário da Independência. A pergunta que
fica é: qual Independência queremos comemorar? Uma independência colonial, branca,
europeia e machista, somente com homens protagonistas? Ou queremos comemorar uma
outra independência mais plural e exclusiva?

Dystopia: Interessante que tu menciones a importância da comemoração da


independência. Essa comemoração vai se dar no governo Bolsonaro, a cristalização
máxima desse Estado conservador. Você já mencionou que a Independência não nos deu
exatamente a independência política, mas sim um Estado aos moldes europeus, feita por
golpe de elite, que não nos deu um povo, uma nação, heróis revolucionários – ao contrário
do que ocorreu em diversos lugares da América Latina. De certa forma, o governo
Bolsonaro representa bem essa resistência brasileira de emancipação dos negros e das
populações vulneráveis. Nesse sentido, lembramos que, ao traçar as origens do
autoritarismo e do conservadorismo no Brasil, sua obra mostra eles estão assentados em
alguns eixos importantes – mandonismo, patrimonialismo, escravidão, violência,

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desigualdade –, pilares que atravessam nossa história até os dias atuais, formando certa
contrarrevolução conservadora que desencadeou o impeachment de Dilma. Você aborda
essa onda conservadora no mundo, mas sem dar tanta ênfase ao governo Bolsonaro e algo
que parece novo em nosso caso específico, um nacionalismo exacerbado que reabilita o
integralismo aparentemente esquecido, um neofascismo verde e amarelo. Então, sob à luz
da tua gênese do conservadorismo e do autoritarismo, como você entende o bolsonarismo
de hoje?

Lilia Schwarcz: Bem, o Sobre o autoritarismo brasileiro é quase todo dedicado ao


Bolsonaro, mas eu, espertamente, falo dele apenas uma vez, porque creio que Bolsonaro é
um sintoma, e não a causa do nosso autoritarismo, e isso me parece muito importante.
Esse livro foi publicado em maio de 2019, sendo considerado a primeira reação impressa
ao bolsonarismo. Lá eu falo como uma onda autoritária se abateu sobre o mundo, citando
essa série de governantes – Trump, Orbán etc. – que, na minha opinião, não são
conservadores, são retrógrados. Um governo conservador, desde que respeite os
princípios constitucionais, pode ser até bom para a democracia. A democracia funciona
melhor quando existe um enfrentamento, um embate não entre inimigos, mas entre
adversários políticos. O problema desses líderes é que eles são conservadores – querem
voltar atrás em direitos adquiridos. Todos eles são homens, brancos, muitos com políticas
contra as minorias. Todos valeram-se muito da tecnologia, e não se propõem a fazer
diálogos com suas nações, falando diretamente com suas bolhas. E são governos
populistas, gostam de simplificar grosseiramente questões muito complexas, abusando
das fake news. Sabemos muito bem que falar a verdade é difícil, porque implica na
necessidade de dar explicações, usar bons argumentos, um grande número de fontes.
Mentir, ao contrário, é fácil, pois basta dizer exatamente o que seu público quer ouvir,
sem maiores explicações. Esses governos são, portanto, populistas e tecnocratas.

No Brasil, creio que não devemos personificar a questão, colocar a culpa toda em
Bolsonaro, que é o vem acontecendo agora por aqui. Por exemplo, tivemos recentemente
um manifesto dos presidenciáveis a favor da democracia; ora, esses presidenciáveis
deveriam dizer também qual foi o papel, sendo que cada um deles teve um papel
específico, para que Bolsonaro fosse eleito. É muito fácil fazermos as partes de defensores
da democracia, mas precisamos entender porque tantos brasileiros votaram em Jair
Bolsonaro sabendo quem era Jair Bolsonaro. Ele foi eleito como representando da
antipolítica, mas não havia pessoa mais política do que ele: estava na política há 27 anos;
seus filhos ocupavam e ocupam cargos políticos. Devemos consideram que quem votou
nele, sabia quem ele era e o que ele representava. Estamos falando do Brasil, um país
muito racista, muito misógino, que não admite o surgimento de agentes que apareceram
nos últimos 30 anos: negros, LGBTQI+, mulheres, quilombolas. Basta ver o que
Bolsonaro fala de cada um desses segmentos sociais para entender a sua posição. Esse
grupo autoritário sempre existiu, mas tomou forma a partir de 2016 – um ano
emblemático: eleição de Trump, Brexit, golpe contra Dilma Rousseff. Você pode ser
contra, ser favorável – eu creio que foi um golpe –, mas ninguém pode negar que o
impeachment da Presidente Dilma desandou a democracia no Brasil, fazendo surgir essas
pessoas que sempre existiram, que passaram a ir às ruas. Nós não notamos isso na época,
mas existiam, no primeiro momento, duas avenidas que não bifurcavam. Essa

