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Instituto de Artes
Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais
Ênfase em História, Teoria e Crítica de Arte
Porto Alegre - RS
2021
Mirna Xavier Gonçalves
Porto Alegre - RS
2021
Mirna Xavier Gonçalves
Banca examinadora:
...............................................................................................................................
Prof. Dr. Eduardo Ferreira Veras (orientador) (PPGAV/UFRGS)
...............................................................................................................................
Profa. Dra. Paola Basso Menna Barreto Gomes Zordan (PPGEDU/UFRGS)
...............................................................................................................................
Profa. Dra. Mônica Zielinsky (PPGAV/UFRGS)
...............................................................................................................................
Prof. Dr. Paulo Antonio de Menezes Pereira da Silveira (PPGAV/UFRGS)
AGRADECIMENTOS
Agradeço à minha família, que confia e está comigo durante todos os momentos, me
dando a força necessária para prosseguir.
À coterie, aos ratos e aos fatos. Sem vocês nada disso teria sido possível. Invencíveis
em seu imenso apoio.
Ao prefácio de Carlo Ginzburg, cuja história sobre uma certa bruxa italiana do
Renascimento desembainhou os pensamentos sobre a corte de espadas.
Aos deuses que invariavelmente me acalentaram durante todo o processo, me
provendo energia, ímpeto e força para seguir em frente.
À grandiosa Cípris, cuja presença sustenta minha vida e me move, gentilmente me
recebendo ao lado de Apolo quando adentro o Instituto de Artes.
RESUMO
Este trabalho traz reflexões acerca da construção de sentido que envolve o conjunto de
cartas da corte de Espadas do baralho de Tarô Waite-Smith, criado em 1909, pontuando
aspectos deste objeto que tangenciam o campo das artes visuais e discorrendo de maneira
ensaística sobre a trama tecida através de suas imagens ao longo da história da cultura. Para
isso, a dissertação respalda-se em autores que propõem analogias entre imagens de
diferentes proveniências, em busca de sobrevivências e transformações, como propôs o
historiador da arte alemão Aby Warburg e seguidores seus, como Carlo Ginzburg, Erwin
Panofsky, Georges Didi-Huberman e outros que auxiliarão no processo de situar o tarô
como objeto de estudo pertinente à área das artes visuais.
This work brings forth studies regarding the meanings surrounding the cards on the Court
of Spades, present in the Waite-Smith tarot deck created in 1909. The research aims into
the aspects of this deck that are synchronized with the years-long discussions present into
the art field, such as iconography, the nature of illustration, the afterlife of the pagan
imagery. For that, the work leans into the area of research coined by the German art
historian Aby Warburg and his followers, such as Carlo Ginzburg, Erwin Panofsky and
Georges Didi-Huberman, seeking to place the tarot as an object that benefits from the
studies carried by the Art History field.
APRESENTAÇÃO ............................................................................................................................11
1. INTRODUÇÃO .............................................................................................................................14
2. CONTEXTO HISTÓRICO DO TARÔ ................................................................................. 22
3. CONTEXTOS LOCAIS: pamela colman smith, arthur waite e suas influências ............ 33
4. ABORDAGENS ICONOLÓGICAS DA CORTE DE ESPADAS .................................... 51
4.1. rei de espadas ................................................................................................................................ 51
4.2. rainha de espadas ...................................................................................................................... 60
4.3. cavaleiro de espadas .................................................................................................................. 74
4.4. pajem de espadas ....................................................................................................................... 85
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................................... 99
REFERÊNCIAS .............................................................................................................................. 106
GLOSSÁRIO:
LISTA DE IMAGENS
APRESENTAÇÃO
Uma noite em 2014, às vésperas de tomar um voo para a cidade de Pelotas, compro
meu primeiro tarô, um tarô Waite-Smith, numa livraria e, com a curiosidade que permeia
a maioria das pessoas quando o quesito é o tarô, imediatamente sento-me na mesa de um
restaurante com minha família e pergunto ao oráculo como seria meu voo do dia seguinte.
A resposta é “haverá um atraso”. Tomo nota mentalmente e, quando embarco no dia
seguinte, a voz do comandante anunciando 30 minutos de atraso me faz gelar o sangue. Eu,
sem nenhum treino ou formação naquele oráculo, pude ler, mesmo que minimamente, um
acontecimento futuro. Como? Sabia que não poderia – e atualmente nem intenciono –
explicar a crença e o caráter místico-oracular desse objeto, mas sim permear e investigar
suas práticas.
Como pude ler aquele resultado? Graças ao “pequeno livro branco” – um breve
encarte que acompanha a maioria dos baralhos de tarô e dá os significados mais
fundamentais de suas cartas. Naquela leitura do restaurante, tinha saído O Mundo, e, no
livro, um de seus significados era o atraso. Mas por que, dentre tantos significados, aquele
se sobressaiu? Será que, se eu soubesse mais significados, a mesma coisa aconteceria? Será
que minha mente tinha racionalizado a pergunta e selecionado o resultado mais provável?
Essas perguntas ficaram dormentes na minha mente até inscrever-me na disciplina de
Iconologia no semestre seguinte, em Pelotas. Nessa altura, já sabia significados básicos da
maioria das cartas e recebo do meu professor a famosa explicação do chapéu1 dada por
Panofsky (1892-1968). Diante daquele texto, o gelar do sangue me reencontra: Panofsky e o
tarô tinham o ícone e o símbolo como uma língua comum, o estabelecimento de uma
leitura das imagens. Haveriam outras áreas da arte compactuadas com o tarô? Quais?
Como ninguém dentro da academia mencionava o baralho mesmo com tantas
proximidades? Teria eu que ser essa pessoa?
1
Panofsky menciona o ato de levantar o chapéu durante um cumprimento como uma ação que
reproduz o hábito da antiguidade de revelar o próprio rosto para cumprimentar, fazendo deste ato
um ato simbólico. (PANOFSKY, Erwin. "Iconografia e Iconologia: Uma introdução ao estudo da arte
da Renascença". In: Significado nas Artes Visuais. São Paulo: Perspectiva, 2ª ed., 1986, p. 47-65.)
13
Ainda era 2014, meu segundo ano na Graduação em Artes Visuais na Universidade
Federal de Pelotas, a pesquisa começaria aí. Essa semelhança entre o estudo das imagens da
história da arte – o Renascimento, no caso de Panofsky – e o estudo das cartas do tarô passa
a ser uma constante dentre meus interesses. Havia uma necessidade de mostrar à
comunidade acadêmica que ela poderia se expandir até o tarô, algo que não era
amplamente observado pelos pesquisadores.
Chego a 2015 com as dúvidas e necessidades já mencionadas e uma proficiência
maior no tarô: pouco a pouco as cartas tornam-se conceitos na minha mente e viram
palavras-chave para situações cotidianas e do campo da arte, mas, mais uma vez, essas
ideias ficam dormentes diante da nova força que domina meu campo de estudo e de
interesse até o fim da graduação: a Semiótica.
Aproximar-me das noções da semiótica francesa – com suas progressões e
estruturas narrativas – e da semiótica americana – com as propostas de ícone, índice e
símbolo de Peirce (1839-1914) –, eu me via diante de ferramentas extras para analisar o
baralho de tarô unindo a observação da imagem com os significados das cartas.
Na mesma época, meu apreço pelo tarô e pela semiótica se expande e engloba
também os estudos feministas. Essa parceria cria uma tríade entre tarô-arte-feminismo
que sustentaria meu trabalho de conclusão de curso em 20172. A pesquisa unia imagens
diferentes da carta A Imperatriz, uma das poucas que é voltada à experiência feminina no
baralho, divididas em quatro categorias que elaboro num quadrado semiótico, criado
depois de entrar em contato com os escritos de Andrea Dworkin (1946-2005) sobre os
estereótipos femininos na mitologia e nos contos de fada. Os quatro tipos de Imperatriz
que identifico nos baralhos – santa, bruxa, feiticeira e amazona – ganham versões
desenhadas por mim especialmente para o trabalho.
Em 2018, completo a graduação e logo em seguida inscrevo-me no Mestrado em
Artes Visuais na mesma universidade, visando dar continuidade àquela ideia dormente de
2015, que via o tarô como conceito que pode colaborar com o campo da arte em alguns
2
GONÇALVES, M. X. A Imperatriz: Mulheres, símbolos e desdobramentos. 2018. 73 f. Trabalho de
Conclusão de Curso (Bacharelado em Artes Visuais). Centro de Artes. Universidade Federal de
Pelotas. Pelotas, 2018. Disponível em:
pergamum.ufpel.edu.br/pergamumweb/vinculos/0000a4/0000a451.pdf
14
níveis. Agora, com maior lastro teórico, recebo de meus professores propostas de artigos
finais de suas disciplinas, que inevitavelmente tornam-se discussões sobre arte e tarô. A
antologia desses artigos torna-se minha dissertação3, que olha para a arte contemporânea e
vê significados das cartas dentro de trabalhos de artistas como, por exemplo, a
introspecção e sensibilidade do arcano A Lua também na poética de Lygia Clark (1920-
1988).
Concomitantemente, as ideias anteriores permanecem em minha mente: aquelas
do campo da Iconologia que ainda permaneciam inexploradas na pesquisa. Com isso, sinto
a necessidade de aprofundar-me em História da Arte, o que me trouxe ao Mestrado em
Artes Visuais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Se os estudos explorados por Panofsky pareciam tão aliados ao tarô, teriam eles
origens em comum? Qual seria essa origem? Como poderia um colaborar com o outro?
Seria Panofsky realmente o pivô desse processo ou haveria outros colaboradores próximos
a ele que poderiam me ajudar no processo de pesquisa?
E as imagens? Qual o papel e a importância delas nesse processo? Como eu poderia
aprofundar-me nelas? Poderia desvelar seus pontos de origem e observar seu trajeto e
possíveis destinos?
Assim como o voo que iniciou essa seção do texto, esse processo de pesquisa encara
suas particularidades, lidando com as turbulências tradicionais do caminho do
pesquisador, mas, mesmo que haja mudanças de rota, seu destino permanece: de onde vêm
as imagens do tarô e para onde elas vão?
3
GONÇALVES, M. X. Tarô: reverberações em poéticas contemporâneas. 2020. Defesa de
Mestrado (Mestrado em Artes Visuais). Centro de Artes. Universidade Federal de Pelotas. Pelotas,
2020.
