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O trabalho de Peter Bürger

sobre as vanguardas históricas


estabelece um diálogo com Lukács,
Adorno e Benjamin, e revisita
as teorias estéticas de Kant,
Schiller e Hegel para propor,
à luz da Teoria Crítica, uma nova
compreen­s ão dos movimentos
artísticos radicais do início do
século xx, sobretudo o dadaísmo
e o primeiro surrealismo. Para
teoria da van
tanto, utiliza uma “ciência crítica
da literatura” que deve investigar
os mecanismos de produção,
guarda
distribuição e recepção do que
o autor chama “instituição arte”.
Mais do que a análise de
movimentos específicos, esta
obra criou novas categorias e
tornou-se um marco não só para

g e r
os estudos das vanguardas, como

ü r
para a própria teoria da arte.

er b
A discussão das ideias de Bürger

pet
segue hoje tão válida e pertinente
como em 1974.

Tradução josé pedro antunes


Este é um livro datado no bom sentido. Teoria da van- sem torre de marfim, dos apóstolos da pós-moderni-
guarda foi escrito sob o signo de mais uma derrota dade, dos vanguardistas eternos. Mais insistentes têm
histórica, após o fim dos acontecimentos de maio de sido as reações contra a crítica enérgica às neovan-
1968 e o fracasso do movimento estudantil no início guardas (a vanguarda no poder e no mercado), tra-
dos anos 70. Enfeitiçado por Adorno e ao mesmo tadas por Bürger como regressivas, por promoverem
tempo empenhado em superá-lo, impressiona o ob- a reauratização da obra de arte e sua institucionali-
sessivo desacordo de Peter Bürger com a teoria ador- zação.
niana, da qual as suas formulações dependem, mas à Para quem estuda vanguarda nas circunstâncias
qual contrapõe as teses de Walter Benjamin, Marcuse, brasileiras, a contribuição de Bürger pode se tornar
Brecht, entre outros, no intuito de discutir a pertinên- imprescindível porque desvela um funcionamento
cia do conceito de autonomia estética (preservado por estético e político completamente diverso daquele do
Adorno) para a explicação dos movimentos de van- contexto europeu. Ensina-nos a periodizar, a precisar
guarda. Interessa-lhe identificar uma relação indis- os conceitos, a articular a sequência histórica de blo-
sociável de tensão entre duas tradições da moderni- cos grandes – integrando dialeticamente a ruptura à
dade, que antes se definiam convencionalmente uma tradição, a contradição explosiva à rotina do contexto.
contra a outra: a estética da autonomia, cujo auge foi Desde o tempo do modernismo, o nosso equivalente
alcançado com o esteticismo do final do século xix, e vanguardista busca a superação do subdesenvolvi-
o impulso vanguardista de superação da autonomia mento, a modernização e a atualização cultural: esta
e recondução da arte para a prática da vida. A van- é a sua fusão arte-vida. A experimentação formal
guarda é o ponto de chegada da autocrítica da arte possui aí um sentido nacional e, quase diria, civili-
como instituição na sociedade burguesa, núcleo das zatório, antecipando com otimismo processos técni-
teses propostas por Bürger, que privilegiam o Dadá e cos e sociais que não se cumpriram na vida prática.
o primeiro surrealismo. Daí extrai interpretações no- Tudo isso compõe uma feição engajada e construtiva
táveis sobre o fracasso das vanguardas e outros resul- de outro tipo. Até onde já pude verificar, as categorias
tados que, embora problemáticos, incitam sem parar centrais do livro de Bürger ajudam também a decifrar
o debate, seja para a definição da obra não orgânica, um fenômeno brasileiro como o das vanguardas poé-
ou para a difícil e interminável querela vanguarda x ticas dos anos 1950 (poesia concreta e derivados), que
engajamento, cujas noções vão ficando cada vez mais condensam num só impulso esteticismo, vanguarda,
irreconhecíveis e hoje pedem, mais do que em 1974, engagement e neovanguarda. Ou seja, concentram
reformulação. num bloco híbrido muitas temporalidades, cuja di-
Teoria da vanguarda tem gerado viva polêmica nâmica de acumulação e superação levou na Europa
desde que apareceu. Mas resistiu à passagem do quase um século para se completar.
tempo, instigando a discussão sobre a vanguarda Precisamos, portanto, ler e reler Teoria da van-
histórica e sobre as práticas artísticas do segundo guarda com um espanto um pouquinho bárbaro e
pós-guerra. De onde vêm as objeções? Dos esteticis- muito nosso.
tas sempre devotados a cultivar a autonomia, com ou iumna maria simon
3 teoria da vanguarda e ciência crítica da literatura

teoria da
vanguarda
peter bürger
tradução José Pedro Antunes
Observação preliminar 7
Em lugar de um prefácio à edição brasileira 9

teoria da vanguarda

Reflexões preliminares para uma


ciência crítica da literatura 17
1 Teoria da vanguarda e ciência crítica da literatura 41
2 Sobre o problema da autonomia da arte
na sociedade burguesa 85
3 A obra de arte de vanguarda 127
4 Vanguarda e engajamento 183