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polarização, esse ódio, são muito importantes para entender o fenômeno do
bolsonarismo. Não se trata só de Jair Bolsonaro, mas do bolsonarismo como fenômeno,
caracterizado, sobretudo, por 30% da população brasileira – mas que foram mais de 50%
em momento de eleição. E ninguém pode negar que grande parte desses novos líderes foi
eleita democraticamente. Racismo, autoritarismo e misoginia brasileiros estavam lá,
compondo isso tudo.

Um dos últimos capítulos do meu livro é sobre a intolerância, algo que se avoluma muito
a partir de 2018; intolerância religiosa, racial, de gênero. Isso tudo mostra o caldo odioso
do bolsonarismo. Mas é importante que não nos enganemos, porque não se trata só de
Jair Bolsonaro, pois alguém votou nele, alguém o elegeu. O próximo ano será importante,
é ano eleitoral. Teremos avaliar como o bolsonarismo incidiu em um país que não é pobre,
mas de pobres, e quais as consequências disso nesse momento pandêmico em que
vivemos. Uma pandemia não traz nada de bom, ela apenas escancara as dificuldades. No
nosso caso, ela escancarou nossas desigualdades. Estão morrendo mais negros pobres do
que brancos de classe média e alta.

Dystopia: A ideia de Bolsonaro como um sintoma diz muito sobre a construção do


sistema político nacional e do papel de umas instituições que melhor representam esse
ideário conservador e autoritário, o exército. O exército tem um papel central na nossa
história de golpes e contrarrevoluções, mas sobretudo um papel de muita violência, de
muitos assassinatos. O exército se colou ao Bolsonaro, assumindo-o como um projeto.
Mas agora, parece tentar se descolar do presidente. Como você compreende o papel do
exército no interior dessa concepção de autoritarismo que é elaborada na sua obra?

Lilia Schwarcz: O exército tem se mostrado algo impressionante. Há pouco, quando


houve uma reforma eleitoral aos moldes de Bolsonaro, ele já havia colocado um militar
como ministro da defesa, o que não vinha sendo feito nos governos anteriores, quando
eram sempre civis. De uma forma ou outra, Bolsonaro derrubou quatro ministros
militares. Esse dado é muito significativo, sobretudo porque alguns desses ministros
caíram porque estavam defendendo a democracia, ou seja, evitando um golpe. Eu sempre
digo o seguinte: quando a gente precisa confiar no exército enquanto fiador da
democracia brasileira, é um sinal claro de que as coisas vão muito mal.

O exército se constrói, após a guerra do Paraguai, como salvador da pátria, e não perde
mais essa banca. Se pensarmos no que o exército já fez, como na República, por exemplo,
que foi proclamada através de um golpe, um golpe interno. Originalmente foi um golpe
civil-militar, mas o exército dá um golpe dentro do golpe e toma o primeiro golpe para si,
com Floriano. Se pensarmos na Revolução de 30: o que foi, se não um golpe? Foram uma
série de golpes, contragolpes e quarteladas até chegarmos no golpe da ditadura militar de
1964, e sabemos que parte do bolsonarismo é interessado em tentar recontar a história,
fazer da história uma espécie de bula de remédio, o que ela não é. Essa questão é muito
complexa. Para ficarmos em um exemplo, a ditadura nos entregou um Estado falido e
inflacionado: entre 1964 e 1985, tivemos, comprovadamente, muita corrupção. Assim,
toda essa banca do exército, de que eles seriam os não corruptos, os que saneariam nossa
economia, nada disso corresponde à realidade histórica. Estamos lidando com uma
representação, não com uma realidade. Além do que, Bolsonaro também não tem uma

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carreira de sucesso no exército; ele faz uma greve por salário e cai do cargo. Mas mesmo
assim ele se entende como um membro do exército, usando a retórica da guerra, de uma
guerra contra todos. Essa é uma questão que teremos que enfrentar, o porquê de lidarmos
tanto com esse tipo de representação.

