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Eurídice Figueiredo

CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES
PÓS-COLONIAIS NA
LITERATURA ANTILHANA

EdUFF
EDITORA DA UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
Niterói, RJ — 1998
Copyright © 1998 by Eurídicc Figueiredo
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Catalogação-na-fonte

F475 Figueiredo, Eurídice.


Construção de identidades pós-coloniais na literatura antilhana / Eurídice
Figueiredo. — N iterói: EDUFF, 1998.
166 p . ; 21cm. — (Coleção Ensaios ; 12)
Bibliografia: p. 151
ISBN 85-228-0277-7
1. Literatura antilhana. I. Título. II. Série.

CDD 807.973

UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE


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Roberto dos Santos Almeida
Terezinha Pereira dos Santos
Vera Lucia dos Reis
SUMARIO

1 IN TRO DU ÇÃO ..................................................................7

2 AS PEQUENAS ANTILHAS : MARTINICA


E GUADALUPE..........................................................13
Um pouco de História e Geografia.............................. 13
O crioulo........................................................................ 18

3 A NEGRITUDE DE AIMÉ CÉSAIRE.......................... 23


Césaire e o surrealismo................................................ 23
O teatro histórico de Césaire........................................ 38
A dialética do herói césairiano..................................... 52
A recepção crítica da negritude.................................... 55

4 FRANTZ FANON E A PSICOPATOLOGIA


DO N E G R O .................................................................63

5 EDOUARD GLISSANT : POR UMA POÉTICA


DA R EL A Ç Ã O ........................................................... 77
A antilhanidade............................................................ 77
O romance do N Ó S...................................................... 80
A estética da oralidade e a palavra barroca.................. 86
O espaço americano: literatura, história, memória.....92

6 PATRICK CHAMOISEAU.......................................... 101


O elogio da crioulidade.............................................. 101
A escrita da oralidade................................................. 109

7 MARYSE CONDÉ E A DIÃSPORA NEGRA.............119

8 SIMONE SCHWARZ-BART....................................... 133

9 CONCLUSÃO.................................................................145

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.............................. 151


2 AS PEQUENAS
A N T IL H A S :
M A R T IN IC A E
G UADALUPE

Um pouco de História e Geografia

A Martinica e a Guadalupe pertencem às chamadas Pequenas


Antilhas ou Ilhas do Vento; uma é separada da outra pela Dominica
(ilha de língua inglesa). A Guadalupe, que é formada de duas
ilhas, a Basse-Terre e a Grande-Terre, tem ainda as dependências
de Marie-Galante, la Désirade, les Saintes, Saint-Bathélemy e a
parte francesa de Saint-Martin, com a superfície total de 1709
km2e uma população estimada de 330.000 habitantes. A Martinica
tem mais ou menos a mesma população numa superfície um pou­
co menor, de 1100 km2.
Ambas as ilhas tomaram-se possessões da França em 1635, quando
os franceses assumem as mesmas práticas espanholas, de exter-

13
mínio ou expulsão dos índios Caraíbas e dc tráfico negreiro a fim
de implantar um sistema de plantações de cana-de-açúcar.2 O sis­
tema escravagista não difere muito do regime imposto no Brasil,
embora tenha algumas particularidades, especialmente a existên­
cia de uma legislação escrita, o chamado Code Noir, que ficou
esquecido durante mais de um século e foi publicado em 1987
por Sala-Molins, cuja análise artigo por artigo e cujos comentários
são bastante elucidativos.
O Code Noir, que vigorou de 1685 a 1848, inspirado no Direito
Romano, tem 60 artigos. Sua leitura hoje parece-me estarrecedora,
não tanto pelo que revela sobre a vida dos escravos nas planta­
ções, já devidamente conhecida, mas pelo fato de os franceses
terem criado uma lei para nortear um sistema insustentável em
termos jurídicos, pois, como dizia Rousseau, há incompatibilida­
de entre direito e escravidão. O Code Noir, proposto por Colbert
e promulgado por Luís XIV, atravessa todo o século XVIII, sem
encontrar verdadeira oposição nem de parte dos filósofos.
Montesquieu em L esprit des lois e Rousseau em Le contrat soci­
al condenam a escravidão (histórica e distante) e fingem ignorar
que ela era praticada em colônias francesas; Diderot, o abbé
Raynal, Condorcet, Mirabeau e Bernardin de Saint-Pierre conde­
nam a escravidão nas Antilhas mas nenhum propõe libertação
imediata porque consideravam que os negros não seriam capazes
de gerir suas famílias; eles precisavam ser preparados, ou seja, na
escala da humanidade, eles precisavam aprender as leis e os cos­
tumes franceses, a língua e a religião, para atingirem o estágio do
humano.