Po sfácio à segunda edição 211


Bibliografia 223
Nota do tradutor 233
Sobre o autor 247
Índice remissivo 251
7

observação
preliminar

1  Peter Bürger, Se aceitarmos que a teoria estética só é substan-


Der französische cial na medida em que reflete o desenvolvimen-
Surrealismus. Studien
zum Problem der to histórico do seu objeto, então uma Teoria da
avant­gardistischen vanguarda é hoje um componente necessário das
Literatur. Frankfurt
reflexões teóricas sobre arte.
am Main: Suhrkamp,
1971. Retomo aqui os O presente trabalho tem como ponto de par-
trabalhos pesquisados tida os resultados do meu livro sobre o surrealis-
sobre o problema
da vanguarda na mo.1 Para, na medida do possível, evitar referên-
preparação de cias individuais no que se segue, remeto à leitura
pesquisa do livro
das análises de obras dos surrealistas contidas
do surrealismo.
Especialmente: neste livro. É outro, porém, o status das reflexões
• Walter Benjamin,
aqui expostas. Elas não pretendem ocupar o lu-
“Der Surrealismus.
Die letzte gar das necessárias análises individuais, mas ofe-
Momentaufnahme recer um marco categorial com cujo auxílio tais
der europäischen
análises possam ser empreendidas. Os exemplos
Intelligenz”, in
Angelus Novus. da literatura e das artes plásticas aqui introdu-
Ausgewählte zidos não devem ser entendidos como interpre-
Schriften 2. Frankfurt
am Main: Suhrkamp, tações histórico-sociológicas de obras individuais,
1966, pp. 200-15 [ed. mas como ilustrações de uma teoria.
bras.: “O sur­realismo.
O trabalho é resultado do projeto Avantgarde
O último instantâneo
da inteligência und bürgerliche Gesellschaft [Vanguarda e socie-
8 9

dade burguesa], desenvolvido na Universidade de em lugar de um prefácio


europeia”, in Magia e Bremen, do semestre de verão de 1973 ao de 1974. à edição brasileira
técnica, arte e política. Sem os estudantes que colaboraram no projeto e
Obras escolhidas i,
trad. Sérgio Paulo
sem o interesse demonstrado pelo objeto, o traba-
Rouanet. São Paulo: lho não seria possível. Alguns capítulos do trabalho
Brasiliense, 1994, pp.
foram discutidos com Christa Bürger, Helene Harth,
21-35].
• Theodor W. Adorno, Christel Recknagel, Janek Jaroslawski, Helmut Lam-
“Rückblickend auf precht e Gerhard Leithäuser; a eles devo agradecer
den Surrealismus”,
in Noten zur
pelas observações críticas.
Literatur i. Frankfurt Prezado tradutor,
am Main: Suhrkamp,
1963, pp. 153-60
[ed. bras.: “Revendo O senhor me pede para escrever “um breve prefá-
o surrealismo”, in cio à edição brasileira”, no qual eu enfoque o sig-
Notas de literatura
1, trad. Jorge de
nificado do livro para a sua recepção hoje. Devo
Almeida. São Paulo: confessar que é difícil atender a tal pedido.
Duas Cidades/
O autor não é nenhum leitor privilegiado do seu
Editora 34, 2003, pp.
135-40]. texto. Sem dúvida, como qualquer outro leitor, ele
• Hans Magnus tem o direito de participar da sua interpretação e de
Enzensberger,
“Die Aporien der
sua reinterpretação (e, sempre, toda interpretação
Avantgarde”, in é também uma reinterpretação); mas não deveria,
Einzelheiten ii.
na sua intervenção, pretender ser algo assim como
Poesie und Politik.
Frankfurt am Main: o proprietário do sentido correto do texto. Ocorre,
Suhrkamp, 1964, pp. porém, ser extremamente difícil renunciar a essa
50-80.
• Karl Heinz Bohrer,
pretensão. Daí, justamente, a explicação para o meu
“Surrealismus und desconforto. Não posso falar sobre Teoria da van-
Terror oder die
guarda como se falasse sobre o livro de um outro, e
Aporien des Juste-
milieu”, in Die sobre ele não quero falar como autoridade que de-
gefährdete Phantasie, termina o que o texto diz. O senhor vê que eu, para
oder Surrealismus
und Terror. Munique:
escrever um prefácio que corresponda às minhas
Hanser, 1970, pp. 32-61. representações desse gênero impossível, a mim
10 11 em lugar de um prefácio

