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Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Instituto de Artes
Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais
Ênfase em História, Teoria e Crítica de Arte

A corte de espadas: abordagem iconológica do tarô de Pamela Colman Smith


Mirna Xavier Gonçalves

Porto Alegre - RS
2021
Mirna Xavier Gonçalves

A corte de espadas: abordagem iconológica do tarô de Pamela Colman Smith

Porto Alegre - RS
2021
Mirna Xavier Gonçalves

Iconologia das cartas da corte no Tarô Rider-Waite-Smith

Dissertação de Mestrado apresentada como requisito parcial, para obtenção do grau de


Mestre em Artes Visuais. Instituto de Artes. Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Banca examinadora:

...............................................................................................................................
Prof. Dr. Eduardo Ferreira Veras (orientador) (PPGAV/UFRGS)

...............................................................................................................................
Profa. Dra. Paola Basso Menna Barreto Gomes Zordan (PPGEDU/UFRGS)

...............................................................................................................................
Profa. Dra. Mônica Zielinsky (PPGAV/UFRGS)

...............................................................................................................................
Prof. Dr. Paulo Antonio de Menezes Pereira da Silveira (PPGAV/UFRGS)
AGRADECIMENTOS

Primeiramente, agradeço ao meu orientador, Prof. Eduardo Veras, pelo apoio na


construção deste projeto, trabalhando como o Rei de Copas nessa empreitada e
direcionando os caminhos da intuição.
Ao Rei de Ouros, o tão generoso Prof. Francisco Marshall, cujas palavras certeiras me
ajudaram a iniciar este projeto.
Agradeço aos Reis de Paus com sua intensa criatividade e guia: os professores Paulo
Silveira e Eduardo Vieira da Cunha.
À Rainha de Paus, professora Mônica Zielinsky, cuja tocha flamejante guia, guiou e
guiará tantos caminhos como o meu.
Agradeço imensamente o convite aceito da Rainha de Copas, a professora Paola
Zordan, que generosamente me recebe em sua própria trajetória com tarô.
Agradeço à Capes que, como a Rainha de Ouros, confiou em minha pesquisa e
sustentou sua realização.

Agradeço à minha família, que confia e está comigo durante todos os momentos, me
dando a força necessária para prosseguir.
À coterie, aos ratos e aos fatos. Sem vocês nada disso teria sido possível. Invencíveis
em seu imenso apoio.
Ao prefácio de Carlo Ginzburg, cuja história sobre uma certa bruxa italiana do
Renascimento desembainhou os pensamentos sobre a corte de espadas.
Aos deuses que invariavelmente me acalentaram durante todo o processo, me
provendo energia, ímpeto e força para seguir em frente.
À grandiosa Cípris, cuja presença sustenta minha vida e me move, gentilmente me
recebendo ao lado de Apolo quando adentro o Instituto de Artes.
RESUMO

Este trabalho traz reflexões acerca da construção de sentido que envolve o conjunto de
cartas da corte de Espadas do baralho de Tarô Waite-Smith, criado em 1909, pontuando
aspectos deste objeto que tangenciam o campo das artes visuais e discorrendo de maneira
ensaística sobre a trama tecida através de suas imagens ao longo da história da cultura. Para
isso, a dissertação respalda-se em autores que propõem analogias entre imagens de
diferentes proveniências, em busca de sobrevivências e transformações, como propôs o
historiador da arte alemão Aby Warburg e seguidores seus, como Carlo Ginzburg, Erwin
Panofsky, Georges Didi-Huberman e outros que auxiliarão no processo de situar o tarô
como objeto de estudo pertinente à área das artes visuais.

Palavras-Chave: Símbolo. Iconografia. Misticismo. Tarô. Baralho Waite-Smith.


ABSTRACT

This work brings forth studies regarding the meanings surrounding the cards on the Court
of Spades, present in the Waite-Smith tarot deck created in 1909. The research aims into
the aspects of this deck that are synchronized with the years-long discussions present into
the art field, such as iconography, the nature of illustration, the afterlife of the pagan
imagery. For that, the work leans into the area of research coined by the German art
historian Aby Warburg and his followers, such as Carlo Ginzburg, Erwin Panofsky and
Georges Didi-Huberman, seeking to place the tarot as an object that benefits from the
studies carried by the Art History field.

Keywords: Symbol. Iconography. Mysticism. Tarot. Waite-Smith deck.


SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO ............................................................................................................................11
1. INTRODUÇÃO .............................................................................................................................14
2. CONTEXTO HISTÓRICO DO TARÔ ................................................................................. 22
3. CONTEXTOS LOCAIS: pamela colman smith, arthur waite e suas influências ............ 33
4. ABORDAGENS ICONOLÓGICAS DA CORTE DE ESPADAS .................................... 51
4.1. rei de espadas ................................................................................................................................ 51
4.2. rainha de espadas ...................................................................................................................... 60
4.3. cavaleiro de espadas .................................................................................................................. 74
4.4. pajem de espadas ....................................................................................................................... 85
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................................... 99
REFERÊNCIAS .............................................................................................................................. 106
GLOSSÁRIO:

Arcano: Cada uma das cartas do baralho de tarô


Arcano maior: Uma das 22 cartas do grupo dos arcanos maiores, que não possuem
numeração dentro dos naipes e são consideradas as cartas mais complexas do baralho de
tarô
Arcano menor: Uma das 56 cartas do grupo dos arcanos menores, que possuem
numeração e naipes e são consideradas as cartas do baralho de tarô que aprofundam os
pormenores das vidas dos consulentes.
Aurora Dourada: Ordem Hermética da Aurora Dourada
Baralho de jogo: O padrão de baralho francês de 52 cartas que é amplamente
comercializado no Brasil na contemporaneidade. Este tipo de baralho não inclui os
cavaleiros dentre as cartas da corte, ao contrário da variação de 56 cartas, que corresponde
aos arcanos menores do tarô.
Consulente: A pessoa que busca uma consulta oracular. Para quem a leitura de tarô é feita.
Deck: Baralho. Conjunto de cartas.
Golden Dawn: Ordem Hermética da Aurora Dourada
Hermetismo: Conjunto de doutrinas simultaneamente místicas, astrológicas, alquímicas,
mágicas e, tangencialmente, filosóficas, atribuídas pelos seus autores da antiguidade
greco-latina à inspiração do deus Hermes Trismegisto. Este conhecimento era oculto e
esotérico, reservado aos iniciados em suas tradições. (OXFORD LANGUAGES)
Lâmina: Carta de tarô
Maço: Baralho. Conjunto de Cartas.
Misticismo: O contato com a espiritualidade através de experiências pautadas na intuição
visando uma comunhão com o divino.
Rider-Waite-Smith: O baralho de Tarô elaborado por Arthur Waite e Pamela Smith.
RWS: ver Rider-Waite-Smith.
Waite-Smith: ver Rider-Waite-Smith
10

LISTA DE IMAGENS

fig. 1: cartas da corte (tarô rider waite smith) ................................................................................ 21


fig. 2: cartas do sultanato mameluco .............................................................................................. 23
fig. 3: proibição aos jogos de cartas (séc xvi) ................................................................................ 23
fig. 4: cartas da corte (tarô visconti-sforza) .................................................................................. 26
fig. 5: comparação: naipe de copas.................................................................................................. 27
fig. 6: cartas da corte (tarô sola busca) ........................................................................................... 29
fig. 7: cartas da corte (tarô de marselha) ......................................................................................... 31
fig. 8: prancha de influências formais i ........................................................................................ 38
fig. 9: prancha de influências formais ii ........................................................................................ 39
fig. 10: prancha de influências formais iii.................................................................................... 40
fig. 11: prancha de influências formais iv .......................................................................................41
fig. 12: shakespeare's heroines ........................................................................................................ 42
fig. 13: prancha ellen terry ................................................................................................................ 43
fig. 14: prancha edith craig ...............................................................................................................44
fig. 15: prancha maude adams ........................................................................................................ 45
fig. 16: rei de espadas .......................................................................................................................... 51
fig. 17: prancha para o rei de espadas (autoridade) ....................................................................... 53
fig. 18: initiation of a member of the vehm ................................................................................... 55
fig. 19: prancha para o rei de espadas (dualidade). ....................................................................... 57
fig. 20: rainha de espadas ................................................................................................................ 60
fig. 21: prancha para a rainha de espadas (atena-pallas e similares). ........................................ 62
fig. 22: prancha da dualidade do martírio: rainha de espadas e o enforcado .......................... 64
fig. 23: prancha para a rainha de espadas (judite com a cabeça de holofernes)...................... 67
fig. 24: accolade ................................................................................................................................. 69
fig. 25: prancha para a rainha de espadas (dualidade) ................................................................. 70
fig. 26: ugra-tara.................................................................................................................................. 71
fig. 27: cavaleiro de espadas ............................................................................................................. 74
fig. 28: prancha para o cavaleiro de espadas (referências próximas à pamela smith) ........... 77
11

fig. 29: prancha para o cavaleiro de espadas (são jorge) ............................................................. 79


fig. 30: prancha para o cavaleiro de espadas (o ideal cavelheiresco) ......................................... 81
fig. 31: prancha para o cavaleiro de espadas (dualidade)............................................................. 83
fig. 32: pajem de espadas .................................................................................................................. 85
fig. 33: prancha para o pajem de espadas (zéfiro-eros) ............................................................... 89
fig. 34: prancha de pajens (linestrider tarot) ............................................................................... 90
fig. 35: prancha para o pajem de espadas (burd helen) ................................................................ 91
fig. 36: prancha para o pajem de espadas (ninfa) ......................................................................... 93
fig. 37: prancha para o pajem de espadas (dualidade: leveza) .................................................... 95
fig. 38: prancha para o pajem de espadas (dualidade: rebelião)................................................. 97
12

APRESENTAÇÃO

Uma noite em 2014, às vésperas de tomar um voo para a cidade de Pelotas, compro
meu primeiro tarô, um tarô Waite-Smith, numa livraria e, com a curiosidade que permeia
a maioria das pessoas quando o quesito é o tarô, imediatamente sento-me na mesa de um
restaurante com minha família e pergunto ao oráculo como seria meu voo do dia seguinte.
A resposta é “haverá um atraso”. Tomo nota mentalmente e, quando embarco no dia
seguinte, a voz do comandante anunciando 30 minutos de atraso me faz gelar o sangue. Eu,
sem nenhum treino ou formação naquele oráculo, pude ler, mesmo que minimamente, um
acontecimento futuro. Como? Sabia que não poderia – e atualmente nem intenciono –
explicar a crença e o caráter místico-oracular desse objeto, mas sim permear e investigar
suas práticas.
Como pude ler aquele resultado? Graças ao “pequeno livro branco” – um breve
encarte que acompanha a maioria dos baralhos de tarô e dá os significados mais
fundamentais de suas cartas. Naquela leitura do restaurante, tinha saído O Mundo, e, no
livro, um de seus significados era o atraso. Mas por que, dentre tantos significados, aquele
se sobressaiu? Será que, se eu soubesse mais significados, a mesma coisa aconteceria? Será
que minha mente tinha racionalizado a pergunta e selecionado o resultado mais provável?
Essas perguntas ficaram dormentes na minha mente até inscrever-me na disciplina de
Iconologia no semestre seguinte, em Pelotas. Nessa altura, já sabia significados básicos da
maioria das cartas e recebo do meu professor a famosa explicação do chapéu1 dada por
Panofsky (1892-1968). Diante daquele texto, o gelar do sangue me reencontra: Panofsky e o
tarô tinham o ícone e o símbolo como uma língua comum, o estabelecimento de uma
leitura das imagens. Haveriam outras áreas da arte compactuadas com o tarô? Quais?
Como ninguém dentro da academia mencionava o baralho mesmo com tantas
proximidades? Teria eu que ser essa pessoa?

1
Panofsky menciona o ato de levantar o chapéu durante um cumprimento como uma ação que
reproduz o hábito da antiguidade de revelar o próprio rosto para cumprimentar, fazendo deste ato
um ato simbólico. (PANOFSKY, Erwin. "Iconografia e Iconologia: Uma introdução ao estudo da arte
da Renascença". In: Significado nas Artes Visuais. São Paulo: Perspectiva, 2ª ed., 1986, p. 47-65.)
13

Ainda era 2014, meu segundo ano na Graduação em Artes Visuais na Universidade
Federal de Pelotas, a pesquisa começaria aí. Essa semelhança entre o estudo das imagens da
história da arte – o Renascimento, no caso de Panofsky – e o estudo das cartas do tarô passa
a ser uma constante dentre meus interesses. Havia uma necessidade de mostrar à
comunidade acadêmica que ela poderia se expandir até o tarô, algo que não era
amplamente observado pelos pesquisadores.
Chego a 2015 com as dúvidas e necessidades já mencionadas e uma proficiência
maior no tarô: pouco a pouco as cartas tornam-se conceitos na minha mente e viram
palavras-chave para situações cotidianas e do campo da arte, mas, mais uma vez, essas
ideias ficam dormentes diante da nova força que domina meu campo de estudo e de
interesse até o fim da graduação: a Semiótica.
Aproximar-me das noções da semiótica francesa – com suas progressões e
estruturas narrativas – e da semiótica americana – com as propostas de ícone, índice e
símbolo de Peirce (1839-1914) –, eu me via diante de ferramentas extras para analisar o
baralho de tarô unindo a observação da imagem com os significados das cartas.
Na mesma época, meu apreço pelo tarô e pela semiótica se expande e engloba
também os estudos feministas. Essa parceria cria uma tríade entre tarô-arte-feminismo
que sustentaria meu trabalho de conclusão de curso em 20172. A pesquisa unia imagens
diferentes da carta A Imperatriz, uma das poucas que é voltada à experiência feminina no
baralho, divididas em quatro categorias que elaboro num quadrado semiótico, criado
depois de entrar em contato com os escritos de Andrea Dworkin (1946-2005) sobre os
estereótipos femininos na mitologia e nos contos de fada. Os quatro tipos de Imperatriz
que identifico nos baralhos – santa, bruxa, feiticeira e amazona – ganham versões
desenhadas por mim especialmente para o trabalho.
Em 2018, completo a graduação e logo em seguida inscrevo-me no Mestrado em
Artes Visuais na mesma universidade, visando dar continuidade àquela ideia dormente de
2015, que via o tarô como conceito que pode colaborar com o campo da arte em alguns

2
GONÇALVES, M. X. A Imperatriz: Mulheres, símbolos e desdobramentos. 2018. 73 f. Trabalho de
Conclusão de Curso (Bacharelado em Artes Visuais). Centro de Artes. Universidade Federal de
Pelotas. Pelotas, 2018. Disponível em:
pergamum.ufpel.edu.br/pergamumweb/vinculos/0000a4/0000a451.pdf
14

níveis. Agora, com maior lastro teórico, recebo de meus professores propostas de artigos
finais de suas disciplinas, que inevitavelmente tornam-se discussões sobre arte e tarô. A
antologia desses artigos torna-se minha dissertação3, que olha para a arte contemporânea e
vê significados das cartas dentro de trabalhos de artistas como, por exemplo, a
introspecção e sensibilidade do arcano A Lua também na poética de Lygia Clark (1920-
1988).
Concomitantemente, as ideias anteriores permanecem em minha mente: aquelas
do campo da Iconologia que ainda permaneciam inexploradas na pesquisa. Com isso, sinto
a necessidade de aprofundar-me em História da Arte, o que me trouxe ao Mestrado em
Artes Visuais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Se os estudos explorados por Panofsky pareciam tão aliados ao tarô, teriam eles
origens em comum? Qual seria essa origem? Como poderia um colaborar com o outro?
Seria Panofsky realmente o pivô desse processo ou haveria outros colaboradores próximos
a ele que poderiam me ajudar no processo de pesquisa?
E as imagens? Qual o papel e a importância delas nesse processo? Como eu poderia
aprofundar-me nelas? Poderia desvelar seus pontos de origem e observar seu trajeto e
possíveis destinos?
Assim como o voo que iniciou essa seção do texto, esse processo de pesquisa encara
suas particularidades, lidando com as turbulências tradicionais do caminho do
pesquisador, mas, mesmo que haja mudanças de rota, seu destino permanece: de onde vêm
as imagens do tarô e para onde elas vão?

3
GONÇALVES, M. X. Tarô: reverberações em poéticas contemporâneas. 2020. Defesa de
Mestrado (Mestrado em Artes Visuais). Centro de Artes. Universidade Federal de Pelotas. Pelotas,
2020.
Disponível em:
guaiaca.ufpel.edu.br/bitstream/prefix/6548/1/Dissertacao_Mirna_Xavier_Goncalves.pdf
15

1. INTRODUÇÃO

O século XXI se ergue trazendo prospectos funestos para seus observadores: um


declínio constante dos recursos naturais e do meio ambiente combinam-se com
temperaturas extremas. Ondas de direitos às minorias são combatidas pela extrema direita.
As intensas exigências do capital fazem vítimas que caem perante a exaustão, o declínio da
saúde mental e uma desconexão com si próprios.
A geração de pessoas que nasce nesse cenário encontra-se diante de um titã e luta
para permanecer de pé perante este espírito de época que se assemelha a uma sombria
assombração. Munidos da história, muitos se voltam para os movimentos de contracultura
dos anos 1970 e encontram em questões de astrologia, paganismo, ocultismo, e formas de
autoconhecimento como veículos de resistência.
Diante desse quadro, a Wicca4, o neopaganismo5 e os reconstrucionismos6 vêm
num crescente galope, constituindo o grupo de religiões que mais cresce em países como
os Estados Unidos7. Estes grupos muitas vezes fazem uso de ferramentas como o tarô para
se conectar com o sagrado, com seus arredores e consigo mesmos, propiciando maior
interesse por esse objeto, cujas raízes datam de, no mínimo, o século XIV.
O tarô é o objeto focal do presente trabalho. Seus maços de 78 cartas – das quais 22
compõem arcanos maiores e 56 os arcanos menores – são ricamente ilustrados com
alegorias, coexistindo ao longo dos séculos com diversos contextos socioculturais.
Essas cartas passam por diversos usos: o baralho inicia sua história como artigo
valioso para famílias abastadas na renascença italiana; passando para o uso como objeto
lúdico ao chegar na França do século XVII e bifurcando-se em oráculo naquele país a
partir do século XVIII. O tarô se estabelece em sua função oracular ao incorporar

4
Religião fundada na década de 1950 por Gerald Gardner na Inglaterra, visando reavivar questões
relacionadas à bruxaria, como, por exemplo, a espiritualidade voltada aos ciclos da natureza, do
cosmos e do ser humano.
5
Adaptações de religiões pagãs da Antiguidade para a época contemporânea
6
Religião similar ao o neopaganismo, mas visando maior embasamento histórico para fomentar
suas práticas religiosas.
7
BUCKLAND, Raymond. Witchcraft From the Inside: Origins of the Fastest Growing Religious
Movement in America. 3ª edição. Llewellyn Publications. 1994
16

possibilidades proféticas trazidas nas sociedades místicas do século XIX, que


compreendem o tarô como objeto oracular e voltado para o autoconhecimento, fixando
também padrões em suas imagens, simbolismos e público.
Esse objeto, portanto, fica imerso na história da cultura, alimentando-se das
mudanças na arte ao longo dos séculos e tomando para si essas realidades em seus planos
de expressão e conteúdo. A natureza movediça do tarô se relaciona diretamente com seu
estudo, igualmente fragmentado e imerso em possibilidades místicas que constantemente
se sobressaem à sua realidade histórica.
Apesar destas alterações ao longo dos séculos, grande parte das imagens dos
baralhos permanece similar: a personagem Rainha de Copas, por exemplo, é representada
desde o século XV como uma mulher com indicações de realeza e uma taça. Constâncias
imagéticas tornam-se frequentes em cada uma das 78 cartas e reforçam a sobrevivência
destas imagens8 ao longo dos séculos.
O tarô, que na atualidade abraça sobretudo as funções oraculares e místicas, se vale
do mecanismo de imagens alegóricas9 para estabelecer sua construção de sentido. A
própria nomenclatura envolvida com as cartas (como o termo “arcano”, que quer dizer
“segredo”) preconiza um aspecto de mistério envolvendo seus significados possíveis. Este
trabalho não visa revelar esses segredos através das imagens, mas sim sugerir olhares que
explorem como se dá a constituição do sentido e das imagens das cartas em questão.
Dentre os tarôs místicos utilizados em cartomancia, destaco o Tarô Rider-Waite
Smith, baralho idealizado por Arthur Edward Waite (1857–1942) e ilustrado por Pamela
Colman Smith (1878–1951) em 1909, que será o foco deste trabalho. O baralho em questão
teve um alcance incomparável ao longo dos anos, sendo atualmente um dos mais populares
do planeta, influenciando as escolhas visuais da maioria dos artistas que ilustram tarôs no
século XXI. Algumas das possíveis razões desta popularidade serão examinadas ao longo
desta pesquisa.

