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Resumo: O culto Santo Daime surgiu no interior do Estado do Acre, Brasil, no início do século
XX. Nesse culto a transmissão do conhecimento ocorre mediante o recebimento de canções
(estrutura poética + estrutura musical rítmico-melódica), denominadas hinos. Para os adeptos
desse ritual, esses hinos contêm ensinamentos que são transmitidos por seres espirituais. O
processo e concepção dessas canções do Santo Daime são considerados diferentes de um
processo usual de composição, em que estariam presentes o raciocínio e o intelecto. O hino
Sol, Lua e Estrela, do Hinário do Cruzeiro de Raimundo Irineu Serra, fundador do Santo Daime,
foi analisado utilizando-se os conceitos de semiótica para análise de canção, desenvolvidos por
Luiz Tatit, visando encontrar os elementos que constroem o significado do hino. Foram
encontrados padrões que explicam o que Luiz Tatit denomina por eficácia da canção.
Abstract: The Santo Daime cult emerged within the State of Acre, Brazil, in the early twentieth
century. In this cult the knowledge transmission occurs through the reception of songs (poetic
structure + rhythmic-melodic musical structure), known by adepts as hymns. To the adepts of
this ritual, these hymns contain teachings that are transmitted by spiritual beings. The process
and the conception of the Santo Daime hymns, is considered different from the usual songs
method of composition, which would present reasoning and intellect. The hymn Sol, Lua e
Estrela, from the Hymnal Cruzeiro by Raimundo Irineu Serra, founder of Santo Daime, was
analyzed using the semiotics concepts, developed by Luiz Tatit in order to find the elements
that construct the meaning of the hymn. Patterns were found that explain what Luiz Tatit calls
songs effectiveness.
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Aluno do Programa de Pós-Graduação em Música da Universidade Federal do Paraná – Mestrado.
2
Professor adjunto do Departamento de Artes da Universidade Federal do Paraná (DeArtes UFPR). Coordenador do
Grupo de Pesquisa CNPq denominado Música Brasileira: estrutura e estilo, cultura e sociedade, na linha de pesquisa
intitulada Musicologia Histórica: entidades civis vinculadas à Música no Estado do Paraná no século XX.
Anais do VIII Fórum de Pesquisa Científica em Arte.
Curitiba: ArtEmbap, 2011. ISSN 1809-2616
INTRODUÇÃO
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Em referência aos mandamentos da Bíblia judaico-cristã, que possui duas divisões denominadas testamentos. O
velho testamento – antes de Jesus Cristo, formado pelos livros que vão do Genesis ao Malaquias; o novo testamento
– a partir de Jesus Cristo, vai do livro de Mateus ao livro do Apocalipse; o terceiro mandamento ao qual se referem
alguns adeptos do Santo Daime seria formado pelo conjunto de hinos recebidos.
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raciocínio baseado, em sua experiência prévia. Para os adeptos da doutrina do Santo Daime, a
concepção de um hino não obedece a um processo racional, mas sim, a um processo
espiritual, como mensagem que chega pronta de seres espirituais, do mundo astral. De acordo
com Kastrup (2007, p. 187):
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Puxadoras são mulheres que possuem a função de memorizar os hinos e iniciá-los nos rituais do Santo Daime
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Canto sem acompanhamento de instrumentos musicais.
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METODOLOGIA
A metodologia escolhida para análise dos hinos do Santo Daime foi desenvolvida pelo
professor Luiz Tatit, da Universidade de São Paulo – USP. O método, voltado para análise de
canções populares, mostrou-se válido para análise do hino Sol, Lua, Estrela, uma canção,
constituída por letra e melodia. Os conceitos desenvolvidos por Tatit fazem uso da semiótica
para compreender partes específicas da canção em relação ao seu conteúdo. Em outros
termos, busca-se descobrir o que é e como se diz o conteúdo da canção. Foram elencados
alguns dos principais tópicos utilizados na análise.
Os tonemas referem-se às entonações de como se fala, não importando com quais
palavras especificamente. Tatit (2002) considera três possibilidades sonoras de finalização de
frase: ascendência, descendência e suspensão. Cada uma dessas terminações gera um tipo de
significação: descendência propõe o repouso, uma terminação asseverativa; suspensão e
ascendência geram a sensação de continuidade, de que ainda há algo a ser dito.
