Você está na página 1de 4

Quando os Anjos Merecem Morrer

1992. Sanatório Santa Efigênia.

Sentada na beirada da cama, vestindo um velho roupão roxo, a mulher de 66 anos com
longos cabelos acinzentados segurava em uma das mãos um espelho e na outra um batom
vermelho novinho - presente que ganhara no Natal de uma das enfermeiras do sanatório.
Com suas mãos trêmulas, levantou o espelho e começou a dar forma e cor aos lábios
descarnados enquanto sua mente começava lentamente a devagar para outro lugar.
Não demorou muito para que as vozes já tão bem conhecidas, as mesmas vozes que a
acompanhavam há 30 anos, começassem a proferir acusações em seus ouvidos. Algumas
manhãs eram em particular mais difíceis de serem suportadas do que outras.
Houve um tempo em que Alice julgara estar livre delas, porém, elas sempre voltavam. Alice
tinha certeza de que iria ouvi-las até o momento em que desse seu último suspiro. Uma
lágrima escorreu pelo seu rosto.
A janela entreaberta permitia que a brisa fria da manhã adentrasse no quarto, juntamente
com o som de vozes abafadas vindas do jardim da ala oeste. Era dia de visita no Sanatório.
Então, as vozes abafadas deram lugar a gritos de horror, quando o corpo de Alice aterrissou
sobre a grama verde do jardim, após despencar do terceiro andar. O batom ainda estava
firmemente seguro em sua mão. Seu rosto contorcido num misto de pavor e alívio.
Nunca mais aquelas vozes seriam ouvidas.

2
O Verão de 1961 prometia ser o mais quente dos últimos cinco anos. Aquele era o primeiro
sábado das férias escolares que havia começado no dia anterior, e todas as crianças do bairro
estavam na rua se divertindo, enquanto suas mães ficavam sentadas em suas varandas
tomando chá gelado ou uma bela limonada e fofocando sobre tudo e todos. Os pais por sua
vez, mexiam em seus carros com uma cerveja gelada nas mãos.
Havia meninas pulando corda ou brincando de bambolê; as crianças mais novas se
divertiam brincando de pique-esconde e meninos apostavam corrida em suas bicicletas
velozes, sedentas por liberdade. Todos estavam se divertindo.
Todos, exceto Nicolas Randall.

Nicolas era um garoto de corpo franzino, que ao olhar dava a todos a impressão de que um
sopro seria capaz de quebra-lo ao meio. No entanto, apesar de sua aparência frágil, ele era
muito habilidoso e inteligente. Seu sorriso meigo costumava cativar instantaneamente as
pessoas, apesar de seus profundos olhos castanhos denotarem uma tristeza incompatível para
com um menino de sete anos.
Ele e seu irmão mais velho, Adam, ao invés de estarem se divertindo como todos os outros
garotos, estavam lavando e polindo o Impala do velho Martin, seu padrasto.
Já há algum tempo que Martin dizia que iria ensina-los a dirigir quando o verão chegasse.
Ele achava que era importante para um homem aprender a fazer coisas de homem desde
pequenos. Ele mesmo aprendeu a dirigir aos 9 anos de idade na fazenda do avô, e achava um
absurdo o fato de que Adam ainda não soubesse dirigir, apesar de já ter 15 anos.
Assim que os garotos terminassem de polir o carro, ele os levaria para a zona leste da
cidade, onde havia muitas estradas que quase já não eram utilizadas. A menos, é claro, que
eles fizessem algo de errado - o que não seria de se espantar vindo daqueles dois imbecis – ele
pensou.

4
Depois de passar quase uma hora atrás do volante, era a vez de Nicolas.
Adam achava desnecessário ensina-lo a dirigir, afinal seu irmão tinha apenas 7 anos, mas
sabia que discordar de seu padrasto não era uma boa opção.
Nicolas podia sentir o suor frio escorrendo por sua testa, mas fez todo o possível para não
deixar transparecer seu nervosismo. Sentou-se no banco do motorista e fez tudo exatamente
como o velho Martin estava ensinando.
Para surpresa do garoto, apesar de alguns pequenos deslizes, ele se saiu bem e isto
agradou Martin, que parecia quase orgulhoso.
Quando os três voltaram para casa, o sol já estava se pondo. E apesar do dia ter
transcorrido calmamente, Nicolas ainda se ressentia um pouco por não ter podido brincar na
rua com os outros meninos. Mas sabia que não podia reclamar, afinal, ele tinha saído ileso
naquele dia. Ele só esperava que o resto do verão acabasse tão bem quanto tinha começado.

Quando o verão acabou e as aulas retornaram, Adam decidiu que iria abandonar a escola
para poder trabalhar em tempo integral na oficina mecânica. Ele era bom no que fazia, não
queria continuar perdendo seu tempo com livros quando poderia ganhar dinheiro para
finalmente sair de casa.
Desde muito cedo ele trabalhava, a única coisa boa que aprendera com a mãe. Ele já tinha
um bom dinheiro guardado. Pelas suas contas, dentro de seis meses, quando completasse 16
anos, ele teria condições de comprar um carro e dizer adeus a toda aquela merda.
Seu único desgosto era ter que deixar Nicolas para trás. Ele sabia que por pior que a mãe
deles fosse, ela jamais iria deixa-lo levar o irmão caçula embora consigo.
Adam só torcia para que Deus ajudasse Nicolas a aguentar aquele inferno no qual viviam e,
principalmente, que eles pudessem se reencontrar um dia.

6
No início do inverno daquele ano, Bob, o irmão mais novo de Martin, mudou-se para a casa
ao lado da deles. Ele era aposentado por invalidez devido a um acidente de trabalho no qual
ele perdeu metade da perna direita.
Ele e o irmão eram muito parecidos, ambos eram altos e magros, mas com uma barriga
saliente de cerveja. Os dois estavam ficando calvos e usavam óculos. A maior diferença entre
os dois era a personalidade. Enquanto Martin era reservado e geralmente mal humorado,
exceto quando lhe convinha, Bob era falante e extrovertido, sempre com alguma piada ou
brincadeira para fazer. Por vezes, Alice lamentava não ter conhecido Bob primeiro. Ela nunca
tinha visto o cunhado beber além do limite ou sendo rude e explosivo, como o seu Martin
fazia, e os meninos pareciam gostar dele, em especial o mais novo. Bob as vezes fazia alguns
truques baratos de mágica e isso deixava Nicolas encantando.

Você também pode gostar