Disponível em:
guaiaca.ufpel.edu.br/bitstream/prefix/6548/1/Dissertacao_Mirna_Xavier_Goncalves.pdf
15
1. INTRODUÇÃO
4
Religião fundada na década de 1950 por Gerald Gardner na Inglaterra, visando reavivar questões
relacionadas à bruxaria, como, por exemplo, a espiritualidade voltada aos ciclos da natureza, do
cosmos e do ser humano.
5
Adaptações de religiões pagãs da Antiguidade para a época contemporânea
6
Religião similar ao o neopaganismo, mas visando maior embasamento histórico para fomentar
suas práticas religiosas.
7
BUCKLAND, Raymond. Witchcraft From the Inside: Origins of the Fastest Growing Religious
Movement in America. 3ª edição. Llewellyn Publications. 1994
16
8
Como preconizado por Didi-Huberman, que, diante dos trabalhos de Aby Warburg, elabora as
sobrevivências das imagens como figuras que resistem às ações do tempo e permanecem em
circulação (DIDI-HUBERMAN, Georges. Diante do Tempo: História da arte e anacronismo das
imagens. 1ª edição. Belo Horizonte: Editora UFMG. 2015.)
9
A imagem alegórica é trazida aqui como aquela cujo modo de expressão ou interpretação
consiste em representar pensamentos, ideias e qualidades sob forma figurada. (OXFORD
LANGUAGES)
17
Levando em consideração que essa é uma das poucas pistas que nos atam ao
processo criativo do baralho de Pamela Smith, será necessário perscrutar o contexto socio-
cultural da artista para evidenciar suas referências.
O baralho de Pamela atravessa o século, sendo um dos mais populares baralhos de
tarô da história e reavivando as imagens do século XV, que estavam dormentes na história
da cultura. O sucesso de seu baralho pode ser firmado em alguns pontos: (1) foi um dos
baralhos de maior circulação na história do tarô, especialmente por seu contexto histórico,
que permitia melhor nível de impressão e mercantilização do objeto; (2) é um dos poucos
baralhos até aquele momento que retratava arcanos menores a partir de seus significados, o
que fez dele (3) um baralho relativamente acessível para o público leigo, que pôde intuir os
significados através de suas imagens, bem como memorizá-los através das mesmas.
Este trabalho visa, portanto, investigar em especial os contextos socio-histórico-
culturais e o processo de criação da artista neste baralho, aprofundando-se conjuntamente
nos precedentes – especialmente visuais –, trazidos através da história dos baralhos de tarô
e suas influências, como a alquimia, a história e mitologias diversas, entre outros fatores.
Das 78 cartas que compõem um tarô, este trabalho abordará quatro – todas as do
naipe de espadas, do conjunto chamado cartas da corte, que, nos baralhos de jogo
contemporâneos, corresponde aos quatro conjuntos de valetes, damas e reis. No tarô, essas
posições palacianas são substituídas por pajem, cavaleiro, rainha e rei (em alguns baralhos
chamados de princesa, príncipe, rainha e cavaleiro, respectivamente). (Figura 1)
Esse recorte foi feito para investigar a alteração visual e conceitual desse conjunto
de lâminas ao longo dos séculos, bem como verificar as idiossincrasias do tarô Waite-
Smith em relação aos seus antecessores, especialmente em relação à atuação poético-visual
de Pamela Smith. Esse conjunto específico de cartas também age como um limiar entre os
arcanos maiores e menores do tarô: possuem naipes, como os arcanos menores, mas não
números.
O principal motivador de seleção deste recorte envolve o simbolismo da corte, que
também está atrelada às cartas características de personalidade e aparência, e são
relacionadas a figuras notáveis da história. Essa característica faz com que os significados
atribuídos às cartas da corte estejam também muito relacionados às histórias de vida ou
19
mitologias que cercam os personagens ali representados – por exemplo, Atena como a
Rainha de Espadas, o que atribui diferentes aspectos à carta.
Essas associações fazem da corte em questão, a corte de espadas, um conjunto
particularmente propenso à ruptura de estereótipos estabelecidos pelas outras cortes –
rainhas como figuras maternais, por exemplo – o que instiga o questionamento: as imagens
da corte de espadas exibem esse caráter de ruptura?
A investigação desse conjunto de cartas contará com observações dos seus
elementos formais e possíveis desdobramentos destes – significados, fontes, contextos
históricos, entre outras informações –, sendo esse o foco da pesquisa, que contará com os
direcionamentos fornecidos por diferentes herdeiros da tradição inaugurada por Aby
Warburg (1866–1929) para abordagens que envolvem a sobrevivência de motivos
recorrentes nas imagens, em especial as aproximações iconográficas e iconológicas,
contando com as diretrizes de tanto Erwin Panofsky (1892–1968) quanto de Carlo
Ginzburg (1939-) como direcionamento.
Panofsky propõe a iconografia como um desdobramento da história da arte, cujo
foco é o significado das obras de arte, apontando três processos distintos para verificar a
construção de sentido das obras: (1) a pré-iconografia, que trabalha na identificação dos
elementos demonstrados na obra, (2) a iconografia, cujo processo é o de interpretação das
figuras encontradas, e (3) a iconologia, que compreende a força motriz na qual a obra está
envolta (PANOFSKY, 1962). Estas três etapas, aqui brevemente pontuadas, serão pautas
para a elaboração da pesquisa.
Diante dessa observação, esse trabalho volta seu olhar ao contexto histórico-
cultural que formou a estrutura das imagens do tarô, pavimentando o caminho de Pamela
Smith e a construção do simbolismo de seu baralho. O termo aqui pontuado como
simbolismo, portanto, fica demarcado como o sistema de símbolos engendrado entre
imagem e contexto cultural.
Um dos problemas encarados por esta pesquisa envolve o contexto de criação das
cartas de Pamela Colman Smith. A artista precisou preencher lacunas por não possuir
acesso completo aos textos que elucidariam o caráter interpretativo do tarô: alguns dos
20
símbolos trazidos por ela estão presentes no conteúdo do Liber T, mas muito do que é
ilustrado por ela evade este escopo.
Panofksy ainda cunha o conceito de iconologia, que é definido como um sintoma
de uma época, de um contexto cultural ou de um grupo. (PANOFSKY, 1962). Nesse caso, o
mote reinante acerca do tarô de Pamela Colman Smith é o oculto.
A separação entre o que é de comum acesso e o que é oculto por motivos místicos
paira sobre todas as cartas e pauta as ações e escolhas da artista em seu processo criativo. As
lacunas entre o que é visto e o que é escondido abrem espaço para esta pesquisa.
Ao contrário de Pamela Smith, nós, no século XXI, temos acesso ao Liber T – após o
declínio da Ordem Hermética da Aurora Dourada. Em meados de 1900, seus textos
sagrados e liturgias perderam o caráter hermético que antes permeava a organização e,
ainda, mais tarde, com o advento da internet, esses textos se tornaram de amplo e comum
acesso ao público.
Com esses mapas em mãos – o Liber T, as cartas produzidas por Pamela Smith, as
propostas idealizadas por Arthur Waite e o contexto histórico que acompanhou todos
estes acontecimentos –, podemos fazer o trajeto partindo da imagem e indo em direção ao
texto, seguindo as indicações propostas por Panofsky para alcançarmos este objetivo.
O autor alemão ainda comenta que a iconografia – especialmente quando voltada às
alegorias e outras imagens produzidas para um ato interpretativo – apoia-se fortemente no
texto de base: uma alegoria de uma das virtudes bíblicas, por exemplo, se valerá do
contexto bíblico para sua interpretação.
Neste estudo de caso, porém, já que a artista não teve o privilégio de acesso total aos
textos de base, prefiro Carlo Ginzburg como o autor que nos auxiliará a traçar o caminho
oposto: ao invés de percorrermos o caminho fontes-imagens, precisaremos iniciar nossa
jornada a partir das imagens, num trajeto imagens-textos.
Vale pontuar que a dinâmica entre texto-imagem é um assunto caro às pesquisas
em História da Arte, especialmente no que tange o limite entre a poética do artista e a
fidedignidade à narrativa que origina a obra, que compõe um dos interesses desta pesquisa.
21
10
Referência ao título do livro O meio como ponto zero: metodologia da pesquisa em artes
plásticas, que estabelece, no campo das pesquisas em Artes Visuais, o ponto em que se está
como um ponto inicial, olhando para as linhas do passado como contribuintes e elaborando as
possibilidades das linhas do futuro na pesquisa.
22
Figura 1: Cartas da corte do Tarô Rider-Waite-Smith. c. 1909. Idealizado por Arthur Waite.
Ilustrado por Pamela Colman Smith. Publicado originalmente por Rider and Son. 78 cartas.
Gravura sobre papel cartão. Fonte: albideuter.de
23
Figura 2: Cartas do Sultanato Mameluco (conhecidas por Mamluk Cards ou Topkapi Deck).
Reconstrução datada do séc XV. Autoria desconhecida. Pintado e ilustrado à mão.
Fonte: wopc.co.uk.
Figura 3: Proibição aos jogos de cartas no século XIV. Estima-se que foi escrita pelo
escrivão de Bern em 1367 (redigido como MCCCLXVII, na nona linha) e
proíbe, entre outras atividades, os jogos de cartas (kartenspil, na quinta
linha) (KAPLAN. 1978. P. 25)
25
Deste conceito, surge o Tarô de Andrea Mantegna (c. 1470-1485), que, apesar de
seu título, não foi produzido pelo artista em questão, mas por dois diferentes artistas cuja
identidade ainda é incerta. Suas imagens não se configuram da mesma forma que as de um
baralho de tarô, mas sim como alegorias que remetem à mitologia grega, à astrologia, às
classes sociais da época e a outros assuntos, formando uma estrutura que não coincide com
as 78 cartas já mencionadas.
As classes mais abastadas possuíam baralhos com o teor como o do Tarô de
Mantegna, com fins didáticos, para instruir seus jovens nos assuntos representados pelas
alegorias, como por exemplo o ensino do trivium (gramática, lógica e retórica) e do
quadrivium (música, aritmética, astronomia e geometria), ambos presentes no baralho em
questão.
Visconti. Esse baralho, cujas cartas não sobreviveram às provas do tempo, era composto
exclusivamente por cartas da corte.
O que resta deste baralho é o registro realizado por Marziano da Tortono, secretário
do duque, que pontua 16 cartas representando deuses greco-romanos e quatro naipes
constituídos de pássaros – águia, fênix, pomba e pomba-rola. Cada naipe representaria
uma qualidade: virtudes, riquezas, prazeres e virgindades, respectivamente (FARLEY,
2009. P 36).
Neste período, estas famílias encomendavam baralhos feitos a mão para os artistas,
que criavam lâminas com riqueza de ornamentos e pigmentos, o que refletia a fortuna de
seus patrocinadores. Diferentes registros afirmam a ocorrência dessas encomendas
realizadas a partir de duques e outros membros de diversas cortes europeias (KAPLAN.
