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Billie Holiday *07 de abril de 1915 +17 de julho de 1959

Pela década mais genial da carreira, 1933 – 1944, Billie Holiday nunca recebeu nada em direitos
autorais. Nos anos seguintes, também geniais, quase nada, uma mixaria. Era contratada como
cantora esporádica das gravadoras e recebia 15, 20 ou 30 dólares por sessão, 75 no auge. Era só.
Vendia sua voz por míseros dólares para quem ganhava milhares e milhares com ela. No longo
prazo, milhões. Mais de 50 discos lançados, centenas de músicas. Nem mesmo como compositora
recebeu tostões. Recebia quando cantava e – fosse no rádio, no estúdio, no bar ou no teatro – era só
o que recebia. Por isso, cantava sem parar, em vários lugares, com todo mundo, por todo lado. Vivia
na estrada, na noite, no jazz. A vida já tinha sido dura demais quando a música virou o sentido dela.
Descobriu o talento pela necessidade. Cantar era uma opção para matar a fome. Uma voz única, tipo
ideal, arquétipo. Tão necessária e característica para a música americana quanto Van Gogh para a
história da arte (contando que a música americana mudou o século XX e que Van Gogh foi o mais
malogrado gênio da pintura). Assombrada pelo espírito da arte, brilho do jazz, Billie Holiday veio
das profundezas das adversidades para provar que a humanidade ainda não fracassara por completo.
Nasceu em 07 de abril de 1915, em Filadélfia, mas foi criada em Baltimore, terra de Edgar Alan Poe
e d’O Corvo. Descendente de uma escrava amasiada com um irlandês, era branca demais para a
família da mãe e preta demais para o resto do mundo. A mãe tinha 13 anos no parto, o pai 15. Foi
criada na casa da bisavó, a tal do irlandês, que lhe morreu nos braços junto com a infância.
Apanhava diariamente da tia, depois que a mãe foi tentar a vida em Nova York. Acabou que não era
moça de família. Na adolescência, lavando degraus brancos e banheiros alheios, conheceu o blues
de Bessie Smith e o sopro de Louis Armstrong no bordel da esquina. Trabalhava para escutar a
vitrola e delirar no som. Ficou mal falada por entrar naquela casa, mas já era mesmo, desde o dia em
que foi condenada ao reformatório por escapar do estupro. Um vizinho chegou a arrastá-la e prendê-
la na cama, mas, por pouco, a polícia invadiu o quarto de onde se ouvia os gritos da garota de 10
anos. Foi culpada por se insinuar sexualmente para o homem, aquela criança. Mandaram-na às
freiras. Aos 12 um homem de 40 a estuprou no chão da sala da avó e a mandou para uma temporada
no inferno. Nem chegou a denunciá-lo, pois já tinha aprendido como a justiça funcionava para ela:
culpada por ter nascido. Aos 14 chegou ao Harlem e sobreviveu graças à ajuda da cafetina que a
oferecia por centavos aos pacatos cidadãos brancos de dignidade. Quando se recusou a atender um
cliente mais violento, foi denunciada e presa por prostituição. Cadeia nela. Voltaria outras vezes por
drogas, confusões, desacatos e, de novo, por ter nascido.

