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Patrice Schuch
Mas, talvez, eu devesse primeiro esclarecer o que deve ser entendido
como etnografia pública. A expressão refere-se simplesmente ao princípio
de trazer para vários públicos - além dos círculos acadêmicos - as
conclusões de uma etnografia analisada à luz do pensamento crítico, de
modo que estes resultados possam ser apreendidos, apropriados,
debatidos, contestados e utilizados. Presume-se que tal conversa entre o
etnógrafo e seus públicos gera uma circulação de conhecimento, reflexão
e ação suscetível de contribuir para uma transformação do modo como o
mundo é representado e experienciado (Fassin, 2013a:628).
Notícias do Brasil
1
Texto e foto disponível em: http://noticias.r7.com/rio-de-janeiro/artista-plastica-que-resgatou-jovem-
amarrado-nu-em-poste-no-flamengo-presta-depoimento-a-policia-05022014
2
Texto e foto disponível em: http://correiodobrasil.com.br/noticias/brasil/outro-homem-nu-aparece-
amarrado-sob-sol-forte-na-zona-sul-do-rio/683400/, consultado em 10/04/2014.
2
Brasil, persistem e insistem eventos que revelam os meios de estabelecer uma fronteira
diferenciante – um corte, se desejarmos utilizar a maneira de Michel Foucault definir
“racismo” - entre o que deve viver e o que deve morrer (Foucault, 2002).
Segundo este autor, o racismo, maneira de defasar, no interior de uma
população, uns grupos em relação a outros, tem exatamente essa função de fragmentar,
fazer cesuras no interior do contínuo biológico a que se dirige o biopoder3. Sua outra
função, ainda segundo Foucault (2002), seria a de permitir uma relação biológica de
supressão dos perigos, externos ou internos, em relação à população e para a população:
“se você quer viver, é preciso que você faça morrer, é preciso que você possa matar”
(Foucault, 2002:305). O racismo, enfim, assegura a função da morte na economia do
biopoder, aquela definida pela promoção da vida como problema e foco do poder
político4.
De volta ao Brasil, 2014: a coordenadora do Projeto Uerê, a artista plástica
Yvone Bezerra de Melo que, chamada por vizinhos que presenciaram a cena da prisão
do jovem negro e nu por uma trava de bicicleta em um poste na zona sul do Rio de
Janeiro, diz para jornalistas sobre a defesa do jovem: “Eu recebo ameaças por defender,
mas estamos falando de seres humanos. Recebi no Facebook a seguinte mensagem: „Pra
mim essa raça tem que ser exterminada com requintes de crueldade‟”. (O Globo, em
03/02/2014)”5. A rede social não foi somente o lugar da explicitação da fronteira entre o
que deve viver e o que deve morrer. De acordo com a Polícia Civil, o Facebook foi
também o espaço para marcação de um encontro entre jovens brancos de classe média,
moradores da zona sul do Rio de Janeiro, para “patrulhar o Aterro (do Flamengo) em
busca de potenciais autores de delitos na região” (R7 Notícias, em 04/02/2014)6. As
3
Cabe destacar que, quando Michel Foucault (2002) menciona que o racismo assegura a função da morte
numa economia da biopolítica, explica: “É claro, por tirar a vida não entendo simplesmente o assassínio
direto, mas também tudo o que pode ser assassínio indireto: o fato de expor à morte, de multiplicar para
alguns o risco de morte ou, pura e simplesmente, a morte política, a expulsão, a rejeição, etc” (Foucault,
2002:306).
4
Quanto ao biopoder, Foucault (2002) especifica que, ao contrário do direito da “espada” do poder
soberano de “fazer morrer e deixar viver”, e do tipo de poder disciplinar que toma o corpo individual
como alvo normalizador, o biopoder tem por foco a “população” enquanto tal e o homem enquanto ser
vivo (o homem-espécie). Trata-se de um poder regulamentador. Embora o aparecimento dessas formas de
poder estejam historicamente marcadas na obra de Foucault (poder soberano nos séculos XV e XVI,
poder disciplinar a partir do século XVII e início do século XVIII e a biopolítica a partir do final do
século XVIII e início do século XIX), a sua própria análise da função do racismo explicita seu insistente
argumento de que não se trata de supressão de tipos de poder de acordo com tais cronologias, mas de
composições e sobreposições de suas variadas técnicas e estratégias.
5
Fonte: http://oglobo.globo.com/rio/adolescente-atacado-por-grupo-de-justiceiros-preso-um-poste-por-
uma-trava-de-bicicleta-no-flamengo-11485284, consultado em 10/04/2014.
6
Fonte: http://noticias.r7.com/rio-de-janeiro/apos-linchamento-de-suspeito-jovens-confirmam-em-
depoimento-patrulha-para-proteger-aterro-04022014
3
atividades desse grupo e de outros do tipo deram origem a uma forma de nominação
popular referenciada em debates e reportagens sobre o tema, estreitamente relacionada
às suas maneiras de justificação moral: os “justiceiros”. Essa ideia de “justiça”
proclama sua não conformação ou não contentamento com a lei, colocando-se inclusive
acima desta e para além de suas assertivas: todos os jovens foram liberados pela Polícia
sem nenhuma acusação.
