Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
V. E. Schwab A Vida Invisível de Addie LaRue
V. E. Schwab A Vida Invisível de Addie LaRue
ISBN 978-989-9027-51-0
CDU 821.111(73)-312.9”20”
para
Minotauro
Junho de 2021
Direitos reservados para todos os países de língua portuguesa à exceção do Brasil por
MINOTAURO, uma chancela de Edições Almedina, S.A.
LEAP CENTER – Espaço Amoreiras - Rua D. João V, n.º 24, 1.03 1250-091 Lisboa – Portugal
e-mail: editoras@grupoalmedina.net
Esta obra está protegida pela lei. Não pode ser reproduzida, no todo ou em parte, qualquer que seja o modo utilizado, incluindo
fotocópia e xerocópia, sem prévia autorização do Editor. Qualquer transgressão à lei dos Direitos de Autor será passível de
procedimento judicial.
Índice
Capa
Frontespício
Ficha Técnica
Primeira Parte Os Deuses que Respondem Depois de Escurecer
I
II
III
IV
V
VI
VII
VIII
IX
X
XI
XII
XIII
XIV
XV
XVI
XVII
Segunda Parte A Parte Mais Negra da Noite
I
II
III
IV
V
VI
VII
VIII
IX
X
XI
XII
XIII
XIV
Terceira Parte Trezentos Anos... E Três Palavras
I
II
III
IV
V
VI
VII
VII
IX
X
XI
XII
XIII
Quarta Parte O Homem que Não se Molhava à Chuva
I
II
III
IV
V
VI
VII
VIII
IX
X
XI
XII
XIII
XIV
XV
XVI
XVII
XVIII
XIX
Quinta Parte A Sombra que Sorria e a Rapariga que Devolvia o Sorriso
I
II
III
IV
V
VI
VII
VIII
IX
X
XI
XII
XIII
XIV
XV
Sexta Parte Não Faças de Conta que Isto é Amor
I
II
III
IV
V
VI
VII
VIII
IX
X
XI
XX
XIII
XIV
XV
XVI
XVII
XVIII
XIX
XX
Sétima Parte Lembro-me de Ti
I
II
III
Agradecimentos
Para a Patricia…
Por nunca se esquecer.
Os velhos deuses podem ser poderosos, mas não são nem clementes nem compassivos. São
volúveis, inconstantes como o luar sobre a água ou as sombras numa tempestade. Se insistires
em invocá-los, atenta bem nisto: tens de ter cuidado com o que pedires, prontificando-te a pagar
o preço. E, por mais desesperada ou atribulada que seja a situação, nunca rezes aos deuses que
respondem depois de escurecer.
Estele Magritte
1642–1719
Villon-sur-Sarthe, França
29 de julho de 1714
O dia nasce como quem desfaz uma gema de ovo, derramando uma luz amarela pelos
campos.
Adeline esgueira-se para fora de casa antes de ser madrugada, não tendo chegado a dormir.
Agora corre esbaforida pela erva inculta por trás da horta, com as saias a absorverem o orvalho,
deixa-se afundar sobre o seu peso, com o seu lápis preferido cravado numa das mãos. Adeline
não quer abdicar dele, mas está a ficar sem tempo e sem objetos para oferecer.
Espeta a ponta do lápis no solo húmido do campo.
— Ajuda-me — sussurra para a relva, com os caules iluminados. — Sei que estás aí. Sei que
estás a ouvir. Por favor. Por favor.
Mas a relva é apenas relva, e o vento é apenas vento, e nenhum deles responde, mesmo
quando encosta a testa ao solo e soluça.
Não há nada de errado com Roger.
Mas também não há nada que seja certo. Tem a pele cerosa, o cabelo louro começa a
escassear, a sua voz é como uma espiral de vento. Quando a sua mão se pousa no seu braço, o
toque é fraco, e, quando inclina a cabeça na direção da sua, o hálito é bafiento.
E Adeline? É um legume que se deixou demasiado tempo na horta, a casca endureceu, o
interior é lenhoso, ficou no solo por decisão própria, para apenas ser desenterrada e transformada
numa refeição.
— Não quero casar com ele — diz, com os dedos emaranhados na terra cheia de ervas.
— Adeline! — chama a mãe, como se fosse um dos animais, tresmalhado. Levanta-se de
forma arrastada, esvaziada pela revolta e pela mágoa, e, quando entra em casa, a mãe não vê
mais do que a sujidade acumulada nas mãos e manda a filha ir lavar-se. Adeline esfrega a terra
que tem sob as unhas, com as cerdas da escova a morderem-lhe os dedos, enquanto a mãe a
repreende.
— O que irá o teu marido pensar?
Marido.
Uma palavra como um marco, toda ela peso, sem calor.
A mãe censura.
— Não serás tão irrequieta quando tiveres de tomar conta de uma criança.
Adeline volta a pensar em Isabelle, duas crianças pequenas agarradas às saias, uma terceira
num cesto junto à lareira. Costumavam sonhar juntas, mas, aparentemente, envelheceu dez anos
em dois. Está sempre cansada e tem covas nos pontos em que outrora as faces estavam
vermelhas de rir.
— Vai ser bom para ti — diz a mãe — ser mulher de alguém.
O dia passa como uma sentença. O sol cai como uma foice.
Adeline quase consegue ouvir o assobio da lâmina enquanto a mãe lhe entrança o cabelo
numa coroa, ornando-o com flores em vez de joias. O seu vestido é simples e leve, mas bem
podia ser feito de malha de aço, de tal forma lhe pesa.
Quer gritar.
Em vez disso, leva a mão ao anel de madeira pendurado ao pescoço, como que para ganhar
equilíbrio.
— Tens de tirar isso antes da cerimónia — ordena a mãe, e Adeline acena com a cabeça,
apesar de os dedos se apertarem com mais força ainda à volta dele.
O pai entra vindo do celeiro, coberto de lascas de madeira e a cheirar a seiva. Tosse, um
ligeiro estertor, como sementes soltas, dentro do peito. Está ali há um ano, essa tosse, mas não as
deixa falar disso.
— Estás quase pronta? — pergunta.
Que pergunta tão tola.
A mãe fala do jantar de copo d’água como se já tivesse passado. Adeline olha pela janela,
para o sol a afundar-se, e não ouve as palavras, mas consegue ouvir a luz na voz da mãe, a
justificação que ela contém. Até nos olhos do pai existe um certo alívio. Afilha tentou fazer o seu
próprio caminho, mas agora as coisas estão a ser corrigidas, uma vida caprichosa arrastada de
volta ao seu rumo, empurrada para o caminho certo.
A casa está demasiado quente, o ar pesado e imóvel, e Adeline não consegue respirar.
Finalmente, o sino da igreja dobra, o mesmo tom baixo com que repica, nos funerais, e ela
obriga-se a levantar-se.
O pai toca-lhe no braço.
O rosto é pesaroso, mas a mão é firme.
— Vais acabar por amar o teu marido — diz, mas as palavras são claramente mais desejo do
que promessa.
— Serás uma boa esposa — diz a mãe, e as suas são mais uma ordem do que um desejo.
E então Estele aparece à porta, vestida como se estivesse de luto. E porque não haveria de
estar? Esta mulher que lhe ensinou o que eram sonhos empolgantes e deuses caprichosos, que
encheu a cabeça de Adeline com pensamentos de liberdade, que soprou sobre as cinzas da
esperança e a deixou acreditar que a vida podia ser sua.
A luz tornou-se aquosa e clara por detrás da cabeça cinzenta de Estele. Ainda há tempo, diz
Adeline para si mesma, mas este começa a escapar, agora mais depressa, a cada respiração.
Tempo — quantas vezes ouviu descreverem-no como areia dentro de uma ampulheta, firme,
constante. Mas é mentira, porque o consegue sentir acelerar, esmagar-se contra ela.
O pânico martela como um tambor dentro do seu peito, e, fora dele, o caminho é uma única
linha negra, que se alonga a direito e estreito em direção à praça da aldeia. Do outro lado, a igreja
aguarda, pálida e rígida como um túmulo, e sabe que, se entrar, não irá sair.
O seu futuro passará a correr, tal como o seu passado, mas pior, porque não haverá liberdade,
apenas uma cama de casal e um leito de morte e talvez um berço pelo meio, e quando morrer,
será como se nunca tivesse vivido.
Não haverá Paris.
Não haverá amante de olhos verdes.
Não haverá viagens de barco para terras longínquas.
Não haverá céus estrangeiros.
Não haverá vida para lá daquela aldeia.
Não haverá vida, de todo, a menos que...
Adeline liberta-se da mão do pai, arrasta-se até parar no caminho.
A mãe vira-se para olhar para ela, pois poderá desatar a correr, que é exatamente o que quer
fazer, mas sabe que não pode.
— Fiz um presente para o meu marido — diz Adeline, com a cabeça a andar à volta. —
Deixei-o em casa.
A mãe suaviza, de aprovação.
O pai endurece, de desconfiança.
Os olhos de Estele estreitam-se, de compreensão.
— Vou só buscá-lo — continua, já a voltar para trás.
— Vou contigo — diz o pai, e o seu coração tem um baque, e os seus dedos contorcem-se,
mas é Estele quem estende um braço para o deter.
— Jean — diz no seu jeito dissimulado —, a Adeline não pode ser tua filha e mulher dele. É
uma mulher feita, não uma criança de que se tenha de tomar conta.
Ele procura os olhos da filha e diz:
— Não demores.
Adeline já desatou a correr.
Fazendo o caminho de volta e passando pela porta e entrando em casa e percorrendo-a, até ao
outro lado, à janela aberta e ao campo e à linha distante de árvores. O bosque como sentinela na
orla leste da aldeia, do lado contrário ao sol. O bosque, já mergulhado na sombra, embora ela
saiba que ainda há luz, ainda há tempo.
— Adeline? — chama o pai, mas ela não olha para trás.
Ao invés, esgueira-se pela janela, com a madeira a repuxar-lhe o vestido de noiva enquanto se
esgueira para fora e corre.
— Adeline? Adeline!
As vozes chamam por ela, mas alongam-se cada vez mais a cada passo, e em breve está do
outro lado do campo e dentro do bosque, transpondo a linha de árvores enquanto se afunda com
os joelhos na terra densa de verão.
Agarra no anel de madeira, sente a sua perda antes de passar o fio de cabedal por cima da
cabeça. Adeline não o quer sacrificar, mas já não tem mais dádivas, deu à terra todos os objetos
de que podia prescindir, e nenhum dos deuses respondeu. Agora o anel é tudo o que tem, e a luz
é escassa, e a aldeia chama-a, e está desesperada para fugir.
— Por favor — sussurra, com a voz a desfazer-se sobre a palavra enquanto enfia o anel na
terra musguenta. — Faço qualquer coisa.
As árvores murmuram por cima da sua cabeça e imobilizam-se, como se também estivessem
à espera, e Adeline reza, a todos os deuses dos bosques de Villon, a qualquer um e a qualquer
coisa que a possa ouvir. Aquela não pode ser a sua vida. Aquilo não pode ser tudo o que existe.
— Responde-me — implora enquanto a humidade se infiltra no seu vestido de noiva.
Fecha os olhos com força e tenta ouvir, mas o único som é a sua própria voz no vento e o seu
nome, ecoando aos seus ouvidos como o bater de um coração.
— Adeline...
— Adeline...
— Adeline...
Inclina a cabeça até ao chão, agarra num punhado de terra escura e grita:
— Responde-me!
O silêncio é escárnio.
Viveu ali a vida inteira e nunca ouviu o bosque tão silencioso. O frio instala-se nela, e não
sabe se vem da floresta ou dos seus próprios ossos, a desistirem do derradeiro combate. Os seus
olhos ainda estão bem fechados, e talvez seja por isso que não repara que o sol se afundou por
detrás da aldeia, atrás dela, que o crepúsculo deu lugar à escuridão.
Adeline continua a rezar e não repara em nada disso.
Villon-sur-Sarthe, França
29 de julho de 1714
Adeline treme.
Olha para baixo e vê que está sentada numa cama de folhas molhadas.
Um segundo atrás, estava a cair — apenas por um segundo, nem o tempo que se demora a
inspirar —, mas, aparentemente, o tempo deu um salto para a frente. O estranho desapareceu, e
também os últimos sedimentos de luz. O céu de verão, onde aparece, sob as árvores em dossel, é
suavizado num veludo negro, pontuado apenas por uma lua baixa.
Adeline levanta-se, analisando as mãos, olhando para lá da sujidade, em busca de algum sinal
de transformação.
Mas sente-se... na mesma. Um pouco tonta, talvez, como se se tivesse levantado demasiado
depressa ou bebido demasiado vinho de estômago vazio, mas, passado um instante, até essa
instabilidade passou e ficou a sentir-se como se o mundo se tivesse inclinado, mas não caído, e
depois firmado e depois reequilibrado, devolvido à mesma rotina de sempre.
Lambe os lábios, esperando sentir o sabor a sangue, mas a marca deixada pelos dentes do
estranho desapareceu, arrastada com todos os outros vestígios dele.
Como se sabe que um feitiço resultou? Pediu tempo, vida — terá de esperar um ano ou três
ou cinco para ver se a idade deixa alguma marca? Ou de pegar numa faca e de cortar a pele, para
ver se e como sara? Mas não, pediu vida, não uma vida incólume, e, em boa verdade, Adeline
tem receio de testar, receio de descobrir a sua pele ainda demasiado flexível, receio de saber que
a promessa da sombra foi um sonho ou, pior, uma mentira.
Mas sabe uma coisa — quer o pacto tenha sido real ou não, irá ignorar o repicar dos sinos na
igreja, não casará com Roger. Desafiará a família. Abandonará Villon, se for preciso. Sabe que
agora fará o que for preciso, porque o desejou, na escuridão, e, de uma forma ou de outra, deste
momento em diante, a sua vida será sua.
O pensamento é empolgante. Aterrador, mas empolgante, enquanto sai da floresta.
Vai a meio do campo quando se apercebe de quão silenciosa a aldeia está.
De quão escura.
As candeias festivas foram apagadas, os sinos pararam de dobrar, não há vozes a chamarem-
na.
Adeline faz o caminho até casa, com o terror surdo a crescer com um pouco mais de
intensidade a cada passo. Quando lá chega, a cabeça zumbe de preocupação. A porta da frente
está aberta, derramando luz pelo pátio, e ouve a mãe cantarolar na cozinha, o pai a cortar madeira
nas traseiras da casa. Uma noite normal, que passou a estar errada pelo facto de não dever ser
uma noite normal.
— Maman! — diz, entrando.
Uma travessa cai em estilhaços no chão, e a mãe grita, não de dor, mas de surpresa, com o
rosto num esgar.
— O que está aqui a fazer? — pergunta, e ali está a irritação que Addie esperava. Ali está a
consternação.
— Desculpa — começa. — Sei que devem estar zangados, mas não consegui...
— Quem é a menina?
As palavras são um silvo, e então percebe, o olhar temeroso no rosto da mãe não é a irritação
de uma mãe escarnecida, mas o de uma mulher assustada.
— Maman...
A mãe retrai-se perante a própria palavra.
— Saia da minha casa.
Mas Adeline atravessa a divisão, agarra-a pelos ombros.
— Não sejas tonta. Sou eu, a A...
Ia dizer Adeline.
Na verdade, tenta. Três sílabas não deveriam ser como trepar a uma montanha, mas está
ofegante ao fim da primeira, incapaz de dizer a segunda. O ar transforma-se em pedra dentro da
garganta, e fica sufocada, muda. Tenta de novo, desta vez experimentando Addie e depois,
finalmente, o apelido, LaRue, mas não vale a pena. As palavras chegam a um impasse entre a
mente e a língua. E, no entanto, no segundo em que inspira para dizer outra palavra, qualquer
outra palavra, esta aparece, os pulmões enchem-se, e a garganta solta-se.
— Largue-me — pede a mãe.
— O que se passa? — pergunta a voz, baixa e profunda. A voz que tranquilizava Adeline nas
noites em que estava doente, que lhe contava histórias enquanto se sentava no chão da oficina.
O pai está de pé, à porta, com os braços cheios de lenha.
— Papa — diz ela, e ele recua, como se a palavra fosse acutilante.
— A mulher é doida — soluça a mãe. — Ou então foi amaldiçoada.
— Sou a vossa filha — volta a dizer.
O pai faz um trejeito.
— Não temos filhos.
Aquelas palavras, uma lâmina mais incisiva. Um corte mais profundo.
— Não — diz Adeline, abanando a cabeça perante aquele absurdo. Tem 23 anos, viveu todos
os dias e todas as noites sob aquele teto. — Vocês conhecem-me. — Como podem não a
conhecer? A semelhança entre eles sempre foi acentuada, os olhos do pai, o queixo da mãe, o
sobrolho de um e os lábios do outro, cada feição copiada da sua fonte.
Também o veem, têm de ver.
Mas, para eles, é apenas um sinal de artes mágicas.
A mãe persigna-se, e as mãos do pai fecham-se à volta do seu corpo, e Adeline quer
mergulhar na força do seu abraço, mas não há afabilidade nele enquanto a arrasta até à porta.
— Não — suplica.
A mãe agora está a chorar, com uma mão na boca e a outra a agarrar na cruz de madeira à
volta do pescoço, enquanto chama à própria filha demónio, monstro, louca, e o pai não diz nada,
limita-se a apertar-lhe o braço com mais força enquanto a empurra para fora de casa.
— Vá-se embora — diz, as palavras quase como uma súplica.
A tristeza varre-lhe o rosto, mas não é do tipo que decorre do conhecimento. Não, é a tristeza
reservada às coisas perdidas, uma árvore arrancada por uma tempestade, um cavalo que ficou
coxo, uma lasca um segundo antes de ser talhada.
— Por favor — suplica. — Papa...
O seu rosto endurece enquanto a obriga a sair para a escuridão e fecha a porta com estrondo.
O ferrolho é corrido. Adeline vacila para trás, a tremer de choque e de horror. E depois vira
costas e corre.
— Estele.
O nome começa como uma oração, dita em voz baixa, para si, e cresce até se tornar um grito
quando Adeline se aproxima da casa da mulher.
— Estele!
Acende-se uma candeia lá dentro, e, quando chega à orla da luz, a idosa encontra-se à porta, à
espera de quem a chamou.
— És uma estranha ou um espírito? — pergunta Estele cautelosamente.
— Não sou nem um nem outro — diz Adeline, embora saiba a impressão que deve transmitir.
O vestido esfarrapado, o cabelo desgrenhado, as palavras a jorrarem como feitiçaria, na soleira
da porta.
— Sou de carne e osso e humana e conheci-te toda a minha vida. Fazes amuletos com a forma
de crianças para que passem bem o inverno. Achas que os pêssegos são os frutos mais doces e
que as paredes das igrejas são demasiado espessas para que as orações as consigam atravessar e
queres ser enterrada, não debaixo de uma laje, mas num terreno à sombra de uma árvore
frondosa.
Algo lampeja no rosto da idosa, e Adeline sustém a respiração, esperando que seja
reconhecimento. Mas é demasiado breve.
— És um espírito inteligente — diz Estele —, mas não passarás por esta terra.
— Não sou um espírito! — grita Adeline, entrando de rompante para a luz da porta da idosa.
— Explicaste-me tudo sobre os velhos deuses e sobre as formas de os invocar, mas cometi um
erro. Eles não respondiam, e o sol estava a pôr-se muito depressa. — Envolve-lhe as costelas
com os braços, com toda a força, sem conseguir parar de tremer. — Rezei demasiado tarde, e
alguma coisa respondeu, e agora está tudo mal.
— Rapariga tola — ralha Estele, como faria habitualmente. Como se a conhecesse.
— O que faço agora? Como posso remediar isto?
Mas a idosa limita-se a abanar a cabeça.
— A escuridão joga o seu próprio jogo — diz. — Cria as suas próprias regras — continua. —
E tu perdeste.
E com essas palavras, Estele volta para dentro de casa.
— Espera! — grita Adeline, enquanto a velha fecha a porta.
O ferrolho é corrido.
Adeline urra contra a madeira, soluçando até as pernas cederem e cair de joelhos no degrau
frio de pedra, com um dos punhos ainda a bater na porta.
E depois, subitamente, o ferrolho é puxado.
A porta abre-se, e Estele aparece, por cima dela.
— O que é isto? — pergunta, estudando a rapariga dobrada na soleira.
A velha olha para ela como se nunca se tivessem cruzado. Os momentos anteriores apagados
por um instante e por uma porta fechada.
O seu olhar enrugado percorre o vestido de noiva manchado, a cabeleira desgrenhada, a
sujidade sob as unhas, mas não há reconhecimento no seu rosto, apenas uma curiosidade
reservada.
— És um espírito? Ou uma estranha?
Adeline semicerra os olhos. O que está a acontecer? O seu nome continua a ser uma pedra
profundamente alojada, e, quando foi um espírito, foi expulsa, por isso engole em seco, com
força, e responde.
— Uma estranha. — As lágrimas rolam pelo rosto de Adeline. — Por favor — consegue
dizer. — Não tenho outro lugar para onde ir.
A idosa olha para ela por algum tempo e depois acena com a cabeça.
— Espera aqui — diz, voltando a entrar em casa, e Adeline nunca saberá o que Estele ia
fazer, porque a porta se fecha e permanece fechada, e ela fica ajoelhada no chão, a tremer, mais
de choque do que de frio.
Não sabe quanto tempo ali fica, mas as pernas estão rígidas quando as obriga a suportar o seu
peso. Levanta-se e caminha para lá da casa da idosa, até à linha de árvores que surge adiante,
para lá dessa fileira de vigilância, para a escuridão apinhada.
— Mostra-te! — grita.
Mas ouve-se apenas um restolhar de penas, um crepitar de folhas, o rumorejar de uma floresta
perturbada no seu sono. Invoca o seu rosto, os olhos verdes, os caracóis negros, tenta que a
escuridão ganhe de novo forma, mas os instantes passam, e continua sozinha.
Não quero pertencer a ninguém.
Adeline adentra-se mais profundamente na floresta. Trata-se de uma extensão mais selvagem
do bosque, o solo como um emaranhado de espinheiros e silvas. Agarra-se às suas pernas nuas,
mas ela não para, pelo menos até as árvores se terem fechado à sua volta, com os ramos a toldar
a lua, lá em cima.
— Invoco-te! — grita.
Não sou um génio qualquer, às ordens dos teus caprichos.
Um ramo baixo, meio enterrado no solo da floresta, ergue-se ape- nas o suficiente para lhe
prender os pés, e cai estatelada, com os joelhos contra a terra irregular e as mãos a rasgarem o
solo cheio de ervas.
Por favor, dou qualquer coisa.
Então as lágrimas surgem, súbitas e agitadas. Tola. Tola. Tola. Bate com os punhos contra o
chão.
É um truque perverso, pensa, um sonho atroz, mas vai passar.
É essa a natureza dos sonhos. Não duram.
— Acorda — sussurra no escuro.
Acorda.
Adeline enrosca-se no solo da floresta, fecha os olhos e vê o rosto banhado de lágrimas da
mãe, a tristeza oca do pai, o olhar cansado de Estele. Vê a escuridão, a sorrir. Ouve a sua voz
enquanto murmura uma única palavra, como um compromisso.
Feito.
Nova Iorque
10 de março de 2014
De todas as invenções que Addie viu serem anunciadas no mundo — comboios a vapor, luz
elétrica, fotografia, telefones, aviões e computadores —, o cinema deve ser a sua preferida.
Os livros são maravilhosos, portáteis, duradouros, mas, enquanto ali está sentada, às escuras,
na sala de cinema, com o grande ecrã a encher-lhe a vista, o mundo desaparece e, por algumas
horas, é outra pessoa, mergulhada em romance e intriga e comédia e aventura. Tudo completado
com uma imagem em resolução 4k e som estereofónico.
Uma opressão silenciosa enche-lhe o peito enquanto os agradecimentos passam. Por algum
tempo, não teve peso, mas agora regressa a si mesma, afundando-se no assento até os pés
estarem de novo pousados no chão.
Quando Addie sai do cinema, são quase seis, e o sol começa a pôr-se.
Faz o caminho de volta por entre as ruas orladas de árvores, passando o parque, o mercado
agora fechado e os quiosques já desmontados, em direção à mesa verde ferrugenta na outra
ponta. Fred ainda ali está, sentado na sua cadeira, a ler M.
O padrão de lombadas em cima da mesa mudou um pouco, um espaço vazio aqui, onde um
livro se vendeu, um novo volume acolá, onde outro foi acrescentado. A luz começa a esmorecer,
e em breve terá de ir, de arrumar as caixas e de as levar uma a uma de volta a casa, subir os dois
andares até ao seu T0. Addie ofereceu-se muitas vezes para ajudar, mas Fred insiste em fazê-lo
sozinho. Outro eco de Estele. Teimoso como pão bolorento.
Addie agacha-se junto à mesa e levanta-se com o livro que levara emprestado na mão, como
se simplesmente tivesse caído da extremidade. Devolve-o ao seu lugar, tendo o cuidado de não
desequilibrar a pilha, e Fred deve estar numa parte empolgante da história, porque resmunga sem
sequer olhar para cima, para ela, ou para o livro, ou para o saco de papel que ela coloca sobre o
mesmo, o que contém o queque com pepitas de chocolate.
É a única variedade de que ele gosta.
Candace fazia-o sempre passar um mau bocado por causa da sua gulodice, contou uma manhã
a Addie, dizia que o havia de matar, mas a vida é tramada e tem um sentido de humor retorcido
— porque ela morreu, e ele continua a comer porcarias (palavras dele, não dela).
A temperatura está a baixar, e Addie enfia as mãos nos bolsos e deseja uma boa noite a Fred
antes de continuar a andar pelo quarteirão, de costas para o sol baixo e com a sombra a
prolongar-se à sua frente.
Está escuro quando chega ao Alloway — um dos lugares que parecem apreciar o seu estatuto
de bar rasca, uma fama desenvolvida pelo facto de se ter tornado um local apreciado entre as
vedetas que querem experimentar um toque de Brooklyn. Uma mão-cheia de pessoas espalhadas
pelo passeio, a fumar, a conversar, à espera de amigos, e Addie demora-se um instante entre elas.
Crava um cigarro, apenas para ter alguma coisa para fazer, resistindo ao máximo ao apelo fácil
da porta, à sensação acutilante do familiar, déjà vu.
Conhece esse caminho.
Sabe onde a conduz.
Lá dentro, o Alloway tem a forma de uma garrafa de uísque, o corredor estreito da entrada, o
bar de madeira escura a alargar-se até uma sala de mesas e cadeiras. Senta-se ao balcão. O
homem à sua esquerda oferece-lhe uma bebida, e acede.
— Deixe-me adivinhar — diz o homem. — Um rosé?
E pensa em pedir uísque, só para ver o ar de surpresa no seu rosto, mas nunca foi a sua
bebida; sempre preferiu as doces.
— Champanhe.
Ele faz o pedido, e entabulam conversa sem importância até ele receber uma chamada e se
afastar, prometendo estar de volta dali a pouco. Ela sabe que não estará, sente-se grata por isso
enquanto dá goles na bebida e espera que Toby suba ao palco.
Este senta-se, com um joelho levantado para equilibrar a guitarra, e exibe o seu sorriso
envergonhado, quase apologético. Ainda não aprendeu a apropriar-se do espaço, mas ela tem a
certeza de que irá acontecer. Olha para a pequena multidão antes de começar a tocar, e Addie
fecha os olhos e deixa-se eclipsar pela música. Toca alguns temas. Uma das suas próprias
melodias folclóricas. E depois aquilo.
As primeiras notas pairam pelo Alloway, e Addie está de novo em casa dele. Está sentada ao
piano, a dedilhar umas notas, e ali está Toby, ao seu lado, com os dedos fechados sobre os seus.
Começa a formar-se agora, palavras envolvidas em melodia. Começa a tornar-se dele. É como
uma árvore, a enraizar. Irá lembrar-se, sozinho; não dela, claro — não dela, mas daquilo. Da
canção dos dois.
Termina, com a música a dar lugar aos aplausos, e Toby avança até ao bar, pede um uísque
com cola porque lho darão de borla, e, algures entre o primeiro gole e o terceiro, vê-a e sorri, e,
por um instante, Addie pensa — espera, mesmo nessa altura — que ele se lembre de algo, porque
ele olha para ela como se a conhecesse, mas a verdade é simplesmente que a quer conhecer; a
atração pode parecer-se extraordinariamente com o reconhecimento sob a luz errada.
— Desculpa — diz Toby, com a cabeça a afundar-se como acontece sempre que está
envergonhado. Como fez na manhã em que a encontrou na sua sala.
Alguém aflora o ombro de Addie enquanto passa por ela em direção à porta do bar. Ela
pestaneja, e o sonho dissipa-se.
Não entrou. Ainda se encontra na rua, com o cigarro consumido até à beata nos dedos.
Um homem segura na porta aberta.
— Vai entrar?
Addie abana a cabeça e obriga-se a recuar, para longe da porta e do bar e do rapaz prestes a
subir ao palco.
— Hoje não — diz.
A ascensão não compensa a queda.
Nova Iorque
10 de março de 2014
Villon desaparece como uma carroça do outro lado de uma vedação, com os telhados a serem
engolidos pelas árvores e pelas colinas da paisagem circundante. Desaparece quando Adeline
arranja coragem para olhar para trás.
Suspira, vira-se e caminha, tropeçando dentro da estranha forma das botas de George.
São o dobro do tamanho do seu pé. Adeline encontrou meias numa corda, enfiou-as na parte
da frente das botas para as conseguir calçar, mas depois de quatro horas a andar sente os pontos
em que a pele descascou até ficar em carne viva, com o sangue a encharcar a base de couro. Tem
medo de ver, por isso não o faz, concentra-se apenas no caminho que tem à sua frente.