2 O Haiti, q ue d u ran te a colo n iza ç ã o fra n c e s a s e c h a m a v a S a in t-D o m in g u e ,


te m m uitos pontos com un s c om a h istória d a M a rtin ic a e d a G u a d a lu p e .
Preferi n ão m en c io n a r o Haiti neste q u a d ro p o rq u e te ria d e fa z e r a s distinçõ es,
sob retud o a p artir d e 1 8 0 4 , q u a n d o um b a n d o d e n e g ro s , c o m a n d a d o s p o r
Toussaint L ouverture, e e m s e g u id a por D e s s a lin e s , fa z a o m e s m o te m p o a
abo liç ão d a esc ra v id ã o e a in d e p e n d ê n c ia n a c io n a l, lu ta n d o c o n tra a s tro p a s
d e N a p o le ã o . É a história m a is gloriosa d o s n e g ro s n a A m é ric a e , p o r isso
m esm o, c e le b ra d a na literatura por vários a u to re s , e n tre outro s C . L. R . J a m e s ,
A lejo C a rp entier, A im é C é s a ire e E d o u a rd G lis sa n t.

14
Proponho uma rápida leitura do Code Noir para mostrar as inú­
meras contradições e ambigüidades de uma lei feita para coibir
os excessos, que acaba autorizando, “de direito”, atos até então
cometidos pelo arbítrio de senhores, imbuídos de sua impunida­
de nessas terras longínquas, tão distantes da justiça da metrópole.
Trata os escravos como bens móveis do senhor, assimilando-os a
objetos, vendidos e negociados segundo a vontade dos seus pro­
prietários, e ao mesmo tempo obriga os senhores a batizar os
negros e fazê-los cumprir os deveres cristãos (não trabalhar e ir à
missa aos domingos). Ou seja, o escravo é “canonicamente um
homem e juridicamente uma mercadoria” (SALA-MOLINS, 1987,
p. 104). Fica proibido o casamento religioso de escravos sem o
consentimento do senhor (o consentimento dos pais é dispensá­
vel); os filhos pertencem ao senhor da mulher-escrava, o que
significa que a família é matrilinear. Fica proibido o uso de ar­
mas, bem como toda aglomeração de escravos, para festas,
casamentos ou outras razões. A punição vai da chibata à pena de
morte. Os escravos não têm o direito de negociar, vendendo gê­
neros alimentícios ou outros. O escravo adulto tem o direito de
receber como ração por semana: dois potes e meio (medida do
país) de farinha de mandioca com duas libras (equivalente a cer­
ca de um quilo) de carne de boi salgada ou três libras de peixe; e
para se vestir, duas roupas por ano. Se o senhor não cumprir a lei,
o escravo pode reclamar ao procurador-geral. Vê-se outra ambi­
guidade: o escravo passa de mercadoria a “cidadão”, com aparentes
direitos jurídicos. Pura ilusão: em outros artigos fica esclarecido
que suas declarações não têm valor legal, seus direitos civis
inexistem, já que ele não pode fazer qualquer tipo de contrato;
não pode exercer qualquer função pública, nem gerir ou adminis­
trar qualquer negócio, nem ser árbitro ou testemunha em matéria
cível ou criminal; sua deposição não tem valor de prova. No en­
tanto, ele pode ser perseguido pela justiça tanto em matéria cível
quanto criminal. O escravo que bater em seu senhor ou em mem­
bros da família branca é punido com pena de morte. Roubos e
outros delitos são punidos com castigos corporais indo até a pena