Rumo à outra direção: periferia de Paris, interpelação policial acompanhada por
Didier Fassin em seu trabalho de campo de quinze meses realizado entre maio de 2005 e
fevereiro de 2006 (Fassin, 2011). O autor começa o relato a seguir especificando que,
embora as situações de brutalidade tenham sido excepcionais durante sua pesquisa, as
cenas de humilhação pública fizeram-se comuns, produzindo-se cotidianamente nas ruas
através dos controles de identidades e verificação dos corpos, nas interpelações com o
uso injustificado de algemas e também nas delegacias durante os interrogatórios ou nos
locais de detenção. Comentários depreciativos e insultos racistas diferenciadores de
pessoas, como “negros”, “árabes”, “romenos” e/ou simplesmente “bastardos”, faziam
parte das interações ordinárias entre os “guardiões da paz” e aqueles por estes
interpelados, banalizando as ideias de impureza, indeterminação e desvalorização que,
através da linguagem, inscreviam formas particulares de estigmatização sócio-racial
(Fassin, 2011:155).
Diz o autor que as estratégias de interpelação nas ações de patrulhamento e
verificação, a linguagem e outros sinais ostensivos de desprezo realizados perante os
vizinhos, conjugavam-se frequentemente para produzir uma situação de mortificação
social. A cena em que um homem de origem subsaariana é interpelado pela polícia pelo
fato de que seu carro apresentava um problema de segurança é evocativa desse
processo:
“No banco de trás do carro que trouxe para a
delegacia de polícia, um oficial lhe interroga:
„Alguma vez você já teve problema com a polícia?
- Não. - Cuidado. De toda a forma, nós vamos
verificar (silêncio). Qual é a sua idade? – Vinte e
um anos. – Você trabalha? – Não, eu não encontrei
trabalho. – Você é casado? – Não, ainda não. –
(Cada vez mais desdenhoso:) Você se dá conta?
Você tem vinte e um anos, na sua idade você
deveria ter um emprego, uma família, uma casa,
partir em férias, ter uma vida normal, não? Veja o
4
que você fez da sua vida. Ela é podre, a sua vida”
(Fassin, 2011:202-3)7.
“Ela é podre, a sua vida” - palavras ditas pelo policial francês na sua rápida
interação com o jovem que conhecia provavelmente há apenas alguns minutos - não são
apenas potentes formas de violência psíquica e moral, mas também instrumentos de
uma interpelação que produz, como explica o autor na entrevista deste livro, tanto a
sujeição à violência da lei quanto à subjetivação, ou seja, a constituição de si como
sujeito racializado. Para compreender esse processo, na entrevista, Fassin retoma a
descrição de Frantz Fanon, ao descobrir sua negritude pelos olhos e palavras dos outros,
nos olhares de medo e nas palavras de desdém que lhe eram dirigidas. No livro, o autor
salienta com maior precisão que não se trata de uma tomada de consciência, mas de uma
experiência vital de encarnação e incorporação. Segundo Fassin (2011), a maior parte da
política de segurança pública francesa reside neste tipo de patrulhamento que
institucionaliza a desigualdade e produz a racialização do público a que se dirige.
A construção de sujeitos políticos racializados se efetiva através de inúmeros
procedimentos e atividades do trabalho da polícia, como na constituição de tipologias
aparentemente neutras para o registro de pessoas (“raça negra”, “norte africano”), na
pragmática racial que dirige as abordagens de identificação e verificação de pessoas (a
diferenciação entre “ciganos” e “romenos”, por exemplo, em que se diz aos primeiros
“vocês são uma merda” e diz-se sobre os últimos: “eles vivem na merda”). Acontece até
mesmo nos comentários e piadas internas à convivência dos profissionais, como por
exemplo, o comentário jocoso de um policial, sobre um adolescente: “Ele jogava
basquete. Um dia as camisetas e redes desapareceram. Foi ele quem as tinha roubado.
Era fácil adivinhar: ele era o único árabe da equipe” (Fassin, 2011:237).
5
calçadas brasileiras, a qual reivindica “justiça” às expensas da lei? Quais os sentidos e
valores associados à vida e as tensões em torno das vidas expostas à dor da inscrição da
violência nos corpos, experiências e memórias? Como compreender os possíveis pontos
ocultos de interseção entre a exceção da lei e a conformação do poder político8? De que
modo é possível tornar tais dimensões inquietantes, retirando-as seja de sua banalidade
ordinária e ostensiva, mas invisível para alguns, seja de sua visibilidade que pouco
incomoda? Como tornar os modos de “viver junto” – e suas contestações – presentes no
Brasil, França e noutros lugares – preocupações de debate e reflexão pública? Enfim,
quais as possíveis contribuições da antropologia e das ciências sociais nesse processo?
Todas essas perguntas – assim como a própria aproximação com alguns eventos
no cenário brasileiro – foram suscitadas a partir da leitura da última etnografia
publicada por Fassin (2011): “La Force de l”Ordre. Une anthropologie de la police des
quartiers”. É impossível não ser afetado pela dimensão evocativa da rica análise
realizada pelo autor das formas de interpelação dos jovens de classe trabalhadora,
geralmente pertencentes às minorias étnico raciais, que vivem nos conjuntos
habitacionais das periferias de Paris. Como o autor assinala em alguns dos trechos da
entrevista presente neste livro, tais jovens são subjetivados como sujeitos racializados,
com todos os preconceitos associados à cor de suas peles, origens e religiões. Tais
interrogações em torno da valoração diferencial das vidas, entretanto, estão presentes
em outras de suas pesquisas e é possível estabelecer um paralelo entre as questões
trazidas pela etnografia com os policiais das periferias parisienses com outras práticas
de diferenciação realizadas no berço francês dos ideais de universalidade. As pesquisas
em torno das práticas humanitárias (Fassin, 2007a e 2010a e Fassin e Pandolfi, 2010) e
acerca dos programas franceses de auxílio a necessidades e não documentados (Fassin,
2005) evidenciam essas dimensões.