mesmo teria de ludibriar, e tentar ler o livro como no – cuja crítica ao fantasmagórico da música de
sendo de um outro – uma ideia, é bom que se diga, Wagner apresenta um paralelismo integral com o
razoavelmente aventureira. projeto de Benjamin –, depois de retornar do exílio
Se, quinze anos depois do seu aparecimento, o li- americano, não deixa nenhuma dúvida sobre o fato
vro continua a ser lido, não será, supostamente então, de que, para ele, o status da autonomia é a condi-
em razão da tentativa nele empreendida de extrair ção de possibilidade da arte na sociedade burgue-
do desenvolvimento da arte na sociedade burguesa sa tardia. Assim, as categorias da estética idealista,
as categorias da estética – e isso quer dizer histori- que Benjamin queria desativar com um ato de vio-
cizá-las de maneira radical? Pode ser que o contexto lência, acabaram por ser reintroduzidas; com o que,
histórico e teórico no qual essa tentativa se desenvol- de um ponto de vista intrinsecamente estético, o im-
ve (demarcação de fronteiras com relação ao mate- pulso vanguardista de superação perdura dentro da
rialismo vulgar e retorno às reflexões metodológicas categoria da ruptura. Apesar dos inúmeros motivos
formuladas por Marx na introdução aos Grundrisse), intelectuais comuns, seria praticamente impossível
pelo menos na República Federal da Alemanha, te- conceber uma oposição mais inconciliável do que
nha-se perdido de vista. Mas os textos teóricos, pelo essa que separa as teses de Benjamin sobre a obra
visto, costumam – respectivamente, quando em con- de arte da Teoria estética de Adorno.
textos modificados – desenvolver novos potenciais de A Teoria da vanguarda – é o que me parece – ten-
significado. No caso de Teoria da vanguarda, é possí- ta fazer dessa oposição o objeto de uma construção
vel que isso decorra de a obra resolver teoricamente a teórica. Reflete o projeto vanguardista de uma re-
relação de tensão entre duas tradições da modernida- condução da arte à práxis de vida, não ao deduzir
de estética, as quais, pelo menos no campo da teoria, desse projeto um programa estético (como o havia
antes se definiam uma contra a outra. Falo do impul- feito Benjamin), mas ao tentar compreender o seu
so vanguardista de superação da autonomia da arte, fracasso. Aí começa a história dos mal-entendidos
que Benjamin absorveu em suas teses sobre a obra de produtivos, e não se trata de “corrigi-los”, mas de
arte, e da modernidade, que – baseada na estética da acatá-los. Tudo depende de se pensar um conceito
autonomia – está centrada na categoria de obra e tem de fracasso que seja complexo e em si mesmo cheio
em Adorno o seu teórico mais significativo. de contradições, que preserve tanto as experiências
Enquanto Benjamin persegue (ainda que repri- vividas no processo do fracasso quanto a consciên-
mido) o projeto de uma arte pós-aurática, no qual se cia de que o projeto – de uma estética dissolvida no
conjugam motivos brechtianos e surrealistas, Ador- cotidiano, enquanto projeção de um alvo a ser atin-
12 13 em lugar de um prefácio

