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Anais do VIII Fórum de Pesquisa Científica em Arte.

Curitiba: ArtEmbap, 2011. ISSN 1809-2616

ANÁLISE DO HINO SOL LUA ESTRELA, DE RAIMUNDO IRINEU SERRA,


DA DOUTRINA SANTO DAIME COM CONCEITOS DE LUIZ TATIT
Guilherme Leonardo Araujo1
guilhermeleonardoaraujo@gmail.com
Álvaro Carlini2
alvarocarliniufpr@gmail.com

Resumo: O culto Santo Daime surgiu no interior do Estado do Acre, Brasil, no início do século
XX. Nesse culto a transmissão do conhecimento ocorre mediante o recebimento de canções
(estrutura poética + estrutura musical rítmico-melódica), denominadas hinos. Para os adeptos
desse ritual, esses hinos contêm ensinamentos que são transmitidos por seres espirituais. O
processo e concepção dessas canções do Santo Daime são considerados diferentes de um
processo usual de composição, em que estariam presentes o raciocínio e o intelecto. O hino
Sol, Lua e Estrela, do Hinário do Cruzeiro de Raimundo Irineu Serra, fundador do Santo Daime,
foi analisado utilizando-se os conceitos de semiótica para análise de canção, desenvolvidos por
Luiz Tatit, visando encontrar os elementos que constroem o significado do hino. Foram
encontrados padrões que explicam o que Luiz Tatit denomina por eficácia da canção.

Palavras-chave: Santo Daime; Hino; Análise; Semiótica

Abstract: The Santo Daime cult emerged within the State of Acre, Brazil, in the early twentieth
century. In this cult the knowledge transmission occurs through the reception of songs (poetic
structure + rhythmic-melodic musical structure), known by adepts as hymns. To the adepts of
this ritual, these hymns contain teachings that are transmitted by spiritual beings. The process
and the conception of the Santo Daime hymns, is considered different from the usual songs
method of composition, which would present reasoning and intellect. The hymn Sol, Lua e
Estrela, from the Hymnal Cruzeiro by Raimundo Irineu Serra, founder of Santo Daime, was
analyzed using the semiotics concepts, developed by Luiz Tatit in order to find the elements
that construct the meaning of the hymn. Patterns were found that explain what Luiz Tatit calls
songs effectiveness.

Keywords: Santo Daime; Hymn; Analysis; Semiotics

1
Aluno do Programa de Pós-Graduação em Música da Universidade Federal do Paraná – Mestrado.
2
Professor adjunto do Departamento de Artes da Universidade Federal do Paraná (DeArtes UFPR). Coordenador do
Grupo de Pesquisa CNPq denominado Música Brasileira: estrutura e estilo, cultura e sociedade, na linha de pesquisa
intitulada Musicologia Histórica: entidades civis vinculadas à Música no Estado do Paraná no século XX.
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INTRODUÇÃO

A ayahuasca é uma bebida psicoativa consumida principalmente na América Latina. No


Brasil existem diferentes cultos que a utilizam em seus rituais como o Santo Daime, a
Barquinha, a União do Vegetal. Há ainda outros centros independentes que aliam o uso dessa
bebida a práticas meditativas orientais, os quais a pesquisadora Beatriz Labate (2000, p. 47)
denomina neo ayahuasqueiros. Além do consumo da bebida ayahuasca, outra característica
comum desses rituais é a utilização de música. No presente artigo, foi analisado um hino do
fundador do culto Santo Daime. Atualmente, além do Brasil, o culto Santo Daime possui
centros em outras partes do mundo, como no Japão, na Holanda e nos Estados Unidos.
Os primeiros rituais do Santo Daime surgiram no interior do Estado do Acre no início
do século XX. Foram organizados pelo maranhense Raimundo Irineu Serra (1892-1971), que
posteriormente ficou conhecido como mestre Irineu (LABATE, 2000). Raimundo Irineu Serra é
considerado figura central e líder espiritual do Santo Daime. Nos salões em que são realizados
os rituais, existem fotografias suas em locais de destaque, geralmente no centro do salão.
Antes de iniciar o desenvolvimento das diretrizes da doutrina do Santo Daime, Raimundo
Irineu Serra passou por um período de iniciação na floresta. Durante esse período deveria ficar
oito dias o e do s a axei a i sossa, o água e mais nada, também não poderia ver
ulhe , e u a saia de ulhe a il et os de dist ia (FRÓES, 1989, p. 33).
O desenvolvimento do ritual ocorreu pelo recebimento de canções denominadas
hinos, cujas letras são consideradas mensagens vindas de mundo espiritual ou mundo astral. A
bebida ayahuasca causa alterações na percepção temporal e espacial, incluindo sensações no
corpo, na visão e na audição das pessoas que a ingeriram.
Os hinos são entoados nos rituais do Santo Daime e suas letras contêm os
ensinamentos do culto, denominado também pelos adeptos como doutrina. Segundo Labate, o
Santo Daime pode ser considerado como religião musical, te do o e tado ue o o ju to
dos principais hinários já foi chamado por seus discípulos de o terceiro mandamento3
(LABATE, 2000, p. 97).
A concepção de um hino é considerada diferente da maneira como uma canção
geralmente é concebida. Usualmente, para referir-se ao ato de conceber uma canção utiliza-se
o termo composição. Nesse processo, o autor da canção utiliza intuição, imaginação e