8
Esse é o problema clássico discutido por Agamben (2007), autor que salienta que a estrutura da exceção
– forma externa de relação que inclui alguma coisa unicamente através de sua exclusão – é consubstancial
na política ocidental. Segundo seu ponto de vista, a implicação do que chama de “vida nua” (vida
matável, mas insacrificável) na esfera da política constitui o núcleo originário, ainda que encoberto, do
poder soberano.
6
etnografia com as dimensões política e histórica. Pode-se dizer que essa é uma das
proposições que Fassin interpela o leitor, principalmente aos antropólogos e
antropólogas, isto é, para uma atenção nas suas maneiras de constituir problemas e
agendas de pesquisa, menos ligados a uma imagem de exotismo e/ou compreensão da
diversidade cultural - mais clássica no imaginário das justificações antropológicas – e
atenta aos valores e sentidos desiguais das vidas humanas. Esses valores e significações
estão expressos e constituídos através de discursos, tecnologias e dispositivos de
avaliação e diferenciação e modos de subjetivação e subjetividade. Daí seu frequente
clamor – também expresso na entrevista publicada nesta coletânea – à integração da
etnografia com a política e a história – que ecoa a obra de seu orientador de doutorado
em ciências sociais, Georges Balandier.
Daí também a crítica de Fassin ao que chamou, em seu trabalho sobre as
políticas de combate a Aids na África do Sul, de “culturalismo antropológico” (Fassin,
2007b:XIV). Tal culturalismo, para ele, corre o risco de essencializar as diferenças e de
construir imagens exotizantes sobre os universos pesquisados. Nessa e em outras obras
é possível verificar que as noções de “valor” e “significado” – geralmente afeitas à
análise cultural - estão chamadas a existir somente no entrecruzamento com a
insistência da noção de “desigualdade”, o que supõe uma influência da sociologia
francesa, especialmente de Pierre Bourdieu, já assumida em outra entrevista sobre a
obra de Fassin, publicada no Brasil (Jaime e Lima, 2011). Tal influência – que preserva,
mas faz funcionar em outras direções - é ainda perceptível no próprio conceito de
“incorporação da história” utilizado para compreender as dimensões objetivas e
subjetivas das experiências e políticas sul-africanas em cenário pós-apartheid.
Essa noção, assim como as de “economia moral”, “biolegitimidade” e “políticas
da vida”, compõem um novo repertório analítico-conceitual que não funciona para
compor quadros estáveis de sentidos ou representações culturais – como, por exemplo,
aquelas pelas quais a explicação do avanço assustador da Aids na África do Sul seria
resultado de crenças e valores culturalmente engendrados (a ideia de a relação sexual
com uma virgem purificaria o doente, por exemplo). Tais conceitos são, ao contrário,
ferramentas de inteligibilidade do que, na entrevista publicada nesta coletânea, Fassin
refere como a dimensão ética das “políticas da vida”. Conforme sua definição:
“A política da vida diz respeito ao sentido dado à
vida e à forma de tratar a vida em várias
sociedades. Nessa dimensão ética, a qual estou
particularmente interessado, o conceito serve para
7
pensar a discrepância entre o valor da vida (no
singular, como um bem abstrato supremo) e os
valores das vidas (no plural, como a existência
concreta dos seres humanos” (Fassin, nesta
publicação).
Pode-se dizer que o conceito nasce em estreito diálogo produtivo com a obra de
Michel Foucault, a quem, na entrevista deste livro, Fassin reconhece débito, mas destaca
uma forma de aproximação cada vez mais crítica. As interrogações sobre as artes de
governo de indivíduos e populações ecoam as problematizações foucaultianas e
afirmam-se nas abordagens de Fassin em torno de seus temas de pesquisa, tais como o
governo humanitário (Fassin, 2007a e 2010a e Fassin e Pandolfi, 2010), as políticas de
concessão de auxílio para desempregados e sem documentos (Fassin, 2005) e o
patrulhamento policial (Fassin, 2011). A forma de atenção para as relações de poder, as
quais não podem ser entendidas apenas em seus níveis mais institucionais, mas na
microfísica de suas táticas, estratégias e tecnologias, é outro elemento importante de
relação entre os autores.