gido – guarda ainda o seu sentido, mesmo quando a experimentamos com o seu auxílio [cf. meu ensaio
estetização universal do cotidiano (como nos Esta- sobre Joseph Beuys, Post­moderne: Alltag, Allegorie
dos Unidos) de muito parece tê-lo destituído de valor. und Avantgarde, 1987]. Algo mais mudou desde os
No fracasso do ataque dos movimentos históri- movimentos históricos de vanguarda: se o esteticis-
cos de vanguarda à instituição arte, três momentos mo ainda podia responder de forma relativamente
se cruzam: 1. o projeto historicamente necessário de concisa à questão sobre o que é a arte, isso agora já
uma superação da arte na práxis de vida, que é, em não confere mais; tal questão é lançada hoje aos pró-
igual medida, resultado da lógica de desenvolvimen- prios produtores. Se estes, dentro da arte institucio-
to da arte (o problema do esteticismo), como da di- nalizada como autônoma, precisavam estar sempre
nâmica do desenvolvimento da sociedade burguesa a determinar a sua relação com a instituição, hoje,
(crise desta sociedade na Primeira Guerra Mundial); antes de mais nada, veem-se na necessidade de, por
2. a impossibilidade de realizar tal projeto sob as con- meio do seu trabalho, dar provas da possibilidade da
dições sociais dadas; 3. e, finalmente, a capacidade de arte. Enquanto o mercado da arte se transforma cada
resistência da instituição, cuja superação, historica- vez mais em campo de especulação do capital inter-
mente, parecia estar na ordem do dia. O fracasso do nacional, virtualiza-se o marco normativo dentro do
projeto vanguardista não significa um retrocesso às qual trabalha o artista individual. Aquilo que hoje se
condições de partida; antes, traz como consequência discute sob o infeliz verbete da “pós-modernidade”
uma transformação da instituição arte, que talvez não passa de um velho problema da modernidade,
possa ser assim formulada: a instituição arte conti- evocador da famosa-famigerada proposição hegelia-
nua existindo, mas como uma instituição abalada (o na do fim da arte: a sociedade burguesa não possui
“Irrealis”, em Adorno, dá conta dessa formulação). As uma arte que lhe seja genuína, mas – contra Hegel e
categorias da estética idealista não foram simples- com Adorno, seria o caso de adicionar um comple-
mente tornadas válidas mais uma vez – elas per- mento à proposição – precisa dela.
duram como categorias destituídas de valor. Joseph Terei alcançado a mágica de ler Teoria da van-
Beuys concebe trabalhos alegóricos; de acordo com guarda como se fosse o livro de um outro? Receio
a sua intenção, são signos que nos devem transmitir que não. Tudo o que consegui foi aproximar o velho
uma mensagem, mas atuam como símbolos. Quer di- texto de uma perspectiva que Prosa der Moderne
zer, nós os lemos no segundo plano de um esquema (1988) justamente acaba de tornar definitiva.
fomentador de vivências, que sabemos não possuir
outro fundamento a não ser a própria vivência que Bremen, fevereiro de 1989
g u a r d a
d a v a n
t e o r i a
40 41

teoria da
vanguarda
e ciência
crítica da
literatura

i  a historicidade das categorias estéticas

A história é inerente à teoria estética.


Suas categorias são radicalmente históricas.
Adorno1

1
Por mais que possam aspirar à validade supra-
-histórica do conhecimento do seu objeto, as
teorias estéticas são claramente marcadas pela
época à qual devem seu surgimento. Eis uma
conclusão a que se pode chegar com relativa faci-
lidade, o mais das vezes a posteriori. Se as teorias
estéticas são históricas, então uma teoria crítica
da arte, que se esforça no sentido da elucidação
do seu próprio fazer, precisa reconhecer sua pró-
1   T. W. Adorno, op. cit., pria historicidade. Em outras palavras, cumpre a
p. 532. função de historicizar a teoria estética.
42 43 teoria da vanguarda e ciência crítica da literatura