15
de morte. O artigo 38 prescreve as penas seguintes para o marron,3
o escravo que foge da propriedade: passado um mês da primeira
fuga, ele terá as orelhas cortadas e será marcado com a flor de lis;
após a segunda fuga, ele terá o tendão da perna cortado e receberá
a flor de lis no outro ombro; após a terceira fuga, ele será punido
com a morte. Quem abrigar o marron será punido com multas.
Em caso de execução de escravo, o senhor é ressarcido pela perda
do bem em seu valor de mercado. O artigo 42 proíbe outras for­
mas de tortura, só permitindo a chibatada ou o açoite. O senhor
ou o capataz que matar um escravo será punido, a menos que ele
seja absolvido (sic ). O artigo 44 declara o escravo bem móvel, e
assim é tratado em caso de morte do senhor e transmissão de
herança. O senhor pode conceder a alforria ao escravo, mas são
criados obstáculos no decorrer do século XVIII. Em 1773, o rei
proíbe os alforriados de usarem nomes de brancos, decreto inclu­
sive com valor retroativo. Os alforriados, negros ou mulatos, não
têm o direito de almejar à nobreza, ao contrário dos descendentes
de indígenas. Em 1767 a resposta ministerial a uma consulta es­
clarece a diferença entre negros e índios:
A razão dessa diferença decorre do fato que os índios nasceram
livres e sempre conservaram a liberdade nas colônias, enquanto
os negros só foram introduzidos nas colônias para permanecer
em estado de escravidão, primeira mácula que se estende sobre
todos os seus descendentes e que o dom da liberdade não pode
apagar (Apud SALA-M OLINS, 1987, p. 199).

O descendente de negro sofre uma espécie de maldição (bíblica,


inclusive, pois pertence à raça de Cam), além do estigma social e
jurídico. Embora o artigo 59 afirme que os alforriados têm os
mesmos direitos dos nascidos livres, o rei proíbe em seus decre-

A p a la v r a m arro n v e m d o e s p a n h o l sim arron, q u e d e s ig n a u m m a c a c o q u e


s e e s c o n d e n o m a to e s ó s a i fu r tiv a m e n te p a r a c o m e r . N a s A n tilh a s , o m a rro n
g e r a lm e n te s e r e fu g ia v a n o a lto d a s c o lin a s ( m o m e s , q u e v e m d o e s p a n h o l
m orros), re g iã o c o m b a s ta n te v e g e t a ç ã o , a o c o n tr á r io d a s p la n íc ie s o n d e s e
p la n ta v a a c a n a . A p a rtir d e m a rro n foi c r ia d a a p a la v r a m a rro n n a g e , q u e
c o r r e s p o n d e à re s is tê n c ia , s e n d o u s a d a , in c lu s iv e , n o s e n t id o c u ltu r a l. E m
in g lê s o m a ro o n é c o n o ta d o m a is n e g a tiv a m e n te d o q u e e m fra n c ê s , a s s o c ia d o
a o b a n d id o e a o tra id o r, p o r q u e n a J a m a ic a , p o r e x e m p lo , o s m a ro o n s f iz e r a m
u m p a c to c o m o s in g le s e s d e d e n u n c ia r n o v a s fu g a s o u r e b e liõ e s d e e s c r a v o s .