1978. P. 26).
As comissões de Filippo Maria Visconti não serviam somente aos fins recreativos,
mas também estabeleciam a identidade visual da família: muitos dos símbolos heráldicos
dessa corte estavam presentes nas cartas, e isso determina cânones visuais para muitos dos
arcanos ao longo dos séculos.
Esse feito é visto nas cartas de copas, por exemplo, que trazem a fonte imagem
heráldica da família em algumas cartas. Nos arcanos menores, assim como nas cartas de
jogo atuais, o número de representantes do naipe corresponde ao número da carta. Nas
lâminas cuja taça só aparece uma vez (nas cartas da corte e no ás de copas), esse símbolo
torna-se mais elaborado e mescla seus elementos aos da fonte da família Visconti-Sforza
(Figura 5).
Há uma adaptação desse brasão familiar para que ele se torne uma taça, no caso do
pajem, e há variações formais mais drásticas se este baralho é comparado ao baralho de
Waite, idealizado séculos depois. O formato da taça, nos três casos citados na Figura 5,
trazem uma estrutura similar: o formato da parte do cálice é geometrizado, seguindo a
heráldica Visconti-Sforza.
O Tarô de Visconti-Sforza é um exemplo de baralho produzido como emblema de
ostentação de poder, com detalhes pensados especialmente para seu financiador. Ese tipo
29
de baralho, porém, abre espaço para baralhos feitos através do processo de gravura, o que
permitia uma produção seriada das cartas.
Um dos baralhos que representa esse processo é o Tarô Sola-Busca (c. 1491), o
primeiro tarô completo desse período já registrado até a atualidade. Ele conta com todas as
78 cartas produzidas através de gravura em metal por Nicola di maestro Antonio (1448–
1511). Seu nome vem dos seus antigos donos: a Marquesa de Sola e o Conde Busca. O item
atualmente encontra-se na Pinacoteca di Brera, em Milão, na Itália.11
Esse também é o primeiro baralho conhecido que conta com ilustrações descritivas
para a sessão dos arcanos menores, que eram geralmente contidos em desenhos que
indicavam seu naipe e número. Esta mudança chega ao tarô Waite-Smith, que se utiliza do
mesmo mecanismo para representar os significados das cartas através de uma imagem
alegórica. Outra peculiaridade do Sola-Busca envolve o conjunto de cartas de interesse
desta pesquisa: as cartas da corte aqui possuem nomes, títulos e personagens que condizem
com equivalentes históricos, mitológicos e místicos (Figura 6).
Esse baralho, que fica sob a posse da família Busca-Serbelloni por séculos, chega às
graças do público através de fotografias em preto e branco disponibilizadas pelo Museu
Britânico em 1907. Os pesquisadores envolvidos com a investigação histórica dos baralhos
Sola-Busca e Waite-Smith traçam paralelos visuais entre os dois baralhos através do acesso
de Arthur Waite e Pamela Colman Smith às fotografias do Sola-Busca em Londres dois
anos antes do desenvolvimento do baralho Waite-Smith. Essa relação entre os dois decks
será revisitada ao longo deste trabalho.
Outro vínculo estabelecido entre a noção contemporânea de tarô e a de tarocchi do
século XVI é o seu uso oracular, que se mantém predominante no século XXI. O uso de
baralhos de cartas para prever o futuro é algo já registrado em 1540 através do livro Le sorti,
de Francesco Marcolino da Forli, que, em seu relançamento 10 anos após a primeira
edição, conta com explicações e perguntas a serem respondidas através de baralhos de
cartas (KAPLAN. 1978. P. 28). A predominância do tarô como ferramenta da cartomancia
só será vista na Europa séculos depois.
11
Texto disponibilizado pela Pinacoteca di Brera sobre o Tarô Sola-Busca:
http://images.brera.beniculturali.it//f/Documenti/so/solabusca_english2
30
A conquista de Milão pelas forças francesas e suíças no século XVI leva as imagens
dos baralhos milaneses para outros pontos da Europa, em especial à França, que estabelece
em Marselha um baralho através dos moldes italianos.
Figura 6: Tarô Sola-Busca. c. 1491. Nicola di maestro Antonio. Excerto de 16 cartas das 78 que
compõem o baralho. Gravura em metal sobre papel cartão. Domínio Público.
31
Figura 7: Tarô de Marselha. c. 1751. Claude Burdel. Restauração de 1987. Excerto de 16 cartas das
78 que compõem o baralho. Gravura sobre papel cartão. Fonte: albideuter.de
33
Uma das pioneiras do pensamento esotérico nesse período, Helena Blavatsky (1831–
1891) se muda para Londres em 1887, levando consigo a potência mística que havia
implantado nos Estados Unidos. Essa influência fomenta novas sociedades esotéricas e dá
mais força às que já estavam em andamento na capital inglesa.
Nesse cenário, nasce o principal baralho a ser analisado neste trabalho: o baralho
Waite-Smith, que foi idealizado por Arthur Edward Waite e ilustrado por Pamela Colman
Smith, ambos versados em diferentes níveis nas práticas litúrgicas da Golden Dawn,
voltados às questões míticas regionais, como as lendas arturianas, e também abertos às
possibilidades culturais do resto do mundo, como o caso de Smith e sua maestria no
folclore jamaicano.
34
Suas atividades no meio artístico não eram restritas somente às artes visuais: ela era
ativa também nas áreas do teatro, da poesia, da contação de histórias, das miniaturas, da
performance, das causas sociais, em especial voltando-se para as questões que envolveram
o movimento sufragista e os movimentos de auxílio às populações afetadas pelo pós-
guerra ao fim da Primeira Guerra Mundial.
12
“[Pamela Colman Smith] describes herself as a ‘goddaughter of a witch and sister to a fairy.’”.
(KAPLAN, et al. 2018. p. 14).
13
KAPLAN, et al. 2018. p. 12-14
35
Waite lidera um dos lados dessa divisão, almejando uma prática mística que visa
não revelar os segredos da Ordem e voltar-se para um contexto católico, tendo interesse
em elaborar um baralho de tarô com esta premissa e vê em Pamela Smith a possibilidade de
concretizar esse plano.
A moça – que já tinha contato com o tarô, que dividia com Waite o apreço pelo
catolicismo e que já fazia parte da Ordem Hermética – seria a artista encarregada de
ilustrar o baralho proposto por Waite seguindo algumas das indicações do Liber T, acima
de tudo dando seguimento aos planos de A. E. Waite para o baralho.
Ele, que mantinha um imenso apreço pelos códigos de conduta da Golden Dawn,
desejava um baralho que pudesse ser comercializado sem que os segredos esotéricos da
Ordem fossem revelados – nem mesmo, como já observado, à artista que ilustraria as
cartas.
Sendo assim, ele descreve metodicamente os arcanos maiores para que sejam
fielmente ilustrados de acordo com os princípios, que caminhavam na fina linha entre a
exposição e o ocultamento da Ordem; o pagão e o cristão; a obediência ao cânone da
Golden Dawn e a liberdade poética da artista.
Dentre os assuntos de interesse compartilhados tanto por Pamela Smith quanto por
Arthur Waite, estão os mitos, o folclore, as lendas, e as culturas regionais das Ilhas
36
Britânicas, como por exemplo o ciclo arturiano, em especial seu apelo religioso voltado
para o catolicismo.
Tendo viajado pelo mundo desde muito jovem, Pamela Smith teve contato com
histórias de diversos locais, ilustrando-as quando possível e fazendo carreira na função de
contadora de histórias. Como ilustradora, seus principais temas cercavam os contos de
outros países.
Uma de suas paradas fez-se nos Estados Unidos, terra natal de seu pai e onde ela
teve acesso ao ensino do Pratt Institute, recebendo educação formal através de Arthur
Wesley Dow (1857–1922), professor no instituto e membro do Arts & Crafts Movement14,
que criava uma contracorrente à Revolução Industrial
Da parceria de Smith com Dow, surge o contato com o trabalho de Howard Pyle
(1853–1911), mais um os membros do movimento Arts & Crafts cujas obras voltadas para o
público infantil se destacam, em livros, contos e ilustrações baseados no folclore britânico.
maior intensidade pela Europa do fim do século XIX e abrange interesses como um campo
metafísico, lendas e contos locais, mitologias. (Enciclopédia Itaú Cultural)
37
transformado na The Green Sheaf Press, editora que publicaria variados volumes,
trabalhando com Sir Lawrence Alma Tadema, Jack Yeats, e muitos outros contribuidores.
Além disso, ela estava imersa no contexto do teatro através de suas conexões: a
jovem artista convivia com atrizes e atores que dividiam com ela o apreço pelo antigo, pelo
medieval e pelo fantástico. A moça era frequentadora do Smallhythe Place, casa da atriz
39
britânica Dama Ellen Terry (1847-1928), que a inseriu nos espaços das companhias de
teatro, onde ela desenvolveria material gráfico. (Figura 13)
A parceria entre Smith e Terry ainda se estendeu à filha da atriz, Edith Craig (1896-
1947), que fora incluída no baralho de Pamela como modelo de muitas das personagens
representadas (Figura 14). A própria Ellen Terry é vista em algumas das cartas que ecoam
as personagens que ela interpretou no teatro.
Figura 8: Prancha de Influências Formais I. Colagem digital Elaborado pela Autora. 2021.
40
Figura 9: Prancha de Influências Formais II. Colagem digital Elaborado pela Autora. 2021.
41
Figura 10: Prancha de Influências Formais III. Colagem digital Elaborado pela Autora. 2021.
42
Figura 11: Prancha de Influências Formais IV. Colagem digital Elaborado pela Autora. 2021.
43
Figura 12: Pamela Colman Smith, poster para o calendário Shakespeare's Heroines
de 1899. litogravura, 1898. Mark Samuels Lasner Collection. Disponível em udel.edu
44
Figura 13: Prancha Ellen Terry. Colagem digital Elaborado pela Autora. 2021.
45
Figura 14: Prancha Edith Craig. Colagem digital Elaborado pela Autora. 2021.
46
Figura 15: Prancha Maude Adams. Colagem digital Elaborado pela Autora. 2021.