Decidiu caminhar até à cidade amuralhada de Le Mans. É o mais longe que já foi e, ainda
assim, nunca fez a viagem sozinha. Sabe que o mundo é muito maior do que as vilas que
percorrem o Sarthe, mas, nesse momento, não consegue pensar além da estrada que tem diante
de si. Cada passo que dá é um passo de distância de Villon, de uma vida que já não é sua.
Querias ser livre, diz uma voz na sua cabeça, mas não é sua; não, é mais profunda, mais
suave, forrada a cetim e fumo de madeira.
Contorna as aldeias, as quintas isoladas nos campos. Há extensões inteiras em que o mundo
parece esvaziar-se à sua volta. Como se um artista desenhasse as linhas mais despojadas da
paisagem e depois abandonasse a tarefa, distraído.
Uma vez, Adeline ouviu uma carroça circular pela estrada e aninhou-se na sombra do
arvoredo próximo, esperando que passasse. Não quer afastar-se muito da estrada, do rio, mas,
por cima do ombro, por entre um conjunto de árvores, vê o rubor amarelo da fruta de verão, e o
estômago dói de desejo.
Um pomar.
A sombra é deliciosa, o ar fresco, e apanha um pêssego maduro de um ramo baixo e enterra
os dentes cobiçosamente no fruto, com o estômago vazio a comprimir-se em torno na dentada
doce. Apesar da dor, come uma pera também, e um punhado de ameixas, bebendo mão-cheia
após mão-cheia de água de um poço ao fundo do pomar, antes de se obrigar a continuar, a sair do
abrigo e a regressar ao calor de verão.
As sombras alongam-se quando finalmente se deita na margem do rio e descalça as botas para
avaliar os estragos nos pés.
Mas não vê nada.
As meias não têm sinais de sangue. Os calcanhares estão livres de cortes. Não há vestígios
dos quilómetros percorridos, do desgaste de tantas horas na estrada coberta de terra, embora
tenha sentido a dor de cada passo. Os ombros também não estão queimados do sol, apesar de
todo o dia ter sentido o seu calor. O estômago anda-lhe às voltas, por vezes ansiando por mais do
que fruta roubada, mas, quando a luz declina e as colinas escurecem, não há candeias, não há
casas à vista.
Exausta, podia enroscar-se ali mesmo, na margem do rio, e ceder ao sono, mas os insetos
pairam por cima da água, mordendo-lhe a pele, e por isso refugia-se num campo aberto e deita-se
entre a erva alta, como fez tantas vezes quando era nova e queria ser outra pessoa. A erva engolia
a casa, a oficina, os telhados de Villon, tudo menos o céu aberto lá em cima, um céu que poderia
ser de qualquer lado.
Agora, enquanto olha para a escuridão mosqueada, tem saudades de casa. Não por Roger ou
pelo futuro que não desejou, mas pelo aperto lenhoso da mão de Estele na sua enquanto a velha
lhe mostrava como descobrir arbustos de framboesas e pelo zumbido suave da voz do pau
enquanto trabalhava na oficina, pelo aroma a resina e serradura no ar. Pelos pedaços da sua vida
que nunca quis perder.
Enfia a mão no bolso da saia, com os dedos à procura do passarinho esculpido. Não se
permitiu procurá-lo antes, não tendo a certeza de ter desaparecido, de o seu roubo se ter desfeito
como todos os outros atos — mas continua ali, com a madeira suave e quente.
Adeline tira-o da algibeira, ergue-o contra o céu e pensa. Não conseguiu partir a estatueta.
Mas conseguiu levá-la.
Entre a lista crescente de aspetos negativos — não consegue escrever, não consegue dizer o
seu nome, não consegue deixar uma marca —, esta foi a primeira coisa que conseguiu fazer.
Consegue roubar. Irá demorar muito tempo até conhecer os contornos da sua maldição, muito
mais ainda até compreender o sentido de humor da sombra, até ele olhar para ela por cima de um
copo de vinho e referir que um roubo bem-sucedido é um ato anónimo. A ausência de marca.
Nesse momento, está simplesmente grata pelo talismã.
O meu nome é Adeline LaRue, diz para si mesma, agarrando com força o passarinho de
madeira. Nasci em Villon, no ano de 1691, filha de Jean e Marthe, numa casa de pedra mesmo
ao lado do velho teixo...
Conta a história da sua vida à peça de madeira, como se tivesse medo de se esquecer tão
facilmente como os outros, sem saber que a sua mente é agora uma gaiola impecável, a memória
uma armadilha perfeita. Nunca esquecerá, embora venha a desejar poder fazê-lo.
Quando a noite se aproxima, com o roxo a dar lugar ao negro, Adeline olha para cima, para a
escuridão, e começa a desconfiar de que a escuridão lhe devolve o olhar, esse deus ou demónio,
com o seu olhar cruel, o seu sorriso trocista, os traços contorcidos de uma forma que nunca
desenhou.
Enquanto as fita, com a cabeça inclinada, as estrelas parecem captar as linhas de uma face, as
maçãs do rosto e o sobrolho, com a ilusão a formar-se até que fica meio à espera que o cobertor
da noite se enrugue e torça como aconteceu com as sombras no bosque, com o espaço entre as
estrelas a derramar-se para revelar aqueles olhos cor de esmeralda.
Morde a língua para evitar chamá-lo, não vá outra coisa decidir responder.
Afinal, não está em Villon. Não sabe que deuses poderão permanecer ali.
Mais tarde, a sua força falhará.
Mais tarde, haverá noites em que a necessidade abrandará a cautela, e gritará e amaldiçoará e
desafiá-lo-á a aparecer e enfrentá-la.
Mais tarde..., mas esta noite está cansada e tem fome e detesta desperdiçar a pouca energia
que tem com deuses que nunca responderão.
Por isso aninha-se para um dos lados, semicerra os olhos e espera pelo sono e, ao fazê-lo,
pensa em archotes no campo para lá do bosque, em vozes a gritarem o seu nome.
Adeline, Adeline, Adeline.
As palavras martelam contra si, tamborilando na sua pele como chuva.
Acorda um pouco mais tarde, o mundo escuro como tinta e um aguaceiro que já lhe encharca
o vestido, uma carga de água súbita e pesada.
Apressa-se pelo campo, com as saias a arrastar, até à linha de árvores mais próxima. Na
aldeia, gostava do matraquear da chuva contra as paredes da casa, costumava ficar ali deitada a
escutar o mundo ser lavado. Mas aqui não há cama, não há abrigo. Faz os possíveis por escorrer
a água do vestido, mas já está a arrefecer por cima da pele, e aninha-se entre as raízes, a tremer
debaixo do dossel desfeito
O meu nome é Adeline LaRue, diz para si mesma. O meu pai ensinou-me a ser uma
sonhadora, e a minha mãe ensinou-me a ser uma esposa, e Estele ensinou-me a falar com
deuses.
Os seus pensamentos arrastaram-se para Estele, que costumava ficar lá fora à chuva, com as
palmas das mãos abertas como se fosse colher a tempestade. Estele, que nunca gostou tanto da
companhia de outras pessoas como da própria.
Que provavelmente se sentiria satisfeita por estar sozinha no mundo.
Tenta imaginar o que a idosa diria, se a pudesse ver agora, mas sempre que tenta invocar
aqueles olhos penetrantes, aquela boca astuta, vê apenas a forma como Estele olhava para ela nos
últimos momentos, a forma como o seu rosto se enrugava e depois alisava, uma vida de
conhecimento varrida como uma lágrima.
Não, não devia pensar em Estele.
Adeline põe os braços à volta dos joelhos e tenta dormir e, quando volta a acordar, a luz do
sol derrama-se por entre as árvores. Um tentilhão encontra-se no solo musguento, mesmo ao
lado, a bicar-lhe a orla do vestido. Afasta-o, procurando na algibeira o passarinho de madeira
enquanto se levanta, vacila, tonta de fome, se apercebe de que não comeu mais do que fruta num
dia e meio.
O meu nome é Adeline LaRue, diz para si mesma, enquanto percorre o caminho de volta à
estrada. Está a transformar-se num mantra, algo para fazer passar o tempo, medir os seus passos,
e repete-o, vezes sem conta.
Contorna uma sebe e para, pestanejando violentamente, como se tivesse o sol diante dos
olhos. Não tem, no entanto, o mundo em frente ficou mergulhado num amarelo súbito, intenso,
os campos verdes devorados por um cobertor da cor de uma gema de ovo.
Olha para trás, por cima do ombro, mas o caminho atrás dela continua a ser verde e castanho,
os tons habituais do verão. O campo adiante é cor de semente de mostarda, embora na altura não
o saiba. Então, é simplesmente belo, de uma forma avassaladora. Addie fica a olhar, e por um
instante esquece a fome, os pés doridos, a perda súbita e deixa-se maravilhar pela claridade
ofuscante, pela cor, que devora tudo.
Deambula pelo campo, com os botões das flores a aflorarem-lhe as palmas das mãos, sem
medo de esmagar as plantas debaixo dos pés — já se endireitaram à sua passagem, com o apagar
dos passos. Quando chega à extremidade mais remota do campo, e ao caminho, e ao verde firme,
este parece monótono, procurando os olhos outra fonte de assombro.
Pouco depois, avista-se uma vila maior, e está prestes a contorná-la quando capta um aroma
no ar que lhe faz doer o estômago.
Manteiga, fermento, o cheiro doce e farto a pão.
Parece um vestido que caiu da corda, amarrotada e suja, o cabelo num ninho emaranhado,
mas tem demasiada fome para se importar com isso. Segue o cheiro por entre as casas e
percorrendo a alameda estreita que conduz à praça da aldeia. As vozes erguem-se com o cheiro a
pão, e quando vira numa esquina, vê um punhado de mulheres sentadas em torno de um forno
comunitário. Estão encarrapitadas no banco de pedra que o rodeia, a rir e a conversar como
pássaros num ramo, enquanto os pães crescem dentro da boca aberta do forno. A sua visão é
dissonante, comum, dolorosa, e Adeline permanece por um instante na rua coberta de sombra, a
ouvir o trinado e o chilreio das suas vozes, antes de a fome a obrigar a avançar.
Não precisa de revistar os bolsos para saber que não tem moedas. Talvez possa negociar o
pão, mas possui apenas o passarinho, e, quando o encontra entre as dobras da saia, os dedos
recusam-se a soltar a madeira. Podia suplicar, mas o rosto da mãe vem-lhe à memória, os seus
olhos tensos de escárnio.
Resta então o roubo — que é errado, claro, mas está demasiado esfomeada para avaliar o
pecado que representa. É apenas uma questão de como fazê-lo. O forno nunca fica sem
vigilância, e, apesar da facilidade com que parece desaparecer da memória, continua a ser de
carne e osso, não um fantasma. Não pode simplesmente aparecer ali e tirar o pão sem causar um
alvoroço. Claro que a podem esquecer rapidamente, mas que perigos enfrentaria antes que isso
acontecesse? Se conseguisse o pão e depois se fosse embora, até onde teria de correr? A que
velocidade?
E então ouve-o. Um som suave, animal, quase perdido por detrás da conversa.
Contorna o forno de pedra e divisa a sua oportunidade, do outro lado da rua.
Uma mula encontra-se à sombra, preguiçosamente, a mastigar ao lado de uma saca de maçãs,
de uma pilha de gravetos.
Basta uma única palmada bem desferida para a mula dar uma guinada, mais de espanto,
espera ela, do que de dor. Precipita-se para diante, desequilibrando as maçãs e a madeira, quando
se põe em movimento. E, sem mais nem menos, toda a praça se assusta, entrando num breve,
mas barulhento estado, enquanto o animal trota de lá para fora, arrastando uma saca de cereal, e
as mulheres levantam-se, com os trinados e os chilros dos seus risos a dissolverem-se em gritos
tensos de consternação.
Adeline esgueira-se até ao forno como uma nuvem, surripiando o pão mais próximo da boca
do forno. A dor cresta-lhe os dedos quando lhe pega, e quase o deixa cair, mas está demasiado
esfomeada, e a dor, como começa a aprender, não dura. O pão é dela, e, quando a mula é
aquietada, e o cereal apanhado, e as maçãs reunidas, e as mulheres devolvidas aos seus lugares
junto ao forno, já desapareceu.
Encosta-se à sombra de um estábulo, na orla da vila, com os dentes a rasgarem o pão
malcozido. A massa desfaz-se-lhe na boca, pesada, doce e difícil de engolir, mas não quer saber.
Sacia o suficiente, desgastando as arestas da sua fome. A mente começa a desanuviar-se. O peito
descomprime, e, pela primeira vez desde que saiu de Villon, sente-se como que humana, se não
inteira. Empurra a parede do estábulo e recomeça a andar, seguindo a linha do sol e o caminho
do rio, em direção a Le Mans.
O meu nome é Adeline... recomeça e depois para.
Nunca gostou do seu nome, e agora nem sequer o consegue dizer. Seja qual for o nome que
dê a si mesma, será apenas na sua cabeça. Adeline é a mulher que deixou em Villon, na véspera
de um casamento que não queria. Mas Addie — Addie foi um presente de Estele, mais breve,
mais incisivo, um nome rápido para a rapariga que ia aos mercados e tentava ver por cima dos
telhados, para a rapariga que desenhava e sonhava com histórias maiores, com mundos mais
magnificentes, com vidas cheias de aventura.
E, assim, enquanto caminha, dá início à história que tem lugar na sua cabeça.
O meu nome é Addie LaRue...
Nova Iorque
11 de março de 2014
Le Mans repousa como um gigante adormecido nos campos que percorrem o Sarthe.
Passaram-se mais de dez anos desde que Addie obteve autorização para fazer o caminho até à
cidade muralhada, empoleirada ao lado do pai, na carroça da família.
Agora o coração acelera ao transpor pelos portões da cidade. Desta vez, não há cavalo, não há
pai, não há carroça, mas, sob a luz do fim de tarde, a cidade apresenta-se tão azafamada, tão
concorrida como se lembrava de ser. Addie não se dá ao trabalho de se tentar integrar — se, de
vez em quando, alguém olha na sua direção, repara na jovem de vestido branco e sujo, guarda a
sua opinião para si próprio. É mais fácil estar só entre tanta gente.
Só que não sabe para onde ir. Para por um instante, para pensar, para ouvir apenas o estridor
dos cascos, demasiado súbito e demasiado próximo, e evita por um triz ser esmagada por uma
carroça.
— Sai da frente! — grita o condutor, enquanto ela se inclina para trás, apenas para chocar
com uma mulher que carrega um cesto de peras. Este vacila, despejando três ou quatro pelo
caminho empedrado.
— Vê por onde andas — rosna a mulher, mas, quando Addie se inclina para a ajudar a
apanhar a fruta caída, a mulher guincha e pisa-lhe os dedos. Addie recua e enfia as mãos nos
bolsos, agarrando-se ao passarinho de madeira enquanto continua a percorrer as ruas sinuosas em
direção ao centro da cidade. Há muitas vielas, mas todas se parecem umas com as outras.
Pensou que aquele lugar lhe pareceria mais familiar, mas parece-lhe apenas estranho. Uma
invenção de um sonho muito antigo. Da última vez que Addie ali esteve, a cidade pareceu-lhe
um assombro, um lugar grandioso e vital: os mercados apinhados, banhados pelo sol; as vozes a
tinirem de pedra; os ombros largos do pai, a esconderem os lados mais sinistros da cidade.
Mas agora, sozinha, insinuou-se uma ameaça, como nevoeiro, apagando o encanto alegre,
deixando apenas as pontas afiadas, destaca- das da bruma. Uma versão da cidade substituída por
outra.
Palimpsesto.
Ainda não conhece a palavra, mas, dali a cinquenta anos, num salão de Paris, ouvi-la-á pela
primeira vez, com a ideia do passado a ser apagada, coberta com a escrita do presente, e pensará
naquele momento em Le Mans.
Um lugar que conhece, só que não.
Que tolice pensar que se manteria na mesma, quando tudo o resto mudou. Quando ela mudou,
cresceu, passando de menina a mulher, e depois àquilo, um espectro, um fantasma.
Engole em seco, com dificuldade, e levanta-se, decidida a não se esbater ou pulverizar.
Mas Addie não consegue encontrar a estalagem onde ela e o pai ficaram e, mesmo que
conseguisse, o que pensava fazer ali? Não tinha forma de pagar e, mesmo que tivesse dinheiro,
quem iria alugar um quarto a uma mulher sozinha? Le Mans é uma cidade, mas não é assim tão
grande que uma coisa como essas pudesse passar despercebida a um senhorio.
A mão de Addie aperta-se com mais força sobre a peça de madeira que tem na algibeira da
saia enquanto continua a percorrer as ruas. Há um mercado logo depois da praça central, mas
está a fechar, tem as mesas vazias, as carroças começam a afastar-se, com o chão apenas
apinhado de restos de alface e de algumas batatas bolorentas, e, antes mesmo de chegar a pensar
em surripiá-los, já lá não estão, levadas por mãos mais pequenas e mais rápidas.
Há uma estalagem com uma taberna ao fundo da praça.
Vê um homem desmontar do cavalo, uma égua sarapintada, e passar as rédeas às mãos do
dono da estrebaria, já pronto para se dirigir ao barulho e à azáfama das portas abertas. Vê a mão
do homem conduzir a égua até um estábulo de madeira e desaparecer na escuridão relativa. Mas
não é o estábulo que chama a sua atenção ou a égua — é o fardo ainda apoiado no seu dorso.
Duas albardas pesadas, fazendo bojo, como sacos de cereais.
Addie atravessa a praça e esgueira-se para dentro do estábulo atrás do homem e da égua, com
os passos o mais leves e rápidos possível. A luz do sol jorra, fraca, através das traves do telhado
do estábulo, desenhando suavemente as formas do local, com alguns pontos iluminados por entre
as sombras estratificadas, o tipo de ambiente que adoraria desenhar.
Alguns cavalos pisoteiam o chão nas cavalariças e pela estrebaria, a mão do homem cantarola
para a égua enquanto lhe solta as correias, atira a sela para cima da divisória de madeira e escova
o animal, o seu próprio cabelo um ninho de nós e emaranhados.
Addie baixa-se, esgueirando-se em direção às cavalariças, nas traseiras do estábulo, onde os
sacos e os alforges semeiam o espaço, pousados sobre as baias de madeira que separam os
cavalos. As mãos precipitam-se, esfomeadas, pelos arreios, procurando por entre fivelas e por
baixo de abas. Não há bolsas, mas encontra um casaco pesado de montar, um odre de vinho, uma
faca de desossar do comprimento da sua mão. Lança o casaco por cima dos ombros, enfia a faca
num bolso fundo e o vinho no outro, enquanto se move sorrateiramente, silenciosa como um
fantasma.
Só vê o balde vazio quando o sapato choca contra ele, num estampido agudo. Cai com um
estrondo abafado em cima do feno, e Addie sustém a respiração e espera que o som se perca por
entre o arrastar dos cascos. Mas o dono da estrebaria para de cantarolar. Baixa-se mais, aninha-se
entre as sombras da cavalariça mais próxima. Passam-se cinco segundos, depois dez, e, então,
finalmente, o cantarolar recomeça, e Addie levanta-se e caminha até à última baia, onde se
encontra um cavalo robusto, a mastigar cereais, ao lado de um saco fechado com uma correia. Os
dedos dirigem-se para a fivela.
— O que estás a fazer?
A voz, demasiado próxima, atrás dela. O homem da estrebaria, já sem cantarolar, já sem
escovar a égua sarapintada, mas, de pé, no espaço entre as cavalariças, com um pingalim na mão.
— Desculpe — diz ela, um pouco ofegante. — Vim à procura da cavalgadura do meu pai. Ele
queria uma coisa do alforge.
Olha para ela, sem pestanejar, com os traços meio engolidos pela desordem negra do cabelo.
— E que cavalo seria?
Deseja ter estudado os cavalos, não apenas as suas cargas, mas não pode hesitar, denunciaria
a mentira, por isso vira-se rapidamente para o cavalo de carga.
— Este.
É uma boa mentira, no que a mentiras diz respeito, daquelas que facilmente poderiam ter sido
verdadeiras, se apenas tivesse escolhido outro cavalo. Um sorriso perverso estremece sob a barba
do homem.
— Ah — diz ele, batendo com o pingalim contra a palma da mão —, mas acontece que esse é
meu.
Addie sente o impulso estranho e nauseante de se rir.
— Posso escolher outra vez? — sussurra, deslocando-se lentamente para a porta da estrebaria.
Algures por perto, uma égua relincha. Outra bate com o casco. O pingalim para de zurzir a
palma da mão do homem, e Addie desvia-se para um dos lados, entre as cavalariças, com o
homem no seu encalço.
É rápido, uma velocidade claramente resultante da prática de perseguir animais, mas ela é
mais leve e tem muito mais a perder. As mãos dele afloram-lhe o colarinho do casaco roubado,
mas não a conseguem apanhar; os seus passos pesados hesitam e abrandam, e Addie pensa estar
livre, mesmo antes de ouvir o som nítido e claro de uma campainha repicar na parede do
estábulo, seguido do som de botas vindas do exterior.
Está quase à entrada do estábulo quando aparece o segundo homem, transpondo a porta como
uma sombra larga.
— Fugiu algum animal? — grita, antes de a ver, enrolada no casaco roubado, com as botas
demasiado grandes a escorregarem no feno. Recua de forma atabalhoada, para ir cair diretamente
nos braços do dono da estrebaria. Os dedos fecham-se à volta dos seus ombros, pesados como
algemas, e, quando tenta libertar-se, a mão crava-se com tal profundidade que a magoa.
— Apanhei-a a roubar — diz, com a vulgaridade a eriçar-se-lhe na face, a roçar a dela.
— Largue-me — implora ela, enquanto ele a puxa com força para mais perto.
— Isto não é uma banca da praça — escarnece o segundo, sacando de uma faca do cinto. —
Sabes o que fazemos aos ladrões?
— Foi engano. Por favor. Largue-me.
A faca agita-se como um dedo.
— Só depois de pagares.
— Não tenho dinheiro.
— Não faz mal — diz o segundo homem, aproximando-se mais. — Os ladrões pagam com o
corpo.
Addie tenta soltar-se, mas as mãos nos seus braços são de ferro, enquanto a faca se vem
encostar às rendas do vestido, dedilhando-as como cordas. E, quando volta a contorcer-se, já não
está a tentar libertar-se, apenas a tentar alcançar a faca de desossar dentro da algibeira do casaco
roubado. Por duas vezes os dedos afloram o cabo de madeira antes de o conseguir agarrar.
Assesta a arma para baixo, contra a coxa do primeiro homem, sente-a afundar-se na carne da
sua perna. Ele grita antes de a empurrar para longe como um moscardo, arremessando-a para a
frente, em direção à faca do outro homem.
A dor urra-lhe do ombro, enquanto a faca o perfura e percorre a clavícula, deixando um rasto
de calor abrasador. Os pensamentos desaparecem nesse momento, mas as pernas já estão em
movimento, transportando-a para lá das portas do estábulo, em direção à praça. Lança-se para
trás de um barril, longe de vista, enquanto os homens saem da estrebaria aos tropeções, a
praguejar, atrás dela, com os rostos contorcidos de raiva e, algo pior, algo primitivo, ávido.
E então, entre um passo e outro, começam a abrandar.
Entre um passo e outro, a urgência cede e esmorece, com o objetivo a escapar-se, como um
pensamento, para longe do alcance. Os homens olham em volta e depois um para o outro. Aquele
que foi esfaqueado endireita-se agora, sem sinal de qualquer rasgão nas calças, sem sangue a
ensopar o tecido. A marca que Addie deixou nele apagou-se.
Dão cotoveladas um ao outro e pancadinhas nas costas e dirigem-se de novo à estrebaria, e
Addie inclina-se para diante, pousando a cabeça contra a barrica de madeira. O peito lateja, com
a dor a descrever uma linha viva ao longo do pescoço, e, quando comprime a ferida com a mão,
os dedos vêm vermelhos.
Não pode ficar ali, enroscada atrás da pipa. Obriga-se a levantar-se e vacila, sentindo-se fraca,
mas em breve, a vaga de mal-estar passa, e continua de pé. Caminha, com uma mão contra o
ombro e a outra bem fincada sobre a faca, por baixo do casaco roubado. Não sabe quando decide
abandonar Le Mans, mas, pouco depois, está a atravessar a praça, a afastar-se das cavalariças e a
percorrer as ruas sinuosas, deixando para trás estalagens devassas e tabernas, os passos da
multidão e risos roufenhos, desistindo da cidade a cada passo.
A dor no ombro alivia, passando de um calor esbraseante a um latejar incómodo, e, depois, a
nada. Passa os dedos pelo golpe, mas desapareceu. Tal como o sangue no vestido, engolido como
as palavras que escrevinhou no papel do pai, as linhas que desenhou no sedimento à beira-rio. Os
únicos vestígios do mesmo estão na sua pele, uma crosta de sangue a secar ao longo da clavícula,
uma mancha vermelho-acastanhada na palma da mão. E Addie maravilha-se por um instante,
apesar da sua vontade, perante a estranha magia de tudo aquilo, a prova de que, num certo
sentido, a sombra cumpriu o prometido. Deturpou-o, sim, retorceu os seus desejos em algo
errado e podre. Mas, pelo menos, concedeu-lhe aquilo.
Viver.
Um pequeno som furioso sai-lhe da garganta, e existe alívio no mesmo, talvez, mas também
horror. Pela verdade da fome, que apenas começa a descobrir. Pela dor nos pés, embora não
exibam cortes ou hematomas. Pela dor na ferida do ombro, antes de sarar. A escuridão concedeu-
lhe libertação da morte, talvez, mas não daquilo. Não do sofrimento.
Passar-se-ão anos até aprender o verdadeiro significado dessa palavra, mas, para já, enquanto
penetra na escuridão que se adensa, ainda se sente aliviada por estar viva.
Um alívio que estremece quando alcança a orla da cidade. Foi o mais longe a que Adeline
alguma vez chegou.
Le Mans agiganta-se atrás dela, e, adiante, as altas muralhas de pedra dão lugar a vilas
dispersas, cada uma delas como uma pequena mata de arbustos e, depois, a campo aberto e,
depois, a quê... não sabe.
Quando Addie era mais nova, subia as encostas que se erguiam e desciam em torno de Villon,
precipitava-se até à extremidade da vertente, ao ponto em que o solo se interrompia, e parava,
com o coração a bater descompassado enquanto o corpo se inclinava para a frente, ansiando pela
queda.
Ao mais pequeno empurrão, o peso faria o resto.
Agora não há encostas íngremes por baixo de si, não há escarpas, e, no entanto, sente o
equilíbrio vacilar.
E então a voz de Estele ergue-se para ir ao seu encontro na escuridão.
Como se vai até ao fim do mundo?, perguntou uma vez. E, vendo que Addie não sabia a
resposta, a velha sorriu no seu esgar engelhado e respondeu.
Um passo de cada vez.
Addie não vai até ao fim do mundo, mas tem de ir para algum lado, e, nesse momento,
decide.
Vai para Paris.
É, além de Le Mans, a única cidade que conhece de nome, um lugar que brincou muitas vezes
nos seus lábios de estranha e que aparecia em todas as histórias que o pai lhe contou, um lugar de
deuses e reis, de ouro e majestade, e de promessa.
Começa assim, teria ele dito, se a pudesse ver agora.
Addie dá o primeiro passo e sente o chão ceder, sente-se inclinar para diante, mas, desta vez,
não cai.
Nova Iorque
12 de março de 2014
Mais para o fim da peça, há uma cena que se fixará na mente de Henry, exposta como luz
numa película.
Robbie, o rei da Bowery, ergue-se do seu trono enquanto a chuva cai numa cortina única, pelo
palco, e, embora, instantes antes, este estivesse apinhado de gente, agora, subitamente, apenas
Robbie se encontra ali. Este estende o braço, com a mão a aflorar a cortina de chuva, e esta
afasta-se em torno dos seus dedos, do seu pulso, do seu braço, enquanto Robbie avança,
centímetro a centímetro, até que todo o seu corpo se encontre por baixo da vaga.
Inclina a cabeça para trás, com a chuva a lavar ouro e purpurinas da pele, a alisar a onda
perfeita de caracóis contra o seu crânio, a apagar todos os vestígios de magia, a devolvê-lo, de
príncipe arrogante e lânguido, a rapaz; mortal, vulnerável, só.
As luzes apagam-se, e, por um longo momento, o único som na sala é o da chuva, a esbater-se
de parede sólida até ao ritmo regular de um aguaceiro e, depois, ao matraquear suave de gotas
sobre o palco.
E depois, finalmente, nada.
As luzes acendem-se, o elenco ocupa o palco, e toda a gente aplaude.
Bea aclama com entusiasmo e olha para Henry, com a alegria a escoar-se-lhe do rosto.
— O que se passa? — pergunta. — Pareces prestes a desmaiar.
Engole em seco, abana a cabeça.
Tem a mão a latejar e, quando olha para baixo, viu que cravou as unhas na cicatriz ao longo
da palma, desenhando uma linha fresca de sangue.
— Henry?
— Estou bem — diz, limpando a mão ao assento de veludo. — Foi só... Foi bom.
Levanta-se e segue Bea até à saída.
A multidão reduz-se até ser fundamentalmente constituída por amigos e família, à espera de
que os atores voltem a aparecer. Mas Henry sente os olhos, a atenção desviar-se como uma
corrente. Para onde quer que olhe, encontra um rosto amigável, um sorriso caloroso, e por vezes
mais.
Finalmente, Robbie aparece de rompante no átrio e lança os braços em volta de ambos.