3
Em referência aos mandamentos da Bíblia judaico-cristã, que possui duas divisões denominadas testamentos. O
velho testamento – antes de Jesus Cristo, formado pelos livros que vão do Genesis ao Malaquias; o novo testamento
– a partir de Jesus Cristo, vai do livro de Mateus ao livro do Apocalipse; o terceiro mandamento ao qual se referem
alguns adeptos do Santo Daime seria formado pelo conjunto de hinos recebidos.
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raciocínio baseado, em sua experiência prévia. Para os adeptos da doutrina do Santo Daime, a
concepção de um hino não obedece a um processo racional, mas sim, a um processo
espiritual, como mensagem que chega pronta de seres espirituais, do mundo astral. De acordo
com Kastrup (2007, p. 187):

receber um hino é absolutamente diferente de compor uma música, [...] para os


seguidores do Santo Daime, os hinos seriam dádivas de seres sobrenaturais que as
oferecem para os adeptos – este aso ha ados de apa elhos – que apenas
recebem pa a e t o a ta e o ju to o out os e os do g upo.

Assim, um hino do Santo Daime é considerado como entregue pronto, recebido do


mundo espiritual. Para os adeptos da doutrina, a pessoa que recebeu um hino atuou apenas
como aparelho receptor para que os espíritos transmitissem conhecimento, conforme afirma
Labate (2009, p. 37):

O recebimento de hinos é encarado como um fenômeno estritamente mediúnico


(embora, vale destacar, essa palavra não seja necessariamente empregada para
descrever o fenômeno). Trata-se, em essência, da habilidade de canalizar a energia
espiritual sob forma de música.

“egu do a auto a, o itual o siste o e toa oletivo destes hi os (LABATE, 2000, p.


34). Os participantes ficam em pé, realizando dança coletiva, denominada bailado, que
acompanha a música, e também entoam coletivamente as canções, que são iniciadas pelas
puxadoras4. Alguns hinos são cantados a cappella5; outros, no entanto, são cantados com
acompanhamento de instrumentos musicais, geralmente o violão e os maracás, podendo
também ser utilizados acordeom e flautas, entre outros. Em algumas igrejas do Santo Daime
há cadernos contendo as letras dos hinos, que são distribuídos para os participantes iniciantes
do ritual. A parte musical dos hinos não está escrita, os músicos instrumentistas, as puxadoras
e os demais participantes buscam memorizar tanto a parte musical quanto a letra dos hinos.
Dentro dessa lógica, parte-se do pressuposto de que os hinos são os principais
responsáveis pela comunicação doutrinária no Santo Daime. Frequentemente, nos cultos
evangélicos e católicos, o líder religioso posiciona-se frente ao público atuando como um
mediador entre Deus e os fiéis, falando, em geral, sobre interpretações da Bíblia. No Santo
Daime o conhecimento é transmitido através dos hinos e deve ser sentido e interpretado
individualmente pelos participantes da doutrina.

4
Puxadoras são mulheres que possuem a função de memorizar os hinos e iniciá-los nos rituais do Santo Daime
5
Canto sem acompanhamento de instrumentos musicais.
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Um hinário é um conjunto de hinos recebidos por determinada pessoa. O termo


também é utilizado para se referir ao ritual, em que será entoado um determinado conjunto
de hinos. Os principais eventos da doutrina do Santo Daime são conhecidos como Hinários
Oficiais. Segundo Gregorin (1991, p. 77) nesses eventos o primeiro hino entoado é o Sol, Lua,
Estrela, do hinário de Raimundo Irineu Serra.