Destacam-se também os interesses da própria tríade de problematização
foucaultiana: saber-poder-verdade, a qual é perceptível de ser percebida na conformação
de vários objetos de pesquisa de Fassin, mas, sobretudo, se evidencia nos seus estudos
sobre a emergência do trauma como uma verdade que autentica o sofrimento (Fassin e
Rechtman, 2009). Para Fassin, ao mesmo tempo em que conforma uma forma de
veridição, o trauma torna-se um recurso na mobilização de direitos. Esse é um aspecto
fundamental, na medida em que se evidencia uma dimensão original em relação à obra
foucaultiana, ao associar as interrogações sobre as formas de subjetivação com a
densidade e inventividade da perspectiva e da experiência dos atores sociais como parte
da analítica empregada. Como destaca Fassin, em texto escrito em coautoria de
Rechtman:
“Perceber o trauma como um recurso não é,
entretanto, apenas uma questão teórica. É também
uma questão ética: ao afirmarmos a dimensão tática
do trauma nós estamos reconhecendo a inteligência
social dos atores envolvidos” (Fassin e Rechtman,
2009:11).
8
Experiências, Valores e Sentidos: a requalificação das “vidas”
9
termos supostamente objetivos de análise” (Fassin,
2007b:263-4).
“Requalificar” a vida é, nesse sentido, também considerar criticamente o modo
como a “vida” é concebida nas pesquisas antropológicas. Quatro tropos analíticos
podem ser evidenciados, sendo distinguidos, por Fassin (2014), a partir pelas suas
ênfases na biologia ou na biopolítica: o primeiro, a partir da obra de Georges
Canguilhem (1994, op. cit Fassin, 2014), define a vida como a infraestrutura (biológica)
fundamental da existência humana: “le vivant” (a matéria viva), vista como a condição
material para a possibilidade do “lé vécu” (a experiência vivida). Os demais enfatizam a
vida na sua relação com a biopolítica, sendo possível diferenciar primeiramente, nesse
sentido, o próprio trabalho de Foucault (2002), a partir da inserção da “vida” como
objeto e foco da biopolítica, cuja racionalidade é do tipo do “fazer viver e deixar
morrer” e se singulariza através do aparecimento da noção de “homem-espécie” e tem
por alvo a população. Há também os estudos propriamente antropológicos e
sociológicos de Paul Rabinow (1999) e Nikolas Rose (2007) e que se dirigem às
espécies de mutações do biopoder hoje, formas de intervenções biomédicas e as práticas
das ciências da vida realizadas em nome da “própria vida” (life itself) (Rose, 2007),
como a neurociência, a ciência genômica, por exemplo. Por fim, outro locus de
problematização da “vida” são as reflexões em torno das dinâmicas da lógica da
exceção e sua consubstancialidade à política moderna, impulsionadas pelo filósofo
Giorgio Agamben (2007), o qual distinguiu zoé (vida nua) e bios (vida socialmente
qualificada).
Considerando tais “políticas da vida”, Fassin clama: “outra forma de política da
vida é possível” (Fassin, 2009). Propõe, então, a noção de “vida como tal” (life as such),
definida pelo curso dos eventos do nascimento à morte e que pode ser conformada por
violências políticas e estruturais, prolongada por políticas diversas e que dá lugar a
decisões morais e interpretações culturais. Através dessa noção, seu interesse é
compreender a variedade de formas de sua produção, consideração, valoração e sentido,
por oposição ao privilégio das unidimensionalidades da “população” ou da “biologia” e
daquelas caracterizações contrastantes entre as definições de “zoé” e “bios”. Afirma
Fassin (2009):
“Minha ideia é, da mesma maneira, não dar uma
definição ou mesmo uma delimitação à vida. É
alcançar o seu pleno significado e seus múltiplos
sentidos, quando não se limita a um fenômeno
10
biológico - embora também seja isso - e quando os
seres vivos não são reduzidos a populações - o que
obviamente são, do ponto de vista do Estado
(Scott, 1998). É de considerar como a vida pode ser
compreendida por uma antropologia política e
moral, como, simultaneamente, molda e é moldada
pelas escolhas políticas e as economias morais das
sociedades contemporâneas - a maneira pela qual
ela é historicamente „problematizada‟, para usar
um conceito Michel Foucault desenvolveu em sua
obra posterior. Em última análise, é voltar para
onde ele deixou o biopoder antes de limitar a
política a suas tecnologias e a moral a uma ética”
(Fassin, 2009:48).
Trata-se de incluir não somente a experiência dos atores, mas também a
dimensão dos “valores” e “significados” na produção da vida, bem como o modo como
seres humanos são tratados e tem as suas vidas avaliadas e distinguidas, não somente
por tecnologias de governo, mas também por dimensões morais relativas à produção dos
significados e na vivência de suas experiências biográficas e coletivas. Esta, conforme
Fassin (2009), não é uma empreitada contrária, mas complementar ao estudo das
práticas de governo: “Essas perspectivas não são contraditórias, mas complementares:
ao analisar as novas formas da arte de governo, pode-se apreender o seu conteúdo
político” (Fassin, 2009:52). Entretanto, Fassin (2009) apresenta seu próprio repertório
conceitual, introduzindo um novo conjunto de conceitos operadores para pesquisas na
área, como o de “biolegitimidade” e “política da vida”:
“Eu tentei seguir o trabalho de Michel Foucault
sobre biopolítica – a qual eu reformulei como
políticas da vida – e biopoder – ao qual substituí
por biolegitimidade. É crucial para mim não só do
ponto de vista da exegese do seu trabalho – o que
outros já fizeram com talento – mas da perspectiva
dos usos do seu pensamento nas ciências sociais –
e eu acrescentaria, na vida cotidiana também. O
que as políticas fazem para a vida – e vidas – não é
apenas uma questão de discursos, estratégias e
táticas. É também uma questão dos modos
concretos pelos quais os indivíduos e grupos
sociais são tratados, segundo quais princípios e em
nome de qual moral, implicando-se nisso
desigualdades e falsos reconhecimentos. Em outras
palavras, para prolongar a referência
Wittgensteiniana, é ainda uma questão de forma,
mas é também uma questão de vida” (Fassin,
2009:57).