A tematização refere-se a canções caracterizadas pelo uso frequente de consoantes.
Essa presença de consoantes causa uma segmentação. Canções que possuem esta
característica tendem a ser mais ágeis, havendo mais probabilidade de envolvimento físico
(dança).
Já a passionalização é caracterizada pelo uso entoativo de vogais prolongadas, gerando
melodias mais lentas e contínuas. São característicos longos saltos intervalares, que por
exigirem esforço físico, demonstram o despontar da paixão, como se o sofrimento de emitir a
ota se efletisse o se ti e to vivido. á te s o de e iss o ais aguda e p olongada das
otas o vida o ouvi te pa a u a i aç o TáTIT, 2002, p. 23). O uso dessas características é
recorrente em canções com temáticas introspectivas de paixão e reduto amoroso.
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Extraído do hinário de Raimundo Irineu Serra, gravado em 14 de dezembro de 1999, na igreja Céu do Mapiá.
Disponível no site: <daime.org>.
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eu-lírico: Termo utilizado na área de literatura para indicar o pensamento e sentimentos daquele que fala na
poesia. É o eu de t o do texto.
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Os maracás tocados pelos participantes do ritual marcam o tempo musical. Além das
vozes e dos maracás, é comum a presença de um ou dois violões, um que em geral dobra a
melodia das vozes, e o outro podendo fazer variações.
Os conceitos desenvolvidos pelo professor Luiz Tatit (2002) colocam a canção em uma
grade analítica para possibilitar a observação de detalhes da letra e de sua junção com a
melodia, buscando compreender como é construído o significado da canção. Cada linha
representa um semitom e busca-se descrever a letra da maneira como ela é falada.
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Com exceção do primeiro verso da primeira estrofe, que funciona como uma espécie
de introdução, antecipando que o hino irá tratar dos elementos da natureza (Sol, Lua, Estrela),
os primeiros versos das estrofes seguintes contêm frases com características imperativas,
como se fossem ordens que o adepto da doutrina deve seguir (2ª estrofe: é só quem eu devo
amar / 3ª estrofe: A Virgem mãe mandou / 4ª estrofe: Trilhar este caminho). A linha melódica
que acompanha esse verso termina no terceiro grau da escala de dó maior. A entonação da
frase termina de forma descendente, o que revela uma frase assertiva, uma afirmação feita
pela pessoa que entoa a canção. Pode-se notar o prolongamento de vogais de diversas
palavras (Ex: So-ol / Estre-ela / ama-ar / mando-ou / cami-inho) o que é característico de uma
canção passional.
Es -e eu ma
la -ar
uma mesma palavra, como é o caso da palavra lição que apesar de ter uma vogal alongada (ã-
ão) é segmentada em duas notas diferentes, o que caracteriza uma tematização.
ar ça
a _______ tra
mim li ho todo
ão _______ a
pa _______ to
No terceiro verso de cada estrofe, é possível notar que sempre se trata de algo
distante e não por acaso se revela o maior salto na linha melódica da canção até então, o salto
ascendente de cinco semitons (de sol para dó) vai para a nota mais aguda (marcada com *)
utilizada na canção relacionando algo que está distante e que na letra está relacionado com
uma figura divina. Nessa nota dó, a mais aguda da canção, as palavras cantadas correspondem
a uma palavra que significa algo superior, uma divindade (1º estrofe: a luz / 2ª estrofe: é Deus
/ 3ª estrofe: lembrar [de Jesus Cristo] / 4ª estrofe: o Divino). A presença dessa nota mais aguda
nessa penúltima frase melódica caracteriza o que pode ser chamado de tensão de emissão que
demanda um esforço maior do cantor, já que é necessário um esforço maior do cantor para
e iti u a ota ais aguda. Essa te s o ge a u a a i ia de do i a te, ou seja, u a
sensação de querer voltar para a tônica, para o repouso, o que acontecerá na frase melódica
seguinte. Ainda na terceira frase, após esse salto ascendente que vai para a nota mais aguda,
há uma sequência descendente de notas sendo que o último salto dessa frase melódica ainda
é ascendente o que revela novamente que ainda há algo a ser dito. Nos terceiros versos, ao
mesmo tempo em que há o prolongamento de vogais das ultimas palavras (firmamento-o / cé-
éu / Cristo-o), há uma segmentação das palavras (fir-ma-men-too / es-tá / lem-brar / Je-sus /
Cris-to / Di-vi-no / es-ta) com saltos de até 5 semitons.