8
Como preconizado por Didi-Huberman, que, diante dos trabalhos de Aby Warburg, elabora as
sobrevivências das imagens como figuras que resistem às ações do tempo e permanecem em
circulação (DIDI-HUBERMAN, Georges. Diante do Tempo: História da arte e anacronismo das
imagens. 1ª edição. Belo Horizonte: Editora UFMG. 2015.)
9
A imagem alegórica é trazida aqui como aquela cujo modo de expressão ou interpretação
consiste em representar pensamentos, ideias e qualidades sob forma figurada. (OXFORD
LANGUAGES)
17

O baralho Rider-Waite-Smith é um dos baralhos que bebem na fonte das


sociedades esotéricas, que vinham numa crescente no período de concepção do objeto em
questão. Apesar de estar fortemente atrelado às atividades místicas da Ordem Hermética
da Aurora Dourada (referida ao longo do texto também como Golden Dawn), esse baralho
não se limita às proposições simbólicas dessa organização, buscando referências em
artistas, ilustradores, narrativas históricas, literatura e feitos do cotidiano do período de
sua produção.
Ambos os criadores do baralho participavam da organização esotérica mencionada,
porém com uma ressalva: a Ordem utilizava um sistema iniciático – ou seja, os
conhecimentos fornecidos pelos mestres eram disponibilizados gradualmente para os
novatos, caso de Pamela Smith, enquanto Arthur Waite possuía altos graus de iniciação.
Ali, o baralho de tarô fazia parte da ritualística da ordem, sendo considerado um
objeto de grande importância para o autoconhecimento e a compreensão dos assuntos
herméticos ensinados, como a Cabala, por exemplo. O Liber T, o livro da Ordem que dava
acesso a esses tópicos, não podia ser acessado por pessoas do nível iniciático de Pamela
Smith.
A partir deste cenário, temos Arthur Waite, conhecido por prezar os segredos da
Ordem Hermética, e Pamela Smith, a ilustradora escolhida, que não poderia receber os
conhecimentos da peça que estava prestes a ilustrar. As perguntas postuladas por esta
dissertação a partir daqui são as seguintes: (1) o que Waite elegeu transmitir para Pamela
Smith? (2) Quais dessas informações ela utilizou para construir as imagens do baralho e
qual o argumento utilizado por ela para justificar suas escolhas?
Infelizmente, a maioria dos registros que envolveram esses processos de criação foi
extraviada pelas provações do tempo: a casa na qual Pamela Smith vivia sucumbiu ao fogo
nas Grandes Guerras da primeira metade do século XX. Um dos únicos registros
sobreviventes em relação à criação desse baralho é uma carta enviada por Pamela ao
fotógrafo norte-americano Alfred Stieglitz (1864-1946), em que ela comenta que o tarô era
uma encomenda particularmente desafiadora e pela qual seria recompensada com pouco
pagamento. (KAPLAN, 2018. p. 235)
18

Levando em consideração que essa é uma das poucas pistas que nos atam ao
processo criativo do baralho de Pamela Smith, será necessário perscrutar o contexto socio-
cultural da artista para evidenciar suas referências.
O baralho de Pamela atravessa o século, sendo um dos mais populares baralhos de
tarô da história e reavivando as imagens do século XV, que estavam dormentes na história
da cultura. O sucesso de seu baralho pode ser firmado em alguns pontos: (1) foi um dos
baralhos de maior circulação na história do tarô, especialmente por seu contexto histórico,
que permitia melhor nível de impressão e mercantilização do objeto; (2) é um dos poucos
baralhos até aquele momento que retratava arcanos menores a partir de seus significados, o
que fez dele (3) um baralho relativamente acessível para o público leigo, que pôde intuir os
significados através de suas imagens, bem como memorizá-los através das mesmas.
Este trabalho visa, portanto, investigar em especial os contextos socio-histórico-
culturais e o processo de criação da artista neste baralho, aprofundando-se conjuntamente
nos precedentes – especialmente visuais –, trazidos através da história dos baralhos de tarô
e suas influências, como a alquimia, a história e mitologias diversas, entre outros fatores.
Das 78 cartas que compõem um tarô, este trabalho abordará quatro – todas as do
naipe de espadas, do conjunto chamado cartas da corte, que, nos baralhos de jogo
contemporâneos, corresponde aos quatro conjuntos de valetes, damas e reis. No tarô, essas
posições palacianas são substituídas por pajem, cavaleiro, rainha e rei (em alguns baralhos
chamados de princesa, príncipe, rainha e cavaleiro, respectivamente). (Figura 1)
Esse recorte foi feito para investigar a alteração visual e conceitual desse conjunto
de lâminas ao longo dos séculos, bem como verificar as idiossincrasias do tarô Waite-
Smith em relação aos seus antecessores, especialmente em relação à atuação poético-visual
de Pamela Smith. Esse conjunto específico de cartas também age como um limiar entre os
arcanos maiores e menores do tarô: possuem naipes, como os arcanos menores, mas não
números.
O principal motivador de seleção deste recorte envolve o simbolismo da corte, que
também está atrelada às cartas características de personalidade e aparência, e são
relacionadas a figuras notáveis da história. Essa característica faz com que os significados
atribuídos às cartas da corte estejam também muito relacionados às histórias de vida ou
19

mitologias que cercam os personagens ali representados – por exemplo, Atena como a
Rainha de Espadas, o que atribui diferentes aspectos à carta.
Essas associações fazem da corte em questão, a corte de espadas, um conjunto
particularmente propenso à ruptura de estereótipos estabelecidos pelas outras cortes –
rainhas como figuras maternais, por exemplo – o que instiga o questionamento: as imagens
da corte de espadas exibem esse caráter de ruptura?
A investigação desse conjunto de cartas contará com observações dos seus
elementos formais e possíveis desdobramentos destes – significados, fontes, contextos
históricos, entre outras informações –, sendo esse o foco da pesquisa, que contará com os
direcionamentos fornecidos por diferentes herdeiros da tradição inaugurada por Aby
Warburg (1866–1929) para abordagens que envolvem a sobrevivência de motivos
recorrentes nas imagens, em especial as aproximações iconográficas e iconológicas,
contando com as diretrizes de tanto Erwin Panofsky (1892–1968) quanto de Carlo
Ginzburg (1939-) como direcionamento.
Panofsky propõe a iconografia como um desdobramento da história da arte, cujo
foco é o significado das obras de arte, apontando três processos distintos para verificar a
construção de sentido das obras: (1) a pré-iconografia, que trabalha na identificação dos
elementos demonstrados na obra, (2) a iconografia, cujo processo é o de interpretação das
figuras encontradas, e (3) a iconologia, que compreende a força motriz na qual a obra está
envolta (PANOFSKY, 1962). Estas três etapas, aqui brevemente pontuadas, serão pautas
para a elaboração da pesquisa.
Diante dessa observação, esse trabalho volta seu olhar ao contexto histórico-
cultural que formou a estrutura das imagens do tarô, pavimentando o caminho de Pamela
Smith e a construção do simbolismo de seu baralho. O termo aqui pontuado como
simbolismo, portanto, fica demarcado como o sistema de símbolos engendrado entre
imagem e contexto cultural.
Um dos problemas encarados por esta pesquisa envolve o contexto de criação das
cartas de Pamela Colman Smith. A artista precisou preencher lacunas por não possuir
acesso completo aos textos que elucidariam o caráter interpretativo do tarô: alguns dos
20

símbolos trazidos por ela estão presentes no conteúdo do Liber T, mas muito do que é
ilustrado por ela evade este escopo.
Panofksy ainda cunha o conceito de iconologia, que é definido como um sintoma
de uma época, de um contexto cultural ou de um grupo. (PANOFSKY, 1962). Nesse caso, o
mote reinante acerca do tarô de Pamela Colman Smith é o oculto.
A separação entre o que é de comum acesso e o que é oculto por motivos místicos
paira sobre todas as cartas e pauta as ações e escolhas da artista em seu processo criativo. As
lacunas entre o que é visto e o que é escondido abrem espaço para esta pesquisa.
Ao contrário de Pamela Smith, nós, no século XXI, temos acesso ao Liber T – após o
declínio da Ordem Hermética da Aurora Dourada. Em meados de 1900, seus textos
sagrados e liturgias perderam o caráter hermético que antes permeava a organização e,
ainda, mais tarde, com o advento da internet, esses textos se tornaram de amplo e comum
acesso ao público.
Com esses mapas em mãos – o Liber T, as cartas produzidas por Pamela Smith, as
propostas idealizadas por Arthur Waite e o contexto histórico que acompanhou todos
estes acontecimentos –, podemos fazer o trajeto partindo da imagem e indo em direção ao
texto, seguindo as indicações propostas por Panofsky para alcançarmos este objetivo.
O autor alemão ainda comenta que a iconografia – especialmente quando voltada às
alegorias e outras imagens produzidas para um ato interpretativo – apoia-se fortemente no
texto de base: uma alegoria de uma das virtudes bíblicas, por exemplo, se valerá do
contexto bíblico para sua interpretação.
Neste estudo de caso, porém, já que a artista não teve o privilégio de acesso total aos
textos de base, prefiro Carlo Ginzburg como o autor que nos auxiliará a traçar o caminho
oposto: ao invés de percorrermos o caminho fontes-imagens, precisaremos iniciar nossa
jornada a partir das imagens, num trajeto imagens-textos.
Vale pontuar que a dinâmica entre texto-imagem é um assunto caro às pesquisas
em História da Arte, especialmente no que tange o limite entre a poética do artista e a
fidedignidade à narrativa que origina a obra, que compõe um dos interesses desta pesquisa.
21

A contribuição de Ginzburg adentrará este trabalho de maneira a perscrutar as


cartas de Smith como um “meio como ponto zero”10: de onde vieram as referências para a
constituição das imagens e dos significados de Pamela Smith? Quais as possibilidades de
desdobramento que as cartas elaboradas por ela nos deixam?
Ginzburg, no livro Mitos, emblemas, sinais, menciona seu processo através do caso
de uma mulher acusada pela Inquisição italiana, Chiara Signorini, no início do século XVI.
Ginzburg percorre o trajeto do julgamento de Chiara tendo-o como um detalhe, um
pormenor, que era antes ignorado em um contexto mais amplo: os tribunais inquisitoriais.
Diante desse ponto de vista, o trabalho aqui se desenvolverá de maneira similar,
fazendo, de cada carta abordada, um detalhe em um imenso panorama: seja uma menção às
ninfas abordadas por Aby Warburg; a referência do tarô a si próprio; ou a súbita mudança
de pontos de vista que a Inglaterra do século XIX tinha perante a figura do cavaleiro.
A opção pelo formato de prancha, aludindo às propostas aprofundadas por Aby
Warburg e seus colaboradores, enfatiza as imagens e seus trajetos ao longo dessa
dissertação, que elabora justaposições de referências visuais que enfatizam a presença dos
personagens das cartas da corte, fazendo da imagem o ponto norteador que guia a pesquisa.
Esse movimento visa destacar os rastros formais deixados pelas imagens de Pamela
Smith, observando também quais outros artistas que atuam no século XX e no XXI
seguiram o caminho aberto pela artista, o que permite que possamos acompanhar o debate
imagético tecido pelas ilustrações de tarô, que reverberam com a influência do RWS
mesmo após a morte da artista.
Os procedimentos elaborados por Ginzburg também influenciam neste trabalho,
atrelado a um olhar intuitivo: as pontuações aqui trazidas não visam uma interpretação
definitiva e absoluta das cartas mencionadas, mas sim buscam pontuações acerca das
questões que as envolvem e uma possível leitura destas imagens, atrelando-as também a
outras imagens, textos e conceitos, como na premissa trazida por Aby Warburg em sua
reinterpretação por Ginzburg e Georges Didi-Huberman.

10
Referência ao título do livro O meio como ponto zero: metodologia da pesquisa em artes
plásticas, que estabelece, no campo das pesquisas em Artes Visuais, o ponto em que se está
como um ponto inicial, olhando para as linhas do passado como contribuintes e elaborando as
possibilidades das linhas do futuro na pesquisa.
22

Além disso, as questões de sobrevivência da imagem segundo esses autores estão


intimamente relacionadas ao caráter hermético que o tarô abarcava: a partir do momento
em que o hermetismo simbólico do tarô se dilui, suas imagens também se
metamorfoseiam, ligando-se com maior força à poética dos artistas que criam suas
próprias cartas. Interessa à pesquisa investigar, através das imagens presentes nas cartas,
como ou se essa mudança visual ocorre com o decorrer dos séculos e a mudança do
contexto socio-histórico-cultural no qual o tarô se insere.

Figura 1: Cartas da corte do Tarô Rider-Waite-Smith. c. 1909. Idealizado por Arthur Waite.
Ilustrado por Pamela Colman Smith. Publicado originalmente por Rider and Son. 78 cartas.
Gravura sobre papel cartão. Fonte: albideuter.de
23

2. CONTEXTO HISTÓRICO DO TARÔ

Para determinarmos quais as origens das imagens do baralho de Pamela Smith, é


necessário que observemos quais as origens do tarô como objeto: quais suas figuras mais
recorrentes, como surgem os elementos que compõem suas ilustrações e ainda outras
questões similares.
A história do tarô se mescla com a dos baralhos lúdicos, sendo que estes contam
com somente uma parcela das cartas disponíveis num tarô completo: da subdivisão de 56
arcanos menores, saem quatro lâminas – os cavaleiros – para que o baralho tenha as
mesmas cartas de um baralho de jogo do século XXI.
Estima-se que a origem do formato e das imagens do baralho europeu envolve as
cartas do Sultanato Mameluco (Figura 2), que existiu na região do Cairo entre o século
XIII e XVI, até ser conquistado pelo Império Otomano (FARLEY, 2009. p.17). Essas cartas
trazem padrões que serão referências para os baralhos de tarô. Além disso, sua organização
também conta com as cartas da corte, que correspondem à hierarquia política local.
A importância dessas cartas foi trazida à tona na década de 1930, quando o baralho
foi descoberto, e seus estudos alcançaram a década de 1970, quando Michael Dummett
publica um estudo sobre elas através do Instituto Warburg. De acordo com ele, as cartas
haviam alcançado a corte milanesa da família Visconti, que será uma das maiores
patrocinadoras dos baralhos de tarô no século XV. (DUMMETT, ABU-DEEB, 1973)
Os tarôs tornam-se mais proeminentes na Europa do quattrocento e rapidamente
se enquadram na lei de proibição contra jogos de carta (Figura 3) por serem tratados como
jogos de azar e envolverem apostas monetárias, salvo algumas exceções, como o uso dos
baralhos para fins educativos.
Uma das possibilidades educacionais dos baralhos envolvia a natureza alegórica do
tarô, cujas imagens representavam ensinamentos cristãos e/ou helenistas. Para as famílias
que visavam a difusão de um conteúdo humanista, havia baralhos que traziam figuras
destacadas da Antiguidade Clássica (KAPLAN. 1978, p. 28).
24

Figura 2: Cartas do Sultanato Mameluco (conhecidas por Mamluk Cards ou Topkapi Deck).
Reconstrução datada do séc XV. Autoria desconhecida. Pintado e ilustrado à mão.
Fonte: wopc.co.uk.

Figura 3: Proibição aos jogos de cartas no século XIV. Estima-se que foi escrita pelo
escrivão de Bern em 1367 (redigido como MCCCLXVII, na nona linha) e
proíbe, entre outras atividades, os jogos de cartas (kartenspil, na quinta
linha) (KAPLAN. 1978. P. 25)
25

Deste conceito, surge o Tarô de Andrea Mantegna (c. 1470-1485), que, apesar de
seu título, não foi produzido pelo artista em questão, mas por dois diferentes artistas cuja
identidade ainda é incerta. Suas imagens não se configuram da mesma forma que as de um
baralho de tarô, mas sim como alegorias que remetem à mitologia grega, à astrologia, às
classes sociais da época e a outros assuntos, formando uma estrutura que não coincide com
as 78 cartas já mencionadas.
As classes mais abastadas possuíam baralhos com o teor como o do Tarô de
Mantegna, com fins didáticos, para instruir seus jovens nos assuntos representados pelas
alegorias, como por exemplo o ensino do trivium (gramática, lógica e retórica) e do
quadrivium (música, aritmética, astronomia e geometria), ambos presentes no baralho em
questão.

Diversas dessas alegorias tangenciam questões caras ao neoplatonismo e ao


hermetismo, como a astrologia, a mitologia e o interesse pela antiguidade greco-romana,
que eram comentadas por autores da época, como Marsílio Ficino (1433–1499), Pico dela
Mirandola (1463–1494), Cornelius Agrippa (1486–1535) e Giordano Bruno (1548–1600).
Esses autores fundamentaram o alicerce no qual as sociedades esotéricas do século XIX e
XX construiriam seus dogmas e ritos, muitos dos quais estão representados no tarô Waite-
Smith. Pico, por exemplo, volta sua atenção em especial à Cabala, que é mesclada aos
baralhos de tarô produzidos por estas tradições herméticas séculos depois.

As cartas da corte, que passam a trazer acenos ao sistema simbólico cabalístico de


forma mais demarcada por conta desses grupos místicos, iniciam seu trajeto como
representantes de figuras históricas, como reis, deusas, imperadores, guerreiros e heroínas.
O hábito reverbera no sistema oracular do tarô, que traz estas cartas como ícones de
pessoas da vida real, cujas características são similares às dos personagens de cada carta.

Dentre os principais registros deste hábito em relação às cartas da corte, está o


baralho idealizado e encomendado por Filippo Maria Visconti (1392–1447) chamado
atualmente de Baralho Michelino, ou Cartas de Besozzo – cujo nome corresponde ao do
pintor Michelino da Besozzo (1388–1445), que trabalhava para a família milanesa de
26

Visconti. Esse baralho, cujas cartas não sobreviveram às provas do tempo, era composto
exclusivamente por cartas da corte.

O que resta deste baralho é o registro realizado por Marziano da Tortono, secretário
do duque, que pontua 16 cartas representando deuses greco-romanos e quatro naipes
constituídos de pássaros – águia, fênix, pomba e pomba-rola. Cada naipe representaria
uma qualidade: virtudes, riquezas, prazeres e virgindades, respectivamente (FARLEY,
2009. P 36).

Neste período, estas famílias encomendavam baralhos feitos a mão para os artistas,
que criavam lâminas com riqueza de ornamentos e pigmentos, o que refletia a fortuna de
seus patrocinadores. Diferentes registros afirmam a ocorrência dessas encomendas
realizadas a partir de duques e outros membros de diversas cortes europeias (KAPLAN.
1978. P. 26).

Um desses baralhos é o Tarô de Visconti-Sforza, que data de aproximadamente 1451


e foi pintado a mão por Bonifacio Bembo (1420–1482). Suas lâminas trazem imagens que
estabelecem alguns padrões para as futuras cartas, especialmente no grupo de cartas de
interesse deste trabalho (Figura 4), como por exemplo uma constância visual entre as
cortes dos naipes. O baralho conta com 74 das 78 cartas presentes num baralho de tarô, o
que faz dele um dos conjuntos mais antigos e mais completos encontrados até a atualidade.
Algumas de suas cartas foram recriadas, como o Cavaleiro de Ouros.