47
O próprio Smallhythe Place foi o foco de várias das imagens das cartas, servindo de
pano de fundo para cartas como, por exemplo, o nove de ouros presente no compilado da
figura 9. Pamela, portanto, mesclava seu cotidiano às cartas quando podia, inserindo desde
grandes paisagens do interior da Inglaterra como panos de fundo para alguns arcanos até o
pequeno gato preto da família de Ellen Terry como integrante da cena da Rainha de Paus.
As influências dispostas pela autora em seu baralho são recomendadas por ela
quando se dirige aos colegas membros do movimento Arts & Crafts no texto “Should the
art student think?” [Deve o estudante de artes pensar?]. Smith instiga seus colegas a
refletir sobre seus objetivos como artistas visuais e analisar se estão perseguindo as
referências adequadas para alcançar seus fins.
Ela menciona o teatro como uma importante referência para aqueles que desejam
desenhar a figura humana e suas reverberações, e adentra o campo já estabelecido por Aby
Warburg: o dos gestos demarcados pelas emoções: “Primeiro, veja as formas mais básicas
de alegria, medo, pesar; veja a posição realizada pelos corpos e posteriormente veja as
expressões da face.”15 (SMITH, 1908. p 417)
15
“First watch the simple forms of joy, fear, of sorrow; look at the position taken by the whole
body, then the face - but that can come afterward”. SMITH, P.C. Should the Art Student Think? In:
The Craftsman, v. XIV, n. 4, julho de 1908, p 417-419
48
Ela mesma segue seu próprio conselho, sorvendo imagens e referências dos amigos,
professores e do movimento no qual se inclui. Ao colocarmos lado a lado as produções das
pessoas que tangenciam a biografia da artista, podemos observar concomitâncias.
Em seu texto, Pamela Smith contesta o caráter de consumismo acelerado que nascia
no seu contexto histórico ao mencionar que a imprensa massificada havia sufocado a
inspiração artística com uma demanda excessiva. Ironicamente, o baralho da artista torna-
se um dos mais difundidos do mundo por conta da impressão em massa, sendo atualmente
encontrado em baixa qualidade de produção com facilidade e tendo se transformado em
um dos baralhos de tarô mais difundidos no século XXI.
Com as influências de Pamela Colman Smith dispostas sobre a mesa, podemos nos
questionar sobre como tais imagens se ordenam no trabalho da artista e como essas
questões se desenvolvem para além dela. Podemos fazê-lo de forma linear, traçando uma
linha do tempo evolutiva das cartas em questão, como foi feito em grande parte da História
da Arte.
Porém, como já trazido anteriormente, o olhar lançado sobre essas imagens será
voltado aqui aos procedimentos empregados por Carlo Ginzburg, que ecoam com o
trabalho de Aby Warburg. Voltando para a menção à linha do tempo: se observarmos e
refletirmos sobre a linha como objeto – o fio, o barbante –, ele nasce como um grande
acúmulo de material (montes de algodão ou lã, por exemplo). A linha do tempo pode ser
inicialmente uma nuvem do tempo.
49
A mesma noção circula em torno da maioria dos oráculos ao longo da história: o ato
de permear aquilo que está intangível, de alcançar o espaço entre duas ou mais questões
que são relevantes para uma previsão oracular. O próprio processo de Pamela Colman
Smith atua de forma semelhante – recebendo influências do teatro, da música, das artes
visuais, do esoterismo e diversas outras áreas –, sendo, como ela própria propõe, um
grande conglomerado de referências.
Tal observação de forças não-ditas já é pontuada por Jean Lancri (1936-), que
descreve o processo de pesquisa em arte como o de um jogo de xadrez (LANCRI, 2002)16.
O olhar warburgiano, especialmente quando refletido por Didi-Huberman e Carlo
Ginzburg, também pode se sustentar numa lógica semelhante: se o tabuleiro de xadrez
permite ao enxadrista a observação das linhas de força entre as peças17, a mesa desempenha
16
LANCRI, Jean. Colóquio sobre a pesquisa em artes plásticas na universidade. In:
O meio como ponto zero: metodologia da pesquisa em artes plásticas. Porto Alegre:
Ed.Universidade/UFRGS. 2002.
17
SOUSA, Ruth. Pesquisador como estrategista: sete propostas estratégicas inspiradas no jogo de
xadrez e aplicadas à conte da pesquisa em arte. In: Revista-Valise, Porto Alegre, v. 1, n. 2, ano 1,
dezembro de 2011.
50
Até aqui, pudemos fazer uma escavação do trabalho de Pamela Smith e do tarô:
herdamos desta artista um imenso balaio de possibilidades e aqui pudemos desfiar esse
pacote e revelar alguns de seus itens sem esgotar suas abordagens.
Uma dessas abordagens está no dizer “o bom deus está nos detalhes”, atribuído a
Warburg e reforçado metodologicamente por Ginzburg que, como já pontuado, apoia-se
nos conceitos reiterados pelo Atlas e segue os rastros dos detalhes em suas pesquisas ao
voltar o olhar para minúcias presentes nas imagens – uma mirada, uma palavra, uma
gestualidade das mãos (GINZBURG, 2008).
18
SAMAIN, Etienne. As “Mnemosyne(s)” de Aby Warburg: Entre Antropologia, Imagens e Arte. In:
Revista Poiésis, Rio de Janeiro, n 17, Jul. de 2011. p. 29-51.
51
presente. O que, muitas vezes, impulsiona esse insight para Ginzburg é o apelo visual
providenciado pelos ilustradores das cartas – os mesmos detalhes visados pelo historiador
italiano em suas observações de cartazes políticos, por exemplo.
Sendo assim, os capítulos seguintes voltam sua atenção para essa possibilidade, a de
justapor imagens sublinhando um ponto em comum que se atrela a desdobramentos da
história das imagens.
52
O rei ainda se expressa de maneira séria, compenetrada em seu ofício que, como já
pontuou Waite, afirma a capacidade para a vida e para a morte. Esse sentido é bastante
visível quando a carta é comparada à O Imperador, que posa como esse rei.
Ambos se sentam em seus tronos, olhando fixamente para o observador e
segurando ícones de seu poder na mão direita – a espada e o cetro.
19
He sits in judgment, holding the unsheathed sign of his suit. He recalls, of course, the
conventional Symbol of justice in the Trumps Major, and he may represent this virtue, but he is
rather the power of life and death, in virtue of his office. (WAITE, 1910. P 82.)
20
When the fiery, creative, commanding impulse of the paternal Yod expresses itself through the
intellectual realm of Air, we see the egoic, self-conscious faculty of reason, a piercing and brilliant
intellect, separative and discriminating, controlling, commanding, and imperious. These faculties,
which have permitted civilization and science to emerge and flourish, give enormous ability and
advantage; yet they are also cruel, callous, and impersonal.
54
Figura 17: Prancha para o Rei de Espadas (Autoridade). Colagem digital. Elaborado pela Autora. 2021.
55
Nele, está a ilustração de uma corte organizada pela Liga da Corte Sagrada (vehmgericht,
em alemão), que recebiam a iniciação de um novo membro de sua organização.21
A ordem, conhecida por vehm, fazia julgamentos e tribunais que atuavam de forma
extraoficial na região germânica, onde essas cortes de vigilantes agiam. Por eles, eram
aplicadas punições que se estendiam até a pena de morte.
Na ilustração trazida por Beeton, vemos os participantes da corte na mesma pose
que a do Rei de Espadas da carta de Pamela Smith: espada em riste enquanto sentam-se
num trono, colocando-se em status de superioridade em relação a quem os observa,
realizando o ato do julgamento.
Figura 18: BEETON, Samuel Orchard. “Beeton’s Historical Romances, Daring Deeds, and
Animal Stories. Illustrated etc”. Ward Lock: Londres, Inglaterra. 1871. Fonte: British Library
21
DU BOULAY, F. R. H. “Law Enforcement in Medieval Germany”. In: History. v. 63, n. 209, 1978. p.
345-355. Acesso online disponível em: <https://www.jstor.org/stable/24410549?seq=1>. Acesso
em mai/2021
57
O motivo visual de Pamela Smith em seu Rei de Espadas é estabelecido ao longo dos
séculos tanto dentro quanto fora do âmbito do tarô. Dentre as quatro cartas focalizadas por
este trabalho, essa é a que mais se adequa aos padrões estabelecidos por figuras como a de
Beeton.
Ao compararmos esse Rei aos outros monarcas presentes na história do tarô e já
evocados neste trabalho, como os do Tarô de Marselha, do Tarô Visconti-Sforza, ou do
Tarô Sola-Busca; podemos demarcar sua semelhança. Permaneceram as cartas que vieram
após o baralho de Pamela Smith, as cartas dos séculos XX e XXI, dentro deste padrão? Se
mudaram, como o fizeram?
O Rei de Espadas como uma figura imponente, que evoca o ar de autoridade
proposto por Cesare Ripa, e os tarôs que surgem após o trabalho de Pamela Smith
reconhecem essa constância imagética e optam por dois caminhos: manter-se no cânone
estabelecido para o Rei ou imprimir a ele uma visão divergente.
Uma invariabilidade é o estado de repouso no qual o rei se encontra, denotando
uma imponência imóvel, altiva e inflexível. Na figura 19, na coluna ao lado esquerdo estão
algumas cartas que trazem variações do cânone, enquanto o lado direito exibe cartas que
seguem os padrões.
A primeira carta da coluna da esquerda, o Pai de Espadas do The Wild Unknown
Tarot, reflete a postura estática do Rei de Espadas de Pamela Colman Smith, mas sua
presença se dá através de uma coruja e seu olhar atento e certeiro. Toda a corte de espadas
dest=se baralho trará o animal como figura principal e acentuará diferentes aspectos de sua
natureza conforme a potência do significado da carta. Nesse caso, a espécie Bubo bubo,
conhecida por coruja-águia da Eurásia, atrelando ao Rei o símbolo da águia, relacionada a
Zeus, o patriarca dentre os deuses gregos.
Já a segunda carta à esquerda, o Rei do Linestrider Tarot de Siolo Thompson, traz a
analogia do Rei de Espadas com o inverno ao representá-lo coberto de cristais de gelo. Essa
menção é trazida no Liber T e coloca o Rei de Espadas como uma figura que simula o gelo:
rigoroso, frio, rígido. Os tons frios auxiliam a trazer essa analogia para a carta, que recebe
mais uma camada provida pelo Liber T ao chegar ao Pagan Tarot.
58
Figura 19: Prancha para o Rei de Espadas (Cartas que vieram depois do Tarô Waite-Smith).
Colagem digital Elaborado pela Autora. 2021.