METODOLOGIA

A metodologia escolhida para análise dos hinos do Santo Daime foi desenvolvida pelo
professor Luiz Tatit, da Universidade de São Paulo – USP. O método, voltado para análise de
canções populares, mostrou-se válido para análise do hino Sol, Lua, Estrela, uma canção,
constituída por letra e melodia. Os conceitos desenvolvidos por Tatit fazem uso da semiótica
para compreender partes específicas da canção em relação ao seu conteúdo. Em outros
termos, busca-se descobrir o que é e como se diz o conteúdo da canção. Foram elencados
alguns dos principais tópicos utilizados na análise.
Os tonemas referem-se às entonações de como se fala, não importando com quais
palavras especificamente. Tatit (2002) considera três possibilidades sonoras de finalização de
frase: ascendência, descendência e suspensão. Cada uma dessas terminações gera um tipo de
significação: descendência propõe o repouso, uma terminação asseverativa; suspensão e
ascendência geram a sensação de continuidade, de que ainda há algo a ser dito.
A tematização refere-se a canções caracterizadas pelo uso frequente de consoantes.
Essa presença de consoantes causa uma segmentação. Canções que possuem esta
característica tendem a ser mais ágeis, havendo mais probabilidade de envolvimento físico
(dança).
Já a passionalização é caracterizada pelo uso entoativo de vogais prolongadas, gerando
melodias mais lentas e contínuas. São característicos longos saltos intervalares, que por
exigirem esforço físico, demonstram o despontar da paixão, como se o sofrimento de emitir a
ota se efletisse o se ti e to vivido. á te s o de e iss o ais aguda e p olongada das
otas o vida o ouvi te pa a u a i aç o TáTIT, 2002, p. 23). O uso dessas características é
recorrente em canções com temáticas introspectivas de paixão e reduto amoroso.
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ANÁLISE DA CANÇÃO SOL, LUA, ESTRELA

Foram percebidas características que formam os significados implícitos da canção no


hino Sol, Lua, Estrela, de Raimundo Irineu Serra. A letra da canção aborda elementos da
natureza, equiparando-os a seres divinos. Conforme afirmou Fróes (1986, 101-102), este hino
exalta os elementos da natureza como seres divinos. É uma característica também presente
nos rituais indígenas, onde os astros são entidades que governam os destinos dos homens .
A letra da canção Sol, Lua, Estrela, extraída do Hinário do Cruzeiro de Raimundo Irineu
6
Serra :

Sol, Lua, Estrela – Hino nº 29

Sol, Lua, Estrela


A terra, o Vento e o Mar
É a luz do firmamento
É só quem eu devo amar

É só quem eu devo amar


Trago sempre na lembrança
É Deus que está no céu
Aonde está minha esperança

A Virgem Mãe mandou


Para mim esta lição
Me lembrar de Jesus Cristo
E esquecer a ilusão

Trilhar este caminho


Toda hora e todo dia
O Divino está no céu
Jesus Filho de Maria

A natureza está representada no primeiro verso da primeira estrofe como a


manifestação Divina, a Luz do Firmamento , e também aquela que se deve amar. Essa
louvação aos seres divinos é característica também encontrada na música indígena. Os povos
indígenas são politeístas e seus deuses encontram-se preferencialmente relacionados à
natureza (GUERRA, 2010). Também é comum os indígenas acreditarem que os seres humanos
convivem com dois mundos simultâneos, um visível e o outro invisível (GUERRA, 2010).

6
Extraído do hinário de Raimundo Irineu Serra, gravado em 14 de dezembro de 1999, na igreja Céu do Mapiá.
Disponível no site: <daime.org>.
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Os elementos da natu eza “ol, Lua, Est ela, a Te a o Ve to e o Ma da p i ei a