Em primeiro lugar, será necessário esclarecer o em ser expressão de um Zeitgeist (este, o ponto de
que significa historicizar uma teoria. Não significa vista historicista), nem no fato de incorporar frag-
traduzir para a teorização estética do presente o mentos de teorias do passado (história como pré-
modo de observação historicista, que compreende -história do presente), mas na existência de uma
todos os fenômenos de um período apenas a par- conexão entre o desdobramento do objeto e o des-
tir deste, e que justapõe os períodos individuais dobramento das categorias. Compreender esta co-
em uma simultaneidade ideal (na formulação de nexão significa historicizar uma teoria.
Ranke: “igualmente próximos de Deus”). O falso Contra isso, pode-se objetar que tal empreen-
objetivismo do modo de observação historicista foi dimento necessariamente deva reclamar para si
criticado com razão. Pretender reavivá-lo no plano uma posição extra-histórica, e que a historiciza-
da investigação das teorias seria um absurdo.2 ção, ao mesmo tempo, seja necessariamente uma
2   Sobre a crítica Tampouco pode significar compreender todas as des-historicização. Para dizer de outra forma: a
do historicismo: “A
formações teóricas [Theoriebildungen] do passado constatação da historicidade da linguagem de uma
ingenuidade do assim
chamado historicismo apenas como degraus em direção à própria teo- ciência pressuporia um metanível, a partir do qual
consiste no fato de ele ria. Se vistos deste modo, fragmentos de teorias do se pudesse fazer essa constatação; e esse metanível
se furtar a esta reflexão
e, por acreditar em
passado são descolados do seu contexto original e seria necessariamente trans-histórico (do que re-
sua abordagem inseridos em um novo contexto, sem que sua con- sultaria a tarefa da historicização do metanível, e
metodológica,
sequente mudança de função e de significado te- assim por diante). O conceito de historicização não
esquecer sua própria
historicidade”, in nha sido adequadamente refletida. A despeito de foi introduzido, aqui, no sentido de uma separação
Gadamer, op. cit., p. 283. sua progressividade, a construção da história como de diferentes níveis da linguagem científica, mas
Hans Robert Jauss,
“Geschichte der Kunst
pré-história do presente, característica das classes sim no sentido da uma reflexão que no medium de
und Historie”, in ascendentes, é unilateral no sentido hegeliano da uma única linguagem científica compreende a his-
Literatur­geschichte als
palavra, na medida em que compreende apenas toricidade do seu próprio discurso.
Provokation. Frankfurt
am Main: Suhrkamp, um lado do processo histórico, cujo outro lado se O que se tinha em mente pode ser melhor ex-
1970, pp. 222-26 mantém preso ao falso objetivismo historicista. Por plicado se tomarmos alguns pressupostos meto-
(Análise de Ranke por
H. R. Jauss) [ed. bras.:
historicização da teoria deve-se entender, neste dológicos fundamentais que foram formulados
A história da literatura caso, uma outra coisa: a visão da conexão entre o por Marx na sua introdução à Contribuição à crí-
como provocação à
desdobramento do objeto e o desdobramento das tica da economia política. No exemplo do trabalho,
teoria literária, trad.
Sérgio Tellaroli. São categorias de uma ciência. Entendida deste modo, Marx mostra
Paulo: Ática, 1994]. a historicidade de uma teoria não se fundamenta
44 45 teoria da vanguarda e ciência crítica da literatura

[…] como mesmo as categorias mais abstratas, do progresso do conhecimento lhe parece condi-
apesar de sua validade (exatamente por causa de cionada pelo desdobramento da coisa à qual o co-
sua abstração) para todas as épocas, na verdade, nhecimento se dirige. Quando os fisiocratas desen-
são elas mesmas, na especificidade dessa abstra- volveram sua teoria (na segunda metade do século
ção, igualmente o produto de relações históricas e xviii, na França), a agricultura efetivamente ainda
possuem total validade apenas para e no interior era o setor econômico dominante, do qual depen-
dessas relações.3 diam todos os outros. Por ser economicamente
muito mais desenvolvida, só mesmo a Inglaterra,
A ideia é de difícil compreensão porque, se Marx, onde a Revolução Industrial já se havia instaurado,
por um lado, diz que determinadas categorias sim- tendo-se interrompido assim, tendencialmente, o
ples são sempre válidas, por outro, ele afirma que predomínio da agricultura sobre todos os outros se-
sua generalidade se deve a relações históricas de- tores da produção social, podia permitir o reconhe-
terminadas. A distinção decisiva é, então, entre a cimento, por parte de Smith, de que o trabalho em
“validade para todas as épocas” e o conhecimento geral é criador de riqueza, e não uma determinada
dessa validade geral (nos termos de Marx: “da es- espécie de trabalho. “A indiferença em relação
pecificidade dessa abstração”). De acordo com a a uma determinada espécie de trabalho pressupõe
tese de Marx, só as relações historicamente des- uma totalidade de espécies reais de trabalho bem
dobradas possibilitam conhecimento. No sistema desenvolvida, das quais nenhuma predomina mais
3   K. Marx, Grundrisse monetário, diz ele, a riqueza é compreendida ainda sobre as outras.”4
der Kritik der como dinheiro, o que significa que a conexão entre Minha tese diz, pois, que a conexão apontada
politischen Ökonomie.
Frankfurt am Main/
trabalho e riqueza permanece obscura. Apenas na por Marx no exemplo da categoria do trabalho –
Viena: Europäische teoria dos fisiocratas é que o trabalho vem a ser entre o conhecimento da validade geral de uma
Verlagsanst., 1970
reconhecido como fonte de riqueza. Na verdade, categoria e o desdobramento historicamente real
(reprodução
fotomecânica da não o trabalho como tal, mas uma determinada do âmbito almejado por essa categoria – vale tam-
edição moscovita de espécie de trabalho – a agricultura. Na economia bém para as objetivações artísticas. Também aqui,
1939-41) [ed. bras.:
Contribuição à crítica
inglesa clássica – em Adam Smith –, não mais uma a plena diferenciação dos campos de um objeto é
da economia política, determinada forma de trabalho, mas, sim, o traba- condição de possibilidade para um conhecimento
trad. Maria Helena
lho em geral é reconhecido como fonte de riqueza. adequado do objeto. No entanto, essa plena dife-
Barreiro Alves. São
Paulo: Martins Fontes, Ora, para Marx, esse não é meramente um desen- renciação do fenômeno somente é alcançado na
2003]. volvimento da teoria econômica; a possibilidade 4   Id., ibid., p. 25. sociedade burguesa com o esteticismo, ao qual os
46 47 teoria da vanguarda e ciência crítica da literatura

