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Título original:

The Invisible Life of Addie Larue


Copyright © 2020 by Victoria Schwab
Todos os direitos reservados
Publicado por acordo assinado com a autora, através de Baror International Inc., Armonk, New York, USA
Autora:
Victoria Schwab
Tradução: Inês Guerreiro
Revisão: Maria Lobo
Capa de Almedina sobre design de Will Staehle

Biblioteca Nacional de Portugal – Catalogação na Publicação

SCHWAB V. E., 1987-

A vida invisível de Addie Larue

ISBN 978-989-9027-51-0

CDU 821.111(73)-312.9”20”

para
Minotauro
Junho de 2021

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MINOTAURO, uma chancela de Edições Almedina, S.A.
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Índice

Capa
Frontespício
Ficha Técnica
Primeira Parte Os Deuses que Respondem Depois de Escurecer
I
II
III
IV
V
VI
VII
VIII
IX
X
XI
XII
XIII
XIV
XV
XVI
XVII
Segunda Parte A Parte Mais Negra da Noite
I
II
III
IV
V
VI
VII
VIII
IX
X
XI
XII
XIII
XIV
Terceira Parte Trezentos Anos... E Três Palavras
I
II
III
IV
V
VI
VII
VII
IX
X
XI
XII
XIII
Quarta Parte O Homem que Não se Molhava à Chuva
I
II
III
IV
V
VI
VII
VIII
IX
X
XI
XII
XIII
XIV
XV
XVI
XVII
XVIII
XIX
Quinta Parte A Sombra que Sorria e a Rapariga que Devolvia o Sorriso
I
II
III
IV
V
VI
VII
VIII
IX
X
XI
XII
XIII
XIV
XV
Sexta Parte Não Faças de Conta que Isto é Amor
I
II
III
IV
V
VI
VII
VIII
IX
X
XI
XX
XIII
XIV
XV
XVI
XVII
XVIII
XIX
XX
Sétima Parte Lembro-me de Ti
I
II
III
Agradecimentos
Para a Patricia…
Por nunca se esquecer.
Os velhos deuses podem ser poderosos, mas não são nem clementes nem compassivos. São
volúveis, inconstantes como o luar sobre a água ou as sombras numa tempestade. Se insistires
em invocá-los, atenta bem nisto: tens de ter cuidado com o que pedires, prontificando-te a pagar
o preço. E, por mais desesperada ou atribulada que seja a situação, nunca rezes aos deuses que
respondem depois de escurecer.
Estele Magritte
1642–1719
Villon-sur-Sarthe, França
29 de julho de 1714

Uma rapariga corre como se a própria vida dependesse disso.


O ar de verão queima-lhe as costas, mas não há archotes, não há multidões enfurecidas,
apenas as lanternas distantes do copo d’água, o brilho avermelhado do sol a descer no horizonte,
a abrir fendas e a derramar-se pelas colinas, e a rapariga corre, com as saias a enredarem-se na
relva enquanto foge em direção ao bosque, tentando ser mais rápida do que a luz moribunda.
As vozes continuam no vento, gritando o seu nome.
Adeline? Adeline? Adeline!
A sua sombra alonga-se diante dela — demasiado comprida, com os contornos já a
esbaterem-se —, e florinhas brancas esvoaçam-lhe do cabelo, amontoando-se no chão como
estrelas. Uma constelação deixada à sua passagem, quase como a que traz no rosto.
Sete sardas. Uma por cada amor que tivesse, fora o que Estele dissera, quando a rapariga
ainda era nova.
Uma por cada vida que conhecesse.
Uma por cada deus que velasse por ela.
Agora, fazem troça dela, essas sete sardas. Promessas. Mentiras. Não teve amores, não viveu
vidas, não se cruzou com deuses e agora já não tem tempo.
Mas a rapariga não abranda, não olha para trás; não quer ver a vida que ali está, à sua espera.
Estática como um desenho. Sólida como um túmulo.
Em vez disso, corre.
OS DEUSES QUE RESPONDEM
DEPOIS DE ESCURECER
Título da peça: Revenir
Artista: Arlo Miret
Data: 1721–22 d.C.
Suporte: Madeira de freixo, mármore
Origem: Cedido pelo Musée d’Orsay
Descrição: Uma série escultural de cinco pássaros de madeira em posições variadas e fases de pré-voo, montadas numa base
estreita de mármore.
Contexto: Autobiógrafo zeloso, Miret escreveu diários que permitem um olhar sobre a mente e os métodos do artista. No
que diz respeito à sua inspiração para Revenir, Miret atribui-a a uma estatueta encontrada nas ruas de Paris, no inverno de
1715. O pássaro de madeira, descoberto com uma asa partida, é supostamente recriado como o quinto da sequência (agora
intacto), prestes a lançar-se em voo.
Valor estimado: 175 mil dólares
Nova Iorque
10 de março de 2014

A rapariga acorda na cama de outra pessoa.


Está ali deitada, perfeitamente imóvel, e tenta reter o tempo como uma respiração no peito;
como se pudesse impedir que o relógio avançasse, evitar que o rapaz ao seu lado acordasse,
manter viva a memória da noite apenas pela força de vontade.
Como é evidente, sabe que não é possível. Sabe que ele esquecerá. Esquecem sempre.
Não é culpa dele — nunca é culpa deles.
O rapaz ainda está a dormir, e ela vê os seus ombros subirem e descerem lentamente, o ponto
em que o cabelo escuro se encaracola contra a nuca, a cicatriz ao longo das costelas. Pormenores
há muito memorizados.
O seu nome é Toby.
Na noite anterior, disse-lhe que o seu era Jess. Mentiu, mas apenas porque não consegue dizer
o seu verdadeiro nome — um dos pormenores perversos enredados na relva, como urtigas.
Farpas escondidas prontas a picar. O que é uma pessoa senão as marcas que deixa para trás?
Aprendeu a saltar por entre as ervas pungentes, mas há alguns cortes que não se podem evitar —
uma memória, uma fotografia, um nome.
No último mês, foi Claire, Zoe, Michelle — mas, há duas noites, quando era Elle e ficaram
juntos até ao fecho de um café noturno, depois de uma das suas atuações, Toby disse que estava
apaixonado por uma rapariga chamada Jess — simplesmente ainda não a conhecera.
Por isso agora é Jess.
Toby continua a mexer-se, e ela sente a velha dor familiar no peito enquanto o rapaz se
alonga e vira na direção dela — mas não acorda, ainda não. Agora tem o rosto a centímetros do
dela, os lábios entreabertos no sono, caracóis pretos sobre os olhos, pestanas escuras contra um
rosto belo.
Uma vez, a escuridão provocou a rapariga enquanto caminhavam ao longo do Sena, disse-lhe
que ela tinha um «tipo», insinuando que a maior parte dos homens que escolhia — e até algumas
das mulheres — se pareciam bastante com ele.
O mesmo cabelo escuro, os mesmos olhos argutos, os mesmos traços marcados.
Mas não era justo.
Afinal, a escuridão só tinha esse aspeto por causa dela. Fora ela que lhe dera essa forma, que
escolhera o que pensar dele, o que ver.
Não te lembras, disse-lhe ela então, quando não passavas de sombra e fumo?
Querida, disse ele no seu jeito suave e envolvente, eu era a própria noite.
Agora é manhã, noutra cidade, noutro país. A luz intensa do sol atravessa as cortinas, e Toby
volta a mexer-se, erguendo-se da superfície do sono. E a rapariga que é — era — Jess volta a
reter a respiração enquanto tenta imaginar uma versão desse dia em que ele acorde e a veja e se
lembre.
Em que sorria e lhe afague o rosto e diga: «Bom dia.»
Mas não vai acontecer assim, e ela não quer ver a familiar expressão vaga, não quer assistir
enquanto o rapaz tenta preencher os espaços onde as memórias dela deveriam estar, vê-lo manter
a compostura numa displicência treinada. A rapariga assistiu demasiadas vezes a essa
representação, conhece os movimentos de cor, por isso, em vez disso, desliza para fora da cama e
caminha descalça até à sala.
Vê o seu reflexo no espelho da entrada e repara naquilo em que toda a gente repara: sete
sardas, espalhadas como uma série de estrelas, pelo nariz e pelas faces.
A sua própria constelação privada.
Inclina-se para frente e embacia o espelho com a respiração. Passa o dedo pela nuvem
tentando escrever o seu nome. A... d...
Mas não vai mais longe, pois as letras desaparecem. Não tem a ver com a superfície em que
escreveu — por muito que tente dizer o seu nome, por muito que tente contar a sua história. E
tentou, a lápis, a tinta negra, a tinta colorida, com sangue.
Adeline.
Addie.
LaRue.
Não vale a pena.
As letras desfazem-se, esbatem-se. Os sons morrem-lhe na garganta.
Os dedos escorregam do espelho, e ela vira-se, estudando a sala.
Toby é músico, e os vestígios da sua arte encontram-se por todo o lado.
Nos instrumentos encostados às paredes. Nas linhas e notas dispersas escrevinhadas em
mesas — compassos de melodias meio recordadas, misturados com listas de supermercado e de
tarefas semanais. Mas, aqui e ali, outra mão — as flores que começou a deixar no parapeito da
cozinha, apesar de não se conseguir lembrar de quando esse hábito começou. O livro sobre Rilke
que não se lembra de ter comprado. As coisas que perduram, mesmo quando o mesmo não
acontece com as memórias.
Toby demora a levantar-se da cama, por isso Addie prepara um chá para si — ele não bebe,
mas está sempre ali, no seu armário, uma lata de Ceilão solto e uma caixa de saquetas de seda.
Uma relíquia de uma viagem noturna à mercearia, um rapaz e uma rapariga a deambularem por
entre os corredores, de mãos dadas, porque não conseguem dormir. Porque ela não queria
permitir que a noite chegasse ao fim. Não estava pronta para o desapego.
Levanta a caneca, inala o aroma enquanto as memórias deslizam, indo ao seu encontro. Um
parque em Londres. Um pátio em Praga. Uma sala de chá em Edimburgo.
O passado desenhado como uma folha de seda sobre o presente.
Está uma manhã fria em Nova Iorque, as janelas embaciam-se com o gelo, por isso puxa um
cobertor das costas do divã e enrola os ombros nele. Um estojo de guitarra ocupa uma
extremidade do sofá, e o gato de Toby encontra-se na outra, por isso empoleira-se antes no banco
do piano.
O gato, que também se chama Toby («Para poder falar comigo próprio sem que seja
esquisito...», explicou), olha para ela enquanto sopra o chá.
Pergunta-se se o gato se lembrará.
As mãos agora estão mais quentes. Pousa a caneca em cima do piano e abre a tampa
revelando as teclas, alongando os dedos e começando a tocar o mais baixo possível. No quarto,
consegue ouvir o Toby-humano mexer-se, e todos os centímetros do seu corpo, do esqueleto até
à pele, se contraem de terror.
Esta é a parte mais difícil.
Addie podia ter-se ido embora — devia ter-se ido embora —, ter-se esgueirado quando ele
ainda estava a dormir, quando a manhã ainda era uma extensão da sua noite, um momento preso
no âmbar. Mas agora é demasiado tarde, por isso fecha os olhos e continua a tocar, mantém a
cabeça baixa quando ouve os seus passos por detrás das notas, continua a mover os dedos
quando o sente à porta. Ficará ali, a absorver a cena, a tentar reconstituir a cronologia da noite
anterior, que se pode ter extraviado, em que pode ter conhecido uma rapariga e depois tê-la
levado para casa, caso tenha bebido demais, porque não se lembra de nada daquilo.
Mas sabe que Toby não a irá interromper enquanto estiver a tocar, por isso, saboreia a música
por mais alguns segundos antes de se obrigar a parar, olhar para cima, fingir que não repara na
confusão no seu rosto.
— Bom dia — diz, com uma voz alegre e uma pronúncia que outrora foi de francês profundo,
mas está agora tão esbatida que mal a deteta.
— Ah, bom dia — diz ele, passando uma mão pelos caracóis pretos e soltos e, em sua defesa,
Toby tem o mesmo aspeto de sempre — um pouco desconcertado e surpreendido por ver uma
rapariga bonita sentada na sua sala, envergando apenas a roupa interior e a T-shirt da sua banda
preferida sob uma manta.
— Jess — diz ela, dizendo o nome de que ele não se consegue lembrar, porque não está ali.
— Não faz mal — diz ela —, se não te lembrares.
Toby cora e afasta o Toby-gato do caminho enquanto se afunda entre as almofadas do sofá.
— Desculpa... não é meu costume. Não sou esse tipo de rapaz.
Ela sorri.
— E eu não sou esse tipo de rapariga.
Ele sorri também, então, numa linha de luz que desfaz as sombras no seu rosto. Acena com a
cabeça para o piano, e ela quer que ele diga alguma coisa, como «Não sabia que tocavas», mas,
em vez disso, Toby diz:
— Tocas muito bem — e ela pensa: «É espantoso o que se pode aprender quando se tem
tempo.»
— Obrigada — diz, passando a ponta dos dedos pelo teclado.
Agora Toby está irrequieto, fugindo para a cozinha.
— Café? — pergunta, remexendo por entre os armários.
— Encontrei chá.
Começa a tocar uma canção diferente. Nada de complicado, apenas uma série de notas. O
início de algo. Encontra a melodia, agarra-a, deixa-a escapar-se por entre os dedos enquanto
Toby volta a entrar na sala, com uma chávena fumegante nas mãos.
— O que era isso? — pergunta, com os olhos a brilhar à maneira dos artistas — escritores,
pintores, músicos, todos os que têm predisposição para momentos de inspiração. — Parecia-me
familiar...
Um encolher de ombros.
— Tocaste-a para mim na noite passada.
Não é mentira, não propriamente. Tocou-a de facto para ela. Depois de ela lha ter mostrado.
— Toquei? — diz ele, franzindo o sobrolho. Já está a pôr o café de lado, à procura de um
lápis e de um bloco na mesa mais próxima. — Meu Deus... devia estar com os copos.
Abana a cabeça enquanto o diz; Toby nunca se enquadrou no tipo dos criadores de música
que preferem trabalhar sob o efeito de qualquer coisa.
— Lembras-te de mais? — pergunta, virando as folhas do bloco. Ela recomeça a tocar,
conduzindo-o por entre as notas. Ele não sabe, mas anda a trabalhar nesta composição há
semanas. Bem, andam.
Juntos.
Ela sorri um pouco enquanto continua a tocar. É esta a relva por entre as urtigas. Um sítio
seguro onde caminhar. Não pode deixar a sua marca, mas, se tiver cuidado, pode oferecer a
marca a outra pessoa. Nada de concreto, claro, mas a inspiração raramente o é.
Agora Toby pegou na guitarra, equilibrou-a num dos joelhos e acompanha-a, murmurando
para si mesmo: isto é bom, isto é diferente, isto é alguma coisa. Ela para de tocar, levanta-se.
— Tenho de ir.
A melodia desfaz-se nas cordas quando Toby olha para cima.
— O quê? Mas nem sequer te conheço.
— Exatamente — diz ela, dirigindo-se ao quarto para ir buscar a roupa.
— Mas quero conhecer-te — diz Toby, pousando a guitarra e seguindo-a pelo apartamento, e
este é o momento em que nada parece justo, a única vez em que sente uma vaga de frustração
ameaçar abater-se sobre ela. Porque passou semanas a conhecê-lo. E ele passou horas a
esquecer-se dela. — Espera.
Detesta esta parte. Não devia ter ficado. Devia ter desaparecido da vista bem como do
coração, mas há sempre a esperança incómoda de que, dessa vez, será diferente, de que, dessa
vez, eles se irão lembrar.
Eu lembro-me, diz-lhe a escuridão ao ouvido.
Abana a cabeça, obrigando a voz a calar-se.
— Qual é a pressa? — pergunta Toby. — Deixa-me ao menos fazer-te o pequeno-almoço.
Mas está demasiado cansada para entrar tão cedo no jogo e, por isso, em vez disso, mente, diz
que tem de fazer qualquer coisa e não se permite parar de andar, porque, se o fizer, sabe que não
terá forças para recomeçar, e o ciclo continuará, com a relação a principiar de manhã e não à
noite. Mas não será mais fácil quando chegar ao fim e, se tiver de recomeçar, é preferível que
seja um encontro num bar do que o rescaldo da paixoneta de uma noite que não se recorda.
Seja como for, dentro de um instante, não terá importância.
— Jess, espera — diz Toby, agarrando-lhe a mão. Debate-se à procura das palavras certas e
depois desiste, recomeça. — Vou dar um concerto hoje à noite, no Alloway. Podias vir. É no...
Claro que ela sabe onde é. Foi onde se encontraram da primeira vez e da quinta e da nona. E,
quando acede em aparecer, o seu sorriso é deslumbrante. É sempre.
— Prometes? — pergunta.
— Prometo.
— Encontramo-nos lá — diz ele, com as palavras cheias de esperança enquanto ela vira
costas e sai porta fora. Olha para trás e diz:
— Entretanto, não te esqueças de mim.
Um velho hábito. Uma superstição. Um pedido.
Toby abana a cabeça.
— Como poderia esquecer-te?
Ela sorri, como se fosse apenas uma piada.
Mas Addie sabe, enquanto se obriga a descer as escadas, que já está a acontecer — sabe que,
no momento em que fechar a porta, terá desaparecido.
Março é um mês extremamente inconstante.
É a costura entre o inverno e a primavera — embora costura sugira uma bainha regular, e
março seja mais como uma linha grosseira de pontos cosidos por uma mão pouco firme, a oscilar
descontroladamente entre rajadas de vento de janeiro e verdes de junho. Não se sabe o que se irá
encontrar até se estar lá fora.
Estele costumava chamar a este período «dias inquietos», quando os deuses de sangue mais
quente se começavam a agitar, e os frios começavam a acalmar. Quando os sonhadores ficavam
mais propensos às más ideias, e os viajantes se perderiam com toda a certeza.
Addie sempre estivera predisposta para as duas coisas.
Na altura fazia sentido, o facto de ter nascido a 10 de março, precisamente nessa costura
irregular, embora Addie não tenha vontade de festejar há muito tempo.
Durante vinte e três anos, receara o marcador do tempo, o que significava que estava a
crescer, a ficar mais velha. E depois, durante séculos, um aniversário era algo bastante inútil,
muito menos importante do que a noite em que renunciara à sua alma.
Nessa data, uma morte e um renascimento haviam-se combinado num só. Ainda assim, é o
seu aniversário, e um aniversário merece um presente.
Para em frente a uma loja, com o seu reflexo no espelho, como um fantasma.
Na montra ampla, um manequim posa a meio, com a cabeça ligeiramente inclinada para um
dos lados, como se estivesse a ouvir uma canção interior. O seu tronco comprido está envolvido
numa camisola de riscas largas, um par de leggings pretas brilhantes a desaparecerem dentro de
umas botas até aos joelhos. Tem uma mão virada para cima, com os dedos enganchados no
colarinho do casaco que lhe pende por cima de um dos ombros. Enquanto Addie estuda o
manequim, dá consigo a mimetizar a pose, mudando de posição, inclinando a cabeça. E talvez
seja do dia ou da promessa de primavera no ar ou talvez lhe esteja simplesmente a apetecer algo
novo.
Lá dentro, a loja cheira a velas por acender e a roupa por usar, e Addie passa os dedos pelo
algodão e pela seda antes de encontrar a camisola de lã às riscas, que revela ser de caxemira.
Atira-a por cima de um braço, juntamente com as leggings da montra. Sabe os seus tamanhos.
Não mudaram.
— Viva! — a funcionária afável é uma rapariga com 20 e poucos anos, como a própria
Addie, embora uma seja real e esteja a envelhecer e a outra seja uma imagem presa em âmbar. —
Posso arranjar-lhe uma cabine de provas?
— Oh, obrigada — responde, tirando um par de botas de uma prateleira. — Tenho tudo
aquilo de que preciso. — Segue a rapariga até aos três compartimentos fechados com cortinas ao
fundo da loja.
— Chame-me se precisar de ajuda — diz a rapariga, virando costas antes de a cortina se
fechar e de Addie ficar na companhia de um banco almofadado, de um espelho de corpo inteiro e
da sua própria pessoa.
Descalça as botas dando um pontapé no ar e contorce-se, despindo o casaco e atirando-o para
cima do banco. Alguns trocos chocalham no bolso ao aterrar no chão, e algo cai. Atinge o chão
com um som abafado e rola pela cabine estreita, só parando quando chega ao rodapé.
É um anel.
Um pequeno círculo talhado em madeira de freixo. Um anel familiar, outrora amado, agora
abominado.
Addie fica a olhar para aquilo por um instante. Os dedos contorcem-se, traiçoeiros, mas não
estende o braço para ele, não o apanha, limita-se a virar costas ao pequeno círculo de madeira e
continua a despir-se. Veste a camisola, enfia as leggings, puxa o fecho das botas. O manequim
era mais magro, mais alto, mas Addie gosta de ver o modelo em si, gosta do calor da caxemira,
do peso das leggings, do conforto suave do forro das botas.
Arranca as etiquetas com o preço, uma a uma, ignorando os zeros.
Joyeux anniversaire, pensa, fitando o seu reflexo. Inclinando a cabeça, como se também ela
estivesse a ouvir uma canção interior. A imagem de uma mulher moderna de Manhattan, mesmo
que o rosto no espelho seja o mesmo que teve durante séculos. Addie deixa as roupas usadas
espalhadas como uma sombra pelo chão da cabine de provas. O anel, como uma criança
escarnecida, ao canto. A única coisa que apanha do chão é o casaco aí largado.
É suave, de cabedal preto e foi usado até ser quase seda, o tipo de coisas pelas quais as
pessoas hoje pagam uma fortuna e a que chamam vintage. Foi a única coisa que Addie se
recusou a deixar para trás e entregue às chamas em Nova Orleães, embora o cheiro dele lhe tenha
ficado entranhado como fumo, com a sua marca deixada em tudo, para sempre. Não quer saber.
Gosta do casaco.
Na altura era novo, mas agora está estragado, denuncia o desgaste de todas as formas que ela
própria não consegue revelar. Fá-la pensar em Dorian Gray, com o tempo refletido em cabedal,
ao invés de pele humana.
Addie sai do pequeno compartimento com cortina.
Do lado oposto da loja, a empregada mostra-se espantada, perturbada ao vê-la.
— Serviu tudo? — pergunta, demasiado educada para admitir que não se lembra de ter
deixado alguém ir até às traseiras da loja. Obrigada, serviço de atendimento ao cliente.
Addie abana a cabeça pesarosamente.
— Há dias em que temos o que merecemos — diz, dirigindo-se para a porta.
Quando a empregada finalmente encontra as peças de roupa, um fantasma de uma rapariga na
cabine de prova, não se irá lembrar de quem era, e Addie terá desaparecido, da vista, da mente e
da memória.
Atira o casaco por cima do ombro, com um dedo enfiado no colarinho, e sai lá para fora, para
o sol.
Villon-sur-Sarthe, França
Verão de 1698

Adeline está sentada num banco, ao lado do pai.


O pai, que, para ela, é um mistério, um gigante solene que se sente fundamentalmente em
casa quando está na sua oficina.
Por baixo dos pés de ambos, uma pilha de objetos de madeira desenha formas como pequenos
corpos por baixo de um cobertor, e as rodas da carroça chocalham enquanto Maxime, a égua
robusta, os arrasta estrada fora, para longe de casa.
Longe — longe —, uma palavra que faz disparar o seu pequeno coração.
Adeline tem 7 anos, tal como o número de sardas no rosto. É viva e pequena e rápida como
um pardal e suplicou durante meses para ir com ele ao mercado. Suplicou até a mãe jurar que
enlouqueceria, até o pai finalmente aceder. É marceneiro, o pai, e, três vezes por ano, faz a
viagem ao longo do Sarthe, até à cidade de Le Mans.
E hoje ela vai com ele.
Hoje, pela primeira vez, Adeline saiu de Villon.
Olha para trás, para a mãe, de braços cruzados junto ao velho teixo ao fundo do caminho, e
depois fazem a curva, e a mãe desaparece. A aldeia passa por eles, aqui as casas, ali os campos,
aqui a igreja, ali as árvores, aqui Monsieur Berger a remexer na terra, ali Madame Therault a
pendurar roupa na corda com a filha, Isabelle, sentada na relva, mesmo ao lado, a entrelaçar
flores em coroas, concentrada com a língua entre os dentes. Quando Adeline contara a viagem à
rapariga, Isabelle limitara-se a encolher os ombros e a dizer:
— Gosto disto aqui.
Como se não se pudesse gostar de um lugar e querer ver outro.
Agora olha para cima, para Adeline, e acena enquanto a carroça passa. Chegam ao fim da
aldeia, o mais longe que alguma vez foi até então, e a carroça embate numa lomba, na estrada, e
sacode-se, como se também tivesse transposto um limiar. Adeline sustém a respiração, esperando
sentir uma corda apertá-la com força dentro de si, prendendo-a à povoação.
Mas não há corrente, não há guinada. A carroça continua a andar, e Adeline sente-se um
pouco destemida e um pouco assustada quando se vira para trás para ver a imagem de Villon a
encolher, aldeia que era, até esse momento, todo o seu mundo e que agora é apenas uma parte,
cada vez mais pequena, a cada passo da égua, até esse lugarejo se parecer com uma das
estatuetas do pai, suficientemente pequeno para caber numa mão calosa.
Le Mans fica a um dia de caminho, com o trajeto aligeirado pelo cesto da mãe e pela
companhia do pai — o pão e o queijo de um para lhe encher a barriga, o riso fácil e os ombros
largos do outro a criarem sombra para Adeline, sob o sol de verão.
Em casa é um homem calado, absorto no seu trabalho, mas na estrada começa a abrir-se, a
revelar-se, a falar.
E, quando fala, é para lhe contar histórias.
As histórias que acumulou do mesmo modo que se acumula lenha.
— Il était une fois — dirá ele, antes de resvalar para histórias de palácios e de reis, de ouro e
de pompa, de bailes de máscaras e de cidades cheias de esplendor. Era uma vez. A história
começa assim.
Não se lembrará das histórias em si, mas recordará a forma como ele as conta; as palavras
parecem macias como pedras de rio, e pergunta -se se conta estas histórias quando está sozinho,
se continua, falando para Maxime no seu jeito fácil e delicado. Pergunta-se se conta histórias à
madeira enquanto a trabalha. Ou se serão apenas para ela.
Adeline gostava de as poder escrever.
Mais tarde, o pai ensiná-la-á a escrever. A mãe terá um ataque quando descobrir e acusá-lo-á
de lhe dar outro pretexto para não fazer nada, para desperdiçar as horas do dia, mas, mesmo
assim, Adeline irá esgueirar-se para a oficina, e ele deixá-la-á sentar-se ali a treinar a escrita do
nome na poeira fina que parece cobrir sempre o chão daquele espaço.
Mas hoje pode apenas ouvir.
O campo passa em torno de ambos, uma imagem atropelada de um mundo que já conhece. Os
campos são campos, tal como os seus, as árvores dispostas aproximadamente pela mesma ordem,
e, quando chegam de facto a uma aldeia, trata-se de um reflexo chapado de Villon, e Adeline
começa a perguntar-se se o mundo lá fora será tão aborrecido como o seu.
E então as muralhas de Le Mans surgem no horizonte.
Cumeeiras de pedra erguendo-se ao longe, uma coluna de vários padrões ao longo das
colinas. Tem cem vezes a dimensão de Villon — ou, pelo menos, na sua memória, é tão grande
como isso —, e Adeline retém a respiração quando passam pelos portões e entram na cidade
protegida.
Para lá deles, um labirinto de ruas apinhadas. O pai guia a carroça por entre casas de pedra
bem apertadas, até que a via estreita se abre para uma praça.
Claro que em Villon existe uma praça, mas não é maior do que o seu próprio pátio. Esta é um
espaço gigantesco, com o chão escondido sob tantos pés e carroças e barracas. E enquanto o pai
conduz Maxime até parar a carroça, Adeline fica no banquinho a admirar o mercado, o cheiro
intenso a pão e açúcar no ar, e pessoas, pessoas, para onde quer que olhe. Nunca viu tantas, mais
ainda, pessoas que não conhece. Formam um mar de estranhos, rostos desconhecidos em roupas
desconhecidas, com vozes desconhecidas, a gritarem palavras desconhecidas.
É como se as portas do seu mundo tivessem sido abertas de par em par, com muitas divisões a
serem acrescentadas a uma casa que pensava ser familiar.
O pai encosta-se à carroça e fala com quem quer que passe por eles, e ao mesmo tempo as
suas mãos percorrem um bloco de madeira, com uma faca pequena aninhada numa das palmas.
Raspa pela superfície com o à-vontade firme de alguém a descascar uma maçã, com as lascas a
caírem-lhe por entre os dedos. Adeline sempre gostou de o ver trabalhar, de ver as figuras
ganharem forma, como se sempre ali tivessem estado, mas escondidas, caroços no centro de um
pêssego.
A arte do pai é bela, a madeira é macia, mas as suas mãos ásperas; delicada a arte, grande o
pai.
E, confundidos entre tigelas e taças, enfiados entre as ferramentas do seu ofício, estão
brinquedos para vender e figuras de madeira pequenas como pãezinhos — um cavalo, um rapaz,
uma casa, um pássaro.
Adeline cresceu rodeada por essas bagatelas, mas o seu preferido não é nem animal nem
humano.
É um anel.
Usa-o num fio de cabedal à volta do pescoço, um aro delicado, em madeira de freixo, suave
como uma pedra polida. Talhou-o quando ela nasceu, tendo-o feito para a rapariga que um dia
seria, e Adeline usa-o como um talismã, um amuleto, uma chave. A mão de vez em quando toca-
lhe, com o polegar a passar pela sua superfície, tal como os dedos da mãe percorrem um terço.
Agora agarra-o, uma âncora na tempestade, enquanto se empoleira na parte de trás da carroça
e observa tudo. Desta perspetiva, é quase suficientemente alta para ver os edifícios que ficam
adiante. Alonga-se nas pontas dos pés, perguntando-se onde chegarão, até que um cavalo
próximo lhes sacode a carroça ao passar e ela quase cai. A mão do pai fecha-se em torno do seu
braço, puxando-a de volta à segurança da sua proximidade.
Ao fim do dia, as peças de madeira desapareceram, e o pai de Adeline dá-lhe uma moeda de
cobre e diz que pode comprar algo de que goste. Anda de banca em banca, observando os pastéis
e os bolos, os chapéus e os vestidos, e também as bonecas, mas acaba por se decidir por um
caderno, com folhas de papel suave e costura de cera. É a brancura do papel que a deixa
entusiasmada, a ideia de que poderá preencher o espaço com tudo o que quiser.
Não tinha dinheiro para pagar os lápis que faziam conjunto com ele, mas o pai usa uma
segunda moeda para comprar um feixe de pauzinhos pretos e explica que são de carvão, mostra-
lhe como encostar a ponta escura no papel, esborratar a linha para transformar os contornos
definidos em sombra. Com alguns gestos rápidos, desenha um pássaro no canto da página, e ela
passa a próxima hora a copiar as linhas, muito mais interessantes do que as letras que ele
escreveu por baixo.
O pai arruma as coisas na carroça, enquanto o dia dá lugar ao crepúsculo.
Passarão a noite numa estalagem local, e, pela primeira vez na vida, Adeline dormirá numa
cama diferente e ficará atenta a sons e cheiros estranhos, e haverá um momento, tão breve quanto
um bocejo, em que não saberá onde está, e o seu coração baterá mais depressa — primeiro de
medo e depois de outra coisa. Algo para o qual ainda não tem palavras.
E quando tiverem regressado a casa, a Villon, já será uma versão diferente de si. Um quarto
com as janelas escancaradas, ansioso por deixar entrar o ar fresco, a luz do sol, a primavera.
Villon-sur-Sarthe, França
Outono de 1703

É um lugar católico, Villon. Pelo menos na aparência.