16
tos o sang-mêléí4 de exercer qualquer cargo nas milícias ou na
judicatura; proíbe o branco casado com negra ou mulata de ser
oficial c ter emprego público nas colônias.
A abolição da escravidão foi feita em 1848 por intervenção do
francês Victor Schoelcher, embora ela já tivesse sido proclamada
durante a Convenção, ficando como letra morta até que Napoleão
a restabelecesse. Depois de 1848, foram contratados indianos para
vir trabalhar nos campos de cana, já que os negros não se mostra­
vam muito interessados em continuar o trabalho estigmatizado
pela escravidão.
No início do século XX decresce a produção açucareira devido
ao aparecimento do açúcar de beterraba. Os proprietários de terra
diversificam a produção, passando a exportar frutas, ao mesmo
tempo em que se associam com as multinacionais para investir
no terciário, com ênfase para o turismo.
Em 1946, o poeta Aimé Césaire, que começava sua carreira de
político (foi durante quase 50 anos deputado na Assembléia Na­
cional e prefeito de Fort-de-France), temendo que os békés
tomassem o poder em detrimento dos negros, e confiando no go­
verno de esquerda que estava no poder na França, defendeu a
departamentalização, ou seja, a transformação das antigas colô­
n ias em d e p a rta m e n to s de u ltram ar (D O M ). A lei da
departamentalização foi aprovada e a Martinica e a Guadalupe (a
Guiana Francesa encontra-se no mesmo caso) tomaram-se depar­
tamentos da França, selando sua união com a antiga metrópole.
Com uma economia subsidiada, totalmente voltada para a Fran­
ça, de quem importa quase tudo (inclusive açúcar), a população
tem um bom nível de vida, muito superior ao de ilhas vizinhas,
mas desenvolveu, para usar os termos de Glissant, uma “mentali­
dade de assistidos” (GLISSANT, 1981a, p. 44), ou seja, os
antilhanos não produzem, não se consideram auto-suficientes,
esperando que tudo venha da França. Essa dependência provoca
um índice muito elevado de problemas mentais e psiquiátricos, o
que leva Glissant a afirmar que “não existe no mundo uma comu-

4 M e s tiç o , c o m s a n g u e n e g ro .

77
nidadc tão alienada quanto a nossa, tão ameaçada de diluição. A
pulsão mimética é talvez a mais extrema violência que se possa
impor a um povo; tanto mais que ela supõe o consentimento (...)
do mimetizado” (GLISSANT, 1981a, p. 63).
O descentramento, isto é, o fato do centro da vida política e eco­
nômica estar fora do país, explica o caráter neurótico da sua vida
social, que se manifesta, entre uma crise e outra, desproporcional
às suas causas, numa atitude que é uma “mistura de indiferença,
cortesia, passividade, ‘jogo’ com a vida, que trai uma agressividade
desviada de seu objeto” (BENOIST, 1972, p. 41).
Do ponto de vista demográfico, há várias classes, todas bastante
fechadas entre si: os békés, que raramente se misturam mesmo
com os franceses; os mulatos,5 que tradicionalmente se dedica­
vam ao comércio, não freqüentam os negros; naturalmente os
negros, que formam a maioria da população. Aiém desses, há
pequenas comunidades de descendentes de indianos (os coolies),
de sírio-libaneses e de chineses. Um contingente crescente de fran­
ceses, designados pejorativamente de métros (metropolitanos),
tem-se instalado nas Antilhas, muitas vezes porque são funcioná­
rios públicos: nomeados nos DOM, recebem um acréscimo de
40% em seus salários porque a vida nas Aaitilhas é cara {prime à
la vie chère).

O crioulo

A palavra crioulo (em francês, créole), do espanhol criollo, é de­


finida pelo Dicionário de Furetière (1690) como sendo o termo
usado pelos espanhóis para designar os seus descendentes nasci­
dos na América. Existe, entretanto, dependendo do local e da
época, uma grande flutuação de sentido, pois ora ele designa só

5 S ão cham ados de b é k é s o s d e s c e n d e n t e s d e f r a n c e s e s p r o p r ie tá r io s d e
t e r r a s e e s c r a v o s . O m u la to n ã o te m o m e s m o s e n tid o n o B r a s il e n a s
P e q u e n a s A n tilh a s : lá s ó é m u la to q u e m te m a p e le m o r e n a e o s c a b e lo s
lis o s o u c a c h e a d o s , a p r o x im a n d o d o c h a m a d o tip o m e d ite r r â n e o ( C O N F IA N T ,
1 9 9 3 ) . É n e g r o to d o a q u e le q u e te m o c a b e lo " ru im ’’, m e s m o q u e te n h a a
p e le b r a n c a , c o m o o ch ab in (s a ra rá ).