5   O conceito de desde o Renascimento, da instituição arte (com movimentos históricos de vanguarda contrapõem
movimentos históricos de com a imagem disposta a suas formas específicas
a sua resposta.5
vanguarda aqui utilizado partir de uma perspectiva de organização, como
foi obtido principalmente central. Por esta razão, ele museu e exposição), o Esta tese poderia ser esclarecida na categoria
a partir do dadaísmo e será relacionado entre os expositor do tubo de estufa central “meio artístico”. Com o auxílio desta, pode-
do primeiro surrealismo, movimentos históricos anseia para que sua “obra”
aplicando-se igualmente, de vanguarda, ainda consiga ganhar entrada no se reconstruir o processo artístico da criação como
porém, à vanguarda russa que sem compartilhar museu. Assim, o protesto um processo de escolha racional entre diversos
posterior à Revolu­ção de sua tendência vanguardista acaba por
procedimentos, no qual a escolha se dá em função
de Outubro. O que esses básica (superação da transformar-se em seu
movimentos possuem arte na práxis vital). O oposto. de um efeito a ser atingido. Tal reconstrução da
em comum, sem perder conceito de movimentos produção artística pressupõe não apenas um grau
de vista suas diferenças, históricos de vanguarda
em parte consideráveis, os coloca em oposição a relativamente alto de racionalidade nessa mesma
consiste sobre­tudo na não todas as tentativas neo­­ produção, mas também que os meios artísticos se
rejeição da arte precedente van­guardistas, que se
encontrem livremente disponíveis, isto é, não mais
em sua totalidade, tornaram características
não apenas em seus dos anos 1950 e 60 na presos a um sistema de normas estilísticas, no qual
procedimentos artísticos Europa Ocidental. Embora – ainda que mediatizados – eles se acham encerra-
individuais, consumando as neovanguardas em
assim uma ruptura radical certa medida proclamem dos. É claro que na comédia de Molière são utiliza-
com a tradição; e no fato os mesmos objetivos que dos meios artísticos, tal como em Beckett, digamos;
de esses movimentos, os representantes dos
o fato, porém, de não serem ainda reconhecidos
nas suas mais extremas movimentos históricos de
manifestações, se voltarem vanguarda, não se pode naquela época como meios artísticos pode ser cons-
principalmente contra a mais proclamar, com tatado com uma passada de olhos sobre a crítica de
instituição arte, tal como seriedade, a aspiração
ela se desenvolveu na de uma recondução da Boileau. Nela, a crítica estética é a crítica ainda di-
sociedade burguesa. Com arte à práxis vital dentro reta aos meios estilísticos do cômico grotesco [Gro-
restrições, que deveriam da sociedade constituída
bkomisch], aceitos pela camada social dominante.
ser trabalhadas em depois do fracasso das
pesquisas concretas, o intenções vanguardistas. Na sociedade feudal-absolutista do século xvii fran-
mesmo se aplica também Hoje, se um artista envia cês, a arte ainda se acha inteiramente integrada ao
ao futurismo italiano e ao a uma exposição um tubo
expressionismo alemão. de estufa, de forma alguma estilo de vida da classe superior dominante. Ainda
No que diz respeito ao vai alcançar a intensidade que a estética burguesa – em desenvolvimento no
cubismo, muito embora do protesto dos ready-
século xviii – se liberte das normas estilísticas que
não persiga a mesma made de Duchamp. Pelo
intenção, ele coloca em contrário: enquanto associavam a arte do absolutismo feudal à camada
questão o sistema de o Urinol de Duchamp dominante dessa sociedade, a arte continua a se
representação vigente tencionava uma explosão
orientar pelo princípio da imitatio naturae. Por con-
48 49 teoria da vanguarda e ciência crítica da literatura