Há uma igreja no centro da aldeia, um edifício solene de pedra onde toda a gente se dirige
para salvar a sua alma. A mãe e o pai de Adeline ajoelham-se aí duas vezes por semana,
persignam-se, dizem as suas orações e falam de Deus.
Adeline tem agora 12 anos, por isso também o faz. Mas reza do mesmo modo que o pai vira
os pães de forma para os deixar direitos e que a mãe lambe o polegar para apanhar grãos de sal
dispersos.
Por uma questão de hábito, de forma mais automática do que a fé.
A igreja da aldeia não é nova, tal como Deus não é novo, mas Adeline acabou por pensar
Nele dessa forma, graças a Estele, que diz que o maior perigo da mudança é permitir que o novo
substitua o velho.
Estele, que é de toda a gente e de ninguém e de si mesma.
Estele, que cresceu como uma árvore no centro da aldeia, perto do rio, e que certamente
nunca foi nova, que brotou do próprio solo com mãos nodosas e pele lenhosa e raízes
suficientemente profundas para alcançarem o seu próprio poço escondido.
Estele, que acredita que o novo Deus é algo em filigrana. Pensa que esse Deus pertence às
cidades e aos reis e que está sentado por cima de Paris, numa almofada dourada, e que não tem
tempo para camponeses, que não tem lugar entre a madeira e a pedra e a água do rio.
O pai de Adeline acha que Estele é louca.
A mãe diz que a mulher está condenada ao Inferno, e uma vez, quando Adeline lho repetiu,
Estele riu-se, com o seu riso de folha seca, e disse que esse lugar não existia, apenas o chão
negro e frio e a promessa de sono.
— Então e o Paraíso? — perguntou Adeline.
— O Paraíso é um sítio agradável à sombra, uma árvore ampla sobre os meus ossos.
Aos 12 anos, Adeline pergunta-se a que deus deveria rezar para fazer com que o pai mude de
ideias. Carregou a carroça com peças destinadas a Le Mans, aparelhou Maxime, mas, pela
primeira vez em seis anos, não vai com ele.
Prometeu trazer-lhe um novo caderno de papel, mais material para desenhar. Mas ambos
sabem que ela preferia ir a receber os presentes, preferia ver o mundo lá fora a ter outro bloco
onde desenhar. Está a ficar sem modelos, memorizou os contornos cansados da aldeia e todos os
rostos familiares que esta inclui.
Mas, este ano, a mãe decidiu que não é apropriado, que não fica bem ir ao mercado, mesmo
que Adeline saiba que ainda consegue ficar bem no banco de madeira ao lado do pai.
A mãe desejava que ela fosse mais parecida com Isabelle Therault, doce, bondosa e com uma
absoluta falta de curiosidade, satisfeita por poder manter os olhos descidos sobre a malha em vez
de olhar para cima, para as nuvens, em vez de se perguntar o que fica para lá da curva, para lá da
encosta.
Mas Adeline não sabe ser como Isabelle.
Não quer ser como Isabelle.
Só quer ir a Le Mans e, uma vez lá, observar as pessoas e ver todos os ofícios e provar a
comida e descobrir coisas de que ainda não ouviu falar.
— Por favor — diz, enquanto o pai sobe para a carroça. Devia ter-se enfiado entre as peças de
madeira, bem escondida por baixo da lona. Mas agora é demasiado tarde, e, quando Adeline
estende o braço para a roda, a mãe agarra-a pelo pulso e puxa-a para trás.
— Chega — diz.
O pai olha para elas e depois desvia o olhar. A carroça arranca, e, quando Adeline tenta
libertar-se e correr atrás dela, a mão da mãe aparece de novo, desta vez para lhe encontrar o
rosto.
As lágrimas enchem-lhe os olhos, um rosa intenso antes de a nódoa negra começar a nascer, e
a voz da mãe, ao aterrar, é como um segundo golpe.
— Já não és uma criança.
E Adeline compreende — e, ao mesmo tempo, não compreende, de todo —, sente-se como se
tivesse sido castigada por simplesmente ter crescido. Está tão zangada nesse momento que quer
fugir. Quer atirar a costura da mãe para a lareira e partir todas as esculturas inacabadas do pai, na
oficina.
Ao invés, vê a carroça descrever a curva e desaparecer por entre as árvores, com uma mão
fechada sobre o anel do pai. Adeline espera que a mãe a solte e que a mande ir tratar dos seus
afazeres.
E então vai ter com Estele.
Estele, que ainda venera os velhos deuses.
Adeline devia ter 5 ou 6 anos da primeira vez que viu a mulher mergulhar a sua taça de pedra
no rio. Era um objeto bonito, com um padrão denso como renda, dos lados, e a idosa limitou-se a
deixá-la cair, apreciando o chapinhar. Tinha os olhos fechados e os lábios moviam-se, e quando
Adeline intercetou a velha — já era velha, sempre fora velha — a caminho de casa, Estele disse
que estava a rezar aos deuses.
— Para quê?
— O bebé da Marie não está a crescer bem — disse. — Pedi aos deuses do rio que fizessem
as coisas correr naturalmente. São bons nisso.
— Mas porque lhes deu a sua taça?
— Porque os deuses são gananciosos, Addie.
Addie. Uma alcunha carinhosa, de que a mãe escarnecia por parecer nome de rapaz. Um nome
que o pai usava, mas apenas quando estavam sozinhos. Um nome que repicava como um sino
nos seus ossos. Um nome que lhe assentava muito mais do que Adeline.
Agora, encontra Estele no jardim, emaranhada por entre as gavinhas selvagens de abóbora, o
caule espinhoso de um arbusto de amoras, dobrada, muito baixo, como um braço de tear.
— Addie. — A idosa diz o seu nome sem olhar para cima.
É outono, e o solo está atulhado dos caroços de frutos que não amadureceram como deviam.
Addie toca-lhes com a ponta do sapato.
— Como fala com eles? — perguntou. — Com os velhos deuses. Chama-os pelo nome?
Estele endireita-se, com as articulações a estalarem como galhos secos. Se foi surpreendida
pela pergunta, não o revela.
— Eles não têm nomes.
— Existe algum feitiço?
Estele olha-a de forma penetrante.
— Os feitiços são para as bruxas, e as bruxas muitas vezes são queimadas.
— Então como reza?
— Com dádivas e louvores, e, mesmo assim, os deuses são volúveis. Não são obrigados a
responder.
— O que se faz então?
— Insiste-se.
Morde o interior da bochecha.
— Quantos deuses existem, Estele?
— Tantos quantas perguntas tiveres — responde a idosa, mas na sua voz não há escárnio, e
Addie espera que ela acabe, sustém a respiração até ver o sinal que denuncia o suavizar de
Estele. É como esperar à porta de um vizinho depois de se ter batido, quando se sabe que está
gente em casa. Ouve os passos, o arranhar surdo do trinco, e sabe que este irá ceder.
Estele abre-se num suspiro.
— Os velhos deuses estão por toda a parte — diz. — Nadam no rio e crescem no campo e
cantam no bosque. Estão no sol que banha o trigo e sob as árvores jovens, na primavera, e nas
gavinhas que crescem pela parede daquela igreja de pedra. Reúnem-se nos limites do dia, de
madrugada e sob o crepúsculo.
Os olhos de Addie semicerraram-se.
— Ensinas-me? A chamá-los?
A mulher suspira, sabendo que Adeline LaRue não é apenas esperta, mas também teimosa.
Começa a percorrer o jardim com dificuldade até casa, e a rapariga segue-a, receando que, se
Estele chegar à porta antes de responder, a possa fechar sobre aquela conversa. Mas Estele olha
para trás, de olhos cortantes no seu rosto enrugado.
— Existem regras.
Adeline detesta regras, mas sabe que por vezes são necessárias.
— Como por exemplo?
— Tens de te prostrar perante eles. Tens de lhes levar uma dádiva. Algo que seja precioso
para ti. E tens de ter cuidado com aquilo que pedes.
Adeline reflete.
— Só isso?
O rosto de Estele ensombrece.
— Os velhos deuses podem ser poderosos, mas não são nem clementes nem compassivos.
São volúveis, inconstantes como o luar sobre a água ou as sombras numa tempestade. Se
insistires em invocá-los, atenta bem nisto: tens de ter cuidado com o que pedires, prontificando-
te a pagar o preço. E, por mais desesperada ou atribulada que seja a situação, nunca rezes aos
deuses que respondem depois de escurecer.
Dois dias mais tarde, quando o pai de Adeline regressa,vem com um bloco de papel suave
novo e uma série de lápis pretos de grafite, presos com um cordel, e a primeira coisa que Adeline
faz é escolher o melhor e espetá-lo no chão, por trás do jardim, e rezar para que, da próxima vez
que o pai vá ao mercado, possa ir com ele.
Mas, se os deuses a ouviram, não responderam.
Nunca mais irá ao mercado.
Villon-sur-Sarthe, França
Primavera de 1707

Um piscar de olhos, e os anos caem como folhas.


Adeline agora tem 16 anos, e toda a gente fala dela como se fosse uma flor de verão, algo a
colher e enfiar numa jarra, destinado apenas a florir e depois a apodrecer. Tal como Isabelle, que
sonha com uma família em vez da liberdade e que parece satisfeita por florescer e depois
murchar.
Não, Adeline decidiu que prefere ser uma árvore, como Estele. Se tiver de desenvolver raízes,
prefere que a deixem florescer selvagem em vez de ser podada, prefere ficar sozinha, que a
deixem crescer sob o céu aberto. Melhor isso do que lenha, cortada apenas para arder na lareira
de alguém.
Apoia o cesto da roupa na anca e endireita a coluna, descendo o declive coberto de ervas
daninhas, até ao rio. Quando chega à margem, despeja o cesto, amontoando a roupa suja na
relva, e, ali, escondido como um segredo entre as saias e os aventais e a roupa interior, encontra-
se o caderno de desenho. Não o primeiro — juntou-os ano após ano, tendo o cuidado de
preencher cada centímetro de espaço, de modo a aproveitar ao máximo cada página em branco.
Mas qualquer pessoa é como uma vela a arder numa noite sem luar, sempre a correr
demasiado depressa.
Não ajuda estar sempre a oferecer dádivas.
Descalça os sapatos sacudindo os pés e refastela-se contra o solo, com as saias a espalharem-
se sob o seu corpo. Passa os dedos pela relva cheia de ervas e descobre a orla desgastada do
papel, um dos seus desenhos preferidos, dobrado num quadrado e levado até à margem do rio na
semana anterior, mesmo antes da madrugada. Um penhor, enterrado como uma semente, ou uma
promessa. Uma dádiva.
Adeline ainda reza ao novo Deus, quando é preciso, mas quando os pais não estão a ver,
também reza aos velhos. Consegue fazer as duas coisas; manter um deles contra a bochecha,
como um caroço de cereja, enquanto sussurra ao outro.
Por enquanto, nenhum deles respondeu.
E, no entanto, Adeline tem a certeza de que estão a ouvir.
Quando George Caron começou a olhar para ela de uma certa maneira, na primavera anterior,
rezou para que desviasse o olhar, e ele começou a reparar antes em Isabelle. Isabelle tornou-se
então sua mulher e agora está pronta a dar à luz o seu primeiro filho e desgastada por todos os
tormentos que vêm por acréscimo.
Quando Arnaud Tulle deixou claras as suas intenções, no outono anterior, Adeline rezou para
que encontrasse outra rapariga. Não encontrou, mas nesse inverno adoeceu e morreu, e Adeline
sentiu-se terrivelmente mal por se sentir aliviada, embora tivesse continuado a alimentar a
corrente com bugigangas.
Rezou, e alguém deve ter ouvido, porque continua livre. Livre de lhe fazerem a corte, livre do
casamento, livre de tudo, à exceção de Villon. Deixada em paz, para crescer.
E sonhar.
Adeline senta-se na encosta, com o caderno de desenho equilibrado nos joelhos. Tira da
algibeira a bolsa fechada com um cordão, e uns quantos pedaços de carvão e alguns lápis usados
chocalham como moedas num dia de mercado.
Costumava prender a grafite, enrolando-a num pano para manter os dedos limpos, até que o
pai talhou umas tiras estreitas de madeira à volta dos paus escuros e lhe mostrou como segurar na
faquinha, como aparar as extremidades e desbastar o exterior até se tornarem pontas. E agora as
imagens são mais precisas, os contornos bem traçados, os pormenores requintados. As imagens
florescem no papel como manchas, paisagens de Villon e todos os seus habitantes também — os
fios do cabelo da mãe, os olhos do pai, as mãos de Estele e, depois, escondido nas costuras e nas
extremidades de cada página...
O segredo de Adeline.
O seu estranho.
Cada centímetro de espaço livre é preenchido com ele, um rosto desenhado tantas vezes que
os gestos agora parecem não exigir esforço, com as linhas a desenrolarem-se sozinhas. Consegue
invocá-lo de cor, apesar de nunca se terem encontrado.
Afinal, é apenas uma invenção da sua mente. Um companheiro primeiramente moldado a
partir do tédio, e depois, do desejo.
Um sonho, para lhe fazer companhia.
Não se lembra de quando começou, apenas de que um dia percorreu a aldeia com o olhar e
achou todos os ângulos insatisfatórios.
Os olhos de Arnaud eram agradáveis, mas não tinha queixo.
Jacques era alto, mas apagado, como a sujidade.
George era forte, mas as suas mãos eram ásperas, os seus modos ainda mais agrestes.
E assim roubou as partes que achou agradáveis e juntou-as numa pessoa nova.
Um estranho.
Começou como uma brincadeira — mas, quanto mais Adeline o desenha, mais fortes são as
linhas, mais confiante é a pressão sobre o pedaço de carvão.
Caracóis negros. Olhos claros. Maxilar pronunciado. Ombros caídos e uma boca como o arco
de um cupido. Um homem com quem nunca se cruzou, uma vida que nunca conheceu, um
mundo com que pode apenas sonhar.
Quando se sente inquieta, recorre aos desenhos, passando por cima das linhas agora
familiares. Quando não consegue dormir, pensa nele. Não no contorno da sua face ou no tom de
verde que invocou para os seus olhos, mas na sua voz, no seu toque. Fica ali acordada, a
imaginá-lo ao seu lado, com os dedos compridos a desenharem-lhe padrões ausentes na pele.
Enquanto o faz, conta-lhe histórias.
Não do tipo que o pai lhe costumava contar, sobre cavaleiros e reinos, princesas e ladrões.
Não contos de fadas e advertências sobre ousar sair das fronteiras, mas histórias que parecem
verdades, representações das estradas, cidades que reluzem, do mundo para lá de Villon. E
embora as palavras que põe na sua boca estejam certamente cheias de erros e de mentiras, a voz
invocada do estranho fá-las parecer verdadeiramente maravilhosas, verdadeiramente reais.
Se pudesses ver, diz ele.
Dava tudo por isso, responde ela.
Um dia, promete ele. Um dia mostro-te. Hás de ver tudo.
As palavras magoam, mesmo enquanto as pensa, com o jogo a dar lugar ao desejo, algo
demasiado genuíno, demasiado perigoso. E por isso, mesmo na sua imaginação, devolve a
conversa a rumos mais seguros.
Conta-me dos tigres, diz Adeline, tendo ouvido falar desses gatos gigantescos pela boca de
Estele, que o pedreiro descreveu, tendo feito parte de uma caravana que incluía uma mulher que
alegava ter visto um.
O seu estranho sorri e gesticula com os seus dedos afilados e fala-lhe do seu pelo sedoso, dos
seus dentes, dos seus rugidos furiosos.
Na encosta, a roupa esquecida ao seu lado, Adeline roda o anel de madeira, absorta, com uma
mão, enquanto desenha com a outra, esboçando os seus olhos, a sua boca, a linha dos seus
ombros nus. Instila vida nele a cada traço. E, a cada toque do carvão, convence-o a contar outra
história.
Conta-me como é dançar em Paris.
Conta-me como é navegar pelo mar.
Conta-me tudo.
Não havia perigo nisso, não havia repreensão, pelo menos quando era mais nova. Todas as
raparigas eram atreitas a sonhar. Haveria de se deixar disso quando crescesse, diziam os pais —
mas, ao invés, Adeline sente-se entrar nisso enquanto cresce, agarrando-se com mais força à
esperança teimosa de algo mais.
O mundo deveria estar a alargar-se. Em vez disso, sente-o encolher, apertar-se como correntes
em torno dos membros, tal como as linhas planas do seu próprio corpo começam a curvar contra
ele, e subitamente o carvão sob as suas unhas é impróprio, tal como a ideia de que deveria
escolher o seu próprio companheiro, entre Arnaud ou George ou qualquer homem que a pudesse
ter.
Destoa de tudo, não se enquadra, é um insulto para o seu sexo, uma criança teimosa sob a
forma de uma mulher, a cabeça inclinada e os braços bem agarrados ao bloco de desenhos, como
se fosse uma porta.
E, quando efetivamente olha para cima, o seu olhar dirige-se sempre para a extremidade da
aldeia.
— Uma sonhadora — escarnece a mãe.
— Uma sonhadora — lamenta o pai.
— Uma sonhadora — avisa Estele.
No entanto, não parece uma palavra assim tão má.
Até que Adeline acorda.
Nova Iorque
10 de março de 2014

Há um ritmo, quando se anda sozinho no mundo.


Descobre-se aquilo sem o qual se pode e não se pode passar, as necessidades simples e as
pequenas alegrias que definem a vida. Não se trata de comida ou de abrigo, não se trata das
coisas básicas de que um corpo precisa — essas são, para ela, um luxo —, mas das coisas que
nos mantêm de espírito são. Que nos trazem alegria. Que tornam a vida suportável.
Addie pensa no pai e nas suas esculturas, na forma como talhava a casca, como desbastava a
madeira por baixo dela de modo a encontrar as formas que viviam lá dentro. Miguel Ângelo
chamava-lhe o anjo do mármore — embora ela não tenha conhecido essa realidade em criança. O
pai chamava-lhe o segredo da madeira. Sabia como reduzir uma coisa, lasca após lasca, pedaço
após pedaço, até encontrar a sua essência; também sabia quando fora demasiado longe. Um gesto
a mais, e a madeira passava de delicada a frágil nas suas mãos.
Addie teve trezentos anos para praticar a arte do pai, para se desbastar até algumas verdades
essenciais, para perceber quais são as coisas de que não pode prescindir.
E foi com isto que ficou: não pode passar sem comida (não definhará). Não pode passar sem
calor (o frio não a matará). Mas uma vida sem arte, sem assombro, sem coisas belas...
enlouqueceria. Enlouqueceu.
Do que precisa é de histórias.
As histórias são uma forma de nos preservarmos. De sermos recordados. E de esquecermos.
As histórias surgem sob muitas formas: em carvão e em música e em quadros, poemas, filmes. E
livros.
Os livros, como descobriu, são uma forma de viver mil vidas — ou de descobrir forças numa
vida muito longa.
Dois quarteirões acima de Flatbush, vê uma mesa desdobrável familiar no passeio, cheia de
livros, e Fred curvado na sua cadeira instável, atrás dela, com o nariz vermelho enterrado em M
is for Malice. O velho explicou-lhe uma vez, quando ia em K is for Killer, que estava decidido a
percorrer toda a série do alfabeto de Grafton antes de morrer. Espera que ele consiga. Tem uma
tosse incómoda, e estar sentado na rua ao frio não ajuda, mas continua ali, sempre que Addie
aparece.
Fred não sorri ou faz conversa de circunstância. O que Addie sabe acerca dele, espiolhou,
palavra após palavra, ao longo dos dois últimos anos, com progressos lentos e hesitantes. Sabe
que é viúvo, que vive lá em cima, sabe que os livros pertenciam à mulher, Candance, sabe que,
quando ela morreu, ele pegou em todos os livros e trouxe-os para baixo, para os vender, e que é
como libertar-se dela aos pedaços. Como vender a sua mágoa. Addie sabe que se senta ali porque
tem medo de morrer no seu apartamento, de não ser encontrado — de não sentirem a sua falta.
— Se cair para o lado aqui — diz —, ao menos alguém irá reparar.
É um velho rude, mas Addie gosta dele. Vê a tristeza na sua revolta, a ponderação que nasce
do sofrimento.
Addie desconfia que não deseja propriamente que os livros se vendam.
Não lhe põe preço, não leu mais do que alguns, e por vezes os seus modos são tão
indelicados, o tom tão frio, que acaba por afugentar a clientela. Ainda assim, esta aparece e,
ainda assim, compra, mas, sempre que o acervo parece reduzir-se, aparece uma nova caixa, o
conteúdo é esvaziado de modo a preencher os espaços vazios, e, nas últimas semanas, Addie
começou a reparar mais uma vez em novos títulos entre os velhos, capas a estrear e lombadas
sem mossas entre os livros usados. Pergunta-se se os estará a comprar ou se outras pessoas terão
começado a fazer doações à sua estranha coleção.
Addie abranda, agora, com os dedos a dançarem sobre as lombadas.
O sortido é sempre uma combinação de notas dissonantes. Thrillers, biografias, romance,
principalmente títulos comerciais e batidos, entrecortados por alguns livros de capa dura e
reluzente. Parou para os estudar cem vezes, mas hoje limita-se a empurrar o livro que se encontra
na ponta para a sua mão, num gesto leve e rápido como o de um mágico. Um truque de
prestidigitação. Uma prática há muito aperfeiçoada. Addie enfia o livro debaixo do braço e
continua a andar.
O velho não chega a olhar para cima.
Nova Iorque
10 de março de 2014

O mercado encontra-se ao fundo do parque, como um grupo de mulheres velhas.


Bastante reduzido pelo inverno, o número de quiosques coroados de branco começa
finalmente a engrossar de novo, com gotas de cor a pontuarem a praça onde novos produtos
surgem entre os produtos hortícolas, a carne e o pão e outros alimentos resistentes ao frio.
Addie serpenteia por entre as pessoas, dirigindo-se à pequena tenda branca aninhada junto aos
portões de entrada da Prospect. A Rise and Shine é um quiosque que serve café e pastelaria,
gerido por duas irmãs que fazem Addie pensar em Estele, se a idosa fosse duas em vez de uma só
pessoa, divididas pelas linhas do seu temperamento. Se fosse mais amável, mais suave ou se
simplesmente tivesse vivido outra vida, noutro tempo.
As irmãs estão ali o ano inteiro, faça chuva ou faça sol, uma pequena constante numa cidade
em eterna mudança.
— Olá, querida — diz Mel, toda largura de ombros e caracóis revoltos, com o tipo de encanto
que faz os estranhos sentirem-se como se fossem da família. Addie adora isso, a afabilidade fácil,
quer aninhar-se nela como numa camisola muito usada.
— O que vai ser hoje? — pergunta Maggie, mais velha, mais magra, com rugas de riso em
volta dos olhos a desmentirem a ideia de que raramente sorri.
Addie pede um café grande e dois queques, um de mirtilo e o outro de pepitas de chocolate, e
depois entrega uma nota de dez amarrotada que encontrou na mesinha de café do Toby. Claro
que poderia roubar qualquer coisa do mercado, mas gosta daquela banca e das mulheres que a
gerem.
— Tens dez cêntimos? — pergunta Maggie.
Addie procura a moeda no bolso, retirando algumas moedas de vinte e cinco centavos, cinco
cêntimos — e então acontece de novo, o calor entre as moedas de metal frio. Os seus dedos
afloram o anel de madeira, e cerra os dentes ao sentir o seu toque. Como um pensamento
incómodo, impossível de descartar. Vasculhando por entre as moedas, Addie tem o cuidado de
não voltar a tocar no anel de madeira enquanto procura trocos, resiste ao impulso de atirar o anel
para as ervas, sabe que não fará diferença, se o fizer. Ele acabará sempre por encontrar o
caminho de volta.
A escuridão sussurra-lhe ao ouvido, com os braços a envolverem-lhe a garganta, como um
lenço.
Estou sempre contigo.
Addie tira uma moeda de dez cêntimos e guarda o resto na algibeira.
Maggie devolve-lhe quatro dólares.
— De onde és, amor? — pergunta Mel, reparando num ligeiro vestígio de pronúncia nos
cantos da voz de Addie, por essa altura reduzido à terminação esbatida de um S, ao ligeiro
suavizar de um T. Já se passou tanto tempo, mas não parece conseguir libertar-se.
— De nenhum sítio em especial — diz —, mas nasci em França.
— Oh la la — diz Mel na sua forma arrastada de falar, característica de Brooklyn.
— Aqui tens, fofa — diz Maggie, entregando-lhe um saco com os bolos e um copo grande.
Addie enrola os dedos à volta do papel, saboreando o calor nas palmas das mãos frias. O café é
forte e puro, e, quando bebe, sente o calor descer até ao fundo e está de novo de volta a Paris, a
Istambul, a Nápoles.
Um gole de memória.
Começa a andar em direção aos portões do parque.
— Au revoir! — grita Mel, aterrando com força em cada letra, e Addie sorri para o vapor.
O ar está puro, dentro do parque. O sol apareceu, lutando para fazer vingar o calor, mas a
sombra continua a pertencer ao inverno, por isso Addie segue a luz, afundando-se numa encosta
arrelvada sob o céu sem nuvens.
Coloca o queque de mirtilo em cima do saco de papel e sorve o café, estudando o livro que
levou emprestado da mesa de Fred. Nem se dera ao trabalho de espreitar o que estava a levar,
mas agora o coração tem um ligeiro baque ao ver o livro, com a capa muito macia do uso, o
título em alemão.
Kinder und Hausmärchen, diz, de Brüder Grimm.
Contos de Grimm.
O seu alemão está enferrujado, guardado no fundo da mente, num canto que não usa muito
desde a guerra. Agora limpa-lhe o pó, sabe que, por baixo de uma camada de sujidade,
encontrará o espaço intacto, imperturbado. A bênção da memória. Folheia as páginas antigas,
com os olhos a tropeçarem nas palavras.
Era uma vez. Adorava esse tipo de histórias.
Quando ainda era criança, e o mundo era pequeno, e sonhava com portas abertas.
Mas Addie agora sabe perfeitamente que essas histórias estão cheias de seres humanos tolos a
fazerem coisas tolas, de narrativas a advertir sobre deuses e monstros e de mortais gananciosos
que querem demasiado e depois não conseguem compreender o que perderam. Até pagarem o
preço e ser demasiado tarde para o reclamarem de volta.
Uma voz ergue-se como fumo dentro do seu peito.
Nunca rezes aos deuses que respondem depois de escurecer.
Addie atira com o livro para o lado e afunda-se para trás, na relva, fechando os olhos
enquanto tenta saborear o sol.
Villon-sur-Sarthe,
França 29 de julho de 1714

Adeline quisera ser uma árvore.


Crescer de forma selvagem e profunda, não pertencer a ninguém, além do solo, por baixo dos
pés, e do céu, lá em cima, tal como Estele. Seria uma vida pouco convencional, e talvez um
pouco solitária, mas pelo menos seria sua. Pertenceria apenas a si própria.
Mas é aqui que reside o perigo de um lugar como Villon.
Um piscar de olhos — e passou-se um ano.
Um piscar de olhos — e seguem-se mais cinco.
É como um espaço entre pedras, esta aldeia, apenas com a largura suficiente para as coisas se
perderem. O tipo de lugar em que o tempo desliza e se tolda, em que um mês, um ano, uma vida
podem desaparecer. Em que toda a gente nasce e é enterrada no mesmo lote de dez metros.
Adeline ia ser uma árvore.
Mas depois apareceu Roger, e a sua mulher, Pauline. Cresceram juntos e depois casaram e
depois desapareceram, enquanto prendia os atacadores de um par de botas.
Uma gravidez difícil, um parto desastroso, duas mortes em vez de uma vida nova.
Três filhos pequenos deixados para trás, onde deviam ter ficado quatro. A terra ainda fresca
sobre uma sepultura, e Roger à procura de outra mulher, de uma mãe para os seus filhos, uma
segunda vida em troca da única de Adeline.
Claro que disse que não.
Adeline tem 23 anos, já é demasiado velha para casar.
Vinte três anos, um terço de uma vida já enterrado.
Vinte e três anos — e depois é oferecida como recompensa a um homem que não ama ou
deseja ou sequer conhece.
Disse que não e aprendeu o valor dessa palavra. Aprendeu que, tal como Estele, se prometera
à aldeia, e que a aldeia precisava de algo.
A mãe disse que era sua obrigação.
O pai disse que era compaixão, embora Adeline não saiba por quem.
Estele não disse nada, porque sabia que não era justo. Sabia que era esse o risco de se ser
mulher, de se oferecer a um lugar, ao invés de a uma pessoa.
Adeline ia ser uma árvore, mas, em vez disso, as pessoas apareceram a brandir um machado.
Tinham-na oferecido.
Na noite antes do casamento, está deitada na cama, acordada, e pensa em liberdade. Em fugir.
Em roubar o cavalo do pai, apesar de saber que esse pensamento é uma loucura.
Sente-se suficientemente louca para o fazer.
Em vez disso, reza.
Claro que tem rezado, desde o dia dos esponsais. Ofereceu metade dos seus pertences ao rio e
enterrou a outra metade no campo ou na vertente de lama e silvas onde a aldeia alcança o bosque,
e agora está quase sem tempo, e quase sem objetos para oferecer.
Fica ali deitada no escuro, a rodar o velho anel de madeira no seu fio de cabedal, e pondera
sair e voltar a rezar, pela calada da noite, mas Adeline lembra-se do aviso assustador de Estele
sobre os deuses que poderiam responder. Por isso, ao invés, crava as mãos uma na outra e reza
antes ao Deus da mãe. Reza pedindo ajuda, um milagre, uma solução. E então, na parte mais
escura da noite, reza pedindo a morte de Roger — tudo para poder fugir.
De repente, sente-se culpada, volta a aspirar esse sentimento para dentro do peito como se o
tivesse expelido e espera.

O dia nasce como quem desfaz uma gema de ovo, derramando uma luz amarela pelos
campos.
Adeline esgueira-se para fora de casa antes de ser madrugada, não tendo chegado a dormir.
Agora corre esbaforida pela erva inculta por trás da horta, com as saias a absorverem o orvalho,
deixa-se afundar sobre o seu peso, com o seu lápis preferido cravado numa das mãos. Adeline
não quer abdicar dele, mas está a ficar sem tempo e sem objetos para oferecer.
Espeta a ponta do lápis no solo húmido do campo.
— Ajuda-me — sussurra para a relva, com os caules iluminados. — Sei que estás aí. Sei que
estás a ouvir. Por favor. Por favor.
Mas a relva é apenas relva, e o vento é apenas vento, e nenhum deles responde, mesmo
quando encosta a testa ao solo e soluça.
Não há nada de errado com Roger.
Mas também não há nada que seja certo. Tem a pele cerosa, o cabelo louro começa a
escassear, a sua voz é como uma espiral de vento. Quando a sua mão se pousa no seu braço, o
toque é fraco, e, quando inclina a cabeça na direção da sua, o hálito é bafiento.
E Adeline? É um legume que se deixou demasiado tempo na horta, a casca endureceu, o
interior é lenhoso, ficou no solo por decisão própria, para apenas ser desenterrada e transformada
numa refeição.
— Não quero casar com ele — diz, com os dedos emaranhados na terra cheia de ervas.
— Adeline! — chama a mãe, como se fosse um dos animais, tresmalhado. Levanta-se de
forma arrastada, esvaziada pela revolta e pela mágoa, e, quando entra em casa, a mãe não vê
mais do que a sujidade acumulada nas mãos e manda a filha ir lavar-se. Adeline esfrega a terra
que tem sob as unhas, com as cerdas da escova a morderem-lhe os dedos, enquanto a mãe a
repreende.
— O que irá o teu marido pensar?
Marido.
Uma palavra como um marco, toda ela peso, sem calor.
A mãe censura.
— Não serás tão irrequieta quando tiveres de tomar conta de uma criança.
Adeline volta a pensar em Isabelle, duas crianças pequenas agarradas às saias, uma terceira
num cesto junto à lareira. Costumavam sonhar juntas, mas, aparentemente, envelheceu dez anos
em dois. Está sempre cansada e tem covas nos pontos em que outrora as faces estavam
vermelhas de rir.
— Vai ser bom para ti — diz a mãe — ser mulher de alguém.

O dia passa como uma sentença. O sol cai como uma foice.
Adeline quase consegue ouvir o assobio da lâmina enquanto a mãe lhe entrança o cabelo
numa coroa, ornando-o com flores em vez de joias. O seu vestido é simples e leve, mas bem
podia ser feito de malha de aço, de tal forma lhe pesa.
Quer gritar.
Em vez disso, leva a mão ao anel de madeira pendurado ao pescoço, como que para ganhar
equilíbrio.
— Tens de tirar isso antes da cerimónia — ordena a mãe, e Adeline acena com a cabeça,
apesar de os dedos se apertarem com mais força ainda à volta dele.
O pai entra vindo do celeiro, coberto de lascas de madeira e a cheirar a seiva. Tosse, um
ligeiro estertor, como sementes soltas, dentro do peito. Está ali há um ano, essa tosse, mas não as
deixa falar disso.
— Estás quase pronta? — pergunta.
Que pergunta tão tola.
A mãe fala do jantar de copo d’água como se já tivesse passado. Adeline olha pela janela,
para o sol a afundar-se, e não ouve as palavras, mas consegue ouvir a luz na voz da mãe, a
justificação que ela contém. Até nos olhos do pai existe um certo alívio. Afilha tentou fazer o seu
próprio caminho, mas agora as coisas estão a ser corrigidas, uma vida caprichosa arrastada de
volta ao seu rumo, empurrada para o caminho certo.
A casa está demasiado quente, o ar pesado e imóvel, e Adeline não consegue respirar.
Finalmente, o sino da igreja dobra, o mesmo tom baixo com que repica, nos funerais, e ela
obriga-se a levantar-se.
O pai toca-lhe no braço.
O rosto é pesaroso, mas a mão é firme.
— Vais acabar por amar o teu marido — diz, mas as palavras são claramente mais desejo do
que promessa.
— Serás uma boa esposa — diz a mãe, e as suas são mais uma ordem do que um desejo.
E então Estele aparece à porta, vestida como se estivesse de luto. E porque não haveria de
estar? Esta mulher que lhe ensinou o que eram sonhos empolgantes e deuses caprichosos, que
encheu a cabeça de Adeline com pensamentos de liberdade, que soprou sobre as cinzas da
esperança e a deixou acreditar que a vida podia ser sua.
A luz tornou-se aquosa e clara por detrás da cabeça cinzenta de Estele. Ainda há tempo, diz
Adeline para si mesma, mas este começa a escapar, agora mais depressa, a cada respiração.
Tempo — quantas vezes ouviu descreverem-no como areia dentro de uma ampulheta, firme,
constante. Mas é mentira, porque o consegue sentir acelerar, esmagar-se contra ela.
O pânico martela como um tambor dentro do seu peito, e, fora dele, o caminho é uma única
linha negra, que se alonga a direito e estreito em direção à praça da aldeia. Do outro lado, a igreja
aguarda, pálida e rígida como um túmulo, e sabe que, se entrar, não irá sair.
O seu futuro passará a correr, tal como o seu passado, mas pior, porque não haverá liberdade,
apenas uma cama de casal e um leito de morte e talvez um berço pelo meio, e quando morrer,
será como se nunca tivesse vivido.
Não haverá Paris.
Não haverá amante de olhos verdes.
Não haverá viagens de barco para terras longínquas.
Não haverá céus estrangeiros.
Não haverá vida para lá daquela aldeia.
Não haverá vida, de todo, a menos que...
Adeline liberta-se da mão do pai, arrasta-se até parar no caminho.
A mãe vira-se para olhar para ela, pois poderá desatar a correr, que é exatamente o que quer
fazer, mas sabe que não pode.
— Fiz um presente para o meu marido — diz Adeline, com a cabeça a andar à volta. —
Deixei-o em casa.
A mãe suaviza, de aprovação.
O pai endurece, de desconfiança.
Os olhos de Estele estreitam-se, de compreensão.
— Vou só buscá-lo — continua, já a voltar para trás.
— Vou contigo — diz o pai, e o seu coração tem um baque, e os seus dedos contorcem-se,
mas é Estele quem estende um braço para o deter.
— Jean — diz no seu jeito dissimulado —, a Adeline não pode ser tua filha e mulher dele. É
uma mulher feita, não uma criança de que se tenha de tomar conta.
Ele procura os olhos da filha e diz:
— Não demores.
Adeline já desatou a correr.
Fazendo o caminho de volta e passando pela porta e entrando em casa e percorrendo-a, até ao
outro lado, à janela aberta e ao campo e à linha distante de árvores. O bosque como sentinela na
orla leste da aldeia, do lado contrário ao sol. O bosque, já mergulhado na sombra, embora ela
saiba que ainda há luz, ainda há tempo.
— Adeline? — chama o pai, mas ela não olha para trás.
Ao invés, esgueira-se pela janela, com a madeira a repuxar-lhe o vestido de noiva enquanto se
esgueira para fora e corre.
— Adeline? Adeline!
As vozes chamam por ela, mas alongam-se cada vez mais a cada passo, e em breve está do
outro lado do campo e dentro do bosque, transpondo a linha de árvores enquanto se afunda com
os joelhos na terra densa de verão.
Agarra no anel de madeira, sente a sua perda antes de passar o fio de cabedal por cima da
cabeça. Adeline não o quer sacrificar, mas já não tem mais dádivas, deu à terra todos os objetos
de que podia prescindir, e nenhum dos deuses respondeu. Agora o anel é tudo o que tem, e a luz
é escassa, e a aldeia chama-a, e está desesperada para fugir.
— Por favor — sussurra, com a voz a desfazer-se sobre a palavra enquanto enfia o anel na
terra musguenta. — Faço qualquer coisa.
As árvores murmuram por cima da sua cabeça e imobilizam-se, como se também estivessem
à espera, e Adeline reza, a todos os deuses dos bosques de Villon, a qualquer um e a qualquer
coisa que a possa ouvir. Aquela não pode ser a sua vida. Aquilo não pode ser tudo o que existe.
— Responde-me — implora enquanto a humidade se infiltra no seu vestido de noiva.
Fecha os olhos com força e tenta ouvir, mas o único som é a sua própria voz no vento e o seu
nome, ecoando aos seus ouvidos como o bater de um coração.
— Adeline...
— Adeline...
— Adeline...
Inclina a cabeça até ao chão, agarra num punhado de terra escura e grita:
— Responde-me!
O silêncio é escárnio.
Viveu ali a vida inteira e nunca ouviu o bosque tão silencioso. O frio instala-se nela, e não
sabe se vem da floresta ou dos seus próprios ossos, a desistirem do derradeiro combate. Os seus
olhos ainda estão bem fechados, e talvez seja por isso que não repara que o sol se afundou por
detrás da aldeia, atrás dela, que o crepúsculo deu lugar à escuridão.
Adeline continua a rezar e não repara em nada disso.
Villon-sur-Sarthe, França
29 de julho de 1714

O som, quando surge, é um ribombar surdo, profundo e distante, como um trovão.