est ofe s o os sujeitos aos uais se at i ue as f ases a luz do fi a e to e s ue
eu devo a a . Os elementos da natureza citados nos dois primeiros versos da canção são ao
es o te po a luz do fi a e to” e ue se deve a a . á pa ti da elaç o sag ada ue
os fiéis têm com os hinos recebidos, o que se espera do fiel a partir desse hino é que ele passe
a amar e cultuar os seres da natureza.
A segunda estrofe, que começa com a repetição do último verso da primeira estrofe,
ova e te ue est o u i a do o eu , ou seja, a p i ei a pessoa, ue est a ta do.
7
O eu-lírico da canção faz as afirmações para si mesmo e para os demais membros
pa ti ipa tes do itual, de la a do ue est se p e se le a do de Deus o ve so t ago
se p e a le a ça . áfi a ue Deus ue est o u o te ei o ve so, se efe i do
ainda ao que disse sobre o caráter divino dos seres da natureza na primeira estrofe. No quarto
verso da segunda estrofe, afirma que é nesse algo superior que se manifesta na natureza, é
ao de est a i ha espe a ça , a ifesta do assi u a o fia ça a Divi dade e
questão.
Na terceira estrofe aparece a figura da Virgem Mãe ue e viou u a liç o pa a o eu-
lírico, pedindo que esse se lembre de Jesus, que representa no caso o que é sagrado, e
esqueça a ilusão. Também é recorrente nos hinos do Santo Daime a palavra ilusão, que se
refere a uma crença do ritual de que a vida material do plano físico deve ser deixada de lado
em detrimento de u a fo a de exist ia ais elevada , o plano espiritual. O último verso
da terceira estrofe também pode remeter ao mito fundador da doutrina do Santo Daime.
Mestre Irineu teria tido uma miração, ocorrida sob efeito da bebida ayahuasca, em que
recebeu da Virgem da Conceição, não apenas sua missão de iniciar e organizar os trabalhos do
Santo Daime, como também o primeiro hino, Lua Branca. O último verso da terceira estrofe
também pode estar fazendo essa referência, já que os hinos são complementares uns aos
outros e que as lições, recebidas por mestre Irineu, foram recebidas inicialmente pela Virgem
da Conceição (FRÓES, 1986, p. 35).
A quarta e última estrofe reafirma a lição recebida pelo eu-lírico: a de t ilha esse
a i ho , ou seja, a da se p e o a i ho do Santo Daim, sa e do ue o Divi o est o
u , e esse ep ese tado po Jesus ue filho de Ma ia. O te a dessa últi a est ofe é a
lição que o ouvinte da canção deve levar daquele hino, o que deve ser lembrado não apenas

7
eu-lírico: Termo utilizado na área de literatura para indicar o pensamento e sentimentos daquele que fala na
poesia. É o eu de t o do texto.
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du a te o itual, as toda ho a e todo dia o seu otidia o ap s te ailado e es utado a


canção.
Também é possível observar no texto desse hino uma característica que é recorrente
em diversos hinos do Santo Daime e também na poesia popular brasileira: o substantivo final
dos segundos e dos quartos versos de cada estrofe é rimado. (1ª estrofe: Mar – amar / 2ª
estrofe: lembrança - esperança / 3ª estrofe: lição – ilusão / 4ª estrofe: dia – Maria). Fróes
(1986, p. 97 afi a ue ada f ase el di a o espo de a u ve so da est ofe”, sendo que
cada verso é cantado duas vezes com o intuito de facilitar o aprendizado e a memorização do
hino.
Esse fato pode estar relacionado com a origem indígena do ritual, uma vez que as
a tigas da ayahuasca dos í dios possue essa a a te ísti a epetitiva a t as , ia do o
clima psicológico favorável para a comunicação com o astral (FRÓES, 1986, p. 99).
Fróes (1986, p. 102) apresenta a seguinte partitura com a melodia do hino Sol, Lua,
Estrela:

Sol, Lua, Estrela - Raimundo Irineu Serra

So-ol, lu-u a es tre - e la a ter ra, o ven to-e-

o ma-ar é a luz do fir ma - men to é só

quem eu de voa mar

Os maracás tocados pelos participantes do ritual marcam o tempo musical. Além das
vozes e dos maracás, é comum a presença de um ou dois violões, um que em geral dobra a
melodia das vozes, e o outro podendo fazer variações.
Os conceitos desenvolvidos pelo professor Luiz Tatit (2002) colocam a canção em uma
grade analítica para possibilitar a observação de detalhes da letra e de sua junção com a
melodia, buscando compreender como é construído o significado da canção. Cada linha
representa um semitom e busca-se descrever a letra da maneira como ela é falada.
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Com exceção do primeiro verso da primeira estrofe, que funciona como uma espécie
de introdução, antecipando que o hino irá tratar dos elementos da natureza (Sol, Lua, Estrela),
os primeiros versos das estrofes seguintes contêm frases com características imperativas,
como se fossem ordens que o adepto da doutrina deve seguir (2ª estrofe: é só quem eu devo
amar / 3ª estrofe: A Virgem mãe mandou / 4ª estrofe: Trilhar este caminho). A linha melódica
que acompanha esse verso termina no terceiro grau da escala de dó maior. A entonação da
frase termina de forma descendente, o que revela uma frase assertiva, uma afirmação feita
pela pessoa que entoa a canção. Pode-se notar o prolongamento de vogais de diversas
palavras (Ex: So-ol / Estre-ela / ama-ar / mando-ou / cami-inho) o que é característico de uma
canção passional.