— Os meus fãs extremosos! — diz, numa entoação cantarolada de ator.
Henry ri-se, num ronco, e Bea entrega-lhe uma rosa de chocolate, uma velha piada privada
desde que Robbie um dia se queixara por ter de escolher entre chocolates e flores, e Bea
lembrara que era Dia de São Valentim e que, para os espetáculos, as flores eram típicas. Mas
Robbie disse que não eram típicas, perguntando, além disso, como faria se tivesse fome.
— Estiveste maravilhoso — diz Henry, e é verdade. Robbie é maravilhoso, sempre foi
maravilhoso. A combinação de dança, música e teatro significaria arranjar trabalho em Nova
Iorque. Ainda se encontra a algumas ruas da Broadway, mas Henry não tem dúvidas de que há
de lá chegar.
Passa a mão pelo cabelo de Robbie.
Quando está seco, é da cor de açúcar caramelizado, um tom brônzeo algures entre o castanho
e o vermelho, dependendo da luz. Mas agora ainda está molhado da cena final e, por um
segundo, Robbie concentra-se no toque, apoiando o peso da cabeça na mão de Henry. O peito
aperta-se, e tem de se lembrar de que o seu coração não é real, já não.
Henry dá palmadinhas nas costas do amigo, e Robbie endireita-se, como que ressuscitado,
renovado. Ergue a rosa no ar, como um testemunho, e anuncia:
— E agora, vamos à festa!
Henry costumava pensar que as after-parties eram apenas para os últimos espetáculos, uma
forma de o elenco se despedir, mas, entretanto, aprendeu que, para a malta do teatro, cada
representação é um pretexto para celebrar. Para descer das nuvens ou, no caso do grupo de
Robbie, para prolongar essa sensação.
É quase meia-noite, e estão apinhados num terceiro andar sem elevador do SoHo, com as
luzes apagadas e a playlist de alguém a tocar através de duas colunas de sons sem fios. O elenco
desloca-se pelo centro como uma veia, de rostos ainda pintados, mas já sem os fatos, presos entre
as suas personagens de palco e os seus eus fora de cena.
Henry bebe uma cerveja morna e esfrega o polegar pela cicatriz da mão, naquilo que se está a
transformar rapidamente num hábito.
Por algum tempo, tinha Bea para lhe fazer companhia.
Bea, que prefere claramente jantares festivos a festas de teatro, marcadores e lugares sentados
a copos de plástico e deixas gritadas sobre aparelhagens de som. Uma companheira queixosa,
encolhida num canto com Henry, a estudar a tapeçaria de atores, como se estivessem num dos
seus livros de história de arte. Mas depois outro duende da Bowery arrastou-a consigo, e Henry
gritou-lhe traidora nas costas, apesar de ficar contente por ver Bea de novo feliz.
Entretanto, Robbie dança no meio da sala, sempre o centro da festa.
Gesticula na direção de Henry para que se junte a ele, mas Henry abana a cabeça, ignorando a
atração, o arrastar fácil da gravidade, os braços abertos, à espera, no fim da queda. No seu pior
momento, formaram um casal perfeito, com divergências meramente gravitacionais. Robbie, que
sempre conseguiu manter-se de pé, enquanto Henry se despenhava.
— Olá, jeitoso.
Henry vira-se, olhando por cima da bebida, e vê uma das personagens principais do
espetáculo, uma rapariga espantosa com uns lábios vermelho-ferrugem e uma coroa de lírios
brancos, com as purpurinas douradas das faces estampadas de modo a parecerem um grafiti.
Olha para ele com um desejo tão aberto que se deveria sentir desejado, deveria sentir algo mais
do que triste, só, perdido.
— Bebe comigo.
Os seus olhos azuis brilham enquanto exibe uma pequena bandeja, dois shots com algo
pequeno e branco a dissolver-se no fundo. Henry pensa em todas as histórias sobre aceitar
comida e bebida das fadas, mesmo quando estende a mão para o corpo. Bebe, e a primeira coisa
que sente é a doçura, o ardor suave da tequila, mas depois o mundo começa a desfiar-se um
pouco nas extremidades.
Quer sentir-se mais leve, sentir-se mais claro, mas a sala escurece, e sente uma tempestade
ganhar terreno.
Tinha 12 anos quando a primeira se aproximou. Não a viu chegar. Um dia, o céu estava azul,
no dia seguinte, as nuvens eram baixas e densas e, no outro, o vento levantou-se e a chuva caía a
cântaros.
Passar-se-iam anos até Henry aprender a pensar nesses tempos sombrios como tempestades, a
acreditar que passariam, se conseguisse simplesmente aguentar-se o tempo suficiente.
Claro que os pais tinham boas intenções, mas diziam-se sempre coisas como Anima-te ou Vai
melhorar ou, pior, Não é assim tão mau, o que é fácil de dizer quando nunca se conheceu um dia
de chuva. O irmão mais velho de Henry, David, é médico, mas continua sem conseguir perceber.
A irmã, Muriel, diz que entende, que todos os artistas sofrem as suas tempestades, até lhe
oferecer um comprimido da caixa de rebuçados que guarda na mala. Os seus chapelinhos de
chuva cor-de-rosa, como lhes chama, a combinar com a metáfora dele; como se se tratasse
apenas de um trocadilho inteligente e não a única forma de Henry os conseguir fazer
compreender como é estar dentro da sua cabeça.
É apenas uma tempestade, volta a pensar, mesmo quando se afasta do local e dá uma desculpa
qualquer sobre ir lá fora apanhar ar. Na festa está demasiado calor, e quer estar lá fora, quer ir até
ao terraço, olhar para cima e ver que não está mau tempo, apenas estrelas, mas, claro, não há
estrelas, pelo menos no SoHo.
Percorre metade do caminho até ao patamar e para, lembrando-se do espetáculo, da visão de
Robbie à chuva, e estremece, decidindo descer em vez de subir, decidindo ir para casa.
E está quase à porta quando ela lhe agarra a mão. A rapariga com hera a serpentear-lhe pela
pele.
A que o pintou de dourado.
— És tu — diz ela.
— És tu — diz ele.
A rapariga estende uma mão e limpa uma mancha dourada do rosto de Henry, e o contacto é
como um choque de eletricidade estática, uma centelha de energia no ponto em que pele encontra
pele.
— Não vás — diz ela, e ainda está a tentar pensar no que há de dizer a seguir quando ela o
puxa para perto e ele a beija, depressa, à procura, e se afasta, quando a ouve ofegar.
— Desculpa — diz ele, uma palavra automática, como por favor, como obrigado, como estou
bem.
Mas ela estende o braço e pega numa mão-cheia dos seus caracóis.
— Porquê? — pergunta ela, puxando-lhe a boca de volta à sua.
— Tens a certeza? — murmura ele, apesar de saber o que ela dirá, porque já viu a luz nos
seus olhos, as nuvens claras a varrerem-lhe a visão. — É isto que queres?
Ele quer a verdade — mas não há verdade para si, já não, e a rapariga limita-se a sorrir e
empurra-o contra a porta mais próxima, encostando-se a ele.
— É — diz — exatamente o que quero.
E logo de seguida estão num dos quartos, com a porta a fechar-se num estalido e a abafar os
ruídos da festa, do outro lado da parede, e a boca dela está sobre a dele, e ele agora não lhe
consegue ver os olhos no escuro, por isso é fácil acreditar que é real.
E, por algum tempo, Henry desaparece.
Nova Iorque
12 de março de 2014
Addie dirige-se à parte alta da cidade, enquanto lê A Odisseia à luz dos candeeiros de rua.
Passou-se algum tempo desde que leu alguma coisa em grego, mas a cadência poética da epopeia
devolve-a ao ritmo da língua antiga, e, quando a Baxter se torna visível, está meio perdida na
imagem do barco, no mar, ansiando por um copo de vinho e por um banho quente.
E condenada a não ter nenhum deles.
O seu sentido de oportunidade é ou muito bom ou muito mau, dependendo da forma como se
encare, porque Addie dobra na esquina para a Fifty-sixth no momento exato em que um
automóvel desportivo preto estaciona em frente à Baxter e James St. Clair sai para o passeio.
Está de volta das filmagens, bronzeado e aparentemente feliz, envergando um par de óculos
escuros apesar do facto de ser noite escura. Addie abranda e para, fica suspensa na rua enquanto
o porteiro o ajuda a tirar as malas e a levá-las para dentro.
— Raios — murmura baixinho ao ver o serão desaparecer. Nada de banhos de espuma, nada
de garrafas de Merlot.
Suspira e recua até ao cruzamento, tentando decidir o que fazer a seguir.
À sua esquerda, Central Park alonga-se como um pano verde-escuro no centro da cidade.
À direita, Manhattan ergue-se em linhas irregulares, quarteirão após quarteirão de edifícios
apinhados de Midtown até ao Bairro Financeiro.
Vira à direita, avançando para East Village.
O estômago começa a roncar, e, na Second, tem um vislumbre de jantar. Um jovem de
bicicleta desmonta no passeio, retira uma encomenda de uma caixa fechada atrás do assento e
entra no edifício com o saco de plástico. Addie aproxima-se da bicicleta e enfia a mão dentro da
caixa. É comida chinesa, adivinha, a julgar pelo tamanho e pela forma dos recipientes, com as
extremidades de papel dobradas e presas com pegas de metal fino. Retira uma caixa de cartão e
um par de pauzinhos descartáveis e vai-se embora antes que o homem à porta tenha chegado a
pagar.
Houve um tempo em que se sentia culpada por roubar.
Mas a culpa, como tantas coisas, esbateu-se, e embora não vá morrer à fome, esta ainda a
incomoda como se pudesse acontecer.
Addie avança até à Avenue C, enfiando lo mein na boca enquanto as pernas a levam pelo
Village, rumo a um edifício de tijolo com uma porta verde. Deita a caixa de papel vazia num
contentor de esquina e chega à entrada do prédio no preciso momento em que um homem sai.
Sorri para ele, ele sorri-lhe de volta e segura a porta.
Lá dentro, sobe os quatro lanços de escadas estreitos até uma porta de aço, lá em cima, passa
a mão por cima da ombreira e procura a pequena chave prateada pelo caixilho empoeirado,
descoberta no outono anterior, quando ela e uma amante chegaram a casa aos tropeções,
transformadas num emaranhado de membros, nas escadas. Os lábios de Sam comprimidos contra
a parte de baixo do maxilar, dedos manchados de tinta a deslizar abaixo da cintura das calças de
ganga de Addie.
Para Sam, foi um momento raro de impulsividade.
Para Addie, o segundo mês de um caso.
Um caso escaldante, decerto, mas apenas porque o tempo é um luxo que não pode comportar.
Claro que sonha com manhãs ensonadas em torno de um café, com pernas estendidas por cima
de um colo, com piadas privadas e riso fácil, mas esses confortos vêm com o conhecimento. Não
existe lugar para a construção lenta, para a luxúria tranquila, para a intimidade alimentada ao
longo de dias, semanas, meses. Pelo menos para elas. Por isso, anseia pelas manhãs, mas
contenta-se com as noites, e se não pode ser amor, bom, então, pelo menos, não haverá solidão.
Os dedos fecham-se à volta da chave, com o metal a raspar suavemente quando a arrasta do
seu esconderijo. São precisas três tentativas para abrir a fechadura velha e enferrujada, tal como
aconteceu naquela primeira noite, mas depois a porta abre-se de par em par, e sai para o terraço
do edifício. Levanta-se uma brisa, e enfia as mãos no bolso do casaco de cabedal ao atravessar o
terraço.
Está vazio, à exceção de três espreguiçadeiras, cada uma delas imperfeita à sua maneira —
assentos deformados, encravadas em diferentes pontos de reclinação, um braço pendurado num
canto partido. Um frigorífico manchado encontra-se por perto, e um fio de luzes feéricas pende
entre dois postes de um estendal, transformando o terraço num oásis miserável, desgastado pelo
tempo. Lá em cima tudo está tranquilo — não silencioso, isso é algo que ainda terá de encontrar
numa cidade, algo que começa a pensar estar perdido no meio das ervas do velho mundo —, mas
o mais tranquilo possível nesta zona de Manhattan. E, no entanto, não é o mesmo tipo de
tranquilidade que a sufoca em casa de James, não a tranquilidade vazia e interior dos espaços
demasiado grandes para uma pessoa. É uma tranquilidade viva, cheia de gritos distantes e de
buzinadelas de carros e de baixos de aparelhagens reduzidos a uma estática ambiente.
Um muro baixo de tijolo rodeia o terraço, e Addie permite-se encostar-se a ele, para diante,
pousando os cotovelos e olhando para fora até que o edifício desaparece e só consegue ver as
luzes de Manhattan, a desenhar formas contra o vasto céu sem estrelas.
Addie tem saudades das estrelas.
Conheceu um rapaz, em 65, e, quando lhe disse isso, ele levou-a de carro até aos arredores de
Los Angeles, a uma hora de caminho, só para as ver. Como o seu rosto brilhou de orgulho
quando estacionou no meio da escuridão e apontou para cima! Addie inclinou a cabeça e olhou
para a escassa oferta, os poucos pontos de luz espalhados pelo céu, e sentiu algo nas entranhas.
Uma tristeza pesada, como perda. E, pela primeira vez num século, teve saudades por Villon. De
casa. De um lugar onde as estrelas eram tão brilhantes que formavam um rio, uma corrente de
luz prateada e roxa contra a escuridão.
Agora olha para cima, sobre os telhados, e pergunta-se se, depois de todo este tempo, a
escuridão ainda se encontra à espreita. Apesar de se ter passado tanto tempo. Apesar de lhe ter
dito uma vez que não acompanhava todas as vidas, de ter referido que o mundo era grande e
estava cheio de almas e que tinha mais com que se preocupar do que com os pensamentos dela.
A porta do terraço abre-se atrás dela, e uma mão-cheia de pessoas saem aos tropeções.
Dois rapazes. Duas raparigas.
E Sam.
Envergando uma camisola branca e umas calças de ganga cinzento-claras, o seu corpo como
uma pincelada, longo e esguio e claro contra o pano de fundo do terraço às escuras. O cabelo
dela agora está mais comprido, caracóis louros revoltos a saltarem de um rabo-de-cavalo
despenteado. Manchas de tinta vermelha salpicam-lhe os antebraços no ponto em que as mangas
estão enroladas para cima, e Addie pergunta-se, quase de forma ausente, em que andará a
trabalhar. É pintora. Quadros abstratos, principalmente. O seu nome, rápido e fácil, apenas
Samantha, na obra acabada ou desenhado na linha de umas costas, a meio da noite.
Os outros quatro andam pelo terraço numa algazarra, um dos rapazes a meio de uma história,
mas Sam deixa-se ficar para trás, com a cabeça inclinada para saborear o ar fresco da noite, e
Addie deseja ter outro sítio para onde olhar. Uma âncora para a impedir de cair na gravidade
fácil da órbita da outra rapariga.
E claro que tem uma.
A Odisseia.
Addie está prestes a enterrar os olhos no livro, quando os olhos azuis de Sam descem do céu e
encontram os dela. A pintora sorri, e, por um instante, é outra vez agosto, e riem-se enquanto
bebem cervejas na esplanada de um bar, com Addie a afastar o cabelo do pescoço para acalmar a
intensidade do calor de verão. Sam a aproximar-se para lhe soprar sobre a pele. É setembro, e
estão na sua cama por fazer, de dedos enredados nos lençóis e uns nos outros, enquanto a boca de
Addie procura o calor escuro entre as pernas de Sam.
O coração de Addie martela-lhe no peito quando a rapariga se afasta do grupo e se aproxima
dela descontraidamente.
— Desculpa termos dado cabo do teu sossego.
— Oh, não faz mal — diz Addie, obrigando-se a olhar para o horizonte, como se estivesse a
estudar a cidade, embora Sam sempre a tivesse feito sentir-se como um girassol, voltando-se
inconscientemente para a luz da outra rapariga.
— Hoje em dia, toda a gente olha para baixo — reflete Sam. — É bom ver alguém a olhar
para cima.
O tempo desliza. Foi a mesma coisa que Sam disse da primeira vez que se cruzaram. E da
sexta. E da décima. Mas não é apenas uma deixa. Sam tem uma visão de artista, presente,
inquisitiva, o tipo de olhar que estuda o seu tema e vê mais do que formas.
Addie vira-se, espera pelo som de passos a recuar, mas, em vez disso, ouve o estalido de um
isqueiro, e logo depois Sam está ao seu lado, com um caracol louro-branco a dançar no limite do
seu campo de visão. Cede, lança uma olhadela.
— Posso roubar um desses? — pergunta, acenando com a cabeça para o cigarro.
Sam sorri.
— Podes. Mas não precisas de o fazer. — Tira outro do maço e dá-lho, juntamente com um
isqueiro azul-fluorescente. Addie pega neles, enfia o cigarro entre os lábios e arrasta o polegar
pela roda de ignição do isqueiro. Felizmente, a brisa corre, e tem uma desculpa, ao ver a chama
apagar-se.
Apagar-se. Apagar-se. Apagar-se.
— Dá cá.
Sam aproxima-se, com o ombro a aflorar o de Addie ao chegar-se mais perto para bloquear o
vento. Cheira às bolachas com pepitas de chocolate que o vizinho faz sempre que está mais
enervado, ao sabonete de alfazema que usa para tirar a tinta dos dedos, ao amaciador de coco que
aplica nos caracóis durante a noite.
Addie nunca gostou do sabor a tabaco, mas o fumo aquece-lhe o peito e dá-lhe algo para fazer
com as mãos, algo em que se concentrar além de Sam. Estão muito perto, com as exalações a
enevoarem o mesmo espaço de ar, e então Sam estende uma mão e toca numa das sardas da face
direita de Addie, como fez da primeira vez que se cruzaram, um gesto tão simples e, no entanto,
tão íntimo.
— Tens estrelas — diz, e o peito de Addie aperta-se, contorce-se de novo.
Déjà vu. Déjà su. Déjà vécu.
Tem de conter o impulso de se aproximar mais, de passar a palma da mão pela curvatura
longa do pescoço de Sam, de a deixar pousada contra a nuca, onde Addie sabe que encaixa tão
bem. Ficam em silêncio, a soltar nuvens de fumo claro, os outros quatro a rir e a gritar atrás
delas, até que um dos tipos — Eric? Aaron? — chama Sam, e, de um momento para o outro, ela
esgueira-se, percorre o terraço de volta. Addie contém o impulso de prender, em vez de soltar —
mais uma vez.
Mas fá-lo.
Inclina-se contra o muro de tijolo e ouve-os falar, sobre a vida, sobre envelhecer, sobre listas
de desejos e más decisões, e então uma das raparigas diz:
— Bolas, vamos chegar atrasados.
E, de um momento para o outro, as cervejas são acabadas, os cigarros apagados, e o grupo
volta a dirigir-se para a porta do terraço, com os cinco a recuarem, como uma maré.
Sam é a última a sair.
Abranda, olha por cima do ombro, lançando um último sorriso a Addie antes de entrar, e
Addie sabe que a poderia apanhar se corresse, que poderia chegar antes de a porta se fechar.
Não se mexe.
O metal fecha-se com estrondo.
Addie afunda-se contra o muro de tijolo.
Ser esquecida, segundo ela, é um pouco como enlouquecer. Começamos a perguntar-nos o
que é real, se somos reais. Afinal, como pode algo ser real se não pode ser lembrado? É como
aquele koan zen, sobre a árvore que cai no bosque.
Se ninguém ouvir, terá acontecido?
Se alguém não conseguir deixar uma marca, existirá realmente?
Addie apaga a beata no parapeito de tijolo e volta costas ao perfil da cidade contra o céu.
Avança até às cadeiras partidas e ao frigorífico arrumado entre elas. Encontra uma cerveja
isolada a pairar entre o gelo meio derretido e desenrosca a tampa para a abrir, enterrando-se na
cadeira menos estragada.
Esta noite não está tanto frio, e está demasiado cansada para ir à procura de outra cama. A
cintilação das luzes feéricas é o suficiente para se ver alguma coisa, e Addie alonga-se na
espreguiçadeira e abre A Odisseia e lê sobre terras estranhas e monstros e homens que nunca
mais conseguem chegar a casa, até que o frio a faz adormecer.
Paris, França
9 de agosto de 1714
Quando lhe perguntam sobre as suas primeiras memórias de Paris, esses terríveis meses, dirá
que foi uma fase de mágoa envolta em névoa. Dirá que não se consegue lembrar.
Mas claro que Addie se lembra.
Lembra-se do fedor a carne podre e a lixo, das águas salobras do Sena, das pessoas nas docas.
Lembra-se de momentos de bondade apagados por uma porta ou por uma madrugada, lembra-se
de ter saudades de casa, com o seu pão fresco e a lareira quente, da melodia silenciosa da família
e do ritmo forte de Estele. Da vida que tinha, daquela de que abdicou pela vida que pensou
desejar, roubada e substituída por esta.
E, no entanto, também se lembra de se maravilhar com a cidade, com a forma como a luz
varria as manhãs e os fins de tarde, com a grandiosidade esculpida entre os blocos em bruto;
como, apesar da sujidade e da mágoa e da deceção, Paris estava cheia de surpresas. Beleza
vislumbrada por entre as fendas.
Addie lembra-se da breve pausa desse primeiro outono, do movimento brilhante das folhas
pelos passeios, de passarem de verde a dourado como a montra de uma joalharia, antes do
mergulho rápido e abrupto no inverno.
Lembra-se do frio a morder-lhe os dedos das mãos e dos pés antes de os engolir inteiros. Do
frio e da fome. Claro que havia meses improdutivos em Villon, quando as vagas de frio
roubavam o resto de uma colheita ou uma geada tardia arruinava uma produção nova — mas este
tipo de fome era diferente. Percorria-a interiormente, arranhava-lhe as costelas com as unhas.
Exauria-a, e, embora Addie saiba que não a pode matar, esse conhecimento não contribui para
anestesiar a dor premente, o medo. Não perdeu um grama de carne, mas o estômago contorce-se,
devorando-se a si mesmo, e, tal como os pés se recusam a criar calo, os seus nervos também se
recusam a aprender. Não há adormecimento, nenhuma da facilidade que decorre do hábito. Esta
dor é sempre nova, frágil e intensa, uma sensação tão aguda como a sua memória.
E também se lembra do pior.
Lembra-se do frio súbito, do gelo brutal que se abateu sobre a cidade e da vaga de
enfermidades que soprou atrás dele como uma brisa de outono tardio, a espalhar pilhas de mortos
e de folhas moribundas. O som e a visão das carroças a chocalharem ao passar, transportando
uma carga sinistra. Addie a virar o rosto, a tentar não olhar para as formas ossudas amontoadas
descuidadamente na parte de trás. Puxa o casaco roubado para mais perto do corpo ao percorrer a
rua aos tropeções e sonha com o calor do verão, enquanto o frio lhe trepa pelos ossos.
Acha que nunca mais vai sentir calor. Foi mais duas vezes até às docas, mas o frio obrigou os
clientes a abrigarem-se no calor dos bordéis, e, à sua volta, a vaga de frio tornou Paris cruel. Os
ricos refugiam-se dentro de suas casas, agarram-se ao lume das suas lareiras, enquanto lá fora,
nas ruas, os pobres são dilacerados pelo inverno. Não há lugar onde se possam esconder dele —
ou, então, os únicos lugares que existem já foram ocupados.
Nesse primeiro ano, Addie está demasiado cansada para lutar por espaço.
Demasiado cansada para procurar abrigo.
É açoitada por mais uma rajada de vento, e Addie dobra-se sobre si mesma, para se proteger
dela, de olhos enevoados. Arrasta-se para o lado, para uma rua estreita, só para fugir à violência
do vento, e a tranquilidade súbita, a paz sem brisa da viela é como uma duna, suave e quente. Os
joelhos vergam. Aninha-se num canto contra uma série de degraus e espanta-se silenciosamente,
sonolentamente, com a sua própria transformação. A sua respiração enche o ar de névoa, à sua
frente, com cada expiração a turvar o mundo exterior até que a cidade cinzenta se esbate em
branco, branco, branco. Estranho como agora parece demorar-se, um pouco mais a cada
respiração, como se estivesse a toldar uma superfície de vidro. Pergunta-se quantas mais
expirações serão necessárias para esconder o mundo. Para o apagar, como ela.
Talvez seja a sua visão a turvar-se.
Não quer saber.
Está cansada.
Está muito cansada.
Addie não consegue permanecer acordada, e porque haveria de tentar?
O sono é uma grande bênção.
Talvez acorde quando for de novo primavera, como a princesa numa das histórias do pai, e dê
consigo deitada na margem relvada junto ao Sarthe, com Estele a dar-lhe toquezinhos com um
sapato usado e a fazer troça dela por estar de novo a sonhar.
É a morte.
Pelo menos, por um instante, Addie pensa que deve ser a morte.
O mundo é negro, o frio incapaz de reter o fedor da putrefação, e não se consegue mexer.
Mas, depois, lembra-se de que não pode morrer. Há o pulsar teimoso do seu coração, a debater-
se para continuar a bombear, e os seus pulmões obstinados, a debaterem-se para se continuar a
encher, e Addie apercebe-se de que os seus membros não estão de todo sem vida, mas tornaram-
se pesados, de todos os lados. Sacas pesadas, por cima, em baixo, e o pânico acomete-a, mas a
mente continua vagarosa de sono. Contorce-se, e as sacas deslocam-se um pouco, em cima dela.
A escuridão abre-se, e uma fenda de luz cinzenta abre passagem.
Addie contorce-se e meneia-se até libertar um braço e depois o outro, aproximando-os do
corpo. Começa a empurrar por entre as sacas e só então sente ossos por baixo do tecido, só então
a sua mão toca numa pele de cera, só então os dedos se enredam nos fios do cabelo de outra
pessoa, e agora está acordada, bem acordada, a trepar, a furar, desesperada por se libertar.
Sobe usando as unhas como garras, para fora, com as mãos espalhadas pelo monte de ossos
das costas de um homem morto. Mesmo ao lado, olhos leitosos fitam-na. Um maxilar permanece
aberto, e Addie salta atabalhoadamente da carroça e cai no chão, aos arrancos, a soluçar, viva.
Um som horrível solta-se do seu peito, uma tosse aguda, algo preso entre um soluço e um
riso.
Depois, um grito, e precisa de um momento para se aperceber de que não sai dos seus
próprios lábios gretados. Uma mulher andrajosa está de pé, do outro lado da rua, com as mãos na
boca, de horror, e Addie não a pode culpar por isso.
Que choque deve ser ver um cadáver arrastar-se para fora da carroça.
A mulher persigna-se, e Addie grita numa voz rouca e quebrada:
— Não estou morta. — Mas a mulher limita-se a fugir dali, e Addie dirige a sua fúria contra a
carroça. — Não estou morta! — volta a dizer, dando um pontapé na roda de madeira.
— Ei! — grita um homem, segurando nas pernas de um corpo frágil e retorcido.
— Para trás — grita um segundo, agarrando-o pelos ombros.
Claro que não se lembram de a ter metido lá dentro. Addie recua enquanto balançam o
cadáver mais recente, atirando-o para dentro da carroça. Aterra com um estrondo repugnante em
cima dos outros, e o estômago dela contorce-se ao pensar que esteve entre eles, ainda que por
pouco tempo.
Um chicote estala, os cavalos precipitam-se para diante, as rodas giram no empedrado, e só
quando a carroça desapareceu de vista, só quando Addie leva as mãos trementes aos bolsos do
casaco perdido, se apercebe de que estão vazios.
O passarinho de madeira desapareceu.
O que lhe restou da sua vida passada foi arrastado com os mortos.
Durante meses, continuará à procura da peça, levando a mão ao bolso como poderia ter feito,
um gesto teimoso, um movimento nascido de um hábito enraizado. Não parece conseguir fazer
com que os dedos se lembrem de que já lá não está, não parece conseguir lembrá-lo ao coração,
que estremece um pouco sempre que descobre o bolso vazio. Mas, ali, florescendo no meio da
mágoa, encontra-se um alívio terrível. Todos os momentos, desde que abandonou Villon, receou
a perda da sua última recordação.
Agora que desapareceu, há uma alegria culpada contida entre a mágoa.
O último e frágil fio da sua antiga vida quebrou-se, e Addie ficou livre, de uma forma
absoluta e verdadeira e violenta.
Paris, França
29 de julho de 1715
Addie demora-se uma hora nos degraus da livraria até esta fechar.
Henry fecha tudo e vira-se para a ver ali, e Addie prepara-se mais uma vez para o vazio no
seu olhar, a confirmação de que o seu encontro anterior foi apenas uma avaria estranha, um
ponto falhado nos séculos da sua maldição.
Mas, quando ele olha para ela, conhece-a. Tem a certeza de que a conhece.
As sobrancelhas erguem-se por detrás das pestanas emaranhadas, como se estivesse
surpreendido pelo facto de ela ainda ali estar. Mas a sua irritação deu lugar a outra coisa — algo
que a confunde ainda mais.
É menos hostil do que a desconfiança, mais reservado do que o alívio, e continua a ser
maravilhoso, pelo conhecimento que contém. Não é um primeiro encontro, mas um segundo —
ou, antes, um terceiro —, e, pela primeira vez na vida, não é a única a saber.
— Então? — diz ele, estendendo-lhe a mão, não para que pegue nela, mas para apontar o
caminho, e ela fá-lo. Caminham alguns quarteirões num silêncio desconfortável, com Addie a
roubar olhares que não lhe dizem mais do que a linha do seu nariz, o ângulo do seu maxilar.
