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Resumo
Análises da expressão do imperativo no português brasileiro indicam que os registros
da tradição gramatical não cobrem as suas diversas possibilidades de uso: dados das regiões
sul, sudeste e centro-oeste revelam presença abundante de enunciados imperativos associados
à forma indicativa em contexto discursivo do pronome você, ambiente em que a tradição prevê
o imperativo associado ao subjuntivo. O estudo relatado neste artigo tem como objetivo
principal detectar se os diálogos das revistas em quadrinhos da Turma da Mônica publicadas
no final do século XX incorporam o vernáculo contemporâneo destas três regiões. Os
resultados obtidos evidenciam a entrada do vernáculo na modalidade de escrita analisada,
confirmam conclusões de pesquisas anteriores e revelam heterogeneidade lingüística ordenada.
INTRODUÇÃO
A tradição gramatical brasileira registra que o imperativo apresenta formas
próprias para as segundas pessoas tu/vós em construções afirmativas, mas,
paradoxalmente, afirma que estas mesmas formas são derivadas do modo indicativo
sem o –s final. As demais formas do imperativo afirmativo, bem como todas as formas
do imperativo negativo, são, por sua vez, sistematicamente associadas ao modo
subjuntivo. Portanto, a tradição gramatical vigente (Bechara, 1973:116; 1999:237;
Cegalla, 1991:166-167; Cunha & Cintra, 1985:465) registra, por exemplo, as formas:
1) falA, abrE, faz, para o imperativo afirmativo singular no contexto do pronome
tu;
2) falE, abrA, façA, para o imperativo afirmativo ou negativo singular no
contexto do pronome você.
Diferentemente dos registros da tradição, construções do tipo “Não faz isso!”,
“Faz o dever” “Não vai se arrepender”, “Traz isto pra mim” são encontradas na fala
espontânea, no contexto sintático e discursivo do pronome você. Tendo em vista que a
variação de uso do imperativo não é estigmatizada – está abaixo do nível da consciência
-, e que, de forma geral, a escrita tende a ser mais conservadora, este estudo visa
detectar se formas imperativas vernáculas observadas em dados das regiões sul, sudeste
e centro-oeste – predominantemente associadas ao modo indicativo no contexto
2
OS DADOS ANALISADOS
Foram analisadas 724 estruturas imperativas gramaticais (636 variáveis; 88
invariáveis) de 15 revistas publicadas em 1998 e 1999.1 Dos 636 dados variáveis, 362
(57%) se expressam pelo imperativo associado à forma indicativa e 274 (43%), pelo
imperativo associado ao subjuntivo, no contexto discursivo do pronome você. Exemplos
da variação do imperativo, em estruturas de polaridade afirmativa e negativa, podem ser
vistos a seguir:
Imperativo expresso pela forma indicativa, em estrutura afirmativa ou negativa:
(1) a. “É agora, Tonicão, faz o Gol!” (Almanaque do Cebolinha - 54, Maurício
de Souza, Editora Globo, dez/1999:75)
(1) b. “Psst! Não faz escândalo, Cebolinha!!” (Cebolinha - 141, Maurício de
Souza, Editora Globo, ago/1998:7)
Imperativo expresso pela forma subjuntiva, em estrutura afirmativa ou negativa:
(2) a. “Faça essa bola se mexer AGORA!” (Almanaque do Cebolinha - 54,
Maurício de Souza, Editora Globo, set/1999:75)
(2) b. “Não, seu monstro! Não faça isso!” (Almanaque do Cascão -53, Maurício
de Souza, Editora Globo, ago/1998:76)
3
Os exemplos acima revelam que as duas alternativas sob análise ocorrem com o
mesmo verbo, independentemente da polaridade da estrutura, em contextos sintáticos e
discursivos semelhantes e, até prova em contrário, com o mesmo valor de verdade. Isto
indica que se trata de uma variável lingüística que pode ser submetida à análise
quantitativa da metodologia variacionista, adequada para tratar dados variáveis com
algum grau de aleatoriedade em sua distribuição. As tendências sistemáticas da variação
do fenômeno analisado se revelam por meio da seleção de sete variáveis como
estatisticamente significativas: polaridade da estrutura; presença, localização e pessoa
dos pronomes; presença/ausência de vocativo; número de sílabas do verbo na forma
infinitiva; paradigma verbal, tipo de oposição entre as formas verbais e paralelismo
fônico; paralelismo discursivo e os personagens das histórias. Os resultados das
variáveis selecionadas são apresentados a seguir.