A família foi unida através do casamento de Francesco Sforza (1401–1466) e Bianca


Maria Visconti (1425–1468), filha do duque de Milão, Filippo Maria Visconti (1392–1447).
O biógrafo oficial do duque recorda sua predileção por jogos de cartas, registrando que o
nobre encomendava aos artistas locais baralhos com imagens de deuses, animais
emblemáticos e figuras de pássaros, como é o caso do já comentado Baralho Michelino
(KAPLAN. 1978. P. 26). Esta inclinação do nobre gerou diversos fragmentos de baralhos
que são catalogados sob a denominação da família Visconti-Sforza e registram a extensão
da atividade lúdica das cartas de tarô no século XV.
27

As comissões de Filippo Maria Visconti não serviam somente aos fins recreativos,
mas também estabeleciam a identidade visual da família: muitos dos símbolos heráldicos
dessa corte estavam presentes nas cartas, e isso determina cânones visuais para muitos dos
arcanos ao longo dos séculos.

Figura 4: Tarô de Visconti Sforza (Pierpont Morgan-Bergamo). c. 1451. Bonifacio Bembo.


Excerto de 16 cartas das 74 que compõem o baralho. Pintado à mão.
Fonte: albideuter.de
28

Esse feito é visto nas cartas de copas, por exemplo, que trazem a fonte imagem
heráldica da família em algumas cartas. Nos arcanos menores, assim como nas cartas de
jogo atuais, o número de representantes do naipe corresponde ao número da carta. Nas
lâminas cuja taça só aparece uma vez (nas cartas da corte e no ás de copas), esse símbolo
torna-se mais elaborado e mescla seus elementos aos da fonte da família Visconti-Sforza
(Figura 5).

Figura 5: Comparação de cartas do naipe de Copas (Ás, Pajem e Rainha). Da esquerda


para a direita: Ás de copas (Tarô Visconti-Sforza); Pajem de Copas (Tarô Visconti-Sforza)
e Rainha de Copas (Tarô Rider-Waite-Smith)

Há uma adaptação desse brasão familiar para que ele se torne uma taça, no caso do
pajem, e há variações formais mais drásticas se este baralho é comparado ao baralho de
Waite, idealizado séculos depois. O formato da taça, nos três casos citados na Figura 5,
trazem uma estrutura similar: o formato da parte do cálice é geometrizado, seguindo a
heráldica Visconti-Sforza.
O Tarô de Visconti-Sforza é um exemplo de baralho produzido como emblema de
ostentação de poder, com detalhes pensados especialmente para seu financiador. Ese tipo
29

de baralho, porém, abre espaço para baralhos feitos através do processo de gravura, o que
permitia uma produção seriada das cartas.
Um dos baralhos que representa esse processo é o Tarô Sola-Busca (c. 1491), o
primeiro tarô completo desse período já registrado até a atualidade. Ele conta com todas as
78 cartas produzidas através de gravura em metal por Nicola di maestro Antonio (1448–
1511). Seu nome vem dos seus antigos donos: a Marquesa de Sola e o Conde Busca. O item
atualmente encontra-se na Pinacoteca di Brera, em Milão, na Itália.11
Esse também é o primeiro baralho conhecido que conta com ilustrações descritivas
para a sessão dos arcanos menores, que eram geralmente contidos em desenhos que
indicavam seu naipe e número. Esta mudança chega ao tarô Waite-Smith, que se utiliza do
mesmo mecanismo para representar os significados das cartas através de uma imagem
alegórica. Outra peculiaridade do Sola-Busca envolve o conjunto de cartas de interesse
desta pesquisa: as cartas da corte aqui possuem nomes, títulos e personagens que condizem
com equivalentes históricos, mitológicos e místicos (Figura 6).
Esse baralho, que fica sob a posse da família Busca-Serbelloni por séculos, chega às
graças do público através de fotografias em preto e branco disponibilizadas pelo Museu
Britânico em 1907. Os pesquisadores envolvidos com a investigação histórica dos baralhos
Sola-Busca e Waite-Smith traçam paralelos visuais entre os dois baralhos através do acesso
de Arthur Waite e Pamela Colman Smith às fotografias do Sola-Busca em Londres dois
anos antes do desenvolvimento do baralho Waite-Smith. Essa relação entre os dois decks
será revisitada ao longo deste trabalho.
Outro vínculo estabelecido entre a noção contemporânea de tarô e a de tarocchi do
século XVI é o seu uso oracular, que se mantém predominante no século XXI. O uso de
baralhos de cartas para prever o futuro é algo já registrado em 1540 através do livro Le sorti,
de Francesco Marcolino da Forli, que, em seu relançamento 10 anos após a primeira
edição, conta com explicações e perguntas a serem respondidas através de baralhos de
cartas (KAPLAN. 1978. P. 28). A predominância do tarô como ferramenta da cartomancia
só será vista na Europa séculos depois.

11
Texto disponibilizado pela Pinacoteca di Brera sobre o Tarô Sola-Busca:
http://images.brera.beniculturali.it//f/Documenti/so/solabusca_english2
30

A conquista de Milão pelas forças francesas e suíças no século XVI leva as imagens
dos baralhos milaneses para outros pontos da Europa, em especial à França, que estabelece
em Marselha um baralho através dos moldes italianos.

Figura 6: Tarô Sola-Busca. c. 1491. Nicola di maestro Antonio. Excerto de 16 cartas das 78 que
compõem o baralho. Gravura em metal sobre papel cartão. Domínio Público.
31

O modelo de Marselha cria um padrão conhecido por Tarô de Marselha, uma


identidade visual muito presente quando se fala de tarô até os dias contemporâneos. O
Tarô de Marselha possui variações regionais e características de cada artista que o
reproduz, tendo diferentes versões de um mesmo padrão de baralho. Dentre esses, está o
Tarô ilustrado por Claude Burdel em 1751, que ganha uma restauração desenvolvida em
1987 pela editora Lo Scarabeo (Figura 7).
O hábito de utilizar o tarô para fins de cartomancia se estabelece no século XVIII
em especial com os esforços Jean-Baptiste Alliette (1738–1791), que publicou um baralho
específico para cartomancia acompanhado de um livro de significados. Esse conjunto
passa a ser conhecido como Tarô de Etteilla, pseudônimo do autor, disseminando o papel
do tarô como ferramenta oracular.
Com o Egito sob domínio da França de Napoleão Bonaparte, há uma revisitação da
mitologia e religiosidade do Egito Antigo, o que movimentou alguns autores a publicar
sobre o assunto e atrelar a cultura egípcia a diversos tópicos místicos, dentre os quais estava
o tarô.
Essa conjunção é vista na publicação Le jeu des tarots, escrita para a revista Monde
Primitif em 1781. Tanto a revista quanto a publicação em questão são de autoria de Antoine
Court de Gebelin (1725–1784), que introduz a noção de que o tarô é proveniente do Egito,
bem como seus significados atrelados ao deus Thoth, que equivale ao deus grego Hermes e
suas questões místicas.
Esse apelo sobrenatural estava vindo à tona neste contexto: a França dos séculos
XVIII e XIX passava por uma renovação ocultista que deu origem a pensamentos como o
kardecismo e organizações como a Maçonaria e o Rosacrucianismo. Noções já comentadas
também ressurgem, como o interesse na Cabala e em outros assuntos herméticos.
As definições místicas e iniciáticas do baralho passam a ser mais focadas a partir
desse momento: o fim do século XVIII e o início do século XIX marcam o envolvimento do
tarô com as sociedades esotéricas europeias. Ainda da França, quem retoma este assunto é
Éliphas Lévi (1810–1875), que demarca no tarô de Marselha as questões herméticas já
pontuadas, como a cabala, a astrologia e outros assuntos, reestabelecendo a conexão entre
o neoplatonismo renascentista e o tarô.
32

Figura 7: Tarô de Marselha. c. 1751. Claude Burdel. Restauração de 1987. Excerto de 16 cartas das
78 que compõem o baralho. Gravura sobre papel cartão. Fonte: albideuter.de
33

Uma das pioneiras do pensamento esotérico nesse período, Helena Blavatsky (1831–
1891) se muda para Londres em 1887, levando consigo a potência mística que havia
implantado nos Estados Unidos. Essa influência fomenta novas sociedades esotéricas e dá
mais força às que já estavam em andamento na capital inglesa.

Dentre estas, nasce a Ordem Hermética da Aurora Dourada, conhecida pela


abreviação do seu título inglês, Golden Dawn. A história do tarô se beneficia muito dessa
organização, que contava com participantes engajados em traduzir títulos herméticos de
outras línguas para criar sua liturgia.

Os membros da ordem não contavam somente com a importação de culturas em


volumes literários: o movimento conhecido por Renascimento Céltico, que percorreu os
séculos XIX e XX, especialmente nas ilhas da Grã-Bretanha, foi a oportunidade que esses
adeptos encontraram para olhar para dentro do seu território através de suas lentes
místicas (FARLEY, 2009. P 123). Muitos dos simpatizantes destas práticas místicas viam,
através do folclore, uma oportunidade de reestabelecer uma identidade regional de países
como Escócia e Irlanda.

Nesse cenário, nasce o principal baralho a ser analisado neste trabalho: o baralho
Waite-Smith, que foi idealizado por Arthur Edward Waite e ilustrado por Pamela Colman
Smith, ambos versados em diferentes níveis nas práticas litúrgicas da Golden Dawn,
voltados às questões míticas regionais, como as lendas arturianas, e também abertos às
possibilidades culturais do resto do mundo, como o caso de Smith e sua maestria no
folclore jamaicano.
34

3. CONTEXTOS LOCAIS: PAMELA COLMAN SMITH, ARTHUR


WAITE E SUAS INFLUÊNCIAS

Autointitulada “afilhada de uma bruxa e irmã de uma fada”12, Pamela Colman


Smith (cujo apelido era Pixie, “fada, duende”) era uma figura que levantava dezenas de
questionamentos na virada do século XIX para o século XX. A artista, cuja aparência
destacava fenótipos de etnias estrangeiras ao seu país, a Inglaterra, era descrita
constantemente como uma figura excêntrica, frequentando espaços pertencentes aos
grupos de poetas, artistas, sufragistas e músicos nas noites londrinas.

A carreira da artista, que se inicia desde muito jovem, era fundamentada em


interesses já reforçados em sua família, permeada de escritores, pintores, e outras figuras
tidas como boêmias para os contemporâneos de Pamela. Volumes com histórias infantis
foram ilustrados pela avó da jovem, que consumia vorazmente toda sorte de fábulas, lendas
e contos em suas viagens, em especial à Jamaica, que deu à moça inúmeras histórias para
contar na Inglaterra.

A presença de Pamela Smith era constantemente vista como um “outro”: uma


artista, uma mulher que se recusava a seguir os padrões de comportamento de sua época,
de roupas largas vindas de outras culturas, com adereços estrangeiros, de sexualidade
supostamente sáfica e de etnia ambígua, a própria existência da moça tornara-se parte de
sua obra, o que lhe rendeu críticas que a forçavam ao lugar do exótico e a reduziam a uma
caricatura, rotulada por palavras como “primitiva”, “peculiar” e “animalesca”.13

Suas atividades no meio artístico não eram restritas somente às artes visuais: ela era
ativa também nas áreas do teatro, da poesia, da contação de histórias, das miniaturas, da
performance, das causas sociais, em especial voltando-se para as questões que envolveram
o movimento sufragista e os movimentos de auxílio às populações afetadas pelo pós-
guerra ao fim da Primeira Guerra Mundial.

12
“[Pamela Colman Smith] describes herself as a ‘goddaughter of a witch and sister to a fairy.’”.
(KAPLAN, et al. 2018. p. 14).
13
KAPLAN, et al. 2018. p. 12-14
35

Um de seus interesses estava no misticismo e no esotérico, que a levaram à sua


principal obra: o Tarô Waite-Smith. O ano é 1901 e a jovem artista Pamela Colman Smith
se une ao templo Isis-Urania da Ordem Hermética da Aurora Dourada em Londres.
Naquele espaço, Smith conhece Arthur Edward Waite, que divide com ela o interesse em
misticismo judaico-cristão e polariza um grupo em torno desse tema após a cisão que
ocorre na Golden Dawn em 1903.

Waite lidera um dos lados dessa divisão, almejando uma prática mística que visa
não revelar os segredos da Ordem e voltar-se para um contexto católico, tendo interesse
em elaborar um baralho de tarô com esta premissa e vê em Pamela Smith a possibilidade de
concretizar esse plano.

A moça – que já tinha contato com o tarô, que dividia com Waite o apreço pelo
catolicismo e que já fazia parte da Ordem Hermética – seria a artista encarregada de
ilustrar o baralho proposto por Waite seguindo algumas das indicações do Liber T, acima
de tudo dando seguimento aos planos de A. E. Waite para o baralho.

Ele, que mantinha um imenso apreço pelos códigos de conduta da Golden Dawn,
desejava um baralho que pudesse ser comercializado sem que os segredos esotéricos da
Ordem fossem revelados – nem mesmo, como já observado, à artista que ilustraria as
cartas.

Sendo assim, ele descreve metodicamente os arcanos maiores para que sejam
fielmente ilustrados de acordo com os princípios, que caminhavam na fina linha entre a
exposição e o ocultamento da Ordem; o pagão e o cristão; a obediência ao cânone da
Golden Dawn e a liberdade poética da artista.

O olhar do idealizador, voltado com maior intensidade para os arcanos maiores,


permite maior flexibilidade para a seção de arcanos menores, permitindo à artista que
pudesse transparecer com maior facilidade suas próprias referências e interesses.

Dentre os assuntos de interesse compartilhados tanto por Pamela Smith quanto por
Arthur Waite, estão os mitos, o folclore, as lendas, e as culturas regionais das Ilhas
36

Britânicas, como por exemplo o ciclo arturiano, em especial seu apelo religioso voltado
para o catolicismo.

Tendo viajado pelo mundo desde muito jovem, Pamela Smith teve contato com
histórias de diversos locais, ilustrando-as quando possível e fazendo carreira na função de
contadora de histórias. Como ilustradora, seus principais temas cercavam os contos de
outros países.

Uma de suas paradas fez-se nos Estados Unidos, terra natal de seu pai e onde ela
teve acesso ao ensino do Pratt Institute, recebendo educação formal através de Arthur
Wesley Dow (1857–1922), professor no instituto e membro do Arts & Crafts Movement14,
que criava uma contracorrente à Revolução Industrial

O movimento prezava pela manutenção do ofício do artesão, do artista e da perícia


artística que se perdia em prol das recém-chegadas máquinas a vapor, que fabricavam
produtos incessantemente e sem o mesmo nível de qualidade e cuidado empregados
anteriormente.

Além disso, seus participantes voltavam-se para a perpetuação de tradições orais e


folclóricas que cercavam em especial a Inglaterra medieval. O abandono desses temas em
prol da produtividade das máquinas move grupos de artistas, escritores, artesãos e
designers a se unirem com um objetivo em comum: criar uma rede de trabalhadores do
campo da arte que defenderá a resistência das práticas artesanais. A teia de pessoas unidas
com esse mesmo ideal se estende até os Estados Unidos, criando um forte polo no Instituto
Pratt através de Arthur Wesley Dow, chegando à Pamela Colman Smith em sua passagem
pelo Instituto.

Da parceria de Smith com Dow, surge o contato com o trabalho de Howard Pyle
(1853–1911), mais um os membros do movimento Arts & Crafts cujas obras voltadas para o
público infantil se destacam, em livros, contos e ilustrações baseados no folclore britânico.

Incluso, na historiografia da arte, sob o guarda-chuva do movimento Simbolista, que circula em


14

maior intensidade pela Europa do fim do século XIX e abrange interesses como um campo
metafísico, lendas e contos locais, mitologias. (Enciclopédia Itaú Cultural)
37

Essas passagens da vida de Pamela Smith e de Arthur Waite firmam a união do


catolicismo com as lendas inglesas, se estabelecendo visualmente através do desenho da
artista com as influências de Pyle e Dow, o que ainda recebe mais uma interferência: a
onda de interesse nas identidades culturais célticas que permeava as ilhas britânicas na
virada do século XIX para o século XX.

O movimento, demarcado através dos termos Renascimento Céltico ou


Celtomania, volta a atenção de artistas de diversas áreas para a história, o folclore e a arte
produzida pelos povos célticos pré-cristãos que habitavam a região das Ilhas Britânicas,
reacendendo o interesse nas tradições da região.

O movimento reforça também símbolos de identidade nacional e revive


características formais nas artes visuais que transbordam para o Arts & Crafts, para o Art
Nouveau e outros movimentos, como a grande quantidade de adornos com padrões
curvilíneos e botânicos, que alcançam alguns dos trabalhos de Pamela Smith.

Muitos dos interessados na Celtomania retomam questões identitárias de suas


genealogias ou de seus costumes, reestabelecendo a literatura, a arte e a artesania locais. É o
caso, por exemplo, do irlandês Jack Butler Yeats (1871-1957), irmão do poeta William
Butler Yeats, que produziu inúmeras obras baseadas na premissa de uma vida bucólica,
voltada para um retorno às tradições campesinas e por consequência à rejeição da
modernidade, naquele momento identificada às máquinas a vapor.

O artista ilustra paisagens rurais, festivais que celebram a produção do campesinato


e suas atividades, como cavalgadas, pescas e colheitas. As ilustrações circulavam junto à
literatura produzida não somente pelo artista, mas também por seus pares, que estavam
envolvidos na produção de revistas e coletâneas que compilavam produções artísticas –
ilustrações, poemas, crônicas e muitos outros.

Pamela Colman Smith não somente participava dessas revistas através de


submissões de suas ilustrações e textos como também era editora do A Broad Sheet,
periódico no qual ela colaborava com Jack Yeats durante 1902 e 1903. Dessa revista, Pamela
desdobra sua própria publicação, de nome A Green Sheaf, que, em questão de anos, é
38

transformado na The Green Sheaf Press, editora que publicaria variados volumes,
trabalhando com Sir Lawrence Alma Tadema, Jack Yeats, e muitos outros contribuidores.

A influência das parcerias com integrantes do movimento Arts & Crafts


transparece em suas imagens e suas cartas de tarô, especialmente no traço, que, se colocado
lado a lado com o de Jack Yeats, divide com ele inúmeras particularidades: a sinuosidade, a
reminiscência das ilustrações japonesas, as hachuras que demarcam o hábito de lidar com a
gravura como principal mídia, as repetições de linha para criar texturas.

Muitas das escolhas para paisagens, cenários locais, perspectivas, modelos de


objetos e outros temas são vistos concomitantemente nos trabalhos de Pamela e de artistas
que atravessaram sua trajetória, em especial Jack Yeats e Arthur Wesley Dow. Essas
semelhanças verificam-se também no tarô Waite-Smith (Figuras 8, 9, 10 e 11)

Outra contribuição do movimento para a artista era seu caráter multifacetado, já


que a prática de seus colaboradores se estendia por campos que iam da arquitetura até a
tipografia. Ilustradores, por exemplo, circulavam entre diversos campos e produziam obras
em conjunção com o teatro, a música, a literatura e diversos outros. Esse era o caso de
Pamela, que atuou fortemente no âmbito do teatro através da criação de cartazes,
ilustração de figurinos, criação de calendários e material promocional para peças. (Figura
12).

Dentre as peças que movimentavam os desenhos, gravuras e pinturas de Pamela,


estavam Peter Pan, diversas reencenações de Shakespeare e outras peças baseadas num
imaginário medieval sobre a região da Bretanha. A família de Pamela já era envolvida com
teatro através de sua mãe, que participava do teatro amador do Brooklyn (KAPLAN, et al.
2018. p 359) e a própria Pamela envolveu-se com teatros em miniatura, produzindo
pequenas maquetes como cenário e contando as histórias de suas viagens.