Riso, pensa Adeline, abrindo os olhos e reparando, finalmente, que a luz se extinguiu.
Olha para cima, mas não vê nada.
— Está aí alguém?
O rio transforma-se numa voz, algures atrás dela.
— Não precisas de te ajoelhar — diz. — Vamos lá ver como és de pé.
Ela levanta-se atabalhoadamente e vira-se, mas é recebida apenas pela escuridão, rodeada por
ela, por uma noite sem luar depois do sol de verão ter desaparecido. E Adeline sabe, então, que
cometeu um erro. Que este é um dos deuses sobre os quais foi alertada.
— Adeline? Adeline? — gritam as vozes da aldeia, tão esbatidas e remotas como o vento.
Olha de soslaio para as sombras entre as árvores, mas não há forma, não há deus que se possa
encontrar — apenas aquela voz, próxima como uma respiração contra o seu rosto.
— Adeline, Adeline — diz, escarnecendo —, estão a chamar-te.
Vira-se de novo, não encontrando mais do que sombra profunda.
— Mostra-te — ordena ela, com a voz acutilante e quebradiça como um pau.
Algo lhe aflora o ombro, lhe roça o pulso, a envolve como um amante. Adeline engole em
seco.
— O que és?
O toque da sombra recua.
— O que sou? — pergunta, com uma ponta de humor no tom aveludado. — Isso depende
daquilo em que acreditas.
A voz cinde-se, duplica, ribombando por entre os ramos das árvores e serpenteando pelo
musgo, dobrando-se sobre si mesma até ficar por todo o lado.
— Então diz-me, diz-me, diz-me — ecoa. — Sou o diabo, diabo, ou as trevas, trevas, trevas?
Sou um monstro, monstro, ou um deus, deus, deus, ou... — as sombras no bosque começam a
aglomerar-se, atraídas como nuvens tempestuosas.
Mas, quando se fixam, os contornos já não são mãos-cheias de fumo, mas linhas firmes, a
forma de um homem, estabilizado pela luz das candeias da aldeia, atrás dele.
— Ou serei isto?
A voz derrama-se de uns lábios perfeitos, uma sombra revelando uns olhos de esmeralda que
dançam sob sobrancelhas negras, um cabelo preto que lhe cai em caracóis sobre a testa,
emoldurando um rosto que Adeline conhece demasiado bem. Um rosto que invocou milhares de
vezes, a lápis e carvão e sonho.
É o estranho.
O seu estranho.
Sabe que é um truque, uma sombra a fazer-se passar por homem, mas a sua visão ainda lhe
tira o fôlego. A escuridão olha para a sua própria forma, vendo-a como se fosse pela primeira
vez, e parece aprovar.
— Ah, então a rapariga afinal acredita em alguma coisa. — Os olhos verdes erguem-se. —
Bem — diz —, chamaste, e eu vim.
Nunca rezes aos deuses que respondem depois de escurecer.
Adeline sabe — sabe —, mas foi este o único que respondeu. O único disposto a ajudar.
— Estás preparada para pagar?
Pagar.
O preço.
O anel.
Adeline cai de joelhos, esquadrinha o solo até encontrar o fio de cabedal e puxa o anel do pai
do chão.
Apresenta-o ao deus, com a madeira clara agora suja de terra, e ele aproxima-se mais. Poderá
parecer de carne e osso, mas continua a mover-se como uma sombra. Um único passo e está ali,
enchendo o seu campo de visão, fechando uma mão sobre o anel e pousando a outra no rosto de
Adeline. O seu polegar aflora a sarda que tem sob o olho, a orla superior da constelação.
— Minha querida — diz a escuridão, pegando no anel. — Não negoceio com bugigangas.
O anel de madeira desfaz-se na sua mão e cai, transformado em fumo. Um som abafado solta-
se dos lábios de Adeline — já era suficientemente doloroso perder o anel, mas ainda mais vê-lo
eliminado do mundo como uma mancha na pele. Mas, se o anel não é suficiente, então o que é
preciso?
— Por favor — diz ela —, dou qualquer coisa.
A outra mão da sombra ainda está pousada no seu rosto.
— Presumes que eu quero qualquer coisa — diz, levantando o queixo. — Mas só aceito uma
moeda. — Aproxima-se ainda mais dela, com os olhos verdes impossivelmente brilhantes, a voz
suave como seda. — Só faço pactos em troca de almas.
Adeline sentiu o coração apertar-se-lhe no peito.
Mentalmente, vê a mãe de joelhos na igreja, a falar com Deus e com o Céu, ouve o pai a
conversar, a contar histórias de bruxas e de enigmas. Pensa em Estele, que não acredita em nada,
apenas numa árvore sobre os seus ossos. Que diria que uma alma não passa de uma semente
devolvida à terra — embora tenha sido ela quem a avisou das trevas.
— Adeline — diz a escuridão, com o nome a deslizar como musgo por entre os dentes. —
Estou aqui. Agora diz-me porquê.
Esperou tanto tempo para que fossem ao seu encontro — para que lhe respondessem, para
que lhe perguntassem — que, de início, todas as palavras lhe faltam.
— Não me quero casar.
Sente-se tão pequena quando o diz... Toda a sua vida lhe parece pequena, e vê essa imagem
refletida no olhar do deus, como que a dizer: É tudo?
E não, é mais do que isso. Claro que é mais.
— Não quero pertencer a alguém — diz com uma veemência súbita. As palavras são uma
porta que se abre de par em par, e agora o resto derrama-se para fora dela. — Não quero
pertencer a ninguém a não ser a mim mesma. Quero ser livre. Livre para viver e para descobrir o
meu próprio caminho, para amar ou para ficar sozinha, mas, pelo menos, essa ser uma decisão
minha, e estou tão cansada de não poder decidir, tenho tanto medo dos anos a passarem sob os
meus pés. Não quero morrer como vivi, que não é vida nenhuma. Quero...
A sombra interrompe-a, impaciente.
— E de que me serve dizeres-me o que não queres? — a mão desliza pelo cabelo dela, vem
pousar-se contra a sua nuca, aproximando-a dele. — Diz-me antes o que mais desejas.
Ela olha para cima.
— Quero uma oportunidade de viver. Quero ser livre. — Pensa nos anos a escaparem-se.
Um piscar de olhos, e metade da tua vida desapareceu.
— Quero mais tempo.
Ele estuda-a, com os olhos verdes a mudarem de tom, agora relva de primavera, agora folha
de verão.
— Quanto tempo?
A cabeça anda-lhe à roda. Cinquenta anos. Cem. Todos os números parecem demasiado
pequenos.
— Ah — diz a escuridão, interpretando o seu silêncio. — Não sabes. — Mais uma vez, os
olhos verdes mudam, escurecem. — Pedes tempo, sem limites. Queres liberdade, sem regras.
Queres ser indomada. Queres viver exatamente como te apetecer.
— Sim — diz Adeline, esbaforida de desejo, mas a expressão da sombra azeda. A mão
desliza-lhe da pele, e, então, deixa de estar ali, mas encostado a uma árvore, a vários passos de
distância.
— Recuso — diz ele.
Adeline recua como se tivesse sofrido um golpe.
— O quê? — conseguiu ali chegar, deu tudo o que tem, tomou uma decisão. Agora não pode
voltar para aquele mundo, para aquela vida, para aquele presente e passado sem um futuro. —
Não podes recusar.
Uma sobrancelha negra ergue-se, mas não há divertimento naquele rosto.
— Não sou um génio qualquer, às ordens dos teus caprichos. — Desencosta-se da árvore. —
E também não sou um espírito da floresta insignificante, satisfeito por conceder favores em troca
de bugi- gangas mortais. Sou mais forte do que o teu deus e mais velho do que o teu diabo. Sou a
escuridão por entre as estrelas e as raízes por baixo da terra. Sou promessa e potencial, e, quando
se trata de jogos, defino as regras, disponho as peças e decido quando jogar. E, hoje, digo não.
Adeline? Adeline? Adeline?
Para lá da orla do bosque, as luzes da aldeia estão agora mais próximas. Há archotes no
campo. Vêm atrás dela.
A sombra olha por cima do ombro.
— Vai para casa, Adeline. Regressa à tua vidinha.
— Porquê? — suplica, agarrando-o pelo braço. — Porque me recusas?
Passa a mão pelo rosto dela, um gesto suave e caloroso como fumo de lareira.
— Não faço caridade. Pedes demasiado. Quantos anos até estares saciada? Quantos até
receber o que me é devido? Não, faço acordos com desfechos, e o teu não tem fim.
Adeline regressará a este momento mil vezes.
Frustrada, arrependida, pesarosa, em autocomiseração e numa raiva desenfreada.
Acabará por enfrentar o facto de se ter amaldiçoado antes de ele próprio o fazer.
Mas, naquele instante, só consegue ver a luz bruxuleante dos archotes de Villon e os olhos
verdes do estranho que outrora sonhou amar e a oportunidade de fugir a escapar-lhe com o seu
toque.
— Queres um desfecho — diz ela. — Podes ficar com a minha vida quando eu estiver farta
dela. Podes ficar com a minha alma quando eu já não a quiser.
A sombra inclina a cabeça, subitamente intrigada.
Um sorriso — exatamente como o sorriso dos seus desenhos, de soslaio e cheio de segredos
— percorre-lhe a boca. E então puxa-a para si. O abraço de um amante. É fumo e pele, ar e osso,
e, quando a sua boca se encosta à dela, a primeira coisa que saboreia é a transformação das
estações, o momento em que o crepúsculo dá lugar à noite. E então o seu beijo torna-se mais
profundo. Os dentes roçam-lhe pelo lábio inferior, e há dor nesse prazer, seguido do sabor a
cobre de sangue na língua.
— Feito — sussurra o deus contra os seus lábios.
E então o mundo ensombrece, e ela está a cair.
Villon-sur-Sarthe, França
29 de julho de 1714

Adeline treme.
Olha para baixo e vê que está sentada numa cama de folhas molhadas.
Um segundo atrás, estava a cair — apenas por um segundo, nem o tempo que se demora a
inspirar —, mas, aparentemente, o tempo deu um salto para a frente. O estranho desapareceu, e
também os últimos sedimentos de luz. O céu de verão, onde aparece, sob as árvores em dossel, é
suavizado num veludo negro, pontuado apenas por uma lua baixa.
Adeline levanta-se, analisando as mãos, olhando para lá da sujidade, em busca de algum sinal
de transformação.
Mas sente-se... na mesma. Um pouco tonta, talvez, como se se tivesse levantado demasiado
depressa ou bebido demasiado vinho de estômago vazio, mas, passado um instante, até essa
instabilidade passou e ficou a sentir-se como se o mundo se tivesse inclinado, mas não caído, e
depois firmado e depois reequilibrado, devolvido à mesma rotina de sempre.
Lambe os lábios, esperando sentir o sabor a sangue, mas a marca deixada pelos dentes do
estranho desapareceu, arrastada com todos os outros vestígios dele.
Como se sabe que um feitiço resultou? Pediu tempo, vida — terá de esperar um ano ou três
ou cinco para ver se a idade deixa alguma marca? Ou de pegar numa faca e de cortar a pele, para
ver se e como sara? Mas não, pediu vida, não uma vida incólume, e, em boa verdade, Adeline
tem receio de testar, receio de descobrir a sua pele ainda demasiado flexível, receio de saber que
a promessa da sombra foi um sonho ou, pior, uma mentira.
Mas sabe uma coisa — quer o pacto tenha sido real ou não, irá ignorar o repicar dos sinos na
igreja, não casará com Roger. Desafiará a família. Abandonará Villon, se for preciso. Sabe que
agora fará o que for preciso, porque o desejou, na escuridão, e, de uma forma ou de outra, deste
momento em diante, a sua vida será sua.
O pensamento é empolgante. Aterrador, mas empolgante, enquanto sai da floresta.
Vai a meio do campo quando se apercebe de quão silenciosa a aldeia está.
De quão escura.
As candeias festivas foram apagadas, os sinos pararam de dobrar, não há vozes a chamarem-
na.
Adeline faz o caminho até casa, com o terror surdo a crescer com um pouco mais de
intensidade a cada passo. Quando lá chega, a cabeça zumbe de preocupação. A porta da frente
está aberta, derramando luz pelo pátio, e ouve a mãe cantarolar na cozinha, o pai a cortar madeira
nas traseiras da casa. Uma noite normal, que passou a estar errada pelo facto de não dever ser
uma noite normal.
— Maman! — diz, entrando.
Uma travessa cai em estilhaços no chão, e a mãe grita, não de dor, mas de surpresa, com o
rosto num esgar.
— O que está aqui a fazer? — pergunta, e ali está a irritação que Addie esperava. Ali está a
consternação.
— Desculpa — começa. — Sei que devem estar zangados, mas não consegui...
— Quem é a menina?
As palavras são um silvo, e então percebe, o olhar temeroso no rosto da mãe não é a irritação
de uma mãe escarnecida, mas o de uma mulher assustada.
— Maman...
A mãe retrai-se perante a própria palavra.
— Saia da minha casa.
Mas Adeline atravessa a divisão, agarra-a pelos ombros.
— Não sejas tonta. Sou eu, a A...
Ia dizer Adeline.
Na verdade, tenta. Três sílabas não deveriam ser como trepar a uma montanha, mas está
ofegante ao fim da primeira, incapaz de dizer a segunda. O ar transforma-se em pedra dentro da
garganta, e fica sufocada, muda. Tenta de novo, desta vez experimentando Addie e depois,
finalmente, o apelido, LaRue, mas não vale a pena. As palavras chegam a um impasse entre a
mente e a língua. E, no entanto, no segundo em que inspira para dizer outra palavra, qualquer
outra palavra, esta aparece, os pulmões enchem-se, e a garganta solta-se.
— Largue-me — pede a mãe.
— O que se passa? — pergunta a voz, baixa e profunda. A voz que tranquilizava Adeline nas
noites em que estava doente, que lhe contava histórias enquanto se sentava no chão da oficina.
O pai está de pé, à porta, com os braços cheios de lenha.
— Papa — diz ela, e ele recua, como se a palavra fosse acutilante.
— A mulher é doida — soluça a mãe. — Ou então foi amaldiçoada.
— Sou a vossa filha — volta a dizer.
O pai faz um trejeito.
— Não temos filhos.
Aquelas palavras, uma lâmina mais incisiva. Um corte mais profundo.
— Não — diz Adeline, abanando a cabeça perante aquele absurdo. Tem 23 anos, viveu todos
os dias e todas as noites sob aquele teto. — Vocês conhecem-me. — Como podem não a
conhecer? A semelhança entre eles sempre foi acentuada, os olhos do pai, o queixo da mãe, o
sobrolho de um e os lábios do outro, cada feição copiada da sua fonte.
Também o veem, têm de ver.
Mas, para eles, é apenas um sinal de artes mágicas.
A mãe persigna-se, e as mãos do pai fecham-se à volta do seu corpo, e Adeline quer
mergulhar na força do seu abraço, mas não há afabilidade nele enquanto a arrasta até à porta.
— Não — suplica.
A mãe agora está a chorar, com uma mão na boca e a outra a agarrar na cruz de madeira à
volta do pescoço, enquanto chama à própria filha demónio, monstro, louca, e o pai não diz nada,
limita-se a apertar-lhe o braço com mais força enquanto a empurra para fora de casa.
— Vá-se embora — diz, as palavras quase como uma súplica.
A tristeza varre-lhe o rosto, mas não é do tipo que decorre do conhecimento. Não, é a tristeza
reservada às coisas perdidas, uma árvore arrancada por uma tempestade, um cavalo que ficou
coxo, uma lasca um segundo antes de ser talhada.
— Por favor — suplica. — Papa...
O seu rosto endurece enquanto a obriga a sair para a escuridão e fecha a porta com estrondo.
O ferrolho é corrido. Adeline vacila para trás, a tremer de choque e de horror. E depois vira
costas e corre.

— Estele.
O nome começa como uma oração, dita em voz baixa, para si, e cresce até se tornar um grito
quando Adeline se aproxima da casa da mulher.
— Estele!
Acende-se uma candeia lá dentro, e, quando chega à orla da luz, a idosa encontra-se à porta, à
espera de quem a chamou.
— És uma estranha ou um espírito? — pergunta Estele cautelosamente.
— Não sou nem um nem outro — diz Adeline, embora saiba a impressão que deve transmitir.
O vestido esfarrapado, o cabelo desgrenhado, as palavras a jorrarem como feitiçaria, na soleira
da porta.
— Sou de carne e osso e humana e conheci-te toda a minha vida. Fazes amuletos com a forma
de crianças para que passem bem o inverno. Achas que os pêssegos são os frutos mais doces e
que as paredes das igrejas são demasiado espessas para que as orações as consigam atravessar e
queres ser enterrada, não debaixo de uma laje, mas num terreno à sombra de uma árvore
frondosa.
Algo lampeja no rosto da idosa, e Adeline sustém a respiração, esperando que seja
reconhecimento. Mas é demasiado breve.
— És um espírito inteligente — diz Estele —, mas não passarás por esta terra.
— Não sou um espírito! — grita Adeline, entrando de rompante para a luz da porta da idosa.
— Explicaste-me tudo sobre os velhos deuses e sobre as formas de os invocar, mas cometi um
erro. Eles não respondiam, e o sol estava a pôr-se muito depressa. — Envolve-lhe as costelas
com os braços, com toda a força, sem conseguir parar de tremer. — Rezei demasiado tarde, e
alguma coisa respondeu, e agora está tudo mal.
— Rapariga tola — ralha Estele, como faria habitualmente. Como se a conhecesse.
— O que faço agora? Como posso remediar isto?
Mas a idosa limita-se a abanar a cabeça.
— A escuridão joga o seu próprio jogo — diz. — Cria as suas próprias regras — continua. —
E tu perdeste.
E com essas palavras, Estele volta para dentro de casa.
— Espera! — grita Adeline, enquanto a velha fecha a porta.
O ferrolho é corrido.
Adeline urra contra a madeira, soluçando até as pernas cederem e cair de joelhos no degrau
frio de pedra, com um dos punhos ainda a bater na porta.
E depois, subitamente, o ferrolho é puxado.
A porta abre-se, e Estele aparece, por cima dela.
— O que é isto? — pergunta, estudando a rapariga dobrada na soleira.
A velha olha para ela como se nunca se tivessem cruzado. Os momentos anteriores apagados
por um instante e por uma porta fechada.
O seu olhar enrugado percorre o vestido de noiva manchado, a cabeleira desgrenhada, a
sujidade sob as unhas, mas não há reconhecimento no seu rosto, apenas uma curiosidade
reservada.
— És um espírito? Ou uma estranha?
Adeline semicerra os olhos. O que está a acontecer? O seu nome continua a ser uma pedra
profundamente alojada, e, quando foi um espírito, foi expulsa, por isso engole em seco, com
força, e responde.
— Uma estranha. — As lágrimas rolam pelo rosto de Adeline. — Por favor — consegue
dizer. — Não tenho outro lugar para onde ir.
A idosa olha para ela por algum tempo e depois acena com a cabeça.
— Espera aqui — diz, voltando a entrar em casa, e Adeline nunca saberá o que Estele ia
fazer, porque a porta se fecha e permanece fechada, e ela fica ajoelhada no chão, a tremer, mais
de choque do que de frio.
Não sabe quanto tempo ali fica, mas as pernas estão rígidas quando as obriga a suportar o seu
peso. Levanta-se e caminha para lá da casa da idosa, até à linha de árvores que surge adiante,
para lá dessa fileira de vigilância, para a escuridão apinhada.
— Mostra-te! — grita.
Mas ouve-se apenas um restolhar de penas, um crepitar de folhas, o rumorejar de uma floresta
perturbada no seu sono. Invoca o seu rosto, os olhos verdes, os caracóis negros, tenta que a
escuridão ganhe de novo forma, mas os instantes passam, e continua sozinha.
Não quero pertencer a ninguém.
Adeline adentra-se mais profundamente na floresta. Trata-se de uma extensão mais selvagem
do bosque, o solo como um emaranhado de espinheiros e silvas. Agarra-se às suas pernas nuas,
mas ela não para, pelo menos até as árvores se terem fechado à sua volta, com os ramos a toldar
a lua, lá em cima.
— Invoco-te! — grita.
Não sou um génio qualquer, às ordens dos teus caprichos.
Um ramo baixo, meio enterrado no solo da floresta, ergue-se ape- nas o suficiente para lhe
prender os pés, e cai estatelada, com os joelhos contra a terra irregular e as mãos a rasgarem o
solo cheio de ervas.
Por favor, dou qualquer coisa.
Então as lágrimas surgem, súbitas e agitadas. Tola. Tola. Tola. Bate com os punhos contra o
chão.
É um truque perverso, pensa, um sonho atroz, mas vai passar.
É essa a natureza dos sonhos. Não duram.
— Acorda — sussurra no escuro.
Acorda.
Adeline enrosca-se no solo da floresta, fecha os olhos e vê o rosto banhado de lágrimas da
mãe, a tristeza oca do pai, o olhar cansado de Estele. Vê a escuridão, a sorrir. Ouve a sua voz
enquanto murmura uma única palavra, como um compromisso.
Feito.
Nova Iorque
10 de março de 2014

Um frisbee aterra na relva, mesmo ao lado.


Addie ouve o estrépito de patas a correr e abre os olhos a tempo de ver um focinho preto
gigante aproximar-se do seu rosto antes de o cão a cobrir de beijos molhados. Ri-se e senta-se,
passando os dedos pelo seu pelo denso e agarrando o cão pela coleira antes de ele se conseguir
apoderar do saco de papel com o segundo queque.
— Olá! — diz, enquanto, do outro lado do parque, alguém grita um pedido de desculpas.
Atira o frisbee de volta na sua direção, e lá vai o cão novamente.
Addie tem um arrepio, subitamente bem desperta e gelada.
É esse o problema com o mês de março — o calor nunca dura. Há aquele período estreito em
que se exibe como se fosse primavera, apenas o suficiente para descongelar quando se está
sentado ao sol, mas depois acaba. O sol desapareceu. As sombras substituíram-no. Addie volta a
estremecer e levanta-se da relva, sacudindo as leggings.
Devia ter roubado umas calças mais quentes.
Enfiando o saco de papel no bolso, Addie encaixa o livro de Fred debaixo do braço e
abandona o parque, descendo a Union e subindo até ao porto.
A meio caminho, para ao som de um violino, as notas apanhadas como fruta madura.
No passeio, uma mulher está empoleirada num banco, com o instrumento enfiado debaixo do
queixo. A melodia é doce e lenta, arras- tando Addie para Marselha, para Budapeste, para
Dublin.
Uma mão-cheia de pessoas reúne-se para ouvir, e, quando a canção chega ao fim, o passeio
enche-se de aplausos suaves e de corpos que passam. Addie retira as últimas moedas do bolso,
deposita-as dentro do estojo aberto e continua, mais leve e mais cheia. Quando chega ao cinema
de Cobble Hill, consulta o horário anunciado e depois empurra a porta, acelerando o ritmo ao
atravessar o átrio apinhado.
— Viva — diz Addie, fazendo sinal a um adolescente com uma vassoura. — Acho que deixei
a minha mala na sala três.
Mentir é fácil, desde que se escolha as palavras certas.
Ele acena-lhe sem olhar para cima, e Addie enfia-se por baixo do cordão de veludo do senhor
que verifica os bilhetes e dentro da sala escura, com a urgência a dissipar-se a cada passo.
Trovões surdos passam por baixo da porta de um filme de ação. A música chega ao átrio, vinda
de uma comédia romântica. Os altos e os baixos de vozes e de bandas sonoras. Percorre o
corredor vagarosamente, estudando os cartazes dos próximos filmes e as gravações repetitivas a
anunciarem as exibições, por cima de cada porta. Viu-as dezenas de vezes, mas não se importa.
Os agradecimentos devem estar a passar na sala número cinco, porque as portas se abrem de
par em par, e um mar de gente derrama-se no corredor. Addie esgueira-se por entre eles,
entrando na sala vazia, e encontra um balde de pipocas derrubado na segunda fila, com as
bolinhas douradas espalhadas pelo chão pegajoso. Volta a enchê-lo e regressa ao átrio e à banca
das guloseimas. Espera na fila, atrás de um trio de raparigas pré-adolescentes, até chegar ao
balcão e ao rapaz por trás dele.
Passa uma mão pelo cabelo, desalinhando-o ligeiramente, e bufa.
— Desculpe — diz —, um miúdo deu um pontapé no meu balde das pipocas. — Abana a
cabeça, e ele também, numa cópia, fazendo eco da sua exasperação. — Haverá alguma hipótese
de me cobrar o preço de um reabastecimento em vez de... — já está a levar a mão à algibeira,
como que a puxar da carteira, mas o rapaz pega no balde.
— Não se preocupe com isso — diz, olhando em volta. — Eu trato do assunto.
Addie sorri abertamente.
— É um anjo — diz, olhando-o diretamente, e o rapaz cora violentamente e gagueja dizendo
que não há qualquer problema, problema nenhum, apesar de passar o átrio em revista, à procura
de um supervisor. Deita fora o resto das pipocas e enche o balde com uma nova dose,
entregando-lho como um segredo, não por cima do balcão, mas contornando-o.
— Bom filme.

De todas as invenções que Addie viu serem anunciadas no mundo — comboios a vapor, luz
elétrica, fotografia, telefones, aviões e computadores —, o cinema deve ser a sua preferida.
Os livros são maravilhosos, portáteis, duradouros, mas, enquanto ali está sentada, às escuras,
na sala de cinema, com o grande ecrã a encher-lhe a vista, o mundo desaparece e, por algumas
horas, é outra pessoa, mergulhada em romance e intriga e comédia e aventura. Tudo completado
com uma imagem em resolução 4k e som estereofónico.
Uma opressão silenciosa enche-lhe o peito enquanto os agradecimentos passam. Por algum
tempo, não teve peso, mas agora regressa a si mesma, afundando-se no assento até os pés
estarem de novo pousados no chão.
Quando Addie sai do cinema, são quase seis, e o sol começa a pôr-se.
Faz o caminho de volta por entre as ruas orladas de árvores, passando o parque, o mercado
agora fechado e os quiosques já desmontados, em direção à mesa verde ferrugenta na outra
ponta. Fred ainda ali está, sentado na sua cadeira, a ler M.
O padrão de lombadas em cima da mesa mudou um pouco, um espaço vazio aqui, onde um
livro se vendeu, um novo volume acolá, onde outro foi acrescentado. A luz começa a esmorecer,
e em breve terá de ir, de arrumar as caixas e de as levar uma a uma de volta a casa, subir os dois
andares até ao seu T0. Addie ofereceu-se muitas vezes para ajudar, mas Fred insiste em fazê-lo
sozinho. Outro eco de Estele. Teimoso como pão bolorento.
Addie agacha-se junto à mesa e levanta-se com o livro que levara emprestado na mão, como
se simplesmente tivesse caído da extremidade. Devolve-o ao seu lugar, tendo o cuidado de não
desequilibrar a pilha, e Fred deve estar numa parte empolgante da história, porque resmunga sem
sequer olhar para cima, para ela, ou para o livro, ou para o saco de papel que ela coloca sobre o
mesmo, o que contém o queque com pepitas de chocolate.
É a única variedade de que ele gosta.
Candace fazia-o sempre passar um mau bocado por causa da sua gulodice, contou uma manhã
a Addie, dizia que o havia de matar, mas a vida é tramada e tem um sentido de humor retorcido
— porque ela morreu, e ele continua a comer porcarias (palavras dele, não dela).
A temperatura está a baixar, e Addie enfia as mãos nos bolsos e deseja uma boa noite a Fred
antes de continuar a andar pelo quarteirão, de costas para o sol baixo e com a sombra a
prolongar-se à sua frente.

Está escuro quando chega ao Alloway — um dos lugares que parecem apreciar o seu estatuto
de bar rasca, uma fama desenvolvida pelo facto de se ter tornado um local apreciado entre as
vedetas que querem experimentar um toque de Brooklyn. Uma mão-cheia de pessoas espalhadas
pelo passeio, a fumar, a conversar, à espera de amigos, e Addie demora-se um instante entre elas.
Crava um cigarro, apenas para ter alguma coisa para fazer, resistindo ao máximo ao apelo fácil
da porta, à sensação acutilante do familiar, déjà vu.
Conhece esse caminho.
Sabe onde a conduz.
Lá dentro, o Alloway tem a forma de uma garrafa de uísque, o corredor estreito da entrada, o
bar de madeira escura a alargar-se até uma sala de mesas e cadeiras. Senta-se ao balcão. O
homem à sua esquerda oferece-lhe uma bebida, e acede.
— Deixe-me adivinhar — diz o homem. — Um rosé?
E pensa em pedir uísque, só para ver o ar de surpresa no seu rosto, mas nunca foi a sua
bebida; sempre preferiu as doces.
— Champanhe.
Ele faz o pedido, e entabulam conversa sem importância até ele receber uma chamada e se
afastar, prometendo estar de volta dali a pouco. Ela sabe que não estará, sente-se grata por isso
enquanto dá goles na bebida e espera que Toby suba ao palco.
Este senta-se, com um joelho levantado para equilibrar a guitarra, e exibe o seu sorriso
envergonhado, quase apologético. Ainda não aprendeu a apropriar-se do espaço, mas ela tem a
certeza de que irá acontecer. Olha para a pequena multidão antes de começar a tocar, e Addie
fecha os olhos e deixa-se eclipsar pela música. Toca alguns temas. Uma das suas próprias
melodias folclóricas. E depois aquilo.
As primeiras notas pairam pelo Alloway, e Addie está de novo em casa dele. Está sentada ao
piano, a dedilhar umas notas, e ali está Toby, ao seu lado, com os dedos fechados sobre os seus.
Começa a formar-se agora, palavras envolvidas em melodia. Começa a tornar-se dele. É como
uma árvore, a enraizar. Irá lembrar-se, sozinho; não dela, claro — não dela, mas daquilo. Da
canção dos dois.
Termina, com a música a dar lugar aos aplausos, e Toby avança até ao bar, pede um uísque
com cola porque lho darão de borla, e, algures entre o primeiro gole e o terceiro, vê-a e sorri, e,
por um instante, Addie pensa — espera, mesmo nessa altura — que ele se lembre de algo, porque
ele olha para ela como se a conhecesse, mas a verdade é simplesmente que a quer conhecer; a
atração pode parecer-se extraordinariamente com o reconhecimento sob a luz errada.
— Desculpa — diz Toby, com a cabeça a afundar-se como acontece sempre que está
envergonhado. Como fez na manhã em que a encontrou na sua sala.
Alguém aflora o ombro de Addie enquanto passa por ela em direção à porta do bar. Ela
pestaneja, e o sonho dissipa-se.
Não entrou. Ainda se encontra na rua, com o cigarro consumido até à beata nos dedos.
Um homem segura na porta aberta.
— Vai entrar?
Addie abana a cabeça e obriga-se a recuar, para longe da porta e do bar e do rapaz prestes a
subir ao palco.
— Hoje não — diz.
A ascensão não compensa a queda.
Nova Iorque
10 de março de 2014

A noite cai sobre Addie enquanto atravessa a ponte de Brooklyn.