Do encontro com a mãe, apenas 13 anos mais velha, em Nova York, fez de tudo para sobreviver.
Até roubou. Quando apertava demais, dava um jeito, mas não levava jeito para a coisa, nem para
ladra. Um dia, desesperada, tentou uma vaga de dançarina em uma boate. Não sabia mais de dois
passos. Desengonçada na dança, cantarolou a letra. O pianista a mandou parar a dança e fazer aquilo
de novo. “O que? Cantar?” Sim. Ela nem sabia que cantava. Foi imediatamente contratada, pelo
preço das gorjetas das mesas, sem fixo. Na primeira noite chegou em casa com mais dinheiro que o
do sexo. Descobriu que a noite também podia lhe dar a dignidade e os aplausos. Podia ser gente.
Abandonou Eleanora na sarjeta e assumiu a estrela de Billie Holiday. Eleanora Fagan Gough foi o
seu nome de batismo, “Lady Day” o título que ganhou pelo talento, Billie Holiday o nome que
escolheu para dobrar a vida e enganar o destino. Com ele subiu, virou uma lenda imortal do jazz.
Música eterna. Diva. Um gênio da voz, por força da pobreza. Na Renascença do Harlem,
convivendo com os melhores músicos de jazz de sempre, cresceu na música, ocupou espaço entre
metais e pianos. Levantava notas como trompetes, cantava como sopros de sax, usava a voz como
instrumentos de jazz. Chorava o sofrimento em melodia, emocionada. Sem estudo além da quinta
série, nunca estudou música, o feito vinha da alma. Há quem diga que vinha da dureza da vida.
Tornou-se a maior diva da era do jazz, entre monstros como Ella Fitzgerald e Sarah Vaughan. Nina
Simone. Lady Day ficou respeitada entre os músicos, acompanhou os seus ídolos, inclusive Louis
Armstrong, o culpado do seu amor pela música. Foi acompanhada por eles. Benny Goodman, Lester
Young, Teddy Wilson e mais uma infinidade medalhões gravaram com ela. Lotou shows no
Carnegie Hall, no Apollo e quaisquer espeluncas nas quais desse as graças. Viajou pela América
lutando para ser artista, contra o racismo, contra o machismo, contra a maré. Depois conquistou a
Europa e o mundo. Mas nem o estrelato lhe deu sossego do malho. Lady Day ficou respeitada entre
os músicos, acompanhou os seus ídolos, inclusive Louis Armstrong, o culpado do seu amor pela
música. Foi acompanhada por eles. Benny Goodman, Lester Young, Teddy Wilson e mais uma
infinidade medalhões gravaram com ela. Lotou shows no Carnegie Hall, no Apollo e quaisquer
espeluncas nas quais desse as graças. Viajou pela América lutando para ser artista, contra o racismo,
contra o machismo, contra a maré. Depois conquistou a Europa e o mundo. Mas nem o estrelato lhe
deu sossego do malho. Entre a genialidade de sua música e a dureza da vida, apanhava também dos
homens, dos armários, das maçanetas das portas... olhos roxos por culpa da pia do banheiro. Amor
sem correspondência, pior miséria depois da pobreza. Foi explorada, roubada, enganada, abusada,
agredida, chantageada, traída e abandonada por eles. Mal amada de carteirinha, condenada à
solidão. Ninguém era dela, ainda que fosse de todos. Quanto mais famosa, maiores os problemas. A
polícia lhe perseguia devido às drogas, o fisco por sonegação do que nem tinha, a justiça porque
tinha nascido, os brancos porque era negra, os homens porque era mulher, as mulheres porque era
famosa, os músicos porque tinham inveja dela. Mas nada lhe doía tanto quanto o racismo. Sentia na
pele o peso da estratificação racial nos Estados Unidos. Teve que enfrentar o preconceito na raça,
dar a sua parcela de luta pela humanidade. Seu maior sucesso, “Strange Fruit”, é uma canção de
protesto contra a segregação e o racismo. Um Hino. Heroína do jazz, heroína nas veias. Viciou-se
em agulhas e fumos, nunca sem o Bourbon e o cigarro que lhe destruíram a voz antes dos 40. Não
bebia champanhe. Para muitos, a decadência lhe aumentou o talento, na rouquidão da voz, na
tristeza que impunha ao cantar. Olhos cheios d’água, veias estufando no pescoço, a garganta
estourando, pulmões buscando fôlego como se nada fosse mais importante que aquela nota, que
aquele refrão, que aquela música. Estraçalhada, dilacerada pela vida, ainda era o gênio de Billie
Holiday. Morreu aos 44, numa cama de hospital, triste e solitária. Toda desgraçada, sem fígado, sem
pulmões, sem forças, infeccionada, envenenada pelas drogas. Sem voz. 750 dólares enfiados na
vagina. 15 notas de 50, enroladas e amarradas. Era tudo que tinha. Seu funeral foi bancado pelos fãs,
aos milhares. Ainda hoje, no seu centenário, é uma das maiores cantoras de todos os tempos, de
todos os estilos, a maior da era do jazz. Eterna Lady Day.

Compensa "a autobiografia dilacerada" de Billie Holiday, publicada no Brasil pela Zahar:

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