Tem um olhar esfaimado, feroz e magro, e, apesar de ser alto, de uma forma natural, reclina
os ombros como que para se tornar mais baixo, mais pequeno, mais discreto. Talvez, com a
roupa certa, com o ar certo, talvez, talvez; mas, quanto mais olha para ele, mais reduzidas são as
semelhanças com aquele outro estranho.
E, no entanto.
Há algo nele que continua a chamar a sua atenção, a puxá-la como um prego repuxa uma
camisola.
Apanha-a duas vezes a olhar para ele e franze o sobrolho.
Uma vez, Addie dá com ele a intercetar o seu próprio olhar e sorri.
No café, diz-lhe para se sentar a uma mesa enquanto vai buscar as bebidas, e ele hesita, como
se estivesse dividido entre o impulso de pagar e o medo de ser envenenado, antes de se enfiar
num lugar de canto. Addie pede um café com leite para ele.
— Três e oitenta — diz a rapariga do outro lado do balcão.
Addie retrai-se ao ouvir o preço. Tira umas quantas notas do bolso, o resto do que roubou a
James St. Clair. Não tem dinheiro que chegue para dois pedidos e não pode simplesmente sair
dali com eles, porque está um rapaz à espera dela. Que se lembra.
Addie lança uma olhadela para a mesa, onde ele está sentado, de braços cruzados, a olhar para
fora da janela.
— Eve! — chama a empregada de balcão. — Eve!
Addie assusta-se, apercebendo-se de que se referem a ela.
— Então — diz o rapaz quando ela se senta. — Eve?
Não, pensa ela.
— Sim — diz ela. — E tu és...
Henry, pensa, antes mesmo de ele dizer.
— Henry. — Assenta-lhe bem, como um casaco. Henry: suave, poético. Henry: calmo, forte.
Os caracóis negros, os olhos claros por detrás das armações pesadas. Conheceu uma série de
Henrys, em Londres, Paris, Boston e Los Angeles, mas este não se parece com nenhum deles.
O seu olhar desce para a mesa, para a chávena, para as mãos vazias.
— Não pediste nada.
Ela faz um aceno despreocupado.
— Não estou com muita sede — mente.
— É estranho.
— Porquê? — Addie encolhe os ombros. — Disse que te pagava um café. Além disso —
hesita —, perdi a carteira. Não tinha que chegasse para dois.
Henry franze o sobrolho.
— Foi por isso que roubaste o livro?
— Não o roubei. Queria fazer uma troca. E pedi desculpa.
— Pediste?
— Com o café.
— Por falar nisso — diz ele, levantando-se. — Como gostas de o tomar?
— O quê?
— O café. Não vou ficar aqui a beber sozinho, faz-me sentir um idiota.
Ela sorri.
— Chocolate quente. Simples.
As sobrancelhas negras voltam a arquear. Afasta-se para fazer o pedido, diz algo que faz a
empregada de balcão rir e inclina-se para a frente, como uma flor para o sol. Regressa com uma
segunda chávena e um croissant e coloca-os ambos diante dela antes de se voltar a sentar, e
agora estão de novo desemparelhados. Com o equilíbrio ameaçado, restaurado e novamente
ameaçado, é o tipo de jogo que ela jogou centenas de vezes, uma luta feita de pequenos gestos,
com o estranho a sorrir do outro lado da mesa.
Mas este não é o seu estranho, e não está a sorrir.
— Então — diz Henry —, o que foi aquela história toda hoje, com o livro?
— Sinceramente? — Addie coloca as mãos à volta da chávena. — Não pensei que te fosses
lembrar.
A pergunta chocalha como moedas soltas dentro do peito de Addie, como seixos numa tigela
de louça; agita-se dentro dela, ameaçando sair para fora.
Como te lembraste? Como? Como?
— The Last Word não tem assim tantos clientes — diz Henry. — E ainda menos que tentem
sair sem pagar. Acho que causaste impressão.
Impressão.
Uma impressão é como uma marca.
Addie passa os dedos pela espuma do chocolate quente, vê o leite alisar-se de novo depois do
gesto. Henry não repara, mas reparou nela, lembrou-se.
O que está a acontecer?
— Então — diz ele, mas a frase não chega a lado nenhum.
— Então — repete ela, porque não pode dizer o que quer. — Fala-me de ti.
Quem és tu? Por que motivo és tu? O que está a acontecer?
Henry morde o lábio e diz:
— Não tenho muito para dizer.
— Sempre quiseste trabalhar numa livraria?
O rosto de Henry fica pensativo.
— Não tenho a certeza se é o emprego com que as pessoas sonham, mas eu gosto.
Leva o café com leite aos lábios quando alguém passa apressadamente, dando um encontrão
na cadeira. Henry endireita a chávena a tempo, mas o homem começa a pedir desculpa. E não
para.
— Peço imensa desculpa. — O rosto contorce-se de culpa.
— Não faz mal.
— Fi-lo entornar a chávena? — pergunta o homem com uma preocupação genuína.
— Não — diz Henry. — Está tudo bem.
Se regista a intensidade do homem, não dá sinais disso. Continua profundamente concentrado
em Addie, como se fosse capaz de afastar o homem apenas com a sua força de vontade.
— Que estranho — diz ela, quando finalmente se foi embora.
Henry limita-se a encolher os ombros.
— Os acidentes acontecem.
Não era a isso que ela se referia. Mas os pensamentos passam como comboios, e ela não se
pode dar ao luxo de descarrilar.
— Então — diz ela —, a livraria... é tua?
Henry abana a cabeça.
— Não. Quero dizer, poderia perfeitamente ser, sou o único funcionário, mas pertence a uma
mulher chamada Meredith, que passa a maior parte do tempo em cruzeiros. Trabalho apenas lá. E
tu? O que fazes quando não andas a roubar livros?
Addie pondera a pergunta, as muitas respostas possíveis, todas elas mentiras, e decide-se por
algo mais próximo da verdade.
— Sou caçadora de talentos — diz. — Música, principalmente, mas também arte.
O rosto de Henry endurece.
— Devias conhecer a minha irmã.
— Oh? — pergunta Addie, desejando ter mentido. — É artista?
— Acho que ela diria que protege a arte, que isso corresponde de certa forma a um artista,
talvez. Gosta de... — faz um floreado — alimentar o potencial em bruto, de moldar a narrativa
do futuro criativo.
Addie pensa que gostaria de conhecer a irmã dele, mas não o diz.
— Tens irmãos? — pergunta ele.
Abana a cabeça, retirando uma pontinha do croissant porque ele não lhe tocou, e ela tem o
estômago a roncar.
— Sortuda — diz ele.
— Solitária — contrapõe ela.
— Bem, podes ficar com os meus. Tenho o David, que é médico, académico e um idiota
pretensioso, e a Muriel, que é, bem... a Muriel.
Olha para ela, e ali está de novo, aquela estranha intensidade, e talvez seja apenas por tão
poucas pessoas estabelecerem contacto visual na cidade, mas não consegue afastar a sensação de
que ele anda à procura de algo no seu rosto.
— O que foi? — pergunta, e ele começa a dizer uma coisa, mas muda de direção. — As tuas
sardas parecem estrelas.
Addie sorri.
— Já me disseram. A minha própria constelação. É a primeira coisa que toda a gente vê.
Henry mexe-se na cadeira.
— O que vês — diz ele — quando olhas para mim?
A sua voz é suficientemente leve, mas há qualquer coisa na pergunta, um peso, como uma
pedra enterrada numa bola de neve. Tem estando à espera para perguntar. A resposta é
importante.
— Vejo um rapaz de cabelo escuro, olhos gentis e rosto aberto.
Ele franze um pouco o sobrolho.
— Só isso?
— Claro que não — diz ela. — Mas ainda não te conheço.
— Ainda — ecoa ele, e há algo como um sorriso na sua voz. Addie comprime os lábios, volta
a observá-lo.
Por um instante, são o único ponto silencioso no café concorrido.
Quando se vive o tempo suficiente, aprende-se a ler uma pessoa. A abri-la facilmente como
um livro, com algumas passagens sublinhadas e outras escondidas entre as linhas. Addie
observa-lhe o rosto, o sulco leve onde as sobrancelhas sobem e descem, o conjunto dos lábios, a
forma como esfrega uma mão como se estivesse a eliminar uma dor, mesmo quando se inclina
para a frente e permanece, com a atenção completamente concentrada nela.
— Vejo alguém que se preocupa — diz ela lentamente. — Talvez demasiado. Que sente
demasiado. Vejo alguém perdido e esfaimado. O tipo de pessoa que se sente como se os outros
estiverem a esbanjar, num mundo cheio de comida, porque não conseguem decidir o que
desejam.
Henry olha para ela, sem qualquer réstia de humor no rosto, e ela sabe que se aproximou
demasiado da verdade.
Addie ri-se nervosamente, e o som repercute-se de volta, apressadamente.
— Desculpa — diz, abanando a cabeça. — Demasiado profundo. Provavelmente deveria ter
dito apenas que eras bonito.
A boca de Henry faz um esgar, mas o sorriso não lhe chega aos olhos.
— Pelo menos achas que sou bonito.
— E eu? — pergunta ela, tentando quebrar a tensão criada subitamente.
Mas, pela primeira vez, Henry não a olha diretamente.
— Nunca fui bom a interpretar pessoas. — Afasta a chávena com a mão e levanta-se, e Addie
pensa que estragou tudo. Está a ir-se embora.
Mas depois olha para ela e diz:
— Tenho fome. Tens fome?
E o ar regressa-lhe precipitadamente aos pulmões.
— Sempre — diz ela.
E, dessa vez, quando Henry lhe estende na mão, sabe que a está a convidar a agarrá-la.
Paris, França
29 de julho de 1719
Remy Laurent é riso engarrafado sob uma pele. Este derrama-se dele de cada vez que se move.
Enquanto se dirigem à Île de la Cité, inclina a aba do chapéu de Addie, puxa-lhe os colarinhos
para cima, enfia o braço por cima dos seus ombros e reclina a cabeça, como que para sussurrar
um segredo devasso. Remy está deliciado por fazer parte da farsa dela, e ela está deliciada por ter
alguém com quem a partilhar.
— Thomas, seu idiota — escarnece ele em voz alta quando passam por um grupo de homens.
— Thomas, seu malandreco — grita quando passam por duas mulheres (na verdade, são
raparigas, embora estejam cobertas de rouge e de rendas esfarrapadas), à entrada de uma viela.
Também elas respondem ao desafio.
— Thomas — repetem, brincalhonas e doces —, vem cá. Vem ser o nosso malandreco,
Thomas. Thomas, vem divertir-te connosco.
Enfiam-se na imensa catedral, agarrando-se às sombras enquanto sobem a torre norte. Param
lá em cima, com as pernas a doer, sem fôlego devido à subida e à vista. Remy espalha o casaco
em cima do empedrado, fazendo um gesto para que ela se sente.
Dividem a comida entre os dois, e, enquanto permanecem sentados, Addie estuda o seu
estranho companheiro.
Remy é o contrário de Luc, em todos os sentidos. O seu cabelo é uma coroa de louro lustroso,
os olhos de um azul de verão, mas, mais do que isso, há os seus modos: o seu sorriso fácil, o seu
riso aberto, a energia vibrante da juventude. Se um é a escuridão arrebatadora, o outro é o
esplendor do meio-dia, e, se o rapaz não é tão bem-parecido, bem, é apenas porque é humano.
É real.
Remy vê-a fitá-lo e ri-se.
— Estás a fazer um estudo do meu perfil, para a tua arte? Devo dizer que dominas a pose e os
modos da juventude parisiense.
Ela olha para baixo, apercebe-se de que está sentada com um dos joelhos erguidos, o braço a
envolver preguiçosamente a perna.
— Mas — acrescenta Remy — receio que sejas demasiado bela, mesmo no escuro. —
Aproximou-se mais de Addie, com as mãos a procurarem as dela.
— Qual é o teu verdadeiro nome? — pergunta, e como ela gostaria de lhe dizer. Tenta, tenta
— pensando que talvez seja desta, que talvez os sons consigam passar da língua. Mas a voz
interrompe-se a seguir à letra A, por isso muda de rumo e diz:
— Anna.
— Anna — repete Remy, ajeitando uma madeixa solta atrás da orelha. — Fica-te bem.
Ao longo dos anos, usará centenas de nomes e, vezes sem conta, ouvirá essas mesmas
palavras, até começar a interrogar-se sobre a importância de qualquer nome. Essa mesma ideia
começará a perder significado, como acontece com uma palavra, quando é dita demasiadas
vezes, desfazendo-se em sons e sílabas inúteis. Usará a deixa batida como prova de que um
nome, na verdade, não importa — mesmo que anseie por dizer e ouvir o seu.
— Diz-me, Anna — diz agora Remy. — Quem és tu?
E então ela diz-lhe. Ou pelo menos tenta — despeja todo o seu estranho e atribulado percurso
e depois, quando este nem sequer lhe chega aos ouvidos, recomeça e conta-lhe outra versão da
verdade, uma versão que contorna as arestas da sua história, alisando os cantos mais ásperos em
algo mais humano.
A história de Anna é uma sombra esbatida da de Adeline.
Uma rapariga a fugir da vida de uma mulher. Deixa para trás tudo o que conheceu e foge para
a cidade, renegada, sozinha, mas livre.
— Incrível — diz ele. — Partiste, simplesmente?
— Tive de o fazer — diz ela, e não é mentira. — Diz a verdade: achas que sou louca.
— Sem dúvida — diz Remy com um sorriso brincalhão. — A mais louca de todas. E a mais
incrível. Que coragem!
— Não o senti como coragem — diz Addie, brincando com a crosta do pão. — Senti que não
tive alternativa. Como se... — As palavras ficam presas na garganta, mas não tem a certeza se é
da maldição ou simplesmente da memória. — Senti-me como se pudesse morrer ali.
Remy acena com a cabeça, pensativo.
— Sítios pequenos dão origem a vidas pequenas. E algumas pessoas não têm qualquer
problema com isso. Gostam de saber onde pôr os pés. Mas, se apenas seguirmos as pegadas dos
outros, não poderemos criar o nosso próprio caminho. Não poderemos deixar uma marca.
O nó na garganta de Addie aperta-se.
— Achas que uma vida tem valor apesar de não deixar uma marca no mundo?
A expressão de Remy torna-se mais séria, e deve sentir a tristeza na voz dela, porque diz:
— Acho que existem muitas formas de fazer a diferença. — Retira o livro do bolso. — Estas
são as palavras de um homem, Voltaire. Mas também são as mãos que o compuseram. A tinta
que as tornou legíveis, a árvore que produziu o papel. Todas elas importam, embora os créditos
vão apenas para o nome que aparece na capa.
Claro que a interpretou mal, presumiu que a questão radicava num medo diferente e mais
comum. Ainda assim, as suas palavras pesaram — embora se tivessem de passar anos até Addie
descobrir a que ponto.
Ficaram então em silêncio, numa quietude dobrada sob o peso dos seus pensamentos. O calor
do verão interrompera-se, cedera lugar a um conforto arejado na parte mais densa da noite. A
hora cai sobre eles como uma folha de papel.
— É tarde — diz ele, quando finalmente descem, regressando à rua. — Deixa-me levar-te a
casa.
Ela abana a cabeça.
— Não tens de o fazer.
— Tenho, sim — protesta ele. — Podes disfarçar-te de homem, mas eu sei a verdade, e por
isso a honra não me permite deixar-te sozinha. A escuridão não é sítio para se estar só.
Não sabe quão acertadas são as suas palavras. O peito de Addie dói perante a ideia de perder
o rasto desta noite e o à-vontade que começa a ganhar forma entre eles, um à-vontade nascido de
horas em vez de dias ou de meses, mas é qualquer coisa, frágil e adorável.
— Muito bem — diz ela, e o seu sorriso, ao responder, é alegria pura.
— Atrás de ti.
Não tem um sítio onde o conduzir, mas arranca, na direção vaga de um lugar onde ficou há
vários meses. O peito aperta-se um pouco a cada passo, porque cada passo a aproxima mais do
fim daquilo, do fim deles. E, quando viram na rua onde instalou a sua casa inventada e param
diante da sua porta imaginada, Remy inclina-se sobre ela e beija-a uma vez, na face. Mesmo na
escuridão consegue vê-lo corar.
— Gostaria de ter ver de novo — diz ele —, à luz do dia ou no escuro. Como mulher ou
homem. Por favor, deixa-me ver-te de novo.
E o coração dela afunda-se, porque, naturalmente, não há amanhã, apenas essa noite, e Addie
não está preparada para que o fio se corte, para que a noite termine, e por isso responde:
— Deixa-me levar-te a casa — e, quando ele abre a boca para protestar, ela insiste: — A
escuridão não é sítio para se estar só.
Os seus olhares cruzam-se, e talvez ele saiba o que ela quer dizer ou talvez tenha tanto medo
como ela de deixar essa noite para trás, porque lhe oferece rapidamente o braço e diz:
— Uma frase digna de um cavalheiro — e começam de novo a andar, rindo quando se
apercebem de que percorrem o mesmo caminho, regressando ao local de onde vieram. E, se a
caminhada até à sua casa imaginada foi vagarosa, a caminhada até à dele é urgente, perpassada
de expectativa.
Quando chegam à sua hospedaria, não fingem despedir-se. Ele condu-la escadas acima, agora
com os dedos enredados nos dela, a tropeçar nos degraus e ofegante, e, quando chega ao seu
quarto alugado, não se demoram no patamar.
Ela quase para de respirar perante a ideia do que se segue.
Até então, o sexo foi apenas um fardo, uma necessidade de circunstância, uma moeda de troca
requerida, e, até esse momento, Addie esteve disposta a pagar o preço. Mesmo agora, está
preparada para que ele a empurre, para que lhe afaste as saias do caminho. Preparada para que o
desejo ceda, forçado por algum ato pouco subtil. Mas ele não investe contra ela. Existe
premência, sim, mas Remy mantém-na retesada, como uma corda, entre ambos. Alonga uma
mão firme e tira-lhe o chapéu da cabeça, pousando-o suavemente em cima da cómoda. Os dedos
deslizam pela nuca e pelo cabelo, ao mesmo tempo que a boca encontra a dela, com beijos
tímidos, a tatear.
Pela primeira vez, não sente relutância, medo, sente apenas uma espécie de excitação nervosa,
e a tensão no ar está ligada a uma ânsia sem fôlego.
Os dedos de Addie tropeçam nos atilhos das calças dele, mas as dele movem-se mais devagar,
desfazendo os laços da camisa dela, puxando o tecido por cima da cabeça, soltando a faixa de
musselina que lhe sustém o peito.
— Muito mais fácil do que espartilhos — murmura ele, beijando-lhe a pele do pescoço, e,
pela primeira vez desde as noites na sua cama de infância, ainda em Villon, Addie sente o calor
subir-lhe ao rosto, atravessar-lhe a pele, entre as pernas.
Guia-a às arrecuas até à enxerga, percorrendo-lhe a garganta com beijos, a curva dos seios,
antes de se soltar e de subir para a cama, para ela. Addie cinde-se em volta dele, com a
respiração entrecortada na primeira investida, e Remy recua, apenas o suficiente para a observar,
para se certificar de que está bem, e, quando ela acena com a cabeça, deixa cair a cabeça para a
beijar e só então continua, se adentra e aprofunda.
As costas de Addie arqueiam quando a pressão dá lugar ao prazer, um calor profundo e
ondulante. Os seus corpos comprimem-se e movem-se juntos, e ela deseja poder apagar os outros
homens, as outras noites, o hálito rançoso e a corpulência desajeitada, as investidas monótonas a
terminar num espasmo súbito e abrupto, antes de saírem, de se afastarem. Para eles, húmido era
apenas húmido, quente era apenas quente, e ela não era mais do que um veículo do seu prazer.
Não pode apagar a memória dessas outras noites — por isso decide tornar-se um palimpsesto,
deixar Remy escrever por cima das outras linhas.
Era assim que deveria ter sido.
O nome Remy sussurrado no seu cabelo não é dela, mas não importa. Nesse momento, pode
ser Anna. Pode ser qualquer pessoa.
A respiração de Remy acelera ao mesmo tempo que o seu ritmo se precipita, que investe mais
profundamente, e Addie sente-se apressar também, o corpo a contrair-se à volta dele, levado ao
extremo pelo balançar das ancas dele e pelos caracóis louros que lhe caem no rosto. Ondula,
contraindo-se cada vez mais, e depois solta-se, e, uns momentos mais tarde, ele também.
Remy desaba ao seu lado, na cama. Mas não se afasta dela. Estende uma mão, afasta uma
madeixa de cabelo da sua face, beija-lhe a têmpora e ri-se, pouco mais do que um sorriso com
som, mas que a aquece profundamente.
Volta a cair contra a almofada, e o sono apodera-se deles, o dele de chumbo, depois do
prazer, e dela leve, como uma sesta, mas sem sonhos.
Addie já não sonha.
Na verdade, não sonha desde a noite no bosque. Ou, se sonhou, é a única coisa de que nunca
se lembra. Talvez não haja espaço dentro da sua cabeça, cheia como está de memórias. Talvez
seja outra faceta da sua maldição, viver apenas como vive. Ou talvez seja uma bênção, num
estranho sentido, pelos muitos pesadelos que haveria de ter.
Mas fica feliz e quente ao lado dele e por algumas horas quase esquece.
Remy rolou para longe dela, no sono, expondo a estreiteza das suas costas. Ela pousa a mão
entre as suas omoplatas e sente-o respirar, passa os dedos pela curvatura da coluna, estudando-
lhe as formas do mesmo modo que ele estudara as suas no meio da paixão. O seu toque é leve
como uma pena, mas, passado um instante, ele mexe-se, vira-se e rebola, ficando de frente para
ela.
Por um breve instante, o seu rosto é amplo e aberto e afável; o rosto que se aproximou dela na
rua e sorriu por entre segredos partilhados no café e riu quando a acompanhou primeiro a casa e
depois até à dele.
Mas, no tempo que demora a acordar completamente, aquele rosto dissipa-se, e todo o
reconhecimento com ele. Uma sombra passa por aqueles calorosos olhos azuis, por aquela boca
agradável. Estremece um pouco, ergue-se sobre um cotovelo, perturbado pela presença daquela
estranha na sua cama.
Porque, como é evidente, agora ela é uma estranha.
Pela primeira vez desde que se conheceram, na noite anterior, franze o sobrolho, balbucia
uma saudação, palavras demasiado formais, rígido de embaraço, e o coração de Addie desfaz-se
um pouco. Está a tentar ser amável, mas não consegue suportar aquilo, por isso levanta-se e
veste-se o mais depressa possível, uma enorme inversão no tempo que demorou a despir a roupa.
Não se preocupa com os atilhos ou com as fivelas. Não se volta a virar para ele, pelo menos até
sentir o calor da sua mão no ombro, o toque quase delicado. Pensa, desesperadamente,
loucamente, que talvez — talvez — haja uma forma de salvar a situação. Vira-se, esperando
encontrar os seus olhos, para dar com ele a olhar para baixo, para outro lado, enquanto coloca
três moedas na mão dela.
E tudo arrefece.
Pagamento.
Passar-se-ão muitos anos até conseguir ler grego, muitos mais antes de ouvir falar no mito de
Sísifo, mas, quando toma conhecimento dele, acenará com a cabeça, em sinal de compreensão,
com as palmas das mãos a doerem de tanto empurrar pedras encosta acima, com o coração
pesado do fardo de as ver rolarem de novo até lá abaixo.
Neste momento, não tem mitos que lhe façam companhia. Apenas aquele magnífico rapaz, de
costas viradas para ela.
Apenas Remy, que não faz qualquer gesto para a acompanhar quando se apressa até à porta.
Algo chama a sua atenção, uma pilha de papéis caídos no chão. O livro do café. O último de
Voltaire. Addie não sabe o que a atrai nele — talvez deseje apenas uma recordação da sua noite,
algo além da moeda terrível que tem na mão —, mas, num instante, o livro está no soalho,
abandonado entre as roupas e, no seguinte, encontra-se encostado ao seu peito, com o resto dos
seus pertences.
As suas mãos afinal tornaram-se mais leves, e, mesmo que o roubo tenha sido desajeitado,
Remy não teria reparado, ali sentado na cama, com a atenção concentrada em tudo menos nela.
Nova Iorque
15 de março de 2014
Addie conduz Henry rua abaixo, dobrando uma esquina para uma porta de aço não identificada,
cheia de cartazes antigos. Um homem demora-se perto dela, a fumar cigarros atrás de cigarros e
a ver fotografias no telemóvel.
— Júpiter — diz ela, de súbito, e o homem endireita-se e abre a porta, expondo uma
plataforma estreita e um lanço de escadas que desce até um ponto longe da vista.
— Bem-vindos ao Fourth Rail.
Henry dirige-lhe um olhar perplexo, mas Addie pega-lhe na mão e puxa-o lá para dentro.
Vira-se, olhando para trás quando a porta se fecha.
— Não há quatro carris no metro — diz ele, e Addie brinda-o com um sorriso.
— Precisamente.
É disso que gosta numa cidade como Nova Iorque. Está cheia de divisões escondidas, de
portas infinitas conduzindo a salas infinitas. E, se se tiver tempo, é possível encontrar muitas
delas. Descobriu algumas por acaso, outras durante uma ou outra aventura. Mantém-nas
guardadas, como folhas de papel entre as páginas do seu livro.
Uma escadaria conduz a outra, a segunda mais larga, de pedra. Os arcos do teto, lá em cima, o
estuque a dar lugar a pedra e depois a tijolo, o túnel iluminado apenas por uma série de lanternas
elétricas, mas tão afastadas umas das outras que pouco fazem de facto para destruir a escuridão.
Um rasto de migalhas, apenas o suficiente para se divisar alguma coisa, motivo pelo qual Addie
tem o prazer de ver a expressão de Henry quando se apercebe de onde estão.
O Metro de Nova Iorque tem quase quinhentas estações ativas, mas o número de túneis
abandonados permanece uma questão controversa. Alguns deles estão abertos ao público,
simultaneamente monumentos ao passado e sinais de aquiescência face a um futuro
indeterminado. Alguns são pouco mais do que caminhos encastoados entre linhas em
funcionamento.
E, depois, alguns deles são secretos.
— Addie... — murmura Henry, mas ela levanta um dedo no ar, inclina a cabeça. À escuta.
A música começa como um eco, um matraquear distante, simultaneamente sensação e som.
Ergue-se a cada degrau que descem, parece encher o ar à sua volta, primeiro como um zunido,
depois como um retumbar e, finalmente, como um batimento.
Mais à frente, o túnel está vedado com tijolo, assinalado apenas pela faixa branca de uma seta
para a esquerda. Dobrando a esquina, a música intensifica-se. Mais um beco sem saída, mais
uma viragem e...
O som abate-se sobre eles.
Todo o túnel vibra com a força do baixo, a reverberação de acordes contra pedra. Projetores
intermitentes a latejar num azul-esbranquiçado, um estroboscópio a reduzir a discoteca escondida
a fotogramas; uma multidão a contorcer-se, corpos a saltar ao som da música; dois artistas a
erguer guitarras elétricas iguais num palco de betão; uma fila de empregados de bar imobilizados
no ato de verter bebidas em copos.
As paredes do túnel estão cobertas de azulejos cinzentos e brancos, faixas largas que
envolvem as arcadas, lá em cima, que as vergam de novo, como costelas, como se estivessem
dentro da barriga de um animal enorme, esquecido, com o ritmo a retumbar através do seu
coração.
O Fourth Rail é primitivo, impetuoso. O tipo de sítio que Luc iria adorar.
Mas este? Este é dela. Addie encontrou o túnel sozinha. Mostrou-o ao músico-que-se-tornou-
empresário, que andava à procura de um sítio. Mais tarde, nessa noite, chegou a sugerir o nome,
com as cabeças inclinadas sobre um guardanapo de cocktail. A caneta dele escreve. A ideia dela.
Tem a certeza de que acordou no dia seguinte com uma ressaca e com os primeiros rascunhos do
Fourth Rail. Seis meses mais tarde, viu o tipo do lado de fora da porta de aço. Viu o logótipo que
criaram, uma versão mais requintada, enfiado por detrás dos cartazes a descascar, e sentiu o
entusiasmo agora familiar de sussurrar algo ao mundo e de o ver tornar-se real.
Addie empurra Henry para o bar improvisado.
É simples, a parede do túnel dividida em três atrás de uma base ampla de pedra clara que
serve de balcão. As opções são vodca, bourbon ou tequila, e um empregado de bar espera, de pé,
diante deles.
Addie pede pelos dois. Duas vodcas.
A transação decorre em silêncio — não vale a pena tentar gritar por cima da parede de som.
Uma série de dedos ergue-se, dez pousam no balcão. O empregado de bar — um rapaz negro
esguio com sombra cinzenta nos olhos — serve dois shots e abre as mãos como um croupier a
dar as cartas.
Henry levanta o copo, e Addie ergue o seu, e as bocas de ambos movem-se ao mesmo tempo
(ela pensa que ele está a dizer à nossa enquanto responde saúde), mas os sons são engolidos,
com o tilintar dos copos a não passar de uma pequena vibração por entre os seus dedos.
A vodca inflama-lhe o estômago como um fósforo, com o calor a florescer por detrás das
costelas. Voltam a colocar os copos vazios em cima do balcão, e Addie já está a puxar Henry em
direção à amálgama de corpos perto do palco, quando o tipo atrás do balcão estende o braço e
agarra no pulso de Henry.
O empregado sorri, apresenta um terceiro copo de shot e volta a servir. Leva as mãos ao peito,
no gesto universal de esta é por minha conta.