Além disso, ela estava imersa no contexto do teatro através de suas conexões: a
jovem artista convivia com atrizes e atores que dividiam com ela o apreço pelo antigo, pelo
medieval e pelo fantástico. A moça era frequentadora do Smallhythe Place, casa da atriz
39

britânica Dama Ellen Terry (1847-1928), que a inseriu nos espaços das companhias de
teatro, onde ela desenvolveria material gráfico. (Figura 13)

A parceria entre Smith e Terry ainda se estendeu à filha da atriz, Edith Craig (1896-
1947), que fora incluída no baralho de Pamela como modelo de muitas das personagens
representadas (Figura 14). A própria Ellen Terry é vista em algumas das cartas que ecoam
as personagens que ela interpretou no teatro.

Figura 8: Prancha de Influências Formais I. Colagem digital Elaborado pela Autora. 2021.
40

Figura 9: Prancha de Influências Formais II. Colagem digital Elaborado pela Autora. 2021.
41

Figura 10: Prancha de Influências Formais III. Colagem digital Elaborado pela Autora. 2021.
42

Figura 11: Prancha de Influências Formais IV. Colagem digital Elaborado pela Autora. 2021.
43

Figura 12: Pamela Colman Smith, poster para o calendário Shakespeare's Heroines
de 1899. litogravura, 1898. Mark Samuels Lasner Collection. Disponível em udel.edu
44

Figura 13: Prancha Ellen Terry. Colagem digital Elaborado pela Autora. 2021.
45

Figura 14: Prancha Edith Craig. Colagem digital Elaborado pela Autora. 2021.
46

Figura 15: Prancha Maude Adams. Colagem digital Elaborado pela Autora. 2021.
47

Outra atriz que perscruta as cartas de Pamela Smith é a estadunidense Maude


Adams (1872-1953), que fez carreira através da Broadway. Seus papeis memoráveis, como
Peter Pan e Joana D’Arc, aproximam-se das cartas O Louco e nos cavaleiros nas cartas da
corte. A atriz já fora inspiração para outros artistas, como Alphonse Mucha (1860-1939),
que também a retrata como a mártir francesa. (Figura 15)

O próprio Smallhythe Place foi o foco de várias das imagens das cartas, servindo de
pano de fundo para cartas como, por exemplo, o nove de ouros presente no compilado da
figura 9. Pamela, portanto, mesclava seu cotidiano às cartas quando podia, inserindo desde
grandes paisagens do interior da Inglaterra como panos de fundo para alguns arcanos até o
pequeno gato preto da família de Ellen Terry como integrante da cena da Rainha de Paus.

A premissa de borrar os limites entre o que é arcano e o que é cotidiano nas


ilustrações das cartas encontra uma forte aliada em Pamela Smith, que abre precedentes
para que, futuramente, outros artistas façam o mesmo em diferentes níveis.

As influências dispostas pela autora em seu baralho são recomendadas por ela
quando se dirige aos colegas membros do movimento Arts & Crafts no texto “Should the
art student think?” [Deve o estudante de artes pensar?]. Smith instiga seus colegas a
refletir sobre seus objetivos como artistas visuais e analisar se estão perseguindo as
referências adequadas para alcançar seus fins.

Ela menciona o teatro como uma importante referência para aqueles que desejam
desenhar a figura humana e suas reverberações, e adentra o campo já estabelecido por Aby
Warburg: o dos gestos demarcados pelas emoções: “Primeiro, veja as formas mais básicas
de alegria, medo, pesar; veja a posição realizada pelos corpos e posteriormente veja as
expressões da face.”15 (SMITH, 1908. p 417)

No texto, a artista atribui ao teatro grande parte da sua proficiência em desenho,


comentando sobre suas influências vistas em figurinos, cenários, narrativas e outros

15
“First watch the simple forms of joy, fear, of sorrow; look at the position taken by the whole
body, then the face - but that can come afterward”. SMITH, P.C. Should the Art Student Think? In:
The Craftsman, v. XIV, n. 4, julho de 1908, p 417-419
48

elementos presentes numa peça, instigando seus colegas a observarem os gestos e


interações entre todos os elementos em cena.

Ela mesma segue seu próprio conselho, sorvendo imagens e referências dos amigos,
professores e do movimento no qual se inclui. Ao colocarmos lado a lado as produções das
pessoas que tangenciam a biografia da artista, podemos observar concomitâncias.

As composições de cenário providenciadas pela artista bebem nas fontes de seus


mentores, tendo até mesmo traços similares estabelecendo uma identidade visual para o
movimento Arts & Crafts. A preocupação com a representação de um contexto idílico em
oposição a um exacerbadamente manufaturado denota a ancoragem da artista em seu
movimento e imprime o seu tarô em um contexto que remonta um tempo que foge da
realidade no qual ele foi produzido.

Em seu texto, Pamela Smith contesta o caráter de consumismo acelerado que nascia
no seu contexto histórico ao mencionar que a imprensa massificada havia sufocado a
inspiração artística com uma demanda excessiva. Ironicamente, o baralho da artista torna-
se um dos mais difundidos do mundo por conta da impressão em massa, sendo atualmente
encontrado em baixa qualidade de produção com facilidade e tendo se transformado em
um dos baralhos de tarô mais difundidos no século XXI.

Com as influências de Pamela Colman Smith dispostas sobre a mesa, podemos nos
questionar sobre como tais imagens se ordenam no trabalho da artista e como essas
questões se desenvolvem para além dela. Podemos fazê-lo de forma linear, traçando uma
linha do tempo evolutiva das cartas em questão, como foi feito em grande parte da História
da Arte.

Porém, como já trazido anteriormente, o olhar lançado sobre essas imagens será
voltado aqui aos procedimentos empregados por Carlo Ginzburg, que ecoam com o
trabalho de Aby Warburg. Voltando para a menção à linha do tempo: se observarmos e
refletirmos sobre a linha como objeto – o fio, o barbante –, ele nasce como um grande
acúmulo de material (montes de algodão ou lã, por exemplo). A linha do tempo pode ser
inicialmente uma nuvem do tempo.
49

As referências que chegam à Pamela Smith não a atingem de forma progressiva ou


evolutiva, com uma ação que leva à próxima, mas em forma de raio, que se expande por
uma nuvem, em forma de balaio – como dita o nome da publicação elaborada pela artista,
The green sheaf, “O balaio verde”.

A justaposição expositiva de itens aparentemente desconexos é uma


particularidade do trabalho proposto por Warburg em seu o Atlas Mnemosyne.
Coincidentemente, o tarô como oráculo funciona da mesma forma: aquele que lê as cartas
traça relações e dinâmicas entre os significados ali dispostos, mesclando leitura de
imagem, intuição e a capacidade de, como menciona Didi-Huberman, “ler o que nunca foi
escrito” (2018. P 15).

A mesma noção circula em torno da maioria dos oráculos ao longo da história: o ato
de permear aquilo que está intangível, de alcançar o espaço entre duas ou mais questões
que são relevantes para uma previsão oracular. O próprio processo de Pamela Colman
Smith atua de forma semelhante – recebendo influências do teatro, da música, das artes
visuais, do esoterismo e diversas outras áreas –, sendo, como ela própria propõe, um
grande conglomerado de referências.

Ao observarmos esse conglomerado, podemos vislumbrar questões caras à artista


em sua produção não somente em seus temas, traços e trajetos, mas também através das
informações ocultas em suspensão entre obra, referências, cartas do tarô, significados.

Tal observação de forças não-ditas já é pontuada por Jean Lancri (1936-), que
descreve o processo de pesquisa em arte como o de um jogo de xadrez (LANCRI, 2002)16.
O olhar warburgiano, especialmente quando refletido por Didi-Huberman e Carlo
Ginzburg, também pode se sustentar numa lógica semelhante: se o tabuleiro de xadrez
permite ao enxadrista a observação das linhas de força entre as peças17, a mesa desempenha

16
LANCRI, Jean. Colóquio sobre a pesquisa em artes plásticas na universidade. In:
O meio como ponto zero: metodologia da pesquisa em artes plásticas. Porto Alegre:
Ed.Universidade/UFRGS. 2002.
17
SOUSA, Ruth. Pesquisador como estrategista: sete propostas estratégicas inspiradas no jogo de
xadrez e aplicadas à conte da pesquisa em arte. In: Revista-Valise, Porto Alegre, v. 1, n. 2, ano 1,
dezembro de 2011.
50

a mesma função para Warburg e para o cartomante na distribuição de suas imagens e


cartas.

O pesquisador Etienne Samain (1938-)18 traz reflexões sobre essa organização ao


observar as pranchas propostas por Warburg no Atlas Mnemosyne:

Num primeiro momento, a prancha não passa de um enigma, de um autêntico


quebra-cabeça. Ela é ao mesmo tempo uma única imagem e, no entanto, um
mosaico de imagens um grande quadro-negro que cerca um conjunto de manchas
luminosas. Imagens que cintilam como vaga-lumes na noite. O fundo da tela é
preto, mas não totalmente. É igual a uma abóboda celeste estrelada. Semelhante a
um diário noturno, aberto, com suas letras, sílabas, margens, curvas, pontos e
silêncios. Misterioso caderno de constelações que os homens, desde a noite dos
tempos, procuram desvendar e decifrar. (SAMAIN, 2011)

A prancha ou a mesa, ao contrário do tabuleiro mencionado por Jean Lancri, por


exemplo, permite uma ampla movimentação dos itens nela dispostos, que podem se
sobrepor, justapor, sofrer mutações e rotações conforme desejado. As estrelas,
mencionadas por Samain, possuem uma combinação inicial como constelações, mas
podem ser recombinadas, observadas unitariamente ou conglomeradas em um todo.

Até aqui, pudemos fazer uma escavação do trabalho de Pamela Smith e do tarô:
herdamos desta artista um imenso balaio de possibilidades e aqui pudemos desfiar esse
pacote e revelar alguns de seus itens sem esgotar suas abordagens.

Uma dessas abordagens está no dizer “o bom deus está nos detalhes”, atribuído a
Warburg e reforçado metodologicamente por Ginzburg que, como já pontuado, apoia-se
nos conceitos reiterados pelo Atlas e segue os rastros dos detalhes em suas pesquisas ao
voltar o olhar para minúcias presentes nas imagens – uma mirada, uma palavra, uma
gestualidade das mãos (GINZBURG, 2008).

Aqui acompanharemos Ginzburg em seu trajeto, reforçando essa ação,


identificando detalhes das cartas que se confirmam no passado, nas referências de Pamela
Smith, nas forças exercidas pelo contexto histórico que a envolve e que repercute no

18
SAMAIN, Etienne. As “Mnemosyne(s)” de Aby Warburg: Entre Antropologia, Imagens e Arte. In:
Revista Poiésis, Rio de Janeiro, n 17, Jul. de 2011. p. 29-51.
51

presente. O que, muitas vezes, impulsiona esse insight para Ginzburg é o apelo visual
providenciado pelos ilustradores das cartas – os mesmos detalhes visados pelo historiador
italiano em suas observações de cartazes políticos, por exemplo.

Os detalhes a serem perscrutados são os de quatro cartas presentes no baralho de


Pamela Smith, as cartas da corte de espadas: Rei de Espadas, Rainha de Espadas, Cavaleiro
de Espadas e Pajem de Espadas.

Estas imagens serão observadas através de justaposições que remontam a prática do


Atlas Mnemosyne de Warburg, destacando alguns detalhes das imagens em especial e
discorrendo sobre algumas questões contextuais, sem o objetivo de esgotar seus debates ou
estabelecer uma leitura uma e inequívoca para essas imagens.

A escolha acontece para permitir ao leitor-observador a oportunidade de comparar


as imagens entre si, fazendo da área dos compilados de figuras um espaço ativado pelo
movimento errante dos olhos e da mente, que traça paralelos e une referências, levando em
consideração a bagagem de cada observador, que, como um caleidoscópio, permite uma
mutabilidade das abordagens às imagens do tarô

Através desse olhar dinâmico, é possível vislumbrar interesses imateriais e fugazes


como a própria passagem do tempo: as ondas do passado e as correntes do futuro
escondem-se entre as imagens do tarô, promovendo não uma conclusão estática e certeira
do tempo observado por elas, mas sim mencionando um fantasma, uma sensação, uma
intuição.

Sendo assim, os capítulos seguintes voltam sua atenção para essa possibilidade, a de
justapor imagens sublinhando um ponto em comum que se atrela a desdobramentos da
história das imagens.
52

4. ABORDAGENS ICONOLÓGICAS DA CORTE DE ESPADAS


4.1. REI DE ESPADAS

O Rei de Espadas senta-se em seu trono, vestindo túnicas


e uma capa. Ele usa uma coroa e tem sua espada desembainhada
em riste, enquanto o tom azul claro de suas vestes mescla-se com
o céu, criando uma imagem predominantemente azulada, que se
combina a uma paisagem aberta contando com algumas árvores e
uma breve elevação de terra na qual o trono se posiciona. O
encosto conta com algumas figuras entalhadas: uma dupla de
pequenos meninos movimenta-se como se tocasse a cabeça do rei.
(Figura 16)
Figura 16: Rei de
Espadas. Pamela Atrás deles, tanto no entalhe quanto no cenário, estão
Colman Smith. Parte
integrante do Tarô nuvens em um arranjo de continuidade entre si. Três grandes
Waite-Smith. 1909.
borboletas participam do conjunto entalhado, o que cria um
triângulo na altura da coroa do governante em questão. A borboleta centralizada, que está
no topo da formação em triângulo, tem asas mais elaboradas, cujo contorno ecoa a forma
do inseto. No céu ao fundo, voam dois pássaros em conjunto e na coroa do rei está o
entalhe de uma cabeça com asas. Esse mesmo motivo é visto no trono de sua consorte, a
Rainha de Espadas, a ser aprofundada no capítulo seguinte.
Na Golden Dawn, tradição hermética que acompanha esse baralho, a espada é o
símbolo do elemento Ar, representante do intelecto, da lógica e da elevação espiritual, Esse
mesmo significado envolve a cabeça alada na coroa, que é apontado pelo Liber T como um
dos escudos do naipe de espadas (LIBER T, 2012. P. 80).
O escudo aqui será dividido em três partes: cabeça, asas e a coroa na qual está
localizado. As asas, que aparecem em abundância na imagem, trazem à tona os aspectos de
elevação aqui já pontuados, e, quando mescladas à cabeça, denotam a elevação das
atividades mentais, pontuando este rei como uma figura de raciocínio certeiro, rápido e
lógico, cujo primeiro ímpeto é ser guiado pela razão. A coroa potencializa o sentido, sendo
não somente iconografia de majestade, mas também do modus operandi do rei.
53

Como comenta o idealizador do baralho, Arthur Waite: “Ele se senta, em posição


de julgamento, exibindo o símbolo desembainhado de seu naipe. Ele nos lembra do arcano
maior Justiça em sua pose, e ele pode representar esta virtude, mas ele é, por conta de seu
ofício, o poder da vida e da morte” (WAITE, 1910. P 82. trad. minha)19.
Ao assumir a posição (Figura 17), ele toma para si o aspecto de um rei justo, sendo
aquele que se encarrega de agir com justiça e impessoalidade. A carta Justiça traz na
balança o dualismo. No caso, este significado é visto, a meu ver, nos pares ao redor do rei:
os pássaros que o sobrevoam e os meninos inscritos em seu trono, que remetem às
equivalências astrológicas trazidas no Liber T e que pontuam este rei como o regente dos
primeiros dois decanatos do signo de Gêmeos, guiado pelo planeta Mercúrio,
representante celeste do intelecto por correntes neoplatônicas nas quais o tarô se baseava.
O mesmo livro põe essa carta no papel de “Senhor dos Ventos e das Brisas. O Rei
dos Espíritos do Ar. O Rei dos Silfos e Sílfides. Sabedoria da Formação”, trazendo ainda a
seguinte descrição para o monarca:

Quando o energético, criativo e autoritário impulso do paternal [rei] se expressa


no meio do ar, nós vemos um ser egocêntrico, consciente, tendencioso à razão e
com um intelecto brilhante. Porém, ele é discriminador, separatista, controlador e
imperioso. Estas faculdades permitiram que a civilização e a ciência florescessem,
tendo uma enorme habilidade e vantagem, ainda assim são elas são cruéis,
insensíveis e impessoais. (LIBER T, 2012. p. 72. Trad. minha)20

O rei ainda se expressa de maneira séria, compenetrada em seu ofício que, como já
pontuou Waite, afirma a capacidade para a vida e para a morte. Esse sentido é bastante
visível quando a carta é comparada à O Imperador, que posa como esse rei.
Ambos se sentam em seus tronos, olhando fixamente para o observador e
segurando ícones de seu poder na mão direita – a espada e o cetro.

19
He sits in judgment, holding the unsheathed sign of his suit. He recalls, of course, the
conventional Symbol of justice in the Trumps Major, and he may represent this virtue, but he is
rather the power of life and death, in virtue of his office. (WAITE, 1910. P 82.)
20
When the fiery, creative, commanding impulse of the paternal Yod expresses itself through the
intellectual realm of Air, we see the egoic, self-conscious faculty of reason, a piercing and brilliant
intellect, separative and discriminating, controlling, commanding, and imperious. These faculties,
which have permitted civilization and science to emerge and flourish, give enormous ability and
advantage; yet they are also cruel, callous, and impersonal.
54

Figura 17: Prancha para o Rei de Espadas (Autoridade). Colagem digital. Elaborado pela Autora. 2021.
55

Ambos estão coroados e têm em seu trono representantes astrológicos do tipo de


poder que exercem – o carneiro do signo de Áries na carta d’O Imperador e os Gêmeos na
do Rei de Espadas. Essa particularidade também é vista no formato do trono, mais
longilíneo no caso do Rei de Espadas, remetendo à elevação de pensamento já pontuada
para esse monarca.
A dicotomia, entre a ação bélica de Áries – regido por Marte, o planeta do deus
romano da guerra – e o domínio intelectual de Gêmeos, do deus rápido e comunicativo
Hermes, fica ainda mais clara quando comparamos as vestes civis do Rei de Espadas à
armadura d’O Imperador.
O ponto central da construção deste Rei é sua posição como figura de autoridade,
que, por conta da espada, se destaca dos outros reis. O combo de espada e trono como
representantes de domínio, liderança e realeza são preconizados há séculos por alegorias.
Cesare Ripa (1555-1622), em sua Iconologia, já trazia uma figura entronada, armada de
espada, como a personificação da Autoridade, o que reverbera diretamente no Rei de
Espadas.
Figuras como a Autoridade de Ripa permeavam as coletâneas de emblemas
neoplatônicos no Renascimento, que culminam em tarôs como o Sola-Busca ou o
Visconti-Sforza, que pavimentam o caminho para o baralho de Pamela Smith.
A figura fixou-se ao longo da história nos espaços nos quais a ideia de poder teria
influência – palácios, centros governamentais, igrejas. A mesma posição pode ser vista em
outras cartas que correspondem a esses espaços, como O Hierofante (igrejas), O
Imperador (palácios) e Justiça (tribunais). Tais ofícios encapsulam-se na imagem e no
significado do Rei de Espadas, que dialoga formalmente com essas cartas.
Outra possível referência de Pamela Smith foi o livro ilustrado Beeton’s historical
romances, daring deeds, and animal stories. illustrated etc, lançado em Londres pouco
antes do nascimento da artista, mantendo-se em circulação até os dias atuais (Figura 18).
56

Nele, está a ilustração de uma corte organizada pela Liga da Corte Sagrada (vehmgericht,
em alemão), que recebiam a iniciação de um novo membro de sua organização.21
A ordem, conhecida por vehm, fazia julgamentos e tribunais que atuavam de forma
extraoficial na região germânica, onde essas cortes de vigilantes agiam. Por eles, eram
aplicadas punições que se estendiam até a pena de morte.
Na ilustração trazida por Beeton, vemos os participantes da corte na mesma pose
que a do Rei de Espadas da carta de Pamela Smith: espada em riste enquanto sentam-se
num trono, colocando-se em status de superioridade em relação a quem os observa,
realizando o ato do julgamento.

