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Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Atividade Avaliativa
Causos do ECA – Histórias que tecem a rede
Quando a vida fala mais alto: O ECA como ponte
Para a construção de uma nova história.
Taís BurinCesca – Porto Alegre (RS)
Psicóloga, pós-graduada em Psicologia Jurídica. Trabalha, há 13anos, em instituições
de acolhimento. É sócia fundadora da OSCIPAcolher, que se dedica à capacitação dos
agentes da rede em temas relacionados à Violência Intrafamiliar,ao Acolhimento
Institucional e à Adoção.

No ano de 1999, por meio do Conselho Tutelar, uma menina chamada Mariana, de um
ano e dez meses, chega a uma instituição de acolhimento de Porto Alegre. Junto com
ela, vem uma história de abandono e fragilidade que, mais tarde, se transformou em
força e pulsão de vida, sendo para todos que conviveram com ela uma grande lição.
Mariana era uma criança de origem indígena, da tribo Guarani, que, por ter nascido
com quadro de cardiopatia congênita, foi abandonada pelos pais em uma rede, para
que morresse naturalmente. Segundo a FUNAI, quando uma criança tem doenças
graves, é costume das tribos indígenas abandoná-la, pois entendem que são maus
espíritos. A FUNAI encontrou a menina já em estado grave de desnutrição e
desidratação, e com as pontas de dois dedos das mãos necrosadas. Mariana foi
hospitalizada e sua família foi chamada para que acompanhasse a internação e o
tratamento, em uma tentativa de restabelecer e favorecer o retorno à convivência
familiar. Os pais se recusaram a comparecer, o que foi considerado como abandono
definitivo.
Na tentativa de preservar o convívio com suas origens, buscou-se o acolhimento por
outros integrantes da tribo Guarani e, posteriormente, por tribos vizinhas, sem sucesso.
O caso foi submetido ao Conselho Estadual dos Povos Indígenas, do qual fazem parte
representantes dos Guaranis. O posicionamento foi favorável ao acolhimento da
menina. Com base no artigo 101, §VII do ECA, o acolhimento institucional de Mariana
foi solicitado.
Ao ingressar na instituição com um ano e dez meses, a menina tinha o peso de um
bebê recém-nascido, 4,8 kg. Havia passado por nove meses de hospitalização, entre a
vida e a morte. Seus primeiros seis meses na instituição foram muito difíceis. Após este
período inicial, ela começou a apresentar progressos no desenvolvimento, dando
provas de que, com afeto, alimentação e estímulos adequados, poderia sobreviver e se
desenvolver.
Quando Mariana estava com quatro anos, como os pais não apresentaram interesse de
reaver a guarda da filha, ocorreu a audiência de Destituição do Poder Familiar (DPF).
Como de costume nos procedimentos jurídicos, o Ministério Público foi ouvido e, de
acordo com o artigo 161, §2º do ECA, que aborda as comunidades indígenas, também
foi ouvida uma equipe interdisciplinar de representantes do órgão federal responsável
pela política indígena. Por fim, o juiz julgou procedente a DPF.
Mariana estava processualmente pronta para adoção e, a partir daí uma nova
caminhada se iniciava, pois não existiam casais na fila de adoção do país habilitados
para uma menina com sua idade e necessidades. Baseado no artigo 51 do ECA, foi
avaliada a possibilidade de adoção por estrangeiros. Porém, tampouco em outros
países havia candidatos desejosos em adotar uma criança com seu perfil.
Aos cinco anos, Mariana tinha dificuldades de comunicação verbal e atraso no
desenvolvimento cognitivo, fato que exigiu um trabalho interdisciplinar envolvendo a
escola, professores, equipe da instituição e outros profissionais da rede de
atendimento.
Aos seis anos, solicitamos seu ingresso no Programa de Apadrinhamento Afetivo,
visando expandir seu convívio social e favorecer a formação de vínculos mais
singulares. Tal ingresso ocorreu em 2006, sendo sua madrinha uma educadora da
instituição onde residia, pessoa de maior referência para Mariana. O vínculo com esta
madrinha fortaleceu sua autoestima, favorecendo seu desenvolvimento emocional e
cognitivo. Era comum ouvir Mariana dizendo: “A tia Sú é minha”, o que lhe dava a
sensação de pertença em meio a tantas perdas.
Porém, este vínculo com a madrinha/educadora tinha suas limitações, o que nos fez
pensar que seria importante a constituição de um vínculo com outro adulto externo às
funções da instituição, que realmente pudesse dar conta de uma relação mais singular.
Foi quando, em 2007, ingressou na instituição um casal jovem de voluntários que, aos
poucos, foi se sensibilizando com as necessidades de Mariana e se encantando com
sua força. Após aproximadamente seis meses de convívio, o casal manifestou desejo
de apadrinhá-la. Foram avaliados pela equipe técnica do Juizado da Infância e
Juventude e da instituição e considerados aptos.
A educadora/madrinha auxiliou na formação deste novo vínculo “autorizando” e
incentivando esta aproximação. O vínculo entre o casal e Mariana foi se fortalecendo a
cada dia. As saídas eram cada vez mais frequentes e a criança já passava os finais de
semana e as férias na casa dos padrinhos. Chega, então, o tão sonhado momento: o
casal manifesta o desejo adotá-la. Em setembro de 2008, com nove anos, Mariana foi
adotada, tendo assegurado o direito à convivência familiar previsto no ECA, art. 19.
Atualmente, Mariana reside com os pais adotivos, possui forte vínculo com a família
extensa, tios e avós adotivos, e recentemente ganhou um irmãozinho. Seu vínculo com
seus pais é tão forte e seguro que ela não se sentiu ameaçada pela vinda de um irmão.
Pelo contrário, o esperou com muito entusiasmo, auxiliando os pais a organizar os
espaços para sua chegada.
O caso emociona a todos que acompanharam a trajetória de Mariana, por sua força
devontade para viver e para sonhar com uma família, em meio a tantas fragilidades e
também nos permite pensar no trabalho da instituição de acolhimento neste processo,
ondeexiste um outro que se esvazia para dar toda a atenção de que a criança
necessita para sedesenvolver. Mas, acima de tudo, trata-se de um lugar que permite
que a criança passe paraoutra etapa da vida, onde vai receber os cuidados familiares
dos quais a instituição não conseguedar conta. A história reforça, ainda, as
possibilidades da adoção tardia a partir da apostade uma família que vê, nessa criança,
algo além de sua idade e necessidade especial.
Essafamília vê, ali, um sujeito capaz de se vincular afetivamente e desejoso de uma
família.Para que esta história tivesse este desfecho, os pressupostos do ECA foram de
fundamentalimportância. Eles ajudaram a buscar todas as possibilidades e recursos
para olhara situação dessa criança de forma técnica, evitando condutas tendenciosas
e, por vezes,preconceituosas. O ECA ajudou na busca de caminhos para o
desenvolvimento de Mariana,mostrando a eficácia desta medida quando aliada à
sensibilidade dos profissionais que a executam.

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