Bebem, e ali está de novo o calor, a espalhar-se do peito para os membros, e depois a mão de
Henry na dela, movendo-se na multidão. Addie olha para trás, vendo o empregado de bar a olhar
para eles fixa- mente, e tem uma sensação estranha, a erguer-se como os últimos sedimentos de
um sonho, e quer dizer algo, mas a música é uma parede, e a vodca suaviza-lhe as arestas dos
pensamentos até se dissipar, e depois ambos começam a introduzir-se no meio da multidão.
Lá em cima pode ser início da primavera, mas, ali em baixo, é fim de verão, húmido e pesado.
A música é líquida, o ar espesso como xarope enquanto mergulham por entre os membros
emaranhados. O túnel está revestido a tijolos, atrás do palco, criando uma reverberação
extraordinária, um espaço onde o som se verga, duplica, com cada nota a ser transportada, a
diminuir, sem desaparecer completamente. Os guitarristas tocam um trecho em uníssono
perfeito, reforçando o efeito de eco na câmara, agitando as águas da multidão.
E então a rapariga avança sob as luzes.
Uma fada adolescente — uma coisa feérica, diria Luc —, num vestido preto curto e botas da
tropa. O seu cabelo louro-branco está apanhado no alto da cabeça, arranjado em dois carrapitos
iguais, com as pontas espetadas como uma coroa. A única cor reside na fenda dos seus lábios
vermelhos e no arco-íris desenhado como uma máscara, nos seus olhos. Os guitarristas
apressam-se, com os dedos a voarem sobre as cordas. O ar estremece, a batida martela através de
pele, músculo e osso.
E a rapariga começa a cantar.
A sua voz é um lamento, um grito de fada, se uma fada gritasse afi- nada. As sílabas sangram
juntas, as consoantes esbatem-se, e Addie dá consigo a aproximar-se mais, ansiosa por ouvir as
palavras. Mas estas recuam, deslizam sob o som dos instrumentos, vergam-se sob a energia
selvagem do Fourth Rail.
As guitarras tocam o seu coro hipnótico.
A cantora parece quase um fantoche, puxada pelos fios.
E Addie pensa que Luc a teria adorado, pergunta-se, por um instante, se ali terá estado
alguma vez, desde que ela descobriu aquele lugar. Inspira como se fosse capaz de cheirar a
escuridão, como fumo, no ar. Mas Addie obriga-se a parar, esvazia a cabeça dele, cria, em vez
disso, espaço para o rapaz que se encontra ao seu lado, a saltar ao som da batida.
Henry, com a cabeça inclinada para trás, os óculos a embaciarem-se, cinzentos, e o suor a
escorrer-lhe do rosto como lágrimas. Por um instante, parece impossivelmente,
incomensuravelmente triste, e ela lembra-se da dor na sua voz quando falou de perder tempo.
Mas depois olha para ela e sorri, e tudo desaparece, um truque das luzes, e pergunta-se quem
e como e de onde veio ele, sabe que é tudo demasiado bom para ser verdade, mas, nesse
momento, está simplesmente contente por ele ali estar.
Fecha os olhos, deixa-se entrar no ritmo da música, e está em Berlim, na Cidade do México,
em Madrid, e está ali, naquele momento, com ele.
Dançam até os membros doerem.
Até o suor lhes pintar a pele e o ar se tornar demasiado denso para se respirar. Até haver uma
pausa na música e outra conversa silenciosa ter passado entre os dois como uma centelha.
Até ele a arrastar de volta para o bar e para o túnel, pelo mesmo caminho por onde vieram,
mas o fluxo do movimento faz-se por uma rua de sentido único, as escadas e a porta de aço
conduzem apenas ao interior.
Até que ela vira a cabeça para o outro lado, para um arco negro instalado na parede do túnel,
perto do palco, encaminha-os para as escadas estreitas, com a música a esmorecer um pouco
mais a cada passo que sobem, os ouvidos a zunir do ruído branco deixado para trás.
Até saírem para a noite fresca de março, enchendo os pulmões de ar fresco.
E o primeiro som que Addie ouve é o riso dele.
Henry volta-se para ela, de olhos brilhantes, faces coradas, intoxicado de uma forma que tem
menos a ver com a vodca do que com o poder do Fourth Rail.
Ainda está a rir quando a tempestade começa.
O estrondo de um trovão, e, segundos depois, a chuva começa a cair. Não uma morrinha —
nem sequer as gotas esparsas de aviso que rapidamente dão lugar a um aguaceiro regular —, mas
a súbita precipitação de aço de uma carga de água. O tipo de chuva que nos atinge como tijolos,
que nos encharca completamente em segundos. Addie arqueja ao sentir o choque súbito do frio.
Estão a três metros do toldo mais próximo, mas nenhum deles corre a abrigar-se.
Ela sorri olhando para cima, para a chuva, deixa que a água lhe beije a pele.
Henry olha para ela, e Addie devolve-lhe o olhar, e então ele abre os braços como que a
acolher a tempestade, com o peito a palpitar. A água demora-se nas suas pestanas negras,
desliza-lhe pelo rosto, lavando a discoteca da roupa, e Addie apercebe-se subitamente de que,
apesar dos instantes de semelhança, Luc nunca teve aquele aspeto.
Jovem.
Humano.
Vivo.
Puxa Henry para si, saboreia a compressão do seu corpo, quente contra o frio. Passa-lhe a
mão pelo cabelo e, pela primeira vez, este permanece puxado para trás, expondo as linhas
definidas do seu rosto, as concavidades ávidas do maxilar, os olhos, de um tom de verde mais
claro do que vira neles, até esse momento.
— Addie — sussurra ele, e o som envia faúlhas que lhe percorrem a pele, e, quando a beija,
sabe a sal e a verão. Mas parece-se demasiado com um sinal de pontuação, e ela não está pronta
para que a noite chegue ao fim, por isso devolve-lhe o beijo, de forma mais profunda, transforma
o ponto final numa pergunta, numa resposta.
E então correm, não à procura de abrigo, mas atrás do metro.
Entram aos tropeções no apartamento dele, com as roupas molhadas coladas à pele.
São um emaranhado de membros no átrio, sem se conseguirem aproximar o suficiente. Ela
tira-lhe os óculos do nariz, atira-os para cima de uma cadeira próxima, despe o casaco, com a
pele a colar-se-lhe à pele. E estão de novo a beijar-se. Desesperados, famintos, selvagens,
enquanto os dedos dela lhe percorrem as costelas, se engancham na parte da frente das calças de
ganga dele.
— Tens a certeza? — pergunta ele, e, como resposta, ela puxa-lhe a boca para a sua, guia as
mãos dele para os botões da sua saia enquanto as dela procuram o cinto dele. Henry encosta-a
contra a parede e diz o nome dela, e há relâmpagos na pele de Addie, fogo no seu âmago, desejo
entre as suas pernas.
E depois estão na cama, e, por um instante, apenas por um instante, ela é outra pessoa, outro
tempo, com a escuridão a envolvê-la. Um nome sussurrado contra pele nua.
Mas, para ele, era Adeline, apenas Adeline. A sua Adeline. A minha Adeline.
Ali, agora, é finalmente Addie.
— Diz outra vez — implora.
— Digo o quê? — murmura ele.
— O meu nome.
Henry sorri.
— Addie — sussurra ele contra a sua garganta.
— Addie. — Beija-lhe a linha do pescoço.
— Addie. — O estômago.
— Addie. — As ancas.
A boca dele encontra o calor entre as suas pernas, e os dedos de Addie enredam-se naqueles
caracóis negros, com as costas arqueadas de prazer. O tempo estremece, desfoca-se. Ele faz o
caminho de volta, beija-a de novo, e então ela põe-se em cima dele, comprimindo-o contra a
cama.
Não encaixam perfeitamente. Ele não foi feito para ela, como Luc — mas isto é melhor,
porque é real e amoroso e humano, e ele lembra-se.
Quando chegam ao fim, ela cai, sem fôlego, nos lençóis ao seu lado, com o suor e a chuva a
arrefecerem-lhe na pele. Henry aninha-se à sua volta, puxa-a de novo para o círculo do seu calor,
e Addie consegue sentir o coração dele abrandar atrás das costelas, um metrónomo a regressar ao
seu ritmo.
O quarto fica em silêncio, apenas marcado pela chuva regular atrás das vidraças, o rescaldo
sonolento da paixão, e depressa o sente cair no sono.
Addie olha para o teto.
— Não te esqueças — diz baixinho, com as palavras a assemelharem-se um pouco a uma
prece, um pouco a uma súplica.
Os braços de Henry contraem-se, com o corpo a vir à tona do sono.
— Esqueço o quê? — murmura, já a afundar-se de novo.
E Addie espera que a respiração dele estabilize antes de sussurrar as palavras no escuro.
— De mim.
Paris, França
29 de julho de 1724
Addie acorda com o cheiro a torradas, o fervilhar de manteiga a cair numa frigideira quente. A
cama está vazia ao seu lado, a porta quase fechada, mas consegue ouvir Henry andar pela
cozinha sob o murmúrio suave de conversa de rádio. O quarto está frio, e a cama está quente, e
sustém a respiração tentando preservar o momento, como fez milhares de vezes, prendendo o
passado ao presente e protegendo-se do futuro, da queda.
Mas hoje é diferente.
Porque alguém se lembra.
Atira as cobertas para o lado, vasculha o chão do quarto à procura da roupa, mas não há sinal
das calças de ganga ou da camisa ensopadas pela chuva, apenas o blusão de cabedal familiar
dobrado em cima de uma cadeira. Addie descobre um roupão por baixo e enrola-se nele,
enterrando o nariz no colarinho. Está gasto e macio, cheira a algodão lavado e a amaciador de
roupa, com um ligeiro toque a champô de coco, um cheiro que acabará por reconhecer como
sendo dele.
Vai até à cozinha, descalça, enquanto Henry serve café de uma cafeteira francesa.
Olha para cima e sorri.
— Bom dia.
Duas palavrinhas que transformam o mundo.
Não desculpa. Não não me lembro. Não devia estar com os copos.
Apenas bom dia.
— Pus a roupa no secador — diz. — Deve estar quase seca. Tira uma caneca.
A maior parte das pessoas tem uma prateleira com canecas. Henry tem uma parede inteira.
Estão penduradas em ganchos num armário preso à parede, com cinco divisórias verticais e sete
prateleiras. Algumas têm motivos, outras são lisas, e não há duas iguais.
— Não sei se as canecas que aí tens serão suficientes.
Henry lança-lhe um olhar de esguelha. Tem uma maneira de quase sorrir. É como luz por trás
de uma cortina, o raio de sol por detrás das nuvens, mais uma promessa do que algo real, mas
irradia afeto.
— Era uma tradição, na minha família — diz. — Quem aparecesse para beber café escolhia
uma que lhe dissesse alguma coisa nesse dia.
A sua própria caneca, cinzento-carvão, está pousada na bancada, com o interior revestido por
algo que se assemelha a prata líquida. Uma nuvem de tempestade e o seu revestimento. Addie
analisa a parede, tentando decidir-se por uma. Tira uma caneca grande de porcelana com
folhinhas azuis e sente o seu peso na palma mão, antes de reparar noutra. Está prestes a devolvê-
la à prateleira, quando Henry a detém.
— Lamento imenso, mas todas as escolhas são definitivas — diz, barrando a torrada com
manteiga. — Terás de tentar de novo amanhã.
Amanhã. A palavra incha um pouco no seu peito.
Henry serve o café, e Addie pousa os cotovelos em cima da bancada, envolvendo a caneca
fumegante com as mãos, e inspira o aroma agridoce. Por um segundo, apenas por um segundo,
está em Paris, com o chapéu puxado para baixo, num canto do café, enquanto Remy lhe
empurrava a chávena e dizia Bebe. É assim que as memórias são, para ela, o passado a vir à tona
no presente, um palimpsesto visto à transparência.
— Oh, ei — diz Henry, chamando-a. — Encontrei isto no chão. É teu? — ela olha para cima
e vê o anel de madeira.
— Não toques nisso. — Addie retira-lho da mão, demasiado depressa. O interior do anel
aflora a ponta do seu dedo, contorna a unha como uma moeda prestes a pousar, com a facilidade
de uma bússola a encontrar o Norte.
— Merda. — Addie estremece e deixa cair o anel. Este cai com estrépito no chão, rolando
vários metros antes de parar ao embater na ponta de um tapete. Agarra os dedos como se se
tivesse queimado, com o coração a matraquear.
Não o pôs.
E, mesmo que o tivesse feito... o seu olhar atravessa a janela, mas é de manhã, a luz do sol
entra pelas cortinas em borbotões. A escuridão não a poderá encontrar ali.
— O que foi? — pergunta Henry, claramente confuso.
— Nada — diz ela, abanando a mão. — Foi só uma lasca. Raio de coisa. — Ajoelha-se
lentamente para o apanhar, tendo o cuidado de tocar apenas o exterior do anel. — Desculpa —
diz ela, pondo-se de pé. Pousa o anel em cima da bancada, entre ambos, abrindo as mãos de cada
um dos lados do mesmo. Sob a luz artificial, a madeira clara parece quase cinzenta. Addie olha
para o anel.
— Alguma vez tiveste uma coisa que adoras e odeias, mas não te consegues livrar dela? Algo
que quase desejavas perder, porque assim deixava de estar ali, e a culpa não seria tua se... —
tenta aligeirar as palavras, torná-las quase casuais.
— Sim — diz ele baixinho. — Tenho. — Abre uma gaveta da cozinha e tira um objeto
pequeno e dourado. Uma estrela de David. Um pendente, sem o fio correspondente.
— És judeu?
— Fui. — Duas palavras, é tudo o que tenciona dizer. A atenção desvia-se novo para o anel.
— Parece antigo.
— É. — Tem exatamente a sua idade.
Ambos deveriam há muito ter-se consumido.
Coloca a mão sobre o anel, sente a orla de madeira macia enterrar-se na palma.
— Pertenceu ao meu pai — disse, e não é mentira, embora seja apenas o princípio da verdade.
Fecha as mãos em volta do anel e guarda-o no bolso. O anel não tem peso, mas consegue senti-
lo. Consegue sempre senti-lo.
— Enfim — diz ela, com um sorriso demasiado resplandecente. — O que é o pequeno-
almoço?
A primeira vez que Henry viu Tabitha Masters, ela estava a dançar.
Devia haver dez como ela em palco. Henry estava ali para ver Robbie atuar, mas os membros
dela tinham poder de atração, a sua forma, uma espécie de gravidade. O seu olhar continuava a
incidir sobre ela. Era o tipo de beleza de tirar o fôlego, aquele que não se consegue captar numa
fotografia, porque a magia está no movimento. A forma como se mexia era uma história que se
contava apenas com uma melodia e um vergar de coluna, com uma mão alongada, uma descida
lenta até ao solo escurecido.
A primeira vez que se conheceram foi numa festa depois de um espetáculo.
No palco, os seus traços eram uma máscara, uma tela para a arte das outras pessoas. Mas ali,
na sala apinhada de gente, Henry só conseguia ver o seu sorriso. Ocupava todo o seu rosto, do
queixo pontiagudo à linha do cabelo, um tipo de alegria devoradora que não conseguia parar de
observar. Estava a rir-se de qualquer coisa — nunca descobriu de quê —, e era como se alguém
tivesse acendido todas as luzes da sala.
E, ali, nesse momento, o seu coração começou a doer.
Henry demorou trinta minutos e três bebidas para arranjar coragem para dizer olá, mas, a
partir desse momento, foi fácil. O ritmo e o fluxo de frequências em sincronia. E, pelo fim da
noite, apaixonava-se.
Já se apaixonara antes.
Sophia no liceu.
Robbie na faculdade.
Sarah, Ethan, Jenna — mas era sempre difícil, complicado. Cheio de começos e paragens, de
viragens no sítio errado e de becos sem saída. Mas, com Tabitha, era fácil.
Dois anos.
Foi o tempo que estiveram juntos.
Dois anos de jantares e pequenos-almoços e gelados no parque e ensaios de dança e ramos de
rosas, de dormirem em casa um do outro, de brunches aos fins de semana e de ver séries
televisivas de enfiada e de viagens ao Norte para ela conhecer os pais dele.
Dois anos a beber menos por causa dela e a manter-se sóbrio por causa dela, a arranjar-se por
causa dela e a comprar coisas para as quais não tinha dinheiro porque queria fazê-la sorrir, queria
fazê-la feliz.
Dois anos, e nem uma única discussão, e agora pensa que afinal talvez não fosse assim tão
bom.
Dois anos — e, algures entre uma pergunta e uma resposta, tudo desabou.
Com um joelho no chão e um anel no meio do parque, Henry é um verdadeiro idiota, porque
ela disse não.
Ela disse não, e essa nem foi a pior palavra.
— És espetacular — disse ela. — És mesmo. Mas não és...
E não termina, e não tem de o fazer, porque ele sabe o que vem a seguir.
Não és a pessoa certa.
Não és suficiente.
— Pensei que te querias casar.
— E quero. Um dia.
As palavras, claras como a água, apesar de nunca terem sido ditas.
Mas não contigo.
E depois desapareceu, e agora Henry está ali, no bar, e está embriagado, mas não
suficientemente embriagado.
Sabe, porque o mundo ainda ali está, porque toda a noite ainda parece demasiado real, porque
tudo ainda magoa. Está reclinado para a frente, com o queixo apoiado nos braços dobrados,
especado a olhar por entre a coleção de garrafas vazias em cima da mesa. A sua imagem
devolve-lhe o olhar de meia-dúzia de reflexos distorcidos.
O Merchant está cheio de gente, um muro de ruído branco, por isso Robbie tem de gritar por
cima da barulheira.
— Ela que se lixe.
E, por algum motivo, vindo do seu ex-namorado, aquilo não faz Henry sentir-se muito
melhor.
— Estou bem — diz, da forma automática com que as pessoas respondem sempre que se lhes
pergunta como estão, apesar de o seu coração estar escancarado, pendurado pelas dobradiças.
— É melhor assim — acrescenta Bea, e se fosse outra pessoa qualquer a dizê-lo, a rapariga
tê-lo-ia expulsado para o canto do bar por ser uma banalidade. Dez minutos de intervalo para
lugares-comuns. Mas é tudo o que têm para ele nessa noite.
Henry termina a bebida que tem à sua frente e pega noutra.
— Calma, miúdo — diz Bea, esfregando-lhe a nuca.
— Estou bem — volta a dizer.
E ambos o conhecem o suficiente para saber que é mentira. Conhecem o seu coração
despedaçado. E ambos o apoiaram durante as suas tempestades. São as melhores pessoas da sua
vida, aquelas que o mantêm de pé ou, pelo menos, que o impedem de se desmoronar. Mas,
naquele momento, existem demasiadas fendas. Naquele momento, existe um fosso entre as
palavras deles e os ouvidos dele, as mãos deles e a pele dele.
Estão mesmo ali, mas parecem estar muito longe.
Olha para cima, estudando as suas expressões, repletas de comiseração, sem surpresa, e uma
consciência cai sobre ele como um arrepio.
— Vocês sabiam que ela ia recusar.
O silêncio prolonga-se um pouco de mais. Bea e Robbie trocam um olhar, como se
estivessem a tentar decidir quem tomará a iniciativa, e então Robbie estende o braço para lhe
agarrar a mão.
— Henry...
Ele recua.
— Vocês sabiam.
Agora está de pé, quase a embater na mesa atrás dele.
O rosto de Bea franze-se.
— Vá lá. Senta-te.
— Não. Não. Não.
— Ei — diz Robbie, apoiando-o. — Vou levar-te a casa.
Mas Henry detesta a forma como Robbie está a olhar para ele, por isso abana a cabeça, apesar
de o gesto fazer a sala toldar-se.
— Não — diz ele. — Só quero estar sozinho.
A maior mentira que alguma vez disse.
Mas a mão de Robbie solta-se, e Bea abana a cabeça na direção dele, e ambos deixam Henry
ir-se embora.
Em The Last Word, Henry destranca a grade e abre a porta enquanto termina o café. Vira o
letreiro e passa pela rotina de alimentar Book e de abrir a loja e arrumar livros novos na prateleira
até que a campainha tilinta, anunciando o seu primeiro cliente.
Henry percorre as prateleiras cheias de livros para deparar com uma senhora idosa, a
caminhar penosamente por entre os corredores, entre história e mistério e depois romance e de
volta ao início. Dá-lhe alguns minutos, mas, quando ela descreve a mesma volta pela terceira
vez, aproxima-se.
— Posso ajudá-la?
— Não sei, não sei — murmura, um pouco para si mesma, mas depois vira-se para olhar para
ele, e algo muda no seu rosto. — Quero dizer, sim, por favor, espero que sim. — Há um ligeiro
brilho nos seus olhos, uma cintilação remelosa, e explica que anda à procura de um livro que já
leu.
— Ultimamente, não me consigo lembrar do que li e do que não li — explica, abanando a
cabeça. — Soa tudo tão familiar. Todas as capas parecem iguais. Porque farão as coisas assim?
Porque farão tudo parecer semelhante?
Henry presume que terá a ver com marketing e com tendências, mas sabe que provavelmente
não ajudará dizê-lo. Em vez disso, pergunta-lhe se se lembra de alguma coisa sobre o livro.
— Oh, deixe ver. Era um livro grande. Era sobre a vida e a morte, e sobre história.
Aquilo não reduz propriamente as possibilidades, mas Henry está habituado à falta de
pormenores. Ao número de pessoas que ali entram, à procura de algo que viram, sem
conseguirem dizer mais do que «A capa era vermelha» ou «Acho que tinha a palavra rapariga no
título».
— Era triste e maravilhoso — explica a idosa. — Tenho a certeza de que se passava em
Inglaterra. Oh, meu Deus. A minha cabeça. Acho que tinha uma rosa na capa.
Olha em volta, para as prateleiras, contorcendo as mãos. E obviamente não vai decidir, por
isso é ele quem o faz. Desesperadamente pouco à vontade, tira um romance histórico denso da
prateleira de ficção mais próxima.
— Seria este? — pergunta, apresentando-lhe Wolf Hall. Mas, mal o tem na mão, sabe que não
é aquele. Tem uma papoila na capa, não uma rosa, e não há nada de especialmente triste ou
maravilhoso na vida de Thomas Cromwell, ainda que a escrita seja bela e comovente. —
Esqueça este — diz, já estendendo o braço para o devolver à prateleira, quando o rosto da idosa
de ilumina de prazer.
— É esse! — agarra-lhe no braço com dedos ossudos. — Era exatamente aquele de que
andava à procura. — Henry tem dificuldade em acreditar, mas a alegria da senhora é tão evidente
que começa a duvidar de si mesmo.
Está prestes a registar o livro quando se lembra. Atkinson. Life After Life. Um livro sobre a
vida e a morte e sobre história, triste e maravilhoso, passado em Inglaterra, com duas rosas na
capa.
— Espere — diz ele, contornando a esquina e avançando até à secção de ficção recente para ir
buscar o livro.
— Será este?
O rosto da senhora ilumina-se, exatamente como antes.
— Sim! Mas que inteligente! É esse mesmo — diz, com a mesma convicção.
— Ainda bem que pude ajudar — diz Henry, sem ter a certeza de o ter feito.
A senhora decide levar os dois livros, diz que tem a certeza de que vai gostar deles.
O resto da manhã é igualmente estranho.
Um homem de meia-idade aparece à procura de um thriller e sai com cinco títulos que Henry
recomenda. Uma estudante universitária vem em busca de um livro sobre mitologia japonesa e,
quando Henry lamenta não o ter na livraria, ela praticamente tropeça nas palavras para dizer que
a culpa não é dele e insiste em deixá-lo encomendá-lo para ela, apesar de não ter a certeza de vir
realmente a fazer a cadeira. Um tipo com constituição de modelo e um maxilar mais pronunciado
do que um canivete surge para analisar a secção de fantasia e escreve o seu endereço de e-mail
no recibo, por baixo da assinatura, quando paga.
Henry sente-se desajustado, como quando Muriel lhe disse que estava com bom aspeto. É
como um déjà vu, e nada como um déjà vu, porque a sensação é completamente nova. É como o
dia 1 de abril, quando as regras mudam e tudo é uma brincadeira e toda a gente participa, e
Henry ainda está encantado com o último encontro, com o rosto um pouco corado, quando
Robbie irrompe porta adentro, com a campainha a tinir à sua passagem.
— Oh, meu Deus — diz, abraçando Henry, e por um instante este pensa que algo terrível
deve ter acontecido, antes de se aperceber de que já aconteceu, à sua própria pessoa.
— Está tudo bem — diz Henry, e claro que não está, mas o dia foi tão estranho que tudo o
que se passou antes dele parece um sonho. Ou será que o sonho é agora? Se for, não tem assim
tanta vontade de acordar. — Está tudo bem — volta a dizer.
— Não tem de estar tudo bem — diz Robbie. — Só quero que saibas que estou aqui, também
estaria presente ontem à noite... quis passar por tua casa quando vi que não respondias ao
telemóvel, mas a Bea disse que te devíamos dar espaço, e, não sei porquê, dei-lhe ouvidos.
Desculpa.
Tudo isto sai numa correnteza única de palavras.
Robbie aperta-o com mais força enquanto fala, e Henry saboreia o abraço. Encaixam um no
outro com o conforto familiar de um casaco muito usado. O abraço demora-se um pouco demais.
Henry pigarreia e recua, e Robbie lança uma gargalhada desajeitada e vira-se, com o rosto a
captar a luz. Henry repara então numa estreita linha roxa ao longo da têmpora de Robbie, no
ponto exato em que esta encontra a raiz do seu cabelo cor de areia.
— Estás a brilhar.
Robbie esfrega a maquilhagem sem grande empenho.
— Oh, ensaio.
Há um brilho estranho nos olhos de Robbie, um aspeto vítreo que Henry conhece demasiado
bem, e pergunta-se se Robbie terá tomado alguma coisa ou se simplesmente passou algum tempo
sem dormir. Na faculdade, Robbie ficava tão pedrado em drogas ou sonhos ou grandes ideias que
esgotava toda a energia do corpo e depois adormecia.
Ouve a campainha da porta.
— Filho da mãe — anuncia Bea, atirando com a mochila para cima do balcão. — Sacana!
Cabeça de avestruz!
— Olha os clientes — avisa Henry, apesar de o único que se encontra então por perto ser um
idoso surdo, um frequentador habitual chamado Michael, que frequenta a secção de terror.
— A que devemos esta birra? — pergunta Robbie alegremente. O drama deixa-o sempre de
bom humor.
— O estúpido do meu orientador — diz ela, passando por eles de rompante, em direção à
secção de história de arte. Olham um para o outro e depois vão atrás dela.
— Não gostou da proposta? — perguntou Henry.
Bea passou a maior parte do ano a tentar obter a aprovação de um tema para uma dissertação.
— Recusou-a! — precipita-se por um dos corredores, quase fazendo tombar uma pilha de
revistas. Henry segue-a, fazendo os possíveis para compor a destruição espalhada à sua
passagem.
— Disse que era demasiado esotérica. Como se soubesse o significado da palavra... nem que
ela lhe desse uma dentada no traseiro.
— Usa-a numa frase — pede Robbie, mas ela ignora-o, levantando o braço para retirar um
livro de cima.
— Aquele cadáver...
E outro.
— ... tacanho...
E outro.
— ... de cérebro bafiento.
— Isto não é uma biblioteca — diz Henry enquanto ela transporta a pilha de livros até à
cadeira de couro baixa ao canto e se refastela nela, espantando a bolinha de pelo laranja de entre
duas almofadas gastas.
— Desculpa, Book — murmura, levantando o gato cuidadosamente e pousando-o nas costas
da cadeira velha, onde ele faz a sua melhor imitação de um pão de forma contrariado. Bea
continua a emitir uma fiada de impropérios em voz baixa, enquanto passa as páginas dos livros.
— Sei exatamente do que precisamos — diz Robbie, voltando-se para a sala de dispensário.
— A Meredith não tem uma reserva de uísque guardada nas traseiras?
E, apesar de serem apenas três da tarde, Henry não protesta. Deixa-se cair até ao chão, senta-
se com as costas viradas para a prateleira mais próxima, de pernas estendidas, sentindo-se de
súbito insuportavelmente cansado.
Bea olha para ele e suspira.
— Desculpa — começa, mas Henry agita a mão como sinal para que continue a falar.
— Por favor, podes continuar a amaldiçoar o teu orientador e a dar cabo da minha secção de
história de arte. Alguém tem de se comportar normalmente.
Mas ela fecha o livro, pousa-o em cima da pilha e junta-se a Henry, no chão.
— Posso dizer-te uma coisa? — A voz dela sobe ligeiramente no fim da frase, mas Henry
sabe que não é uma pergunta. — Estou contente por teres acabado com a Tabitha.
Uma pontada de dor, como o corte na palma da mão.
— Foi ela que acabou comigo.
Bea agita a mão como se esse pormenor não importasse.
— Mereces alguém que te ame por quem és. Pelo bom, pelo mau e pelo que é exasperante.
Queres ser amado. Queres ser suficiente.
Henry engole em seco.
— Pois, bem, ser eu mesmo não tem corrido lá muito bem.
Bea inclina-se para ele.
— Mas a questão é essa, Henry, não tens sido tu próprio. Desperdiças imenso tempo com
pessoas que não te merecem. Com pessoas que não te conhecem, porque não deixas que te
conheçam. — Bea põe-lhe as mãos em volta do rosto, com aquele brilho estranho nos olhos. —
Henry, tu és inteligente e delicado e irritante. Detestas azeitonas e pessoas que falam durante os
filmes. Gostas de batidos e de pessoas que consigam rir até chorar. Achas que é um crime passar
partes de um livro sem as ler. Quando te zangas, ficas calado, quando estás triste, barafustas, e,
quando cantarolas, estás feliz.
— E?