59
22
“Beautiful, fair, dreamy--as one who sees visions in a cup. This is, however, only one of her
aspects; she sees, but she also acts, and her activity feeds her dream” (WAITE, 1910. p 69)
23
“Her right hand raises the weapon vertically and the hilt rests on an arm of her royal chair the left
hand is extended, the arm raised her countenance is severe but chastened; it suggests familiarity
with sorrow. It does not represent mercy, and, her sword notwithstanding, she is scarcely a
symbol of power.” (WAITE, 1910. P 83)
24
THIERENS. A. E. The General Book of Tarot. Kessinger’s Legacy Reprints. 2010. Primeira
Publicação de 1930 disponível em <https://www.sacred-texts.com/tarot/gbt/gbt84.htm>.
Acesso dia 08 jul 2021.
62
A soberana de Espadas, portanto, sai do século XIX e XX como uma figura isolada
dentre as rainhas, evocando o oposto do que costuma ser atrelado a essa posição na corte
do tarô. Tal visão sobre ela sofre algumas alterações ao final do século XX graças a autores
como Rachel Pollack (1945-), que também enaltecem as características mentais e
intelectuais da figura:
25
“...the Queen of Swords symbolizes experiences of both sorrow and wisdom, and especially the
connection between them. Having experienced pain (the card sometimes signifies widowhood),
and having faced it with courage, acceptance and honesty, she has found wisdom.” (POLLACK,
2009. p. 213)
26
HOMERO. Odisseia. Trad. Frederico Lourenço. 1ª Edição. Ed. Quetzal: Lisboa. 2018
27
HOMERO. Ilíada. Trad. Frederico Lourenço. 1ª Edição. Ed. Quetzal: Lisboa. 2019
63
28
SANTA CATARINA DE ALEXANDRIA. Artigo disponível em
<http://www.arquisp.org.br/liturgia/santo-do-dia/santa-catarina-de-alexandria>. Acesso em 08
jul 2021.
29
Chamados de megalomártires, aqueles que são beatificados por passar por martírios.
65
Outro eco dessa divindade pode ser percebido através do entalhe da cabeça alada de
um bebê – que antes habitava a coroa do Rei de Espadas – e que agora está firmada no
trono da Rainha. Tal emblema evoca a memória do escudo de Atena, estampado com um
gorgoneion, ou seja, a cabeça de uma Górgona, o que era utilizado como um elemento
apotropaico30 pelos gregos na Antiguidade.31
No contexto da Golden Dawn, a relação entre o entalhe do trono e do aigis de
Atena como um ícone apotropaico é potencializada pelos outros elementos da cena – a
espada, o rosto sisudo da rainha –, que simbolizam a rejeição da tolice, o que afasta o
estudioso da Golden Dawn das verdades místicas.32
Um conceito similar se aplica ao observarmos as imagens trazidas por Jean-Jacques
Boissard (1528-1602), que no livro Emblemes latins de 1588 representa a Virtude com
características da dualidade Atena-Rainha de Espadas: uma mulher vestida com um robe,
segurando uma espada enquanto senta num trono. A Virtude de Boissard veste partes de
uma armadura bem como a rainha de espadas do Tarô Visconti Sforza.
O contexto neoplatônico dos baralhos de tarô se mescla nas virtudes platônicas e
cristãs33 em alguns arcanos maiores, como A Força e a Temperança, cujas imagens são
construídas como alegorias. A Virtude de Boissard e a Rainha de Espadas não se mostram
com essa configuração: são aquelas que seguem essas virtudes ao invés de personificá-las.
Diante desse panorama, nos deparamos com a imagem de número 6 na figura 21,
elaborada por Howard Pyle (1853-1911). Essa rainha entra em circulação em 1903 no livro
The story of king Arthur and his knights. Ela, assim como as outras personagens da
coletânea da figura 21, se enquadra no padrão da Rainha de Espadas de Pamela Colman
Smith trazendo um rosto em perfil, uma coroa e a espada em riste.
30
Aquilo que afasta o mal. Termo aplicado em especial às práticas religiosas da cultura grega na
antiguidade, que utilizavam como símbolos apotropaicos imagens do gorgoneion.
31
HARTSWICK K.J. The Gorgoneion on the Aigis of Athena: Genesis, supression and survival.
Revue Archéologique Nouvelle Serie. Fasc. 2. 1993. p.269-292. Disponível em
<https://www.jstor.org/stable/41738384>. Acesso em 12 jul 2021.
32
WANG, Robert. O Tarô Cabalístico: Um manual de filosofia mística. Editora Pensamento: São
Paulo. 1983.
33
Força, Temperança, Sabedoria e Justiça são as quatro virtudes platônicas que reverberam
também no cristianismo e podem ser vistas na forma dos arcanos maiores A Força, Temperança,
O Eremita e Justiça.
67
A dúvida que permeia a ilustração de Pyle, porém, é quem está representada ali: no
livro, ela é o frontispício do capítulo no qual o Rei Arthur e sua futura rainha, Guinevere,
se conhecem. A barreira encontrada aqui é que a Rainha Guinevere é representada de
maneira diferente em outra ilustração dentro do mesmo capítulo.
Ao notarmos que a coroa é alada, com asas de cisne, e que a espada remete à
Excalibur no contexto arturiano, pode-se aproximar essa figura à Dama do Lago, mãe
adotiva de Lancelot na maioria das versões dessa lenda34.
Ela, que tem dentre seus símbolos o cisne, entrega a Arthur a Excalibur e age como
uma mentora em muitas ocasiões, sendo renomada por sua sabedoria. A relação entre a
corte de Espadas e as histórias do ciclo arturiano não se encerram nessa imagem: o
Cavaleiro de Espadas também carrega diversas conexões do gênero, como será
aprofundado posteriormente.
Levando em consideração essa versão da Rainha de Espadas fica visível que a
lâmina que ela carrega age como símbolo ao invés de ser o representante de algum ato de
violência na cena. Muitos baralhos optam por ir na direção oposta dessa constância,
fazendo da Rainha de Espadas não somente uma figura que representa seus atributos – a
astúcia; o pensamento tão afiado como uma espada – mas uma personagem ativa que se
vale da violência ao invés se seus dons intelectuais.
Com isso em vista, a figura 23 põe lado a lado a Rainha de Espadas com um mote
recorrente da História da Arte: a figura bíblica de Judite, constantemente retratada
decapitando o general Holofernes. Seu conto, descrito no livro apócrifo de Judite, se passa
na cidade de Betúlia durante seu cerco militar, comandado justamente por Holofernes.35
Uma das moradoras da cidade era Judite, uma viúva cuja beleza e astúcia eram
renomadas. Visando salvar sua cidade do cerco, ela adentra os aposentos de Holofernes, o
embriaga e arranca-lhe a cabeça com a ajuda de uma criada. Ambas penduram a cabeça
arrancada nos muros da cidade, sinalizando às tropas de Holofernes que o general estava
morto e fazendo-as bater em retirada.
34
A conexão entre as lendas arturianas e o tarô tornam-se extensas após a produção do baralho
de Pamela Colman Smith, dando ao séc. XXI decks voltados exclusivamente para essas lendas.
35
BOOK OF JUDITH. Britannica. Disponível em <https://www.britannica.com/topic/Book-of-
Judith>. Acesso em 13 jul 2021.
68
Figura 23: Prancha para a Rainha de Espadas (Judite com a cabeça de Holofernes).
Colagem digital Elaborado pela Autora. 2021
69
guerreira: aquela que não somente observa o embate, mas participa dele a sua maneira, não
segundo um conceito de estratégia e proteção, mas de alguma forma demonstrando
habilidade de combate.
Na figura 25, estão duas colunas de desdobramentos recentes da Rainha de Espadas,
visando contemplar as duas variações mencionadas para essa carta. A primeira variante, da
rainha comedida que contempla logicamente seus desafios, ao lado esquerdo, enquanto a
segunda variante, usualmente representada com uma cabeça masculina em uma mão e uma
espada na outra, se coloca na coluna ao lado direito.
A coluna da esquerda se inicia com a Rainha de Espadas do Arcanum Tarot, de
2018, cuja pose ecoa a rainha que ordena um acólito (Figura 24). Ela se põe altiva perante
um espaço enevoado que remete à carta de Pamela Smith, cujas nuvens baixas diferem o
cenário dessa rainha dos de seus colegas da Corte de
Espadas.
Na segunda imagem desta coluna, está a
Rainha de Espadas do baralho Linestrider Tarot, que
opta por adicionar a imagem das nuvens na própria
espada, enaltecendo a relação entre a arma e sua
associação com o elemento do Ar. Uma diferença
dessa rainha em relação às outras é que uma de suas
mãos toca na lâmina afiada sem temer sua agudeza,
mostrando a extensão do seu domínio sobre seu
naipe, seu reino. Ela, assim como a última rainha da
coluna, pertencente ao Tarot of the old path,
estabelece-se numa pose como se soubesse que está
sendo observada pelo cartomante, mantendo a espada
Figura 24: Accolade. Edmund Blair
Leighton (1853-1922). Óleo sobre empunhada e voltando seu olhar para longe.
Tela. Inglaterra. 1901.
As rainhas dessa coluna dividem entre si esse
aspecto em particular, a realeza posada como numa pintura encomendada por ela própria,
estabelecendo-a com uma aparência dominante, mas sem comprovar sua proficiência no
campo do intelecto ou da batalha.
71
Figura 25: Prancha para a Rainha de Espadas (Cartas que vieram depois do Tarô Waite-Smith).
Colagem digital Elaborado pela Autora. 2021.
72
36
Conjunto de textos do tantrismo que envolvem diálogos entre os deuses. Encontrados no Nepal
no século XVII cujos textos em sânscrito fazem parte do acervo do Museu Britânico.
73
Uma mulher com cabelos encaracolados, como uma rainha sentada em seu trono
e coroada. Abaixo do trono estão nuvens cumulus acinzentadas. [...] ela traz como
escudo a cabeça alada de uma criança. Em uma mão ela traz uma espada erguida e
na outra ela traz uma cabeça recém-decepada de um homem. (LIBER T, 2012. p.
73. Trad. minha)37
37
A graceful woman with wavy, curling hair, like a Queen seated upon a throne and crowned.
Beneath the throne are gray cumulus clouds. [...] but she wears, as a crest, a winged child’s head. A
drawn sword in one hand, and in the other a large, bearded, newly severed head of a man. (LIBER
T, 2012. p. 73.)
75
poderia ser o próprio Galahad, cuja espada é ágil e certeira pois ele é puro de coração.”38
(WAITE, 1910. p. 84).