VARIÁVEIS LINGÜÍSTICAS
É bom relembrar que os dados da amostra analisada ocorrem em contexto
discursivo do pronome você, contexto em que a tradição gramatical registra
categoricamente o imperativo associado ao subjuntivo, padrão encontrado no português
europeu (cf. Faraco, 1986). A distribuição global dos enunciados analisados revela que,
neste contexto, há 57% de estruturas imperativas associadas à forma indicativa. Este
fato, por si só, evidencia que formas vernáculas da fala das regiões sul, sudeste e centro-
oeste encontram-se presentes na modalidade de escrita analisada.
POLARIDADE DA ESTRUTURA
A fim de se verificar outra predição categórica da tradição gramatical, a presente
análise levou em conta a variável polaridade negativa ou afirmativa da estrutura, tendo
em vista que, também neste caso, a tradição prevê o imperativo sistematicamente
associado ao subjuntivo.
Os resultados da tabela 1 evidenciam que o contexto de polaridade negativa não
apresenta apenas enunciados imperativos associados à forma subjuntiva: 25% deles
estão expressos na forma indicativa. Todavia, tendo como referência a média de 57% de
imperativo na forma indicativa, observa-se que a polaridade negativa diminui o uso do
imperativo associado ao indicativo. Inversamente, a polaridade negativa aumenta o uso
do imperativo associado ao subjuntivo, resultado que, em termos de tendências, é
consistente com o registro da tradição gramatical. Este fato encontra-se refletido no
4
nas estruturas de 3ª pessoa gramatical plural, com ou sem diálogo, na fala ou na escrita
(cf. Scherre et alii, 1998; 2002; Scherre, 2002). O enunciado “Corra, salte, ande e
deixe de fumar”4 ilustra bem o uso quase categórico do imperativo associado ao
subjuntivo no contexto discursivo escrito não-dialógico. Os poucos casos deste tipo
discursivo na forma indicativa vêm ancorados por algum elemento que assegura a sua
interpretação imperativa - um vocativo, por exemplo, como em “Fala, Brasil”5; vêm
inseridos em balões – para simular um diálogo; ou vêm acompanhados por outros
elementos icônicos, como o gesto que simula um telefone junto ao enunciado “Faz um
21!”.6 A obrigatoriedade da forma subjuntiva nos enunciados imperativos plurais se
ilustra em Jovens, envelheçam!7. Neste caso, nem a presença do vocativo permite a forma
e a leitura imperativa associadas ao indicativo. Somente o imperativo na forma
subjuntiva assegura a leitura imperativa nestes enunciados, mesmo nos diálogos da
língua falada.8
PRESENÇA/AUSÊNCIA DE VOCATIVO
À luz da linha de raciocínio de se assegurar leitura imperativa dos enunciados
gramaticalmente imperativos, foi considerada ainda a variável presença/ausência de
vocativo no contexto, que também se evidenciou estatisticamente significativa. De
forma consistente, embora com menor polarização, observa-se mais imperativo
associado ao indicativo na presença de vocativo na estrutura (“Psst! Não faz escândalo,
Cebolinha!!”): vocativo no enunciado imperativo contribui para assegurar a leitura
imperativa. Os resultados podem ser vistos na tabela 3.
PARALELISMO DISCURSIVO
Scherre (1998) apresenta em detalhes o levantamento e as possibilidades de
interpretação da variável paralelismo lingüístico. Scherre et alii (1998) apresentam
mais uma evidência da variável paralelismo, agora no plano fônico, envolvendo a
1
a esquerda, espera-se que o fator primeiro de uma série funcione de forma diferente do
fator forma isolada (cf. Scherre, 1998; Scherre & Naro, 2003). O paralelismo fônico
funciona de forma semelhante (ver tabela 5). A natureza da vogal precedente atua na
qualidade da vogal subseqüente nos verbos regulares da primeira conjugação: vogal
precedente mais aberta favorece vogal seguinte aberta (imperativo associado ao
indicativo); vogal precedente menos aberta favorece vogal seguinte fechada (imperativo
associado ao subjuntivo).
tivemos de fato uma mudança na função da forma. Em vez de desaparecer – o que seria, de
certo modo, previsível diante da amplo predomínio de você sobre tu no Brasil – aquele par de
formas [canta/não canta] sobrevive, mas como um valor diferente na língua.
A variável atos de fala na forma prevista por Faraco (1986) foi controlada nesta
análise, mas, até o presente momento, não foram obtidos resultados consistentes, nem
com relação à significância estatística nem com relação à coerência dos resultados.