18
os negros c mulatos, ora só os brancos. Para nos atermos à nossa
área, o termo nas Antilhas se aplica a todos os nascidos no país
durante o século XVIII, para se limitar em seguida só aos bran­
cos. Hoje, nas Antilhas e em vários países da área hispânica, o
termo designa o fruto da mestiçagem, do hibridismo cultural, como
veremos na obra de Edouard Glíssant e Patrick Chamoiseau.
O crioulo também se aplica a uma língua, nascida no/do sistema
de plantações e da miscigenação. O crioulo de base francesa, fa­
lado tanto nas Antilhas quanto nas ilhas do Oceano Índico
(Seychelles, Reunião, Maurício), tem uma origem bastante nebu­
losa. Robert Chaudenson traça um panorama hipotético de como
ele teria aparecido. No início da colonização, no século XVII,
cria-se uma sociedade de habitação, em que os negros, menos
numerosos do que os brancos e trabalhando diretamente com eles,
aprendem o francês diretamente do falante nativo. No século
XVIII, com o florescimento da cana-de-açúcar, os colonos pas­
sam a trazer grandes levas de negros, que tiveram de aprender o
francês não mais diretamente com os brancos, mas com os escra­
vos já instalados. No cenário imaginado, este seria o momento do
surgimento do crioulo.
Uma consequência direta da chegada maciça de escravos boçais
é a queda da porcentagem de escravos cnoulos na população
servil. (...) Entretanto, se a proporção de escravos criouios de­
cresce, seu papel social aumenta. Na sociedade de plantação,
tornam-se os agentes essenciais de socialização e de aculturação
dos numerosos boçais recém-chegados. Um traço significativo:
na Martinica em torno de 1665 e até o fim do período de habita­
ção, os capatazes (comrnandeurs) são brancos; na fase da
plantação, no entanto, todos são escrav os crioulos (CHAUDEN­
SON, 1995, p. 65).

Assim, os boçais,h começara a aprender as variantes periféricas


faladas pelos negros crioulos, já que o seu contato com o branco
é mais raro. A partir daí começa o processo de autonomização do
crioulo.6

6 B o ç a l, d o e s p a n h o l bozat, d e e tim o lo g ia n a o e s ta b e le c id a , d esig na o escravo


re c é m -c h e g a d o e q u e a in d a n ã o (a la a lin g u a do país.

19
Sobre a gênese do crioulo, não se comprovou a hipótese de que
sua sintaxe fosse de alguma língua africana, como se supunha. As
etnias que vieram para a America não foram as mesmas que fo­
ram para as ilhas do Oceano índico, e além disso, não se encontrou
nenhuma língua africana com a sintaxe do crioulo. Parece mais
provável que o crioulo tenha aproveitado variantes sintáticas do
próprio francês, tal como ele era praticado na época por falantes
incultos c que usavam variantes regionais. No plano lexical, ele
conserva muitos arcaísmos, alguns existentes também no francês
do Canadá. No plano fonético também se registra a pronúncia do
-t no final da palavra, com aparente feminização do nome.
Um aspecto lingüístico complicador é que, devido às semelhan­
ças entre as duas línguas, há um contínuo entre o francês (a norma)
e o crioulo basiletal,7 com várias formas intermediárias (francês
crioulizado, crioulo acroletal) e o falante não tem consciência do
nível de língua em que está se expressando. Em outras ilhas do
Caribe (Santa Lucia, Dominica) o crioulo de base francesa convi­
ve com o inglês, o que acarreta uma melhor separação de uma
língua para outra.
O crioulo nas Antilhas não é só a língua dos negros porque o béké
também se exprime nessa língua, sobretudo quando se dirige aos
negros. Surge daí uma certa ambigüidade: o negro tentará falar
francês porque o crioulo, apesar de ser sua língua materna, língua
das canções de ninar e dos contos ouvidos à noite, nas festas e
velórios, é considerado como um patois, um dialeto que se ama e
se despreza ao mesmo tempo. Ch. Ferguson chamou de diglossia
essa coexistência de duas línguas com estatutos diferenciados,
cujas funções são complementares: uma língua ocidental, de pres­
tígio, transmitida pela escola e usada nas situações públicas e
formais, e uma língua adquirida informalmente, oral, desprovida
de prestígio e de uso restrito à família. A situação já não é exata­
mente assim porque se começou um processo de escrita com a
produção de textos, poemas, romances, contos, jornais c revistas;
e concomitantemente, um processo de normalização do crioulo