seguinte, os meios estilísticos, subordinados que são 6  Cf., entre outros, Assim, quando os formalistas russos conside-
Victor Chklóvski, “Die
a um princípio estilístico (historicamente em trans- ram o “estranhamento” o procedimento da arte,6 o
Kunst als Verfahren”
formação), não possuem ainda a universalidade [1916], in Theorie und reconhecimento da generalidade dessa categoria
de um meio artístico – preso tão somente ao efeito Geschichte der Literatur é possibilitado pelo fato de que, nos movimentos
und der schönen
causado no receptor. Künste. Munique: W.
históricos de vanguarda, o choque do receptor se
Sem dúvida, o meio artístico é a mais geral de Fink, 1969, pp. 3-35. transforma no mais elevado princípio da intenção
todas as categorias disponíveis para a descrição 7   Referências à artística. Tornando-se, de fato, o procedimento ar-
conexão histórica
de obras de arte. No entanto, os procedimentos entre formalismo tístico dominante, o estranhamento pode ser re-
individuais só podem ser reconhecidos como e vanguarda (mais conhecido também como categoria geral. Isso não
precisamente,
meios artísticos a partir dos movimentos históri- futurismo russo):
significa de forma alguma que os formalistas rus-
cos de vanguarda. Pois apenas nos movimentos • V. Erlich, Russischer sos tenham apontado o estranhamento exclusiva-
Formalismus, 2ª. ed.,
históricos de vanguarda os meios artísticos, em mente na arte vanguardista (ao contrário, o Dom
Frankfurt am Main:
sua totalidade, passam a estar disponíveis como Suhrkamp, 1973 Quixote e o Tristram Shandy são objetos privile-
tais. Até esse período do desenvolvimento da arte, [verbete: futurismo]. giados de demonstração em Chklóvski). O que se
• Sobre Chklóvski, cf.
a utilização dos meios artísticos era limitada pe- Renate Lachmann,
afirma é tão somente uma conexão, efetivamente
los estilos de época, um cânone preestabelecido “Die ‘Verfremdung’ necessária, entre o princípio do choque na arte
und das ‘neue Sehen’
de procedimentos permitidos, excedível apenas vanguardista e a percepção da validade geral da
bei Viktor Sklovskij”,
dentro de certos limites. Mas, enquanto um estilo in Poetica 3, 1970, pp. categoria do estranhamento. A conexão pode ser
domina, a categoria meio artístico não é visível 226-49. Contudo, não considerada necessária, porque só o total desdo-
é levada adiante
como geral, posto que, na verdade, ela somente ao longo do livro
bramento da coisa (no caso, a radicalização do es-
ocorre como particular. Um sinal característico a interessante tranhamento no choque) torna reconhecível a va-
observação de
dos movimentos históricos de vanguarda consiste lidade geral da categoria. Assim, não se transfere
K. Chvatik de que
exatamente no fato de eles não terem desenvol- existiria “uma o ato do conhecimento para a própria realidade,
vido estilo algum; não existe um estilo dadaísta razão interior para mas também não é negado o sujeito produtor de
a estreita relação
ou surrealista. Antes, ao erigir em princípio a dis- entre estruturalismo
conhecimento. Reconhece-se apenas que as pos-
ponibilidade sobre os meios artísticos de épocas e vanguarda, uma sibilidades de conhecimento estão limitadas pelo
razão metodológica
passadas, esses movimentos liquidaram a pos- desenvolvimento real (histórico) do objeto.7
e teórica”
sibilidade de um estilo de época. Somente a dis- (Strukturalismus und Minha tese de que só a vanguarda torna re-
ponibilidade universal faz da categoria do meio Avantgarde. Munique: conhecíveis, em sua generalidade, determinadas
Hanser, 1970, p. 23).
artístico uma categoria geral. categorias gerais da obra de arte, e de que, con-
50 51 teoria da vanguarda e ciência crítica da literatura