A referência é a Galahad, herói das lendas arturianas, filho ilegítimo de Lancelot e
um dos poucos cavaleiros a alcançar o Graal. A principal característica desse personagem é
sua pureza e sua integridade, fortemente valorizados através de suas histórias e constantes
aventuras.
O trabalho em questão, o Cavaleiro de Espadas, se beneficia em especial da
celtomania por conta de sua figura principal, Galahad, que bebe em feitos de outros heróis
cavalheirescos para seu estabelecimento e se firma em torno do século XIII com a inclusão
de temáticas e morais cristãs na lenda do Rei Arthur através do Ciclo da Vulgata39.
Essas influências visuais ligadas ao ofício de cavaleiro ficam bem estabelecidas
quando justapostas, permitindo que tracemos os paralelos formais, temáticos,
iconográficos e de gesto entre os personagens, que também dividem outra característica
em comum: o foco na belicosidade crescente no século XIII, que desemboca na Guerra dos
Cem Anos.
A coletânea de imagens da Figura 28 abarca ilustrações que poderiam estar mais
facilmente disponíveis para Pamela Colman Smith até o período da criação do baralho,
que entra em circulação com sua primeira edição em 1909, sendo rapidamente substituído
pela segunda versão no ano seguinte, que era acompanhada do já mencionado livreto
escrito por Arthur Edward Waite.
O primeiro referencial é um outro cavaleiro de espadas, o do Tarô Sola-Busca, de
1491, que esteve em exposição no Museu Britânico em 1907 e é aceito como a principal
referência da artista para o seu próprio baralho.
A seguir, duas ilustrações de livro: a primeira realizada por Charles Émile Matthis
(1838-1893), cujo livro L'Alsace et les Alsaciens à travers les siècles circulou com suas
ilustrações pela Europa no período de produção do baralho criado por Pamela, trazendo
uma possibilidade referencial para a artista. A ilustração seguinte pertence ao já
38
“In the design he is really a prototypical hero of romantic chivalry. He might almost be Galahad,
whose sword is swift and sure because he is clean of heart” (WAITE, 1910. p. 84. Tradução minha)
39
Conjunto de prosas em língua francesa que envolvem o ciclo arturiano, escritas na primeira
metade do século XIII focando nas relações que envolvem o cavaleiro Lancelot e a busca ao
Santo Graal.
77
Figura 28: Prancha para o Cavaleiro de Espadas (Referências próximas à Pamela Smith).
Colagem digital Elaborado pela Autora. 2021.
79
Além da semelhança figurativa entre Galahad e São Jorge, os dois ainda estão
envolvidos em mitos formadores da Inglaterra como uma nação: Galahad, em sua lendária
busca do Graal sagrado, colabora com o mito de formação da unificação dos povos que
compunham a Inglaterra através do ciclo arturiano. O Graal torna-se símbolo da
comunhão desses povos através da fé cristã, que firma São Jorge como padroeiro do país40.
Outra constância que surge em terras inglesas depois do século XIII é a
representação de São Jorge cavalgando seu cavalo branco, o que também é visto em
Galahad e, consequentemente, no Cavaleiro de Espadas. As razões para tal variação no
cânone apontam para a Guerra dos Cem Anos, cujas batalhas envolviam as chevauchées,
constantes ataques estratégicos a cavalo para saquear e queimar cidades envolvidas nos
conflitos, reforçando a imagem do guerreiro a cavalo.41
Além dos envolvimentos com batalhas propriamente ditas, a imagem que envolvia a
tríade São Jorge – Galahad – Cavaleiro de Espadas é a do romance de cavalaria: contos
protagonizados por heróis que simbolizam ideais de integridade espiritual, pureza, amor e
bravura, entre outras questões. (Figura 30)
Os três personagens incorporam tais ideais, porém, no caso das lendas arturianas,
esse papel já fora preenchido por Lancelot, cujo romance envolvendo a Rainha Guinevere,
esposa do Rei Arthur, é tema de diversos contos que se enquadram no padrão de narrativas
cavalheirescas, tendo em vista que ele é um herói cujo amor por uma dama é nobre e
inatingível. O adultério de Guinevere com seu cavaleiro é demarcado como uma falha de
caráter de ambos, trazendo desgraças para o reino e séries de desventuras para sua corte.
Galahad surge como uma forma de retomar a exaltação à integridade do cavaleiro,
sendo o herói que encontra o Graal e ascende aos céus por sua nobreza de espírito. Essa
mesma característica é dividida por São Jorge, que traz a alcunha de Cavaleiro de Nossa
Senhora por equiparar-se a ela em sua pureza.
40
THE ENGLISH HERITAGE PODCAST: Episode 55: Saint, Soldier, slayer: Who was the real St.
George? Locução de Charles Rye e Prof. Dr. Michael Carter. English Heritage. 16 abr 2020. Podcast.
Disponível em:
https://open.spotify.com/episode/0hDcSLME1Cu3ZevKDv7rj0?si=JlQZorTeRwKbFglLAUWGvw.
Acesso em: 20 mar. 2021.
41
BENNETT, Matthew. The Development of Battle Tactics in the Hundred Years War. In:
CURRY, Anne; HUGHES, Michael. Arms, Armies and Fortifications in the Hundred Years War.
BOYE6 Publications. 1999
80
Tal realidade cria uma divisão na representação desse cavaleiro: alguns artistas
mantêm a representação cavalheiresca, seguindo o título da carta e seu cânone estabelecido
através da história; outros tomam algumas das constâncias conceituais que permeiam a
carta – o dinamismo, a movimentação, o desejo de batalhar por seus ideais – e
transformam-na visualmente. Há mudanças visuais na carta mesmo dentre os artistas e
elaboradores de baralhos de tarô que optam por manter as conotações cavalheirescas nas
ilustrações.
42
“As Fussell noted in a separate essay on ‘The Fate of Chivalry’, idealistic codes of chivalry,
popular in the Victorian age, became “ludicrously inappropriate” in World War I, defeated entirely
by ‘poison gas, zeppelin raids on civilians, the machine gun, and unrestricted submarine warfare,
not to mention such very unchivalric experiences as soldiers’ passively trembling under artillery
shelling hour after hour or soiling their trousers for weeks with acute dysentery [...]’”. Tradução
minha. Original em: TRUTHOUT. “World War I, the Death of Chivalry and the False End of War”.
Disponível em <https://truthout.org/articles/world-war-i-the-death-of-chivalry-and-the-false-
end-of-war/>. Acesso em 20 mar 2021.
82
43
Conjunto de textos datados aproximadamente da Idade do Ferro na região da Gália. Nele estão
contidas fábulas, contos e textos que engendram o que se conhece da mitologia do povo galês.
84
Figura 31: Prancha para o Cavaleiro de Espadas (Cartas que vêm após o Tarô Waite-Smith).
Colagem digital Elaborado pela Autora. 2021.
85
Uma figura esguia e ativa que ergue a espada com ambas suas mãos
Figura 32: Pajem de enquanto caminha agilmente. Ele caminha por uma paisagem rugosa e pelo
Espadas. Pamela seu caminho as nuvens se mostram selvagens. Ele está alerta e flexível,
Colman Smith. Parte olhando para todos os lados como se esperasse que um inimigo aparecesse a
integrante do Tarô qualquer momento. (WAITE, 1910. P 85. trad. minha).44
Waite-Smith. 1909.
No caso dessa carta e dos outros pajens, há uma ruptura entre Waite e o texto dado
no Liber T: este pressupõe uma princesa para esse nível na corte, enquanto o baralho
Waite-Smith, por suas predileções às lendas arturianas, atribui ao valete uma figura
masculina. O livro da Golden Dawn pontua o pajem de espadas com os títulos de: A
princesa dos ventos acelerados, O lótus do palácio do ar, A Princesa de Espadas, Princesa e
Imperatriz dos Silfos e Sílfides, demarcando a figura feminina como protagonista.
A descrição imagética disponibilizada pelo Liber T para essa carta reforça não
somente a diferença de gênero, mas de ocupação entre os personagens, divergindo de
Pamela Smith nessas duas questões, mas soando em uníssono em outros aspectos:
Uma figura de uma Amazona com cabelo ondulante [...]. Seus pés estão
alongados, dando a noção de leveza. Seu peso é jogado de um pé para o outro e seu
44
A lithe, active figure holds a sword upright in both hands, while in the act of swift walking. He is
passing over rugged land, and about his way the clouds are collocated wildly. He is alert and lithe,
looking this way and that, as if an expected enemy might appear at any moment.” (WAITE, 1910. p
85)
87
corpo está balançando. [...]. Ela segura uma espada numa das mãos. [...]. Abaixo de
seus pés existem nuvens brancas (LIBER T, 2012. p. 75. Trad. minha).45
45
An Amazon figure with waving hair [...] The feet seem springy, giving the idea of swiftness.
Weight
changing from one foot to another and body swinging around. [...]. She holds a sword in one hand
[...] Beneath her feet are white clouds. (LIBER T, 2012. P 75)
88
Diante desses pontos que envolvem o Pajem, é possível estabelecer duas âncoras:
beleza e rebelião. O leve passo do mensageiro que porta uma espada é encontrado lado a
lado à bela amazona preparada para a batalha. Ambos desafiam o que lhes é imposto –
papéis de gênero, padrões estéticos, funções de trabalho – e se estabelecem a sua maneira
dentro de seus âmbitos.
Ao contrário de seu colega Cavaleiro de Espadas, o pajem somente permeia os
âmbitos da guerra. O que se destaca é como ele o faz: evocando a movimentação de leveza e
graciosidade comumente vista nas ninfas, assunto amplamente investigado por Aby
Warburg e seus sucessores, como Edgar Wind, Georges Didi-Huberman, Giorgio
Agambem e muitos outros.
Warburg discorre sobre a sobrevivência da imagem pagã da ninfa através de seus
movimentos, suas roupagens, e seus cabelos flutuantes na História da Arte renascentista.
Como já apontado por ele, muitas linhas de força ligadas à ninfa transpassam também
Sandro Botticelli (1445–1510).
A figura do deus dos ventos Zéfiro é recorrente em algumas das obras do artista,
especialmente naquelas que evocam os mitos primaveris que envolvem a figura de Vênus e
sua comitiva, sendo o deus que carrega as características das vestes e cabelos flutuantes,
constantemente vistos nas ninfas, sendo ele o próprio vento que dispara o movimento de
tecidos e fios de cabelo, estabelecendo assim sua relação com o Pajem de Espadas através
de seu dinamismo e sua relação com o elemento do ar.