1º verso 1ª estrofe: 1º verso 2ª estrofe:

So-ol,Lu a, tre ______ É só quem de-voa

Es -e eu ma
la -ar

1º Verso 3ª estrofe 1º verso 4ª estrofe

A Virgem man Trilhar es ca

mãe do ____ se mi-i


-ou nho

Novamente, com exceção da primeira estrofe, o segundo verso de cada estrofe


complementa a informação do primeiro, dizendo que o participante deve lembrar-se do que
está sendo ensinado na segunda e na terceira estrofe, caracterizado pelo aparecimento do
sujeito eu 2ª est ofe: (eu) Trago sempre na lembrança e 3ª estrofe: Para mim esta lição),
traz um ensinamento para quem está cantando o hino, o que dá a naturalidade para aquele
que está cantando a canção, que é a figurativização que fala Tatit. No caso da quarta estrofe, a
complementação do primeiro verso vem na explicação de quando se deve lembrar da doutrina
(4ª estrofe: toda hora e todo dia). A linha melódica dos segundos versos de cada estrofe
termina no quinto grau e revela serem tonemas descendentes que dão a sensação de
afirmação contundente ou asseverativa. Nos segundos versos encontram-se características de
segmentação. A letra encontra-se segmentada e há saltos de dois e três semitons dentro de
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uma mesma palavra, como é o caso da palavra lição que apesar de ter uma vogal alongada (ã-
ão) é segmentada em duas notas diferentes, o que caracteriza uma tematização.

2º Verso 1ª Estrofe 2º Verso 2ª estrofe

a to-e-o _______ sem na lem

terr o ven ma ____ go pre bran

ar ça
a _______ tra

3º Verso 2ª Estrofe 4º Verso 2ª Estrofe

mim li ho todo

ra essa çã _______ da ra-e di .

ão _______ a
pa _______ to

No terceiro verso de cada estrofe, é possível notar que sempre se trata de algo
distante e não por acaso se revela o maior salto na linha melódica da canção até então, o salto
ascendente de cinco semitons (de sol para dó) vai para a nota mais aguda (marcada com *)
utilizada na canção relacionando algo que está distante e que na letra está relacionado com
uma figura divina. Nessa nota dó, a mais aguda da canção, as palavras cantadas correspondem
a uma palavra que significa algo superior, uma divindade (1º estrofe: a luz / 2ª estrofe: é Deus
/ 3ª estrofe: lembrar [de Jesus Cristo] / 4ª estrofe: o Divino). A presença dessa nota mais aguda
nessa penúltima frase melódica caracteriza o que pode ser chamado de tensão de emissão que
demanda um esforço maior do cantor, já que é necessário um esforço maior do cantor para
e iti u a ota ais aguda. Essa te s o ge a u a a i ia de do i a te, ou seja, u a
sensação de querer voltar para a tônica, para o repouso, o que acontecerá na frase melódica
seguinte. Ainda na terceira frase, após esse salto ascendente que vai para a nota mais aguda,
há uma sequência descendente de notas sendo que o último salto dessa frase melódica ainda
é ascendente o que revela novamente que ainda há algo a ser dito. Nos terceiros versos, ao
mesmo tempo em que há o prolongamento de vogais das ultimas palavras (firmamento-o / cé-
éu / Cristo-o), há uma segmentação das palavras (fir-ma-men-too / es-tá / lem-brar / Je-sus /
Cris-to / Di-vi-no / es-ta) com saltos de até 5 semitons.
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3º Verso 1ª Estrofe 3º Verso 4ª Estrofe