A promessa de primavera recuou como uma maré, novamente substituída por um frio húmido
de inverno, e puxa o casaco para mais perto do corpo, com a respiração a formar uma névoa
quando começa a subir a longa extensão de Manhattan.
Seria mais fácil apanhar o metro, mas Addie nunca gostou de estar debaixo do solo, onde o ar
é abafado e bafiento, os túneis semelhantes a túmulos. Estar encurralada, ser enterrada viva, são
as coisas que nos assustam quando não podemos morrer. Além disso, não se importa de andar,
conhece a força dos seus próprios membros, aprecia o tipo de cansaço que costumava recear.
Ainda assim, é tarde, e tem as bochechas dormentes, as pernas cansadas, quando chega ao
Baxter, na Fifty-sixth.
Um homem como um casaco cinzento em bom estado segura a porta, e a pele é acometida por
um formigueiro sob a corrente súbita de aquecimento central quando entra no átrio de mármore
do Baxter. Já sonha com um duche quente e uma cama fofa, já está a avançar para o elevador
aberto, quando o homem por detrás da secretária se levanta do seu lugar.
— Boa noite — diz. — Posso ajudá-la?
— Venho ter com o James — diz, sem abrandar. — Vigésimo terceiro andar.
O homem franze o sobrolho.
— Não se encontra em casa neste momento.
— Melhor ainda — diz ela, entrando no elevador.
— Minha senhora — grita, começando a ir atrás dela —, não pode simplesmente... — mas as
portas já se estão a fechar. Sabe que não irá conseguir lá chegar, já está a voltar para a secretária,
a pegar no telefone para chamar o segurança, e essa é a última coisa que vê antes de as portas se
fecharem entre os dois. Talvez chegue a levar o auscultador ao ouvido ou até comece a marcar o
número antes de o pensamento se esgueirar da sua mente. Olhará, depois, para o auscultador na
mão, e perguntar-se-á em que estaria a pensar, pedindo desculpas profusamente à voz do outro
lado do fio, antes de se voltar a sentar na cadeira.
O apartamento pertence a James St. Clair.
Conheceram-se num café da baixa há alguns meses. Os lugares estavam todos tomados
quando ele apareceu, madeixas louras a saírem da aba de um chapéu de inverno, óculos a
embaciarem-se do frio. Nesse dia, Addie era Rebecca, e, antes mesmo de se apresentar, James
perguntara se poderia partilhar a sua mesa, viu que ela estava a ler Chéri de Colette, e conseguiu
pronunciar algumas frases num francês macarrónico e tímido. Sentou-se, e logo sorrisos fáceis
deram lugar a uma conversa fácil. Engraçado como algumas pessoas demoram uma eternidade a
aquecer enquanto outras simplesmente entram em qualquer divisão como se estivessem em casa.
James era assim, gostava-se imediatamente dele.
Quando perguntou, Addie disse que era poetisa (uma mentira fácil, visto que nunca ninguém
pedia provas), e James disse-lhe que se encontrava entre empregos, e ela poupou o seu café o
máximo que conseguiu, mas a chávena acabou por ficar vazia, e a dele também, e clientes novos
andavam em círculos, como aves de rapina, à procura de cadeiras livres, mas, quando ele se
começou a levantar, ela sentira aquela tristeza familiar. E então James perguntou-lhe se gostava
de gelado, e, apesar de estarem em janeiro, de o chão lá fora estar escorregadio do gelo e do sal
espalhado pela calçada, Addie disse que sim, e dessa vez, quando ficaram, ficaram juntos.
Agora marca o código de seis algarismos no teclado da porta dele e entra.
As luzes acendem-se, revelando um pavimento de madeira clara e bancadas de mármore
limpas, cortinados e mobília requintados que parecem não ter sido usados. Uma cadeira de
espaldar alto. Um sofá bege. Uma mesa ordenadamente apinhada de livros.
Puxa o fecho das botas, descalça-as junto à porta e caminha descalça pelo apartamento,
atirando o casaco para o braço de uma cadeira. Na cozinha, serve-se um copo de Merlot,
encontra um pedaço de Gruyère numa gaveta do frigorífico e uma caixa de bolachas gourmet no
armário. Leva o seu piquenique improvisado para a sala, com a cidade a abrir-se para lá das
janelas abertas do chão ao teto.
Addie passa em revista os seus álbuns, põe um CD de Billie Holiday e refastela-se no sofá
bege, com os joelhos dobrados sob o corpo, enquanto come.
Adoraria ter um sítio como aquele. Um sítio seu. Uma cama moldada ao seu corpo. Um
guarda-fato cheio de roupa. Uma casa, decorada com sinais de uma vida que tivesse vivido, as
provas materiais da memória. Mas não se consegue agarrar a nada por muito tempo.
Não é como se não tivesse tentado.
Ao longo dos anos, reuniu livros, acumulou arte, escondeu vestidos requintados em arcas e
trancou-os lá dentro. Mas, faça o que fizer, as coisas desaparecem sempre. Dissipam-se, uma a
uma, ou todas ao mesmo tempo, roubadas por uma estranha circunstância ou simplesmente pelo
tempo. Só teve uma casa em Nova Orleães, e nem essa era sua, mas deles, e já não existe.
A única coisa de que não se consegue livrar é do anel.
Houve um tempo em que não conseguia suportar estar novamente sem ele. Um tempo em que
lamentou a sua perda. Um tempo em que o seu coração ansiava por lhe pegar, muitas décadas
depois.
Agora não suporta sequer olhar para ele. É um peso desagradável no seu bolso, uma
recordação indesejada de outra perda. E sempre que os dedos afloram a madeira, sente a
escuridão beijar-lhe o nó do dedo quando ele lhe devolve o anel.
Vês? Agora estamos estamos quites.
Addie estremece, desequilibrando o copo, e gotas de vinho tinto saltam pela borda, aterrando
como sangue no sofá bege. Não pragueja, não se põe de pé para ir buscar água com gás e uma
toalha. Limita-se a observar a mancha impregnar-se, ser absorvida e desaparecer. Como se nunca
ali tivesse estado.
Como se ela nunca ali tivesse estado.
Addie levanta-se e vai pôr a água a correr para um banho, para limpar a sujidade da cidade
com óleos aromáticos, esfregar-se bem com sabonete de cem dólares.
Quando tudo nos escapa por entre os dedos, aprendemos a saborear o toque das coisas boas
na palma das mãos.
Instala-se na banheira e suspira, inspirando uma bruma de alfazema e hortelã.
Foram comer gelado nesse dia, ela e James, comeram-no dentro da loja, com as cabeças
inclinadas uma sobre a outra enquanto roubavam toppings dos copos um do outro. O chapéu dele
ficou pousado em cima da mesa, os caracóis louros completamente à mostra, e era atraente, sim,
mas Addie ainda demorou algum tempo a reparar nos olhares.
Addie estava habituada a olhares fugidios — os seus traços são marcantes, mas femininos, os
olhos brilhantes sobre a constelação de sardas nas faces, uma espécie de beleza intemporal,
disseram-lhe —, mas aquilo era diferente. As cabeças viravam-se. Os olhares demoravam-se. E,
quando se perguntou porquê, ele olhou para ela com uma surpresa extremamente alegre e
confessou que era, de facto, ator — num espetáculo que na altura era bastante popular. Corou
quando o disse, desviou o olhar e depois voltou a fitá-la para lhe estudar o rosto, como se
estivesse preparado para uma mudança fundamental. Mas Addie nunca vira o seu trabalho e,
mesmo que tivesse visto, não é pessoa para se envergonhar perante a fama. Viveu demasiado
tempo e conheceu demasiados artistas. E, mesmo assim, ou talvez precisamente por isso, Addie
prefere aqueles que ainda não estão concluídos, aqueles que ainda procuram a sua forma.
E por isso James e Addie continuaram.
Ela fez troça dele por causa dos seus mocassins, da sua camisola, dos óculos com armação
metálica.
Ele disse-lhe que nascera na década errada.
Ela disse-lhe que nascera no século errado.
Ele riu-se, ela não, mas havia algo antiquado nos seus modos. Tinha apenas 26 anos, mas,
quando falava, tinha a cadência fácil, a precisão lenta de um homem que conhecia o peso da sua
própria voz, que pertencera à classe dos jovens que se vestiam como os pais, à farsa daqueles que
ansiavam por envelhecer.
Hollywood também reparara nisso. Estava sempre a receber propostas para peças históricas.
— O meu rosto combina com sépia — brincava.
Addie sorria.
— Sempre é melhor do que combinar com programas de rádio.
Era um rosto encantador, mas havia algo de errado, o sorriso demasiado regular de um
homem com um segredo. Comeram o gelado até ao fim até James se revelar. A sua alegria fácil
tremeluziu e apagou-se, e colocou a colher de plástico dentro do copo e fechou os olhos e disse:
— Desculpa.
— Porquê? — perguntou ela, e ele voltou a deixar-se cair no assento e passou os dedos pelo
cabelo. Aos estranhos, na rua, poderá ter parecido um gesto descuidado, um alongamento felino,
mas ela captou a angústia no seu rosto enquanto o disse.
— És tão bonita e simpática e divertida...
— Mas? — insistiu ela, sentindo a reviravolta.
— Sou gay.
A palavra, como um prurido na garganta, enquanto explicava que havia muita pressão, que
detestava o olhar dos media e todas as suas exigências. Que as pessoas começavam a murmurar,
a perguntar-se, e que ele não estava preparado para que soubessem.
Addie apercebeu-se, então, de que estavam num palco. Diante das montras de vidro liso da
gelataria, diante dos olhos de toda a gente, e James ainda estava a pedir desculpa, a dizer que não
devia ter namoriscado com ela, que não a devia ter usado daquela maneira, mas ela não estava
realmente a ouvir. Os seus olhos azuis ficaram um pouco vidra- dos enquanto falava, e ela
perguntou-se se seria aquilo que invocava quando o guião pedia lágrimas. Se seria naquele sítio
que se refugiava. Claro que Addie também tinha segredos, embora não pudesse fazer mais do
que guardá-los.
Ainda assim, sabe como é, ter uma verdade apagada.
— Compreendo — dizia ele — se te quiseres ir embora.
Mas Addie não se levantou, não pegou no casaco. Limitou-se a inclinar-se para diante e a
roubar um mirtilo da ponta do copo dele.
— Não sei quanto a ti — disse ela com ar leve —, mas estou a ter um dia maravilhoso.
James soltou uma expiração entrecortada, pestanejando para secar as lágrimas, e sorriu.
— Eu também — disse, e as coisas correram melhor depois disso.
É muito mais fácil partilhar um segredo do que guardá-lo, e, quando voltaram a sair para a
rua, de mãos dadas, eram conspiradores, estonteados por aquele conhecimento íntimo. Addie não
estava preocupada em que reparassem nela, sabia que, se houvesse fotografias, nunca seriam
reveladas.
(Houve de facto fotografias, mas o seu rosto estava sempre convenientemente desfocado ou
obscurecido, e continuou a ser a rapariga mistério nos tabloides durante a semana que se seguiu,
até as parangonas passarem inevitavelmente a um tema mais sumarento.)
Tinham regressado ali, ao seu apartamento no Baxter, para tomarem um copo. As mesas
estavam cobertas por um turbilhão de livros e papéis, todos relacionados com a Segunda Guerra
Mundial. Estava a preparar-se para um papel, disse-lhe, a ler todos os relatos em primeira mão
que conseguia arranjar. Mostrou-lhos, reproduções impressas, e Addie disse que se sentira
fascinada pela guerra, que sabia algumas histórias, contou-lhas como se fossem de outrem, a
experiência de um estranho, não a sua. James ouviu, aninhado no canto do sofá bege, de olhos
bem fechados e com um copo de uísque equilibrado em cima do peito enquanto ela falava.
Adormeceram ao lado um do outro na cama gigante, na sombra do calor do outro, e, na
manhã seguinte, Addie acordou antes de ser madrugada e esgueirou-se dali para fora, poupando a
ambos o desconforto de uma despedida.
Tem a sensação de que teriam sido amigos. Se ele se tivesse lembrado. Tenta não pensar nisso
— jura que por vezes a memória anda para a frente, e também para trás, desbobinando-se, para
mostrar os caminhos por onde nunca viajará. Mas é aí que reside a loucura, e aprendeu a não os
seguir.
Agora está de volta, mas ele não.
Addie enrola-se num dos roupões aveludados de James e abre as portas, saindo para a
varanda do quarto. O vento sopra, com o frio a aguilhoar-lhe as plantas dos pés descalços. A
cidade espraia-se em volta como um céu noturno e baixo, cheio de estrelas artificiais, e ela enfia
as mãos nos bolsos do roupão e sente-o, depositado no fundo da algibeira vazia.
Um pequeno círculo de madeira polida.
Suspira, fecha a mão à volta do círculo e retira-o do bolso. Encosta os cotovelos ao varandim
e obriga-se a olhar para o anel na palma da mão, a estudá-lo, como se não tivesse já memorizado
cada voluta, cada espiral. Percorre a curva com a mão livre, resiste ao impulso de enfiar o anel no
dedo. Pensou nisso, claro, em momentos mais negros, momentos de cansaço, mas não será ela a
ceder.
Inclina a mão e deixa o anel cair do parapeito da varanda, descendo, descendo, até à
escuridão.
De volta ao interior, Addie serve-se de mais um copo de vinho e enfia-se na cama
magnificente, aninhando-se debaixo do edredão e entre os lençóis de algodão egípcio, e deseja
ter ido ao Alloway, deseja ter-se sentado no bar e esperado por Toby, com os seus caracóis
desalinhados e o seu sorriso tímido. Toby, que cheira a mel e que toca os corpos como
instrumentos e que ocupa muito espaço na cama.
Villon-sur-Sarthe, França
30 de julho de 1714

Uma mão sacode Adeline, acordando-a.


Por um instante, está desfasada, no espaço e no tempo. O sono agarra-se às suas extremidades
e, com ele, o sonho — deve ter sido um sonho — de orações feitas a deuses silenciosos, de
pactos feitos com as trevas, de ser esquecida.
A sua imaginação sempre foi intensa.
— Acorda — diz uma voz, uma voz que toda a vida conheceu.
E de novo a mão firme no seu ombro, e pestaneja, afastando o resto do sono para descobrir as
tábuas de madeira do teto do celeiro, a palha a esporear-lhe a pele, e Isabelle, ajoelhada ao seu
lado, com o cabelo louro entrançado numa coroa, de sobrolho carregado de preocupação. O seu
rosto definhou um pouco a cada filho, com cada nascimento a roubar-lhe um pouco mais da vida.
— Levanta-te, sua tola.
É isto o que Isabelle deveria dizer, a censura atenuada pela doçura da sua voz. Mas os seus
lábios estão comprimidos de preocupação, a testa enrugada de ansiedade. Sempre a franziu
assim, completamente, com todo o rosto, mas, quando Adeline estende o braço para colocar um
polegar no espaço entre as sobrancelhas da outra rapariga (para a aliviar a preocupação, como fez
mil vezes antes), Isabelle recua, para longe do toque de uma estranha.
Então não é um sonho.
— Mathieu — grita Isabelle por cima do ombro, e Adeline vê o filho mais velho junto à porta
aberta do celeiro, com um balde na mão. — Vai buscar um cobertor.
O rapaz desaparece em direção à luz no sol.
— Quem és tu? — pergunta Isabelle, e Adeline começa a responder, esquecendo que o nome
não surge. Fica-lhe alojado na garganta.
— O que te aconteceu? — insiste Isabelle. — Estás perdida?
Adeline acena com a cabeça em sinal negativo.
— És de onde?
— Daqui.
A testa de Isabelle franze-se mais.
— De Villon? Mas não é possível. Conhecer-nos-íamos. Vivi aqui a minha vida inteira.
— Eu também — murmura ela, e Isabelle deve encarar aquela verdade como um delírio,
porque abana a cabeça como se estivesse a varrer um pensamento.
— Aquele rapaz... — murmura. — Onde se terá metido? — volta a olhar diretamente para
Adeline. — Consegues levantar-te?
De braço dado, caminham até ao pátio. Adeline está imunda, mas Isabelle não a larga, e a
garganta aperta-se-lhe perante aquela gentileza simples, sob o calor do toque da outra rapariga.
Isabelle trata-a como uma coisa selvagem, com a sua voz suave, os movimentos lentos, enquanto
conduz Adeline para a casa.
— Estás magoada?
Sim, acha. Mas sabe que Isabelle está a falar de arranhões e de cortes e de feridas simples, e
sobre essas tem menos certezas. Olha para baixo, para si própria. No escuro, o pior estava
escondido. À luz da manhã, fica à mostra. O vestido de Adeline, estragado. Os sapatos,
destruídos. A pele, pintada pelo solo da floresta. Sentiu o raspar e o quebrar de espinheiros no
bosque, na noite anterior, mas não consegue encontrar vergões feios, cortes, vestígios de sangue.
— Não — diz baixinho, enquanto entram em casa.
Não há sinais de Mathieu ou de Henri, o seu segundo filho — apenas a bebé, Sara, a dormir
num cesto junto à lareira. Isabelle senta Adeline numa cadeira em frente à criança e põe uma
panela com água a aquecer sobre o lume.
— Estás a ser tão bondosa — sussurra Adeline.
— «Eu era um estranho, e recebeste-me» — diz Isabelle. É um verso da Bíblia.
Leva uma bacia para a mesa, juntamente com um pano. Ajoelhando-se aos pés de Adeline,
descalça-lhe os sapatos sujos, coloca-os junto à lareira e depois pega nas mãos de Adeline e
começa a limpar o sedimento da floresta dos seus dedos, a terra por baixo das unhas.
Enquanto o faz, Isabelle metralha-a com perguntas, e Adeline tenta responder, tenta mesmo,
mas o seu nome continua a ser uma forma que não consegue dizer, e, quando fala da sua vida na
aldeia, da sombra no bosque, do pacto que fez, as palavras conseguem chegar-lhe aos lábios, mas
param antes de alcançar os ouvidos da outra rapariga. O rosto de Isabelle fica inexpressivo, o
olhar sem profundidade, e, quando Adeline finalmente para de falar, abana a cabeça rapidamente,
como se se liber- tasse de um devaneio.
— Desculpa — diz a sua amiga mais antiga, com um sorriso apologético. — O que estavas a
dizer?
Aprenderá com o tempo que consegue mentir, e as palavras fluirão como vinho, vertidas
facilmente, engolidas facilmente. Mas a verdade deter-se-á sempre na ponta da língua. A sua
história silenciada para todos, exceto para si.
Isabelle empurra uma tigela contra as mãos de Adeline quando a criança começa a agitar-se.
— A próxima aldeia fica a uma hora de caminho — diz Isabelle, pegando na criança
enfaixada. — Fizeste esse caminho todo a pé? Deves ter feito... — está a falar com Adeline,
claro, mas a sua voz é suave, doce, com a atenção fixada em Sara, respirando para a penugem
suave do cabelo do bebé, e Adeline tem de reconhecer que, aparentemente, a amiga foi feita para
ser mãe, está até demasiado satisfeita para reparar na atenção.
— O que vamos fazer contigo? — arrulha.
Ouvem-se passos no caminho, lá fora, pesados, de botas, e Isabelle endireita-se um pouco,
dando palmadinhas nas costas da criança.
— Deve ser o meu marido, o George.
Adeline conhece bem George, beijou-o uma vez quando tinham 6 anos, na altura em que os
beijos eram trocados como peças num jogo. Mas agora o seu coração alvoroça-se de pânico, e já
está de pé, com a tigela a bater contra a mesa.
Não é George que receia.
É a porta, e o que acontece quando Isabelle estiver do outro lado.
Agarra no braço de Isabelle, com o gesto súbito e firme, e, pela primeira vez, o medo
atravessa o rosto da outra mulher. Mas depois acalma, e bate ao de leve na mão de Adeline.
— Não te preocupes — diz. — Eu falo com ele. Vai correr tudo bem. — E, antes que Adeline
possa recusar, a criança é-lhe colocada nos braços, e Isabelle fica longe do seu alcance.
— Espera. Por favor.
O medo bate-lhe dentro do peito, mas Isabelle desapareceu. A porta fica aberta, com as vozes
a subirem e a descerem no pátio lá fora, as próprias palavras reduzidas à melodia do vento. A
criança murmura nos seus braços, e ela balança um pouco, tentando acalmá-la e acalmar-se a si
própria. O bebé tranquiliza, e no momento em que a vai devolver ao cesto ouve uma respiração
sobressaltada.
— Afasta-te dela.
É Isabelle, em voz alta e tensa de pânico.
— Quem te deixou entrar?
Toda a bondade cristã apagada num instante pelo medo de uma mãe.
— Foste tu — diz Adeline, e tem de evitar a vontade de rir. Não há humor no momento,
apenas loucura.
Isabelle fita-a com horror.
— Estás a mentir — diz, avançando de rompante, detida apenas pela mão do marido no
ombro. Também viu Adeline, tendo-a rotulado como um tipo diferente de coisa selvagem, um
lobo dentro da sua casa.
— Venho a bem — diz ela.
— Então vai — ordena George.
E que mais pode fazer? Abandona o bebé, deixa para trás a tigela de caldo, a bacia em cima
da mesa e a sua amiga mais antiga. Apressa-se a sair para o pátio e olha para trás, vendo Isabelle
abraçar a filha contra o peito antes de George bloquear a entrada, de machado na mão, como se
Adeline fosse uma árvore a abater, uma sombra que caiu sobre a sua casa.
E então ele também desaparece, e a porta é fechada e trancada.
Adeline fica no caminho, sem saber o que fazer, onde ir. Há sul- cos na sua mente,
desgastados até ficarem suaves e profundos. As per- nas levaram-na àquele sítio e de volta
demasiadas vezes. O seu corpo conhece o caminho. Vai por esta estrada e vira à esquerda, e ali
está a sua própria casa, que já não é a sua casa, apesar de os seus pés já estarem a dirigir-se a ela.
Os pés — Adeline abana a cabeça. Deixou os sapatos a secar junto à lareira de Isabelle.
Um par de botas de George está encostado à parede, ao lado da porta. Pega nelas e começa a
andar. Não para a casa em que cresceu, mas de volta ao rio, onde as suas preces começaram.
O dia já está quente, o ar cortante de calor, enquanto deixa as botas na margem e vai até à
corrente pouco profunda.
Sustém a respiração ao sentir o frio quando o rio lhe envolve os tornozelos, lhe beija a parte
de trás dos joelhos. Olha para baixo, à procura do seu reflexo deformado, e quase espera não
encontrar ali nada, ver apenas o céu por trás da cabeça. Mas continua ali, distorcida pela
corrente.
O cabelo, outrora entrançado, agora desgrenhado, os olhos cortantes bem abertos. Sete sardas
como manchas de tinta na pele. Um rosto crispado de medo e de revolta.
— Porque não respondeste? — sibila para a luz do sol no regato.
Mas o rio limita-se a rir, no seu jeito suave e escorregadio, com o rumorejar de água sobre
pedra.
Debate-se com as rendas do seu vestido de noiva, liberta-se dele como de uma casca,
mergulha-o na água. A corrente arrasta o tecido, e os seus dedos anseiam por o deixar ir, por
deixar que o rio reclame esse último vestígio da sua vida, mas agora tem muito pouco para
abdicar de mais.
Adeline mergulha também nele, soltando as últimas flores do cabelo, lavando o bosque da
pele. Quando se ergue, sente-se fria e frágil e renovada. O sol vai alto, o dia está quente, e deixa
o vestido sobre a relva para secar, deitando-se na encosta ao seu lado, de camisa interior. Ficam
lado a lado, em silêncio, um como o fantasma do outro. E percebe, ao olhar para baixo, que é
tudo o possui.
Um vestido. Um par de cuecas. Umas botas roubadas.
Irrequieta, pega num pau e começa a desenhar padrões ausentes no sedimento da margem.
Mas cada gesto que faz dissolve-se, sendo a alteração demasiado rápida para ser obra do rio.
Desenha uma linha, vê-a começar a dissolver-se antes de chegar a concluir o traço. Tenta
escrever o seu nome, mas a mão para, presa sob a mesma pedra que lhe reteve a língua. Descreve
uma linha mais profunda, soltando a areia, mas não faz diferença, em breve essa estria
desaparece também, e um soluço zangado solta-se-lhe da garganta enquanto atira o pau para
longe. As lágrimas ardem-lhe nos olhos quando ouve o arrastar de uns pés pequenos,
pestanejando para encontrar um rapaz de rosto redondo debruçado sobre ela. O filho de 4 anos de
Isabelle. Addie costumava balançá-lo nos braços, rodopiando até o rapaz estar tonto e a rir.
— Olá — diz o rapaz.
— Olá — responde ela, com a voz a tremer um pouco.
— Henri! — grita a mãe do rapaz, e num instante Isabelle está ali, na ladeira, com um cesto
de roupa na anca. Vê Adeline sentada na relva, estende uma mão, não à amiga, mas ao filho. —
Anda cá — ordena, com os seus olhos azuis a pousarem em Adeline.
— Quem és tu? — pergunta Isabelle, e ela sente-se como se estivesse à beira de um
precipício, com o chão a afundar-se sob os seus pés. O equilíbrio a ceder para diante, quando a
descida receada recomeça.
— Estás perdida?
Déjà vu. Déjà su. Déjà vécu.
Já visto. Já sabido. Já vivido.
Já passaram por ali, andaram por esse caminho ou por um semelhante, e por isso Adeline sabe
agora onde pôr os pés, sabe o que dizer, que palavras atrairão gentileza, sabe que, se pedir da
forma certa, Isabelle a levará para casa e lhe envolverá os ombros com um cobertor e lhe
oferecerá uma tigela de caldo e que a coisa resultará até deixar de resultar.
— Não — disse. — Estou apenas de passagem.
Não é o que deveria ter dito, e a expressão de Isabelle endurece.
— Não fica bem uma mulher viajar sozinha. E certamente não nesse estado.
— Eu sei — diz. — Tinha mais coisas, mas fui roubada.
Isabelle empalidece.
— Por quem?
— Um estranho no bosque — diz, e não é mentira.
— Estás ferida?
Sim, pensa. Gravemente. Mas obriga-se a abanar a cabeça e a responde.
— Hei de sobreviver.
Não tem hipótese.
A outra mulher pousa a roupa.
— Espera aqui — diz Isabelle, de novo a Isabelle bondosa e generosa. — Volto já.
Levanta o filho nos braços e volta-se para a casa, e, no momento em que deixa de a ver,
Adeline pega no vestido, ainda húmido no debrum, e veste-o.
Claro que Isabelle se irá esquecer de novo.
Fará meio caminho até casa até abrandar e se perguntar porque voltou para trás sem a roupa.
Culpará a sua cabeça cansada, baralhada por três filhos, pela enfermidade do bebé, e regressará
ao rio. E, dessa vez, não haverá mulher sentada na margem, vestido estendido ao sol, apenas um
pau, abandonado na relva e a tela que o sedimento forma, imaculada.
Adeline desenhou a casa da família cem vezes.
Memorizou o ângulo do telhado, a textura da porta, a sombra da oficina do pai e os ramos do
velho teixo instalado, como uma sentinela, ao fundo do pátio.
É onde se encontra agora, aninhada atrás do tronco, a ver Maxime pastar ao lado do celeiro, a
ver a mãe pendurar a roupa na corda, a ver o pai desbastar um bloco de madeira.
E, enquanto Adeline observa, apercebe-se de que não pode ficar.
Ou melhor, poderia — poderia arranjar uma forma de saltar de casa em casa, como pedras a
deslizarem pelo leito do rio —, mas não o fará. Porque, quando pensa nisso, não se sente nem
como o rio nem como a pedra, mas como uma mãe, que se cansa de lançar.
Ali está Estele, a fechar a porta.
Ali está Isabelle, num instante bondosa, noutro aterrorizada.
Mais tarde, muito mais tarde, Addie transformará estes ciclos num jogo, verá quanto tempo
consegue saltar de poleiro em poleiro até cair. Mas, neste momento, a dor é demasiado recente,
demasiado acutilante, e não consegue aprofundar esses movimentos, não consegue suportar o
olhar cansado do pai, a censura nos olhos de Estele. Adeline LaRue não pode ser uma estranha
ali, para aquelas pessoas que sempre conheceu.
É demasiado doloroso vê-las esquecerem-se dela.
A mãe volta a entrar em casa, e Adeline abandona o esconderijo na árvore e começa a
percorrer o pátio; não até à porta de casa, mas em direção à oficina do pai.
Há uma única janela fechada, uma candeia apagada, sendo a única luz uma faixa de luz solar
que se espalha pela porta aberta, mas é o suficiente para conseguir ver. Conhece os contornos
daquele lugar de cor. O ar cheira a resina, terrosa e doce, o chão está coberto de lascas de
madeira e pó, e todas as superfícies têm a marca do trabalho do pai. Um cavalo de madeira,
moldado a partir de Maxime, claro — mas do tamanho de um gato. Um conjunto de tigelas,
decoradas apenas com os anéis do tronco de que foram talhadas. Uma série de aves do tamanho
de uma mão, com as asas abertas ou fechadas ou abertas, em pleno voo.
Adeline aprendeu a desenhar o mundo a carvão e grafite, mas o pai sempre criou com uma
faca; esculpiu as formas a partir do nada, dando-lhes amplitude e profundidade e vida.
Agora estende o braço e passa o dedo pelo focinho do cavalo, tal como fez cem vezes antes.
O que está ali a fazer?
Adeline não sabe.
A despedir-se do pai, talvez, a pessoa de quem mais gosta no mundo. É assim que se lembrará
dele. Não pelo triste desconhecimento nos seus olhos ou pela posição desanimada do maxilar
enquanto a acompanhava à igreja, mas pelas coisas de que gostava. Pela forma como a ensinava
a pegar num pau de carvão, obtendo formas e matizes com o peso do gesto. Pelas canções e pelas
histórias, por tudo o que viu nos cinco verões em que foi com ele ao mercado, quando Adeline já
tinha idade para viajar, mas não para causar sensação. Pela oferta cuidadosa de um anel de
madeira, feito para a sua primeira e única filha, quando nasceu — aquele que depois ofereceu às
trevas.
Nesse momento exato, a mão desvia-se para a garganta para tocar no fio de cabedal, e algo lá
no fundo a oprime quando se lembra de que desapareceu para sempre.
Há folhas de papel espalhadas pela mesa, cobertas de desenhos e dimensões, vestígios de
trabalhos passados e futuros. Um lápis encontra-se na extremidade do tampo, e Adeline dá
consigo a pegar-lhe, apesar de um eco assustador lhe ressoar dentro do peito.
Leva-o até à página e começa a escrever.
Cher Papa...
Mas, enquanto o lápis raspa o papel, as letras esbatem-se logo depois. Quando Adeline acaba
de escrever essas duas palavras hesitantes, estas desapareceram, e, quando bate com a palma da
mão em cima da mesa, desequilibra um frasco minúsculo de verniz, derramando o óleo precioso
sobre as notas do pai, sobre a madeira por baixo delas. Corre a recolher os papéis, sujando as
mãos e fazendo tombar os passarinhos de madeira.
Mas não é preciso entrar em pânico.
O verniz já se infiltrou e depois afundou, como uma pedra num rio, até desaparecer. É muito
estranho compreender este momento, avaliar o que se perdeu.
O verniz desapareceu, mas não regressou ao frasco, que se encontra vazio, de borco, com o
conteúdo esvaziado. O papel permanece sem vestígios, imaculado, tal como a mesa por baixo.
Apenas as suas mãos estão sujas, com o óleo a marcar as espirais dos seus dedos, as linhas das
palmas. Ainda está a olhar para elas quando recua e ouve o estalido terrível de madeira a partir-
se sob o calcanhar.
É o passarinho de madeira, uma das asas lascadas no chão coberto de terra. Adeline estremece
de pena — era o seu preferido do bando, paralisado num instante de movimento ascendente, a
primeira ascensão de um voo.
Agacha-se para o apanhar, mas, no momento em que se levanta, as lascas desapareceram do
chão, e, na sua mão, o passarinho de madeira está de novo inteiro. Quase cai de surpresa, não
sabe por que motivo é essa a coisa que parece impossível. Transformou-se numa estranha, viu-se
desaparecer da memória das pessoas que conheceu e amou como o sol atrás de uma nuvem,
testemunhou cada marca que tentava deixar ser desfeita, apagada.
Mas a ave é diferente.
Talvez por a poder conservar nas mãos. Talvez porque, por um instante, parece uma bênção,
este desfazer de um acidente, o reparar de um erro, e não apenas uma extensão do seu próprio
desaparecimento. A incapacidade de deixar uma marca. Mas Adeline não pensa nisso dessa
forma, ainda não, não passou meses a rodar a maldição entre os dedos para a analisar, a
memorizar a sua forma, a estudar as superfícies suaves em busca de fendas.
Neste momento, pega simplesmente no passarinho intacto, grata pelo facto de estar seguro.
Está prestes a devolver a estatueta ao conjunto quando algo a detém — talvez a estranheza do
momento, talvez o facto de já sentir falta desta vida, embora esta nunca venha a sentir a sua falta
—, mas enfia o pássaro no bolso da saia e obriga-se a sair da oficina, para longe de casa.
Descendo a estrada e passando pelo teixo retorcido e contornando a vedação, até chegar ao
fim da aldeia. Só então se permite olhar para trás, deixar os olhos percorrerem uma última vez a
linha de árvores ao longo do campo, a sombra densa alongada sob o sol, antes de virar costas à
floresta e à aldeia de Villon e à vida que já não é sua e de começar a andar.
Villon-sur-Sarthe, França
30 de julho de 1714

Villon desaparece como uma carroça do outro lado de uma vedação, com os telhados a serem
engolidos pelas árvores e pelas colinas da paisagem circundante. Desaparece quando Adeline
arranja coragem para olhar para trás.
Suspira, vira-se e caminha, tropeçando dentro da estranha forma das botas de George.
São o dobro do tamanho do seu pé. Adeline encontrou meias numa corda, enfiou-as na parte
da frente das botas para as conseguir calçar, mas depois de quatro horas a andar sente os pontos
em que a pele descascou até ficar em carne viva, com o sangue a encharcar a base de couro. Tem
medo de ver, por isso não o faz, concentra-se apenas no caminho que tem à sua frente.
Decidiu caminhar até à cidade amuralhada de Le Mans. É o mais longe que já foi e, ainda
assim, nunca fez a viagem sozinha. Sabe que o mundo é muito maior do que as vilas que
percorrem o Sarthe, mas, nesse momento, não consegue pensar além da estrada que tem diante
de si. Cada passo que dá é um passo de distância de Villon, de uma vida que já não é sua.
Querias ser livre, diz uma voz na sua cabeça, mas não é sua; não, é mais profunda, mais
suave, forrada a cetim e fumo de madeira.
Contorna as aldeias, as quintas isoladas nos campos. Há extensões inteiras em que o mundo
parece esvaziar-se à sua volta. Como se um artista desenhasse as linhas mais despojadas da
paisagem e depois abandonasse a tarefa, distraído.
Uma vez, Adeline ouviu uma carroça circular pela estrada e aninhou-se na sombra do
arvoredo próximo, esperando que passasse. Não quer afastar-se muito da estrada, do rio, mas,
por cima do ombro, por entre um conjunto de árvores, vê o rubor amarelo da fruta de verão, e o
estômago dói de desejo.
Um pomar.
A sombra é deliciosa, o ar fresco, e apanha um pêssego maduro de um ramo baixo e enterra
os dentes cobiçosamente no fruto, com o estômago vazio a comprimir-se em torno na dentada
doce. Apesar da dor, come uma pera também, e um punhado de ameixas, bebendo mão-cheia
após mão-cheia de água de um poço ao fundo do pomar, antes de se obrigar a continuar, a sair do
abrigo e a regressar ao calor de verão.
As sombras alongam-se quando finalmente se deita na margem do rio e descalça as botas para
avaliar os estragos nos pés.
Mas não vê nada.
As meias não têm sinais de sangue. Os calcanhares estão livres de cortes. Não há vestígios
dos quilómetros percorridos, do desgaste de tantas horas na estrada coberta de terra, embora
tenha sentido a dor de cada passo. Os ombros também não estão queimados do sol, apesar de
todo o dia ter sentido o seu calor. O estômago anda-lhe às voltas, por vezes ansiando por mais do
que fruta roubada, mas, quando a luz declina e as colinas escurecem, não há candeias, não há
casas à vista.
Exausta, podia enroscar-se ali mesmo, na margem do rio, e ceder ao sono, mas os insetos
pairam por cima da água, mordendo-lhe a pele, e por isso refugia-se num campo aberto e deita-se
entre a erva alta, como fez tantas vezes quando era nova e queria ser outra pessoa. A erva engolia
a casa, a oficina, os telhados de Villon, tudo menos o céu aberto lá em cima, um céu que poderia
ser de qualquer lado.
Agora, enquanto olha para a escuridão mosqueada, tem saudades de casa. Não por Roger ou
pelo futuro que não desejou, mas pelo aperto lenhoso da mão de Estele na sua enquanto a velha
lhe mostrava como descobrir arbustos de framboesas e pelo zumbido suave da voz do pau
enquanto trabalhava na oficina, pelo aroma a resina e serradura no ar. Pelos pedaços da sua vida
que nunca quis perder.
Enfia a mão no bolso da saia, com os dedos à procura do passarinho esculpido. Não se
permitiu procurá-lo antes, não tendo a certeza de ter desaparecido, de o seu roubo se ter desfeito
como todos os outros atos — mas continua ali, com a madeira suave e quente.
Adeline tira-o da algibeira, ergue-o contra o céu e pensa. Não conseguiu partir a estatueta.
Mas conseguiu levá-la.
Entre a lista crescente de aspetos negativos — não consegue escrever, não consegue dizer o
seu nome, não consegue deixar uma marca —, esta foi a primeira coisa que conseguiu fazer.
Consegue roubar. Irá demorar muito tempo até conhecer os contornos da sua maldição, muito
mais ainda até compreender o sentido de humor da sombra, até ele olhar para ela por cima de um
copo de vinho e referir que um roubo bem-sucedido é um ato anónimo. A ausência de marca.
Nesse momento, está simplesmente grata pelo talismã.
O meu nome é Adeline LaRue, diz para si mesma, agarrando com força o passarinho de
madeira. Nasci em Villon, no ano de 1691, filha de Jean e Marthe, numa casa de pedra mesmo
ao lado do velho teixo...
Conta a história da sua vida à peça de madeira, como se tivesse medo de se esquecer tão
facilmente como os outros, sem saber que a sua mente é agora uma gaiola impecável, a memória
uma armadilha perfeita. Nunca esquecerá, embora venha a desejar poder fazê-lo.
Quando a noite se aproxima, com o roxo a dar lugar ao negro, Adeline olha para cima, para a
escuridão, e começa a desconfiar de que a escuridão lhe devolve o olhar, esse deus ou demónio,
com o seu olhar cruel, o seu sorriso trocista, os traços contorcidos de uma forma que nunca
desenhou.
Enquanto as fita, com a cabeça inclinada, as estrelas parecem captar as linhas de uma face, as
maçãs do rosto e o sobrolho, com a ilusão a formar-se até que fica meio à espera que o cobertor
da noite se enrugue e torça como aconteceu com as sombras no bosque, com o espaço entre as
estrelas a derramar-se para revelar aqueles olhos cor de esmeralda.
Morde a língua para evitar chamá-lo, não vá outra coisa decidir responder.
Afinal, não está em Villon. Não sabe que deuses poderão permanecer ali.
Mais tarde, a sua força falhará.
Mais tarde, haverá noites em que a necessidade abrandará a cautela, e gritará e amaldiçoará e
desafiá-lo-á a aparecer e enfrentá-la.
Mais tarde..., mas esta noite está cansada e tem fome e detesta desperdiçar a pouca energia
que tem com deuses que nunca responderão.
Por isso aninha-se para um dos lados, semicerra os olhos e espera pelo sono e, ao fazê-lo,
pensa em archotes no campo para lá do bosque, em vozes a gritarem o seu nome.
Adeline, Adeline, Adeline.
As palavras martelam contra si, tamborilando na sua pele como chuva.
Acorda um pouco mais tarde, o mundo escuro como tinta e um aguaceiro que já lhe encharca
o vestido, uma carga de água súbita e pesada.
Apressa-se pelo campo, com as saias a arrastar, até à linha de árvores mais próxima. Na
aldeia, gostava do matraquear da chuva contra as paredes da casa, costumava ficar ali deitada a
escutar o mundo ser lavado. Mas aqui não há cama, não há abrigo. Faz os possíveis por escorrer
a água do vestido, mas já está a arrefecer por cima da pele, e aninha-se entre as raízes, a tremer
debaixo do dossel desfeito
O meu nome é Adeline LaRue, diz para si mesma. O meu pai ensinou-me a ser uma
sonhadora, e a minha mãe ensinou-me a ser uma esposa, e Estele ensinou-me a falar com
deuses.
Os seus pensamentos arrastaram-se para Estele, que costumava ficar lá fora à chuva, com as
palmas das mãos abertas como se fosse colher a tempestade. Estele, que nunca gostou tanto da
companhia de outras pessoas como da própria.
Que provavelmente se sentiria satisfeita por estar sozinha no mundo.
Tenta imaginar o que a idosa diria, se a pudesse ver agora, mas sempre que tenta invocar
aqueles olhos penetrantes, aquela boca astuta, vê apenas a forma como Estele olhava para ela nos
últimos momentos, a forma como o seu rosto se enrugava e depois alisava, uma vida de
conhecimento varrida como uma lágrima.
Não, não devia pensar em Estele.
Adeline põe os braços à volta dos joelhos e tenta dormir e, quando volta a acordar, a luz do
sol derrama-se por entre as árvores. Um tentilhão encontra-se no solo musguento, mesmo ao
lado, a bicar-lhe a orla do vestido. Afasta-o, procurando na algibeira o passarinho de madeira
enquanto se levanta, vacila, tonta de fome, se apercebe de que não comeu mais do que fruta num
dia e meio.
O meu nome é Adeline LaRue, diz para si mesma, enquanto percorre o caminho de volta à
estrada. Está a transformar-se num mantra, algo para fazer passar o tempo, medir os seus passos,
e repete-o, vezes sem conta.
Contorna uma sebe e para, pestanejando violentamente, como se tivesse o sol diante dos
olhos. Não tem, no entanto, o mundo em frente ficou mergulhado num amarelo súbito, intenso,
os campos verdes devorados por um cobertor da cor de uma gema de ovo.
Olha para trás, por cima do ombro, mas o caminho atrás dela continua a ser verde e castanho,
os tons habituais do verão. O campo adiante é cor de semente de mostarda, embora na altura não
o saiba. Então, é simplesmente belo, de uma forma avassaladora. Addie fica a olhar, e por um
instante esquece a fome, os pés doridos, a perda súbita e deixa-se maravilhar pela claridade
ofuscante, pela cor, que devora tudo.
Deambula pelo campo, com os botões das flores a aflorarem-lhe as palmas das mãos, sem
medo de esmagar as plantas debaixo dos pés — já se endireitaram à sua passagem, com o apagar
dos passos. Quando chega à extremidade mais remota do campo, e ao caminho, e ao verde firme,
este parece monótono, procurando os olhos outra fonte de assombro.
Pouco depois, avista-se uma vila maior, e está prestes a contorná-la quando capta um aroma
no ar que lhe faz doer o estômago.
Manteiga, fermento, o cheiro doce e farto a pão.
Parece um vestido que caiu da corda, amarrotada e suja, o cabelo num ninho emaranhado,
mas tem demasiada fome para se importar com isso. Segue o cheiro por entre as casas e
percorrendo a alameda estreita que conduz à praça da aldeia. As vozes erguem-se com o cheiro a
pão, e quando vira numa esquina, vê um punhado de mulheres sentadas em torno de um forno
comunitário. Estão encarrapitadas no banco de pedra que o rodeia, a rir e a conversar como
pássaros num ramo, enquanto os pães crescem dentro da boca aberta do forno. A sua visão é
dissonante, comum, dolorosa, e Adeline permanece por um instante na rua coberta de sombra, a
ouvir o trinado e o chilreio das suas vozes, antes de a fome a obrigar a avançar.
Não precisa de revistar os bolsos para saber que não tem moedas. Talvez possa negociar o
pão, mas possui apenas o passarinho, e, quando o encontra entre as dobras da saia, os dedos
recusam-se a soltar a madeira. Podia suplicar, mas o rosto da mãe vem-lhe à memória, os seus
olhos tensos de escárnio.
Resta então o roubo — que é errado, claro, mas está demasiado esfomeada para avaliar o
pecado que representa. É apenas uma questão de como fazê-lo. O forno nunca fica sem
vigilância, e, apesar da facilidade com que parece desaparecer da memória, continua a ser de
carne e osso, não um fantasma. Não pode simplesmente aparecer ali e tirar o pão sem causar um
alvoroço. Claro que a podem esquecer rapidamente, mas que perigos enfrentaria antes que isso
acontecesse? Se conseguisse o pão e depois se fosse embora, até onde teria de correr? A que
velocidade?
E então ouve-o. Um som suave, animal, quase perdido por detrás da conversa.
Contorna o forno de pedra e divisa a sua oportunidade, do outro lado da rua.
Uma mula encontra-se à sombra, preguiçosamente, a mastigar ao lado de uma saca de maçãs,
de uma pilha de gravetos.
Basta uma única palmada bem desferida para a mula dar uma guinada, mais de espanto,
espera ela, do que de dor. Precipita-se para diante, desequilibrando as maçãs e a madeira, quando
se põe em movimento. E, sem mais nem menos, toda a praça se assusta, entrando num breve,
mas barulhento estado, enquanto o animal trota de lá para fora, arrastando uma saca de cereal, e
as mulheres levantam-se, com os trinados e os chilros dos seus risos a dissolverem-se em gritos
tensos de consternação.
Adeline esgueira-se até ao forno como uma nuvem, surripiando o pão mais próximo da boca
do forno. A dor cresta-lhe os dedos quando lhe pega, e quase o deixa cair, mas está demasiado
esfomeada, e a dor, como começa a aprender, não dura. O pão é dela, e, quando a mula é
aquietada, e o cereal apanhado, e as maçãs reunidas, e as mulheres devolvidas aos seus lugares
junto ao forno, já desapareceu.
Encosta-se à sombra de um estábulo, na orla da vila, com os dentes a rasgarem o pão
malcozido. A massa desfaz-se-lhe na boca, pesada, doce e difícil de engolir, mas não quer saber.
Sacia o suficiente, desgastando as arestas da sua fome. A mente começa a desanuviar-se. O peito
descomprime, e, pela primeira vez desde que saiu de Villon, sente-se como que humana, se não
inteira. Empurra a parede do estábulo e recomeça a andar, seguindo a linha do sol e o caminho
do rio, em direção a Le Mans.
O meu nome é Adeline... recomeça e depois para.
Nunca gostou do seu nome, e agora nem sequer o consegue dizer. Seja qual for o nome que
dê a si mesma, será apenas na sua cabeça. Adeline é a mulher que deixou em Villon, na véspera
de um casamento que não queria. Mas Addie — Addie foi um presente de Estele, mais breve,
mais incisivo, um nome rápido para a rapariga que ia aos mercados e tentava ver por cima dos
telhados, para a rapariga que desenhava e sonhava com histórias maiores, com mundos mais
magnificentes, com vidas cheias de aventura.
E, assim, enquanto caminha, dá início à história que tem lugar na sua cabeça.
O meu nome é Addie LaRue...
Nova Iorque
11 de março de 2014

Fica tudo demasiado silencioso sem James.