Como se trata de uma variável de difícil controle, a codificação feita será submetida a
posterior revisão antes de que seja apresentada nova linha de raciocínio. Contudo, é
oportuno ponderar que a questão do que é um ato de fala marcado ou não marcado
atualmente, em termos de enunciados imperativos, tem de repensada, levando-se em
consideração a especificidade de cada localidade. Em Salvador, por exemplo, em que se
observa um percentual de 72% de imperativos na forma subjuntiva (cf. Sampaio,
1
Personagens principais
(Mônica, Cebolinha, Cascão Magali) 135/216 63% 0,55
SÍNTESE:
¾ FAVORECEM RELATIVAMENTE O IMPERATIVO NA FORMA INDICATIVA:
CONCLUSÃO
As análises do imperativo no português brasileiro revelam um sistema
inerentemente variável, sem ligação evidente com a pessoa verbal, mas com sutilezas
que estão sendo atualmente descritas. Análises levadas a cabo, entre as quais esta se
insere, evidenciam distanciamento considerável entre norma e uso no português
brasileiro contemporâneo falado e escrito. Em verdade, a norma da tradição gramatical
reflete o uso do português europeu, o uso do português brasileiro de épocas anteriores e
o uso parcial do português brasileiro contemporâneo. A fala de aproximadamente 110
milhões dos cerca de 170 milhões de falantes do português brasileiro e a escrita de
autores brasileiros os mais diversos não se encontram contempladas nos registros da
tradição gramatical (cf. Scherre, 2002). A análise apresentada neste texto demonstra, em
especial, que restrições que governam a variação na fala governam também a variação
1
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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1
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2
• *
Agradeço à Ana Mattos e à Daisy Bárbara Borges Cardoso pela leitura atenta do manuscrito
deste artigo e pelas correções e sugestões valiosas. Agradeço também a Eduardo Brasil, pela
participação ativa nas fases iniciais da pesquisa, como bolsista de Iniciação Científica do CNPq.
Eventuais equívocos de análise ou de redação são, todavia, de minha inteira responsabilidade..
1
As 15 revistas da Turma da Mônica, de Maurício de Sousa, publicadas pela Editora Globo em
1998 e em 1999, são: três da Mônica - números 75, 140 e 154; três do Cebolinha - números 52, 54 e 141;
três do Cascão - números 46, 53 e 54; três da Magali - números 21, 22 e 23; três do Chico Bento -
números 46, 52 e 54.
2
2
(.... ) it is the comparison of the effects of any two factors in a factor group (as measured by
their difference) which is important, and not their individual values.”(Sankoff:1988a:989).
3
Interpretação semelhante para os dados de Salvador foi feita por Sampaio (2001) com base no
princípio de coesão estrutural proposto por Dante Lucchesi (2000)..
4
Correio Braziliense, 25 de junho de 1999. Manchete do Caderno Mundo.
5
Propaganda do Governo Federal, em 1998.
6
Propaganda da Embratel, empresa de telefonia no Brasil.
7
Correio Braziliense, 8 de novembro de 2001, Opinião, p.4.
8
São 54 os casos de plural nas 15 revistas analisadas, todos na forma subjuntiva: Esperem um
pouco! Os casos que ocorrem no escopo de sempre e nunca só se encontram também na forma
subjuntiva: Sempre guarde um tijolo na bolsa! Nunca mais fale comigo. Estes casos serão retomados em
análises futuras.
9
Quando participei da banca da dissertação de Sampaio, com muita honra e satisfação, refiz por
curiosidade a contagem dos dados e verifiquei que, nos dados de Salvador que constam dos anexos da
dissertação, o verbo deixar se apresenta com mais formas imperativas associadas ao indicativo -
18/40=45% -, do que o verbo olhar, outro verbo com, relativamente, mais formas associadas ao
indicativo (65/211=31%). Os dados de Salvador exibem um percentual médio de 28% de formas
imperativas associadas ao indicativo.
10
Estão sendo levantados mais dados das revistas da Turma da Mônica. Quando houver dados
suficientes, serão feitos subagrupamentos de verbos em termos de classes morfológicas ainda mais
naturais, a saber: sai/saia, lê/leia, por um lado, e vem/venha; põe/ponha; tem/tenha, por outro, que
envolvem, segundo a presente análise, diferenciação em termos de semivogais não-nasalizadas e
nasalizadas, respectivamente.
11
Em outro momento, vamos discutir em mais detalhes o efeito destas duas variáveis no discurso
escrito e no discurso falado. As semelhanças são mais evidentes do que as diferenças, mas há diferenças.
Os dados de discurso falado analisados até o presente momento indicam que os verbos de paradigma
especial têm comportamento semelhante ao dos verbos de paradigma irregular de oposição mais marcada
(ambos desfavorecendo, relativamente, a variante imperativa no indicativo) e que o número de sílabas
apresenta um efeito mais contundente, com uma posição muito polarizada entre verbos monossílabos, por
um lado (0,71), e verbos de mais de três sílabas, por outro (0,12) (cf. Scherre et alii, 2000).