— E não te oiço cantarolar há anos. — As mãos dela afastam-se do seu rosto. — Mas já te vi
comer uma tonelada de azeitonas.
Robbie regressa com uma garrafa e três canecas na mão. O único cliente de The Last Word
sai lentamente, e então Robbie fecha a porta atrás dele, virando o letreiro para fechado. Vem
sentar-se no chão entre Henry e Bea e arranca a tampa da garrafa com os dentes.
— Estamos a beber para celebrar o quê? — pergunta Henry.
— Os recomeços — diz Robbie, com os olhos ainda a brilhar enquanto enche os copos.
Nova Iorque
18 de março de 2014
— Estás atrasado.
Bea está à espera nos degraus da livraria.
— Desculpa — diz ele, destrancando a porta. — Mas isto continua a não ser uma biblioteca
— acrescenta enquanto ela atira com uma nota de cinco dólares para cima do balcão e
desaparece na secção de arte. Bea emite um hum-hum prudente, e ele ouve-a tirar livros das
prateleiras.
Bea foi a única pessoa que não mudou, a única que não o parece tratar de forma diferente.
— Ei — diz ele, seguindo-a pelo corredor. — Pareço-te estranho?
— Não — diz ela, analisando as prateleiras.
— Bea, olha para mim.
Ela vira-se e faz-lhe uma avaliação de cima a baixo.
— Para além de teres batom no pescoço?
Henry cora, esfregando a pele.
— Sim — diz —, para além disso.
Ela encolhe os ombros.
— Nem por isso.
Mas ali, nos olhos dela, a mesma cintilação inconfundível, uma película leve e iridescente que
parece espalhar-se enquanto o analisa.
— A sério? Nada?
Bea tira um livro da prateleira.
— Henry, o que queres que diga? — pergunta, procurando um segundo. — Pareces tu
próprio.
— Então não... — não sabe como perguntar. — Então não me desejas?
Bea vira-se, olha para ele por algum tempo e depois desata a rir.
— Desculpa, querido — diz, quando recupera o fôlego. — Não me leves a mal. És giro. Mas
eu continuo a ser lésbica.
E, no momento em que o diz, ele sente-se absurdo e absolutamente aliviado.
— O que se passa? — pergunta ela.
Fiz um pacto com o diabo e agora quem quer que olhe para mim vê apenas aquilo que
deseja. Abana a cabeça.
— Nada. Não ligues.
— Bem — diz ela, acrescentando mais um livro à pilha —, acho que descobri um novo tema
para a tese.
Carrega os volumes de volta ao balcão e espalha-os por cima dos livros contabilísticos e dos
recibos. Henry vê-a virar as páginas até encontrar aquilo que procura em cada um deles e depois
recua para conseguir ver o que ela descobriu.
Três retratos, todos eles representações de uma jovem, apesar de provirem claramente de
tempos e escolas diferentes.
— O que me estás a mostrar? — pergunta ele.
— Chamo-lhe o fantasma da moldura.
Um deles é um esboço a lápis, com os contornos indefinidos, inacabados. Nele, uma mulher
está deitada de bruços, enrolada em lençóis. O cabelo espalha-se à sua volta, e o seu rosto é
pouco mais do que aplicações de sombra, com algumas sardas suaves espalhadas pelas faces. O
título da peça está escrito em italiano.
Ho Portato le Stelle a Letto
A tradução fica aquém.
Levei as Estrelas para a Cama.
A segunda peça é francesa, um retrato mais abstrato, realizado nos azuis e verdes intensos do
impressionismo. A mulher está sentada numa praia, com um livro virado ao contrário na areia, ao
seu lado. Olha por cima do ombro, para o artista, com apenas o contorno do rosto visível, as
sardas pouco mais do que manchas de luz, ausências de cor.
La Sirène, é como se chama este.
A Sereia.
A última peça é um baixo-relevo suave, um perfil esculpido a contraluz, pontinhos perfurados
talhados numa peça de cerejeira.
Constelação.
— Estás a ver? — pergunta Bea.
— São retratos.
— Não — diz ela —, são retratos da mesma mulher.
Henry levanta uma sobrancelha.
— Essa é arrojada.
— Repara no ângulo do maxilar, na linha do nariz e nas sardas.
Conta-as.
Henry fá-lo. Em cada imagem, são exatamente sete.
Bea toca no primeiro e no segundo.
— O italiano é da viragem do século xix. O francês é de cinquenta anos mais tarde. E este —
diz, batendo na fotografia da escultura —, este é dos anos sessenta.
— Então talvez um tenha sido inspirado pelo outro — diz Henry. — Não havia uma tradição
de... não me lembro de como se chamava, mas que era basicamente um telefone visual? Um
artista escolhia uma coisa, e depois outro artista escolhia esse artista, e por aí fora? Como um
modelo.
Mas Bea já está a recusar a ideia com um aceno da mão.
— Claro, nos léxicos e nos bestiários, mas não nas escolas formais de arte. Isto é como pôr a
rapariga do brinco de pérola num quadro do Warhol e do Degas, sem nunca ver visto a pintura de
Vermeer. E, mesmo que ela se tivesse tornado um modelo, o facto é que este «modelo»
influenciou séculos de arte. É tecido conjuntivo entre eras. Portanto...
— Portanto... — repete Henry.
— Portanto, quem era ela? — os olhos de Bea estão brilhantes, como os de Robbie às vezes,
quando acabou de fazer um bom espetáculo ou de snifar cocaína, e Henry não quer desanimá-la,
mas Bea está claramente à espera de que diga alguma coisa.
— Muito bem — começa, suavemente. — Mas, Bea, e se ela não for ninguém de importante?
Mesmo que estes retratos se baseiem na mesma mulher, e se o primeiro artista simplesmente a
inventou? — Bea franze o sobrolho, já a abanar a cabeça. — Repara — diz ele —, ninguém,
mais do que eu, quer que descubras um tema para a tua dissertação. Por esta loja, bem como pela
tua sanidade mental. E tudo isto parece muito fixe. Mas a tua última proposta não foi rejeitada
pelo facto de ser demasiado extravagante?
— Esotérica.
— Exato — diz Henry. — E se um tema como «O pós-modernismo e os seus efeitos na
arquitetura de Nova Iorque» era demasiado esotérico, o que achas que o professor Parrish irá
pensar deste?
Gesticula para os livros abertos, com os rostos sardentos a fitarem-no de cada página.
Bea olha para ele em silêncio por um bom bocado e depois para os livros.
— Raios! — grita, pegando num dos livros gigantes e saindo da loja de rompante.
Henry vê-a sair e suspira.
— Isto não é uma biblioteca — grita à sua passagem, devolvendo o resto dos livros às
prateleiras.
Nova Iorque
18 de março de 2014
Uma semana mais tarde, estão no Merchant, ele e Bea e Robbie, com três cervejas e um cesto
de batatas fritas de permeio.
— Como está a Vanessa? — pergunta ela, enquanto Robbie olha intencionalmente para a sua
bebida.
— Está ótima — diz Henry.
E está. Ele está. Estão ambos.
— Tens passado muito tempo com ela.
Henry franze a testa.
— Foste tu que me disseste para esquecer a Tabitha.
Bea levanta as mãos em sinal de defesa.
— Eu sei, eu sei.
— É recente. Sabes como são as coisas. Ela é...
— Uma cópia chapada — murmura Robbie.
Henry vira-se para ele.
— O que disseste? — pergunta, irritado. — Fala. Sei que te ensinaram a projetar a voz.
Robbie bebe um longo gole de cerveja, aparentando um ar infeliz.
— Estou só a dizer que ela é uma cópia chapada da Tabby. Magra, loura...
— Mulher?
Há muito tempo que existe um ponto sensível entre ambos, o facto de Henry não ser gay, de
primeiro ser atraído por uma pessoa e só depois pelo seu género. Robbie retrai-se, mas não pede
desculpa.
— Além disso — diz Henry. — Não fui eu que fui atrás da Vanessa. Foi ela que me engatou.
Gosta de mim.
— E tu gostas dela? — pergunta Bea.
— Claro que sim — diz ele, um pouco depressa demais. Gosta dela. E, claro, também gosta
do facto de ela gostar dele (o ele que ela vê), e existe um diagrama de Venn entre os dois, um
ponto em que se sobrepõem. Tem quase a certeza de que se encontra em segurança na zona
sombreada. Não está propriamente a usá-la, certo? Pelo menos, não é o único a ser superficial —
ela também o está a usar, a pintar outra pessoa qualquer na tela da sua vida. E, se for mútuo,
bem, a culpa não é dele... ou será?
— Só queremos que sejas feliz — diz Bea. — Depois de tudo o que aconteceu,
simplesmente... não avances demasiado depressa.
Mas, pela primeira vez na vida, não é ele que precisa de abrandar.
Henry acordou nessa manhã com panquecas com pepitas de chocolate e um copo de sumo de
laranja, um bilhetinho escrito à mão em cima da bancada ao lado do tabuleiro com um coração e
um V. Ela ficou a dormir lá em casa nas últimas três noites e, de cada uma das vezes, deixou
qualquer coisa para trás. Uma blusa. Um par de sapatos. Uma escova de dentes no copo, junto ao
lavatório.
Os amigos fitam-no, com a névoa clara ainda a rodopiar-lhes nos olhos, e ele sabe que se
preocupam, sabe que gostam dele, sabe que só querem o melhor para ele. Agora têm de o fazer,
por causa do pacto.
— Não se preocupem — diz ele, beberricando a cerveja. — Eu vou devagar.
— Henry...
Está meio a dormir quando a sente percorrer-lhe as costas com uma unha pintada. Uma luz
cinzenta e fraca atravessa as janelas.
— Hum? — diz ele, voltando-se para ela.
Vanessa tem a cabeça numa mão, o cabelo louro espalhado sobre a almofada, e ele pergunta-
se há quanto tempo estará assim inclinada, à espera de que ele acorde, antes de finalmente
intervir.
— Tenho de te dizer uma coisa. — Fita-o, com os olhos cobertos por aquela luz leitosa. Ele
começa a recear aquele brilho, o fumo claro que o persegue, de rosto em rosto.
— O que foi? — pergunta, apoiando-se num dos cotovelos. — Qual é o problema?
— Nada. Eu só... — abre-se num sorriso. — Amo-te.
E o mais assustador é que parece falar a sério.
— Não tens de dizer o mesmo. Sei que é demasiado cedo. Só queria que soubesses.
Aconchega-se a ele.
— Tens a certeza? — pergunta ele. — Quero dizer, só se passou uma semana.
— E depois? — diz ela. — Quando se sabe, sabe-se. E eu sei.
Henry engole em seco, beija-lhe a têmpora.
— Vou tomar um duche.
Fica debaixo da água quente o máximo que consegue, a perguntar-se o que deverá responder
àquilo, se e como poderá convencer Vanessa de que não é amor, apenas uma obsessão, mas,
claro, isso também não é verdade. Fez o pacto. Definiu as condições. Era isto que desejava.
Ou não?
Fecha a torneira, enrola a toalha à cintura e sente o cheiro a fumo. Não o aroma de um fósforo
a acender uma vela ou de algo a ferver ao lume, mas o cheiro a queimado de coisas que não
deviam estar a arder, mas agora estão.
Henry irrompe pelo corredor e vê Vanessa na cozinha, diante da bancada, com uma caixa de
fósforos numa mão e a caixa de cartão com as coisas de Tabitha a arder no lava-louça.
— O que estás a fazer? — pergunta.
— Estás a agarrar-te ao passado — diz ela, riscando outro fósforo e atirando-o para dentro da
caixa. — Estás literalmente a agarrar-te a ele. Tens esta caixa desde que estamos juntos.
— Só te conheço há uma semana! — grita ele, mas ela insiste.
— E mereces melhor. Mereces ser feliz. Mereces viver no presente. Isto é uma coisa boa. Isto
é um ponto final. Isto é...
Henry arranca-lhe os fósforos da mão e empurra-a para o lado, estendo o braço para a
torneira.
A água atinge a caixa fazendo um crepitar, enviando uma nuvem de fumo, enquanto apaga as
chamas.
— Vanessa — diz ele, rangendo os dentes —, preciso que te vás embora.
— Mas quê? Tipo, para casa?
— Tipo, sai.
— Henry — diz ela, tocando-lhe no branco. — O que fiz eu de mal?
E ele poderia apontar os despojos em combustão no lava-louça da cozinha ou facto de tudo
estar a avançar demasiado depressa ou o de, quando ela olha para ele, ver uma pessoa
completamente diferente. Mas, em vez disso, limita-se a dizer.
— Não és tu. Sou eu.
— Não, não és — diz ela, com as lágrimas a deslizarem-lhe pelo rosto.
— Preciso de espaço, OK?
— Desculpa — soluça ela, agarrando-se a ele. — Desculpa. Amo-te.
Os braços dela envolvem-lhe a cintura, a cabeça enterrada no seu peito, e, por um segundo,
pensa que poderá ter de a enxotar, fisicamente.
— Vanessa, larga-me.
Condu-la até à porta, e ela tem um ar devastado, destroçado. Assemelha-se à forma como ele
próprio se sentia na noite em que fez o pacto, e parte-lhe o coração pensar que irá sair dali a
sentir-se igualmente perdida, igualmente sozinha.
— Gosto de ti — diz ele, agarrando-a pelos ombros. — Gosto de ti, a sério.
Ela anima-se, apenas um pouco. Uma planta a murchar regada com água.
— Então não estás zangado?
Claro que está zangado.
— Não, não estou zangado.
Ela enterra o rosto no peito dele, e ele acaricia-lhe o cabelo.
— Gostas de mim.
— Gosto. — Liberta-se dela. — Eu ligo-te. Prometo.
— Prometes — repete ela, enquanto ele a ajuda a reunir as suas coisas.
— Prometo — diz ele, enquanto a conduz corredor fora, até à porta.
A porta fecha-se entre os dois, e Henry deixa-se escorregar encostado a ela, quando o alarme
de fumo finalmente dispara.
Nova Iorque
23 de outubro de 2013
— Noite de cinema!
Robbie atira-se para o sofá de Henry e posiciona-se como uma estrela-do-mar, com os
membros compridos a saírem pelas costas e pelas extremidades. Bea revira os olhos e empurra-o.
— Chega-te para lá.
Henry tira o saco do micro-ondas, passando-o de uma mão para a outra, para evitar o vapor.
Despeja as pipocas na taça.
— Qual é o filme? — pergunta, contornando o balcão.
— The Shining.
Henry lamenta-se. Nunca foi fã de filmes de terror, mas Robbie adora ter um motivo para
gritar, trata tudo aquilo como outro tipo de interpretação, e é a semana em que é ele escolher.
— É Halloween! — alega Robbie.
— É dia 23 — diz Henry, mas Robbie trata as festividades do mesmo modo que os
aniversários, alongando-os de dias em semanas e por vezes estações inteiras.
— Hora de rever os disfarces — diz Bea.
Mascarar-se, pensa, é como ver desenhos animados, algo de que se gostava quando se era
criança, antes de se passar pela terra de ninguém da angústia adolescente, pela idade irónica do
início da casa dos 20. E depois, de alguma forma, milagrosamente, regressa-se ao reino do
genuíno, do nostálgico. A um lugar reservado à fantasia.
Robbie faz uma pose no sofá.
— Ziggy Stardust — diz, o que faz sentido. Passou os últimos anos a trabalhar várias
encarnações de Bowie. No ano passado foi Thin White Duke.
Bea anuncia que vai de Dread Pirate Roberts, num jogo de palavras intencional, e Robbie
estende o braço e tira uma máquina fotográfica da mesa de café de Henry, uma Nikon vintage
que faz agora as funções de pesa-papel. Inclina a cabeça para trás e espreita Henry através do
visor, de pernas para o ar.
— E tu?
Henry sempre gostou do Halloween — não da parte assustadora, apenas do pretexto para
mudar, para ser outra pessoa. Robbie diz que devia simplesmente ter-se tornado ator, que podem
brincar às mascaradas o ano inteiro, mas a ideia de viver a vida no palco deixa-o nauseado. Já foi
Freddie Mercury e o Chapeleiro Louco, o Mascarado e o Joker.
Mas nesse momento já se sente outra pessoa.
— Já estou disfarçado — diz ele, gesticulando para as suas calças de ganga pretas habituais,
para a camisa estreita. — Não conseguem adivinhar quem sou?
— Peter Parker? — arrisca Bea.
— Um vendedor de livros?
— O Harry Potter numa crise de meia-meia-idade?
Henry ri-se e abana a cabeça.
Bea semicerra os olhos.
— Ainda não escolheste nada, pois não?
— Não — reconhece ele —, mas vou escolher.
Robbie ainda está a brincar com a máquina. Vira-a, comprime os lábios e tira uma fotografia.
A máquina emite um clique oco. Não tem rolo. Bea tira-lha das mãos.
— Porque não tiras mais fotografias? — pergunta. — És mesmo bom.
Henry encolhe os olhos, sem ter a certeza se ela acredita realmente nisso.
— Talvez noutra encarnação — diz ele, entregando uma cerveja a cada um deles.
— Ainda o podes fazer, sabes — diz ela. — Não é demasiado tarde.
Talvez, mas, se começasse agora, valeriam as fotografias por si mesmas, consideradas boas
ou más por mérito próprio? Ou cada uma das fotografias transportaria o seu desejo? Será que
cada pessoa veria a fotografia que desejaria ver, em vez daquela que tirara? Poderia porventura
confiar nelas, se isso acontecesse?
O filme começa, e Robbie insiste em apagar todas as luzes, ficando os três enfiados no sofá.
Obrigam Robbie a deixar a taça das pipocas em cima da mesa para não atirar com ela no
primeiro momento assustador, para Henry não ter de andar a apanhar milho depois de se terem
ido embora, e ele passa a próxima hora a desviar os olhos sempre que a banda sonora geme em
sinal de aviso.
Quando o rapaz anda de triciclo pelo corredor, Bea murmura «Não, não, não», e Robbie
senta-se na ponta do sofá, à beira do pânico, e Henry enterra a cara no seu ombro. As raparigas
gémeas aparecem, de mãos dadas, e Robbie agarra a perna de Henry.
E, quando o momento passa, uma pausa no terror, a mão de Robbie continua pousada na sua
coxa. E é como se uma chávena partida voltasse a ficar inteira, as formas quebradas a
encaixarem na perfeição — o que, naturalmente, está mal.
Henry levanta-se, levando a taça de pipocas vazia e dirigindo-se à cozinha.
Robbie levanta a perna, saltando por cima das costas do sofá.
— Eu ajudo.
— São só pipocas — diz Henry por cima do ombro enquanto dobra a esquina. Rasga a
embalagem de plástico, agita o saco. — Tenho a certeza de que basta pôr o saco dentro do micro-
ondas e carregar no botão.
— Deixas sempre ficar demasiado tempo — diz Robbie, mesmo atrás dele.
Henry enfia o saco no micro-ondas e fecha a porta.
Prime o botão de iniciar e vira-se para a porta.
— Então agora é especialista em pip...
Não tem oportunidade de terminar, pois a boca de Robbie cola-se à sua. Henry inspira
profundamente, surpreendido pelo beijo súbito, mas Robbie não desiste. Empurra-o contra o
balcão, ancas contra ancas, dedos a deslizarem-lhe pelo maxilar quando o beijo se torna mais
intenso.
E isto, isto é melhor do que todas as outras noites.
Isto é melhor do que a atenção de centenas de estranhos.
Isto é a diferença entre uma cama de hotel e sentir-se em casa.
Robbie está ereto contra ele, e o peito de Henry dói de desejo, e seria tão fácil voltar a cair
naquilo, regressar ao calor familiar do seu beijo, do seu corpo, ao conforto simples de algo real.
Mas o problema é precisamente esse.
Foi real. Eles foram reais. Mas, como tudo na vida de Henry, acabou.
Falhou.
Interrompe o beijo quando as primeiras pipocas começam a saltar.
— Há semanas que ando à espera de fazer isto — sussurra Robbie, a face corada, os olhos
brilhantes de febre. Mas não estão límpidos. Uma névoa varre-os, turvando o azul intenso.
Henry estremece enquanto expira, esfrega os olhos por detrás dos óculos. As pipocas
matraqueiam e saltam, e Henry puxa Robbie para o corredor, para longe de Bea e do filme de
terror, e Robbie começa de novo a aproximar-se dele, pensando que se trata de um convite, mas
Henry estende a mão, mantendo-o à distância.
— Isto é um erro.
— Não, não é — diz Robbie. — Amo-te. Sempre te amei.
E parece tão sincero, tão real, que Henry tem de semicerrar os olhos para se concentrar.
— Então porque acabaste comigo?
— O quê? Não sei. Eras diferente, não encaixávamos.
— Como? — insiste Henry.
— Não sabias o que querias.
— Queria-te a ti. Queria que fosses feliz.
Robbie abana a cabeça.
— Não pode ser só a outra pessoa a importar. Também tens de ser alguém. Tens de saber
quem és. Na altura, não sabias. — Sorri. — Mas agora sabes.
Mas a questão é precisamente essa.
Não sabe.
Henry não faz ideia de quem é, e, agora, mais ninguém faz também.
Sente-se apenas perdido. Mas este é o único caminho que não irá seguir.
Ele e Robbie foram amigos antes de serem mais e voltaram a ser amigos durante anos depois
de Robbie ter acabado com tudo, quando Henry ainda estava apaixonado por ele, e agora é ao
contrário, e Robbie vai ter de arranjar maneira de andar em frente ou, pelo menos, de transformar
suavemente a palavra amor para amor como Henry fizera quando fora o seu caso.
— Demora muito tempo fazer pipocas? — grita Bea.
Um cheiro a chamuscado liberta-se do micro-ondas, e Henry empurra Robbie para o lado ao
entrar na cozinha, pressiona o botão de stop e retira o saco para fora.
Mas é demasiado tarde.
As pipocas estão irremediavelmente queimadas.
Nova Iorque
14 de novembro de 2013
Henry e Addie vão entregando as pulseiras de borracha na Artifact, sacrificando uma cor de cada
vez.
Em troca da pulseira roxa, andam por entre poças, charcos de três centímetros de altura que
formam círculos à volta dos seus pés. Por baixo da água, o pavimento é constituído por espelhos,
que cintilam, refletindo tudo e todos. Addie olha para as faixas em movimento, para as
reverberações a diminuir, e é difícil dizer se os dela terminam um instante antes dos dele.
Em troca da amarela, são guiados para cubos insonorizados do tamanho de armários, uns dos
quais amplificam o som e outros que parecem engolir cada respiração. Seria uma sala de
espelhos, se as superfícies inclinadas retorcessem a voz em vez de um reflexo.
A primeira mensagem diz-lhes que sussurrem, a palavra escrita na parede numa letra pequena
e preta, e, quando Addie sussurra «Tenho um segredo», a palavra curva-se e enrola-se e envolve-
os.
A seguinte diz-lhes que gritem, a palavra desta vez gravada a toda a extensão da parede em
que está escrita. Henry não consegue obrigar-se a dar mais do que um berro pequeno e
autoconsciente, mas Addie inspira profundamente e ruge, como se faria debaixo de uma ponte se
estivesse a passar um comboio, e algo na liberdade destemida da sua atitude transmite-lhe ar, e
subitamente ele esvazia os pulmões, o som gutural e quebrado, tão selvagem como um grito.
E Addie não se encolhe. Simplesmente ergue a voz, e, juntos, gritam até ficarem sem fôlego,
gritam até ficarem roucos, saem dos cubos a sentir-se tontos e leves. Os pulmões de Henry ainda
irão doer, no dia seguinte, mas terá valido a pena.
Na altura em que saem de lá aos tropeções, com o som a acompanhá-los nos ouvidos, o sol
começa a pôr-se, e as nuvens estão em chamas, uma daquelas estranhas noites de primavera que
lançam uma luz laranja sobre tudo.
Dirigem-se ao varandim mais próximo e olham para a cidade, a luz a refletir-se nos edifícios,
o pôr do sol deixar laivos no aço, e Henry puxa-a para si, beija-lhe a nuca, sorrindo para o seu
pescoço.
Está cheio de açúcar e um pouco embriagado, e mais feliz do que nunca.
Addie é melhor do que qualquer chapelinho de chuva cor-de-rosa.
É melhor do que uísque forte numa noite fria.
Melhor do que qualquer coisa que tivesse sentido há séculos.
Quando Henry está com ela, o tempo acelera e não o assusta.
Quando está com Addie, sente-se vivo, e isso não o magoa.
Ela recosta-se contra ele, como se Henry fosse o chapéu de chuva e Addie aquela que precisa
de ser protegida. E Henry sustém a respiração, como se isso mantivesse o céu, lá em cima. Como
se evitasse que os dias passassem.
Como se evitasse que tudo desabasse.
Nova Iorque
9 de dezembro de 2013
O relógio marca o tempo com o seu tiquetaquear, os últimos minutos do ano a esvaírem-se. Toda
a gente diz para se viver no presente, para saborear o momento, mas é difícil quando o momento
envolve centenas de pessoas apinhadas num apartamento alugado em Bed-Stuy que Robbie
partilha com outros atores. Henry está encurralado num canto, onde o bengaleiro se encontra
com um guarda-fato. Tem uma cerveja na mão e a outra enredada na camisa do tipo que o está a
beijar, um tipo que decididamente está fora do campeonato de Henry, ou estaria, se Henry ainda
tivesse um campeonato.
Acha que o nome do fulano é Mark, mas é difícil ouvir por cima de toda a algazarra. Também
pode ser Max ou Malcolm. Henry não sabe. E quer dizer que é a primeira pessoa que beijou
nessa noite, o primeiro homem até, mas a verdade é que não tem a certeza de nenhuma das duas
hipóteses. Não tem a certeza de quantas bebidas tomou ou se o sabor que se derrete na sua língua
neste momento é de açúcar ou de outra coisa qualquer.
Henry tem bebido demasiado, demasiado depressa, tentando não pensar, e há demasiadas
pessoas no Castelo.
Castelo é o que chamam à casa de Robbie, embora Henry não se consiga lembrar bem quando
o batizaram assim ou porquê. Procura Bea, não a vê desde que serpenteou por entre a multidão
até à cozinha, uma hora antes, a viu empoleirada na bancada, a brincar aos empregados de balcão
e a fazer a corte a um grupo de mulheres e...
Subitamente, o tipo começa a debater-se com o cinto de Henry.
— Espera — diz ele, mas a música está tão alta que tem de gritar, tem de puxar o ouvido de
Mark/Max/Malcolm para junto da boca, o que Mark/Max/Malcolm interpreta como um sinal
para o continuar a beijar.
— Espera — grita, empurrando-o. — Queres mesmo isto?
O que é uma pergunta estúpida. Ou, no mínimo, a pergunta errada.
O fumo claro rodopia nos olhos do estranho.
— Porque não haveria de querer? — pergunta, caindo de joelhos. Mas Henry agarra-o pelo
cotovelo.
— Para. Para, por favor. — Puxa-o para cima. — O que vês em mim?
Uma pergunta que começou a fazer a toda a gente, na esperança de ouvir algo de semelhante
à verdade. Mas o tipo olha para ele, com os olhos toldados de névoa, e diz as palavras de
rompante:
— És lindo. Sexy. Inteligente.
— Como é que sabes? — grita Henry por cima da música.
— O quê? — grita o rapaz de volta.
— Como sabes que sou inteligente? Mal falámos.
Mas Mark/Max/Malcolm limita-se a esboçar um sorriso lamechas, de olhos entornados, com
a boca vermelha de beijar, e diz:
— Sei simplesmente — e já não é suficiente, já não está certo, e Henry começa a libertar-se
dele quando Robbie dobra a esquina e vê Mark/Max/Malcolm praticamente a copular com Henry
no corredor. Robbie olha para ele como se lhe tivesse atirado uma cerveja à cara.
Vira costas e vai-se embora, e Henry geme, e o tipo que se meneia contra ele parece julgar
que o som é para ele, e está demasiado calor ali para Henry pensar, para respirar.
A divisão começa a rodopiar, e Henry murmura qualquer coisa sobre ter de ir fazer chichi,
mas caminha para lá da casa de banho e entra no quarto de Robbie, fechando a porta atrás de si.
Vai até à janela, puxa o vidro para cima e é atingido em cheio no rosto por uma explosão de frio
gelado. Este morde-lhe a pele enquanto salta para a escada de incêndio.
Aspira uma lufada de ar frio, deixa que este lhe queime os pulmões, tem de se inclinar para a
janela para a voltar a fechar, mas, no instante em que o vidro desce, o mundo aquieta.
Não é silêncio — Nova Iorque nunca é silenciosa —, e o Ano Novo enviou uma corrente que
reverbera pela cidade, mas pelo menos consegue respirar, consegue pensar, consegue esquecer a
noite — o ano — numa paz relativa.
Tenta dar um gole na cerveja, mas a garrafa está vazia.
— Merda — murmura para si mesmo apenas.
Está gelado, o casaco ficou enterrado algures num monte, em cima da cama de Robbie, mas
não se consegue obrigar a entrar de novo para ir buscar um agasalho ou uma bebida. Não
consegue suportar a maré de cabeças a virarem-se, o fumo a encher-lhes os olhos, não quer o
peso da sua atenção. E alcança a ironia de tudo aquilo, mesmo. Naquele momento, daria tudo por
um dos chapelinhos de chuva cor-de-rosa de Muriel, mas já se acabaram, por isso senta-se nos
degraus de metal gelados, diz para si mesmo que é feliz, diz para si mesmo que foi aquilo que
desejou.
Pousa a garrafa vazia ao lado de um vaso que outrora foi o lar de uma planta.
Neste momento, contém apenas uma pequena montanha de beatas.