11
Antropologia Moral e sua Reflexividade
12
próprio trabalho investigativo em torno do tema e não apenas dirige-se ao estudo
antropológico da moral. É nesse sentido que essa proposta também deve enfrentar
reflexivamente as próprias implicações morais de sua existência como um projeto
imanente a sua própria configuração (Fassin, 2012).
O segundo deslocamento se dá a partir do contraste entre a sua elaboração de
uma “antropologia moral” com aquelas que se definem a partir do recorte em torno das
“moralidades” – como nos exemplos mais clássicos dos trabalhos de Durkheim (2008) e
nas propostas mais recentes divulgadas por Howell (1997), Zigon (2007) e (2008). Na
entrevista presente neste livro, Fassin destaca exatamente a ruptura com esse tipo de
abordagem. Para o autor, as moralidades estão incluídas no escopo de sua proposta, mas
não são suficientes para defini-la. Isto porque o estudo das “moralidades” estaria
confinado a análise das configurações locais de normas, valores e emoções e/ou de sua
comparação – em suma, o domínio mais clássico das reflexões sobre “cultura” e
“diversidade cultural”. As “questões morais” - foco privilegiado da antropologia moral -
excedem tais domínios e põem em evidência a importância de uma analítica que as
possa entender no entranhamento com as dimensões políticas, religiosas, econômicas e
históricas nas quais são produzidas (Fassin, 2012 e Fassin e Lézé, 2013). É nesta
direção que, na entrevista presente neste livro, também diferencia o seu trabalho sobre o
assunto das perspectivas foucaultianas em relação às formas de subjetivação e a
conformação de sujeitos éticos.
As decisões com relação às práticas humanitárias, por exemplo, seriam
exemplos da interação e imbricamento entre os domínios daquilo que se chama de
moral, da política, da história (Fassin, 2007a e 2010a; Fassin e Rechtman, 2009 e Fassin
e Pandolfi, 2010). Embora extensa, a seguinte citação é reveladora do objeto da
antropologia moral:
“A antropologia moral lida com o modo como as
questões morais são colocadas e endereçadas ou,
simetricamente, como questões não morais são
reconfiguradas como morais. Ela explora como as
categorias pelas quais nós apreendemos o mundo e
identificamos as comunidades morais que
construímos, examina as significações morais das
ações e o trabalho moral dos agentes, analisa os
assuntos morais e os debates morais em nível
individual e coletivo. Ela se preocupa com a
criação de vocabulários morais, a circulação de
valores morais, a produção de sujeitos morais e a
regulação da sociedade através de injunções
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morais. O objeto da antropologia moral é a
produção moral do mundo” (Fassin, 2012:05). .
14
práticas humanitárias são, ao mesmo tempo, uma biopolítica (dirigida à promoção da
vida de determinadas “populações”) e uma política da vida (ordinariamente realiza uma
relação entre a vida como valor supremo e as diferenciações necessárias entre as vidas
particulares dos atendidos) (Fassin, 2008). A antropologia moral, de acordo com Fassin,
deve enfrentar tais complexidades modalidades compreensivas dos modos e sentidos de
valorações e diferenciações; para tanto, a noção de “economia moral” é um potente
instrumento analítico.
Em sua etnografia sobre as formas de patrulhamento da política francesa, Fassin
(2011) emprega a noção de “economia moral” para compreender um conjunto de
valores e afetos que permitem dar inteligibilidade a maneiras de ação que, de outra
forma, pareceriam imorais. Para o autor, essa economia moral coloca em tensão dois
elementos: de um lado, um princípio de justiça que confronta um ideal de punição de
delinquentes e uma realidade de exigências dos procedimentos judiciários e, de outro
lado, uma lógica do ressentimento que se preocupa menos com os magistrados e com a
sociedade como um todo, fomentada por uma frustração de constatar a ingratidão da
população e a ineficácia dos juízes (Fassin, 2011:297). Destaca Fassin:
“A tensão entre um princípio de justiça em
desacordo com a ordem democrática (não é
suposto que a polícia faça justiça “com as próprias
mãos”) e uma lógica do ressentimento sobre o
papel atribuído a eles (fazer o trabalho sujo de
repressão sem ter realmente os meios para tanto) é
a responsável pelo que se observa no cotidiano do
trabalho policial. A economia moral do trabalho
policial faz eco a um conjunto de representações
sociais do desvio que, ao longo das últimas
décadas, foram profundamente transformados”
(Fassin, 2011:297).