Addie nunca pensou nele como sendo barulhento — encantador, alegre, sim, embora nada
rude —, mas agora apercebe-se de como enchia aquele espaço quando se encontrava nele.
Nessa noite, pôs um disco a tocar e cantou, acompanhando a música, enquanto grelhava
queijo no fogão de seis bicos, que comeram de pé porque a casa era nova e não comprara
cadeiras para a cozinha. Continua a não haver cadeiras na cozinha, mas agora também não há
James — encontra-se fora, algures —, e o apartamento alonga-se à volta dela, demasiado
silencioso e demasiado grande para uma pessoa só, com o andar elevado e os vidros duplos a
combinarem-se para impedir a entrada dos sons da cidade, reduzindo Manhattan a um quadro,
imóvel e cinzento, do lado fora das janelas.
Addie põe disco após disco, mas o som limita-se a fazer eco. Tenta ver televisão, mas o
zumbido das notícias é mais estático do que qualquer outra coisa, tal como o minúsculo coro de
vozes na rádio, demasiado distante para parecer real.
Lá fora, o céu está de um cinzento estático, com uma névoa fina de chuva a esbater os
edifícios. É o dia ideal para lareiras e chávenas de chá e livros muito queridos.
Mas, embora James tenha uma lareira, é apenas a gás, e, quando procura a sua mistura
preferida no armário, encontra a caixa aninhada lá ao fundo, mas está vazia, e todos os livros que
tem são de história, não de ficção, e Addie sabe que não pode passar ali o dia, tendo-se a si
apenas como companhia.
Veste-se de novo, com as suas próprias roupas, e volta a alisar as cobertas da cama, apesar de
as empregadas regressarem certamente antes de James. Lançando uma última olhadela ao dia
desolador, rouba um cachecol da prateleira de um armário, uma faixa de caxemira escocesa ainda
com a etiqueta, e sai, com o trinco a estalar atrás dela.
De início não sabe para onde vai.
Alguns dias, sente-se como um leão enjaulado, a percorrer a sua prisão. Os pés têm vontade
própria, e em breve a conduzem-na à parte alta da cidade.
O meu nome é Addie LaRue, pensa para si mesma, enquanto caminha.
Trezentos anos, e uma parte de si ainda tem medo de se esquecer. Claro que houve vezes em
que desejou que a sua memória fosse mais volátil, em que daria tudo para aceitar a loucura e
desaparecer. É o caminho mais fácil para nos perdermos.
Como Peter, do Peter Pan de M. Barrie.
Mesmo no fim, quando Peter se senta na pedra, com a recordação de Wendy Darling a passar-
lhe pela cabeça, e é triste, claro, esquecer.
Mas é solitário ser esquecido.
Recordar, quando mais ninguém o faz.
Eu lembro-me, sussurra a escuridão, quase com bondade, como se não fosse quem a
amaldiçoou.
Talvez seja do mau tempo ou talvez seja um estado de espírito piegas o que leva Addie a
subir a extremidade oriental do Central Parque, até à Eighty-Second e aos átrios de granito do
Met.
Addie sempre gostou de museus.
Espaços onde a história se reúne, fora de lugar, onde a arte é ordenada e os artefactos se
encontram em pedestais ou pendurados em paredes, por cima de pequenos letreiros didáticos.
Addie sente-se, por vezes, como um museu, um museu que apenas ela pode visitar.
Atravessa o átrio amplo, com as suas arcadas e colunatas de pedra, avança por entre a ala
greco-romana e pela Oceânia, exposições em que se demorou centenas de vezes, continua até
chegar ao átrio de escultura europeia, com as suas imponentes figuras de mármore.
Passada uma sala, encontra-o, onde está sempre.
Encontra-se dentro de numa vitrina de vidro, encostado a uma parede, enquadrado de cada um
dos lados por peças de ferro ou prata. Não é grande, em comparação com o que é habitual nas
esculturas, do comprimento do seu braço, do cotovelo às pontas dos dedos. Uma base de
mármore com cinco pássaros de madeira empoleirados, cada um deles prestes a voar. É o quinto
que lhe prende o olhar: o bico levantado, o ângulo das asas, o suave descer das penas outrora
captado em madeira, e agora de novo.
Revenir, chama-se. Regressar.
Addie lembra-se da primeira vez que encontrou a obra, do seu pequeno milagre, sobre o bloco
branco e limpo. O artista, Arlo Miret, um homem que não chegou a conhecer, com quem nunca
se cruzou, e, no entanto, ali está, com um pedaço da sua história, do seu passado. Encontrado e
transformado em algo memorável, algo valioso, algo belo.
Deseja poder tocar no pássaro mais pequeno, percorrer a asa com o dedo, como fazia sempre,
apesar de saber que não é aquele que perdeu, de saber que este não foi esculpido pelas mãos
fortes do pai, mas por um estranho. Ainda assim, está ali, é real, e, num certo sentido, seu.
Um segredo guardado. Um registo feito. A primeira marca que deixou no mundo, muito antes
de saber a verdade, de saber que as ideias são muito mais bravias do que as memórias, que
desejam e procuram formas de se enraizarem.
Le Mans, França
31 de julho de 1714

Le Mans repousa como um gigante adormecido nos campos que percorrem o Sarthe.
Passaram-se mais de dez anos desde que Addie obteve autorização para fazer o caminho até à
cidade muralhada, empoleirada ao lado do pai, na carroça da família.
Agora o coração acelera ao transpor pelos portões da cidade. Desta vez, não há cavalo, não há
pai, não há carroça, mas, sob a luz do fim de tarde, a cidade apresenta-se tão azafamada, tão
concorrida como se lembrava de ser. Addie não se dá ao trabalho de se tentar integrar — se, de
vez em quando, alguém olha na sua direção, repara na jovem de vestido branco e sujo, guarda a
sua opinião para si próprio. É mais fácil estar só entre tanta gente.
Só que não sabe para onde ir. Para por um instante, para pensar, para ouvir apenas o estridor
dos cascos, demasiado súbito e demasiado próximo, e evita por um triz ser esmagada por uma
carroça.
— Sai da frente! — grita o condutor, enquanto ela se inclina para trás, apenas para chocar
com uma mulher que carrega um cesto de peras. Este vacila, despejando três ou quatro pelo
caminho empedrado.
— Vê por onde andas — rosna a mulher, mas, quando Addie se inclina para a ajudar a
apanhar a fruta caída, a mulher guincha e pisa-lhe os dedos. Addie recua e enfia as mãos nos
bolsos, agarrando-se ao passarinho de madeira enquanto continua a percorrer as ruas sinuosas em
direção ao centro da cidade. Há muitas vielas, mas todas se parecem umas com as outras.
Pensou que aquele lugar lhe pareceria mais familiar, mas parece-lhe apenas estranho. Uma
invenção de um sonho muito antigo. Da última vez que Addie ali esteve, a cidade pareceu-lhe
um assombro, um lugar grandioso e vital: os mercados apinhados, banhados pelo sol; as vozes a
tinirem de pedra; os ombros largos do pai, a esconderem os lados mais sinistros da cidade.
Mas agora, sozinha, insinuou-se uma ameaça, como nevoeiro, apagando o encanto alegre,
deixando apenas as pontas afiadas, destaca- das da bruma. Uma versão da cidade substituída por
outra.
Palimpsesto.
Ainda não conhece a palavra, mas, dali a cinquenta anos, num salão de Paris, ouvi-la-á pela
primeira vez, com a ideia do passado a ser apagada, coberta com a escrita do presente, e pensará
naquele momento em Le Mans.
Um lugar que conhece, só que não.
Que tolice pensar que se manteria na mesma, quando tudo o resto mudou. Quando ela mudou,
cresceu, passando de menina a mulher, e depois àquilo, um espectro, um fantasma.
Engole em seco, com dificuldade, e levanta-se, decidida a não se esbater ou pulverizar.
Mas Addie não consegue encontrar a estalagem onde ela e o pai ficaram e, mesmo que
conseguisse, o que pensava fazer ali? Não tinha forma de pagar e, mesmo que tivesse dinheiro,
quem iria alugar um quarto a uma mulher sozinha? Le Mans é uma cidade, mas não é assim tão
grande que uma coisa como essas pudesse passar despercebida a um senhorio.
A mão de Addie aperta-se com mais força sobre a peça de madeira que tem na algibeira da
saia enquanto continua a percorrer as ruas. Há um mercado logo depois da praça central, mas
está a fechar, tem as mesas vazias, as carroças começam a afastar-se, com o chão apenas
apinhado de restos de alface e de algumas batatas bolorentas, e, antes mesmo de chegar a pensar
em surripiá-los, já lá não estão, levadas por mãos mais pequenas e mais rápidas.
Há uma estalagem com uma taberna ao fundo da praça.
Vê um homem desmontar do cavalo, uma égua sarapintada, e passar as rédeas às mãos do
dono da estrebaria, já pronto para se dirigir ao barulho e à azáfama das portas abertas. Vê a mão
do homem conduzir a égua até um estábulo de madeira e desaparecer na escuridão relativa. Mas
não é o estábulo que chama a sua atenção ou a égua — é o fardo ainda apoiado no seu dorso.
Duas albardas pesadas, fazendo bojo, como sacos de cereais.
Addie atravessa a praça e esgueira-se para dentro do estábulo atrás do homem e da égua, com
os passos o mais leves e rápidos possível. A luz do sol jorra, fraca, através das traves do telhado
do estábulo, desenhando suavemente as formas do local, com alguns pontos iluminados por entre
as sombras estratificadas, o tipo de ambiente que adoraria desenhar.
Alguns cavalos pisoteiam o chão nas cavalariças e pela estrebaria, a mão do homem cantarola
para a égua enquanto lhe solta as correias, atira a sela para cima da divisória de madeira e escova
o animal, o seu próprio cabelo um ninho de nós e emaranhados.
Addie baixa-se, esgueirando-se em direção às cavalariças, nas traseiras do estábulo, onde os
sacos e os alforges semeiam o espaço, pousados sobre as baias de madeira que separam os
cavalos. As mãos precipitam-se, esfomeadas, pelos arreios, procurando por entre fivelas e por
baixo de abas. Não há bolsas, mas encontra um casaco pesado de montar, um odre de vinho, uma
faca de desossar do comprimento da sua mão. Lança o casaco por cima dos ombros, enfia a faca
num bolso fundo e o vinho no outro, enquanto se move sorrateiramente, silenciosa como um
fantasma.
Só vê o balde vazio quando o sapato choca contra ele, num estampido agudo. Cai com um
estrondo abafado em cima do feno, e Addie sustém a respiração e espera que o som se perca por
entre o arrastar dos cascos. Mas o dono da estrebaria para de cantarolar. Baixa-se mais, aninha-se
entre as sombras da cavalariça mais próxima. Passam-se cinco segundos, depois dez, e, então,
finalmente, o cantarolar recomeça, e Addie levanta-se e caminha até à última baia, onde se
encontra um cavalo robusto, a mastigar cereais, ao lado de um saco fechado com uma correia. Os
dedos dirigem-se para a fivela.
— O que estás a fazer?
A voz, demasiado próxima, atrás dela. O homem da estrebaria, já sem cantarolar, já sem
escovar a égua sarapintada, mas, de pé, no espaço entre as cavalariças, com um pingalim na mão.
— Desculpe — diz ela, um pouco ofegante. — Vim à procura da cavalgadura do meu pai. Ele
queria uma coisa do alforge.
Olha para ela, sem pestanejar, com os traços meio engolidos pela desordem negra do cabelo.
— E que cavalo seria?
Deseja ter estudado os cavalos, não apenas as suas cargas, mas não pode hesitar, denunciaria
a mentira, por isso vira-se rapidamente para o cavalo de carga.
— Este.
É uma boa mentira, no que a mentiras diz respeito, daquelas que facilmente poderiam ter sido
verdadeiras, se apenas tivesse escolhido outro cavalo. Um sorriso perverso estremece sob a barba
do homem.
— Ah — diz ele, batendo com o pingalim contra a palma da mão —, mas acontece que esse é
meu.
Addie sente o impulso estranho e nauseante de se rir.
— Posso escolher outra vez? — sussurra, deslocando-se lentamente para a porta da estrebaria.
Algures por perto, uma égua relincha. Outra bate com o casco. O pingalim para de zurzir a
palma da mão do homem, e Addie desvia-se para um dos lados, entre as cavalariças, com o
homem no seu encalço.
É rápido, uma velocidade claramente resultante da prática de perseguir animais, mas ela é
mais leve e tem muito mais a perder. As mãos dele afloram-lhe o colarinho do casaco roubado,
mas não a conseguem apanhar; os seus passos pesados hesitam e abrandam, e Addie pensa estar
livre, mesmo antes de ouvir o som nítido e claro de uma campainha repicar na parede do
estábulo, seguido do som de botas vindas do exterior.
Está quase à entrada do estábulo quando aparece o segundo homem, transpondo a porta como
uma sombra larga.
— Fugiu algum animal? — grita, antes de a ver, enrolada no casaco roubado, com as botas
demasiado grandes a escorregarem no feno. Recua de forma atabalhoada, para ir cair diretamente
nos braços do dono da estrebaria. Os dedos fecham-se à volta dos seus ombros, pesados como
algemas, e, quando tenta libertar-se, a mão crava-se com tal profundidade que a magoa.
— Apanhei-a a roubar — diz, com a vulgaridade a eriçar-se-lhe na face, a roçar a dela.
— Largue-me — implora ela, enquanto ele a puxa com força para mais perto.
— Isto não é uma banca da praça — escarnece o segundo, sacando de uma faca do cinto. —
Sabes o que fazemos aos ladrões?
— Foi engano. Por favor. Largue-me.
A faca agita-se como um dedo.
— Só depois de pagares.
— Não tenho dinheiro.
— Não faz mal — diz o segundo homem, aproximando-se mais. — Os ladrões pagam com o
corpo.
Addie tenta soltar-se, mas as mãos nos seus braços são de ferro, enquanto a faca se vem
encostar às rendas do vestido, dedilhando-as como cordas. E, quando volta a contorcer-se, já não
está a tentar libertar-se, apenas a tentar alcançar a faca de desossar dentro da algibeira do casaco
roubado. Por duas vezes os dedos afloram o cabo de madeira antes de o conseguir agarrar.
Assesta a arma para baixo, contra a coxa do primeiro homem, sente-a afundar-se na carne da
sua perna. Ele grita antes de a empurrar para longe como um moscardo, arremessando-a para a
frente, em direção à faca do outro homem.
A dor urra-lhe do ombro, enquanto a faca o perfura e percorre a clavícula, deixando um rasto
de calor abrasador. Os pensamentos desaparecem nesse momento, mas as pernas já estão em
movimento, transportando-a para lá das portas do estábulo, em direção à praça. Lança-se para
trás de um barril, longe de vista, enquanto os homens saem da estrebaria aos tropeções, a
praguejar, atrás dela, com os rostos contorcidos de raiva e, algo pior, algo primitivo, ávido.
E então, entre um passo e outro, começam a abrandar.
Entre um passo e outro, a urgência cede e esmorece, com o objetivo a escapar-se, como um
pensamento, para longe do alcance. Os homens olham em volta e depois um para o outro. Aquele
que foi esfaqueado endireita-se agora, sem sinal de qualquer rasgão nas calças, sem sangue a
ensopar o tecido. A marca que Addie deixou nele apagou-se.
Dão cotoveladas um ao outro e pancadinhas nas costas e dirigem-se de novo à estrebaria, e
Addie inclina-se para diante, pousando a cabeça contra a barrica de madeira. O peito lateja, com
a dor a descrever uma linha viva ao longo do pescoço, e, quando comprime a ferida com a mão,
os dedos vêm vermelhos.
Não pode ficar ali, enroscada atrás da pipa. Obriga-se a levantar-se e vacila, sentindo-se fraca,
mas em breve, a vaga de mal-estar passa, e continua de pé. Caminha, com uma mão contra o
ombro e a outra bem fincada sobre a faca, por baixo do casaco roubado. Não sabe quando decide
abandonar Le Mans, mas, pouco depois, está a atravessar a praça, a afastar-se das cavalariças e a
percorrer as ruas sinuosas, deixando para trás estalagens devassas e tabernas, os passos da
multidão e risos roufenhos, desistindo da cidade a cada passo.
A dor no ombro alivia, passando de um calor esbraseante a um latejar incómodo, e, depois, a
nada. Passa os dedos pelo golpe, mas desapareceu. Tal como o sangue no vestido, engolido como
as palavras que escrevinhou no papel do pai, as linhas que desenhou no sedimento à beira-rio. Os
únicos vestígios do mesmo estão na sua pele, uma crosta de sangue a secar ao longo da clavícula,
uma mancha vermelho-acastanhada na palma da mão. E Addie maravilha-se por um instante,
apesar da sua vontade, perante a estranha magia de tudo aquilo, a prova de que, num certo
sentido, a sombra cumpriu o prometido. Deturpou-o, sim, retorceu os seus desejos em algo
errado e podre. Mas, pelo menos, concedeu-lhe aquilo.
Viver.
Um pequeno som furioso sai-lhe da garganta, e existe alívio no mesmo, talvez, mas também
horror. Pela verdade da fome, que apenas começa a descobrir. Pela dor nos pés, embora não
exibam cortes ou hematomas. Pela dor na ferida do ombro, antes de sarar. A escuridão concedeu-
lhe libertação da morte, talvez, mas não daquilo. Não do sofrimento.
Passar-se-ão anos até aprender o verdadeiro significado dessa palavra, mas, para já, enquanto
penetra na escuridão que se adensa, ainda se sente aliviada por estar viva.
Um alívio que estremece quando alcança a orla da cidade. Foi o mais longe a que Adeline
alguma vez chegou.
Le Mans agiganta-se atrás dela, e, adiante, as altas muralhas de pedra dão lugar a vilas
dispersas, cada uma delas como uma pequena mata de arbustos e, depois, a campo aberto e,
depois, a quê... não sabe.
Quando Addie era mais nova, subia as encostas que se erguiam e desciam em torno de Villon,
precipitava-se até à extremidade da vertente, ao ponto em que o solo se interrompia, e parava,
com o coração a bater descompassado enquanto o corpo se inclinava para a frente, ansiando pela
queda.
Ao mais pequeno empurrão, o peso faria o resto.
Agora não há encostas íngremes por baixo de si, não há escarpas, e, no entanto, sente o
equilíbrio vacilar.
E então a voz de Estele ergue-se para ir ao seu encontro na escuridão.
Como se vai até ao fim do mundo?, perguntou uma vez. E, vendo que Addie não sabia a
resposta, a velha sorriu no seu esgar engelhado e respondeu.
Um passo de cada vez.
Addie não vai até ao fim do mundo, mas tem de ir para algum lado, e, nesse momento,
decide.
Vai para Paris.
É, além de Le Mans, a única cidade que conhece de nome, um lugar que brincou muitas vezes
nos seus lábios de estranha e que aparecia em todas as histórias que o pai lhe contou, um lugar de
deuses e reis, de ouro e majestade, e de promessa.
Começa assim, teria ele dito, se a pudesse ver agora.
Addie dá o primeiro passo e sente o chão ceder, sente-se inclinar para diante, mas, desta vez,
não cai.
Nova Iorque
12 de março de 2014

O dia está mais ameno.


O sol brilha, o ar não está tão frio, e há muito a apreciar numa cidade como Nova Iorque.
A comida, a arte, as ofertas constantes de cultura — apesar de o aspeto preferido de Addie ser
a sua dimensão. As vilas e as aldeias são facilmente conquistadas. Uma semana em Villon era
suficiente para percorrer todos os caminhos, para aprender todos os rostos. Mas, com cidades
como Paris, Londres, Chicago, Nova Iorque, não tem de abrandar, não tem de dar dentadas
pequenas para que a mais recente perdure. Uma cidade que pode consumir com a voracidade que
desejar, devorando-a todos os dias, sem nunca esgotar os pedaços a comer.
É o tipo de lugar que demora anos a ser visitado, continuando sempre a haver mais uma viela,
mais uma escadaria, mais uma porta.
Talvez seja esse o motivo por que não reparou antes.
Instalada numa curva, e descendo um breve lanço de escadas, há uma loja meio escondida
pela linha da rua. O toldo em tempos foi claramente roxo, mas esbateu-se há muito até se tornar
cinzento, apesar do nome da loja ainda ser legível, percetível nas letras brancas.
The Last Word.
Uma livraria de volumes usados, a julgar pelo nome, com as montras a transbordar de
lombadas empilhadas. O coração de Addie entusiasma-se um pouco. Tinha a certeza de que os
iria encontrar a todos. Mas é isso que é espantoso em Nova Iorque. Addie deambulou por uma
parte considerável dos cinco bairros, e, ainda assim, a cidade tem os seus segredos, alguns deles
escondidos em recantos — bares localizados em caves, tabernas clandestinas, clubes reservados
apenas a membros — e outros situados em plena luz do dia. Como ovos da Páscoa num filme,
aqueles em que só se repara à segunda ou terceira vez. E também muito diferentes de ovos da
Páscoa, porque, por muitas vezes que percorra aqueles quarteirões, por muitas horas ou dias ou
anos que passe a aprender os contornos de Nova Iorque, mal vira costas, esta parece mudar de
novo, voltar a montar-se. Os edifícios sobem e descem, os negócios abrem e fecham, as pessoas
chegam e partem, e as cartas voltam a baralhar-se, uma e outra e outra vez.
Obviamente, Addie entra.
Uma campainha suave anuncia a sua chegada, com o som a ser rapidamente abafado pelo
estrondo de livros a empilharem-se, em vários estados. Algumas livrarias são organizadas, mais
galerias do que lojas. Outras são esterilizadas, reservadas apenas aos novos e intocados.
Mas esta não.
Esta loja é um labirinto de pilhas e prateleiras, com volumes arrumados em duas filas, por
vezes em três, couro ao lado de papel ao lado de cartão. O seu tipo preferido de loja, uma loja
onde é fácil alguém perder-se.
Há um balcão de pagamento junto à porta, mas está vazio, e Addie deambula, sossegada, por
entre as estantes, escolhendo o caminho ao longo das prateleiras adoradas. A livraria parece
bastante vazia, à exceção de um homem branco, mais velho, que estuda uma fileirade thrillers,
de uma rapariga negra deslumbrante, sentada de pernas cruzadas numa cadeira de couro, ao
fundo de um corredor, com prata a cintilar-lhe nos dedos e nas orelhas, um livro de arte gigante
aberto no colo.
Addie vagueia passando por um letreiro que assinala poesia, e a escuridão sussurra contra a
sua pele. Dentes a aflorarem um ombro nu, como uma faca.
Vem viver comigo e ser o meu amor.
O refrão de Addie, desgastado até à macieza, pela repetição.
Sabes bem o que é o amor.
Não para, e dobra a esquina, com os dedos agora a errarem pela teologia. Leu a Bíblia, os
Upanishads, o Alcorão, depois de uma espécie de farra espiritual, há um século. Passa também
por Shakespeare, uma religião por si só.
Faz uma pausa na secção de biografia, estudando os títulos nas lombadas, tantos Eus e Meus e
Mins, palavras possessivas para vidas possessivas. Que luxo, contar a história de alguém. Ser
lido, lembrado.
Algo choca com o cotovelo de Addie, e olha para baixo para ver um par de olhos de âmbar a
espreitar por cima da sua manga, rodeados por uma massa de pelo laranja. O gato parece tão
velho como o livro que tem na mão. Abre a boca e solta algo entre um bocejo e um miado, um
som oco e sibilante.
— Olá — coça o gato entre as orelhas, provocando um ronronar baixo de prazer.
— Uau — diz uma voz masculina atrás dela. — O Book normalmente não se dá ao trabalho
de conviver com pessoas.
Addie vira-se, prestes a comentar o nome do gato, mas perde o fio aos pensamentos quando o
vê, porque, por um instante, apenas por um instante, antes de o rosto se focar, tem a certeza de
que é... Mas não é ele.
Claro que não é.
O cabelo do rapaz, apesar de preto, cai em ondas soltas em volta do rosto, e os olhos, por
detrás da armação grossa, estão mais próximos do cinzento do que do verde. Há algo frágil neles,
mais de vidro do que de pedra, e, quando fala, a sua voz é suave, quente, inegavelmente humana.
— Posso ajudá-la a encontrar alguma coisa?
Addie abana a cabeça.
— Não, não — diz, pigarreando. — Estou apenas a ver.
— Muito bem — diz com um sorriso. — Então faça favor de continuar.
Vê-o ir-se embora, com os caracóis a desaparecerem no labirinto de títulos, antes de arrastar o
olhar de volta ao gato.
Mas o gato também desapareceu.
Addie devolve a biografia à prateleira e continua a procurar, com a atenção a vaguear pelas
secções de arte e história mundial, ao mesmo tempo que espera que o rapaz volte a aparecer, para
recomeçar o ciclo do princípio, perguntando-se o que dirá quando isso acontecer. Devia ter
pedido ajuda, deixá-lo guiá-la pelas prateleiras — mas ele não regressa.
A campainha da loja volta a tilintar, anunciando um novo cliente, enquanto Addie chega aos
clássicos. Beowulf. Antígona. A Odisseia. Há dezenas de versões da última, e está prestes a tirar
uma dela quando se ouve uma explosão súbita de riso, alto e leve, e espreita por um espaço entre
as prateleiras e vê uma rapariga loura encostada ao balcão. O rapaz está do outro lado, a limpar
os óculos à ponta da camisa.
Inclina a cabeça, com as pestanas pretas a aflorarem-lhe a face.
Nem sequer olha para a rapariga, que se ergue em bicos de pés para se aproximar mais dele.
Estende um braço e passa uma mão pela manga dele, como Addie acabou de fazer pelas
prateleiras, e ele sorri, então, um gesto calmo e tímido que apaga os vestígios das suas
semelhanças com as trevas.
Addie enfia o livro debaixo do braço, dirige-se para a porta e sai, aproveitando-se da sua
distração.
— Ei! — grita uma voz, a voz dele, mas ela continua a subir os degraus até à rua. Num
instante, irá esquecer-se. Num instante, a sua mente irá parar, e ele...
Uma mão pousa-lhe no ombro.
— Tem de pagar isso.
Vira-se e depara-se com o rapaz da loja, um pouco ofegante e muito zangado. Os olhos dela
alongam-se para lá dele, pousando nos degraus, na porta aberta. Devia estar entreaberta. Deve ter
ido logo atrás dela. Ainda assim. Seguiu-a até lá fora.
— Então? — pergunta ele, com a mão a deslizar do ombro, vindo colocar-se, de palma aberta,
no espaço entre ambos. Podia fugir, claro, mas não vale a pena. Vê o preço na contracapa do
livro. Não é muito, mas é mais do que traz consigo.
— Desculpe — diz, devolvendo-o.
Então ele franze o sobrolho, numa ruga demasiado profunda para o seu rosto. O tipo de linha
esculpida por anos de repetição, apesar de não dever ter mais de 30 anos. Olha para o livro, e
uma sobrancelha negra ergue-se atrás dos óculos.
— Uma loja cheia de livros antigos, e rouba uma edição de bolso usada de A Odisseia? Sabe
que isto não lhe vai render nada, certo?
Addie suporta o olhar dele.
— Quem diz que quero vendê-lo?
— Além disso, está em grego.
Nisso não tinha reparado. Não que importasse. Leu os clássicos, primeiro em latim, mas, nas
últimas décadas, dedicara-se ao grego.
— Que idiota — diz de forma seca. — Devia tê-lo roubado em inglês.
Ele quase — quase — sorri, então, mas é um gesto cheio de perplexidade, disforme. Ao
invés, abana a cabeça.
— Leve-o, pronto — diz, estendendo-lhe o livro. — Acho que a loja consegue passar sem ele.
Addie tem de resistir ao impulso de o empurrar de volta. O gesto é demasiado parecido com
caridade.
— Henry! — grita a rapariga negra e bonita, da porta. — Queres que chame a polícia?
— Não — grita-lhe ele de volta, ainda a olhar para Addie. — Está tudo bem. — Semicerra os
olhos, como que a estudá-la. — Foi engano.
Fica a olhar para aquele rapaz — para esse Henry. Então estende a mão e aceita o livro,
apertando-o contra si, enquanto o livreiro desaparece nas traseiras da loja.
A PARTE MAIS NEGRA DA NOITE
Título: Uma Noite Esquecida
Artista: Samantha Benning
Date: 2014
Suporte: Acrílico sobre tela, em madeira
Origem: Cedido pela Lisette Price Gallery, NYC
Descrição: Uma peça bastante monocromática, com a tinta aplicada numa topografia de pretos, carvões e cinzentos. Sete
pequenas pintas brancas destacam-se no fundo.
Contexto: Apresentando-se em geral como uma peça isolada, este quadro também serve de frontispício a uma série em
curso intitulada Venero-te, em que Benning imagina família, amigos e amantes como repetições distintas do céu.
Valor estimado: 11 500 dólares
Nova Iorque
12 de março de 2014

Henry Strauss regressa à loja.