Às vezes Henry desejava fumar, apenas pelo pretexto de ir apanhar ar.
Tentou, uma vez ou duas, mas não conseguia suportar o sabor a alcatrão, o cheiro bafiento
que lhe deixava na roupa. Quando era miúdo, tinha uma tia que fumava até as unhas ficarem
amarelas e a pele estalada, como couro puído, até que cada ataque de tosse dava a impressão de
que tinha moedas soltas a matraquearem-lhe dentro do peito. Sempre que aspirava uma baforada,
pensava nela e sentia-se maldisposto e não sabia se era da memória ou do sabor, sabia apenas
que não valia a pena.
Claro que havia a erva, mas a erva era algo que se partilhava com outras pessoas, ninguém se
escapulia para a fumar sozinho, e, fosse como fosse, fazia-o sempre sentir-se com fome e triste.
Ou, na verdade, ainda mais triste. Não lhe alisava nenhuma das rugas que tinha no cérebro,
depois de várias tentativas, limitava-se a transformá-las em espirais, com os pensamentos a
virarem-se cada vez mais para dentro, para sempre.
Tem uma memória muito clara de ter ficado pedrado no último ano de faculdade, ele e Bea e
Robbie, deitados num emaranhado de membros na praça de Columbia, às três da manhã,
completamente nas nuvens e a olhar para o céu. E, apesar de terem de semicerrar os olhos para
conseguir divisar quaisquer estrelas e possam ter sido apenas os seus olhos a debater-se para
captar alguma coisa daquela extensão negra, Bea e Robbie não paravam de falar sobre quão
grande tudo era, quão maravilhoso, quão calmos os fazia sentir o facto de serem tão pequenos, e
Henry não disse nada porque estava demasiado ocupado a suster a respiração para evitar gritar.
— Que raio estás a fazer aqui fora?
Bea assoma à janela. Passa a perna por cima do parapeito e junta-se a ele no degrau,
assobiando quando as leggings tocam no metal frio. Ficam sentados em silêncio por alguns
instantes. Henry olha por cima dos edifícios. As nuvens estão baixas, com as luzes de Times
Square a brilharem contra elas.
— O Robbie está apaixonado por mim — diz ele.
— O Robbie sempre esteve apaixonado por ti — diz Bea.
— Mas o problema é precisamente esse — diz ele, abanando a cabeça. — Não estava
realmente apaixonado por quem eu era. Estava apaixonado por quem eu poderia ter sido. Queria
que eu mudasse, e não mudei, e...
— Porque haverias de mudar? — Bea vira-se para olhar para ele, com a névoa a rodopiar-lhe
nos olhos. — És perfeito exatamente como és.
Henry engole em seco.
— E isso é como? — pergunta. — Como é que eu sou?
Tem tido medo de perguntar, medo de saber o significado do brilho nos olhos dela, o que vê
quando olha para ele. Naquele preciso instante, deseja ter retirado o que disse. Mas Bea limita-se
a sorrir e diz:
— És o meu melhor amigo, Henry.
O peito dele alivia, apenas um pouco. Porque é real.
É verdade.
Mas depois ela continua.
— És delicado e sensível e espantoso a ouvir os outros.
E aquela última parte causa-lhe um baque no estômago, porque Henry nunca soube ouvir os
outros. Perdeu a conta ao número de discussões em que se viu envolvido por não estar a prestar
atenção.
— Estás sempre presente quando preciso de ti — continua ela, e o peito dói-lhe, porque sabe
que não esteve, e esta não é como todas as outras mentiras, esta não tem a ver com abdominais
definidos ou com um maxilar acentuado ou com uma voz profunda, isto não é um encanto
espirituoso ou o filho que sempre se desejou ou o irmão de quem se tem saudades, isto não é
nenhum dos milhares de coisas que outras pessoas veem quando olham para ele, coisas fora do
seu controlo.
— Gostava que te visses como eu te vejo.
O que Bea vê é um bom amigo.
E Henry não tem desculpa para não o ser.
Põe a cabeça entre as mãos, comprime as palmas contra os olhos até ver estrelas e pergunta-se
se poderá resolver isto, isto apenas, se poderá tornar-se a versão de Henry que Bea vê, se isso
fará com que névoa nos seus olhos se dissipe, se pelo menos ela o poderá ver claramente.
— Desculpa — sussurra para o espaço entre os joelhos e o peito. Sente-a passar-lhe os dedos
pelo cabelo.
— Porquê?
E o que poderá ele dizer?
Henry estremece ao expirar e olha para cima.
— Se pudesses ter alguma coisa — diz —, o que pedirias?
— Depende — diz ela. — Qual é o preço a pagar?
— Como sabes que há um preço?
— Há sempre dar e receber.
— Muito bem — diz Henry —, se vendesses a tua alma por uma coisa, o que seria? Bea
morde o lábio.
— Felicidade.
— O que é isso? — pergunta ele. — Quero dizer, é apenas sentires-te feliz sem motivo? Ou é
fazeres outras pessoas felizes? É seres feliz no emprego ou na vida ou...
Bea ri-se.
— Pensas sempre demasiado nas coisas, Henry. — Olha para fora, por cima da escada de
incêndio. — Não sei, talvez queira apenas dizer que gostaria de ser feliz comigo própria. Estar
satisfeita. E tu?
Ele pensa em mentir, não o faz.
— Acho que gostaria de ser amado.
Bea olha para ele então, com os olhos num turbilhão de névoa e, apesar da neblina, parece de
súbito incomensuravelmente triste.
— Não podes obrigar as pessoas a gostarem de ti, Hen. Se não for uma opção, não é real.
A boca de Henry fica seca.
Ela tem razão. Claro que tem razão.
E ele é um idiota, preso num mundo onde nada é real.
Bea choca com o ombro no dele.
— Vem para dentro — diz ela. — Arranja alguém para beijares antes da meia-noite. Dá sorte.
Levanta-se, à espera, mas Henry não se consegue levantar.
— Está tudo bem — diz. — Vai tu.
E sabe que é por causa do pacto que fez, sabe que é o que ela vê e não o que ele é — mas,
ainda assim, fica aliviado quando Bea volta a sentar-se e se encosta a ele, um melhor amigo a
fazer-lhe companhia no escuro. E, passado pouco tempo, o volume da música começa a baixar, e
as vozes sobem de tom, e Henry ouve a contagem decrescente atrás deles.
Dez, nove, oito.
Oh, meu Deus.
Sete, seis, cinco.
O que foi ele fazer?
Quatro, três, dois.
Está a avançar demasiado depressa.
Um.
O ar está enche-se de assobios e de vivas, e Bea encosta os lábios aos dele, um momento de
calor contra o frio. De um momento para o outro, o ano passou, os relógios recomeçam, um três
substituído por um quatro, e Henry sabe que cometeu um erro terrível.
Pediu a coisa errada ao deus errado, e agora é suficiente porque não é nada. É perfeito porque
não está presente.
— Vai ser um ano bom — diz Bea. — Sinto-o. — Suspira uma nuvem de nevoeiro para o ar
entre ambos. — Foda-se, está frio! — levanta-se, esfregando as mãos. — Vamos para dentro.
— Vai tu andando — diz ele. — Eu já vou.
E ela acredita nele, os passos a retinir enquanto atravessa a escada de incêndio e se esgueira
de novo pela janela, deixando-a aberta para que ele a siga.
Henry fica ali sentado, sozinho, no escuro, até não conseguir aguentar mais o frio.
Nova Iorque
Inverno de 2014
Henry desiste.
Resigna-se ao prisma do seu pacto, que acabou por encarar como uma maldição. Tenta... ser
um melhor amigo, um melhor irmão, um melhor filho, tenta esquecer o significado da névoa nos
olhos das pes- soas, tenta fingir que é real, que ele é real.
E depois, um dia, conhece uma rapariga.
Entra na livraria e rouba um livro e, quando a surpreende na rua e ela se vira para olhar para
ele, não há névoa, não há película, não há parede de gelo. Apenas uns olhos castanhos cristalinos
num rosto em forma de coração, sete sardas espalhadas pelas maçãs do rosto como estrelas.
E Henry pensa que deve ser um efeito da luz, mas ela regressa no dia seguinte, e ali está mais
uma vez. A ausência. Não apenas uma ausência, também, mas algo, em vez dela.
Uma presença, um peso sólido, a primeira atração firme que sentiu em meses. A força da
gravidade de outrem.
Outra órbita.
E, quando a rapariga olha para ele, não vê a perfeição. Vê alguém que se preocupa
demasiado, que sente demasiado, que está perdido e ávido e desperdiçado, dentro da sua
maldição.
Vê a verdade, e ele não sabe como ou porquê, sabe apenas que não quer que aquilo acabe.
Porque, pela primeira vez em meses, em anos, em toda a sua vida, talvez, Henry não se sente
nada amaldiçoado.
Pela primeira vez, sente que é visto.
Nova Iorque
18 de março de 2014
TU ÉS A ARTE
Há taças com tinta fluorescente em cada corredor, e claro que as paredes estão cobertas de
marcas.
Assinaturas e garatujas, marcas de mãos e padrões.
Algumas percorrem toda a extensão da parede, outras estão encaixadas, como segredos,
dentro das marcas maiores.
Addie mergulha um dedo em tinta verde e leva-o até à parede. Desenha uma espiral, uma
única marca em expansão. Mas, quando chega à quarta volta, a primeira já se esbateu,
desaparecendo como um seixo em água profunda.
Impossível, apagada.
O seu rosto não vacila, não desanima, mas ele capta a tristeza antes que esta também
desapareça, afundando-se para longe da vista.
Como consegues aguentar?, quer perguntar. Ao invés, mergulha a mão na tinta verde,
estende-a para lá de Addie, mas não desenha nada. Ao invés, espera, com a mão junto ao vidro.
— Põe a tua mão por cima da minha — diz ele, e Addie hesita apenas um momento antes de
pousar a palma no dorso da mão dele, encostando os dedos sobre os de Henry. — Pronto — diz
ele —, agora podemos desenhar.
Dobra a mão sobre a dele, guia o dedo indicador no vidro e deixa uma única marca, uma linha
de verde. Ele sente o ar preso no peito dela, sente a rigidez súbita dos seus membros, enquanto
espera que a tinta desapareça.
Mas não desaparece.
Persiste, devolvendo-lhes o olhar naquele tom ousado. Então algo se quebra dentro dela.
Faz uma segunda marca e uma terceira, solta uma gargalhada ofegante e, depois, com a mão
sobre a de Henry, a dele no vidro, Addie começa a desenhar. Pela primeira vez em trezentos
anos, desenha pássaros e árvores, desenha um jardim, desenha uma oficina, desenha uma cidade,
desenha um par de olhos. As imagens derramam-se dela, e através dele, na parede, com uma
ânsia desajeitada e frenética. E está a rir, com as lágrimas a escorrerem-lhe pelo rosto, e ele quer
limpá-las, mas as mãos dele são as mãos dela, e ela está a desenhar. E então ela mergulha o dedo
na tinta e leva-o à superfície do vidro e, dessa vez, escreve numa caligrafia hesitante, uma letra
de cada vez.
O seu nome.
Este persiste, encaixado entre os muitos desenhos.
Addie LaRue
Dez letras, duas palavras. Não é diferente, pensa ele, das centenas de outras marcas que
fizeram, só que é. Sabe que é.
A mão dela afasta-se da de Henry, e Addie estende o braço, passa os dedos pelas letras, e, por
um instante, o nome fica esborratado, manchas de verde contra o vidro. Mas, quando os seus
dedos se afastam, regressa, imaculado, imutável.
Algo muda então nela. Percorre-a, do mesmo modo que as tempestades o percorrem a ele,
mas esta é diferente, não é sombria, mas assombrosa, de uma nitidez súbita, acutilante.
E então puxa-o para longe dali. Para longe do labirinto, para longe das pessoas deitadas sob a
noite sem estrelas, para longe da feira de arte e da ilha, e ele percebe que não o está a afastar,
mas a aproximar de algo.
A aproximar do ferry.
A aproximar do metro.
A aproximar de Brooklyn.
A aproximar de casa.
Durante todo o caminho, agarra-se com força a Henry, os dedos entrelaçados, a tinta verde a
manchar as mãos de ambos, enquanto sobem as escadas, enquanto ele abre a porta e ela o larga
então, irrompendo porta adentro, para o interior, pelo apartamento. Henry encontra-a no quarto, a
tirar um bloco azul de uma prateleira, a surripiar uma caneta da mesa. Empurra-os para as mãos
dele, e Henry baixa-se ao fundo da cama, abre a capa do caderno, um dos muitos que nunca
usou, e ela ajoelha-se, ofegante, ao seu lado.
— Faz outra vez — diz ela.
E ele leva a ponta da caneta até à folha em branco e escreve o nome dela, numa caligrafia
rígida, mas cuidada.
Addie LaRue.
Não se dissolve, não se esbate, fica ali, apenas, no centro da página. E Henry olha para cima,
para ela, à espera que continue, que dite o que vem a seguir, e ela olha para baixo, para lá dele,
para as palavras.
Addie pigarreia.
— Começa assim — diz.
E ele começa a escrever.
A SOMBRA QUE SORRIA E A RAPARIGA
QUE DEVOLVIA O SORRISO
Título: Ho Portato le Stelle a Letto
Artista: Matteo Renatti
Data: c. 1806–08
Suporte: Esboço a lápis em papel, com 20 cm x 35 cm
Origem: Cedido pela Gallerie dell’Accademia
Descrição: Uma ilustração de uma mulher, com as linhas do corpo mimetizadas pelos lençóis contorcidos. O seu rosto é
pouco mais do que um conjunto de ângulos, enquadrado por um cabelo despenteado, mas o artista representou-a com um
traço muito específico: sete pequenas sardas alinhadas nas maçãs do rosto.
Contexto: Alguns críticos consideram que este desenho, encontrado no bloco de desenho de Renatti de 1806–8, terá servido
de inspiração para a sua obra-prima posterior A Musa. Embora a postura da modelo e o suporte da obra sejam diferentes, o
número e a localização das sardas é suficientemente óbvio para que muitos especulem sobre a importância desta mulher na
obra de Renatti.
Valor estimado: 267 mil dólares
Villon-sur-Sarthe, França
29 de julho de 1764
Pensar que podia ter vivido e morrido sem nunca ter visto o mar...
Mas não importa. Agora Addie está ali, com as falésias claras a erguerem-se à direita,
sentinelas de pedra na orla da praia, onde está sentada, com as saias espalhadas pela areia. Olha
para toda aquela extensão, a linha da costa a dar lugar à água, e a água a dar lugar ao céu. Claro
que viu mapas, mas tinta e papel não têm nada a ver com aquilo. Com o cheiro a sal, o murmúrio
das ondas, a atração hipnótica da maré. Com o alcance e a escala do mar e com a consciência de
que, para lá do horizonte, há mais.
Passar-se-á um século até atravessar o Atlântico, e, quando o fizer, perguntar-se-á se os
mapas estarão errados, começará a duvidar da própria existência de terra — mas, naquele
instante, Addie está simplesmente encantada.
Em tempos, o seu mundo tinha a dimensão de uma pequena aldeia no meio de França. Mas
continua a alargar-se. O mapa da sua vida desenrola-se, revelando montes e vales, vilas e cidades
e mares. Revelando Le Mans. Revelando Paris. Revelando aquilo.
Encontra-se em Fécamp há quase uma semana, passando os dias entre o pontão e a maré, e, se
alguém reparou na jovem estranha que anda sozinha na areia, não pareceu preocupado em
incomodá-la com isso. Addie vê os barcos chegar e partir e pergunta-se onde se dirigirão;
pergunta-se, também, o que aconteceria se embarcasse num, onde a conduziria. Em Paris, a
escassez de comida está a piorar, as sanções são piores, tudo cada vez pior. A tensão também se
propagou para fora da cidade, com a energia nervosa a chegar até ali, à costa. Mais um motivo,
diz Addie para si mesma, para navegar para longe dali.
E, no entanto.
Algo a retém, sempre.
Hoje, é a tempestade que se aproxima. Paira sobre o mar, enegrecendo o céu. Em alguns
pontos, o sol perpassa por entre as nuvens, uma linha de luz ardente a despenhar-se na água
cinzenta, cor de ardósia. Pega no livro, que jaz na areia, ao seu lado, e recomeça a ler.
— «Somos feitos da matéria dos sonhos» — diz uma voz familiar atrás dela. — «E a nossa
breve existência é cercada pelo sono». — Um som suave, como um riso sem ar. — Bem, nem
todas as existências.
Luc aproxima-se dela como uma sombra.
Addie não lhe perdoou a violência da noite em Villon. Prepara-se para ela, neste instante,
apesar de se terem visto várias vezes nos anos que decorreram desde então, de terem feito uma
estranha espécie de trégua.
Mas sabe que não pode confiar nela quando Luc se senta na areia, ao seu lado, com um braço
preguiçosamente pousado em cima do joelho, a imagem da graciosidade lânguida, mesmo ali.
— Eu estava lá, sabes, quando ele escreveu este verso.
— Shakespeare? — Addie não consegue esconder a sua surpresa.
— Quem achas que ele chamava pela calada da noite, quando as palavras não surgiam?
— Estás a mentir.
— Estou a vangloriar-me — diz ele. — Não é a mesma coisa. O nosso Williamandava à
procura de um protetor, e eu fiz-lhe a vontade.
A tempestade é iminente, uma cortina de chuva a deslizar em direção à costa.
— É mesmo assim que te vês? — pergunta ela, sacudindo areia do livro. — Como um
benfeitor maravilhoso?
— Não amues simplesmente porque escolheste mal.
— Ai escolhi? — réplica ela. —Afinal de contas, sou livre.
— E não lembrada.
Mas ela está pronta para as farpas.
— Como a maior parte das coisas.
Addie olha para o mar.
— Adeline — repreende-a —, és mesmo teimosa. E, no entanto, ainda nem se passaram cem
anos. Pergunto-me como te sentirás quando decorrerem mais cem.
— Não sei — diz ela maliciosamente. — Acho que terás de me perguntar na altura.
A tempestade chega à costa. As primeiras gotas começam a cair, e Addie aperta o livro contra
o peito, protegendo as páginas da água.
Luc levanta-se.
— Vem comigo — diz, estendendo-lhe a mão. É mais uma ordem do que um convite, mas a
chuva está a transformar-se rapidamente de promessa em torrente regular, e ela só tem aquele
vestido. Levanta-se sem a ajuda dele, sacudindo a areia das saias.
— Por aqui.
Condu-la através da vila, em direção a um edifício que se perfila, o campanário abobadado a
perfurar as nuvens mais baixas. É, de tudo o que seria possível imaginar, uma igreja.
— Só podes estar a brincar.
— Não sou eu que estou a ficar molhado — diz ele. E, de facto, não está. Ela está encharcada
na altura em que chegam à cobertura de pedra, mas Luc está seco. A chuva ainda nem sequer o
atingiu.
Sorri, alongando a mão para a porta.
Não importa que a igreja esteja trancada. Mesmo que estivesse presa com correntes,
continuaria a estar aberta para ele. Limitações como estas, Addie aprendeu, não significam nada
para as trevas.
Lá dentro, a ar está abafado, com as paredes de pedra a reterem o calor de verão. Está
demasiado escuro para ver mais do que os contornos dos bancos, a figura na cruz.
Luc abre os braços.
— Contemplai a casa do Senhor!
A sua voz ecoa pela câmara, baixa e sinistra.
Addie sempre se perguntou se Luc poderia pisar solo sagrado, mas o som dos seus sapatos no
pavimento da igreja é a resposta a essa pergunta.
Addie percorre o corredor, mas não consegue dissipar a estranheza que o local lhe provoca.
Sem os sinos, o órgão, os corpos amontoados para as liturgias, a igreja parece abandonada.
Mais um túmulo do que um espaço de adoração.
— Queres confessar os teus pecados?
Luc deslocou-se com a facilidade das sombras na escuridão. Já não está atrás dela, mas
sentado na primeira fila, os braços estendidos ao longo do encosto do banco, as pernas
alongadas, com os tornozelos cruzados numa posição preguiçosa.
Addie foi ensinada a ajoelhar-se na capelinha de pedra no centro de Villon, a passar os dias
vergada nos bancos de Paris. Ouviu os sinos e o órgão e os apelos à oração. E, no entanto, apesar
de tudo, nunca compreendeu a atração de tudo aquilo. Como pode um teto aproximar-nos do
paraíso? Se Deus é tão grande, porquê construir paredes para o conter?
— Os meus pais eram crentes — reflete, passando os dedos pelos bancos. — Falavam sempre
de Deus. Da Sua força, da Sua misericórdia, da Sua luz. Diziam que estava em todo o lado, em
tudo. — Addie para diante do altar. — Acreditavam em tudo tão facilmente...
— E tu?
Addie olha para cima, para os painéis de vitral, as imagens pouco mais do que fantasmas sem
o sol para as iluminar. Queria acreditar. Ouvia e esperava ouvir a Sua voz, sentir a Sua presença,
do mesmo modo que poderia sentir o sol nos ombros ou o trigo entre as mãos. Do mesmo modo
que sentia a presença dos deuses antigos que Estele tanto venerava. Mas ali, na casa de pedra
fria, nunca sentiu nada.
Abana a cabeça e diz em voz alta:
— Nunca compreendi porque deveria acreditar em algo que não conseguia sentir, ouvir ou
ver.
Luc ergue uma sobrancelha.
— Acho — diz ele — que lhe chamam fé.
— Diz o diabo na casa do Senhor. — Addie olha na sua direção enquanto o diz e capta um
vislumbre momentâneo de amarelo no verde constante.
— Uma casa é uma casa — diz ele, irritado. — Esta pertence a todos ou a ninguém. E agora
achas que sou o diabo? Não tinhas assim tanta certeza no bosque.
— Talvez — diz ela — me tenhas transformado numa crente.
Luc inclina a cabeça para trás, um sorriso perverso a contorcer-se na boca.
— E achas que, se eu sou real, então ele também é. A luz da minha sombra, o dia da minha
noite? E estás convencida de que, se tivesses rezado a ele, e não a mim, ele te teria mostrado a
sua bondade e a sua misericórdia.
Addie perguntou-se isso mesmo centenas de vezes, apesar de, obviamente, não o dizer.
As mãos de Luc deslizam do banco enquanto se inclina para a frente.
— E agora — acrescenta — nunca irás saber. Na minha opinião — diz, erguendo-se —,
bem... diabo é simplesmente uma palavra nova para uma ideia antiga. Quanto a Deus, bom, se
basta um toque de dramatismo e um pouco de requinte dourado...
Estala os dedos, e subitamente os botões do seu casaco, as fivelas dos seus sapatos, a costura
do colete já não são pretos, mas dourados. Estrelas polidas contra uma noite sem luar.
Sorri e depois sacode a filigrana como se fosse pó.
Ela vê-a cair, volta a olhar de novo para cima, para ele, a centímetros do seu rosto.
— Mas esta é a diferença entre nós, Adeline — sussurra, com os dedos a aflorarem-lhe o
queixo. — Eu responderei sempre.
Ela estremece, a contragosto. Ao toque demasiado familiar na sua pele, ao verde medonho
dos seus olhos, ao seu sorriso cruel, feroz.
— Além disso — diz ele, com os dedos a deslizarem-lhe pelo rosto —, todos os deuses têm
um preço. Não sou o único no negócio das almas. — Luc abre a mão, de um dos lados do corpo,
e a luz floresce no ar, mesmo no centro da palma. — Ele deixa as almas definharem nos peitoris.
Eu rego-as.
A luz deforma-se e enrola-se.
— Ele faz promessas. Eu pago à cabeça.
Flameja uma vez, súbita e brilhante, e depois aproxima-se, assumindo uma forma sólida.
Addie sempre se perguntou que aspeto teria uma alma.
É uma palavra tão grandiosa, alma. Como deus, como tempo, como espaço, e, quando se
cansou de a imaginar, invocou imagens de relâmpagos ou de raios de sol através da poeira, de
tempestades sob a forma humana, de um branco vasto e ilimitado.
A verdade é muito mais pequena.
A luz na mão de Luc é um berlinde, vítreo e cintilante, com uma luz interior fraca.
— Só isso?
E, no entanto, Addie não consegue afastar o olhar da esfera frágil. Sente-se alongar a mão
para ela, mas ele recua, para longe do seu alcance.
— Não te deixes enganar pelas aparências. — Roda o globo reluzente entre os dedos. —
Olhas para mim e vês um homem, apesar de saberes que não sou nada disso. Esta forma é apenas
um aspeto, concebido para o observador. — A luz tremeluz e bruxuleia, com o orbe a achatar-se
num disco. E depois num anel.
O anel dela. A madeira de freixo cintila, e o coração dói-lhe quando a vê, quando o segura,
quando sente a superfície gasta contra a pele. Mas fecha as mãos em punhos para se impedir de
alongar o braço de novo.
— Qual é o seu aspeto verdadeiro?
— Posso mostrar-te — ronrona ele, deixando que a luz pouse na mão. — Diz a palavra, e
mostrar-te-ei a tua alma nua. Rende-te, e prometo que a última coisa que verás será a verdade.
E ali está de novo.
Uma vez sal, depois mel, cada uma delas concebida para disfarçar veneno.
Addie olha para o anel, permite-se demorar-se nele uma última vez e depois obriga-se a olhar
para lá da luz, em direção às trevas.
— Sabes — diz ela —, acho que prefiro viver e imaginar.
A boca de Luc contorce-se, e ela não consegue perceber se é de raiva ou de divertimento.
— Como queiras, minha querida — diz ele, apagando a luz entre os dedos.
Nova Iorque
23 de março de 2014
Addie encontra-se sentada numa cadeira de couro, no canto de The Last Word, aninhada, com o
ronronar suave do gato a emanar das prateleiras, algures atrás da sua cabeça, enquanto vê os
clientes inclinarem-se para Henry como flores em direção ao sol.
Quando se sabe uma coisa, começamos a vê-la por todo o lado.
Alguém diz as palavras elefante roxo, e de repente avistamo-lo em montras de lojas e T-
shirts, bonecos de peluche e cartazes e perguntamo-nos como nunca tínhamos reparado.
Acontece o mesmo com Henry e com o pacto que fez.
Um homem, a rir-se de tudo o que ele diz.
Uma mulher, a irradiar, iluminada pela alegria.
Uma adolescente arrisca tocar-lhe no ombro, no braço, corando, numa atração flagrante.
Apesar de tudo, Addie não tem ciúmes.
Viveu demasiado e perdeu demasiado, e o pouco que teve foi-lhe arrebatado ou roubado,
nunca ficou para si. Aprendeu a partilhar — e, no entanto, sempre que Henry olha na sua
direção, sente uma onda de calor agradável, tão bem-vinda como o aparecimento súbito do sol
por entre as nuvens.
Addie soergue as pernas na cadeira, com um livro de poemas no colo. Trocou a roupa
manchada de tinta por um novo par de calças de ganga pretas e uma camisola demasiado grande,
arrebatada de uma loja de artigos usados, enquanto Henry estava a trabalhar. Mas ficou com as
botas, com as pintinhas de amarelo e azul, como recordação da noite anterior, a coisa mais
próxima que tem de uma fotografia, de uma memória material.
— Pronta?
Olha para cima, vê o letreiro da loja já voltado para fechado e Henry de pé, junto à porta, com
o casaco no braço. Estende-lhe a mão, ajuda-a a sair da cadeira de couro, que, explica, tem a
particularidade de engolir pessoas.
Saem e sobem os quatro degraus que conduzem à rua.
— Onde vamos? — pergunta Addie.
É cedo, e Henry está carregado de uma energia inquieta. Parece piorar por volta do
crepúsculo, sendo o pôr do sol um indicador inequívoco da passagem de um dia, do tempo a
decorrer com o desaparecimento da luz.
— Já foste à Ice Cream Factory?
— Parece divertido.
O rosto dele desanima.
— Já lá foste.
— Não me importo de ir outra vez.
Mas Henry abana a cabeça e diz:
— Quero mostrar-te algo novo. Há algum sítio onde não tenhas estado? — pergunta, e,
passado um longo instante, Addie encolhe os ombros.
— Tenho a certeza de que deve haver — diz ela. — Mas ainda não o encontrei.
Queria que soasse divertido, leve, mas Henry franze o sobrolho, absorto em pensamentos, e
olha em volta.
— Muito bem — diz, agarrando-lhe na mão. — Vem comigo.
Uma hora mais tarde, encontram-se na Grand Central.
— Detesto ter de to dizer — diz ela, olhando em volta para a estação concorrida —, mas já
aqui estive. Como a maior parte das pessoas.
Mas Henry lança-lhe um sorriso que é marotice pura.
— Por aqui.
Segue-o pelas escadas rolantes até ao nível inferior da estação. Serpenteiam, de mãos dadas,
por entre um mar consistente de viajantes noturnos, em direção ao animado átrio da zona da
restauração, mas Henry para abruptamente, sob uma interseção de arcos de tijolo, com os
corredores a ramificarem-se em todas as direções. Puxa-a para um dos cantos rodeados por
pilares, onde as arcadas se dividem, curvando-se lá em cima e de través, e volta-a para a parede
de tijolo.
— Fica aqui — diz e começa a afastar-se.
— Onde vais? — pergunta ela, já a virar-se para o seguir.
Mas Henry regressa, encostando-lhe os ombros ao arco.
— Fica aqui, assim — diz ele. — E escuta.
Addie vira a orelha para a parede de tijolo, mas não consegue ouvir nada além do som do
arrastar de passos, da algazarra e da barulheira da multidão da noite. Olha por cima do ombro.
— Henry, eu não...
