Você está na página 1de 3

Ideias e crenças

“Las ideas se tienen; en las creencias se está.” (Ortega y Gasset, IDEAS Y CREENCIAS)

Os anos, as leituras, o esforço para resolver problemas práticos e teóricos, o aprendizado com
os muitos erros e poucos acertos deste esforço, tudo isto teve um o duplo impacto de
aprofundar a importância da política em minha vida mas ao mesmo tempo tornar cada vez
mais restrito o universo no qual me animo a discutir política.

No rumo da barbárie de uma sociedade de massas – cada vez mais de massas e cada vez
menos sociedade – luto contra o pessimismo de acreditar que talvez só uma hecatombe possa
salvar nossa humanidade – qualidade essencialmente política – mas as ideias capazes de
resgatar-nos vão escasseando e com elas as perspectivas mais otimistas.

Fui deixando de lado as grandes ideias, teorias gerais e sistemas genéricos pela incapacidade
deles todos darem todas as respostas. Parte daquele silêncio evocado acima é pela
incapacidade de dar respostas nas quais acredite por completo.

Só as ideias podem ser discutidas – não neste sentido vulgar de discussão hoje predominante
de uma ideia vencer ou se sobrepor à outra, mas em um sentido meio platônico de descobrir
pelo debate a verdade e com ela separar as ideais verdadeiras das falsas. Mas só as crenças
são capazes de estabelecer um programa, um caminho, enfim, os objetivos que a busca deve
ter.

Como pessoa religiosa que tento ser, muito mais nas ações do que nas palavras, estou certo do
caráter transcendente essencial que estas crenças devem ter, até pela complexidade das
relações humanas e sociais. Persiste, porém, a tarefa de como chegar dos objetivos definidos
pela crença em um “programa” concreto, plausível e capaz de atender, no plano das ideais, a
dois requisitos impostos pela crença.

O primeiro destes requisitos é que os meios para atingir aqueles fins estabelecidos sejam
coerentes, ou seja estejam em conformidade com os valores éticos emanados das crenças,
sem atalhos, relativizações, pragmatismos. Huxley escreveu: “Os macacos escolhem os fins; só
os meios são do homem”, difícil esclarecer de forma tão sucinta o caráter fundamental dos
meios na ação humana, em particular nesta dimensão essencialmente humana que é a
política.

A diretriz, contudo, não é tão simples, porque guiar-se por meios lícitos requer, para alcançar o
objetivo, a capacidade de compreender, desvendar e contra-atacar aqueles que utilizam os
meios injustamente chamados de maquiavélicos. A pureza de intenções não se confunde com
uma postura naïve e a ingenuidade é um dos vícios inadmissíveis aos que batalham nos
campos de guerra da política.

Nesta elasticidade entre a necessidade de confrontar adversários cuja conduta não está sujeita
a nenhum limite para dar viabilidade concreta a um “programa” e manter-se fiel a princípios
transcendentes de conduta toda uma vasta multidão de almas perdeu-se. E perderam-se tanto
por esticarem tanto o limite que acabam por ultrapassa-lo e com isto invalidar a própria luta
quanto pelo dispensável sacrifício daqueles que não avaliam as forças antes de lutar.
Isto não significa que há momentos nos quais o martírio é a única luta possível, porque
qualquer solução de compromisso é a negação absoluta dos valores. Mas o martírio, assim
como a negociação, não são acontecimentos do cotidiano, são os momentos extremos e
desesperados de uma luta que na maior aprte do tempo se trava nos detalhes.

Chegamos então ao requisito seguinte do “programa”: a capacidade de aplica-lo pela


persuasão. Desde os gregos clássicos a oposição entre doxa (opinião) e episteme
(conhecimento) é uma contradição essencial do debate político entre democratas e filósofos.
Nestes tempos de hoje no qual há cada vez mais doxa e cada vez menos episteme – inclusive
nos próprios meios acadêmicos onde o credencialismo, para usar o termo de Jane Jacobson,
substituiu a busca do conhecimento pela obtenção de papéis que certificam que se sabe algo –
há pouca esperança para o conhecimento e, portanto, para a atividade política propriamente
dita.

Só é possível um consenso verdadeiro quando há o desejo de encontrar a verdade, a melhor


solução possível, a serem buscados através de um processo racional no qual o
importante não é a vitória de uma posição ou outra, mas o quanto mais próximo se
chega do conhecimento preciso e das ações que ele inspira. Isto é cada vez mais difícil.

Há por sinal um forte movimento para nivelar pelo ponto mais baixo qualquer poder de
decisão, focando em questões binárias com amplo apelo estritamente emocional e com pouca
ou nenhuma relação com as grandes questões públicas, mobilizando toda a opinião pública
para focar-se nestes “issues” – para usar o termo americano que categoriza bem este tipo de
artimanha despolitizadora – e esquecendo-se do resto. Ao mesmo tempo, as verdadeiras
questões de interesse público vão se tornando mais complexa, inatingíveis pelo público médio.

Muitas das forças políticas, a esquerda e à direita, longe de combaterem esta alienação que
irrompe no processo político destruindo a racionalidade que lhe é essencial, entregam-se de
corpo e alma à elas. Entre outros motivos porque é mais fácil seguir a corrente, mas também
porque a degradação do nível intelectual dos dirigentes políticos também os torna cegos para
escapar desta trilha que leva à destruição da política e incapazes de formular qualquer coisa
mais sólida que o fluxo simplista e binário das opiniões da turba.

Como alento é necessário dizer que esta irrupção do “inconsciente coletivo” – emocional,
violento, irracional – das massas no processo político para destruí-lo só é um “projeto” para
escassa minoria nos extremos do espectro político. A maioria das forças deixa-se levar a
cumprir este programa da barbárie por ignorância e/ou comodismo. O medo de perder o
poder ainda é tão forte que os poucos com algum nível de consciência política ainda vendem a
alma aos marqueteiros nem sempre sem ter a intuição que aquele é o caminho que os leva à
destruição enquanto lideranças políticas.

Falei acima que sou um homem religioso, como tal sou incapaz de não enxergar neste
processo de barbárie também uma dimensão transcendente porque ele se fundamenta
justamente na liberação de todos os apetites imoderados do ego, na fúria das turbas
conduzidas por uma força que – a ciência demonstra – é capaz de uma irracionalidade –
portanto de destruição – muito superior ao que os indivíduos poderiam ter, igualmente
tendem a seguir com muito mais afinco e dedicação os líderes que estimulam os desejos e
preconceitos mais vis destas massas e não aqueles que só com muito esforço e risco as
tentariam reconduzir a uma situação de balanço e equilíbrio, dedicando-se a enorme tarefa de
transformar massa amorfa em assembleia de cidadãos. Não me considero exagerado por ver
neste cenário uma inspiração daquele Mal em estado puro agitando o mal que há dentro de
todo humano para traze-lo à tona. Mas deixo a cada um o julgamento sobre isto.

Você também pode gostar