Figura 18: BEETON, Samuel Orchard. “Beeton’s Historical Romances, Daring Deeds, and
Animal Stories. Illustrated etc”. Ward Lock: Londres, Inglaterra. 1871. Fonte: British Library

21
DU BOULAY, F. R. H. “Law Enforcement in Medieval Germany”. In: History. v. 63, n. 209, 1978. p.
345-355. Acesso online disponível em: <https://www.jstor.org/stable/24410549?seq=1>. Acesso
em mai/2021
57

O motivo visual de Pamela Smith em seu Rei de Espadas é estabelecido ao longo dos
séculos tanto dentro quanto fora do âmbito do tarô. Dentre as quatro cartas focalizadas por
este trabalho, essa é a que mais se adequa aos padrões estabelecidos por figuras como a de
Beeton.
Ao compararmos esse Rei aos outros monarcas presentes na história do tarô e já
evocados neste trabalho, como os do Tarô de Marselha, do Tarô Visconti-Sforza, ou do
Tarô Sola-Busca; podemos demarcar sua semelhança. Permaneceram as cartas que vieram
após o baralho de Pamela Smith, as cartas dos séculos XX e XXI, dentro deste padrão? Se
mudaram, como o fizeram?
O Rei de Espadas como uma figura imponente, que evoca o ar de autoridade
proposto por Cesare Ripa, e os tarôs que surgem após o trabalho de Pamela Smith
reconhecem essa constância imagética e optam por dois caminhos: manter-se no cânone
estabelecido para o Rei ou imprimir a ele uma visão divergente.
Uma invariabilidade é o estado de repouso no qual o rei se encontra, denotando
uma imponência imóvel, altiva e inflexível. Na figura 19, na coluna ao lado esquerdo estão
algumas cartas que trazem variações do cânone, enquanto o lado direito exibe cartas que
seguem os padrões.
A primeira carta da coluna da esquerda, o Pai de Espadas do The Wild Unknown
Tarot, reflete a postura estática do Rei de Espadas de Pamela Colman Smith, mas sua
presença se dá através de uma coruja e seu olhar atento e certeiro. Toda a corte de espadas
dest=se baralho trará o animal como figura principal e acentuará diferentes aspectos de sua
natureza conforme a potência do significado da carta. Nesse caso, a espécie Bubo bubo,
conhecida por coruja-águia da Eurásia, atrelando ao Rei o símbolo da águia, relacionada a
Zeus, o patriarca dentre os deuses gregos.
Já a segunda carta à esquerda, o Rei do Linestrider Tarot de Siolo Thompson, traz a
analogia do Rei de Espadas com o inverno ao representá-lo coberto de cristais de gelo. Essa
menção é trazida no Liber T e coloca o Rei de Espadas como uma figura que simula o gelo:
rigoroso, frio, rígido. Os tons frios auxiliam a trazer essa analogia para a carta, que recebe
mais uma camada provida pelo Liber T ao chegar ao Pagan Tarot.
58

Figura 19: Prancha para o Rei de Espadas (Cartas que vieram depois do Tarô Waite-Smith).
Colagem digital Elaborado pela Autora. 2021.
59

Nesse exemplar, o Rei de Espadas é representado por um idoso, trazendo em sua


maturidade o conhecimento que é típico do Rei de Espadas. O baralho ainda emprega as
questões de associação ao ar já pontuadas no início desta seção. A cor amarela dos adornos
do personagem faz a correlação, que também está presente na figura do punhal, que, na
liturgia da Golden Dawn e outras sociedades esotéricas, sugere o elemento clássico do Ar
em suas práticas, presentificando na ilustração uma versão da espada, que
tradicionalmente nomeia o naipe em questão.
Apesar de haver um desvio do padrão já estabelecido imageticamente, as cartas que
representam o Rei de Espadas ainda mantêm muitos de seus simbolismos para construir
seu sentido. A subversão ao cânone se dá pela substituição da figura central de um rei, que
recebe um outro tratamento – uma ave, uma alegoria sazonal, um sacerdote.
A coluna das cartas que se mantém com o padrão trazido por Pamela Colman Smith
emprega o uso do trono, ao contrário, por exemplo, das cartas mencionadas anteriormente.
Ainda que sigam algumas das estruturas já estabelecidas no cânone, muitas delas contam
com algum nível de quebra com o padrão vigente.
A primeira delas, o Rei de Espadas do Universal Goddess Tarot, conta com
Coatlicue, a deusa asteca que era associada às cobras e recebia sacrifícios como agrado,
sendo também ela uma figura de julgamento. A presença de uma mulher como Rei é uma
variação recorrente nesse baralho.
O segundo rei é representado por Odisseu, dado na poesia de Homero como rei de
Ítaca e protegido da deusa Atena, encaixando-se também no papel de sábio, de juiz, de
conselheiro e de estrategista ao longo de narrativas como da Guerra de Troia.
Já o último rei dessa coluna encontra-se multiplamente recoberto pelas imagens
evocadas por Pamela Smith: a coroa está duplicada, seu trono – já representante da
estabilidade do governante – é encimado por um quadrilátero, que é frequentemente
atrelado à estabilidade nas tradições neoplatônicas que envolvem o tarô. Ele senta-se
apoiado na espada e vestindo uma armadura, preparado para um combate – físico, mental,
ideológico.
60

A constância das três últimas cartas em relação ao tarô Waite-Smith é a


estabilidade: o Rei de Espadas, coroado com os louros de sua sabedoria e inteligência,
firma seu poder estabelecendo dominância intelectual e estratégica. Essa mesma
característica pode ser vista em sua consorte, a Rainha de Espadas, a ser abordada na seção
seguinte.
61

4.2. RAINHA DE ESPADAS

Nas diferentes cortes do baralho de tarô, em cada um dos


naipes, há a constância da rainha como a representante feminina
da realeza. Essas personagens regem aspectos que tangenciam a
criação em seus naipes, sendo constantemente representadas
como figuras de caráter maternal, acalentador, criativo. A Rainha
de Copas, por exemplo, é descrita por Arthur Waite da seguinte
forma: “Bela, loira e sonhadora – já que tem visões ao olhar para a
taça. Este é, porém, somente um de seus aspectos. Ela vê, mas ela

também age, e sua atividade alimenta seus sonhos”. (WAITE,


Figura 20: Rainha de
Espadas. Pamela 1910. P 69. trad. minha)22
Colman Smith. Parte
integrante do Tarô
Waite-Smith. 1909.
A Rainha de Espadas (Figura 20), foco deste subtítulo, é
uma exceção na casta das rainhas. Ela é retratada desta maneira:

Sua mão direita ergue a espada verticalmente, descansando o punho da mesma no


braço do trono. Sua mão e seu braço esquerdos estão erguidos. Seu semblante é
severo, mas castigado; ele sugere uma familiaridade com o sofrimento. Ela não
representa misericórdia e, apesar de sua espada, ela dificilmente é um símbolo de
poder. (WAITE, 1910. p 83. trad. minha).23

A descrição vai de encontro à Rainha de Copas, sendo sua oposição direta:


enquanto a de Copas é vista com um olhar positivo e enaltecedor, a de Espadas sofre e é
penalizada por suas dificuldades. A. E. Thierens (1875-1941), astrólogo que teorizava sobre
o tarô, menciona, dentre as associações da Rainha de Espadas, a viuvez, o divórcio, as mães
que tiveram seus filhos mortos, situações de luto, pobreza, tristeza, privações e ausências.24

22
“Beautiful, fair, dreamy--as one who sees visions in a cup. This is, however, only one of her
aspects; she sees, but she also acts, and her activity feeds her dream” (WAITE, 1910. p 69)
23
“Her right hand raises the weapon vertically and the hilt rests on an arm of her royal chair the left
hand is extended, the arm raised her countenance is severe but chastened; it suggests familiarity
with sorrow. It does not represent mercy, and, her sword notwithstanding, she is scarcely a
symbol of power.” (WAITE, 1910. P 83)
24
THIERENS. A. E. The General Book of Tarot. Kessinger’s Legacy Reprints. 2010. Primeira
Publicação de 1930 disponível em <https://www.sacred-texts.com/tarot/gbt/gbt84.htm>.
Acesso dia 08 jul 2021.
62

A soberana de Espadas, portanto, sai do século XIX e XX como uma figura isolada
dentre as rainhas, evocando o oposto do que costuma ser atrelado a essa posição na corte
do tarô. Tal visão sobre ela sofre algumas alterações ao final do século XX graças a autores
como Rachel Pollack (1945-), que também enaltecem as características mentais e
intelectuais da figura:

A Rainha de Espadas simboliza experiências de tristeza e sabedoria,


especialmente a conexão entre ambas. Tendo passado pela dor (levando em
consideração que a carta, em algumas vezes, significa viuvez) e a encarado com
coragem, aceitação e honestidade, ela encontrou sabedoria.25 (POLLACK, 2009.
p. 213. Trad. minha)

A relação entre a carta e a sabedoria, a inteligência e a coragem são bem demarcadas


no século XVIII e remetem aos baralhos que associam a Rainha de Espadas à deusa greco-
romana Atena (KAPLAN, 1990). Pollack não nega os sentidos anteriormente estabelecidos
por Waite ou Thierens para essa Rainha, mas elabora sobre eles e cria um laço com a
história anterior da carta.
A relação com Pallas Atena sobrevive em especial nos elementos iconográficos da
Rainha de Espadas. As duas compartilham a imagem de uma mulher séria, armada de
espada, algumas vezes portando um escudo e com um elmo ao invés da tradicional coroa.
(Figura 21)
Um dos principais testemunhos dos domínios de Atena está nos escritos
homéricos, que enaltecem os favores da deusa tanto na Ilíada quanto na Odisseia. No caso
da última, o protagonista Odisseu é dotado de uma imensa astúcia e inteligência,
garantidas a ele pela graça de Atena, sua protetora.26
Ela também favorece Aquiles, protagonista da Ilíada e da guerra nela retratada. Ao
longo do primeiro canto do livro, a deusa é vista pelo jovem guerreiro, abençoando-o,
dando-lhe apoio e força em batalha.27

25
“...the Queen of Swords symbolizes experiences of both sorrow and wisdom, and especially the
connection between them. Having experienced pain (the card sometimes signifies widowhood),
and having faced it with courage, acceptance and honesty, she has found wisdom.” (POLLACK,
2009. p. 213)
26
HOMERO. Odisseia. Trad. Frederico Lourenço. 1ª Edição. Ed. Quetzal: Lisboa. 2018
27
HOMERO. Ilíada. Trad. Frederico Lourenço. 1ª Edição. Ed. Quetzal: Lisboa. 2019
63

O epíteto parthenos, a virgem, também a afasta das questões maternais,


matrimoniais e domésticas, geralmente atreladas às rainhas do tarô.

Figura 21: Prancha para a Rainha de Espadas (Atena-Pallas e similares).


Colagem digital Elaborado pela Autora. 2021.
64

As perdas, tão associadas à na Rainha de Espadas, em Atena seriam as perdas da


guerra e o luto que envolve grandemente as zonas bélicas ao invés de perdas pessoais.
Atena não é a única figura que se atrela a questões simbolizadas pela Rainha de Espadas.
Os domínios da monarca também abrangem figuras como Santa Catarina de
Alexandria, uma das vozes indicadas por Joana D’Arc em suas experiências místicas.
Tanto a própria Santa Joana quanto Santa Catarina se imiscuem na iconografia da Rainha
de Espadas e em seu aspecto voltado ao intelecto28.
Ambas as santas também encaram a condição do martírio nos moldes cristãos:
defendem a fé cristã diante de uma população as desconsideram e as martirizaram por
conta de seu fervor religioso, reforçando a premissa estabelecida por Rachel Pollack, que
alia dor e sabedoria.
Essa dualidade, do sacrifício que visa a aquisição de uma sabedoria, uma
iluminação, é um dos motes que envolvem a carta O Enforcado, arcano maior de número
12 no tarô. Graças ao Rei de Espadas, pudemos observar que o trabalho de Pamela Colman
Smith para esse baralho é algo autorreferencial e, em muitas ocasiões, uma ilustração
referente a outras cartas.
Podemos levantar a hipótese de que, através do martírio como ponto em comum, a
corda amarrada no pulso da rainha pode estar relacionada à corda que forma a forca do
arcano 12, demonstrando que a Rainha não somente passou pela mesma dificuldade que
passa o Enforcado, mas ela superou-a e carrega consigo marcas de sua superação. (Figura
22)
Como já mencionado, a relação com Santa Catarina também pode ser estabelecida
através da questão do martírio, sendo essa uma Grande Mártir29 aos olhos da Igreja
Ortodoxa. Em sua lenda, ela integra a realeza e é constantemente descrita como
extremamente sábia e inteligente, de eloquência e retórica invejáveis.

28
SANTA CATARINA DE ALEXANDRIA. Artigo disponível em
<http://www.arquisp.org.br/liturgia/santo-do-dia/santa-catarina-de-alexandria>. Acesso em 08
jul 2021.
29
Chamados de megalomártires, aqueles que são beatificados por passar por martírios.
65

Esses atributos também estão presentes no chamado Mantegna Tarocchi, imagem


de número 4 na figura 21, no qual a alegoria da Retórica divide sua iconografia com a
Rainha de Espadas, portando símbolos como a coroa e a espada. Além disso, a retórica
como disciplina faz parte do âmbito da Rainha de Espadas, que, assim como seu consorte,
é mestra das artes intelectuais e comunicacionais, bem como a deusa Atena.

Figura 22: Prancha da Dualidade do Martírio: Rainha de Espadas e O Enforcado


Colagem digital Elaborado pela Autora. 2021.
66

Outro eco dessa divindade pode ser percebido através do entalhe da cabeça alada de
um bebê – que antes habitava a coroa do Rei de Espadas – e que agora está firmada no
trono da Rainha. Tal emblema evoca a memória do escudo de Atena, estampado com um
gorgoneion, ou seja, a cabeça de uma Górgona, o que era utilizado como um elemento
apotropaico30 pelos gregos na Antiguidade.31
No contexto da Golden Dawn, a relação entre o entalhe do trono e do aigis de
Atena como um ícone apotropaico é potencializada pelos outros elementos da cena – a
espada, o rosto sisudo da rainha –, que simbolizam a rejeição da tolice, o que afasta o
estudioso da Golden Dawn das verdades místicas.32
Um conceito similar se aplica ao observarmos as imagens trazidas por Jean-Jacques
Boissard (1528-1602), que no livro Emblemes latins de 1588 representa a Virtude com
características da dualidade Atena-Rainha de Espadas: uma mulher vestida com um robe,
segurando uma espada enquanto senta num trono. A Virtude de Boissard veste partes de
uma armadura bem como a rainha de espadas do Tarô Visconti Sforza.
O contexto neoplatônico dos baralhos de tarô se mescla nas virtudes platônicas e
cristãs33 em alguns arcanos maiores, como A Força e a Temperança, cujas imagens são
construídas como alegorias. A Virtude de Boissard e a Rainha de Espadas não se mostram
com essa configuração: são aquelas que seguem essas virtudes ao invés de personificá-las.
Diante desse panorama, nos deparamos com a imagem de número 6 na figura 21,
elaborada por Howard Pyle (1853-1911). Essa rainha entra em circulação em 1903 no livro
The story of king Arthur and his knights. Ela, assim como as outras personagens da
coletânea da figura 21, se enquadra no padrão da Rainha de Espadas de Pamela Colman
Smith trazendo um rosto em perfil, uma coroa e a espada em riste.

30
Aquilo que afasta o mal. Termo aplicado em especial às práticas religiosas da cultura grega na
antiguidade, que utilizavam como símbolos apotropaicos imagens do gorgoneion.
31
HARTSWICK K.J. The Gorgoneion on the Aigis of Athena: Genesis, supression and survival.
Revue Archéologique Nouvelle Serie. Fasc. 2. 1993. p.269-292. Disponível em
<https://www.jstor.org/stable/41738384>. Acesso em 12 jul 2021.
32
WANG, Robert. O Tarô Cabalístico: Um manual de filosofia mística. Editora Pensamento: São
Paulo. 1983.
33
Força, Temperança, Sabedoria e Justiça são as quatro virtudes platônicas que reverberam
também no cristianismo e podem ser vistas na forma dos arcanos maiores A Força, Temperança,
O Eremita e Justiça.
67

A dúvida que permeia a ilustração de Pyle, porém, é quem está representada ali: no
livro, ela é o frontispício do capítulo no qual o Rei Arthur e sua futura rainha, Guinevere,
se conhecem. A barreira encontrada aqui é que a Rainha Guinevere é representada de
maneira diferente em outra ilustração dentro do mesmo capítulo.
Ao notarmos que a coroa é alada, com asas de cisne, e que a espada remete à
Excalibur no contexto arturiano, pode-se aproximar essa figura à Dama do Lago, mãe
adotiva de Lancelot na maioria das versões dessa lenda34.
Ela, que tem dentre seus símbolos o cisne, entrega a Arthur a Excalibur e age como
uma mentora em muitas ocasiões, sendo renomada por sua sabedoria. A relação entre a
corte de Espadas e as histórias do ciclo arturiano não se encerram nessa imagem: o
Cavaleiro de Espadas também carrega diversas conexões do gênero, como será
aprofundado posteriormente.
Levando em consideração essa versão da Rainha de Espadas fica visível que a
lâmina que ela carrega age como símbolo ao invés de ser o representante de algum ato de
violência na cena. Muitos baralhos optam por ir na direção oposta dessa constância,
fazendo da Rainha de Espadas não somente uma figura que representa seus atributos – a
astúcia; o pensamento tão afiado como uma espada – mas uma personagem ativa que se
vale da violência ao invés se seus dons intelectuais.
Com isso em vista, a figura 23 põe lado a lado a Rainha de Espadas com um mote
recorrente da História da Arte: a figura bíblica de Judite, constantemente retratada
decapitando o general Holofernes. Seu conto, descrito no livro apócrifo de Judite, se passa
na cidade de Betúlia durante seu cerco militar, comandado justamente por Holofernes.35
Uma das moradoras da cidade era Judite, uma viúva cuja beleza e astúcia eram
renomadas. Visando salvar sua cidade do cerco, ela adentra os aposentos de Holofernes, o
embriaga e arranca-lhe a cabeça com a ajuda de uma criada. Ambas penduram a cabeça
arrancada nos muros da cidade, sinalizando às tropas de Holofernes que o general estava
morto e fazendo-as bater em retirada.