Dystopia: Você lançou recentemente um livro que trata de um tema atual, a pandemia.
Esse tipo de acontecimento acaba por suscitar uma série de respostas políticas:
negacionismos, curas milagrosas, responsabilização de culpados, apontamento de
inimigos etc. O paralelo entre o tema desse livro, a gripe espanhola, e a pandemia atual é
inevitável. São gripes, doenças que funcionam em uma lógica semelhante, e também
pode-se fazer certo paralelo nas questões políticas e econômicas, as respostas e crises que
são geradas a partir das doenças. Irresistível lembrar a famosa frase de Marx, de que a
história se repete, primeiro como tragédia, depois como farsa; e parece que não
aprendemos nada, que não suspeitamos da possibilidade e do risco de uma pandemia em
um sistema capitalista que vai destruindo a natureza e aproximando as distâncias,
ignorando também os evidentes efeitos econômicos. Tendo em mente esse paralelo, como
entender as respostas do governo Bolsonaro à crise atual, se comparadas às respostas
dadas à crise da gripe espanhola no início do século passado?

Lilia Schwarcz: No caso das pandemias e epidemias, a primeira vez é uma tragédia, e na
segunda, outra tragédia. O Brasil foi alcançado, em 1918, pela segunda onda da grande
epidemia da gripe espanhola. Tudo chegou como um susto. Havia a notícia de que a
Europa sofria uma grande epidemia, mas não se achava que ela chegaria por aqui, e é
claro que chegou! Ela chegou ao Brasil de navio, sendo o mais conhecido o Demerara, que
aportou com a tripulação totalmente infectada, contaminando as cidades de Recife,
Salvador, Rio de Janeiro e São Paulo, de onde o contágio interiorizado, chegando ao Rio
Grande do Sul, passando por Santa Catarina, matando um número gigantesco da
população indígena até chegar ao norte, arrasando Belém e Manaus. Aliás, uma
coincidência terrível, porque Manaus voltou a ser fortemente abatida na crise atual.

A grande diferença entre 1918 e agora se encontra na sociedade civil. Em 1918 houve, por
exemplo, governos que negaram a pandemia por conta de eleições, como foi o caso do Rio
Grande do sul; houve governos que tentaram desacreditar o risco de contaminação etc.
Mas o que vimos foi que, se a negação é um fenômeno normal, pois somos uma sociedade
criada para um corpo saudável, uma segunda atitude não foi negacionista, o que estamos
vendo agora. Naquela época, igrejas, escolas, comércio, clubes, todos foram fechados. As
igrejas, por exemplo, só abriram como hospitais de campanha, muito diferente da briga
que hoje assistimos, das igrejas lutando para manterem as portas abertas. Os clubes
também, só foram abertos para atuarem como hospitais de campanha. A sociedade civil
pressionou para os estabelecimentos fossem mantidos fechados. Em Belém, por exemplo,
um cinema que insistia em se manter aberto, foi fechado pela população. Além disso, as
autoridades políticas da época não buscaram placebos.

Além disso, não existia vacina. Claro que existiram farmácias e inventores oferecendo
soluções falsas. Falava-se e vendia-se sal de quinino – inclusive, em uma farmácia de Belo
Horizonte, era vendida a cloroquinina. Naquele contexto, assim como hoje, as autoridades
sanitárias desautorizavam o uso dessas substâncias. Nenhuma autoridade política

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endossou seus usos, o que é muito diferente do que estamos presenciando hoje, com o
presidente virando garoto propaganda da cloroquina. Ou seja, infelizmente, nós
involuímos. Por isso eu disse que a segunda vez é uma tragédia dupla. Vários dos acertos
que tomamos em 1918, o que talvez tenha feito com que a crise da gripe espanhola
passasse mais rapidamente, muito mais rapidamente, não estamos experienciando agora,
em 2020 e 2021. Hoje, a população recusa lockdown, acredita em tratamento precoce,
tomando cloroquina – o que é ruim para o organismo. Enfim, é um claro caso de
involução.