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A “Etnografia Pública”: uma mensagem (não só) para antropólogos e
antropólogas
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o trabalho acadêmico e o de vice-diretor da organização humanitária Médicos Sem
Fronteiras – já revela tais dimensões. Entretanto, é decididamente como acadêmico e
antropólogo que Fassin, especialmente nas suas últimas publicações (Fassin, 2011;
Fassin, 2013a e Fassin, 2014), vem insistindo na produção de uma antropologia que,
não apenas na conformação de seus objetos e preocupações de pesquisa, mas também na
própria produção de formas de escrita e comunicação, dirija-se a um público mais
amplo do que aquele dos círculos acadêmicos, com vistas à circulação de conhecimento,
debate e crítica pública. Nesse sentido, o prólogo e o epílogo de seu livro, espaços em
que disserta sobre os modos pessoais e familiares de afetação pelo complexo cenário
das políticas francesas de segurança, é bem mais do que um artifício literário: revela-se
como uma estratégia política inclusiva dos leitores nas interrogações sobre as maneiras
das relações sociais na sociedade francesa. Como destaca na entrevista neste livro
publicada:
“Eu não queria escrever mais uma vez sobre „eles‟,
isto é, os jovens, as minorias, os imigrantes. Eu
queria mudar – quase por surpresa – essa relação
confortável com nosso campo e dizer: „isso diz
respeito a nós todos, isso é sobre a sociedade que
fizemos e aceitamos hoje, com alguns sendo
intimidados, insultados, brutalizados, racializados,
ao passo que outros olham em outra direção”
(Fassin, nesta publicação).
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São exatamente tais aspectos que Fassin (2013a) ressalta ao relacionar tal
problemática com sua pesquisa em torno das políticas de segurança pública na França.
Afirma que a abordagem etnográfica diferencia-se das usuais análises sociológicas que
trabalham com questionários e se restringem frequentemente aos discursos e, de outro
lado, das atividades dos jornalistas que, ao tratar do tema, usualmente acompanham uma
noite apenas de vigilância policial. Em contraste com esses modos investigativos, o
acompanhamento em longo prazo das longas noites de patrulhamento policial permitiu
ao antropólogo compreender a rotina tediosa da vigília e seus efeitos na realidade
mundana de humilhação e checagem de pessoas, que se antecipavam a qualquer registro
de infração.
Uma cena de sua etnografia é trazida, pelo autor, para revelar tais aspectos: após
muito tempo apenas circulando de carro pela periferia com ruas vazias, numa noite a
ronda policial tediosa é finalmente rompida quando os policiais veem um grupo de
jovens apenas conversando na calçada e decidem abordá-los. Foram quinze minutos de
pesquisa corporal em busca de materiais não legalmente permitidos: bolsos esvaziados,
braços e pernas separados para permitir melhor investigação. Todo o procedimento
realizou-se em silêncio e nada de ilegal foi encontrado. Os policiais deixaram os jovens
visivelmente aborrecidos, salienta Fassin (2013a). E completa: “Em nossa volta para o
veículo, nós nos viramos e os vimos indo embora”. „Nós fodemos a festa deles‟,
declarou um policial, com satisfação” (Fassin, 2013a:633).
Para o autor, a potência política da simples descrição desse pequeno momento na
vida dos jovens habitantes de periferia vividamente expõe a textura das relações sociais
experimentada por esses e produz a visibilidade de suas implicações políticas e morais.
Essa seria uma forma de presença sensível da etnografia, em oposição ao
distanciamento das generalizações teóricas ou argumentações abstratas (Fassin, 2013a).
Contudo, essa é apenas uma das perspectivas pelas quais a etnografia pode ser analisada
– a escrita antropológica. De acordo com Fassin (2013b), é possível considerar três
diferentes perspectivas complementares: o trabalho de campo, a escrita antropológica e
sua tradução, apropriação e transformação na esfera pública. O que é interessante nessa
colocação é que a etnografia não se finaliza na escrita antropológica ou mesmo na
recepção dos dados, mas se dinamiza através dos debates públicos que incentiva
realizar: “Através de suas múltiplas traduções, a etnografia deve permanecer um objeto
vivo” (Fassin, 2013b:124). Obviamente, tais perspectivas estão relacionadas e o modo
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como o trabalho de campo é realizado, as estratégias da escrita e as suas apropriações na
esfera mais ampla do que os círculos acadêmicos devem ser pensados em conjunto.
O uso de narrativas, a descrição das cenas, a forma de colocação das referências
e debates teóricos apenas em notas do texto, a aproximação com outros materiais não
costumeiramente chamados a dialogar nos textos antropológicos, como cenas de filmes
e seriados de televisão, por exemplo, foram assumidos por Fassin (2013a e 2014) como
modos estratégicos de tornar seu livro sobre policiamento na França acessível para um
público amplo. A sua presença em debates sobre segurança pública, os editoriais
escritos para jornais de grande circulação, da mesma forma, também se constituíram em
procedimentos de popularização – e politização – do trabalho antropológico. Sem
dúvida, para o autor, há riscos de simplificação e de que a leitura de entrevistas
substitua a detalhada apreensão dos argumentos da própria etnografia estão presentes
nessa postura. Entretanto, Fassin (2013a) considera que há recompensas significativas
na ampliação dos públicos a que as etnografias se dirigem, fundamentalmente colocadas
na inserção, nos debates públicos, das questões e problemáticas discutidas a partir das
etnografias (Fassin, 2013a).