Luz* Deus*
do que

fir es

a ma too -é tá
cééu

É men É no

3º Verso 3ª Estrofe: 3º Verso 4ª Estrofe

brar* vi*
de no

Je es

lem sus too Di ta cé-éu

Me Cris O no

Os terceiros versos contrastam com a quarta nota que é a resolução na tônica, que por
sua vez é onde aparece outro salto longo de cinco semitons (novamente, de sol para dó). A
letra desse verso complementa o que foi dito no terceiro, no qual foi gerada uma forte tensão
pela nota mais aguda, e completa o ensinamento que o participante do ritual deve guardar (1ª
estrofe: é só quem eu devo amar, 2ª estrofe: Aonde está minha esperança, 3ª estrofe E
esquecer a ilusão e 4ª estrofe: Jesus filho de Maria). A asseveração dessa frase é engrandecida
pela tensão gerada no terceiro verso. Assim, a conclusão do ciclo da canção encerra-se com a
esoluç o a t i a ep ese tado po ** , ou o o pode se ha ado, o la usi al da
melodia, revelando justamente essa sensação ao participante do ritual. Isso, de maneira
simbólica, pode estar relacionado com um dos ensinamentos propostos pela doutrina do
Santo Daime que é o retorno a si mesmo, que pode ser a sensação que tem o participante ao
cantar esse hino em um ritual.
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4º Verso 1ª Estrofe: 4º Verso 2ª Estrofe:

vo a- pe

é de aon es

só eu ma-ar**_ des minha rança**

quem ________ ta

4º Verso 3ª Estrofe: 4º Verso 4ª Estrofe:

lu Ma .

______
e-es i _____ Je de

que da são** sus lho ria**

cer fi

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Apesar de se tratarem de características opostas, no decorrer das análises, pode-se


observar que a canção apresenta características tanto passionais quanto temáticas. Em
diversos momentos, há um prolongamento de vogais, o que para Tatit (2002) é uma
característica da passionalização, que nesse caso simboliza um afastamento do participante do
ritual com relação ao divino, que é superior e está acima de todos. Entretanto, pode-se
verificar que os versos apresentam traços de segmentação, o que caracteriza uma
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tematização. Esse fato ocorre, pois o hino existe para ser bailado e conta com a marcação
rítmica constante dos maracás, e também marca a parte cantada do hino. Essa ocorrência de
duas características opostas numa mesma canção também foi apontada por Tatit (2002) na
análise da canção Asa Branca, de Luiz Gonzaga. Apesar de essa canção demonstrar
características temáticas, reiterando a pulsação que acompanha o percurso do canto, de
maneira semelhante ao que ocorre na canção do Santo Daime, a canção Asa Branca também
demonstra um afastamento, que no caso trata de um exílio forçado que se converte em
tristeza solidão e sentimento de falta (TATIT, 2002, p. 152).
Utilizando a metodologia de Tatit para análise de canção popular, foi possível
encontrar diversos elementos que corroboraram para gerar o significado da canção. Para os
adeptos do Santo Daime, os hinos são recebidos prontos de um mundo espiritual, sem
possuírem interferência do intelecto. São centenas de hinos recebidos por participantes dos
rituais do Santo Daime, e essas canções detêm o conhecimento, que é transmitido por meio
delas. Uma análise mais profunda de um hino de grande relevância dentro do culto revelou
algumas recorrências emblemáticas na junção poesia e melodia. Uma análise sob a luz da
semiótica dos principais hinos poderia revelar se é possível encontrar padrões linguísticos
dentro do universo dos hinos do Santo Daime. Entretanto, para entender completamente os
hinos do Santo Daime, um método que também levasse em conta o contexto de execução
desses hinos, o ritual do Santo Daime, seria mais apropriado para uma compreensão mais
completa.

REFERÊNCIAS
Daime.org – Hinos da doutrina do Santo Daime. Disponível em: <http://www.daime.org/>.
Acesso em: mar. 2012.
FRÓES, Vera. História do Povo Juramidam: introdução à cultura do Santo Daime. Manaus:
SUFRAMA, 1986.
GREGORIM, Gilberto. Santo Daime: Doutrina de Juramidam: simbolismo. São Paulo: Ícone, 1991.
GUERRA, Denise. Os legados ancestrais na cultura afro-indígena brasileira e a implementação
da lei 11.645/08. Revista: África e Africanidades, ano 3, n. 9, maio 2010. Disponível em:
<http://www.africaeafricanidades.com.br/>. Acesso em: mar. 2012.
KASTRUP, Lucas. Receber não é compor: Música e emoção na Religião do Santo Daime. Rio de
Janeiro: Religião e Sociedade, 2007.
LABATE; PACHECO. Música Brasileira de Ayahuasca. Campinas: Mercado das Letras, 2009.
LABATE, Beatriz. A Reinvenção do uso da ayahuasca nos centros urbanos. Campinas, 2000.
TATIT, Luiz. O Cancionista: Composição de Canções no Brasil. 2. ed. São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo, 2002.

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