Bea voltou a instalar-se na cadeira de couro gasta, com o livro de arte reluzente, aberto no
colo.
— Onde foste?
Ele olha para trás, pela porta aberta, e franze o sobrolho. — A lado nenhum.
Bea encolhe os ombros, folheando as páginas, um manual de arte neoclássica que não faz
tenções de comprar.
Isto não é uma biblioteca. Henry suspira, regressando para junto da caixa registadora.
— Desculpa — diz à rapariga perto do balcão. — Onde íamos nós?
Ela morde o lábio. O seu nome é Emily, acha.
— Eu ia perguntar-te se querias ir tomar um copo.
Ele ri-se, de forma um pouco nervosa — um hábito que começa a pensar que nunca perderá.
É bonita, é mesmo, mas há um brilho problemático nos seus olhos, uma luz leitosa familiar, e
sente-se aliviado por não ter de mentir sobre os seus planos para essa noite.
— Fica para outra vez — diz ela com um sorriso.
— Fica para outra vez — repete ele, vendo a rapariga pegar no livro e sair. Bea pigarreia mal
a porta se fecha.
— Que é? — pergunta ele sem se virar.
— Podias ter ficado com o número dela.
— Temos planos — diz ele, batendo com os bilhetes em cima do balcão.
Ouve o ranger suave do couro quando se levanta da cadeira.
— Sabes — diz ela, pondo-lhe um braço à volta dos ombros — que o melhor de tudo, nos
planos, é podermos mudá-los também para outros dias.
Ele vira-se, com as mãos a subirem-lhe até à cintura, e agora estão entrelaçados como miúdos
nas convulsões de baile da escola, com os membros a descreverem círculos amplos, como redes
ou correntes.
— Beatrice Helen — ralha ele.
— Henry Samuel.
Ficam ali, no meio da loja, duas pessoas com 20 e poucos anos num abraço pré-adolescente.
E, talvez outrora, Bea se tivesse inclinado um pouco mais, feito um discurso sobre descobrir
alguém (novo), sobre merecer ser feliz (de novo). Mas têm um acordo: ela não menciona
Tabitha, e Henry não menciona a Professora. Toda a gente tem as suas perdas, as suas cicatrizes
de guerra.
— Desculpe — diz um senhor idoso, parecendo lamentar genuinamente a interrupção. Tem
um livro na mão, e Henry sorri e quebra o feitiço, voltando a passar para o outro lado do balcão
para o registar. Bea retira o bilhete de cima da mesa e diz que vai ter com ele ao espetáculo, e
Henry acena com a cabeça. O velho vai à sua vida, e o resto da tarde decorre por entre uma
névoa tranquila de estranhos agradáveis.
Vira o letreiro às cinco para as seis e realiza os movimentos de fechar a loja. A livraria não é
sua, mas poderia perfeitamente ser. Passaram-se semanas desde a última vez que viu a verdadeira
proprietária, Meredith, que está a passar os seus anos dourados a viajar pelo mundo à custa do
seguro de vida do falecido esposo. Uma mulher de outono a comprazer-se numa segunda
primavera.
Henry despeja uma mão-cheia de comida na tacinha vermelha atrás do balcão, para Book, o
velho gato da livraria, e, um instante depois, uma cabeça ruiva espreita por cima dos livros
baratos da secção de poesia. O gato gosta de se enfiar atrás de uma pilha de livros e de dormir
dias a fio, com a sua presença a ser marcada apenas pelo comedouro vazio ou pelo som de
sobressalto ocasional de um cliente, quando este se cruza com dois olhos amarelos fixos, ao
fundo das prateleiras.
Book é único que está na livraria há mais tempo do que Henry.
Ele tem trabalhado lá durante os últimos cinco anos, tendo começado quando ainda era
estudante de Teologia. De início, era apenas um emprego temporário, uma forma de
complementar a bolsa universitária, mas depois os estudos desapareceram, e a loja permaneceu.
Henry sabe que provavelmente devia arranjar outro emprego, porque o ordenado é péssimo e tem
21 anos de ensino formal e dispendioso, e, depois, claro que há a voz do seu irmão David, que
soa exatamente como a voz do pai, a perguntar-lhe calmamente onde aquele emprego o leva, se é
realmente assim que pensa passar o resto da vida. Mas Henry não sabe que mais fazer e não se
consegue convencer a sair dali; é a única coisa em que ainda não falhou.
E a verdade é que Henry gosta da loja. Gosta do cheiro dos livros e do seu peso firme, nas
prateleiras, da presença de títulos antigos, da chegada de outros novos e do facto de, numa cidade
como Nova Iorque, haver sempre leitores. Bea insiste que todas as pessoas que trabalham numa
livraria querem ser escritores, mas Henry nunca se imaginou como romancista. Claro que tentou
escrever coisas, mas nunca resulta.
Não consegue encontrar as palavras, a história, a voz. Não consegue imaginar o que poderia
eventualmente acrescentar a tantas prateleiras.
Henry prefere ser guardador de histórias a contador de histórias.
Apaga as luzes e pega no bilhete e no casaco, dirigindo-se ao espetáculo de Robbie.
Henry não teve tempo para mudar de roupa.
O espetáculo começa às sete, e The Last Word fechou às seis. Seja como for, não tem a
certeza da indumentária recomendada para um espetáculo off-offBroadway sobre fadas, na
Bowery, por isso continua de calças de ganga escuras e camisola andrajosa. É aquilo a que Bea
gosta de chamar «chique bibliotecário», apesar de não trabalhar numa biblioteca, um facto que
ela parece não alcançar. Bea, por outro lado, parece dolorosamente na moda, como sempre,
envergando um blazer branco com as mangas enroladas até aos cotovelos, argolas de prata finas
nos dedos e a brilharem-lhe nas orelhas, rastas largas enroladas numa coroa no alto da cabeça.
Henry pergunta-se, enquanto esperam na fila, se as pessoas têm estilo naturalmente ou apenas
disciplina para cuidarem de si todos os dias.
Avançam, apresentando os bilhetes à porta.
A peça é uma daquelas misturadas estranhas entre teatro e dança moderna que só existem
num lugar como Nova Iorque. De acordo com Robbie, inspira-se vagamente em Sonho de Uma
Noite de Verão, depois de suavizada a cadência de Shakespeare e de acentuada a saturação.
Bea dá-lhe uma palmada nas costas.
— Viste como ela olhou para ti?
Ele pestaneja.
— O quê? Quem?
Bea revira os olhos.
— És um caso completamente perdido.
O átrio à sua volta encontra-se numa grande animação, e deambulam por entre a multidão
quando outra pessoa agarra o braço de Henry. Uma rapariga, envergando um vestido boémio
esfarrapado, com tinta verde a florescer como hera abstrata nas têmporas e nas faces, o que a
destaca como uma das atrizes do espetáculo. Viu os mesmos vestígios na pele de Robbie dezenas
de vezes nas últimas semanas.
A rapariga traz um pincel e uma taça com tinta dourada.
— Não estás decorado — diz com sinceridade sóbria, e, antes de pensar sequer em impedi-la,
salpica-lhe as bochechas com pó dourado, o toque do pincel leve como uma pena. Àquela
distância, consegue ver a cintilação suave nos olhos da rapariga.
Henry sobe o queixo.
— Como estou? — pergunta, fingindo um ar de modelo, e, apesar de estar a brincar, a
rapariga exibe um sorriso sentido e responde:
— Perfeito.
É percorrido por um arrepio ao ouvir aquela palavra, e, de repente, está noutro lugar, com
uma mão a segurar a sua, no escuro, um polegar a aflorar-lhe a face. Mas afasta o pensamento.
Bea deixa que a rapariga lhe pinte uma risca ao longo nariz, uma mancha dourada no queixo,
consegue entrar num jogo de sedução durante uns bons trinta segundos, até que as campainhas
tilintam pelo átrio, e a fada artística desaparece de novo por entre a multidão, enquanto os dois
avançam para a porta da sala de espetáculos.
Henry dá o braço a Bea.
— Não achas que sou perfeito, pois não?
Ela ri-se, num ronco ligeiro.
— Deus, não.
E ele sorri, a contragosto, enquanto outro ator, um homem de pele escura com as faces
pintadas de rosa-dourado, lhes entrega um ramo com as folhas demasiado verdes para ser
verdadeiro. O seu olhar demora-se em Henry, bondoso e triste e brilhante.
Apresentam os bilhetes a uma senhora — uma mulher idosa, de cabelos brancos, com menos
de um metro e cinquenta —, e esta agarra-se ao braço de Henry para se equilibrar enquanto lhes
indica a sua fila. Dá-lhe umas palmadinhas no cotovelo quando os deixa, murmurando «Que
lindo rapazinho», enquanto percorre o corredor em passos hesitantes.
Henry olha para o número no bilhete, e avançam de lado até aos seus lugares, um grupo de
três, quase a meio da fila. Henry senta-se, com Bea de um dos lados, o lugar vazio do outro. O
lugar reservado para Tabitha, porque, como é evidente, compraram os bilhetes há meses, quando
ainda estavam juntos, quando tudo era um plural em vez de um singular.
Uma dor incómoda enche o peito de Henry, e este deseja ter dado dez dólares por uma
bebida.
As luzes apagam-se, e a cortina sobe num reino de luzes fluorescentes e aço pintado a spray,
e Robbie está no meio de tudo, recostado num trono, numa pose de puro rei maléfico.
O cabelo ondula numa vaga elevada, com fios de roxo e dourado a esculpirem as linhas do
seu rosto em algo espantoso e estranho. E, quando sorri, é fácil lembrar como Henry se
apaixonou, quando tinham 19 anos, um emaranhado de luxúria e solidão e sonhos remotos. E,
quando Robbie fala, a sua voz é de cristal, refletindo-se pela sala de espetáculos.
— Esta — diz — é uma história de deuses.
O palco enche-se de atores, a música começa, e, por algum tempo, é fácil. Por algum tempo, o
mundo desaba, e tudo aquieta à sua volta, e Henry desaparece.

Mais para o fim da peça, há uma cena que se fixará na mente de Henry, exposta como luz
numa película.
Robbie, o rei da Bowery, ergue-se do seu trono enquanto a chuva cai numa cortina única, pelo
palco, e, embora, instantes antes, este estivesse apinhado de gente, agora, subitamente, apenas
Robbie se encontra ali. Este estende o braço, com a mão a aflorar a cortina de chuva, e esta
afasta-se em torno dos seus dedos, do seu pulso, do seu braço, enquanto Robbie avança,
centímetro a centímetro, até que todo o seu corpo se encontre por baixo da vaga.
Inclina a cabeça para trás, com a chuva a lavar ouro e purpurinas da pele, a alisar a onda
perfeita de caracóis contra o seu crânio, a apagar todos os vestígios de magia, a devolvê-lo, de
príncipe arrogante e lânguido, a rapaz; mortal, vulnerável, só.
As luzes apagam-se, e, por um longo momento, o único som na sala é o da chuva, a esbater-se
de parede sólida até ao ritmo regular de um aguaceiro e, depois, ao matraquear suave de gotas
sobre o palco.
E depois, finalmente, nada.
As luzes acendem-se, o elenco ocupa o palco, e toda a gente aplaude.
Bea aclama com entusiasmo e olha para Henry, com a alegria a escoar-se-lhe do rosto.
— O que se passa? — pergunta. — Pareces prestes a desmaiar.
Engole em seco, abana a cabeça.
Tem a mão a latejar e, quando olha para baixo, viu que cravou as unhas na cicatriz ao longo
da palma, desenhando uma linha fresca de sangue.
— Henry?
— Estou bem — diz, limpando a mão ao assento de veludo. — Foi só... Foi bom.
Levanta-se e segue Bea até à saída.
A multidão reduz-se até ser fundamentalmente constituída por amigos e família, à espera de
que os atores voltem a aparecer. Mas Henry sente os olhos, a atenção desviar-se como uma
corrente. Para onde quer que olhe, encontra um rosto amigável, um sorriso caloroso, e por vezes
mais.
Finalmente, Robbie aparece de rompante no átrio e lança os braços em volta de ambos.
— Os meus fãs extremosos! — diz, numa entoação cantarolada de ator.
Henry ri-se, num ronco, e Bea entrega-lhe uma rosa de chocolate, uma velha piada privada
desde que Robbie um dia se queixara por ter de escolher entre chocolates e flores, e Bea
lembrara que era Dia de São Valentim e que, para os espetáculos, as flores eram típicas. Mas
Robbie disse que não eram típicas, perguntando, além disso, como faria se tivesse fome.
— Estiveste maravilhoso — diz Henry, e é verdade. Robbie é maravilhoso, sempre foi
maravilhoso. A combinação de dança, música e teatro significaria arranjar trabalho em Nova
Iorque. Ainda se encontra a algumas ruas da Broadway, mas Henry não tem dúvidas de que há
de lá chegar.
Passa a mão pelo cabelo de Robbie.
Quando está seco, é da cor de açúcar caramelizado, um tom brônzeo algures entre o castanho
e o vermelho, dependendo da luz. Mas agora ainda está molhado da cena final e, por um
segundo, Robbie concentra-se no toque, apoiando o peso da cabeça na mão de Henry. O peito
aperta-se, e tem de se lembrar de que o seu coração não é real, já não.
Henry dá palmadinhas nas costas do amigo, e Robbie endireita-se, como que ressuscitado,
renovado. Ergue a rosa no ar, como um testemunho, e anuncia:
— E agora, vamos à festa!

Henry costumava pensar que as after-parties eram apenas para os últimos espetáculos, uma
forma de o elenco se despedir, mas, entretanto, aprendeu que, para a malta do teatro, cada
representação é um pretexto para celebrar. Para descer das nuvens ou, no caso do grupo de
Robbie, para prolongar essa sensação.
É quase meia-noite, e estão apinhados num terceiro andar sem elevador do SoHo, com as
luzes apagadas e a playlist de alguém a tocar através de duas colunas de sons sem fios. O elenco
desloca-se pelo centro como uma veia, de rostos ainda pintados, mas já sem os fatos, presos entre
as suas personagens de palco e os seus eus fora de cena.
Henry bebe uma cerveja morna e esfrega o polegar pela cicatriz da mão, naquilo que se está a
transformar rapidamente num hábito.
Por algum tempo, tinha Bea para lhe fazer companhia.
Bea, que prefere claramente jantares festivos a festas de teatro, marcadores e lugares sentados
a copos de plástico e deixas gritadas sobre aparelhagens de som. Uma companheira queixosa,
encolhida num canto com Henry, a estudar a tapeçaria de atores, como se estivessem num dos
seus livros de história de arte. Mas depois outro duende da Bowery arrastou-a consigo, e Henry
gritou-lhe traidora nas costas, apesar de ficar contente por ver Bea de novo feliz.
Entretanto, Robbie dança no meio da sala, sempre o centro da festa.
Gesticula na direção de Henry para que se junte a ele, mas Henry abana a cabeça, ignorando a
atração, o arrastar fácil da gravidade, os braços abertos, à espera, no fim da queda. No seu pior
momento, formaram um casal perfeito, com divergências meramente gravitacionais. Robbie, que
sempre conseguiu manter-se de pé, enquanto Henry se despenhava.
— Olá, jeitoso.
Henry vira-se, olhando por cima da bebida, e vê uma das personagens principais do
espetáculo, uma rapariga espantosa com uns lábios vermelho-ferrugem e uma coroa de lírios
brancos, com as purpurinas douradas das faces estampadas de modo a parecerem um grafiti.
Olha para ele com um desejo tão aberto que se deveria sentir desejado, deveria sentir algo mais
do que triste, só, perdido.
— Bebe comigo.
Os seus olhos azuis brilham enquanto exibe uma pequena bandeja, dois shots com algo
pequeno e branco a dissolver-se no fundo. Henry pensa em todas as histórias sobre aceitar
comida e bebida das fadas, mesmo quando estende a mão para o corpo. Bebe, e a primeira coisa
que sente é a doçura, o ardor suave da tequila, mas depois o mundo começa a desfiar-se um
pouco nas extremidades.
Quer sentir-se mais leve, sentir-se mais claro, mas a sala escurece, e sente uma tempestade
ganhar terreno.
Tinha 12 anos quando a primeira se aproximou. Não a viu chegar. Um dia, o céu estava azul,
no dia seguinte, as nuvens eram baixas e densas e, no outro, o vento levantou-se e a chuva caía a
cântaros.
Passar-se-iam anos até Henry aprender a pensar nesses tempos sombrios como tempestades, a
acreditar que passariam, se conseguisse simplesmente aguentar-se o tempo suficiente.
Claro que os pais tinham boas intenções, mas diziam-se sempre coisas como Anima-te ou Vai
melhorar ou, pior, Não é assim tão mau, o que é fácil de dizer quando nunca se conheceu um dia
de chuva. O irmão mais velho de Henry, David, é médico, mas continua sem conseguir perceber.
A irmã, Muriel, diz que entende, que todos os artistas sofrem as suas tempestades, até lhe
oferecer um comprimido da caixa de rebuçados que guarda na mala. Os seus chapelinhos de
chuva cor-de-rosa, como lhes chama, a combinar com a metáfora dele; como se se tratasse
apenas de um trocadilho inteligente e não a única forma de Henry os conseguir fazer
compreender como é estar dentro da sua cabeça.
É apenas uma tempestade, volta a pensar, mesmo quando se afasta do local e dá uma desculpa
qualquer sobre ir lá fora apanhar ar. Na festa está demasiado calor, e quer estar lá fora, quer ir até
ao terraço, olhar para cima e ver que não está mau tempo, apenas estrelas, mas, claro, não há
estrelas, pelo menos no SoHo.
Percorre metade do caminho até ao patamar e para, lembrando-se do espetáculo, da visão de
Robbie à chuva, e estremece, decidindo descer em vez de subir, decidindo ir para casa.
E está quase à porta quando ela lhe agarra a mão. A rapariga com hera a serpentear-lhe pela
pele.
A que o pintou de dourado.
— És tu — diz ela.
— És tu — diz ele.
A rapariga estende uma mão e limpa uma mancha dourada do rosto de Henry, e o contacto é
como um choque de eletricidade estática, uma centelha de energia no ponto em que pele encontra
pele.
— Não vás — diz ela, e ainda está a tentar pensar no que há de dizer a seguir quando ela o
puxa para perto e ele a beija, depressa, à procura, e se afasta, quando a ouve ofegar.
— Desculpa — diz ele, uma palavra automática, como por favor, como obrigado, como estou
bem.
Mas ela estende o braço e pega numa mão-cheia dos seus caracóis.
— Porquê? — pergunta ela, puxando-lhe a boca de volta à sua.
— Tens a certeza? — murmura ele, apesar de saber o que ela dirá, porque já viu a luz nos
seus olhos, as nuvens claras a varrerem-lhe a visão. — É isto que queres?
Ele quer a verdade — mas não há verdade para si, já não, e a rapariga limita-se a sorrir e
empurra-o contra a porta mais próxima, encostando-se a ele.
— É — diz — exatamente o que quero.
E logo de seguida estão num dos quartos, com a porta a fechar-se num estalido e a abafar os
ruídos da festa, do outro lado da parede, e a boca dela está sobre a dele, e ele agora não lhe
consegue ver os olhos no escuro, por isso é fácil acreditar que é real.
E, por algum tempo, Henry desaparece.
Nova Iorque
12 de março de 2014

Addie dirige-se à parte alta da cidade, enquanto lê A Odisseia à luz dos candeeiros de rua.
Passou-se algum tempo desde que leu alguma coisa em grego, mas a cadência poética da epopeia
devolve-a ao ritmo da língua antiga, e, quando a Baxter se torna visível, está meio perdida na
imagem do barco, no mar, ansiando por um copo de vinho e por um banho quente.
E condenada a não ter nenhum deles.
O seu sentido de oportunidade é ou muito bom ou muito mau, dependendo da forma como se
encare, porque Addie dobra na esquina para a Fifty-sixth no momento exato em que um
automóvel desportivo preto estaciona em frente à Baxter e James St. Clair sai para o passeio.
Está de volta das filmagens, bronzeado e aparentemente feliz, envergando um par de óculos
escuros apesar do facto de ser noite escura. Addie abranda e para, fica suspensa na rua enquanto
o porteiro o ajuda a tirar as malas e a levá-las para dentro.
— Raios — murmura baixinho ao ver o serão desaparecer. Nada de banhos de espuma, nada
de garrafas de Merlot.
Suspira e recua até ao cruzamento, tentando decidir o que fazer a seguir.
À sua esquerda, Central Park alonga-se como um pano verde-escuro no centro da cidade.
À direita, Manhattan ergue-se em linhas irregulares, quarteirão após quarteirão de edifícios
apinhados de Midtown até ao Bairro Financeiro.
Vira à direita, avançando para East Village.
O estômago começa a roncar, e, na Second, tem um vislumbre de jantar. Um jovem de
bicicleta desmonta no passeio, retira uma encomenda de uma caixa fechada atrás do assento e
entra no edifício com o saco de plástico. Addie aproxima-se da bicicleta e enfia a mão dentro da
caixa. É comida chinesa, adivinha, a julgar pelo tamanho e pela forma dos recipientes, com as
extremidades de papel dobradas e presas com pegas de metal fino. Retira uma caixa de cartão e
um par de pauzinhos descartáveis e vai-se embora antes que o homem à porta tenha chegado a
pagar.
Houve um tempo em que se sentia culpada por roubar.
Mas a culpa, como tantas coisas, esbateu-se, e embora não vá morrer à fome, esta ainda a
incomoda como se pudesse acontecer.
Addie avança até à Avenue C, enfiando lo mein na boca enquanto as pernas a levam pelo
Village, rumo a um edifício de tijolo com uma porta verde. Deita a caixa de papel vazia num
contentor de esquina e chega à entrada do prédio no preciso momento em que um homem sai.
Sorri para ele, ele sorri-lhe de volta e segura a porta.
Lá dentro, sobe os quatro lanços de escadas estreitos até uma porta de aço, lá em cima, passa
a mão por cima da ombreira e procura a pequena chave prateada pelo caixilho empoeirado,
descoberta no outono anterior, quando ela e uma amante chegaram a casa aos tropeções,
transformadas num emaranhado de membros, nas escadas. Os lábios de Sam comprimidos contra
a parte de baixo do maxilar, dedos manchados de tinta a deslizar abaixo da cintura das calças de
ganga de Addie.
Para Sam, foi um momento raro de impulsividade.
Para Addie, o segundo mês de um caso.
Um caso escaldante, decerto, mas apenas porque o tempo é um luxo que não pode comportar.
Claro que sonha com manhãs ensonadas em torno de um café, com pernas estendidas por cima
de um colo, com piadas privadas e riso fácil, mas esses confortos vêm com o conhecimento. Não
existe lugar para a construção lenta, para a luxúria tranquila, para a intimidade alimentada ao
longo de dias, semanas, meses. Pelo menos para elas. Por isso, anseia pelas manhãs, mas
contenta-se com as noites, e se não pode ser amor, bom, então, pelo menos, não haverá solidão.
Os dedos fecham-se à volta da chave, com o metal a raspar suavemente quando a arrasta do
seu esconderijo. São precisas três tentativas para abrir a fechadura velha e enferrujada, tal como
aconteceu naquela primeira noite, mas depois a porta abre-se de par em par, e sai para o terraço
do edifício. Levanta-se uma brisa, e enfia as mãos no bolso do casaco de cabedal ao atravessar o
terraço.
Está vazio, à exceção de três espreguiçadeiras, cada uma delas imperfeita à sua maneira —
assentos deformados, encravadas em diferentes pontos de reclinação, um braço pendurado num
canto partido. Um frigorífico manchado encontra-se por perto, e um fio de luzes feéricas pende
entre dois postes de um estendal, transformando o terraço num oásis miserável, desgastado pelo
tempo. Lá em cima tudo está tranquilo — não silencioso, isso é algo que ainda terá de encontrar
numa cidade, algo que começa a pensar estar perdido no meio das ervas do velho mundo —, mas
o mais tranquilo possível nesta zona de Manhattan. E, no entanto, não é o mesmo tipo de
tranquilidade que a sufoca em casa de James, não a tranquilidade vazia e interior dos espaços
demasiado grandes para uma pessoa. É uma tranquilidade viva, cheia de gritos distantes e de
buzinadelas de carros e de baixos de aparelhagens reduzidos a uma estática ambiente.
Um muro baixo de tijolo rodeia o terraço, e Addie permite-se encostar-se a ele, para diante,
pousando os cotovelos e olhando para fora até que o edifício desaparece e só consegue ver as
luzes de Manhattan, a desenhar formas contra o vasto céu sem estrelas.
Addie tem saudades das estrelas.
Conheceu um rapaz, em 65, e, quando lhe disse isso, ele levou-a de carro até aos arredores de
Los Angeles, a uma hora de caminho, só para as ver. Como o seu rosto brilhou de orgulho
quando estacionou no meio da escuridão e apontou para cima! Addie inclinou a cabeça e olhou
para a escassa oferta, os poucos pontos de luz espalhados pelo céu, e sentiu algo nas entranhas.
Uma tristeza pesada, como perda. E, pela primeira vez num século, teve saudades por Villon. De
casa. De um lugar onde as estrelas eram tão brilhantes que formavam um rio, uma corrente de
luz prateada e roxa contra a escuridão.
Agora olha para cima, sobre os telhados, e pergunta-se se, depois de todo este tempo, a
escuridão ainda se encontra à espreita. Apesar de se ter passado tanto tempo. Apesar de lhe ter
dito uma vez que não acompanhava todas as vidas, de ter referido que o mundo era grande e
estava cheio de almas e que tinha mais com que se preocupar do que com os pensamentos dela.
A porta do terraço abre-se atrás dela, e uma mão-cheia de pessoas saem aos tropeções.
Dois rapazes. Duas raparigas.
E Sam.
Envergando uma camisola branca e umas calças de ganga cinzento-claras, o seu corpo como
uma pincelada, longo e esguio e claro contra o pano de fundo do terraço às escuras. O cabelo
dela agora está mais comprido, caracóis louros revoltos a saltarem de um rabo-de-cavalo
despenteado. Manchas de tinta vermelha salpicam-lhe os antebraços no ponto em que as mangas
estão enroladas para cima, e Addie pergunta-se, quase de forma ausente, em que andará a
trabalhar. É pintora. Quadros abstratos, principalmente. O seu nome, rápido e fácil, apenas
Samantha, na obra acabada ou desenhado na linha de umas costas, a meio da noite.
Os outros quatro andam pelo terraço numa algazarra, um dos rapazes a meio de uma história,
mas Sam deixa-se ficar para trás, com a cabeça inclinada para saborear o ar fresco da noite, e
Addie deseja ter outro sítio para onde olhar. Uma âncora para a impedir de cair na gravidade
fácil da órbita da outra rapariga.
E claro que tem uma.
A Odisseia.
Addie está prestes a enterrar os olhos no livro, quando os olhos azuis de Sam descem do céu e
encontram os dela. A pintora sorri, e, por um instante, é outra vez agosto, e riem-se enquanto
bebem cervejas na esplanada de um bar, com Addie a afastar o cabelo do pescoço para acalmar a
intensidade do calor de verão. Sam a aproximar-se para lhe soprar sobre a pele. É setembro, e
estão na sua cama por fazer, de dedos enredados nos lençóis e uns nos outros, enquanto a boca de
Addie procura o calor escuro entre as pernas de Sam.
O coração de Addie martela-lhe no peito quando a rapariga se afasta do grupo e se aproxima
dela descontraidamente.
— Desculpa termos dado cabo do teu sossego.
— Oh, não faz mal — diz Addie, obrigando-se a olhar para o horizonte, como se estivesse a
estudar a cidade, embora Sam sempre a tivesse feito sentir-se como um girassol, voltando-se
inconscientemente para a luz da outra rapariga.
— Hoje em dia, toda a gente olha para baixo — reflete Sam. — É bom ver alguém a olhar
para cima.
O tempo desliza. Foi a mesma coisa que Sam disse da primeira vez que se cruzaram. E da
sexta. E da décima. Mas não é apenas uma deixa. Sam tem uma visão de artista, presente,
inquisitiva, o tipo de olhar que estuda o seu tema e vê mais do que formas.
Addie vira-se, espera pelo som de passos a recuar, mas, em vez disso, ouve o estalido de um
isqueiro, e logo depois Sam está ao seu lado, com um caracol louro-branco a dançar no limite do
seu campo de visão. Cede, lança uma olhadela.
— Posso roubar um desses? — pergunta, acenando com a cabeça para o cigarro.
Sam sorri.
— Podes. Mas não precisas de o fazer. — Tira outro do maço e dá-lho, juntamente com um
isqueiro azul-fluorescente. Addie pega neles, enfia o cigarro entre os lábios e arrasta o polegar
pela roda de ignição do isqueiro. Felizmente, a brisa corre, e tem uma desculpa, ao ver a chama
apagar-se.
Apagar-se. Apagar-se. Apagar-se.
— Dá cá.
Sam aproxima-se, com o ombro a aflorar o de Addie ao chegar-se mais perto para bloquear o
vento. Cheira às bolachas com pepitas de chocolate que o vizinho faz sempre que está mais
enervado, ao sabonete de alfazema que usa para tirar a tinta dos dedos, ao amaciador de coco que
aplica nos caracóis durante a noite.
Addie nunca gostou do sabor a tabaco, mas o fumo aquece-lhe o peito e dá-lhe algo para fazer
com as mãos, algo em que se concentrar além de Sam. Estão muito perto, com as exalações a
enevoarem o mesmo espaço de ar, e então Sam estende uma mão e toca numa das sardas da face
direita de Addie, como fez da primeira vez que se cruzaram, um gesto tão simples e, no entanto,
tão íntimo.
— Tens estrelas — diz, e o peito de Addie aperta-se, contorce-se de novo.
Déjà vu. Déjà su. Déjà vécu.
Tem de conter o impulso de se aproximar mais, de passar a palma da mão pela curvatura
longa do pescoço de Sam, de a deixar pousada contra a nuca, onde Addie sabe que encaixa tão
bem. Ficam em silêncio, a soltar nuvens de fumo claro, os outros quatro a rir e a gritar atrás
delas, até que um dos tipos — Eric? Aaron? — chama Sam, e, de um momento para o outro, ela
esgueira-se, percorre o terraço de volta. Addie contém o impulso de prender, em vez de soltar —
mais uma vez.
Mas fá-lo.
Inclina-se contra o muro de tijolo e ouve-os falar, sobre a vida, sobre envelhecer, sobre listas
de desejos e más decisões, e então uma das raparigas diz:
— Bolas, vamos chegar atrasados.
E, de um momento para o outro, as cervejas são acabadas, os cigarros apagados, e o grupo
volta a dirigir-se para a porta do terraço, com os cinco a recuarem, como uma maré.
Sam é a última a sair.
Abranda, olha por cima do ombro, lançando um último sorriso a Addie antes de entrar, e
Addie sabe que a poderia apanhar se corresse, que poderia chegar antes de a porta se fechar.
Não se mexe.
O metal fecha-se com estrondo.
Addie afunda-se contra o muro de tijolo.
Ser esquecida, segundo ela, é um pouco como enlouquecer. Começamos a perguntar-nos o
que é real, se somos reais. Afinal, como pode algo ser real se não pode ser lembrado? É como
aquele koan zen, sobre a árvore que cai no bosque.
Se ninguém ouvir, terá acontecido?
Se alguém não conseguir deixar uma marca, existirá realmente?
Addie apaga a beata no parapeito de tijolo e volta costas ao perfil da cidade contra o céu.
Avança até às cadeiras partidas e ao frigorífico arrumado entre elas. Encontra uma cerveja
isolada a pairar entre o gelo meio derretido e desenrosca a tampa para a abrir, enterrando-se na
cadeira menos estragada.
Esta noite não está tanto frio, e está demasiado cansada para ir à procura de outra cama. A
cintilação das luzes feéricas é o suficiente para se ver alguma coisa, e Addie alonga-se na
espreguiçadeira e abre A Odisseia e lê sobre terras estranhas e monstros e homens que nunca
mais conseguem chegar a casa, até que o frio a faz adormecer.
Paris, França
9 de agosto de 1714

O calor abate-se sobre Paris como um telhado baixo.