Neste âmbito de reflexões, embora clame por uma antropologia com capacidade
de falar mais sobre as experiências das pessoas, para além de sua configuração como
sujeitos criados a partir de discursos e políticas – o que poderia ser aproximado das
narrativas ficcionais, eficazes na capacidade de evocar a experiência dos sujeitos –
Fassin (2014) acrescenta que a potência etnográfica reside na articulação entre realidade
e certo modo de construção de verdade. Isto é, reside não só em sua capacidade de
permanecer fiel às vidas reais dos sujeitos investigados, mas no tipo de verdade que
constrói, na qual se articulam muitos níveis de realidades. É nesta medida que a
etnografia deve atender a uma dupla exigência: de compreensão – desafio de estudar
uma experiência de fazê-la funcionar em cenários mais amplos de debate - e de
veridição, no sentido de responsabilidade pela enunciação pública de verdades que,
embora parciais, não são menos empírica e teoricamente fundamentadas (Fassin, 2011).
Revela Fassin (2013b) que, no que se refere à escrita etnográfica, lhe interessa
menos discutir as estratégias de textualização em termos de modos de representação das
experiências, do que os riscos implicados em tal tarefa. Sua preocupação maior reside
no incômodo com outras abordagens que, segundo o autor, arriscam realizar somente
uma paráfrase do que os agentes fazem e dizem (a qual localiza nas correntes
perspectivas pragmatistas francesas da sociologia) ou, por outro lado, arriscam a
19
colocar-se no papel de puras denúncias das complexas realidades sociais (como algumas
perspectivas inspiradas no trabalho de Pierre Bourdieu). No lugar dessas propostas,
Fassin, na entrevista que está neste livro publicada, assinala a aposta na “perspectiva
crítica”. Em texto sobre o assunto, explicita que o seu entendimento de “crítica” associa
a ideia foucaultiana de “deslocamento das linhas do óbvio”, com a utilização da alegoria
da caverna, de Platão (Fassin, 2013b:123), também trazida evocativamente na entrevista
presente neste livro, para explicar sua postura intelectual.
O autor utiliza-se dessa metáfora para situar a crítica como uma posição no
limiar da caverna, pela qual o pesquisador seria hábil em constantemente situar-se
dentro da caverna, junto à verdade daqueles que estuda e com quem interage durante o
trabalho de campo, e fora da caverna, para relacionar as perspectivas dos atores com
cenários mais amplos que tais atores podem perceber, mas nem sempre formular
criticamente (ou não conseguem tornar essas críticas audíveis a um público maior).
Como explica o autor em trecho da entrevista neste livro publicada:
“Localizar-se no limiar da caverna é uma posição
ética e epistemológica desconfortável, mas acredito
ser aquela na qual se pode expressar e testar o
respeito pelos agentes, assim como o próprio
compromisso com as ciências sociais” (Fassin,
nesta publicação).
Aïssa Ihich, aos dezoito anos, em maio de 1991; Youssef Khaïf, vinte e três
anos, em junho de 1991; Mohamed Bahri, dezoito anos, em outubro de 1992; Makome
M‟Bowole, desessete anos, em abril de 1993; Ibrahim Sy, dezoito anos, em janeiro de
1994; Khafif Amamra, vinte anos, em abril de 1994; Fabrice Fernandez, vinte e quatro
anos, em novembro de 1997; Abdelkader Bouzine, dezessete anos, em dezembro de
1997; Habib Ould Mohammed, dezessete anos, em dezembro de 1998; Riad Hamlaoui,
vinte e cinco anos, em abril de 2000; Mohamed Berrichi, vinte e sete anos, em março de
2003; Bouna Traoré, quinze anos, e Zyed Benna, dezessete anos, em outubro de 2005;
Mohsin Sehhouli, quinze anos, e Laramy Samoura, dezesseis anos, em novembro de
2007; Mohamed Benmouna, vinte e um anos, em julho de 2009.
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Os nomes acima, de origem árabe ou subsaariana, descrevem as mortes urbanas
ocorridas nas cidades da França, no período de vinte anos (1990-2010), em decorrência
de suas interações com a polícia. Fassin (2011), ao nominá-las, inscreve, através desses
nomes e corpos, a memória da dor, o cotidiano da diferenciação das vidas e os
processos de estigmatização sócio-racial na história francesa. Ao mesmo tempo em que
inscreve, enuncia: essas vidas valem e não se reduzem a números que compõem uma
“população”, seja de jovens imigrantes, seja de moradores de periferias, seja de vidas
matáveis. Essa enunciação também visibiliza; traz a banalidade das cenas das
interpelações ordinárias da polícia, realizadas nas periferias, para espaços públicos mais
visíveis: as universidades, jornais e outros veículos de comunicação, salas de aula,
escritórios das delegacias e de seus altos postos, etc. Fassin (2011) proclama a violência
ordinária e soberana das forças da ordem e convoca ao seu debate público.
Esse artigo se iniciou com a descrição de notícias referentes à prisão de dois
jovens negros, nus, em postes nas calçadas da cidade do Rio de Janeiro, publicadas no
início de 2014. Tais procedimentos punitivos não foram realizados pela polícia, mas sim
por grupos de pessoas que, por populares, foram intitularam de “justiceiros”. Esse grupo
supostamente agiria na ausência ou fraqueza da lei para manter a “ordem”. Os
“justiceiros” seriam, assim, forças da ordem, nessa economia moral próxima àquela dos
policiais franceses, estudados por Fassin (2011). Não temos seus nomes, entretanto. Do
primeiro adolescente, a última notícia que se teve é que ele foi pego pela polícia, cerca
de vinte dias depois, ao assaltar turistas no Rio de Janeiro: “Menor que foi preso a poste
é apreendido após assalto no Rio de Janeiro” (O Dia, em 18/04/2014)9. Do segundo
homem, continua o mistério sobre sua identidade; apesar da foto, nada se sabe sobre ele
e ele então permanece como um corpo nu e negro estendido no chão.