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fir es
a ma too -é tá
cééu
É men É no
brar* vi*
de no
Je es
Me Cris O no
Os terceiros versos contrastam com a quarta nota que é a resolução na tônica, que por
sua vez é onde aparece outro salto longo de cinco semitons (novamente, de sol para dó). A
letra desse verso complementa o que foi dito no terceiro, no qual foi gerada uma forte tensão
pela nota mais aguda, e completa o ensinamento que o participante do ritual deve guardar (1ª
estrofe: é só quem eu devo amar, 2ª estrofe: Aonde está minha esperança, 3ª estrofe E
esquecer a ilusão e 4ª estrofe: Jesus filho de Maria). A asseveração dessa frase é engrandecida
pela tensão gerada no terceiro verso. Assim, a conclusão do ciclo da canção encerra-se com a
esoluç o a t i a ep ese tado po ** , ou o o pode se ha ado, o la usi al da
melodia, revelando justamente essa sensação ao participante do ritual. Isso, de maneira
simbólica, pode estar relacionado com um dos ensinamentos propostos pela doutrina do
Santo Daime que é o retorno a si mesmo, que pode ser a sensação que tem o participante ao
cantar esse hino em um ritual.
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vo a- pe
é de aon es
quem ________ ta
lu Ma .
______
e-es i _____ Je de
cer fi
CONSIDERAÇÕES FINAIS
tematização. Esse fato ocorre, pois o hino existe para ser bailado e conta com a marcação
rítmica constante dos maracás, e também marca a parte cantada do hino. Essa ocorrência de
duas características opostas numa mesma canção também foi apontada por Tatit (2002) na
análise da canção Asa Branca, de Luiz Gonzaga. Apesar de essa canção demonstrar
características temáticas, reiterando a pulsação que acompanha o percurso do canto, de
maneira semelhante ao que ocorre na canção do Santo Daime, a canção Asa Branca também
demonstra um afastamento, que no caso trata de um exílio forçado que se converte em
tristeza solidão e sentimento de falta (TATIT, 2002, p. 152).
Utilizando a metodologia de Tatit para análise de canção popular, foi possível
encontrar diversos elementos que corroboraram para gerar o significado da canção. Para os
adeptos do Santo Daime, os hinos são recebidos prontos de um mundo espiritual, sem
possuírem interferência do intelecto. São centenas de hinos recebidos por participantes dos
rituais do Santo Daime, e essas canções detêm o conhecimento, que é transmitido por meio
delas. Uma análise mais profunda de um hino de grande relevância dentro do culto revelou
algumas recorrências emblemáticas na junção poesia e melodia. Uma análise sob a luz da
semiótica dos principais hinos poderia revelar se é possível encontrar padrões linguísticos
dentro do universo dos hinos do Santo Daime. Entretanto, para entender completamente os
hinos do Santo Daime, um método que também levasse em conta o contexto de execução
desses hinos, o ritual do Santo Daime, seria mais apropriado para uma compreensão mais
completa.
REFERÊNCIAS
Daime.org – Hinos da doutrina do Santo Daime. Disponível em: <http://www.daime.org/>.
Acesso em: mar. 2012.
FRÓES, Vera. História do Povo Juramidam: introdução à cultura do Santo Daime. Manaus:
SUFRAMA, 1986.
GREGORIM, Gilberto. Santo Daime: Doutrina de Juramidam: simbolismo. São Paulo: Ícone, 1991.
GUERRA, Denise. Os legados ancestrais na cultura afro-indígena brasileira e a implementação
da lei 11.645/08. Revista: África e Africanidades, ano 3, n. 9, maio 2010. Disponível em:
<http://www.africaeafricanidades.com.br/>. Acesso em: mar. 2012.
KASTRUP, Lucas. Receber não é compor: Música e emoção na Religião do Santo Daime. Rio de
Janeiro: Religião e Sociedade, 2007.
LABATE; PACHECO. Música Brasileira de Ayahuasca. Campinas: Mercado das Letras, 2009.
LABATE, Beatriz. A Reinvenção do uso da ayahuasca nos centros urbanos. Campinas, 2000.
TATIT, Luiz. O Cancionista: Composição de Canções no Brasil. 2. ed. São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo, 2002.