34
A conexão entre as lendas arturianas e o tarô tornam-se extensas após a produção do baralho
de Pamela Colman Smith, dando ao séc. XXI decks voltados exclusivamente para essas lendas.
35
BOOK OF JUDITH. Britannica. Disponível em <https://www.britannica.com/topic/Book-of-
Judith>. Acesso em 13 jul 2021.
68

Figura 23: Prancha para a Rainha de Espadas (Judite com a cabeça de Holofernes).
Colagem digital Elaborado pela Autora. 2021
69

A cena é bastante recorrente em especial no Renascimento e no período Barroco na


Europa, o que estabelece a figura feminina carregando uma espada e uma cabeça como a
mais vista iconografia de Judite, conforme pontuado por Erwin Panofsky (1892-1968), que
discorre sobre as diferenças entre as representações de Judite – espada em cena, cabeça de
um homem decepada – e de Salomé, aquela que assassina João Batista no Novo
Testamento bíblico e carrega a cabeça do mártir em uma bandeja. (PANOFSKY, 1962)
A heroína bíblica planeja seu ataque e ela própria o realiza. Mostra-se, portanto,
dotada da ação e do pensamento, da teoria e da prática de seu estratagema, abordagem que
não contempla completamente a Rainha de Espadas, cuja posição privilegiada na realeza a
mantém afastada de uma ação de batalha ou da violência propriamente dita.
Comparativamente, entre todas as cartas da corte de Espadas, o Cavaleiro é aquele que
tomará a frente da ação com maior facilidade.
Judite torna-se uma figura recorrente como a Rainha de Espadas em alguns
baralhos, como o das Cartes Heroïques de 1871, presente na figura 23, aparecendo também
como a Rainha de Copas em outras ocasiões. O baralho do século XIX traz duas palavras-
chave abaixo da representação de Judite: devoção e coragem, associando seu heroísmo a
essas qualidades, que, como já mencionado anteriormente, são também atreladas à Rainha
de Espadas do tarô.
A pose de Judite geralmente se difere daquela da Rainha de Espadas em relação à
sua verticalidade: a personagem bíblica se vê de pé, num leve caminhar ou em contraposto
durante a decapitação. Já a Rainha do tarô permanece sentada, ela é estável, ao invés de
dinâmica; rígida ao invés de móvel.
As figuras de Judite aqui trazidas também trazem um caráter de leveza: cabelos e
tecidos esvoaçantes a permeiam, enquanto essa suavidade se perde na Rainha de Espadas,
mesmo em sua posição privilegiada de representante do elemento clássico do Ar, o mais
evanescente dos elementos, que traria sua potência com maior clareza nesse naipe. A
leveza, que é retirada da Rainha de Pamela Smith, é deslocada aparentemente para o Pajem
de Espadas, como veremos adiante.
Com a Rainha, temos uma dualidade: (1) a soberana: cuja experiência com a
violência vem do testemunho da guerra, das batalhas cotidianas e da dificuldade e (2) a
70

guerreira: aquela que não somente observa o embate, mas participa dele a sua maneira, não
segundo um conceito de estratégia e proteção, mas de alguma forma demonstrando
habilidade de combate.
Na figura 25, estão duas colunas de desdobramentos recentes da Rainha de Espadas,
visando contemplar as duas variações mencionadas para essa carta. A primeira variante, da
rainha comedida que contempla logicamente seus desafios, ao lado esquerdo, enquanto a
segunda variante, usualmente representada com uma cabeça masculina em uma mão e uma
espada na outra, se coloca na coluna ao lado direito.
A coluna da esquerda se inicia com a Rainha de Espadas do Arcanum Tarot, de
2018, cuja pose ecoa a rainha que ordena um acólito (Figura 24). Ela se põe altiva perante
um espaço enevoado que remete à carta de Pamela Smith, cujas nuvens baixas diferem o
cenário dessa rainha dos de seus colegas da Corte de
Espadas.
Na segunda imagem desta coluna, está a
Rainha de Espadas do baralho Linestrider Tarot, que
opta por adicionar a imagem das nuvens na própria
espada, enaltecendo a relação entre a arma e sua
associação com o elemento do Ar. Uma diferença
dessa rainha em relação às outras é que uma de suas
mãos toca na lâmina afiada sem temer sua agudeza,
mostrando a extensão do seu domínio sobre seu
naipe, seu reino. Ela, assim como a última rainha da
coluna, pertencente ao Tarot of the old path,
estabelece-se numa pose como se soubesse que está
sendo observada pelo cartomante, mantendo a espada
Figura 24: Accolade. Edmund Blair
Leighton (1853-1922). Óleo sobre empunhada e voltando seu olhar para longe.
Tela. Inglaterra. 1901.
As rainhas dessa coluna dividem entre si esse
aspecto em particular, a realeza posada como numa pintura encomendada por ela própria,
estabelecendo-a com uma aparência dominante, mas sem comprovar sua proficiência no
campo do intelecto ou da batalha.
71

Figura 25: Prancha para a Rainha de Espadas (Cartas que vieram depois do Tarô Waite-Smith).
Colagem digital Elaborado pela Autora. 2021.
72

Sua dominância sobre o reino é cosmética, simbólica, ao invés de visível em suas


ações. A coluna da direita compartilha com o baralho de Pamela Smith a constância da
figura da rainha sentada em seu trono, mas traz a variação que retoma a figura de Judite,
quando as personagens representadas exibem as cabeças decepadas de seus adversários.
A primeira carta dessa seção vem do Universal goddess tarot, que emprega a figura
da deusa hindu Tara como Rainha de Espadas. Maria Caratti, a criadora do baralho, já
prevê a dualidade aqui trazida entre a sabedoria e a violência e comprime essa questão na
figura da deusa hindu.
Tara é representada no Rudrayāmala36 como uma das deusas associadas à sabedoria.
Ela é um dos desdobramentos da deusa Parvati e da deusa Kali, que compartilha com Tara
as associações com batalhas e guerras. Em seu culto, e consequentemente na carta, a figura
de Tara é dividida em dois aspectos: o obscuro e violento é posto ao lado do iluminado e
sábio.
Nas representações tradicionais de Tara em sua
forma de batalha (ugra-tara) (Figura 26), há um
emprego recorrente de cabeças decepadas em forma de
colar, corpos moribundos e cadáveres ao seu redor,
indicando seus feitos como uma hábil assassina, bem
como Kali.
Essa representação, se unida à já mencionada
Atena, cujas habilidades ressoam com Tara, dão à
Rainha de Espadas algumas outras características de
personalidade: ela é quem corta – em toda a polissemia
possível nesta palavra – e quem estabelece os limites.

Figura 26: Ugra-Tara (Tara


Violenta). Autor Desconhecido.
Séc XVIII. Nepal. Aquarela

36
Conjunto de textos do tantrismo que envolvem diálogos entre os deuses. Encontrados no Nepal
no século XVII cujos textos em sânscrito fazem parte do acervo do Museu Britânico.
73

O mesmo vale para o aspecto de detentora da sabedoria de ambas as deusas: seus


domínios tangenciam os da Rainha de Espadas, dando a ela ares de conselheira, de
mentora, o que também reforça a correlação com a Dama do Lago trazida por Howard
Pyle.
A Rainha de Espadas do Lo Scarabeo Tarot encapsula os símbolos de várias outras
rainhas: ela traz a coroa com borboletas e o cenário sugeridos por Pamela Colman Smith,
mas sua pose ecoa a imagem de Frieda Harris, que será abordada posteriormente.
Ao elaborar uma imagem que combina os aspectos dessas duas rainhas, a
ilustradora Anna Lazzarini cria uma figura polivalente: aqueles que têm acesso a essa
rainha podem provar de uma familiaridade ao se depararem com outras rainhas, como a de
Pamela Smith ou de Frieda Harris.
Essa característica múltipla da ilustração de Lazzarini torna-se mais potente ao
pensarmos no seu contexto: o título do baralho é o nome da editora que o distribui, Lo
Scarabeo, que há décadas contribui para a publicação de baralhos, o engendramento de
seus pesquisadores e a detenção de imagens que permeiam o cotidiano de quem se
interessa por tarô. A produção de um baralho homônimo à editora cria um marco do
trabalho da companhia, e, por consequência, de todos os envolvidos com o tarô.
Por fim, vemos a imagem elaborada por Frieda Harris para o baralho desenvolvido
por Aleister Crowley (1875-1947), conhecido como Thoth Tarot. As cartas, elaboradas
visando aqueles que estudavam ocultismo sob os parâmetros premeditados por Crowley,
mesclam parte do contexto sugerido por ele com questões que já envolviam sua antiga
afiliação, a Ordem Hermética da Aurora Dourada.
É imperativo citar, especialmente ao justapormos o Tarô de Crowley com o Tarô
Waite-Smith, a grande desavença entre seus idealizadores e suas disputas de ponto de vista
– que reverberam com a ruptura dentro da ordem de que participavam. O embate entre
ambos é visível em suas cartas e suas encomendas para as respectivas ilustradoras: Waite
traz arcanos menores pautados por representações mais voltadas ao cotidiano do que o tarô
de Crowley, que visa um significado mais místico e voltado a um público versado no
esoterismo.
74

A rainha de Crowley é ancorada na descrição do Liber T, cuja produção envolveu


adeptos da Golden Dawn tais como o próprio Crowley. Ela, assim como a rainha do Lo
Scarabeo Tarot, carrega uma espada em uma mão e uma cabeça na outra.
Algumas das questões levantadas no Liber T são retomadas na Rainha de Waite,
como, por exemplo, o brasão com a cabeça alada da criança e o acúmulo de nuvens ao
fundo de sua cena:

Uma mulher com cabelos encaracolados, como uma rainha sentada em seu trono
e coroada. Abaixo do trono estão nuvens cumulus acinzentadas. [...] ela traz como
escudo a cabeça alada de uma criança. Em uma mão ela traz uma espada erguida e
na outra ela traz uma cabeça recém-decepada de um homem. (LIBER T, 2012. p.
73. Trad. minha)37

A Rainha pertencente ao Lo Scarabeo Tarot também se encaixa em grande parte da


descrição, mas não abre mão aos acenos ao tarô de Waite, que vai numa direção diferente
da que traz a descrição.
Diante destas rainhas, temos uma constância já mencionada: a carta traz
majoritariamente a figura estática. Mesmo as que carregam a cabeça decepada, não são
pegas no ato de seu crime, como muitas das imagens de Judite, por exemplo. Ela exibe a
cabeça como um troféu e ergue a espada como representante de sua força.
Essa característica é dividida com o Rei, que também exerce seu poder desde o
conforto de seu trono. Ambos denotam que seu poder vem se sua experiência, sua posição
altiva, não necessariamente da ação em batalha.
A luta física, o ataque propriamente dito e a movimentação são destinados à carta
Cavaleiro de Espadas, que se coloca à disposição de seu Rei e sua Rainha, como veremos a
seguir.

37
A graceful woman with wavy, curling hair, like a Queen seated upon a throne and crowned.
Beneath the throne are gray cumulus clouds. [...] but she wears, as a crest, a winged child’s head. A
drawn sword in one hand, and in the other a large, bearded, newly severed head of a man. (LIBER
T, 2012. p. 73.)
75

4.3. CAVALEIRO DE ESPADAS

A principal particularidade das cartas da corte ao longo de


sua história é seu intuito de representar personagens –
mitológicos, históricos, lendários – e fixar seus contos na mente
daquele que manuseia o baralho. Isso gerou uma gama de cartas
que traçavam paralelos diretos a esses personagens, demarcando
através de iconografia, de alegoria e de textos quem eram as
pessoas ali representadas e qual sua importância.
Esse hábito se dilui com o passar dos séculos, criando

Figura 27: Cavaleiro de


algumas novas possibilidades para as cartas da corte: (1) uma
Espadas. Pamela
Colman Smith. Parte
imagem autorreferencial, trazendo, por exemplo, a Rainha de
integrante do Tarô
Waite-Smith. 1909.
Espadas como uma mulher coroada portando uma espada,
como o caso dos baralhos de jogo contemporâneos; (2) uma
representação alegórica hermética, trazida especialmente para o tarô, como o caso da
maioria dos baralhos produzidos pela Ordem Hermética da Aurora Dourada, que ilustrava
seus baralhos com base em seus próprios textos; (3) mesclas entre as duas opções
anteriores, com menções a um campo simbólico, mas sem ocultá-lo completamente atrás
de uma imagem.
O segundo e terceiro casos são os mais recorrentes no tarô de Pamela Smith,
levando em consideração que muitos baralhos de tarô são acompanhados de um livreto
que especifica alguns dos significados das cartas, especialmente no caso de um hermetismo
intenso em relação ao simbolismo das imagens.
O detalhe em questão neste capítulo envolve o Cavaleiro de Espadas (Figura 27),
que é a única carta da corte presente nesse baralho que recebe uma associação direta a um
personagem: “[...] No desenho ele é um herói típico de romances cavalheirescos. Ele
76

poderia ser o próprio Galahad, cuja espada é ágil e certeira pois ele é puro de coração.”38
(WAITE, 1910. p. 84).
A referência é a Galahad, herói das lendas arturianas, filho ilegítimo de Lancelot e
um dos poucos cavaleiros a alcançar o Graal. A principal característica desse personagem é
sua pureza e sua integridade, fortemente valorizados através de suas histórias e constantes
aventuras.
O trabalho em questão, o Cavaleiro de Espadas, se beneficia em especial da
celtomania por conta de sua figura principal, Galahad, que bebe em feitos de outros heróis
cavalheirescos para seu estabelecimento e se firma em torno do século XIII com a inclusão
de temáticas e morais cristãs na lenda do Rei Arthur através do Ciclo da Vulgata39.
Essas influências visuais ligadas ao ofício de cavaleiro ficam bem estabelecidas
quando justapostas, permitindo que tracemos os paralelos formais, temáticos,
iconográficos e de gesto entre os personagens, que também dividem outra característica
em comum: o foco na belicosidade crescente no século XIII, que desemboca na Guerra dos
Cem Anos.
A coletânea de imagens da Figura 28 abarca ilustrações que poderiam estar mais
facilmente disponíveis para Pamela Colman Smith até o período da criação do baralho,
que entra em circulação com sua primeira edição em 1909, sendo rapidamente substituído
pela segunda versão no ano seguinte, que era acompanhada do já mencionado livreto
escrito por Arthur Edward Waite.
O primeiro referencial é um outro cavaleiro de espadas, o do Tarô Sola-Busca, de
1491, que esteve em exposição no Museu Britânico em 1907 e é aceito como a principal
referência da artista para o seu próprio baralho.
A seguir, duas ilustrações de livro: a primeira realizada por Charles Émile Matthis
(1838-1893), cujo livro L'Alsace et les Alsaciens à travers les siècles circulou com suas
ilustrações pela Europa no período de produção do baralho criado por Pamela, trazendo
uma possibilidade referencial para a artista. A ilustração seguinte pertence ao já

38
“In the design he is really a prototypical hero of romantic chivalry. He might almost be Galahad,
whose sword is swift and sure because he is clean of heart” (WAITE, 1910. p. 84. Tradução minha)
39
Conjunto de prosas em língua francesa que envolvem o ciclo arturiano, escritas na primeira
metade do século XIII focando nas relações que envolvem o cavaleiro Lancelot e a busca ao
Santo Graal.
77

mencionado Howard Pyle, cuja presença na vida da artista é demarcada especialmente


através de referenciais artísticos. A imagem em questão está presente no livro Otto the
Silver Hand, um dos primeiros livros escritos por um estadunidense a representar eventos
históricos para crianças.
A coletânea de figuras nos traz algumas constâncias: entre as mais notáveis, estão a
figura do guerreiro montado a cavalo empunhando uma espada, que se estabelece como
um cânone para essa carta desde o século XV.
As variações encontram-se em apetrechos e vestimentas: uns utilizam capa, elmo,
penachos no capacete e, estão acompanhados de mais membros da cavalaria, envolvidos
com o movimento do cavalo.
Algumas dessas questões ficam demarcadas em especial na carta de Pamela, como o
dinamismo do personagem e seu cavalo, e essa questão torna-se potente na leitura oracular
da carta, que leva em conta esse movimento como uma representação de ações rápidas e
ativas que chegarão à vida do consulente.
A movimentação do personagem também dá a entender o papel do vento na cena
ilustrada por Smith: o tremular da capa e do penacho, por exemplo, presentificam o papel
do ar, elemento atrelado pela Ordem Hermética da Aurora Dourada ao naipe de espadas.
Esses elementos ficam demarcados no Cavaleiro de Espadas, que carrega tal dinamismo
em suas imagens até o século XXI, como será observado adiante.
A segunda coletânea de imagens (Figura 29) traça um paralelo com outra figura
relevante para a cultura inglesa: o santo padroeiro do país, São Jorge, que se estabelece
como emblema nacional também no século XIII, mesma época em que Galahad é firmado
como figura proeminente nas lendas arturianas.
As semelhanças entre o personagem desenhado por Pamela Smith e algumas das
representações de São Jorge ficam visíveis quando justapostas: o cavalo em disparada, a
arma preparada para o combate, a expressão compenetrada na iminente luta. A
proximidade entre São Jorge e Galahad também cria uma ponte entre a mitologia das ilhas
britânicas com o catolicismo, unindo interesses de Arthur Waite, Pamela Smith e seus
contemporâneos, que se aliavam à celtomania que revivia ambos os heróis.
78

Figura 28: Prancha para o Cavaleiro de Espadas (Referências próximas à Pamela Smith).
Colagem digital Elaborado pela Autora. 2021.
79

Além da semelhança figurativa entre Galahad e São Jorge, os dois ainda estão
envolvidos em mitos formadores da Inglaterra como uma nação: Galahad, em sua lendária
busca do Graal sagrado, colabora com o mito de formação da unificação dos povos que
compunham a Inglaterra através do ciclo arturiano. O Graal torna-se símbolo da
comunhão desses povos através da fé cristã, que firma São Jorge como padroeiro do país40.
Outra constância que surge em terras inglesas depois do século XIII é a
representação de São Jorge cavalgando seu cavalo branco, o que também é visto em
Galahad e, consequentemente, no Cavaleiro de Espadas. As razões para tal variação no
cânone apontam para a Guerra dos Cem Anos, cujas batalhas envolviam as chevauchées,
constantes ataques estratégicos a cavalo para saquear e queimar cidades envolvidas nos
conflitos, reforçando a imagem do guerreiro a cavalo.41
Além dos envolvimentos com batalhas propriamente ditas, a imagem que envolvia a
tríade São Jorge – Galahad – Cavaleiro de Espadas é a do romance de cavalaria: contos
protagonizados por heróis que simbolizam ideais de integridade espiritual, pureza, amor e
bravura, entre outras questões. (Figura 30)
Os três personagens incorporam tais ideais, porém, no caso das lendas arturianas,
esse papel já fora preenchido por Lancelot, cujo romance envolvendo a Rainha Guinevere,
esposa do Rei Arthur, é tema de diversos contos que se enquadram no padrão de narrativas
cavalheirescas, tendo em vista que ele é um herói cujo amor por uma dama é nobre e
inatingível. O adultério de Guinevere com seu cavaleiro é demarcado como uma falha de
caráter de ambos, trazendo desgraças para o reino e séries de desventuras para sua corte.
Galahad surge como uma forma de retomar a exaltação à integridade do cavaleiro,
sendo o herói que encontra o Graal e ascende aos céus por sua nobreza de espírito. Essa
mesma característica é dividida por São Jorge, que traz a alcunha de Cavaleiro de Nossa
Senhora por equiparar-se a ela em sua pureza.

40
THE ENGLISH HERITAGE PODCAST: Episode 55: Saint, Soldier, slayer: Who was the real St.
George? Locução de Charles Rye e Prof. Dr. Michael Carter. English Heritage. 16 abr 2020. Podcast.
Disponível em:
https://open.spotify.com/episode/0hDcSLME1Cu3ZevKDv7rj0?si=JlQZorTeRwKbFglLAUWGvw.
Acesso em: 20 mar. 2021.
41
BENNETT, Matthew. The Development of Battle Tactics in the Hundred Years War. In:
CURRY, Anne; HUGHES, Michael. Arms, Armies and Fortifications in the Hundred Years War.
BOYE6 Publications. 1999
80

Figura 29: Prancha para o Cavaleiro de Espadas (São Jorge).