• Krystyna Pomorska sequentemente, a partir da vanguarda podem ser dade de reconhecer as categorias da obra de arte
(Russian Formalist
compreendidos os estágios precedentes do desen- na sua validade geral não é pura e simplesmente
Theory and its Poetic
Ambiance. Haia: volvimento do fenômeno da arte na sociedade bur- criada, ex nihilo, pela práxis artística de van-
Mouton, 1968 [ed. guesa – e não, inversamente, a vanguarda a partir guarda. Ao contrário, esta possibilidade tem seu
bras.: Formalismo e
futurismo: a teoria
dos estágios anteriores da arte – não significa que pressuposto histórico no desenvolvimento da arte
formalista russa e todas as categorias da obra de arte só atinjam seu na sociedade burguesa. Desde a metade do século
seu ambiente poético,
total desdobramento na arte vanguardista; vere- xix – ou seja, depois da consolidação do domínio
trad. Sebastião
Uchoa Leite. São mos, isto sim, que determinadas categorias, essen- político da burguesia –, de tal modo se deu esse
Paulo: Perspectiva, ciais para a descrição da arte pré-vanguardista desenvolvimento, que a dialética forma–conteúdo
1972]) contenta-se
com arrolar
(por exemplo, a da organicidade, da subordinação dos produtos artísticos progressivamente foi se
pontos comuns das partes ao todo), são justamente negadas na deslocando em favor da forma. O lado conteudís-
entre futurismo e
obra vanguardista. Não se poderá, portanto, supor tico da obra de arte, sua “mensagem”, cada vez
formalismo.
8   Cf. as importantes que todas as categorias (e aquilo que elas com- mais se retrai frente ao formal, que se cristaliza
colocações de preendem) perfaçam um desenvolvimento regu- como sendo o estético em sentido mais estrito.
Althusser, ainda
pouco discutidas na
lar. Uma tal concepção evolucionista erradicaria Essa predominância da forma na arte, mais ou
República Federal da exatamente aquilo que é contraditório no processo menos a partir da metade do século xix, pode ser
Alemanha:
histórico em favor da ideia de um avanço linear compreendida, como disponibilidade dos meios
• Louis Althusser &
Étienne Balibar, Lire do desenvolvimento. Ao contrário, deve-se insis- artísticos, do ponto de vista da estética da produ-
le Capital i. Paris: tir no fato de que o desenvolvimento histórico da ção; e como uma tendência à sensibilização do
Maspero, 1969, cap.
iv e v [ed. bras.:
sociedade como um todo, bem como no interior 9   Cf. Helmuth receptor, do ponto de vista da estética da recep-
Plessner, “Über die
Ler o Capital, trad. dos subsistemas, só pode ser compreendido como ção. É importante ver a unidade do processo: os
gesellschaftlichen
Nathanael Caixeiro.
o resultado dos desenvolvimentos – muitas vezes Bedingungen der meios artísticos tornam-se disponíveis como tais
Rio de Janeiro: Zahar,
contraditórios entre si – das categorias.8 modernen Malerei”, na medida em que, simultaneamente, se atrofia a
1979]. Na tradução
in Diesseits der Utopie.
alemã: Das Kapital Faz-se necessária, ainda, uma outra observa- categoria do conteúdo.9
Ausgewählte Beiträge
lesen i. Hamburgo:
Rowohlt, 1972
ção, no sentido de conferir maior precisão à tese zur Kultursoziologie. A partir daí, torna-se compreensível uma das te-
Frankfurt am Main:
Sobre o problema da acima formulada. Como foi dito, só a vanguarda ses centrais da estética de Adorno, que diz: “a chave
Suhrkamp, 1974, pp.
não simultaneidade
torna reconhecíveis os meios artísticos em sua 42 ss. de cada conteúdo da arte repousa na sua técnica”.10
das categorias
generalidade, porque, longe de reconhecê-los 10   T. W. Adorno, Esta tese somente pode ser formulada, afinal, por-
individuais, ver
Versuch über Wagner.
também o cap. 2, iii, ainda segundo um princípio estilístico, dispõe de- que – nos últimos cem anos – a relação dos mo-
Munique/ Zurique:
deste volume.
les como meios artísticos. É claro que a possibili- Knaur, 1964, p. 135. mentos formais (técnicos) da obra com os momen-
© Ubu Editora, 2017
© Wallstein Verlag GmbH, Göttingen (negociado por Ute
Körner Literary Agent, Barcelona – www.uklitag.com), 2017
© Peter Bürger, 1974

Esta tradução foi originalmente publicada pela editora


Cosac Naify em 2008.

edição  Paulo Werneck e Luciana Araujo


assistente editorial  Mariana Schiller
preparação  Denise Pessoa
revisão  Débora Donadel
direção de arte  Elaine Ramos
design  Luciana Facchini
assistente de design  Livia Takemura
produção gráfica  Aline Valli

Nesta edição, respeitou-se o novo Acordo Ortográfico


da Língua Portuguesa.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)


(Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil)

Bürger, Peter [1936-]


Teoria da vanguarda: Peter Bürger
Tí­tu­lo ori­gi­nal: Theorie der Avantgarde
Tradução: José Pedro Antunes
São Pau­lo: Ubu Editora, 2017
256 pp.

isbn 978 85 92886 33 2

1. Vanguarda (Estética)  i. Título


12-05603 cdd 701.17

Índices para catálogo sistemático:


1. Vanguarda: Estética: Arte 701.17

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