Mas Henry desapareceu. Percorreu o átrio a correr até à extremidade oposta do arco, talvez a
uns trinta passos de distância. Olha para trás, para ela, e depois volta-se e enterra o rosto no
canto, olhando para o mundo inteiro como uma espécie de jogo de escondidas, contando até dez.
Addie sente-se ridícula, mas inclina-se para junto da parede de tijolo e espera e escuta.
E então, como algo impossível, ouve a voz dele.
— Addie.
Fica estupefacta. A palavra soa baixo, mas de forma nítida, como se ele estivesse mesmo ao
seu lado.
— Como consegues fazer isto? — pergunta ao arco. E consegue ouvir o sorriso na voz dele
quando responde.
— O som acompanha a curva do arco. Um fenómeno que acontece quando os espaços se
inclinam na perfeição. Chama-se galeria sussurrante.
Addie está maravilhada. Trezentos anos, e ainda há coisas novas a aprender.
— Fala comigo — diz de novo a voz contra a fiada de tijolos.
— O que poderei dizer? — sussurra ela contra a parede.
— Ora... — diz Henry, baixinho, ao ouvido dela. — Porque não me contas uma história?
Paris, França
29 de julho de 1789
Está a nevar.
Não uma pátina de gelo ou uns quantos flocos isolados, mas um mergulho de branco.
Addie está sentada à janela da pequena casa de campo, aninhada, com o lume atrás de si e um
livro aberto sobre o joelho, enquanto vê o céu despenhar-se.
Passou o virar dos anos de formas muito diferentes.
Empoleirada nos telhados de Londres com garrafas de champanhe e com um archote na mão
pelas ruas empedradas de Edimburgo. Dançou nos salões de Paris e viu o céu ficar branco com o
fogo de artifício, em Amesterdão. Beijou estranhos e cantou sobre amigos que nunca viria a
conhecer. Saiu ao som de estampidos e de sussurros.
Mas esta noite sente-se satisfeita por estar ali sentada a ver o mundo ficar branco do outro
lado da janela, cada linha e cada curva apagadas pela neve.
A casa não é dela, claro. Pelo menos em sentido literal.
Encontrou-a mais ou menos intacta, um lugar abandonado, ou simplesmente esquecida. Os
móveis estavam completamente gastos, os armários quase vazios. Mas teve uma estação para a
tornar sua, para juntar madeira da mata, do outro lado do campo. Para tratar do jardim selvagem
e roubar aquilo que não conseguiu cultivar.
É apenas um sítio onde pode deixar os ossos a repousar.
Lá fora, a tempestade aquietou.
A neve permanece imóvel no chão. Suave e limpa como papel em branco.
Talvez seja isso que a faz levantar-se.
Puxa a capa bem para junto aos ombros e sai de rompante, com as botas a afundarem-se
imediatamente na neve. É leve, envolvida numa camada de açúcar, o sabor a inverno na língua.
Uma vez, quando tinha 5 ou 6 anos, nevou em Villon. Uma visão rara, uma camada de branco
com vários centímetros de profundidade que cobriu tudo. Numa questão de horas, foi destruída
por cavalos e carroças, e pessoas, a andarem penosamente de cá para lá, mas Addie descobriu
uma pequena extensão de branco imaculado. Precipitou-se sobre ele, deixando um rasto de
pegadas. Passou as mãos nuas pelas camadas de gelo, deixou dedadas sob o seu toque. Destruiu
cada centímetro da tela.
E depois, quando terminou, olhou em volta, para o campo, então coberto de marcas, e
lamentou tudo ter chegado ao fim. No dia seguinte, a geada desfez-se, e o gelo derreteu, e foi a
última vez que brincou na neve.
Até agora.
Agora, os seus passos esmagam a neve perfeita, e esta volta a erguer-se, à sua passagem.
Agora, passa os dedos pelos montículos suaves, e estes alisam-se após o seu toque.
Agora, brinca no campo e não deixa marcas.
O mundo permanece imaculado, e pela primeira vez sente-se grata.
Gira e rodopia e dança sozinha pela neve, rindo-se da magia estranha e simples do momento,
antes de pousar mal o pé, numa área mais profunda do que pensava.
Perde o equilíbrio e cai em cima de um monte de branco, arfando sob o frio súbito ao longo
do pescoço, a neve que se introduziu pelo capuz. Olha para cima. Começou a nevar outra vez,
agora levemente, os flocos a caírem como estrelas. O mundo é abafado, um silêncio semelhante a
algodão. E, não fosse pela humidade gelada que perpassa a roupa, acha que poderia ficar ali para
sempre.
Decide que, pelo menos por enquanto, irá ficar.
Afunda-se na neve, deixa-a engolir-lhe os contornos da visão, até não haver mais do que uma
moldura à volta do céu aberto, a noite fria e límpida e cheia de estrelas. E tem de novo 10 anos,
está estendida na relva alta, atrás da oficina do pai, a sonhar que está noutro sítio qualquer que
não em casa.
Estranho, a forma tortuosa como um sonho se torna realidade.
Mas agora, ao olhar para a escuridão infindável, não pensa em liberdade, mas nele.
E então ele aparece.
De pé, sobre dela, aureolado pela escuridão, e pensa que talvez esteja outra vez a
enlouquecer, não seria a primeira vez.
— Duzentos anos — diz Luc, ajoelhando-se ao lado dela —, e ainda a comportares-te como
uma criança.
— O que estás aqui a fazer?
— Podia fazer-te a mesma pergunta.
Segura-lhe na mão, e ela aceita-a, deixa-o levantá-la do frio, e juntos caminham de volta à
casinha, deixando apenas os passos dele na neve.
Lá dentro, o lume apagou-se, e ela resmoneia consigo própria, alcançando a candeia,
esperando que seja o suficiente para devolver o fogo à vida.
Mas Luc olha apenas para os destroços fumegantes e estala os dedos de forma ausente, e as
chamas irrompem dentro da lareira, uma explosão de calor, lançando sombras sobre todas as
coisas.
Quão facilmente Luc se desloca pelo mundo, pensa ela.
Quão difíceis tornou as coisas para ela.
Luc avalia a pequena casa de campo, a vida emprestada.
— Minha Adeline — diz —, ainda a desejar crescer e transformar-se na Estele.
— Não sou tua — diz ela, embora por esta altura as palavras já tenham perdido o seu veneno.
— Com o mundo inteiro diante de ti, e passas o tempo a interpretar o papel de uma bruxa na
floresta, uma velha a invocar os deuses.
— Não te invoquei. E, no entanto, estás aqui.
Deixa-o entrar, envergando um casaco de lã e um lenço de caxemira, as golas bem subidas até
às faces, e percebe que é a primeira vez que vê Luc no inverno. Fica-lhe bem, tal como o verão.
A pele bela das faces assumiu um branco de mármore, e os caracóis negros, a cor do céu sem
luar. Os olhos verdes, frios e brilhantes como estrelas. E, pelo seu aspeto, de pé em frente à
lareira, desejava poder desenhá-lo. Mesmo passado todo este tempo, os seus dedos anseiam por
carvão.
Luc passa uma mão pela pedra da lareira.
— Vi um elefante em Paris.
As palavras dela para ele, muitos anos antes. É uma resposta tão estranha agora, cheia de
coisas não ditas. Vi um elefante e pensei em ti.
Estive em Paris, e tu não.
— E pensaste em mim — diz ela.
É uma pergunta. Ele não responde. Em vez disso, olha em volta e diz:
— Que forma deplorável de passar um ano. Podemos fazer melhor do que isto. Vem comigo.
E ela está curiosa — está sempre curiosa —, mas, nessa noite, abana a cabeça.
— Não.
O queixo dele ergue-se, de orgulho. As sobrancelhas negras arqueiam, juntas.
— Porquê?
Addie encolhe os ombros.
— Porque estou feliz aqui. E não acredito que me tragas de volta. O sorriso dele tremeluz,
como lume. E Addie espera que a coisa tenha ficado resolvida.
Espera virar-se e descobrir que ele desapareceu, devolvido à escuridão.
Mas continua ali, a sua sombra na casa emprestada de Addie.
Senta-se na segunda cadeira.
Faz aparecer copos de vinho, do nada, e sentam-se diante da lareira como amigos ou, pelo
menos, como inimigos numa trégua, e ele fala-lhe de Paris no fecho de uma década — na
viragem do século. Dos escritores, a florescer como botões, da arte e da música e da beleza.
Sempre soube como a tentar. Diz que é uma época de ouro, um tempo de luz.
— Havias de gostar — diz. — Tenho a certeza.
Ela irá, na primavera, e assistirá à Feira Mundial, verá a Torre Eiffel, a escultura de ferro
erguer-se em direção ao céu. Andará por entre edifícios de vidro, instalações efémeras, e toda a
gente falará do século antigo e do novo, como se houvesse uma linha na areia entre o presente e
o passado. Como se tudo não existisse ao mesmo tempo.
A história é algo concebido em retrospetiva.
Por enquanto, ouve-o falar, e é o suficiente.
Não se lembra de ter adormecido, mas, quando acorda, é quase manhã, e a casa está vazia,
com o lume reduzido a cinzas. Puseram-lhe um cobertor sobre os ombros e, do outro lado do
vidro, o mundo está novamente branco.
E Addie perguntar-se-á se realmente terá ali estado.
NÃO FAÇAS DE CONTA QUE ISTO É AMOR
Título: «Rapariga de Sonho»
Artista: Toby Marsh
Data: 2014
Suporte: Partitura
Origem: Cedido pela família Pershing
Descrição: Esta folha de uma partitura original, assinada pelo cantautor Toby Marsh, regista o princípio da canção
«Rapariga de Sonho» e foi leiloada como parte da gala anual da Music Notes para patrocinar programas de arte em escolas
públicas de Nova Iorque. Embora algumas das letras difiram da canção final, os versos mais famosos — «E tenho tanto
medo, medo de a esquecer,/Apesar de só a ter conhecido nos meus sonhos» — leem-se claramente no centro da página.
Contexto: É consensual ter sido esta a canção a lançar a carreira de Marsh. O músico limitou-se a fomentar a mitologia que
rodeia o tema, alegando que a canção lhe surgiu ao longo de vários sonhos. «Acordava com as notas musicais na cabeça»,
disse numa entrevista ao Paper Magazine, em 2016. «Descobria a letra escrevinhada em blocos e recibos, mas não tinha
memória de a ter escrito. Era uma espécie de sonambulismo. De produção enquanto dormia. Parecia tudo um sonho.»
Marsh nega estar sob a influência de qualquer droga na altura.
Valor estimado: 15 mil dólares
Villon-sur-Sarthe
29 de julho de 1914
É apenas sexo.
Pelo menos, começa assim.
Ele é uma coisa que tem de arrancar de dentro de si.
Ela é uma novidade a ser apreciada.
Addie quase espera que se esgotem numa única noite, que gastem toda a energia que
acumularam nos seus anos de rotação.
Mas, dois meses mais tarde, Luc vai de novo à procura dela, aparece vindo do nada e de volta
à sua vida, e ela pensa quão estranho é vê-lo sobre um fundo de vermelhos e dourados de outono,
as folhas a mudar, um cachecol cor de carvão enrolado à volta do pescoço.
Passam-se semanas até à sua próxima visita.
E depois dias, apenas.
Tantos anos de noites solitárias, de horas à espera e de ódio e de esperança.
Agora ele está ali.
Ainda assim, no espaço entre as visitas dele, Addie faz pequenas promessas a si mesma.
Não se demorará nos seus braços.
Não adormecerá ao seu lado.
Não sentirá nada a não ser os seus lábios pela pele, as mãos enredadas nas suas, o seu peso
contra o si.
Pequenas promessas que, no entanto, não cumpre.
É apenas sexo.
E depois deixa de ser.
— Janta comigo — diz Luc quando o inverno dá lugar à primavera.
— Dança comigo — diz quando um novo ano começa.
— Fica comigo — diz, finalmente, quando uma década se transforma noutra.
E uma noite Addie acorda no escuro sob a pressão suave das pontas dos dedos de Luc a
desenharem padrões na sua pele e fica perturbada com o seu olhar. Não, não com o olhar. Com o
reconhecimento.
É a primeira vez que acorda na cama com alguém que não a esqueceu. A primeira vez que
ouve o seu nome repetidamente depois do intervalo do sono. A primeira vez que não se sente
sozinha.
E algo dentro de si estilhaça-se.
Addie já não o odeia. Há muito tempo.
Não sabe quando a mudança começou, se houve um momento específico no tempo ou, como
Luc em tempos a avisou, se foi como a lenta erosão de uma costa.
Só sabe que está cansada e que ele é o sítio onde quer descansar.
E que, de alguma forma, está feliz.
Mas não é amor.
Sempre que Addie sente estar a esquecer, encosta o ouvido ao seu peito nu e escuta o tambor
da vida, o som da respiração, e ouve apenas o bosque de noite, a quietude calma do verão. Um
aviso de que ele é uma mentira, de que o seu rosto e a sua carne são apenas um disfarce.
De que não é humano e de que aquilo não é amor.
Nova Iorque
30 de julho de 2014
A cidade desliza do lado de fora da janela, mas Addie não vira a cabeça, não admira o horizonte
de Manhattan, os edifícios a erguerem-se dos dois lados. Em vez disso, estuda Luc, refletido no
vidro escuro, a linha do seu maxilar, o arco da sobrancelha, ângulos desenhados pela sua mão há
muitos, muitos anos. Observa-o, como se observa um lobo na orla da floresta, à espera de ver o
que fará.
Ele é o primeiro a quebrar o silêncio.
O primeiro a mover uma peça.
— Lembras-te da ópera em Munique?
— Lembro-me de tudo, Luc.
— Da forma como olhavas para os cantores naquele palco, como se nunca tivesses assistido a
uma representação.
— E nunca tinha assistido a uma representação como aquela.
— O assombro nos teus olhos, perante a visão de algo novo. Soube nesse momento que nunca
ganharia.
Addie quer saborear as palavras como um gole de bom vinho, mas as uvas azedam-lhe na
boca. Não confia nelas.
O carro para junto a Le Coucou, um magnífico restaurante francês na zona baixa de SoHo,
com hera a trepar pelas paredes exteriores. Já ali esteve, duas das melhores refeições que
experimentou em Nova Iorque, e pergunta-se se Luc saberá o quanto aprecia o estabelecimento
ou se simplesmente partilha o seu gosto.
Mais uma vez, oferece-lhe a mão.
Mais uma vez, ela não aceita.
Addie vê um casal aproximar-se das portas do restaurante, para descobrir apenas que está
fechado, vê-o afastar-se, murmurando algo sobre reservas. Mas, quando Luc toca na maçaneta, a
porta abre-se facilmente.
Lá dentro, candelabros enormes pendem de tetos altos, e as amplas janelas de vidro reluzem,
negras. O luar parece imenso, suficientemente grande para sentar cem pessoas, mas esta noite
está vazio, à exceção de dois chefs visíveis na cozinha aberta, de dois empregados de mesa e do
maître, que se baixa numa vénia baixa quando Luc se aproxima.
— Monsieur Dubois — diz numa voz etérea. — Mademoiselle.
Condu-los à sua mesa, posta com pratos num tom vermelho-rosado. O maître puxa a cadeira
de Addie, e Luc espera que ela se sente antes de ocupar o seu lugar. O homem abre uma garrafa
de Merlot e serve-os, e Luc ergue o copo para ela e diz:
— À tua, Adeline.
Não há ementa. Não há pedido a fazer. Os pratos chegam simplesmente.
Foie gras com cerejas e um guisado de coelho. Halibute em beurre blanc e pão acabado de
cozer e meia-dúzia de queijos diferentes.
A comida é, obviamente, requintada.
Mas, enquanto comem, o anfitrião e os empregados mantêm-se junto às paredes, de olhos
abertos, vazios, uma expressão insípida no rosto. Sempre detestou este aspeto do seu poder e a
forma descuidada como o usa.
Inclina o copo na direção das marionetas.
— Manda-os embora — diz ela, e ele fá-lo. Um gesto silencioso, e os empregados
desaparecem, e ficam sozinhos no restaurante vazio.
— Farias isso comigo? — pergunta depois de terem desaparecido.
Luc abana a cabeça.
— Não poderia — diz ele, e ela pensa que é por gostar tanto dela, mas depois ele diz: — Não
tenho poder sobre almas prometidas. Têm a sua própria vontade.
Não serve de grande consolo, pensa ela, mas é qualquer coisa.
Luc olha para o copo de vinho. Roda o pé entre os dedos e, ali, no vidro escurecido, vê-os a
ambos, enredados em lençóis de seda, vê os dedos dele no seu cabelo, as suas mãos a tocarem
música na sua pele.
— Diz-me, Adeline — diz ele. — Tiveste saudades minhas?
Claro que teve saudades dele.
Pode dizer a si mesma, como lhe disse a ele, que teve apenas saudades de ser vista ou que
teve saudades da intensidade da sua atenção, da inebriação da sua presença — mas é mais do que
isso. Teve saudades do som da sua voz, da experiência do seu toque, da fricção de pedra sobre
pedra das suas conversas, da forma como encaixam.
Ele é a gravidade.
É trezentos anos de história.
É a única constante na sua vida, o único que sempre, sempre se lembrará.
Luc é o homem com quem sonhou quando era nova e depois aquele que mais odiou e aquele
que amou, e Addie teve saudades dele todas as noites que esteve longe dela, e ele não merecia a
sua dor porque a culpa foi dele, foi culpa dele mais ninguém se lembrar, foi culpa dele ela ter
perdido e perdido e perdido, mas não diz nada disso porque não irá mudar nada e porque ainda
há uma coisa que não perdeu. Uma parte da sua história que pode salvar.
Henry.
Por isso Addie joga o seu gambito.
Estende o braço por cima da mesa e pega na mão de Luc, diz-lhe a verdade.
— Tive saudades tuas.
Os seus olhos verdes cintilam e mudam ao ouvir as palavras. Toca-lhe no anel, no dedo,
percorre as espirais na madeira.
— Quantas vezes estiveste prestes a pô-lo? — pergunta. — Com que frequência pensas em
mim? — E ela parte do pressuposto de que lhe está a armar uma cilada, até que a voz baixa até
um sussurro, um levíssimo trovão no ar entre ambos. — Porque eu pensei em ti. Sempre.
— Não vieste.
— Não chamaste.
Addie olha para as suas mãos entrelaçadas.
— Diz-me, Luc — diz. — Alguma parte foi real?
— O que é real para ti, Adeline? Visto que o meu amor não conta para nada?
— Não és capaz de sentir amor.
Ele franze o sobrolho, com os olhos a lampejarem, cor de esmeralda.
— Porque não sou humano? Porque não definho e morro?
— Não — diz ela, retirando a mão. — Não és capaz de sentir amor porque não consegues
compreender o que é gostar mais de alguém do que de nós próprios. Se me amasses, já me terias
libertado.
Luc afasta os dedos rapidamente.
— Que disparate — diz. — É porque te amo que não o faço. O amor é fome. O amor é
egoísmo.
— Estás a pensar em posse.
Ele encolhe os ombros.
— Serão assim tão diferentes? Vi o que os seres humano fazem às coisas que amam.
— As pessoas não são coisas — diz ela. — E nunca as irás compreender.
— Compreendo-te a ti, Adeline. Conheço-te, melhor do que qualquer pessoa neste mundo.
— Porque não me deixas ter mais ninguém. — Inspira profundamente para se acalmar. — Sei
que não me irás dispensar, Luc, e talvez tenhas razão, fomos feitos para estar juntos. Por isso, se
me amas, abdica do Henry Strauss. Se me amas, liberta-o.
O mau humor lampeja-lhe no rosto.
— Esta é a nossa noite, Adeline. Não dês cabo dela a falar de outra pessoa.
— Mas disseste...
— Anda — diz, afastando-a da mesa. — Este sítio já não me agrada.
O empregado tinha acabado de deixar uma tarte de pera em cima da mesa, mas esta
transforma-se em cinza quando Luc fala, e Addie espanta-se, como sempre se espantou, perante
o génio dos deuses.
— Luc — começa, mas ele já se levantou, atirando o guardanapo para cima da comida
estragada.
Nova Orleães, Luisiana
29 de julho de 1970
— Amo-te.
Estão em Nova Orleães quando ele o diz, a jantar num bar escondido no Bairro Francês, uma
das suas muitas encenações.
Addie abana a cabeça, espantada por as palavras não se transformarem em cinzas na sua boca.
— Não faças de conta que isto é amor.
A irritação lampeja no rosto de Luc.
— O que é o amor, então? Diz-me. Diz-me que o teu coração não estremece quando ouves a
minha voz. Que não sofre quando ouves o teu nome nos meus lábios.
— É pelo meu próprio nome que sofre, não pelos teus lábios.
Os contornos da boca dele contorcem-se para cima, os olhos agora cor de esmeralda. Um
brilho nascido do prazer.
— Em tempos, talvez — diz ele. — Mas agora é mais do que isso.
Addie tem receio de que ele tenha razão.
E então Luc pousa uma caixa diante dela.
É simples e preta e, se Addie estendesse a mão para lhe tocar, seria suficientemente pequena
para lhe caber na palma.
Mas não o faz, pelo menos de início.
— O que é isto? — pergunta.
— Um presente.
Ainda assim, não o aceita.
— Francamente, Adeline — diz ele, retirando a caixa da mesa. — Não mordo.
Abre-a e volta a pousá-la diante dela.
Lá dentro encontra-se uma chave de metal simples, e, quando lhe pergunta de onde é, ele
responde:
— De casa.
Não teve casa desde Villon. Na verdade, nunca teve um sítio seu, e quase se sente grata, antes
de se lembrar de que, evidentemente, ele é o motivo de tudo isso.
— Não faças troça de mim, Luc.
— Não estou a fazer troça de ti — diz ele.
Pega-lhe mão e leva-a a percorrer o bairro, até um sítio ao fundo da Bourbon Street, uma casa
amarela com uma varanda e janelas altas como portas. Addie introduz a chave na fechadura,
ouve o som pesado da volta e apercebe-se de que, se pertencesse a Luc, ao invés de a ela, a porta
simplesmente abriria. E, de súbito, a chave de metal parece real e sólida na sua mão, um tesouro.
A porta abre-se para uma casa com tetos altos e soalhos de madeira, com mobília e armários e
espaços a serem preenchidos. Addie sai para varanda, com os sons em camadas do bairro a
erguerem-se para ir ao seu encontro, no ar húmido. Música jazz derrama-se pelas ruas, colidindo,
sobrepondo-se, uma melodia caótica, mutável e viva.
— É tua — diz Luc —, uma casa — e os velhos sinais de aviso ecoam, profundamente, na
medula dos seus ossos.
Mas, ultimamente, é um raio a minguar, um farol visto de demasiado longe do porto.
Luc puxa-a para si, e Addie repara de novo na perfeição com que os seus corpos encaixam.
Como se ele fosse feito para ela.
Foi-o, evidentemente. O seu corpo, o seu rosto, aqueles traços, feitos para a deixar à vontade.
— Vamos sair — diz ele.
Addie quer ficar ali, estrear a casa, mas ele diz haverá tempo para isso, que haverá sempre
tempo. E, pela primeira vez, ela não receia a ideia de eternidade. Pela primeira vez, os dias e as
noites não se arrastam, precipitam-se para diante.
Sabe-o, sabe que, seja aquilo o que for, não irá durar.
Não pode durar.
Nada dura.
Mas, naquele momento, está feliz.
Percorrem o bairro, de braço dado, e Luc acende um cigarro, e, quando ela lhe diz que lhe faz
mal à saúde, ele solta uma gargalhada aspirada e silenciosa, com o fumo a sair-lhe por entre os
lábios.
Os passos de Addie abrandam diante da montra de uma loja.
A loja está fechada, claro, mas, mesmo por trás do vidro fumado, consegue ver o casaco de
cabedal, preto com fivelas prateadas, a envolver um manequim.
O reflexo de Luc cintila atrás dela enquanto acompanha o olhar de Addie.
— É verão — diz ele.
— Não será sempre.
Luc passa as mãos pelos ombros dela, e Addie sente o cabedal macio pousar-lhe na pele,
ficando o manequim da montra agora despido, e tenta não pensar em todos os anos em que não o
teve, obrigada a suportar o frio, em todas as vezes que teve de se esconder e de lutar e de roubar.
Tenta não pensar nelas, mas pensa.
Estão a meio caminho, de volta à casa amarela, quando Luc descola dela.
— Tenho trabalho a fazer — diz. — Vai andando para casa.
Casa — a palavra ressoa no seu peito enquanto ele se afasta.
Mas ela não vai.
Vê Luc dobrar a esquina e atravessar a rua e depois demora-se na sombra enquanto ele se
aproxima de uma loja com uma palmeira luminescente pintada na porta.
Uma mulher mais velha encontra-se no passeio, a fechar o estabelecimento, o perfil inclinado
sobre uma argola cheia de chaves, um saco grande pendendo de um cotovelo.
Deve ouvi-lo aproximar-se, porque murmura algo para a escuridão, algo sobre fechar, algo
sobre mais um dia. E depois vira-se e vê-o.
No vidro da montra, Addie também vê Luc, não como é para ela, mas como deve parecer à
mulher que se encontra à porta. Ainda tem os caracóis negros, mas o rosto é mais magro, mais
afiado, com um ar selvagem, os olhos encovados, os membros demasiado finos para serem
humanos.
— Um pacto é um pacto — diz ele, as palavras a vergarem-se no ar. — E está feito.
Addie observa, esperando que a mulher suplique, que corra.
Mas pousa o saco no chão e ergue o queixo.
— Um pacto é um pacto — diz. — E estou cansada.
E, de certa forma, é pior.
Porque Addie compreende.
Porque também está cansada.
E, enquanto observa, a escuridão desfaz-se outra vez.
Passaram-se mais de cem anos desde a última vez que Addie o viu em toda a verdade, a ira da
noite, com todos os seus dentes. Só que, desta vez, não há laceração, não há rutura, não há
horror.
A escuridão envolve simplesmente a idosa como uma tempestade, cobrindo a luz.
Addie vira costas.
Regressa à casa amarela em Bourbon Street e serve-se um copo de vinho branco, revigorante
e gelado. Está um calor tórrido; as portas da varanda encontram-se abertas de par em par para
aligeirar a noite de verão. Está encostada ao varandim de ferro quando o ouve chegar, não na rua,
lá em baixo, como um amante a fazer a corte, mas no quarto, atrás dela.
E, quando os seus braços a envolvem pelos ombros, Addie lembra-se da forma como agarrou
a mulher, à entrada, na forma como a envolveu, engolindo-a inteira.
Nova Iorque
30 de julho de 2014
Quem quer que me siga online sabe que tenho uma relação bastante problemática com histórias.
Ou melhor, com o ato de lhes dar vida. Com o domínio dessa besta desgovernada, até os
braços tremerem e a cabeça doer, e sei que, se a largar então, antes de estar pronta, ela se desfará,
e terei de a eliminar e perderei pelo menos algumas partes pelo caminho.
E por isso, enquanto sustive a história de Addie, muitas pessoas sustiveram-me a mim.
Sem elas, não haveria livro.
E é neste momento que se espera que agradeça a todas elas.
(Odeio agradecimentos.)
(Ou melhor, odeio os «Agradecimentos». Tenho uma memória terrível. Acho que a minha
cabeça ficou cheia de buracos por causa de todos estes livros, por isso, quando se trata de
agradecer às pessoas que ajudaram este livro a ganhar vida, paraliso, com a certeza de que irei
esquecer.)
(Sei que irei esquecer.)
(Estou sempre a esquecer.)
(Acho que é por isso que escrevo, para tentar captar as ideias antes de me escaparem e de me
deixarem a olhar para o vazio, a pensar porque entrei naquela divisão ou porque abri aquele
tabulador do browser ou do que andava à procura no frigorífico.)
(Claro que é irónico, tendo em conta o tema deste livro.)
(Este livro, que viveu durante tanto tempo na minha cabeça e que ocupou tanto espaço, é
responsável por pelo menos parte do esquecimento.)
Assim sendo, será uma lista incompleta.
Este livro é para o meu pai, que caminhou pelas ruas do nosso bairro, em East Nashville, e me
ouviu enquanto verbalizei pela primeira vez a ideia que me crescia na cabeça.
Para a minha mãe, que me acompanhou em todos os caminhos tortuosos e nunca permitiu que
me perdesse.
Para a minha irmã, Jenna, que sabia exatamente quando eu precisava de escrever e quando
precisava de parar de escrever e de, em vez disso, beber um cocktail requintado.
Para a minha agente, Holly, que me arrastou para fora de muitos pântanos de fogo e nunca
deixou que me chamuscasse ou afogasse ou fosse devorada por ratos gigantes.
Para a minha editora, Miriam, que esteve comigo a cada passo deste longo e tortuoso
caminho.
Para a minha agente publicitária, Kirstin, que se tornou a minha cavaleira, a minha defensora
e minha amiga.
Para Lucille, Sarah, Eileen e o resto da incrível equipa da Tor, que acreditaram nesta história
quando não passava de uma ideia, que me aplaudiram quando era apenas um esboço, que me
defenderam quando se tornou um livro acabado e me fizeram sentir, a cada passo, que me
poderia soltar, que eles me iriam agarrar.
Para os meus amigos — que sabem quem são —, que me arrastaram pela escuridão e fugiram
comigo à procura de palavras (e de frango assado).
Para Al Mare e Red Kite, por me cederem um lugar para pensar e escrever e por me
fornecerem muitos bules de chá.
Para Danielle, Ilda, Britt e Dan, pela sua paixão e por me enfiarem piza por baixo da porta.
Para todos os livreiros que me deixaram ficar até hoje nas prateleiras.
Para todos os leitores que me disseram que estavam ansiosos por o ler, apesar de terem
prometido esperar.