Colagem digital Elaborado pela Autora. 2021.
81

A partir dessas descrições, temos uma figura altiva, íntegra e corajosa,


constantemente vestindo uma armadura, com uma espada em riste e cavalgando em alta
velocidade na direção de seu objetivo, vivendo aventuras, incorporando o dinamismo da
batalha em suas poses e lutando contra variados inimigos.
A revitalização da figura do Cavaleiro que era visada pela Inglaterra não contava
com a quebra repentina da noção de um cavaleiro nobre, altivo e fiel a sua causa. Esta
imagem, bem estabelecida e enaltecida no período de criação do baralho, estava com os
dias contados. Com a iminência da Primeira Guerra Mundial, os horrores da batalha
dissolvem a idealização do soldado, do guerreiro e do cavaleiro:

Como notado por Fussell no artigo ‘O Destino da Cavalaria’, códigos idealizados


de cavalaria, populares na Era Vitoriana, tornaram-se ridiculamente
inapropriados na Primeira Guerra Mundial, derrotados inteiramente por ‘gases
venenosos, ataques de zepelim aos civis, metralhadoras, armamento submarino
irrestrito, sem mencionar experiências muito não-cavalheirescas de soldados que
passivamente tremiam sob horas de tiroteios, ou que manchavam suas calças por
semanas por disenteria aguda [...]42

Tal realidade cria uma divisão na representação desse cavaleiro: alguns artistas
mantêm a representação cavalheiresca, seguindo o título da carta e seu cânone estabelecido
através da história; outros tomam algumas das constâncias conceituais que permeiam a
carta – o dinamismo, a movimentação, o desejo de batalhar por seus ideais – e
transformam-na visualmente. Há mudanças visuais na carta mesmo dentre os artistas e
elaboradores de baralhos de tarô que optam por manter as conotações cavalheirescas nas
ilustrações.

42
“As Fussell noted in a separate essay on ‘The Fate of Chivalry’, idealistic codes of chivalry,
popular in the Victorian age, became “ludicrously inappropriate” in World War I, defeated entirely
by ‘poison gas, zeppelin raids on civilians, the machine gun, and unrestricted submarine warfare,
not to mention such very unchivalric experiences as soldiers’ passively trembling under artillery
shelling hour after hour or soiling their trousers for weeks with acute dysentery [...]’”. Tradução
minha. Original em: TRUTHOUT. “World War I, the Death of Chivalry and the False End of War”.
Disponível em <https://truthout.org/articles/world-war-i-the-death-of-chivalry-and-the-false-
end-of-war/>. Acesso em 20 mar 2021.
82

Figura 30: Prancha para o Cavaleiro de Espadas (O ideal cavalheiresco).


Colagem digital Elaborado pela Autora. 2021.
83

A Figura 31 perscruta alguns baralhos recentes em suas representações do cavaleiro.


A imagem divide-se entre a coluna da subversão do cânone (ao lado esquerdo) e a de
adaptação do cânone (ao lado direito).
A primeira subversão vem do Pagan Tarot, que traz o Novato de Espadas, um
iniciante nos estudos herméticos que reflete enquanto observa o punhal ritualístico que
carrega. O personagem, ao invés de ser um guerreiro, emprega as qualidades determinadas
para o naipe de espadas: o apreço pela reflexão, pelo intelecto, pela justiça, sendo associado
ao inverno, que tinge de branca neve a paisagem ao fundo da carta.
A presença das corujas, já mencionadas para outros membros da corte, se demarca
na imagem produzida para o The Wild Unknown Tarot: com sua proposta de não
representar seres humanos em seu baralho, a artista Kim Krans faz do Cavaleiro de
Espadas – aqui chamado de Filho de Espadas – uma ave de rapina que mergulha em seu voo
enquanto carrega uma espada. Mais uma vez há um elemento subversivo: A personagem
principal é um animal que, na sua qualidade de caçador, exerce a velocidade e o ataque
mesmo sem o elemento humano.
Essa dualidade, Cavaleiro-Ave de Rapina, pode ser observada na carta ilustrada por
Chris-Anne Donnelly em seu Cavaleiro de Espadas do The Light’s Seer Tarot, que mostra
um garoto que persegue uma ave. A imagem não traz o elemento tradicional da espada,
mas se utiliza da besta, uma arma cujo poder de ataque se baseia na rapidez de uma flecha.
A velocidade já característica do Cavaleiro de Espadas é reforçada através da corrida do
personagem, do voo da ave e da motocicleta, que é o alvo da corrida do jovem.
Maria Caratti, ilustradora do Universal Goddess Tarot, aproxima-se do Cavaleiro
de Espadas através de uma mulher: a deusa galesa Rhiannon, cuja descrição nas lendas do
Mabinogion43 a colocam como uma rainha guerreira, estrategista e hábil com cavalarias,
fazendo dela uma forte candidata ao papel de Cavaleiro de Espadas.

43
Conjunto de textos datados aproximadamente da Idade do Ferro na região da Gália. Nele estão
contidas fábulas, contos e textos que engendram o que se conhece da mitologia do povo galês.
84

Figura 31: Prancha para o Cavaleiro de Espadas (Cartas que vêm após o Tarô Waite-Smith).
Colagem digital Elaborado pela Autora. 2021.
85

As imagens bélicas também aparecem no Linestrider Tarot, que ilustra seu


Cavaleiro de Espadas como um olhar ao passado: um guerreiro, com trajes que remetem à
Roma Antiga e que olha para o seu cavalo, que se ergue em suas patas traseiras. A cena é
emoldurada como um quadro, um retrato ou um espaço contido na carta, que joga com os
espaços vazios para trazer o foco para os personagens em ação.
O tarô Everyday Witch dá uma conotação fantasiosa para o Cavaleiro de Espadas:
um jovem montado em uma vassoura voadora avança pelos ares, com uma espada em
punho, liderando uma armada de pássaros. As aves, o voo, o ar e a velocidade são
elementos que passam a aparecer constantemente no tarô depois da passagem desse objeto
pelas sociedades esotéricas nos séculos XIX e XX. O naipe de espadas é associado ao
elemento clássico do Ar, sendo atrelado aos pássaros e sua capacidade de voar.
Diante das rupturas nas quais o Cavaleiro de Espadas – e os outros cavaleiros do
tarô – se envolve, é necessária uma revisitação por parte dos ilustradores e idealizadores
dos baralhos diante dessa figura para que possam responder: que tipo de ideal o cavaleiro
estaria apoiando? Como será sua visualidade pós-guerra? Como será o tipo de batalha
travada por esse cavaleiro no século XXI?
86

4.4. PAJEM DE ESPADAS

O Pajem de Espadas (Figura 32), o mais jovem dentre


os membros da corte do seu naipe, evoca diferentes
representações ao longo da existência do tarô e
concomitantemente engloba a maioria delas em suas
representações contemporâneas. Em seu oficio como
mensageiro, escudeiro ou assistente ao longo do medievo,
temos a necessidade da agilidade como algo central. O
idealizador do baralho Waite-Smith comenta o seguinte sobre
a representação do garoto:

Uma figura esguia e ativa que ergue a espada com ambas suas mãos
Figura 32: Pajem de enquanto caminha agilmente. Ele caminha por uma paisagem rugosa e pelo
Espadas. Pamela seu caminho as nuvens se mostram selvagens. Ele está alerta e flexível,
Colman Smith. Parte olhando para todos os lados como se esperasse que um inimigo aparecesse a
integrante do Tarô qualquer momento. (WAITE, 1910. P 85. trad. minha).44
Waite-Smith. 1909.

No caso dessa carta e dos outros pajens, há uma ruptura entre Waite e o texto dado
no Liber T: este pressupõe uma princesa para esse nível na corte, enquanto o baralho
Waite-Smith, por suas predileções às lendas arturianas, atribui ao valete uma figura
masculina. O livro da Golden Dawn pontua o pajem de espadas com os títulos de: A
princesa dos ventos acelerados, O lótus do palácio do ar, A Princesa de Espadas, Princesa e
Imperatriz dos Silfos e Sílfides, demarcando a figura feminina como protagonista.
A descrição imagética disponibilizada pelo Liber T para essa carta reforça não
somente a diferença de gênero, mas de ocupação entre os personagens, divergindo de
Pamela Smith nessas duas questões, mas soando em uníssono em outros aspectos:

Uma figura de uma Amazona com cabelo ondulante [...]. Seus pés estão
alongados, dando a noção de leveza. Seu peso é jogado de um pé para o outro e seu

44
A lithe, active figure holds a sword upright in both hands, while in the act of swift walking. He is
passing over rugged land, and about his way the clouds are collocated wildly. He is alert and lithe,
looking this way and that, as if an expected enemy might appear at any moment.” (WAITE, 1910. p
85)
87

corpo está balançando. [...]. Ela segura uma espada numa das mãos. [...]. Abaixo de
seus pés existem nuvens brancas (LIBER T, 2012. p. 75. Trad. minha).45

As relações desse personagem com o elemento do Ar ficam claras a partir de seus


títulos e de muitos dos elementos dispostos na imagem: a indicação da presença de vento,
por exemplo, é exclusividade desse naipe, sendo mais demarcada no pajem e no cavaleiro
do baralho de Waite, como mencionado anteriormente.
As nuvens em especial reforçam o sentido de movimentação ágil e da antecipação
sentida pelo personagem, que não se põe em uma corrida como o cavaleiro de espadas, por
exemplo, mas se prepara para engajar-se em uma atividade física. O amarelo de suas vestes
também o conecta ao ar, que é representado pela cor amarela na liturgia da Golden Dawn.
A hesitação do pajem também é notada a partir de seu gesto, que segura o cabo da
espada de forma leve, quase insegura, denotando sua incerteza na necessidade de engajar-
se em batalha, uma falta de experiência jovial.
Outra particularidade desse pajem é a pena em seu cabelo, que terá um foco mais
aprofundado aqui. Dentre todos os pajens desenhados por Pamela Colman Smith, esse é o
único no qual o adorno está colocado diretamente na cabeça do personagem: as penas e
adornos dos outros pajens estão fixados a seus chapéus. Essa peculiaridade do Pajem de
Espadas pode causar uma breve confusão: seria esse item esvoaçante um adorno ou parte
de seus cabelos?
A partir de um olhar atento, pode-se perceber que se trata de uma pena – ou item
semelhante – de cor verde, que tem vestígios da movimentação de cabelos que são mais
comumente vistos em representações de ninfas. Nesse ponto, faz-se uma questão: temos
diante de nós a figura de um jovem garoto cujo papel nos padrões de tarô da Golden Dawn
teria sido inicialmente desempenhado por uma jovem moça? Ele, em sua atividade de
pajem, não teria os mesmos requerimentos bélicos atrelados à atividade de amazona, como
é postulado pelo texto do Liber T, mesmo se ele agisse em posições de escudeiro, como em
alguns casos no medievo e na literatura daquela época.

45
An Amazon figure with waving hair [...] The feet seem springy, giving the idea of swiftness.
Weight
changing from one foot to another and body swinging around. [...]. She holds a sword in one hand
[...] Beneath her feet are white clouds. (LIBER T, 2012. P 75)
88

Diante desses pontos que envolvem o Pajem, é possível estabelecer duas âncoras:
beleza e rebelião. O leve passo do mensageiro que porta uma espada é encontrado lado a
lado à bela amazona preparada para a batalha. Ambos desafiam o que lhes é imposto –
papéis de gênero, padrões estéticos, funções de trabalho – e se estabelecem a sua maneira
dentro de seus âmbitos.
Ao contrário de seu colega Cavaleiro de Espadas, o pajem somente permeia os
âmbitos da guerra. O que se destaca é como ele o faz: evocando a movimentação de leveza e
graciosidade comumente vista nas ninfas, assunto amplamente investigado por Aby
Warburg e seus sucessores, como Edgar Wind, Georges Didi-Huberman, Giorgio
Agambem e muitos outros.
Warburg discorre sobre a sobrevivência da imagem pagã da ninfa através de seus
movimentos, suas roupagens, e seus cabelos flutuantes na História da Arte renascentista.
Como já apontado por ele, muitas linhas de força ligadas à ninfa transpassam também
Sandro Botticelli (1445–1510).
A figura do deus dos ventos Zéfiro é recorrente em algumas das obras do artista,
especialmente naquelas que evocam os mitos primaveris que envolvem a figura de Vênus e
sua comitiva, sendo o deus que carrega as características das vestes e cabelos flutuantes,
constantemente vistos nas ninfas, sendo ele o próprio vento que dispara o movimento de
tecidos e fios de cabelo, estabelecendo assim sua relação com o Pajem de Espadas através
de seu dinamismo e sua relação com o elemento do ar.
Constantemente na iconografia da Antiguidade Grega há uma ambivalência entre
as figuras de Zéfiro, o vento Oeste, e Eros, deus do desejo sexual e do amor. Ambos são
representados em cerâmicas portando elementos semelhantes: asas, longos cabelos e
silhueta esguia, quase andrógina. A última característica é particularmente demarcada
quando vista em Eros: seu hino órfico lhe atribui o epíteto de Dimorfo, indicando sua
natureza ambivalente, tangenciando o masculino e feminino.46
A relação com Zéfiro – e por consequência, Eros – é adicionada ao Tarô
Mitológico, que utiliza o deus dos ventos como seu Pajem de Espadas, como visto na

46
Hino Órfico 58: Amor [Eros]. Tradução de Rafael Brunhara. Disponível em: <http://primeiros-
escritos.blogspot.com/2015/05/hino-orfico-58-amor-eros.html>. Acesso em 22 jul 2021.
89

terceira imagem da figura 33. A leveza estabelecida na figura do vento oeste ao longo dos
séculos propicia seu papel como pajem, adequando-se à descrição de Waite: esguio, leve,
dinâmico.
Vale acrescentar que Zéfiro é a força que mobiliza o nascimento de Vênus, sendo o
vento que ergue Afrodite, mãe de Eros, da espuma marinha, atrelando-se mais uma vez à
dualidade Zéfiro-Eros. Alceu de Mitilene também atribui ao deus dos ventos a
paternidade de Eros, contribuindo para a paridade em questão.
A androginia presente em Eros e Zéfiro também estabelece uma ponte entre os
pajens: tanto a Princesa de Espadas quanto o Pajem de Espadas dividem uma aparência
semelhante, firmando uma identidade visual para o personagem. Tal questão fica visível
em especial no baralho Linestrider Tarot, ilustrado e idealizado por Siolo Thompson em
2016.
O Pajem de Espadas, imagem de número quatro na Figura 34, se destaca diante dos
outros pajens: o baralho, que traz consistentemente figuras femininas nessa posição,
atribui ao naipe de espadas um personagem cuja a aparência tão dimorfa quanto a de Eros
ou Zéfiro, enaltecendo sua androginia e sua relação com os ventos através de roupas que se
dobram perante o vento, que põe em movimento os envelopes que voam em cena.
Pelos simbolismos atribuídos aos pajens pela Golden Dawn, temos no Pajem de
Espadas a maior equivalência com o ofício de mensageiro: o ar nesse sistema corresponde
à comunicação e seus desdobramentos – a linguagem, a expressão, a poesia, a literatura, o
estudo – e Siolo Thompson reforça tal questão através das cartas flutuantes.
A dubiedade nas vestimentas do personagem encapsula a beleza e a rebelião
mencionadas como o cerne para o capítulo: ele veste-se e atua de forma adversa à esperada.
O calmo pajem, que deveria ser um mero mensageiro, tem aspirações bélicas –
contrariando os outros pajens do tarô, cujos ofícios desviam-se da militarização. Leve
demais para a belicosidade do Cavaleiro de Espadas, inexperiente demais, mas também
direto demais para ser de outro naipe senão o naipe das lâminas.
90

Figura 33: Prancha para o Pajem de Espadas (Zéfiro-Eros).


Colagem digital Elaborado pela Autora. 2021.
91

Figura 34: Prancha de Pajens (Linestrider Tarot).


Colagem digital Elaborado pela Autora. 2021.
92

Outra atribuição relacionada ao Pajem de Espadas de Pamela Colman Smith se


encontra mais uma vez no folclore das Ilhas Britânicas: A canção popular que conta a
história de Burd Helen, uma moça que engravida de um cavaleiro e o acompanha em suas
viagens vestida como seu pajem – com roupas masculinas, ela corta ou prende seus cabelos,
adotando para si uma aparência andrógina. (Figura 35)
O tema fora pintado algumas vezes, especialmente por participantes de grupos
derivados da Irmandade Pré-Rafaelita, cujos ideais eram compartilhados pelo Movimento
Arts & Crafts de Pamela Colman Smith. A balada de Burd Helen é retratada por William
Lindsay Windus (1822–1907) e Eleanor Fortescue-Brickdale (1872-1945), além de ser
publicada em suas várias versões ao longo dos séculos.

Figura 35: Prancha para o Pajem de Espadas. (Burd Helen)


Colagem digital Elaborado pela Autora. 2021.
93

Burd Helen ainda divide com o pajem uma outra característica: a obstinação. O
olhar focado da carta de Pamela Smith sugere uma preocupação com o raciocínio e o
pensamento, mantendo a mente em um alvo, mas não tendo preparo ou experiência para
encarar seus desafios, ao contrário do caso do Cavaleiro, cuja determinação e pureza
constroem fundamentalmente sua imagem.
Acima da cabeça do pajem, revoam pássaros: uma possível menção à antiga prática
do Império Romano chamada de auspex, a observação do revoar de pássaros em busca de
augúrios do porvir (DIDI-HUBERMAN, 2018). O jovem inspeciona as probabilidades do
futuro num aceno quase metalinguístico do tarô para si mesmo. Diante dos prospectos do
futuro notamos que as preocupações desse pajem não se atêm ao que é palpável numa
batalha: ele visa a inspiração para lutar, a motivação da vitória, as conversas que mantêm os
vínculos entre aqueles que passam pelas dificuldades.
O Pajem de Espadas segue suas resoluções de maneira mais indireta que o
Cavaleiro, que cavalga furiosamente na direção da batalha, enquanto o pajem, como o
escudeiro, procura por rastros, pistas, procura por reforços no campo de batalha. Ele é a
potência do cavaleiro e do rei, podendo se tornar um dia tudo o que esses dois personagens
são nos quesitos de bravura e justiça.
Nessa potência, vive o pajem leve e esguio, do que é imaterial. Um eco da Vitória
Alada e da Ninfa Warburgiana tornando-se um bastião de esperança dentre os
desdobramentos do conflito. O pajem, que até aqui apresentou a rebelião de um
personagem fadado à beleza, agora mostra sua próxima roupagem: a possibilidade de
beleza nas bordas do conflito, a esperança da sobrevivência personificada em sua presença.
Com isso, a figura 36 inicia-se com a estátua soviética A Mãe Pátria chama, que
se estende sobre Mamayev Kurgan, palco de uma das mais sangrentas batalhas da história –
A Batalha de Stalingrado. Ela homenageia os soldados caídos ali e demarca a vitória
incisiva da União Soviética sobre as forças nazistas. Ela, assim como o Pajem, ergue a
espada e põe-se diante do vento, fazendo clara referência à Vitória da Samotrácea em sua
posição, nas vestes flutuantes. Warburg menciona que essa imagem, a da ninfa flutuante,
estabelece-se tal qual um “espírito elemental. Uma deusa pagã no exílio”.
94

Ela quebra a rigidez da guerra, da violência, e convida a um novo respiro, um


novo augúrio, bem como os pássaros que sobrevoam o Pajem de Espadas. A leveza do
pajem, ao contrário da ninfa soviética da Batalha de Stalingrado, não carrega em si o
período após o desafio, mas anterior a ele em sua inocência e juventude, ainda não tendo
passado pelas provações da guerra.