Constantemente na iconografia da Antiguidade Grega há uma ambivalência entre
as figuras de Zéfiro, o vento Oeste, e Eros, deus do desejo sexual e do amor. Ambos são
representados em cerâmicas portando elementos semelhantes: asas, longos cabelos e
silhueta esguia, quase andrógina. A última característica é particularmente demarcada
quando vista em Eros: seu hino órfico lhe atribui o epíteto de Dimorfo, indicando sua
natureza ambivalente, tangenciando o masculino e feminino.46
A relação com Zéfiro – e por consequência, Eros – é adicionada ao Tarô
Mitológico, que utiliza o deus dos ventos como seu Pajem de Espadas, como visto na
46
Hino Órfico 58: Amor [Eros]. Tradução de Rafael Brunhara. Disponível em: <http://primeiros-
escritos.blogspot.com/2015/05/hino-orfico-58-amor-eros.html>. Acesso em 22 jul 2021.
89
terceira imagem da figura 33. A leveza estabelecida na figura do vento oeste ao longo dos
séculos propicia seu papel como pajem, adequando-se à descrição de Waite: esguio, leve,
dinâmico.
Vale acrescentar que Zéfiro é a força que mobiliza o nascimento de Vênus, sendo o
vento que ergue Afrodite, mãe de Eros, da espuma marinha, atrelando-se mais uma vez à
dualidade Zéfiro-Eros. Alceu de Mitilene também atribui ao deus dos ventos a
paternidade de Eros, contribuindo para a paridade em questão.
A androginia presente em Eros e Zéfiro também estabelece uma ponte entre os
pajens: tanto a Princesa de Espadas quanto o Pajem de Espadas dividem uma aparência
semelhante, firmando uma identidade visual para o personagem. Tal questão fica visível
em especial no baralho Linestrider Tarot, ilustrado e idealizado por Siolo Thompson em
2016.
O Pajem de Espadas, imagem de número quatro na Figura 34, se destaca diante dos
outros pajens: o baralho, que traz consistentemente figuras femininas nessa posição,
atribui ao naipe de espadas um personagem cuja a aparência tão dimorfa quanto a de Eros
ou Zéfiro, enaltecendo sua androginia e sua relação com os ventos através de roupas que se
dobram perante o vento, que põe em movimento os envelopes que voam em cena.
Pelos simbolismos atribuídos aos pajens pela Golden Dawn, temos no Pajem de
Espadas a maior equivalência com o ofício de mensageiro: o ar nesse sistema corresponde
à comunicação e seus desdobramentos – a linguagem, a expressão, a poesia, a literatura, o
estudo – e Siolo Thompson reforça tal questão através das cartas flutuantes.
A dubiedade nas vestimentas do personagem encapsula a beleza e a rebelião
mencionadas como o cerne para o capítulo: ele veste-se e atua de forma adversa à esperada.
O calmo pajem, que deveria ser um mero mensageiro, tem aspirações bélicas –
contrariando os outros pajens do tarô, cujos ofícios desviam-se da militarização. Leve
demais para a belicosidade do Cavaleiro de Espadas, inexperiente demais, mas também
direto demais para ser de outro naipe senão o naipe das lâminas.
90
Burd Helen ainda divide com o pajem uma outra característica: a obstinação. O
olhar focado da carta de Pamela Smith sugere uma preocupação com o raciocínio e o
pensamento, mantendo a mente em um alvo, mas não tendo preparo ou experiência para
encarar seus desafios, ao contrário do caso do Cavaleiro, cuja determinação e pureza
constroem fundamentalmente sua imagem.
Acima da cabeça do pajem, revoam pássaros: uma possível menção à antiga prática
do Império Romano chamada de auspex, a observação do revoar de pássaros em busca de
augúrios do porvir (DIDI-HUBERMAN, 2018). O jovem inspeciona as probabilidades do
futuro num aceno quase metalinguístico do tarô para si mesmo. Diante dos prospectos do
futuro notamos que as preocupações desse pajem não se atêm ao que é palpável numa
batalha: ele visa a inspiração para lutar, a motivação da vitória, as conversas que mantêm os
vínculos entre aqueles que passam pelas dificuldades.
O Pajem de Espadas segue suas resoluções de maneira mais indireta que o
Cavaleiro, que cavalga furiosamente na direção da batalha, enquanto o pajem, como o
escudeiro, procura por rastros, pistas, procura por reforços no campo de batalha. Ele é a
potência do cavaleiro e do rei, podendo se tornar um dia tudo o que esses dois personagens
são nos quesitos de bravura e justiça.
Nessa potência, vive o pajem leve e esguio, do que é imaterial. Um eco da Vitória
Alada e da Ninfa Warburgiana tornando-se um bastião de esperança dentre os
desdobramentos do conflito. O pajem, que até aqui apresentou a rebelião de um
personagem fadado à beleza, agora mostra sua próxima roupagem: a possibilidade de
beleza nas bordas do conflito, a esperança da sobrevivência personificada em sua presença.
Com isso, a figura 36 inicia-se com a estátua soviética A Mãe Pátria chama, que
se estende sobre Mamayev Kurgan, palco de uma das mais sangrentas batalhas da história –
A Batalha de Stalingrado. Ela homenageia os soldados caídos ali e demarca a vitória
incisiva da União Soviética sobre as forças nazistas. Ela, assim como o Pajem, ergue a
espada e põe-se diante do vento, fazendo clara referência à Vitória da Samotrácea em sua
posição, nas vestes flutuantes. Warburg menciona que essa imagem, a da ninfa flutuante,
estabelece-se tal qual um “espírito elemental. Uma deusa pagã no exílio”.
94
Siolo Thompson, cujo naipe de espadas tem a corte composta por corujas,
representa numa coruja-das-torres a sua Princesa de Espadas, denominando-a Filha de
Espadas. Assim como seus colegas de corte, essa ave de rapina se destaca por sua
velocidade de voo e eficiência de caça mesmo em idades jovens.47
Um destaque desse compilado se encontra na ilustração de Frieda Harris, que
evoca uma semelhança com a já comentada Mãe Pátria chama. A jovem guerreira curva-se
para dar impulso ao movimento de seu braço, que empunha uma espada. Ela firma-se de
pé, apoiando-se num pedestal enquanto alça seu movimento de ataque. Ela não se
desprovê de armaduras, portando um elmo, mas também não abre mão das vestes
esvoaçantes, como a saia que se lança para trás enquanto ela ataca. Assim como os outros
pajens da coletânea, ela demarca sua movimentação através da leveza e de seu porte esguio,
sendo ladeada por nuvens.
Um segundo padrão de cartas está na figura 38, que seleciona os pajens em rebelião:
eles não se atêm ao padrão de ninfa e tampouco ao papel de mensageiro. Recusam o ofício
do cavaleiro e traçam seus próprios caminhos, questionando sua própria posição dentro do
baralho.
Dentre eles, vem a Princesa de Espadas do Tarô da Golden Dawn, ilustrado por
Moina Mathers (1865–1928), seguindo com grande fidelidade o texto do Liber T. A capa da
amazona levemente se dobra, mas, ao contrário da carta de Pamela Smith, não existem
mais indicadores que demarquem o vento como personagem participante da cena. Ela tem
os seios expostos e protege parte das pernas com armadura, demarcando questões de
simbolismo esotérico ao invés de priorizar sua proteção em batalha.
A princesa desse baralho carrega consigo as nuvens já demarcadas nos outros
baralhos, bem como a cabeça da Medusa que fora mencionada junto às Rainhas de
Espadas. Essa princesa se vê mais preparada para o embate apesar de não o ter
experienciado. Em oposição há o pajem do Tarô Visconti-Sforza, cujo corpo é recoberto
por uma armadura enquanto ele posa confiantemente apoiado em sua espada.
47
Suindara. Disponível em <http://www.avesderapinabrasil.com/tyto_alba.htm>. Acesso em 27 jul
2021.
98
Seu olhar confiante reproduz o padrão estabelecido pelo seu naipe nesse baralho:
cabelos claros, cacheados, portando partes de armaduras ou vestindo-a completamente. Ele
encara o observador e, em sua ingenuidade, crê que tem o domínio das questões bélicas
quando ainda não passou por essa experiência, assim como os outros pajens, mas está mais
bem preparado do que a maioria deles.
Ao contrário de seu colega do Tarô Visconti-Sforza, o Pajem de Espadas do tarô
Sola-Busca não tem sequer o vislumbre de questões bélicas que tanto permeiam o naipe:
ele toca alaúde, com flores nos cabelos, reclinando-se em descanso, bem como sua espada.
Esse pajem tem consciência de seu despreparo e desinteresse no conflito e aceita sua
condição, preenchendo sua cena com música.
O olhar hesitante do pajem de Claude Burdel circulava pela Europa no século
XVIII, mostrando um personagem cuja incerteza transparece: ele remove a espada de sua
bainha e prende seu olhar no chão, demarcando as questões de insegurança em seu ofício.
O semblante do pajem de Burdel também reforça o fato de que ele é o membro da
corte de espadas mais imerso na imaginação ou no devaneio. Ele reflete, sonha, pensa,
distrai-se. Isso colabora com seu despreparo para os apelos bélicos do resto da corte.
Dentre os pajens aqui trazidos, alguns reforçam esta qualidade: No tarô de
Marselha, no Tarô Sola-Busca e no Linestrider Tarot, estão os principais representantes.
Na carta de Siolo Thompson, em especial, o olhar do personagem se ergue enquanto ele
repousa uma das mãos no queixo, trazendo à tona o gesto do pensar reafirmado por
Albrecht Dürer (1471–1528) em Melancolia I, já tão rememorado pelos autores do círculo
warburgiano. O gesto, também trazido por Auguste Rodin (1840–1917) em O pensador,
firma esse pajem como uma figura propensa ao devaneio enquanto suas ações bélicas
ficam em segundo plano.
O pajem estabelece, assim, sua inocência e meninez como constância: trazendo
rebelião e ares de juventude a uma corte tão firmada nas batalhas e nas dificuldades,
incentivando um pensamento que rompe com a dureza e evocando um respiro para seu
naipe.
100
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Antes que possamos adentrar nas questões finais desse trabalho, rememoremos
nosso trajeto até aqui: através de um levantamento histórico, percebemos que o tarô é um
objeto errante. Um baralho que transita com viajantes entre países da Europa e do Oriente
Médio, um item produzido com esmero para as famílias abastadas da Renascença italiana,
e, por fim, o objeto de dizer a sorte que hoje conhecemos.