7 O b a s ile to s e ria a fo rm a m a is d is ta n te d o fr a n c ê s e o a c r o le lo a f o r m a m a is
p ró x im a d a n o rm a .

20
com estudos linguísticos c realização de gramáticas e dicionários.
Paradoxalmentc, no momento em que se procura salvar o crioulo,
o seu uso decresce por influência da escola, da mídia, sobretudo
da televisão (quase inteiramente feita na França) e pela migração,
estimulada pela administração francesa, nos dois sentidos: fran­
ceses se instalam nas Antilhas e antilhanos partem para a França.
Em entrevistas realizadas pelo linguista Féiix Prudent, a maioria
dos antilhanos pesquisados declarou considerar o crioulo um
patois, um dialeto, e não uma língua, já que a Martinica c a
Guadalupe não são países e, portanto, não têm língua própria.
Essa afirmação comprova o caráter político de que se reveste a
língua, mesmo quando percebido de maneira ingênua por pesso­
as de pouca instrução. A maioria também declarou preferir a
ortografia tradicional, mais próxima da francesa, que era a prati­
cada antes do início da normatização do crioulo, quando os
lingüistas criaram uma ortografia fonológica. A maioria declarou
considerar que o crioulo não tem gramática, não tem regras, por­
tanto, não é uma língua.
A questão do crioulo é particularmente grave no que concerne à
educação. A criança que chega à escola aos 6 anos, tendo sempre
falado crioulo em casa, é alfabetizada em francês (hngua estran­
geira). Como aprender os mecanismos da escrita quando a criança
não domina o oral? Como observa Sapir, a linguagem é o guia
simbólico da cultura. Ao proibir o uso do crioulo em sala de aula,
as instituições prejudicam a criança cujo referencial simbólico se
exprime naquela língua, desde já desqualificada, o que explica o
nível de reprovação escolar nas .Antilhas, cerca de quatro vezes
superior ao da França. Os resultados de testes de Q. I. aplicados
em língua francesa em crianças da Martinica foram estarrecedores:
50% delas foram classificadas de "fracas”, enquanto que na Fran­
ça só 2,3% são “fracas” . Ao analisar os resultados obtidos,
verificou-se que no teste de vocabulário, dos quarenta termos que
a criança devia definir, mais da metade fugia ao seu universo
lingüístico natural. Além disso, percebeu-se que as crianças não
entendiam os próprios enunciados das questões. A sala de aula é
o espaço reservado ao francês, enquanto no pátio, apesar da proi-

27
bição expressa, as crianças acabam falando crioulo. É aí que os
jovens de boa família o aprendem e penetram nessa cultura que
lhes fora até então vetada. Os livros escolares hoje utilizados jâ
não falam de nos ancêtres les Gaulois, como no tempo de Césaire
c Fanon, nem das quatro estações de notre climat tempéré. De­
pois de 1968 houve uma grande reestruturação do ensino na França,
que repercutiu também nas Antilhas. Os livros se adaptaram aos
"particularismos regionais” embora não o suficiente, segundo os
educadores antilhanos que se preocupam com o rápido processo
de assimilação.
A ambigüidade da relação do antilhano com o crioulo e o francês
é fruto de anos de colonialismo. Através do percurso de alguns
autores, tentarei mostrar como esses escritores enfrentaram o pro­
blema da língua, que não se resume a uma mera questão lingliística,
porque faz parte das representações do SER. Da negritude - o
batismo de fogo - até os dias de hoje, são várias as construções
identitárias que homens e mulheres do Caribe forjaram para su­
perar os velhos estereótipos impostos pelo discurso colonial.

22

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