Dystopia: Lilia, para encerrarmos, uma pergunta que abrange tua atuação acadêmica,
mas também tua atuação como intelectual pública. Vivemos hoje um ambiente muito
acirrado de disputa de narrativas, algo que se espalhou pela rede e que muitos chamam de
cultura do cancelamento, o que acabou virando um cavalo de batalha na retórica da
direita. Você sempre foi uma intelectual que defendeu articulação e dialogo entre os
diferentes, não apenas pela inclusão, mas também pela troca de ideias, pela ampliação da
esfera pública. Por outro lado, estamos hoje em um ponto de inflexão, já o acirramento e o
recrudescimento dos posicionamentos parecem às vezes minar a capacidade da esquerda
de propor uma política solidária que não seja divisiva – o que acabaria reforçando o
maniqueísmo que interessa à direita. Se adotarmos o identitarismo de forma pouco
crítica, não corremos o risco de que algumas pautas justas e necessárias, de igualdade e
reparação histórica, sejam cooptadas por um individualismo neoliberal, tirando do
horizonte a reestruturação possível do sistema? Não haveria também o risco de que
grupos privilegiados adotem o identitarismo como uma estratégia de discurso que os
coloquem como inclusivos, embora não fazendo uma necessária crítica estrutural?

Lilia Schwarcz: Acredito que sejam duas questões diferentes. Durante muito tempo as
esquerdas alegaram não ser possível tratar dessas questões chamadas de “identitárias” –
eu não concordo com o uso desse termo – porque isso dividiria o partido. Mas não
atentamos para o fato de que o partido sempre foi eminentemente masculino, branco e
colonial. Creio que a agenda dos movimentos sociais – prefiro chama-los assim – foi
fundamental para a esquerda se reinventar. Da mesma forma que a direita entendeu que
deveria se reinventar, a esquerda também precisa se reinventar. Não mais possível que
façamos um discurso de branquitude como se ele estivesse acima de tudo e de todos. O
discurso das minorias, desses novos agentes sociais, veio para questionar esses grandes
modelos.

Porém, existe aqui outra questão: na história do Brasil, a direita sempre se entendeu,
sempre fechou junto; a esquerda, por outro lado, sempre dividiu. Ou seja, a esquerda não
precisa dos assim alcunhados “identitaristas” para se dividir, ela é capaz de fazer isso
sozinha. Logo, o problema não é o identitarismo, é a esquerda que não sabe formas
frentes. Concordo muito com Marcos Nobre quando ele argumenta que o sistema eleitoral
brasileiro, dividido em dois turnos, nos dá uma grande oportunidade; no primeiro turno,
é o momento de votarmos em quem a gente quer – mesma oportunidade, aliás, de escolha
de deputados, vereadores e senadores; o segundo turno, porém, não é um cardápio à la
carte, é um cardápio fixo – peixe ou carne; não adianta você querer macarrão. O problema
é que, uma vez no segundo turno, a esquerda divide. Precisamos aprender a formar

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frentes democráticas. Como diz meu grande mestre Alberto da Costa e Silva: a gente faz
frente com o inimigo, com o adversário político. Enquanto a esquerda continuar a
defender esse falso purismo, não conseguiremos formar frente. E confesso que tenho
muito medo do que acontecerá em 2022, porque a direita vai fechar junto novamente,
enquanto a esquerda vai partir novamente. A escusa do identitarismo não passa de uma
escusa. O grande inimigo da esquerda, muitas vezes, é a própria esquerda – que é também
sectarista. Temos que aprender a não criar um adversário onde ele não existe. Os
discursos das minorias são discursos basicamente progressistas. Eu aprendo muito com
eles. Es tamos no século XXI – ou pelo menos queremos estar –, então é de aprender que
não existe grande e pequena política; aprender a incluir, escutar, dividir; ouvir essas
novas pautas, que são pautas que vieram pra ficar; vieram para nos fazer mais plurais, e,
quanto mais plurais nós formos, melhores nós seremos.

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