O ar de agosto é pesado, tornando-se ainda mais pesado com extensão de edifícios de pedra, o
cheiro a comida a apodrecer e a dejetos humanos, o número total de corpos a viverem lado a
lado.
Dentro de cento e cinquenta anos, Haussman deixará a sua marca na cidade, erguerá uma
fachada uniforme e pintará os edifícios com a mesma paleta clara, deixando um legado de arte,
de equilíbrio e de beleza.
É o tipo de Paris com que Addie sonhou e que certamente viverá para ver.
Mas, neste momento, os pobres amontoam-se em pilhas esfarrapadas enquanto nobres
vestidos de seda se passeiam pelos jardins. As ruas estão cheias de carroças puxadas por cavalos,
as praças apinhadas de pessoas, e, aqui e ali, pináculos perfuram o tecido de lã que cobre a
cidade. A opulência desfila pelas avenidas e ergue-se com as cúspides de cada palácio e edifício,
ao mesmo tempo que os casebres se aglomeram em ruas estreitas, com as pedras manchadas de
preto da fuligem e do fumo.
Addie está demasiado assombrada para reparar nisso.
Contorna a orla de uma praça, vendo os homens desmontar bancas de mercado e pontapear as
crianças andrajosas que se baixam e ziguezagueiam entre eles, à procura de restos. Enquanto
caminha, a mão desliza para dentro do bolso debruado da saia, para lá do passarinho de madeira,
até às quatro moedas de cobre que encontrou no forro do casaco roubado. Quatro moedas, para
arranjar uma vida.
Está a fazer-se tarde, e ameaça chover, e tem de descobrir um sítio para dormir. Deveria ser
fácil — ao que parece, existe uma estalagem em cada rua —, mas, mal passa da entrada da
primeira, quando é rechaçada.
— Isto não é nenhum bordel — censura o dono, lançando um olhar fulminante.
— E eu não sou nenhuma meretriz — responde, mas ele limita-se a escarnecer e estala os
dedos, como se estivesse a eliminar algum resíduo indesejado.
A segunda casa está cheia, a terceira é demasiado cara, a quarta só recebe homens. Quando
entra pela porta da quinta, o sol já se pôs, e o seu ânimo afundou-se com ele, e já está preparada
para a censura, para uma desculpa quanto ao motivo de não ser digna de permanecer portas
adentro.
Mas não é recusada.
Uma mulher mais velha recebe-a à entrada, magra e dura, com um nariz adunco e os olhos
pequenos e acutilantes de um falcão. Lança uma olhadela a Addie e condu-la pelo átrio. Os
quartos são pequenos e lúgubres, mas têm paredes e portas, uma janela e uma cama.
— Pagamento de uma semana — exige a mulher —, adiantado.
O coração de Addie afunda-se. Uma semana parece um período de tempo impossível, quando
as memórias só parecem durar um instante, uma hora, um dia.
— Então? — irrompe a mulher.
A mão de Addie fecha-se sobre as moedas de cobre. Tem o cuidado de retirar apenas três, e a
mulher surripia-as rapidamente como um corvo a roubar côdeas de pão. Desaparecem dentro da
bolsa que traz à cintura.
— Pode passar-me um recibo? — pergunta Addie. — Uma prova, para mostrar que paguei?
A mulher escarnece, claramente insultada.
— O meu negócio é honesto.
— Com certeza que sim — gagueja Addie —, mas tem tantos quartos para cuidar. Seria fácil
esquecer aqueles que...
— Tenho esta estalagem há trinta e quatro anos — interrompe — e nunca me esqueci de uma
cara.
É uma piada cruel, pensa Addie, enquanto a mulher vira costas e se afasta apressadamente,
deixando-a com o seu quarto arrendado.
Pagou por uma semana, mas sabe que terá sorte se gozar de apenas um dia. Sabe que de
manhã será expulsa, ficando a dona três coroas mais rica, ao passo que ela irá para a rua.
Uma pequena chave de bronze descansa na fechadura, e Addie roda-a, saboreia o som sólido,
como uma pedra que se deixou cair num regato. Não tem pertences para arrumar, nenhuma muda
de roupa; despe o casaco de viagem, retira o passarinho de madeira da algibeira da saia e pousa-o
no parapeito da janela. Um talismã contra a escuridão.
Olha para fora, esperando ver os grandiosos telhados de Paris e os seus edifícios
deslumbrantes, os pináculos elevados ou pelo menos o Sena. Mas afastou-se demasiado do rio, e
a janelinha dá apenas para uma viela estreita e para a parede de pedra de outra casa que poderia
estar em qualquer lugar.
O pai de Addie contou-lhe muitas histórias de Paris. Fez a cidade parecer um lugar glamoroso
e opulento, cheio de magia e de sonhos à espera de serem revelados. Agora pergunta-se se a
chegou a ver ou se a cidade não passava de um nome, um cenário fácil para príncipes e
cavaleiros, aventureiros e rainhas.
Essas histórias esvaíram-se juntas, na sua mente, tornaram-se mais uma paleta do que um
quadro, um tom. Talvez a cidade fosse menos esplendida. Talvez houvesse sombras misturadas
com a luz.
Está uma noite cinzenta e húmida, os sons de mercadores e de carroças puxadas por cavalos
abafados pela chuva suave que começa a cair, e Addie enrola-se na cama estreita e tenta dormir.
Pensou que teria pelo menos a noite, mas a chuva nem sequer parou, a escuridão mal se
instalou, quando a mulher bate à porta e uma chave é inserida na fechadura e o quarto minúsculo
fica mergulhado em barulho. Mãos ásperas arrastam Addie da cama. Um homem agarra-a pelo
braço enquanto uma mulher rosna e diz:
— Quem te deixou entrar?
Addie debate-se para dissipar os restos de sono.
— A senhora — diz, desejando que a mulher tivesse engolido o seu orgulho e lhe tivesse
dado um recibo, mas Addie só tem a chave e, antes de a poder mostrar, a mão ossuda da mulher
atinge-a com força na face.
— Não mintas, rapariga — diz, aspirando o ar pelos dentes. — Isto não é um lar da
beneficência.
— Eu paguei — disse Addie, levando a palma da mão em concha à face, mas não vale a pena.
As três moedas na bolsa que a mulher traz à cintura não servirão de prova. — Falámos, as duas.
Disse que tinha esta estalagem há trinta e quatro anos...
Por um instante, a incerteza lampeja pelo rosto da mulher. Mas é demasiado rápida,
demasiado fugidia. Addie, um dia, aprenderá a pedir segredos, pormenores que apenas um amigo
ou alguém íntimo saberia, mas nem assim isso lhe ganhará sempre o seu favor. Chamar-lhe-ão
trapaceira, bruxa, espírita e louca. Será expulsa por várias razões diferentes, quando, na verdade,
há apenas uma. Não se lembram.
— Fora — ordena a mulher, e Addie mal tem tempo de pegar no casaco antes de ser obrigada
a sair do quarto. Enquanto percorre o corredor, lembra-se do passarinho ainda pousado no
parapeito e tenta soltar-se, para o ir buscar, mas a mão do homem é firme.
É atirada para a rua, a tremer da violência súbita de toda a cena, tendo como único consolo o
facto de, antes de a porta se ter fechado, o passarinho de madeira também ter sido arremessado
para fora. Aterra no empedrado, junto a ela, com uma asa partida pela força.
No entanto, desta vez, a ave não recupera o estado original.
Fica ali, ao seu lado, com um pedaço de madeira lascado como uma pena caída, enquanto a
mulher volta a desaparecer dentro de casa. E Addie sufoca o terrível impulso de rir, não do
humor, mas da loucura, do absurdo, do desfecho inevitável da sua noite.
É muito tarde, ou muito cedo, com a cidade aquietada e o céu de um cinzento enevoado e
escorregadio da chuva, mas sabe que a escuridão está à espreita quando retira a peça e a enfia no
bolso com a última moeda de cobre. Levanta-se, puxando o casaco para lhe envolver bem os
ombros, com a bainha das saias já húmida.
Exausta, Addie avança pela rua estreita e abriga-se por baixo da estrutura de madeira de um
toldo, afundando-se na saliência de pedra entre edifícios para esperar pela madrugada.
Entra num sono quase febril e sente a mão da mãe contra a testa, a subida e descida suave da
sua voz enquanto canta baixinho, ajeitando um cobertor sobre os ombros de Addie. E sabe que
deve estar doente; foi a única vez que viu a mãe ser carinhosa. Addie fica ali, a agarrar-se com
pressa à memória, mesmo enquanto esta se esbate, com o entrechocar duro de cascos e o estirão
das carroças de madeira a apossarem-se da canção murmurada pela mãe, enterrando-a, nota a
nota, até sair daquela névoa.
Tem as saias rígidas da sujidade, manchadas e engelhadas do sono breve, mas irrequieto. A
chuva parou, mas a cidade parece apenas tão suja como quando ali chegou.
Na sua aldeia, um bom aguaceiro lavaria o mundo, deixá-lo-ia límpido e renovado.
Mas parece que nada pode limpar a sujidade das ruas de Paris.
No máximo, esta chuvada não fez mais do que piorar as coisas, deixando o mundo molhado e
apagado, os charcos castanhos de lama e imundície.
E então, por entre a porcaria, sente o cheiro de algo doce.
Segue o aroma até encontrar um mercado em pleno funcionamento, com os vendedores a
gritarem preços de mesas e bancas, as galinhas ainda a cacarejarem enquanto são arrastadas da
parte de trás das carroças.
Addie está esfomeada, nem sequer se consegue lembrar da última vez que comeu. O vestido
não lhe serve, mas nunca serviu — roubou-o de um estendal dois dias antes de chegar a Paris,
farta daquele que usara no dia do seu casamento. Ainda assim, agora também não lhe está mais
largo, apesar dos dias sem comer e beber. Calcula que não precise de comer, que não morrerá de
fome — mas não vale a pena dizê-lo ao estômago em contorção, às pernas a tremer.
Varre a praça azafamada com os olhos, toca na última moeda que tem no bolso, relutante em
gastá-la. Talvez não precise de o fazer. Com tantas pessoas no mercado, seria fácil roubar aquilo
de que precisa. Ou pelo menos é o que pensa, mas os vendedores de Paris são tão astutos como
os seus ladrões e têm o dobro do cuidado com cada produto. Addie aprende-o da forma mais
difícil; passar-se-ão semanas até conseguir surripiar uma maçã, mais ainda a dominar essa arte
sem se denunciar minimamente.
Hoje, faz um esforço desastrado, tenta levar um pão com sementes da carroça de um padeiro e
é recompensada com uma mão carnuda presa à volta do pulso.
— Ladra!
Tem um vislumbre de homens armados a atravessarem a multidão e é acometida pelo medo
de ir parar a uma cela ou para o cepo. Por enquanto, é de carne e osso, ainda não aprendeu a abrir
fechaduras ou a seduzir homens para escapar a acusações, a soltar-se de grilhetas com a mesma
facilidade com que o seu rosto desaparece das suas mentes.
Por isso apressa-se a implorar, entregando a sua última moeda.
Ele tira-lha, faz sinal aos homens para se irem embora, enquanto a moeda desaparece dentro
da sua bolsa. Demasiado por um pão, mas não lhe dá mais nada em troca. É a paga, diz, por
tentar roubar.
— Tens sorte de não te ficar com os dedos — rosna, empurrando-a.
E assim está Addie em Paris, com um pedaço de pão e um passarinho partido, nada mais.
Apressa-se a sair do mercado, abrandando quando chega à margem do Sena. E então,
ofegante, atira-se ao pão, tenta fazê-lo durar, mas, em instantes, despareceu, como uma gota de
água num poço vazio, com a fome mal saciada.
Pensa em Estele.
No ano anterior, a idosa começou a sentir um zunido nos ouvidos.
Está sempre presente, dizia, dia e noite, e, quando Addie lhe perguntou como conseguia
suportar o ruído constante, a velha encolheu os ombros.
— Com o tempo — disse —, é possível habituares-te a qualquer coisa.
Mas Addie acha que nunca se conseguirá habituar àquilo.
Olha para os barcos no rio, para a catedral a erguer-se da cortina de nevoeiro. Vislumbres de
beleza que brilham como pedras preciosas contra a disposição sombria dos blocos, demasiado
distante e regular para ser real.
Fica ali até se aperceber de que está à espera. À espera de que alguém a ajude. De que alguém
apareça e resolva a trapalhada em que se encontra. Mas ninguém virá. Ninguém se lembra, e, se
se limitar a esperar, irá esperar para sempre.
Por isso caminha.
E, enquanto caminha, estuda Paris. Toma nota desta casa, daquela rua, de pontes e de cavalos
a puxarem carruagens e dos portões de um jardim. Avista rosas por trás do muro, beleza nas
fendas.
E demorará anos a aprender os truques desta cidade. A memorizar o mecanismo de
arrondissements, passo a passo, a mapear a rota de cada vendedor, loja e rua. A estudar os
matizes dos bairros e a descobrir os baluartes e as fissuras, a aprender a sobreviver e a prosperar,
nos espaços entre as vidas de outras pessoas, a criar um lugar para si entre elas.
Addie acabará por dominar Paris.
Tornar-se-á uma ladra perfeita, impossível de apanhar e rápida.
Esgueirar-se-á por casas requintadas como um fantasma de fili- grana, deslocar-se-á por entre
salões, roubará pelos telhados, de noite, e beberá vinho surripiado sob o céu aberto.
Sorrirá e rirá perante cada vitória roubada.
Fá-lo-á — mas hoje não.
Hoje está simplesmente a tentar distrair-se da sua fome devoradora e do seu medo paralisante.
Hoje está sozinha numa cidade estranha, sem dinheiro e sem passado e sem futuro.
Alguém despeja um balde da janela de um segundo andar, sem avisar, e uma água castanha e
espessa salpica o empedrado, aos seus pés. Addie dá um salto para trás, tentando evitar o pior
dos salpicos, para ir contra duas mulheres bem-vestidas, que olham para ela como se fosse uma
nódoa.
Addie recua, descendo um degrau próximo, mas, mais momentos depois, uma mulher sai e
agita uma vassoura, acusa-a de lhe tentar roubar os clientes.
— Vai para as docas, se queres vender os teus produtos — resmoneia.
E, de início, Addie não sabe ao que a mulher se refere. Tem os bolsos vazios. Não tem nada
para vender. Mas, quando o diz, a mulher lança-lhe um olhar e diz:
— Tens um corpo, não tens?
Cora quando compreende.
— Não sou uma meretriz — diz, e a mulher exibe um sorriso escarninho e frio.
— Ora que belo orgulho — diz, enquanto Addie se levanta e vira costas para se ir embora. —
Pois bem — grita a mulher atrás dela, como um corvo —, esse orgulho não te vai encher a
barriga.
Addie puxa o casaco para mais perto dos ombros e obriga as pernas a avançarem pela rua
fora, sentindo-se como se estivessem prestes a vergar, quando vê a porta de uma igreja aberta.
Não as torres grandiosas e imponentes de Notre Dame, mas um edifício pequeno de pedra,
comprimido entre edifícios, numa rua estreita.
Nunca foi religiosa, pelo menos não como os pais. Sempre se sentiu presa entre os deuses
antigos e os novos — mas algo diabólico no bosque a deixou a pensar. Por cada sombra, deve
haver luz. Talvez a escuridão tenha um oposto, e Addie possa equilibrar o seu desejo. Estele iria
rir-se dela, mas um deus limitou-se a aplicar-lhe uma maldição, por isso a velha não a poderia
censurar por procurar proteção junto de outro.
A porta pesada abre-se ruidosamente, e entra devagar, pestanejando sob a escuridão
inesperada até os olhos se habituarem, e vê os painéis de vitral.
Addie inspira, acometida pela beleza tranquila do espaço, pelo teto abobadado, pela luz
vermelha e azul e verde a pintar formas nas paredes. É uma espécie de arte, pensa, começando a
avançar, quando um homem vai ao seu encontro.
Abre os braços, mas não há sinal de boas-vindas no gesto.
O padre está ali para lhe impedir a passagem. Abana a cabeça à sua chegada.
— Desculpe — diz, convencendo-a a voltar a percorrer o corredor, como uma ave perdida. —
Não temos lugar. Estamos lotados.
Então volta a sair até aos degraus da igreja, com o roçar pesado da tranqueta a ser de novo
puxada, e algures na mente de Addie, Estele começa a rir.
— Estás a ver — diz ela, no seu jeito áspero —, só os deuses novos têm fechaduras.
Addie não chega a decidir ir até às docas.
Os pés escolhem por ela, levam-na ao longo do Sena quando o sol se afunda sobre o rio,
fazem-na descer os degraus, com as botas roubadas a baterem contra as tábuas de madeira.
É mais escuro ali, à sombra das embarcações, uma paisagem de caixas e barricas, cordas e
barcos a baloiçar. Há olhos a seguirem-na. Os homens espreitam por cima do seu trabalho, e as
mulheres olham em frente, instalando-se como gatos na sombra. Têm um ar doente, a cor
demasiado acentuada, as bocas pintadas num golpe violento de vermelho. Os vestidos
esfarrapados e sujos, ainda assim melhores do que o de Addie.
Não decidiu o que vai fazer, nem mesmo quando faz deslizar o casaco dos ombros. Nem
quando um homem a interpela, com uma mão já a apalpar, como se estivesse a avaliar fruta.
— Quanto? — pergunta numa voz abrupta.
E ela não faz ideia de quanto vale um corpo ou se está disposta a vendê-lo.
Não dando resposta, as mãos dele tornam-se mais brutas, o toque mais firme.
— Dez moedas — diz ela, e o homem solta um riso áspero.
— És o quê? Uma princesa.
— Não — responde ela —, sou virgem.
Algumas noites, na aldeia, quando Addie sonhava com prazer, em que invocava o estranho ao
seu lado, na escuridão, sentia os seus lábios contra os seios, imaginava que a mão dela era dele
enquanto a fazia deslizar por entre as pernas.
— Meu amor — dizia o estranho, levando-a para a cama, com os caracóis negros a caírem
sobre uns olhos verdes como pedras preciosas.
— Meu amor — sussurrava ela enquanto ele a penetrava, com o corpo a abrir-se em torno da
sua força sólida. Ele investia mais profundamente, e ela arquejava, mordendo a mão para evitar
suspirar demasiado alto. A mãe diria que o prazer de uma mulher é um pecado mortal, mas
nesses momentos Addie não queria saber. Nesses momentos, havia apenas o desejo e a vontade e
o estranho, a murmurar contra a sua pele à medida que a tensão aprofundava, com o calor a
crescer como uma tempestade no recetáculo das suas ancas. E depois, na sua imaginação,
Adeline puxava o corpo dele contra o seu, arrastando-o para mais fundo, para mais fundo, até
que a tempestade se abatia, e um trovão ribombava através dela.
Mas não era nada como aquilo.
Não há poesia nos grunhidos daquele homem desconhecido, não há melodia ou harmonia,
exceto o som regular da investida enquanto se arremessa contra ela. Nenhum prazer ondulante,
apenas pressão e dor, a compressão forçada de algo dentro de outra coisa, e Addie olha para
cima, para o céu noturno, para não ter de ver o seu corpo mover-se, e sente a escuridão devolver-
lhe o olhar.
Então, os bosques estão ali de novo, e a sua boca na dela, o sangue a gorgolejar nos seus
lábios enquanto sussurra.
— Feito.
O homem termina com uma investida final e deixa-se cair sobre ela, de chumbo, e não pode
ser isto, não pode ser esta a vida pela qual Addie trocou tudo, não pode ser este o futuro que
apagou o seu passado. O pânico apodera-se do seu peito, mas este estranho não parece importar-
se ou sequer reparar. Limita-se a endireitar-se e a lançar uma mão-cheia de moedas para o
empedrado, aos pés dela. Afasta-se, e Addie põe-se de gatas para apanhar a recompensa e, de
seguida, esvazia o estômago no Sena.

Quando lhe perguntam sobre as suas primeiras memórias de Paris, esses terríveis meses, dirá
que foi uma fase de mágoa envolta em névoa. Dirá que não se consegue lembrar.
Mas claro que Addie se lembra.
Lembra-se do fedor a carne podre e a lixo, das águas salobras do Sena, das pessoas nas docas.
Lembra-se de momentos de bondade apagados por uma porta ou por uma madrugada, lembra-se
de ter saudades de casa, com o seu pão fresco e a lareira quente, da melodia silenciosa da família
e do ritmo forte de Estele. Da vida que tinha, daquela de que abdicou pela vida que pensou
desejar, roubada e substituída por esta.
E, no entanto, também se lembra de se maravilhar com a cidade, com a forma como a luz
varria as manhãs e os fins de tarde, com a grandiosidade esculpida entre os blocos em bruto;
como, apesar da sujidade e da mágoa e da deceção, Paris estava cheia de surpresas. Beleza
vislumbrada por entre as fendas.
Addie lembra-se da breve pausa desse primeiro outono, do movimento brilhante das folhas
pelos passeios, de passarem de verde a dourado como a montra de uma joalharia, antes do
mergulho rápido e abrupto no inverno.
Lembra-se do frio a morder-lhe os dedos das mãos e dos pés antes de os engolir inteiros. Do
frio e da fome. Claro que havia meses improdutivos em Villon, quando as vagas de frio
roubavam o resto de uma colheita ou uma geada tardia arruinava uma produção nova — mas este
tipo de fome era diferente. Percorria-a interiormente, arranhava-lhe as costelas com as unhas.
Exauria-a, e, embora Addie saiba que não a pode matar, esse conhecimento não contribui para
anestesiar a dor premente, o medo. Não perdeu um grama de carne, mas o estômago contorce-se,
devorando-se a si mesmo, e, tal como os pés se recusam a criar calo, os seus nervos também se
recusam a aprender. Não há adormecimento, nenhuma da facilidade que decorre do hábito. Esta
dor é sempre nova, frágil e intensa, uma sensação tão aguda como a sua memória.
E também se lembra do pior.
Lembra-se do frio súbito, do gelo brutal que se abateu sobre a cidade e da vaga de
enfermidades que soprou atrás dele como uma brisa de outono tardio, a espalhar pilhas de mortos
e de folhas moribundas. O som e a visão das carroças a chocalharem ao passar, transportando
uma carga sinistra. Addie a virar o rosto, a tentar não olhar para as formas ossudas amontoadas
descuidadamente na parte de trás. Puxa o casaco roubado para mais perto do corpo ao percorrer a
rua aos tropeções e sonha com o calor do verão, enquanto o frio lhe trepa pelos ossos.
Acha que nunca mais vai sentir calor. Foi mais duas vezes até às docas, mas o frio obrigou os
clientes a abrigarem-se no calor dos bordéis, e, à sua volta, a vaga de frio tornou Paris cruel. Os
ricos refugiam-se dentro de suas casas, agarram-se ao lume das suas lareiras, enquanto lá fora,
nas ruas, os pobres são dilacerados pelo inverno. Não há lugar onde se possam esconder dele —
ou, então, os únicos lugares que existem já foram ocupados.
Nesse primeiro ano, Addie está demasiado cansada para lutar por espaço.
Demasiado cansada para procurar abrigo.
É açoitada por mais uma rajada de vento, e Addie dobra-se sobre si mesma, para se proteger
dela, de olhos enevoados. Arrasta-se para o lado, para uma rua estreita, só para fugir à violência
do vento, e a tranquilidade súbita, a paz sem brisa da viela é como uma duna, suave e quente. Os
joelhos vergam. Aninha-se num canto contra uma série de degraus e espanta-se silenciosamente,
sonolentamente, com a sua própria transformação. A sua respiração enche o ar de névoa, à sua
frente, com cada expiração a turvar o mundo exterior até que a cidade cinzenta se esbate em
branco, branco, branco. Estranho como agora parece demorar-se, um pouco mais a cada
respiração, como se estivesse a toldar uma superfície de vidro. Pergunta-se quantas mais
expirações serão necessárias para esconder o mundo. Para o apagar, como ela.
Talvez seja a sua visão a turvar-se.
Não quer saber.
Está cansada.
Está muito cansada.
Addie não consegue permanecer acordada, e porque haveria de tentar?
O sono é uma grande bênção.
Talvez acorde quando for de novo primavera, como a princesa numa das histórias do pai, e dê
consigo deitada na margem relvada junto ao Sarthe, com Estele a dar-lhe toquezinhos com um
sapato usado e a fazer troça dela por estar de novo a sonhar.

É a morte.
Pelo menos, por um instante, Addie pensa que deve ser a morte.
O mundo é negro, o frio incapaz de reter o fedor da putrefação, e não se consegue mexer.
Mas, depois, lembra-se de que não pode morrer. Há o pulsar teimoso do seu coração, a debater-
se para continuar a bombear, e os seus pulmões obstinados, a debaterem-se para se continuar a
encher, e Addie apercebe-se de que os seus membros não estão de todo sem vida, mas tornaram-
se pesados, de todos os lados. Sacas pesadas, por cima, em baixo, e o pânico acomete-a, mas a
mente continua vagarosa de sono. Contorce-se, e as sacas deslocam-se um pouco, em cima dela.
A escuridão abre-se, e uma fenda de luz cinzenta abre passagem.
Addie contorce-se e meneia-se até libertar um braço e depois o outro, aproximando-os do
corpo. Começa a empurrar por entre as sacas e só então sente ossos por baixo do tecido, só então
a sua mão toca numa pele de cera, só então os dedos se enredam nos fios do cabelo de outra
pessoa, e agora está acordada, bem acordada, a trepar, a furar, desesperada por se libertar.
Sobe usando as unhas como garras, para fora, com as mãos espalhadas pelo monte de ossos
das costas de um homem morto. Mesmo ao lado, olhos leitosos fitam-na. Um maxilar permanece
aberto, e Addie salta atabalhoadamente da carroça e cai no chão, aos arrancos, a soluçar, viva.
Um som horrível solta-se do seu peito, uma tosse aguda, algo preso entre um soluço e um
riso.
Depois, um grito, e precisa de um momento para se aperceber de que não sai dos seus
próprios lábios gretados. Uma mulher andrajosa está de pé, do outro lado da rua, com as mãos na
boca, de horror, e Addie não a pode culpar por isso.
Que choque deve ser ver um cadáver arrastar-se para fora da carroça.
A mulher persigna-se, e Addie grita numa voz rouca e quebrada:
— Não estou morta. — Mas a mulher limita-se a fugir dali, e Addie dirige a sua fúria contra a
carroça. — Não estou morta! — volta a dizer, dando um pontapé na roda de madeira.
— Ei! — grita um homem, segurando nas pernas de um corpo frágil e retorcido.
— Para trás — grita um segundo, agarrando-o pelos ombros.
Claro que não se lembram de a ter metido lá dentro. Addie recua enquanto balançam o
cadáver mais recente, atirando-o para dentro da carroça. Aterra com um estrondo repugnante em
cima dos outros, e o estômago dela contorce-se ao pensar que esteve entre eles, ainda que por
pouco tempo.
Um chicote estala, os cavalos precipitam-se para diante, as rodas giram no empedrado, e só
quando a carroça desapareceu de vista, só quando Addie leva as mãos trementes aos bolsos do
casaco perdido, se apercebe de que estão vazios.
O passarinho de madeira desapareceu.
O que lhe restou da sua vida passada foi arrastado com os mortos.
Durante meses, continuará à procura da peça, levando a mão ao bolso como poderia ter feito,
um gesto teimoso, um movimento nascido de um hábito enraizado. Não parece conseguir fazer
com que os dedos se lembrem de que já lá não está, não parece conseguir lembrá-lo ao coração,
que estremece um pouco sempre que descobre o bolso vazio. Mas, ali, florescendo no meio da
mágoa, encontra-se um alívio terrível. Todos os momentos, desde que abandonou Villon, receou
a perda da sua última recordação.
Agora que desapareceu, há uma alegria culpada contida entre a mágoa.
O último e frágil fio da sua antiga vida quebrou-se, e Addie ficou livre, de uma forma
absoluta e verdadeira e violenta.
Paris, França
29 de julho de 1715

Sonhadora é uma palavra demasiado suave.


Sugere a ideia de sono sedoso, de dias langorosos em campos de erva crescida, de manchas
de carvão em papel suave.
Addie ainda se agarra aos sonhos, mas está a aprender a ser mais acutilante. Menos a mão da
artista e mais a faca, a afiar a ponta do pincel.
— Serve-me uma bebida — diz, estendendo a garrafa de vinho, e o homem retira a rolha e
enche dois copos da prateleira baixa do quarto alugado. Entrega-lhe um deles, e ela não lhe toca,
enquanto ele inclina a cabeça para trás num trago único, dois segundos antes de abandonar o
copo e de estender as mãos para o vestido dela.
— Qual é a pressa? — diz ela, guiando-o de volta. — Pagaste o quarto. Temos a noite inteira.
— Tem o cuidado de não o rechaçar, o cuidado de manter a tensão, ao resistir, no seu recato.
Alguns homens, descobriu, têm prazer em ignorar os desejos de uma mulher. Ao invés, Addie
ergue o seu próprio copo até à boca dele, verte o conteúdo vermelho-ferrugem por entre os seus
lábios, tenta fazer passar o gesto por sedução, em vez de força.
Ele bebe avidamente e depois atira o copo para longe. Mãos desastradas apalpam a parte da
frente do seu corpo, debatendo-se com os cordões e com o espartilho.
— Mal posso esperar por... — diz de forma entaramelada, mas a droga vertida no vinho já
está a fazer efeito, e logo para de falar, com a língua a tornar-se pesada na boca.
Recosta-se na cama, ainda agarrado ao vestido dela, e, um instante depois, os olhos reviram-
se, e tomba de lado, perdido de sono, antes de a cabeça cair na almofada fina.
Addie inclina-se sobre ele e empurra-o até rebolar para fora da cama, caindo no chão como
uma saca de cereais. O homem solta um gemido mudo, mas não acorda.
Addie termina o seu trabalho, soltando os cordões do vestido até conseguir respirar de novo.
Moda de Paris — duas vezes mais apertada que os vestidos da província e duas vezes menos
prática. Espreguiça-se na cama, grata por a ter para si, pelo menos por uma noite. Não quer
pensar no amanhã, em que será obrigada a recomeçar.
Aqui reside toda a loucura da situação. Cada dia é como âmbar, e ela é a mosca presa lá
dentro. Nem pensar no que acontecerá dali a dias ou semanas quando vive no momento. O tempo
começa a perder o seu significado — e, no entanto, não perdeu noção do tempo. Não parece
situá-lo erradamente (por muito que tente) e por isso Addie sabe em que mês está, em que dia,
em que noite, e por isso sabe que se passou um ano.
Um ano desde que fugiu do seu próprio casamento.
Um ano desde que correu para o bosque.
Um ano desde que vendeu a alma em troca daquilo. De liberdade. De tempo.
Um ano, e passou-o a aprender os limites da sua nova vida.
Caminhando nos limites da sua maldição como um leão numa gaiola. (Agora já viu leões.
Chegaram a Paris na primavera, fazendo parte de uma exposição. Não tinham nada a ver com os
animais da sua imaginação. Eram muito maiores, e muito menores, com a majestade diminuída
pelas dimensões das suas celas. Addie foi vê-los dezenas de vezes, estudou os seus olhares
lamentosos, fitando para lá dos visitantes, até ao espaço aberto na tenda, a única fenda de
liberdade.)
Um ano que passou presa ao prisma daquele pacto, obrigada a sofrer, mas sem morrer; a
passar fome, mas sem se consumir; a desejar, mas sem definhar. Cada momento comprimido na
sua própria memória, enquanto ela própria desliza das mentes dos outros ao mais pequeno
impulso, apagada por uma porta que se fecha, por um instante fora do campo de visão, por um
momento de sono. Incapaz de deixar uma marca em alguém ou algo. Nem no homem estatelado
no chão.
Retira o frasco rolhado cheio de láudano de baixo das saias e segura-o sob a luz fraca. Três
tentativas e duas garrafas do medicamento precioso desperdiçado antes de perceber que não
consegue drogar as bebidas, não consegue ser a mão que causou o dano. Mas, se o misturar na
garrafa de vinho, se voltar a pôr a rolha e se os deixar verter nos seus próprios copos, o ato deixa
de ser seu.
Estão a ver?
Está a aprender.
É uma aprendizagem solitária.
Inclina o frasco, com resto da substância leitosa a mover-se dentro do vidro, e pergunta-se se
lhe poderá comprar uma noite de sono sem sonhos, uma paz profunda e drogada.
— Que desilusão.
Ao som daquela voz, Addie quase deixa cair o láudano. Vira-se para todos os cantos do
quartinho, esquadrinhando a escuridão, mas não consegue encontrar a sua origem.
— Confesso, minha querida, que esperava mais.
A voz parece vir de cada sombra — e, depois, de uma delas. Aglomera-se no canto mais
escuro do quarto, como fumo. E depois avança até ao círculo lançado pela chama da vela. Os
caracóis negros descem-lhe sobre a sobrancelha. As sombras incidem nas concavidades do seu
rosto, e uns olhos verdes brilham com a sua própria luz interior.
E, por um instante traiçoeiro, o coração dela sente um baque perante a visão familiar do
estranho, antes de se lembrar de que é apenas ele.
A escuridão do bosque.
Há um ano que vive aquela maldição e, durante esse tempo, chamou por ele, implorou junto
da noite, enterrou moedas de que não podia prescindir nas margens do Sena, suplicou que lhe
respondesse só para lhe poder perguntar porquê, porquê, porquê.
Agora atira-lhe o frasco de láudano à cabeça.
A sombra não se mexe para o apanhar, não precisa de o fazer. Este atravessa-a de um lado ao
outro, estilhaça-se contra a parede atrás de si. Apresenta-lhe um sorriso de piedade.
— Olá, Adeline.
Adeline. Um nome que pensou nunca mais ouvir. Um nome de dói como uma nódoa negra,
mesmo que o seu coração salte ao ouvi-lo.
— Tu — rosna ela.
Uma inclinação impercetível da cabeça. A curva do seu sorriso.
— Tiveste saudades minhas?
Precipita-se sobre ele como o frasco rolhado, atira-se contra ele, quase esperando cair através
do seu corpo e estilhaçar-se como aquele. Mas as mãos encontram carne e osso ou, pelo menos, a
ilusão dos mesmos. Bate contra o seu peito, e é como bater numa árvore, igualmente duro e
inútil.
Ele olha para ela, divertido.
— Estou a ver que sim.
Ela afasta-se rapidamente, quer gritar, enfurecer-se, soluçar.
— Deixaste-me ali. Roubaste-me tudo e foste-te embora. Sabes quantas noites supliquei...
— Eu ouvi-te — diz ele, e há um prazer terrível na forma como o diz.
Addie sorri de raiva.
— Mas nunca apareceste. — A escuridão abre os braços, como que a dizer Estou aqui agora.
E ela quer bater-lhe, por mais inútil que seja, quer expulsá-lo, pô-lo fora daquele quarto como
uma maldição, mas tem de perguntar. Tem de saber. — Porquê? Porque me fizeste isto?
As suas sobrancelhas negras tecem uma preocupação falsa, uma inquietação simulada.
— Concedi-te o teu desejo.
— Eu só pedi mais tempo, uma vida de liberdade...
— Dei-te ambas. — Os dedos percorrem a armação da cama. — Este último ano não teve
consequências... — um som abafado sai da garganta de Addie, mas ele continua. — Estás
incólume, não é verdade? E não te magoaste. Não envelheces. Não definhas. E quanto à
liberdade, haverá melhor libertação do que aquela que te dei? Uma vida em que não há ninguém
perante quem responder.
— Sabes que não era isso que eu queria.
— Tu não sabias o que querias — diz ele abruptamente, avançando na direção dela. — E se
sabias, então devias ter tido mais cuidado.
— Enganaste...
— Erraste — diz a escuridão, fechando o espaço entre os dois. — Não te lembras, Adeline?
— a voz baixa até se tornar um sussurro. — Foste tão precipitada, tão desabrida, a tropeçar nas
palavras como se fossem raízes. A divagar sobre todas as coisas que não querias.
Agora está muito próximo dela, com mão a subir-lhe pelo braço, e ela obriga-se a não lhe dar
a satisfação de recuar, a não o deixar brincar ao lobo mau e forçá-la a assumir o papel do
cordeirinho. Mas é difícil. Pois, embora se apresente como diferente dela, não é um homem.
Nem sequer é humano. É apenas uma máscara, e esta não encaixa. Addie consegue ver o que está
por baixo, como no bosque, informe e ilimitado, monstruoso e ameaçador. A escuridão bruxuleia
por detrás daquele olhar verde.
— Pediste uma eternidade, e eu recusei. Imploraste e suplicaste e, depois, lembras-te do que
disseste? — quando volta a falar, a sua voz continua a ser a sua voz, mas ela consegue ouvir a
própria, a ecoar através dele.
— Podes ficar com a minha vida quando eu estiver farta dela. Podes ficar com a minha alma
quando eu já não a quiser.
Addie recua, das palavras, dele, ou pelo menos tenta, mas desta vez ele não lho permite. A
mão no seu braço aperta-se; a outra permanece, como o toque de um amante, na sua nuca.
— Não achas então que seria do meu interesse tornar-te a vida desagradável? Obrigar-te a
uma rendição inevitável?
— Não tinhas de o fazer — sussurra ela, detestando a hesitação na sua voz.
— Minha querida Adeline — diz ele, com a mão a deslizar da nuca até ao cabelo. —
Interessam-me as almas, não a piedade. — Os dedos apertam-se, obrigando a cabeça a inclinar-se
para trás com o olhar dela a cruzar-se com o dele, e não há doçura no seu rosto, apenas uma
espécie de beleza feroz.
— Vamos — diz ele —, dá-me o que eu quero, e o pacto fica concluído, todo este sofrimento
chega ao fim.
Uma alma, em troca de um único ano de dor e loucura.
Uma alma, em troca de moedas de cobre numa doca de Paris.
Uma alma, em troca disto, apenas.
E, no entanto, seria mentira dizer que ela não vacila. Dizer que nenhuma parte dela quer
desistir, ceder, nem que seja por um instante. Talvez seja essa parte que pede.
— O que seria de mim?
Aqueles ombros — os ombros que desenhou tantas vezes, os ombros que ela invocou para a
vida — limitam-se a encolher-se de forma desinteressada.
— Não serás nada, minha querida — diz simplesmente. — Mas é um nada mais suave do que
este. Rende-te, e eu liberto-te.
Se alguma parte de si hesitou, se uma pequena parte quis ceder, durou apenas um instante. Há
algo de desafiante em ser sonhador.
— Recuso — resmoneia.
A sombra fuzila-a com os seus olhos verdes a escurecerem como um pano encharcado.
As suas mãos soltam-se.
— Irás ceder — disse. — Não tarda.
Não recua, não vira costas para se ir embora. Simplesmente desaparece. Engolido pela
escuridão.
Nova Iorque
13 de março de 2014

Henry Strauss nunca foi uma pessoa muito matinal.


Quer sê-lo, sonhou levantar-se com o sol, sorver a primeira chávena de café enquanto a
cidade ainda está a acordar, com o dia inteiro à sua frente e cheio de promessas.
Tentou ser uma pessoa matinal, e a única ocasião em que conseguiu acordar antes da
madrugada foi uma aventura: ver o dia começar, sentir, pelo menos por algum tempo, que ia à
frente e não atrás. Mas depois uma noite alongava-se, e um dia começava tarde, e agora sente-se
como se não tivesse tempo, de todo. Como se estivesse sempre atrasado para alguma coisa.
Hoje é o pequeno-almoço com a irmã mais nova, Muriel.
Henry apressa-se a descer o quarteirão, com a cabeça ainda a tinir vagamente da noite
anterior, e teria cancelado, devia ter cancelado. Mas cancelou três vezes, apenas no último mês, e
não quer ser um mau irmão; ela só quer ser uma boa irmã, e isso é agradável. É algo novo.
Nunca foi a sua casa antes. Não é um dos seus poisos habituais — embora, em boa verdade,
Henry esteja a ficar sem cafés na vizinhança. Vanessa deu cabo do primeiro. Milo do segundo. O
espresso no terceiro sabia a carvão. Por isso deixou Muriel escolher um, e ela optou por um
«buraquinho pitoresco na parede» chamado Sunflower, que aparentemente não tem letreiro ou
morada ou forma de ser encontrado a não ser através de um radar da moda que, obviamente,
Henry não possui.
Deteta finalmente um girassol isolado pintado numa parede, do outro lado da rua. Apressa-se
para apanhar o semáforo verde, chocando com um tipo numa esquina, resmunga um pedido de
desculpas (embora o outro homem diga que não há problema, não há problema, está tudo bem).
Quando Henry encontra finalmente a porta, a empregada de mesa está prestes a dizer-lhe que não
há lugar, mas depois olha do cimo do balcão e sorri e diz que vai arranjar maneira de resolver o
assunto.
Henry olha em volta, à procura de Muriel, mas ela sempre considerou o tempo como um
conceito flexível, por isso, apesar de estar atrasado, ela está decididamente mais atrasada. E está
secretamente satisfeito por isso, pois dá-lhe um instante para respirar, para alisar o cabelo e para
se libertar do cachecol que o está a tentar estrangular e até pedir um café. Tenta ficar
apresentável, apesar de importar aquilo que faça; não irá mudar o que ela vê. Mas continua a
importar. Tem de importar.
Cinco minutos mais tarde, Muriel irrompe pela porta. Como habitual, é um tornado de
caracóis negros e confiança inabalável.
Muriel Strauss, que, aos 24 anos, quase só fala do mundo em termos de autenticidade
conceptual e verdade criativa, que foi a queridinha da cena artística de Nova Iorque desde o seu
primeiro semestre na Tisch, onde se apercebeu rapidamente de que era melhor a criticar arte do
que a criá-la.
Henry gosta da irmã, gosta mesmo. Mas Muriel sempre foi como um perfume forte.
Preferível em doses reduzidas. E à distância.
— Henry! — grita ela, despindo o casaco e deixando-o na cadeira com um floreado
dramático. — Estás com ótimo aspeto — diz ela, o que não é verdade, mas ele diz simplesmente:
— Tu também, Mur.
Está radiosa e pede um café forte com cobertura espumosa de leite, e Henry prepara-se para
um silêncio desconfortável, porque a verdade é que não faz ideia de como falar com ela. Mas se
Muriel é boa em alguma coisa, é em manter uma conversa. Por isso bebe o seu café simples e
instala-se, enquanto ela passa em revista o mais recente espetáculo de teatro temporário e depois
as combinações feitas para a Páscoa Judaica, empolgando-se a falar de um festival de arte
experimental no High Line, apesar de ainda não estar aberto. Só depois de concluir uma tirada
sobre uma peça de arte de rua que decididamente não era uma porcaria, mas, na verdade, um
comentário ao lixo capitalista, com o eco dos Huns e acenos de cabeça de Henry, Muriel traz à
liça o irmão mais velho de ambos.
— Tem perguntado por ti.
É algo que Muriel nunca disse. Pelo menos sobre David; nunca a Henry. Por isso não se
contém.
— Porquê?
A irmã revira os olhos.
— Calculo que seja por se preocupar.
Henry quase se engasga na bebida.
David Strauss preocupa-se com muitas coisas. Preocupa-se com o seu estatuto como o mais
novo cirurgião-chefe do Sinai. Preocupa-se, presumivelmente, com os seus pacientes. Preocupa-
se em arranjar tempo para o Midrash, mesmo que isso signifique que tenha de o fazer a meio de
uma quarta-feira à noite. Preocupa-se com os pais e com quão orgulhosos estão do que ele
alcançou. David Strauss não se preocupa com o irmão mais novo, apenas com a miríade de
formas como deu cabo da reputação da família.
Henry olha para baixo, para o relógio, apesar de este não marcar as horas, de todo.
— Desculpa, maninha — diz, arrastando a cadeira para trás. — Tenho de ir abrir a loja.
Ela interrompe o discurso — algo que nunca fazia — e levanta-se da cadeira para lhe pôr os
braços à volta da cintura, apertando-os com força. Parece um pedido de desculpas, uma forma de
afeto, de amor. Muriel tem uns bons doze centímetros a menos que Henry, o suficiente para ele
conseguir pousar o queixo na sua cabeça, se tivessem esse tipo de proximidade, o que não
acontece.
— Não desapareças — diz ela, e Henry promete-lhe que não.
Nova Iorque
13 de março de 2014

Addie acorda com alguém a tocar-lhe na face.