É com essa roupagem que o tarô chega aos olhos e às mãos de Pamela Colman
Smith e seus colegas da Ordem Hermética da Aurora Dourada, dentre os quais estava
Arthur Waite, que encomenda um baralho à ilustradora sem lhe dar demais detalhes sobre
como proceder nas imagens dos arcanos menores, o interesse deste trabalho.
Diante dessa lacuna, a artista se depara com a seguinte possibilidade: como
preencher o espaço propositalmente dado por Waite? Imersa em lendas e contações de
histórias desde a juventude, ela se volta para a experiência pessoal como principal fonte
para a criação de seus arcanos menores.
Transpassando vieses como o Arts & Crafts Movement, os revivalismos célticos da
Inglaterra, e seu apreço pelo teatro, ela traz no fantástico a fundamentação para seu
baralho, empregando especialmente a estética elaborada pelos seus colegas de movimento
artístico, que evocavam uma idealização do bucólico e do medieval como motes
recorrentes.
Esses interesses também ressoavam com as práticas da Aurora Dourada, que
acrescentam ao arcabouço referencial de Smith relações com mitologias externas às da
Inglaterra, simbolismos atrelados ao neoplatonismo, e, especialmente através de Arthur
Waite, fortes influências do catolicismo.
Através desse panorama, coube a este trabalho refletir não somente qual o passado
das cartas ilustradas por Pamela, mas também perscrutar seu futuro: quais desdobramentos
possivelmente deixados pelo baralho da artista? Quais as permanências, mudanças e
sobrevivências podem ser vistas nas ilustrações de tarô que vieram após o ano de
lançamento do trabalho de Smith?
101
Essa tensão entre o que é exposto e o que é fechado aos olhos do público teve de ser
trabalhada por Pamela Smith, que, advertidamente ou não, precisou estabelecer o oculto
como cerne para a produção do seu trabalho, assim como havia sido para Waite para que
pudesse transmitir a ela os conhecimentos sobre tarô de acordo com os parâmetros da
Golden Dawn.
Pamela precisou solucionar de que forma ela reproduziria os significados do tarô
através de imagens sem que rompesse com os acordos de confidência feitos entre ela,
Waite, e a ordem da qual participavam. Ela teve que percorrer a tênue linha que faz
fronteira entre a exposição e o segredo, caminhando na penumbra do olhar do público.
Esse trajeto traçado entre a luz e a sombra coincide com as palavras de Erwin
Panofsky, que prevê no termo iconologia aquilo que cerceia todo o conjunto de uma obra,
esteja ele numa só imagem, numa palavra-chave, num acontecimento histórico
(PANOFSKY, 1962. p 7). Como já mencionado, o caso de Pamela Smith tem essa
preocupação no oculto, no limite entre o que ela poderia representar e, acima de tudo,
como ela poderia representar essas questões mantendo-se tanto em sua própria poética
quanto entregando ao seu comprador a encomenda que lhe fora feita.
O oculto aqui mostra-se como o jogo entre o que é velado pela imagem e o que é
explicitado, sendo essa brincadeira induzida pela própria artista e pelo elaborador do
baralho, que veem os segredos mantidos pela Golden Dawn acerca do tarô serem
dissolvidos com a queda desta organização.
A proposta de Panofsky também ressoa com as abordagens aplicadas por Carlo
Ginzburg, que, no caso de seu texto que aborda a palavra inglesa awe, por exemplo,
determina ali seu cerne, observando como pequenos indícios podem trazer um grande
aporte da história. (GINZBURG, 2008)
Vislumbres dessa questão podem ser observados no baralho de Pamela Smith: o
Cavaleiro de Espadas, por exemplo, traz representantes importantes da cultura local e
evoca um ideal de cavalaria que seria destruído em poucos anos após o lançamento e a
circulação inicial do baralho, prevendo um rompimento com o resiliente cânone que
permanecia pelos últimos séculos da história do tarô.
103
Esse rompimento vale não somente para o Cavaleiro, mas para o tarô num todo:
com a dissolução da Golden Dawn e de outras sociedades herméticas, o baralho de tarô
como ferramenta oracular se difunde, abrindo novas possibilidades para as figuras que
habitam esses baralhos.
O esforço de Pamela Smith com esse tarô torna-se uma ponta de lança para artistas
e pessoas interessadas no âmbito místico, que, tendo o tarô Waite-Smith como alicerce,
exploram novas visualidades para arcanos seculares e elaboram seus significados,
enriquecendo o debate sobre as cartas.
Nas análises elaboradas para essa dissertação, tal debate torna-se mais visível
através de algumas questões: (1) a justaposição das imagens permite que nós, observadores,
possamos traçar paralelos temáticos e formais entre imagens que previamente estariam
separadas pelo tempo; (2) a apreensão de dualidades que permeiam o significado e os
desdobramentos contemporâneos das cartas aqui abordadas.
Ambos os pontos condizem com o pioneiro gesto já proposto por Warburg e pelos
sucessores de seu pensamento: o primeiro referenciando a elaboração e a proposta do Atlas
Mnemosyne, que prevê essa prática metodológica. O segundo torna-se um aceno às outras
dualidades já discorridas pelo historiador da arte alemão, como o caso do astra e do
monstra, vistos também no Atlas.
As dualidades apontadas nas análises tendem a padrões de tensão ou oposição: O
Rei e o Cavaleiro de Espadas têm em suas imagens o embate entre manutenção e ruptura
do cânone estabelecido até o baralho de Pamela Smith. O Cavaleiro, ao contrário do Rei,
sofre com uma quebra incisiva em sua representação por conta da Primeira Guerra
Mundial, o que desalinha a figura da carta com a idealização de um herói de cavalaria.
A duplicidade exibida pelo Rei é mais tímida, brincando com as possibilidades do
que pode ser considerado um reino de um Rei de Espadas – uma estação do ano, uma
família de aves – e, caso essa figura de poder opte por manter a definição monárquica de
reino, varia como esse Rei manteria seu poder – sábio como Odisseu ou incisivo como
Coatlicue.
O outro tipo de duplo presente na trajetória das cartas da corte de Espadas de
Pamela Smith está na oposição entre a ação física e a ação mental, da Rainha de Espadas, e
104
48
Como pontuado através da Prancha Edith Craig. (Figura 14, página 43)
105
possíveis fontes que geraram aquela imagem, mas também seus possíveis desdobramentos
futuros ou as linhas de força que são desemaranhadas pelo objeto.
A leitura do tarô como um objeto oracular não necessita ser guiada por imagens
como as leituras warburgianas. Apesar disso, se nos propusermos – como interessados em
tarô ou no campo da arte – a permitir que as imagens falem, contem suas histórias e
engendrem-se entre si, é possível ter uma reconexão com tempos passados: ver numa carta
criada na década de 2010 um vislumbre de um emblema do século XV.
A sobrevivência do pagão, do místico e do mágico – questões já previstas por
Warburg em sua perspicácia – se mantém relevante através do tarô, que se torna um
exemplar de significativa importância para a observação desses motivos da Antiguidade e,
concomitantemente, serve de suporte para poéticas de diferentes artistas.
Vale demarcar que a paridade entre o tarô e o campo da arte é revisitada ao longo
das décadas, sendo vistas por nomes como Salvador Dali (1904-1989)49, que ilustra um tarô
atualmente em circulação sob o selo da editora Taschen, e Niki de Saint-Phalle50 (1930-
2002), que cria esculturas baseadas em cartas do tarô em um jardim batizado de O Jardim
do Tarô. Nomes nacionais como Nadam Guerra e Liana Keller também mantêm vivo o
estudo e o interesse no tarô aliado à produção em arte.
Tais colaborações entre tarô e arte demarcam o quanto esses baralhos se beneficiam
das discussões engajadas no campo da arte, sofrendo com rupturas, cânones e poéticas
assim como objetos de arte já estabelecidos no campo, como a pintura.
A capacidade metamórfica do tarô – imagens mudam, evocando diferentes
possibilidades de significado, e permanecem trazendo os significados iniciais – instiga seu
observador não somente a se perguntar o que aquela imagem significa, mas o incita a
elaborar visões particulares para aquela figura e atrelar aquela carta à sua experiência
cotidiana, permitindo que o público trace os seus próximos caminhos e os das imagens do
tarô.
49
Dalí. Tarot. Disponível em
<https://www.taschen.com/pages/en/catalogue/art/all/44640/facts.dali_tarot.htm>. Acesso
em 29 jul 2021.
50
The Tarot Garden. Disponível em <http://ilgiardinodeitarocchi.it>. Acesso em 29 jul 2021.
106
Quando vista no baralho de Pamela Smith, que inclui seu próprio cotidiano nas
ilustrações de cartas de cunho anteriormente hermético, essa capacidade cria uma ponte
entre o significado esotérico das cartas e o público leigo, elaborando uma acessibilidade
para o universo do tarô, o que é, possivelmente, uma das grandes raízes do sucesso
estrondoso desse baralho. As ilustrações de Pamela Smith diluem a rigidez estabelecida
pelo hermetismo das sociedades esotéricas mencionadas ao longo do texto, permitindo um
trânsito maior de pontos de vista perante o tarô.
107
REFERÊNCIAS
GEBELIN, A. C. The Game of Tarots. In:. Monde Primitif, analysé et comparé avec le
monde moderne. Livro 1. Volume 8. 1781. Disponível em
<https://www.hermetica.info/GameOfTarots.pdf>. Acesso em 01 mai 2020.
KAPLAN, Stuart. et al. Pamela Colman Smith: The Untold Story. 1ª edição. U. S. Games.
Stamford. 2018.
________. The Encyclopedia of Tarot (vols. 1-4). 1ª edição. U. S. Games. Stamford. 1990.
PEIRCE, C.S. Semiótica. 3ª edição. Editora Perspectiva. São Paulo, São Paulo. 1999.
ROOB, Alexander. The Hermetic Museum: Alchemy and Mysticism. Taschen. Londres.
2019.
WAITE, A. E. The Pictorial Key to the Tarot. 1ª edição. William Rider and Son. Londres.
1910.
WINTON, Simon. Sola-Busca Tarocchi. The World of Playing Cards. 2017. Disponível
em <https://www.wopc.co.uk/italy/sola-busca>. Acesso em 06 jun 2020.
YATES, Frances. Giordano Bruno and the Hermetic Tradition Routledge and Kegan
Paul. Londres. 1964.
YATES, Frances. The Occult Philosophy in Elizabethan Age. Routledge and Kegan
Paul. Londres. 1979.