Cada um desses corpos fala, então, dos espaços em que a população de homens
jovens, negros e pobres, é situada no Brasil. Mas essa interpelação não se dá sem
disputas e a própria ativista e artista plástica Yvonne Bezerra de Mello, que salvou o
adolescente de 15 anos preso ao poste no fim de janeiro de 2014, convoca a lembrança
da humanidade (quase) esquecida: “... estamos falando de seres humanos” (O Globo, em
10
03/02/2014)” . Yvone, tal como Fassin, expõe publicamente a soberania
9
Fonte: http://odia.ig.com.br/noticia/rio-de-janeiro/2014-02-21/menor-que-foi-preso-a-poste-e-
apreendido-apos-assalto-na-zona-sul.html, consultado em 10/04/2014.
10
Fonte: http://oglobo.globo.com/rio/adolescente-atacado-por-grupo-de-justiceiros-preso-um-poste-por-
uma-trava-de-bicicleta-no-flamengo-11485284, consultado em 10/04/2014.
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espetacularizada das forças da ordem e convoca o debate sobre as formas de valorar e
diferenciar vidas.
Os paralelos em relação aos cenários brasileiro e francês não cessam nessas
aproximações e, certamente, os próprios conceitos e modos analíticos de Fassin que,
neste texto, foram percorridos, são meios possíveis de realizar tal tarefa. Certamente, as
diferenciações presentes entre os dois cenários de problematização também são muitas e
algumas delas foram trazidas pelo autor, na entrevista neste livro publicada, ao afirmar
que cada contexto nacional tem suas especificidades em termos de imposição da lei e a
variação das políticas de segurança urbana. Entretanto, é inegável que a etnografia
presente no livro “La Force de L‟Ordre” (Fassin, 2011), assim como outros trabalhos do
autor neste texto citados, não só contribuem para refletir sobre a realidade brasileira,
mas impõem tal tarefa. É neste sentido de produção de uma ética de mobilização que
gostaria de ressaltar a potência dos escritos de Fassin, no encerramento desse texto.
Longe de ser exclusivamente um instrumento para decifrar o mundo, nos termos
descritos por ele próprio (Jaime e Lima, 2011), as etnografias de Fassin – tanto nas suas
escolhas dos objetos, como nos formatos textuais da escrita, assim como nos modos
analíticos em que problematiza os valores e desigualdades de nossas políticas da vida -
tornam-se mecanismos para incitar novos modos de engajamento no mundo em que
vivemos. Os seus conceitos operadores – “biolegitimidade”, “políticas da vida”,
“economia moral”, “governo humanitário”, “antropologia moral”, “etnografia pública” -
são contribuições para enfrentar tais desafios, do ponto de vista de certa antropologia.
Contudo, essa é uma proposição ética que se impõe não apenas antropólogos e
antropólogas, ou mesmo nem apenas para o conjunto de disciplinas envolvidas na
discussão das formas e valores associados ao “viver junto”; trata-se de um chamado
legitimamente “público”, semelhante aquele feito por Yvone, ao contrariar certa
“justiça” que inscreve nos corpos de jovens cariocas seu lugar na ordem social.
Nas palavras iniciais do capítulo final do livro sobre as políticas em torno da
Aids na África do Sul, Fassin (2007b) recupera alguns trechos do poema “A Era da
Ansiedade”, do poeta inglês W. H. Auden. No trecho escolhido, o poeta fala sobre
certos momentos “quando o processo histórico colapsa” e o mundo oscila entre “tempos
de paz” e “tempos de guerra”. Fassin retoma tais ideias e salienta que a ansiedade
contemporânea poderia ser compreendida como um período intermediário, exatamente
pela tensão entre o que é protegido e o que é abandonado; entre pelo que se luta e pelo
que é dado como perdido: “Em um mundo de violência e desigualdade, nós só podemos
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estar assegurados na condição de ocultar de nós mesmos o preço a ser pago por essa
segurança” (Fassin, 2007b:272).
No último parágrafo do livro, entretanto, Fassin (2007b) aponta para outros
horizontes e possibilidades. Propõe substituir “ansiedade” por “inquietação”, no sentido
dado por John Locke, como um sentimento de desconforto intelectual proveniente da
consideração do estado do mundo em que se vive. Fassin recupera a palavra francesa
“inquiétude”, pois segundo ele traz melhor o sentido ativo e não afetivo desse conceito.
Deixo aqui suas evocativas palavras finais, como modo de encerrar também este texto:
“Enquanto a era da ansiedade divide o mundo e
produz duas ordens contraditórias e opostas de
inteligibilidade, a era da inquietude clama por um
mundo compartilhado que, apesar disso, permanece
aberto a diferentes leituras e entendimentos
divergentes. Ansiedade, porque está relacionada
com desinteresse pelos outros, paralisa. Inquiétude,
quando está associada com a preocupação com
outros, move as pessoas a agir. É um desafio aos
antropólogos. E um dever para os cidadãos do
mundo” (Fassin, 2007b:279).
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