Figura 36: Prancha para o Pajem de Espadas. (Ninfa)


Colagem digital Elaborado pela Autora. 2021.
95

Enquanto o pajem é o pré-guerra e a Mãe Pátria é o pós-guerra, há também a


figura que habita o meio do conflito no campo de batalha, que aqui se faz presente numa
ilustração de Thomas Nast (1840–1902), representando a Grande Crise de Fome na
Irlanda na segunda metade do século XIX. A jovem ergue seus braços e acena aos barcos
que chegam no cais irlandês, trazendo ajuda às vítimas da fome.
O vento marinho coloca em movimento seus cabelos e seu vestido, assim como
na Mãe Pátria soviética e no Pajem de Espadas. Ela evoca a leveza da esperança de socorro,
o alívio na tensão durante o desafio. A brisa que coloca esses personagens em movimento
os atinge de diferentes maneiras: açoitando fortemente a Mãe Pátria, enquanto somente
transpassando o jovem pajem, mais um indicador de seu processo de amadurecimento
perante a adversidade.
Dentre as imagens da coletânea, a que pode ter chegado com maior facilidade aos
olhos de Pamela Smith é a produzida por Thomas Nast, cujas ilustrações circulavam pelos
Estados Unidos no período de 1880. Pamela, que visitava o país constantemente por conta
de sua família, pode ter tido acesso às impressões de Nast.
A dualidade entre beleza (e leveza) versus a rebelião (bem como a subversão)
permanece nos pajens em suas representações ao longo da história do tarô, trazendo tanto
pajens com armadura e determinados no engajamento em batalha quanto pajens com a
celeridade e a beleza da ninfa flutuante de Warburg.
Os pajens de Tarô Waite-Smith, do Linestrider Tarot e do Tarô Mitológico, aqui
já abordados, constituem parte do grupo de cartas alinhadas ao dinamismo e à leveza,
sendo ladeados aqui com mais alguns representantes de sua categoria: os pajens do Thoth
Tarot, do The Wild Unknown Tarot e do Pagan Tarot. (Figura 37).
A sílfide do Pagan Tarot encapsula a questão mencionada por Warburg: a figura
de um ser alado e circundado por nuvens representa os silfos, elementais do Ar pela
liturgia da Golden Dawn e de diversos outros grupos esotéricos. Ela ascende num rápido
movimento, criando um rastro de folhas ao seu redor.
96

Figura 37: Prancha para o Pajem de Espadas. (Leveza)


Colagem digital Elaborado pela Autora. 2021.
97

Siolo Thompson, cujo naipe de espadas tem a corte composta por corujas,
representa numa coruja-das-torres a sua Princesa de Espadas, denominando-a Filha de
Espadas. Assim como seus colegas de corte, essa ave de rapina se destaca por sua
velocidade de voo e eficiência de caça mesmo em idades jovens.47
Um destaque desse compilado se encontra na ilustração de Frieda Harris, que
evoca uma semelhança com a já comentada Mãe Pátria chama. A jovem guerreira curva-se
para dar impulso ao movimento de seu braço, que empunha uma espada. Ela firma-se de
pé, apoiando-se num pedestal enquanto alça seu movimento de ataque. Ela não se
desprovê de armaduras, portando um elmo, mas também não abre mão das vestes
esvoaçantes, como a saia que se lança para trás enquanto ela ataca. Assim como os outros
pajens da coletânea, ela demarca sua movimentação através da leveza e de seu porte esguio,
sendo ladeada por nuvens.
Um segundo padrão de cartas está na figura 38, que seleciona os pajens em rebelião:
eles não se atêm ao padrão de ninfa e tampouco ao papel de mensageiro. Recusam o ofício
do cavaleiro e traçam seus próprios caminhos, questionando sua própria posição dentro do
baralho.
Dentre eles, vem a Princesa de Espadas do Tarô da Golden Dawn, ilustrado por
Moina Mathers (1865–1928), seguindo com grande fidelidade o texto do Liber T. A capa da
amazona levemente se dobra, mas, ao contrário da carta de Pamela Smith, não existem
mais indicadores que demarquem o vento como personagem participante da cena. Ela tem
os seios expostos e protege parte das pernas com armadura, demarcando questões de
simbolismo esotérico ao invés de priorizar sua proteção em batalha.
A princesa desse baralho carrega consigo as nuvens já demarcadas nos outros
baralhos, bem como a cabeça da Medusa que fora mencionada junto às Rainhas de
Espadas. Essa princesa se vê mais preparada para o embate apesar de não o ter
experienciado. Em oposição há o pajem do Tarô Visconti-Sforza, cujo corpo é recoberto
por uma armadura enquanto ele posa confiantemente apoiado em sua espada.

47
Suindara. Disponível em <http://www.avesderapinabrasil.com/tyto_alba.htm>. Acesso em 27 jul
2021.
98

Figura 38: Prancha para o Pajem de Espadas. (Rebelião)


Colagem digital Elaborado pela Autora. 2021.
99

Seu olhar confiante reproduz o padrão estabelecido pelo seu naipe nesse baralho:
cabelos claros, cacheados, portando partes de armaduras ou vestindo-a completamente. Ele
encara o observador e, em sua ingenuidade, crê que tem o domínio das questões bélicas
quando ainda não passou por essa experiência, assim como os outros pajens, mas está mais
bem preparado do que a maioria deles.
Ao contrário de seu colega do Tarô Visconti-Sforza, o Pajem de Espadas do tarô
Sola-Busca não tem sequer o vislumbre de questões bélicas que tanto permeiam o naipe:
ele toca alaúde, com flores nos cabelos, reclinando-se em descanso, bem como sua espada.
Esse pajem tem consciência de seu despreparo e desinteresse no conflito e aceita sua
condição, preenchendo sua cena com música.
O olhar hesitante do pajem de Claude Burdel circulava pela Europa no século
XVIII, mostrando um personagem cuja incerteza transparece: ele remove a espada de sua
bainha e prende seu olhar no chão, demarcando as questões de insegurança em seu ofício.
O semblante do pajem de Burdel também reforça o fato de que ele é o membro da
corte de espadas mais imerso na imaginação ou no devaneio. Ele reflete, sonha, pensa,
distrai-se. Isso colabora com seu despreparo para os apelos bélicos do resto da corte.
Dentre os pajens aqui trazidos, alguns reforçam esta qualidade: No tarô de
Marselha, no Tarô Sola-Busca e no Linestrider Tarot, estão os principais representantes.
Na carta de Siolo Thompson, em especial, o olhar do personagem se ergue enquanto ele
repousa uma das mãos no queixo, trazendo à tona o gesto do pensar reafirmado por
Albrecht Dürer (1471–1528) em Melancolia I, já tão rememorado pelos autores do círculo
warburgiano. O gesto, também trazido por Auguste Rodin (1840–1917) em O pensador,
firma esse pajem como uma figura propensa ao devaneio enquanto suas ações bélicas
ficam em segundo plano.
O pajem estabelece, assim, sua inocência e meninez como constância: trazendo
rebelião e ares de juventude a uma corte tão firmada nas batalhas e nas dificuldades,
incentivando um pensamento que rompe com a dureza e evocando um respiro para seu
naipe.
100

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Antes que possamos adentrar nas questões finais desse trabalho, rememoremos
nosso trajeto até aqui: através de um levantamento histórico, percebemos que o tarô é um
objeto errante. Um baralho que transita com viajantes entre países da Europa e do Oriente
Médio, um item produzido com esmero para as famílias abastadas da Renascença italiana,
e, por fim, o objeto de dizer a sorte que hoje conhecemos.
É com essa roupagem que o tarô chega aos olhos e às mãos de Pamela Colman
Smith e seus colegas da Ordem Hermética da Aurora Dourada, dentre os quais estava
Arthur Waite, que encomenda um baralho à ilustradora sem lhe dar demais detalhes sobre
como proceder nas imagens dos arcanos menores, o interesse deste trabalho.
Diante dessa lacuna, a artista se depara com a seguinte possibilidade: como
preencher o espaço propositalmente dado por Waite? Imersa em lendas e contações de
histórias desde a juventude, ela se volta para a experiência pessoal como principal fonte
para a criação de seus arcanos menores.
Transpassando vieses como o Arts & Crafts Movement, os revivalismos célticos da
Inglaterra, e seu apreço pelo teatro, ela traz no fantástico a fundamentação para seu
baralho, empregando especialmente a estética elaborada pelos seus colegas de movimento
artístico, que evocavam uma idealização do bucólico e do medieval como motes
recorrentes.
Esses interesses também ressoavam com as práticas da Aurora Dourada, que
acrescentam ao arcabouço referencial de Smith relações com mitologias externas às da
Inglaterra, simbolismos atrelados ao neoplatonismo, e, especialmente através de Arthur
Waite, fortes influências do catolicismo.
Através desse panorama, coube a este trabalho refletir não somente qual o passado
das cartas ilustradas por Pamela, mas também perscrutar seu futuro: quais desdobramentos
possivelmente deixados pelo baralho da artista? Quais as permanências, mudanças e
sobrevivências podem ser vistas nas ilustrações de tarô que vieram após o ano de
lançamento do trabalho de Smith?
101

Levando em consideração que o baralho de tarô é um item fortemente embasado


em iconografia para providenciar sua leitura oracular, como os artistas elaboram
significados e ilustrações contemporâneas para um item que data desde o século XIV?
Para responder a essas e outras perguntas, a dissertação buscou um recorte – a Corte
de Espadas – trazendo análises do rei, da rainha, do cavaleiro e do pajem de espadas,
buscando possíveis referências visuais utilizadas por Pamela Smith e apontando alguns
desdobramentos recorrentes das ilustrações dessas cartas na contemporaneidade. Esse
gesto visou traçar um caminho: de onde vêm e para onde vão as imagens de Pamela
Colman Smith?
Ao acompanharmos os rastros deixados pela artista e observamos o contexto no
qual ela e seus contemporâneos estavam inseridos, pode-se notar algumas constâncias em
relação às suas possíveis fontes de referências visuais: primeiramente, a já abordada
influência da iconografia neoplatônica, fruto dos contextos renascentistas nos quais o tarô
estava envolvido em seus primórdios: a mitologia greco-romana, questões relacionadas ao
misticismo e ao hermetismo eram constantes tanto no baralho Waite-Smith quanto nos
que o antecedem, criando um padrão ao longo dos séculos.
A segunda fonte constante para o baralho ilustrado por Smith, a mitologia judaico-
cristã, permeia também algumas instâncias dos baralhos provenientes da Golden Dawn,
como as associações com a Cabala. A conexão entre a iconografia humanista e a cristã cria
combinações como a Rainha de Espadas, que, no tarô de Pamela Smith, navega entre
Atena, Judite e Santa Catarina de Alexandria.
Um terceiro pilar que sustenta este baralho é o folclore, em especial das ilhas
Britânicas, que já se atavam profundamente aos trabalhos de Pamela Smith antes da
criação do baralho. O impulsionar de Arthur Waite na direção das lendas arturianas atrela
o Tarô Waite-Smith ao seu contexto sociocultural com maior intensidade, colocando-o
também dentro do panorama voltado ao movimento Arts & Crafts.
O Tarô Waite-Smith não se isola hermeticamente das influências da arte e da
cultura de seu tempo e espaço. Ele é um desdobramento imediato desse contexto, apesar
das tentativas da Golden Dawn de manter o tarô como um objeto fechado nas liturgias e
conhecimentos de sua Ordem.
102

Essa tensão entre o que é exposto e o que é fechado aos olhos do público teve de ser
trabalhada por Pamela Smith, que, advertidamente ou não, precisou estabelecer o oculto
como cerne para a produção do seu trabalho, assim como havia sido para Waite para que
pudesse transmitir a ela os conhecimentos sobre tarô de acordo com os parâmetros da
Golden Dawn.
Pamela precisou solucionar de que forma ela reproduziria os significados do tarô
através de imagens sem que rompesse com os acordos de confidência feitos entre ela,
Waite, e a ordem da qual participavam. Ela teve que percorrer a tênue linha que faz
fronteira entre a exposição e o segredo, caminhando na penumbra do olhar do público.
Esse trajeto traçado entre a luz e a sombra coincide com as palavras de Erwin
Panofsky, que prevê no termo iconologia aquilo que cerceia todo o conjunto de uma obra,
esteja ele numa só imagem, numa palavra-chave, num acontecimento histórico
(PANOFSKY, 1962. p 7). Como já mencionado, o caso de Pamela Smith tem essa
preocupação no oculto, no limite entre o que ela poderia representar e, acima de tudo,
como ela poderia representar essas questões mantendo-se tanto em sua própria poética
quanto entregando ao seu comprador a encomenda que lhe fora feita.
O oculto aqui mostra-se como o jogo entre o que é velado pela imagem e o que é
explicitado, sendo essa brincadeira induzida pela própria artista e pelo elaborador do
baralho, que veem os segredos mantidos pela Golden Dawn acerca do tarô serem
dissolvidos com a queda desta organização.
A proposta de Panofsky também ressoa com as abordagens aplicadas por Carlo
Ginzburg, que, no caso de seu texto que aborda a palavra inglesa awe, por exemplo,
determina ali seu cerne, observando como pequenos indícios podem trazer um grande
aporte da história. (GINZBURG, 2008)
Vislumbres dessa questão podem ser observados no baralho de Pamela Smith: o
Cavaleiro de Espadas, por exemplo, traz representantes importantes da cultura local e
evoca um ideal de cavalaria que seria destruído em poucos anos após o lançamento e a
circulação inicial do baralho, prevendo um rompimento com o resiliente cânone que
permanecia pelos últimos séculos da história do tarô.
103

Esse rompimento vale não somente para o Cavaleiro, mas para o tarô num todo:
com a dissolução da Golden Dawn e de outras sociedades herméticas, o baralho de tarô
como ferramenta oracular se difunde, abrindo novas possibilidades para as figuras que
habitam esses baralhos.
O esforço de Pamela Smith com esse tarô torna-se uma ponta de lança para artistas
e pessoas interessadas no âmbito místico, que, tendo o tarô Waite-Smith como alicerce,
exploram novas visualidades para arcanos seculares e elaboram seus significados,
enriquecendo o debate sobre as cartas.
Nas análises elaboradas para essa dissertação, tal debate torna-se mais visível
através de algumas questões: (1) a justaposição das imagens permite que nós, observadores,
possamos traçar paralelos temáticos e formais entre imagens que previamente estariam
separadas pelo tempo; (2) a apreensão de dualidades que permeiam o significado e os
desdobramentos contemporâneos das cartas aqui abordadas.
Ambos os pontos condizem com o pioneiro gesto já proposto por Warburg e pelos
sucessores de seu pensamento: o primeiro referenciando a elaboração e a proposta do Atlas
Mnemosyne, que prevê essa prática metodológica. O segundo torna-se um aceno às outras
dualidades já discorridas pelo historiador da arte alemão, como o caso do astra e do
monstra, vistos também no Atlas.
As dualidades apontadas nas análises tendem a padrões de tensão ou oposição: O
Rei e o Cavaleiro de Espadas têm em suas imagens o embate entre manutenção e ruptura
do cânone estabelecido até o baralho de Pamela Smith. O Cavaleiro, ao contrário do Rei,
sofre com uma quebra incisiva em sua representação por conta da Primeira Guerra
Mundial, o que desalinha a figura da carta com a idealização de um herói de cavalaria.
A duplicidade exibida pelo Rei é mais tímida, brincando com as possibilidades do
que pode ser considerado um reino de um Rei de Espadas – uma estação do ano, uma
família de aves – e, caso essa figura de poder opte por manter a definição monárquica de
reino, varia como esse Rei manteria seu poder – sábio como Odisseu ou incisivo como
Coatlicue.
O outro tipo de duplo presente na trajetória das cartas da corte de Espadas de
Pamela Smith está na oposição entre a ação física e a ação mental, da Rainha de Espadas, e
104

masculino e feminino, do Pajem de Espadas. A monarca pode ser vista em suas


representações exercendo seu poder de forma mental, através da estratégia, ou física,
através da batalha.
O binarismo preconizado pelo Pajem é, assim como ele, mais flexível, tratando-se
primariamente de uma constante oscilação ou ambiguidade ao invés de uma dicotomia
baseada na rigidez. Ele joga com as expectativas dos papéis de gênero e suas respectivas
aparências, diluindo-as em sua fluidez aérea.
Essa mesma ambiguidade pode ser atrelada ao Rei de Espadas ao levarmos em
consideração que, ao contrário dos reis dos baralhos de jogo que utilizamos na
contemporaneidade, não possui barba e especula-se que tenha sido criado a partir da
referência de rosto de Edith Craig48, em especial no Rei de Ouros.
Tais oposições e ambiguidades tornam-se particularmente potentes nas mãos
hábeis de Pamela Colman Smith, que se aproveita da dubiedade do oculto, no qual sua
tarefa está imersa, para convidar suas cartas ao mesmo movimento: como já mencionado,
não somente o Pajem de Espadas flutua pela androginia, mas diversas outras cartas o
acompanham, preconizando os amplos debates sobre gênero na contemporaneidade. A
artista aproxima-se da lacuna deixada por Arthur Waite e vê nela espaço para criação,
elaborando, como menciona o nome de sua revista, seu próprio balaio de referências que
se atrela às cartas e aos seus significados. Sendo assim, a corte de espadas torna-se um
veículo particularmente potente dessas dualidades entre manutenção e ruptura, exibindo
essa característica também em suas imagens.
Essas e outras observações só se fazem possíveis graças à aposta metodológica de
Aby Warburg e seus seguidores com o Atlas, que, nas palavras de Didi-Huberman “é um
objeto pensado como uma aposta. E a aposta que as imagens, unidas de certo modo, nos
ofereceriam uma possibilidade – ou melhor, o recurso inesgotável – de uma releitura de
mundo” (2018. p. 27).
Graças ao historiador da arte alemão e seus colegas, é possível que desloquemos
nosso olhar de um objeto para outro para criar não somente uma linha do tempo, mas uma
teia de influências ao redor das cartas, estendendo nossa visão não somente para as

48
Como pontuado através da Prancha Edith Craig. (Figura 14, página 43)
105

possíveis fontes que geraram aquela imagem, mas também seus possíveis desdobramentos
futuros ou as linhas de força que são desemaranhadas pelo objeto.
A leitura do tarô como um objeto oracular não necessita ser guiada por imagens
como as leituras warburgianas. Apesar disso, se nos propusermos – como interessados em
tarô ou no campo da arte – a permitir que as imagens falem, contem suas histórias e
engendrem-se entre si, é possível ter uma reconexão com tempos passados: ver numa carta
criada na década de 2010 um vislumbre de um emblema do século XV.
A sobrevivência do pagão, do místico e do mágico – questões já previstas por
Warburg em sua perspicácia – se mantém relevante através do tarô, que se torna um
exemplar de significativa importância para a observação desses motivos da Antiguidade e,
concomitantemente, serve de suporte para poéticas de diferentes artistas.
Vale demarcar que a paridade entre o tarô e o campo da arte é revisitada ao longo
das décadas, sendo vistas por nomes como Salvador Dali (1904-1989)49, que ilustra um tarô
atualmente em circulação sob o selo da editora Taschen, e Niki de Saint-Phalle50 (1930-
2002), que cria esculturas baseadas em cartas do tarô em um jardim batizado de O Jardim
do Tarô. Nomes nacionais como Nadam Guerra e Liana Keller também mantêm vivo o
estudo e o interesse no tarô aliado à produção em arte.
Tais colaborações entre tarô e arte demarcam o quanto esses baralhos se beneficiam
das discussões engajadas no campo da arte, sofrendo com rupturas, cânones e poéticas
assim como objetos de arte já estabelecidos no campo, como a pintura.
A capacidade metamórfica do tarô – imagens mudam, evocando diferentes
possibilidades de significado, e permanecem trazendo os significados iniciais – instiga seu
observador não somente a se perguntar o que aquela imagem significa, mas o incita a
elaborar visões particulares para aquela figura e atrelar aquela carta à sua experiência
cotidiana, permitindo que o público trace os seus próximos caminhos e os das imagens do
tarô.

49
Dalí. Tarot. Disponível em
<https://www.taschen.com/pages/en/catalogue/art/all/44640/facts.dali_tarot.htm>. Acesso
em 29 jul 2021.
50
The Tarot Garden. Disponível em <http://ilgiardinodeitarocchi.it>. Acesso em 29 jul 2021.
106

Quando vista no baralho de Pamela Smith, que inclui seu próprio cotidiano nas
ilustrações de cartas de cunho anteriormente hermético, essa capacidade cria uma ponte
entre o significado esotérico das cartas e o público leigo, elaborando uma acessibilidade
para o universo do tarô, o que é, possivelmente, uma das grandes raízes do sucesso
estrondoso desse baralho. As ilustrações de Pamela Smith diluem a rigidez estabelecida
pelo hermetismo das sociedades esotéricas mencionadas ao longo do texto, permitindo um
trânsito maior de pontos de vista perante o tarô.
107

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