O gesto é tão suave que primeiro pensa que deve estar a sonhar, mas depois abre os olhos e vê
as luzes feéricas no telhado, vê Sam acocorada ao lado da espreguiçadeira, com uma ruga de
preocupação ao longo da testa. O cabelo foi solto, uma juba de caracóis louros e selvagens em
volta do rosto.
— Ei, Bela Adormecida — diz, enfiando um cigarro de volta ao maço, por acender.
Addie estremece e senta-se, puxando o casaco para mais perto do corpo. Está uma manhã fria
e enevoada, com o céu como uma extensão de branco sem sol. Não queria dormir tanto tempo,
até tão tarde. Não que tenha de estar em algum lado, mas pareceu-lhe certamente melhor ideia na
noite anterior, quando ainda conseguia sentir os dedos.
A Odisseia caiu-lhe do colo. Está tombada no chão, virada ao contrário, com a capa
escorregadia do orvalho da manhã. Estende o braço para apanhar o livro, faz os possíveis para
limpar a capa, por alisar as páginas que ficaram dobradas ou sujas.
— Está um gelo cá fora — diz Sam, puxando Addie para ela se levantar. — Anda.
Sam fala sempre assim, afirmações em vez de perguntas, imperativos que parecem convites.
Empurra Addie em direção à porta do terraço, e Addie tem demasiado frio para protestar, limita-
se a seguir Sam escadas abaixo, até ao seu apartamento, fingindo não saber o caminho.
A porta abre-se de par em par para a loucura.
A entrada, o quarto, a cozinha estão todos cheios de arte e de artefactos. Apenas a sala — na
parte de trás do apartamento — se apresenta espaçosa e despojada. Ali não há sofá ou mesas,
apenas duas janelas grandes, um cavalete e um banco.
— É aqui que trabalho — disse ela, quando levou Addie pela primeira vez lá a casa.
E Addie respondeu:
— Vê-se.
Enfiou tudo o que possui em três quartos do espaço, só para preservar a paz e a tranquilidade
do quarto. A amiga ofereceu-lhe um espaço num estúdio por um preço incrível, mas parecia-lhe
frio, disse, e precisa de calor para pintar.
— Desculpa — diz Sam, contornando uma tela, em cima de uma caixa. — Agora está um
bocado atafulhado.
Addie nunca viu o espaço de outra forma. Adorava ver aquilo em que Sam está a trabalhar, o
que lhe deixou a tinta branca por baixo das unhas e levou à mancha rosa mesmo abaixo do
maxilar. Mas, em vez disso, Addie obriga-se a seguir a rapariga, contornando, passando por cima
e atravessando a trapalhada da cozinha. Sam irrita-se com a máquina de café, e os olhos de Addie
varrem o espaço, assinalando as diferenças. Uma jarra roxa nova. Uma pilha de livros meio
lidos, um postal de Itália. A coleção de canecas, algumas delas florescendo em pincéis limpos, e
sempre a aumentar.
— Pintas — diz, fazendo um sinal com a cabeça para a pilha de telas encostadas ao fogão.
— Sim — diz Sam, com um sorriso a nascer-lhe no rosto. — Principalmente quadros
abstratos. Arte sem sentido, como o meu amigo Jack lhe chama. Mas não é propriamente sem
sentido, é apenas... outras pessoas pintam o que veem. Eu pinto o que sinto. Talvez seja confuso,
trocar um sentido por outro, mas existe beleza nessa transmutação.
Sam serve o café em duas canecas, uma delas verde, rasa e larga como uma taça, a outra alta e
azul.
— Cães ou gatos? — pergunta, em vez de «verde ou azul», apesar de não haver cães nem
gatos em nenhuma delas, e Addie diz «gatos». Sam entrega-lhe a caneca azul alta sem qualquer
explicação.
Os dedos de ambas afloram e estão mais perto do que se tinha apercebido, suficientemente
perto para Addie ver as manchas prateadas no azul dos olhos de Sam, suficientemente perto para
Sam contar as sardas no seu rosto.
— Tens estrelas — diz.
Déjà vu, pensa de novo Addie. Obriga-se a afastar-se, a ir-se embora, a poupar-se à
insanidade de repetição e do reflexo. Em vez disso, Addie fecha as mãos sobre a caneca e dá um
gole prolongado. A sua primeira nota é forte e amarga, mas a segunda é intensa e doce.
Suspira de prazer, e Sam exibe o seu sorriso cintilante.
— É bom, não é? — diz. — O segredo é...
Pepitas de cacau, pensa Addie.
— Pepitas de cacau — diz Sam, sorvendo longamente da sua caneca, que Addie agora está
convencida de que, na verdade, é uma taça. Inclina-se sobre o balcão, com a cabeça inclinada
sobre o café como se fosse uma oferenda.
— Pareces uma flor murcha — brinca Addie.
Sam pestaneja e levanta a caneca.
— Rega-me e vê-me florescer.
Addie nunca vira Sam assim, de manhã. Claro que acordou ao seu lado, mas esses dias
estavam marcados pelos pedidos de desculpa, pelo mal-estar. O dia depois da ausência da
memória. Nunca é divertido permanecer nesses momentos. Mas agora. Isto é novo. Uma
memória criada pela primeira vez.
Sam abana a cabeça.
— Desculpa. Não te perguntei como te chamavas.
É uma das coisas de que gosta em Sam, uma das primeiras coisas em que reparou. Sam vive e
ama de coração aberto, partilha o tipo de afeto que a maior parte das pessoas reserva apenas para
as pessoas mais próximas das suas vidas. Os motivos vêm depois das necessidades. Acolheu-a,
aqueceu-a, antes de pensar em perguntar-lhe o nome.
— Madalena — diz Addie, porque é o mais próximo que consegue chegar do seu nome.
— Humm — diz Sam —, o meu bolo preferido. Eu sou a Sam. — Olá, Sam — diz ela, como
se saboreasse o nome pela primeira vez.
— Então — diz a outra rapariga, como se a pergunta lhe tivesse acabado de ocorrer. — O que
estavas a fazer no terraço?
— Oh — diz Addie com um risinho autodepreciativo. — Não queria ter adormecido ali. Nem
sequer me lembro de me ter sentado na espreguiçadeira. Devia estar mais cansada do que
pensava. Acabei de me mudar, para o 2F, e não me parece que esteja habituada a toda aquela
barulheira. Não conseguia dormir, acabei por desistir e subi para apanhar ar fresco e ver o sol
nascer sobre a cidade.
A mentira desenrola-se muito facilmente, como acontece com a prática.
— Somos vizinhas! — diz Sam. — Sabes — acrescenta, pousando a caneca vazia —, gostava
de te pintar um dia destes.
E Addie controla o impulso de dizer Já o fizeste.
— Quero dizer, não se iria parecer contigo — continua Sam, dirigindo-se para a entrada.
Addie segue-a, vê-a parar e passa os dedos por uma pilha de telas, passando-as por entre as mãos
como se fossem álbuns numa loja de discos em vinil.
— Tenho uma série em que estou a trabalhar — diz —, de pessoas como céus.
Uma dor aguda ressoa pelo peito de Addie, e agora situa-se seis meses antes, e estão deitadas
na cama. Os dedos de Sam percorrem as sardas no seu rosto, um toque leve e firme como um
pincel.
— Sabes — dissera —, dizem que as pessoas são como flocos de neve, cada uma delas única,
mas acho que são mais como céus. Alguns são enevoados, outros tempestuosos, outros ainda são
límpidos, mas não há dois realmente iguais.
— E que tipo de céu sou eu? — perguntara então Addie, e Sam olhara para ela, sem
pestanejar, e depois iluminara-se. Fora o tipo de iluminação que vira em centenas de artistas,
centenas de vezes, o brilho da inspiração, como se alguém tivesse ligado uma luz sob a sua pele.
E Sam animou-se subitamente, presa à vida, saltou da cama, levando Addie consigo para a sala.
Uma hora a posar no soalho duro, envolvida apenas por um cobertor, a ouvir o rumor e o
raspar enquanto Sam misturava a tinta, o silvo do pincel sobre a tela, e depois ficou pronto. E,
quando Addie deu a volta ao cavalete para olhar para o quadro, o que viu foi o céu noturno. Não
o céu noturno como qualquer outra pessoa o teria pintado. Manchas bem marcadas de carvão e
negro e toques finos de um cinzento médio, com a tinta tão densa que se erguia da tela. E,
espalhada pela superfície, uma mão-cheia de pontos prateados. Pareciam quase acidentais, como
salpicos de um pincel, mas eram exatamente sete, pequenos e distantes e bem afastados, como
estrelas. A voz de Sam chama-a de volta à cozinha.
— Gostava de te mostrar a minha peça preferida — diz agora. — Foi a primeira da série.
Uma Noite Esquecida. Vendi-a a um colecionador de Lower East Side. Foi a minha primeira
grande venda, pagou-me a renda por três meses, deu-me acesso a uma galeria. Ainda assim, é
difícil libertarmo-nos da arte. Sei que tenho de o fazer (a história do artista esfaimado é um
pouco exagerada), mas sinto falta dela todos os dias.
A sua voz assume uma profundidade mais suave.
— O mais estranho é que cada uma das peças dessa série tem alguém como modelo. Amigos,
pessoas deste edifício, estranhos com que me cruzo na rua. Lembro-me de todos eles. Mas não
consigo de todo lembrar-me dela.
Addie engole em seco.
— Achas que era uma mulher?
— Sim. Acho. Tinha uma energia...
— Talvez tenhas sonhado com ela.
— Talvez — diz Sam. — Nunca fui boa a lembrar-me de sonhos. Mas, sabes... —
interrompe-se, olhando para Addie como naquela noite, na cama, em que começara a
resplandecer. — Fazes-me lembrar essa peça. — Põe-lhe uma mão no rosto. — Credo, isto
parece a pior frase de engate do mundo. Desculpa. Vou tomar um duche.
— Tenho de ir andando — diz Addie. — Obrigada pelo café.
Sam morde o lábio.
— Tens mesmo de ir?
Não, não tem. Addie sabe que poderia seguir Sam até ao duche, enrolar-se numa toalha e
sentar-se no chão da sala e ver que tipo de quadro Sam pintaria nesse dia, inspirando-se nela.
Podia. Podia. Podia cair naquele momento para sempre, mas sabe que não há futuro no mesmo.
Apenas um número infinito de presentes, e já viveu com Sam todos os que consegue aguentar.
— Desculpa — diz, com o peito a doer, mas Sam limita-se a encolher os ombros.
— Vemo-nos outra vez — diz ela com grande confiança. — Afinal, agora somos vizinhas.
Addie consegue esboçar a sombra pálida de um sorriso.
— É verdade.
Sam acompanha-a à porta e, a cada passo, Addie resiste ao impulso de olhar para trás.
— Não desapareças — diz Sam.
— Combinado — promete Addie, enquanto a porta se fecha. Suspira, apoiando nela as costas,
ouve os passos de Sam afastarem-se do átrio atulhada, antes de se obrigar a endireitar-se, a dar
um passo em frente e a afastar-se dali.
Lá fora, o céu de mármore branco abriu-se, deixando passar faixas finas de azul.
O frio dissipou-se, e Addie encontra um café com esplanada, sufi- cientemente azafamado
para que o empregado de mesa só tenha tempo para passar pelas mesas exteriores de dez em dez
minutos, aproximadamente. Conta os batimentos como um prisioneiro a marcar o passo de
guardas, pede um café — não é tão bom como o de Sam, amargo, sem adoçante, mas é
suficientemente quente para a proteger do frio. Puxa a gola do casaco de cabedal, volta a abrir A
Odisseia e tenta ler.
Neste ponto, Ulisses pensa que está a regressar a casa, para se reunir de novo com Penélope
depois dos horrores da guerra, mas leu a história vezes suficientes para saber quão longe a
viagem está de terminar.
Folheia, traduzindo do grego para inglês moderno.
Receio simultaneamente o que o frio intenso e o orvalho húmido me poderão fazer — estou
cansado até aos ossos, prestes a respirar pela última vez, e um vento frio sopra de um rio sobre
uma manhã suave.
O empregado sai de novo para a esplanada, e ela espreita por cima do livro, vê-o franzir um
pouco o sobrolho ao ver o café já pedido e entregue, a lacuna na memória, no lugar onde deveria
estar um cliente. Mas Addie olha como se pertencesse, e isso é meio caminho andado, e, um
momento mais tarde, o empregado dirige a atenção para um casal à entrada, à espera de lugar
para se sentar.
Regressa ao livro, mas não vale a pena. Não está com disposição para velhos perdidos no
mar, para parábolas de vidas solitárias. Quer evadir-se, quer esquecer. Uma fantasia ou talvez um
romance.
Seja como for, o café agora está frio, e Addie levanta-se, de livro na mão, e dirige-se para The
Last Word para descobrir algo novo.
Paris, França
29 de julho de 1716

Está à sombra, junto à loja de um comerciante de sedas.


Do outro lado da rua, a loja do alfaiate está a abarrotar, no ritmo intenso do negócio, apesar
de o dia se ir escoando. O suor escorre-lhe pelo pescoço quando solta e volta a prender os atilhos
da touca, recuperada de uma rajada de vento, na esperança de que o adereço de pano a faça
passar por criada de uma senhora, de modo a garantir-lhe a invisibilidade reservada aos serviçais.
Se pensar que é uma criada, Bertin não lhe prestará demasiada atenção. Se pensar que é uma
criada, poderá não reparar no vestido de Addie, que é simples, mas bom, surripiado de um
manequim de alfaiate uma semana antes, numa loja semelhante, do outro lado do Sena. De início
era bonito, até ter rasgado as saias num prego perdido e alguém ter lançado um balde de fuligem
demasiado perto dos seus pés, e vinho tinto, que alguém verteu numa das mangas.
Deseja que as roupas sejam tão resistentes à mudança como ela parece ser. Especialmente
porque só tem o tal vestido — não vale a pena juntar um guarda-roupa ou qualquer outra coisa,
quando não se tem sítio onde o guardar. (Tentará, nos anos posteriores, reunir bugigangas,
escondê-las como uma pega no seu ninho, mas algo conspirará sempre para lhas roubar de volta.
Como o passarinho de madeira, perdido entre os corpos na carroça. Não parece conseguir
guardar muita coisa por muito tempo.)
Finalmente, o último freguês sai — um criado de quarto, com uma caixa guarnecida de fitas
debaixo de cada um dos braços —, e, antes de qualquer outra pessoa conseguir chegar à porta
antes dela, Addie percorre a rua em passo estugado e entra na loja do alfaiate.
É um espaço acanhado: uma mesa apinhada até cima com rolos de tecido; um par de
manequins exibe a última moda em vestidos. O tipo de peça que requer pelo menos quatro mãos
para vestir e igual número para despir — cheios de anquinhas almofadadas e de mangas com
punhos de renda e caixilhos para o peito demasiado apertados para se conseguir respirar. Hoje a
nata de Paris aparece ataviada como um embrulho, claramente não destinado a ser aberto.
Uma pequena campainha na porta anuncia a sua chegada, e o alfaiate, Monsieur Bertin, olha
para ela por entre umas sobrancelhas densas como um silvado e faz má cara.
— Vou fechar — diz brevemente.
Addie baixa da cabeça, a imagem da discrição.
— Estou aqui a pedido de Madame Lautrec.
Foi um nome que colheu da brisa, ouvido várias vezes nas suas deambulações, mas é a
resposta certa. O alfaiate endireita-se, subitamente interessado.
— Para os Lautrec, tudo. — Pega num bloquinho, num lápis de carvão, e os dedos de Addie
contorcem-se, um instante de mágoa, uma ânsia de desenhar, como tantas vezes fez. — Mas é
estranho — diz ele, agitando as mãos para afugentar a rigidez — enviar a criada de uma senhora
em vez do criado.
— Está doente — responde Addie com rapidez. Está a aprender a mentir, a vergar-se ao sabor
da conversa, a seguir o seu curso. — Por isso enviou a criada da senhora. Madame quer dar um
baile e precisa de um vestido novo.
— Mas claro que sim — diz ele. — Tem as medidas dela?
— Tenho.
Olha para ela, à espera que apresente uma folha de papel.
— Não — explica. — Eu tenho as medidas dela... são as mesmas que as minhas. Por isso me
enviou a mim.
Pensa que é uma mentira bastante inteligente, mas o alfaiate limita-se a franzir o sobrolho e
volta-se para uma cortina nas traseiras da loja.
— Vou buscar a fita métrica.
Addie tem um vislumbre da divisão de trás, uma série de manequins com vestidos, uma
montanha de sedas, antes de a cortina voltar a cair. Mas, quando Bertin se afasta, ela também o
faz, desaparecendo entre os manequins e os rolos de musselina e algodão encostados à parede.
Não é a sua primeira visita à loja, e memorizou bem todas as suas fendas e curvas, todas as
reentrâncias suficientemente grandes para se poder esconder nelas. Addie aninha-se num desses
espaços, e quando Bertin regressa à parte da frente da loja, de fita métrica na mão, esquece-se
completamente de Madame Lautrec e da sua estranha criada. O ar está abafado entre os rolos de
tecido, e sente-se grata quando ouve o tinir da campainha, o som surdo de Bertin a fechar a loja.
Dirigir-se-á ao primeiro andar, ao quarto que tem lá em cima, comerá uma sopa, deixará as mãos
doridas de molho e irá para a cama antes que a noite caia por completo. Addie espera, deixando
que o silêncio se instale à sua volta, espera até conseguir ouvir o ranger dos seus passos lá em
cima.
E então fica livre para deambular e observar.
Uma luz cinzenta e fraca passa pela montra da frente enquanto atravessa a loja, corre a cortina
pesada e entra.
Uma luz suave entra pela única janela, o suficiente para se con- seguir ver. Ao longo da
parede das traseiras, há capas por terminar, e tenta lembrar-se de que poderá regressar quando o
verão der lugar ao outono e o calor se dissipar. Mas a sua concentração fixa-se no centro da
divisão, onde alguns manequins envergando vestidos se apresentam como dançarinos a
assumirem os seus lugares, com as cinturas estreitas envolvidas em tons de verde e cinzento, um
vestido azul-escuro guarnecido a branco, outro azul-claro com um debrum amarelo.
Addie sorri e atira a touca para cima de uma mesa, soltando o cabelo. Passa a mão pela
confusão de sedas com padrões e de tecidos de algodão de cores requintadas, saboreando as
texturas do linho e da sarja. Toca na armação dos espartilhos, no enchimento das anquinhas,
imaginando-se dentro de cada um deles. Evita a musselina e a lã, simples e robusta, demora-se
antes em artigos franzidos e camadas de cetim, mais requintados do que tudo o que viu em sua
casa.
Casa — é uma palavra difícil de libertar, mesmo neste momento, em que já não há nada que a
ligue a ela.
Passa os dedos pela estrutura de um corpete, do azul do verão, e detém-se, sustendo a
respiração, quando divisa movimento pelo canto do olho. Mas é apenas um espelho, encostado a
uma parede. Vira-se, observa-se na superfície prateada, como se fosse um retrato de outra
pessoa, apesar de ser verdade que se assemelha em tudo a si própria.
Os dois últimos anos pareceram dez e, no entanto, não deixaram marcas. Já deveria estar
desgastada até pele e osso, ter endurecido, ter sido desbastada, mas o seu rosto apresenta-se tão
cheio como no verão em que saiu de casa. A pele, inatingida pelo tempo e pelas agruras,
completamente incólume, à exceção das sardas familiares na paleta suave das suas faces. Apenas
os olhos denunciam a mudança — uma orla de sombra desenhada através do castanho e do
dourado.
Addie pestaneja, obriga o olhar a afastar-se da sua imagem e dos vestidos.
Do outro lado da divisão, três formas escuras — formas masculinas, de calças e coletes e
casacos. Sob a luz fraca, as suas formas sem cabeça parecem vivas, apoiando-se umas nas outras
enquanto a estudam. Analisa o corte das suas roupas, a ausência de estruturas de osso ou de saias
armadas, e pensa, não pela primeira vez, e certamente não pela última, no quão mais simples
seria ser homem, no quão facilmente estes se deslocam pelo mundo e com tão pouca dificuldade.
E então estende o braço para o manequim mais próximo, despindo-lhe o casaco.
Desapertando os botões da parte da frente. Há uma estranha intimidade no ato de despir, e
aprecia-o ainda mais pelo facto de o homem sob os seus dedos não ser real e, portanto, não poder
apalpar ou usar as mãos ou empurrar.
Liberta-se dos atilhos do seu próprio vestido e enfia-se nas calças, apertando-as abaixo do
joelho. Veste a túnica e abotoa o colete, passa o casaco às riscas por cima dos ombros, aperta o
laço do lenço ao pescoço.
Sente-se segura na armadura da moda masculina, mas, quando se volta para o espelho, o
ânimo escapa-se-lhe. O peito é demasiado cheio, a cintura demasiado estreita, com as ancas a
alargarem-se, enchendo as calças nos sítios errados. O casaco ajuda um pouco, mas nada
consegue disfarçar o seu rosto. O arco dos lábios, a linha da face, a suavidade da sobrancelha,
tudo demasiado leve e redondo para passar por algo que não seja feminino.
Pega numa tesoura, tenta aparar os anéis soltos do cabelo junto aos ombros, mas, segundos
mais tarde, estão de volta, com as madeixas varridas do chão por uma mão invisível. Sem deixar
marcas, nem nela própria. Encontra um alfinete e volta a prender as ondas castanho-claras ao
estilo que viu os homens usar, tira um chapéu de três bicos de um dos manequins e pousa-o sobre
o sobrolho.
Talvez de longe, talvez olhando de passagem, talvez de noite, quando a escuridão é
demasiado densa para esbater os pormenores; mas, mesmo à luz da lamparina, a ilusão não se
mantém.
Em Paris, os homens são suaves, bonitos até, mas continuam a ser homens.
Suspira e despe o disfarce. Passa a hora seguinte a experimentar vestido atrás de vestido,
ansiando já pela liberdade daquelas calças, pelo conforto sem armações daquela túnica. Mas os
vestidos são finos e requintados. O seu preferido é um adorável, verde e branco — mas ainda não
está terminado. O colarinho e a bainha estão em aberto, à espera da renda. Terá de voltar dali a
uma semana ou duas, na esperança de roubar o vestido antes de este desaparecer, embrulhado em
papel e enviado para casa de uma baronesa qualquer.
Finalmente, Addie escolhe um vestido escuro, cor de safira, com as orlas decoradas a
cinzento. Lembra-lhe uma tempestade noturna, com as nuvens a mancharem o céu. A seda beija-
lhe a pele, com o tecido novinho em folha e absolutamente imaculado. É demasiado elegante
para as suas necessidades, um vestido para banquetes, para bailes, mas não quer saber. E se atrair
olhares estranhos, que importa? Esquecerão antes de terem a oportunidade de comentar.
Addie deixa o seu próprio vestido a envolver as formas do manequim nu, sem se importar
com a touca, retirada de um estendal de roupa nessa manhã. Volta a passar pela cortina,
atravessando a loja, com as saias a restolharem à sua volta. Encontra a chave sobresselente que
Bertin guarda na gaveta de cima da mesa e destranca a porta, tendo o cuidado de travar a
campainha com os dedos. Fecha a porta atrás de si, agachando-se para voltar a enfiar a chave de
ferro por baixo da porta, e depois levanta-se e vira-se, para chocar com um homem que se
encontra na rua.
Não é de espantar que não o tenha visto; vestido de preto, dos sapatos ao colarinho, confunde-
se com a escuridão. Já está a murmurar pedidos de desculpa, já está a recuar quando o seu olhar
se ergue, e vê a linha do seu maxilar, os caracóis negros, os olhos, extremamente verdes, apesar
da ausência de luz.
Sorri-lhe.
— Adeline. — Aquele nome atinge-a como pedras na língua dele, acende uma luz como
resposta, dentro do seu peito. O olhar percorre o seu vestido novo. — Estás com bom aspeto.
— Estou com o mesmo aspeto.
— O preço da imortalidade. Como desejavas.
Dessa vez não morde o isco. Não grita ou pragueja ou refere todas as maneiras como a
amaldiçoou, mas ele deve perceber o esforço no seu rosto, porque ri, de forma suave e arejada,
como uma brisa.
— Vem — diz a sombra, oferendo o braço. — Acompanho-te.
Não diz que a acompanha a casa. E, se fosse meio-dia, recusaria a oferta, só para o contrariar.
(Claro que, se fosse meio-dia, a escuridão não estaria ali.) Mas é tarde, e só um tipo de mulher
anda pela rua de noite.
Addie aprendeu que as mulheres — pelo menos as mulheres de uma certa classe — nunca se
aventuram a andar sozinhas, nem durante o dia. Ficam resguardadas em casa, como plantas
envasadas, enfiadas por detrás das cortinas dos seus lares. E, quando saem, andam em grupos,
seguras dentro das gaiolas da companhia umas das outras e sempre à luz do dia.
Andar sozinha de manhã é um escândalo, mas andar sozinha de noite é outra coisa. Addie
sabe. Sentiu os olhares alheios, os juízos de valor, de todos os lados. As mulheres desprezam-na
das janelas, os homens tentam comprá-la nas ruas, e os devotos procuram salvar-lhe a alma,
como se não a tivesse já vendido. Disse sim à igreja, mais de uma vez, mas apenas para
conseguir abrigo, nunca pela salvação.
— Então? — pergunta a sombra, estendendo o braço. Talvez esteja mais só do que admitiria.
Talvez a companhia de um inimigo seja melhor do que nenhuma
Addie não aceita o braço dele, mas começa a andar e não precisa de olhar para ver que ele a
segue. Os sapatos ecoam suavemente no empedrado, e uma suave brisa comprime-a como uma
mão pousada nas costas.
Caminham em silêncio, até ela não conseguir aguentar mais. Até a sua determinação lhe
escapar e olhar e o ver, com a cabeça ligeiramente inclinada para trás, as pestanas negras a
aflorarem as suas belas faces enquanto respira, na noite, por mais fétida que esta seja. Um sorriso
subtil naqueles lábios, como se estivesse perfeitamente à vontade. A sua própria imagem faz
troça dela, mesmo quando os contornos estão esbatidos, escuro sobre escuro, fumo sobre sombra,
uma recordação do que é e do que não é.
O silêncio dela cinde-se, as palavras derramam-se.
— Podes assumir qualquer forma que quiseres, não é verdade?
Ele assente com a cabeça.
— É verdade.
— Então muda — diz ela. — Não suporto olhar para ti.
Um sorriso pesaroso.
— Gosto mais desta forma. Acho que tu também.
— Em tempos, sim — diz ela. — Mas destruíste tudo isso.
É uma abertura, percebe-o demasiado tarde, uma fenda na sua própria armadura. Agora ele
nunca irá mudar.
Addie para numa rua estreita e sinuosa, diante de uma casa, se é que se pode chamar assim.
Uma estrutura de madeira a desabar, como uma pilha de gravetos ali deixados, abandonados,
mas não vazia.
Quando ele desaparece, Addie trepará pela abertura entre as tábuas, tentando não rasgar a orla
da saia, percorrerá o pavimento irregular e subirá por um lanço de escadas partidas, até ao sótão,
e esperará que mais ninguém o tenha encontrado primeiro.
Despirá o vestido cor de nuvens tempestuosas e dobrá-lo-á cuidadosamente dentro de uma
folha grande de papel e depois deitar-se-á sobre uma enxerga de serapilheira e cartão e olhará por
entre as tábuas fendidas do teto, meio metro acima da cabeça, e esperará que não chova,
enquanto as almas perdidas se introduzem na estrutura da casa, lá em baixo.
Amanhã, o quartinho será ocupado, e, dentro de um mês, o edifício arderá, mas não faz
sentido preocupar-se agora com o futuro.
A escuridão desloca-se como uma cortina, atrás dela.
— Por quanto tempo irás continuar? — pergunta ele, pensativo. — De que vale arrastares-te
por mais um dia, quando não há solução?
Perguntas que fez a si mesma pela calada da noite, momentos de fraqueza quando o inverno
lhe enterra os dentes na pele ou a fome se crava nos seus ossos, quando um espaço foi ocupado,
o trabalho de um dia desfeito, a paz de uma noite se perdeu, e ela não consegue suportar a ideia
de se levantar para fazer tudo de novo. E, no entanto, ouvir as palavras papagueadas de volta,
assim, na voz dele, e não na sua, estas perdem a dimensão do seu veneno.
— Não vês? — diz ele, os olhos verdes acutilantes como vidro partido. — Não há outro
desfecho além daquele que ofereço. Tens apenas de te submet...
— Vi um elefante — diz Addie, e as palavras são como água fria sobre carvão. A escuridão
imobiliza-se ao seu lado, e continua, com o olhar fixo na casa decrépita e no teto destruído e no
céu aberto, lá em cima. — Na verdade, vi dois. Estavam no jardim do palácio, faziam parte de
uma exposição qualquer. Não sabia que os animais podiam ser tão grandes. E, no outro dia,
estava um violinista na praça — continua, com voz firme. — E a música dele fez-me chorar. Foi
a música mais bela que ouvi. Bebi champanhe, diretamente da garrafa, e vi o sol pôr-se sobre o
Sena enquanto os sinos repicavam em Notre Dame, e nada disso teria acontecido em Villon. —
Vira-se para olhar para ele. — Passaram-se apenas dois anos — diz ela. — Pensa só em todo o
tempo que ainda tenho e em todas as coisas que hei de ver.
Então Addie sorri ironicamente para a sombra, um sorriso selvagem, todo dentes,
banqueteando-se com a forma como o humor se despenha no rosto dele.
É uma pequena vitória e, no entanto, tão doce, vê-lo hesitar, nem que seja apenas por um
instante. E depois, subitamente, ele está demasiado perto, o ar entre ambos apagado como uma
vela. Cheira a noites de verão, a terra, a musgo e a erva alta a ondular sob as estrelas. E a algo
mais sombrio. A sangue sobre pedra e lobos à solta na floresta.
Inclina-se até que a sua face aflora a dela e, quando volta a falar, as palavras são pouco mais
do que sussurros sobre pele.
— Achas que se vai tornar mais fácil — diz ele. — Não vai. É como se já tivesses morrido, e
cada ano que vives parecerá uma vida inteira, e, a cada vida, serás esquecida. O teu sofrimento é
insignificante. A tua vida é insignificante. Os anos serão como pesos à volta dos teus tornozelos.
Esmagar-te-ão, pouco a pouco, e, quando não conseguires aguentar mais, irás suplicar para que
acabe com o teu sofrimento.
Addie recua para enfrentar a escuridão, mas já não se encontra ali.
Fica sozinha na rua estreita. Inspira de forma profunda e irregular, obriga-se a expirar e
depois endireita-se, alisa as saias e caminha de volta à casa destruída que, pelo menos por essa
noite, é o seu lar.
Nova Iorque
13 de março de 2014

Hoje a livraria está mais concorrida.


Um miúdo brinca às escondidas com o amigo imaginário enquanto o pai folheia uma história
militar. Uma estudante universitária, de cócoras, passa em revista as várias edições de Blake, e o
rapaz que conheceu no dia anterior encontra-se atrás do balcão.
Estuda-o, um hábito que é como passar um dedo por um livro.
O seu cabelo negro cai-lhe para os olhos, rebelde, indomável. Penteia-o para trás, mas, em
segundos, voltou a cair de novo para a frente, fazendo-o parecer mais novo do que é.
Tem o tipo de rosto de quem não consegue guardar bem segredos, pensa ela.
Há uma fila breve, por isso Addie demora-se entre as secções de poesia e de biografia.
Tamborila com as unhas pela prateleira, e, alguns instantes mais tarde, uma cabeça cor-de-laranja
espreita para fora da escuridão, por cima das lombadas. Faz festas a Book de forma ausente e
espera que a fila se reduza de três, para dois, para um.
O rapaz — Henry — repara nela, ali perto, e algo lhe atravessa o rosto, demasiado rápido para
ela própria interpretar, antes de a sua atenção se desviar de novo para a mulher ao balcão.
— Sim, Sr.ª Kline — diz. — Não, não há problema. E, se não for o que ele quer, traga-o cá
outra vez.
A mulher afasta-se lentamente, agarrada ao saco da loja, e Addie aproxima-se.
— Olá — diz de forma animada.
— Olá — diz Henry, com uma ponta de cautela na voz. — Posso ajudá-la?
— Espero que sim — diz ela, toda sedução treinada. Coloca A Odisseia em cima do balcão
entre ambos. — Um amigo comprou-me este livro, mas já o tenho. Tinha esperança de o poder
trocar por outro.
Ele estuda-a. Uma sobrancelha escura ergue-se por detrás dos óculos.
— Está a falar a sério?
— Eu sei — diz ela, com uma gargalhada. — É difícil de acreditar que já tenha este em
grego, mas...
Ele balança-se sobre os calcanhares.
— Está mesmo a falar a sério.
Addie vacila, desequilibrada pelo tom da voz dele.
— Pensei só que podia perguntar...
— Isto não é uma biblioteca — ralha ele. — Não pode simplesmente trocar um livro por
outro.
Addie endireita-se.
— Obviamente — diz, um pouco indignada. — Mas, como disse, não fui eu que o comprei.
Foi um amigo, e acabei de o ouvir dizer à Sr.ª Kline que...
O rosto dele endurece, o olhar taxativo de uma porta a ser fechada com estrondo.
— Um aviso: da próxima vez que tentar devolver um livro, não o devolva à mesma pessoa a
quem o roubou.
Uma pedra cai dentro do peito dela.
— O quê?
Ele abana a cabeça.
— Ainda ontem aqui esteve.
— Eu não...
— Lembro-me de si.
Três palavras, com a dimensão suficiente para abalarem o mundo.
Lembro-me de si.
Addie cambaleia como se tivesse sido atingida, prestes a cair. Tenta endireitar-se.
— Não, não se lembra — diz com firmeza.
Os olhos verdes de Henry estreitam-se.
— Lembro-me, sim. Veio aqui ontem, camisola verde, calças de ganga pretas. Roubou este
exemplar usado d’A Odisseia, que lhe devolvi, porque, afinal, quem é que rouba um exemplar
usado d’A Odisseia, ainda por cima em grego? E depois tem a lata de aqui voltar e de o tentar
trocar por outro livro? Quando nem sequer comprou o primeiro...
Addie fecha os olhos, a visão a turvar-se.
Não compreende.
Não pode...
— Olhe — diz ele —, acho melhor ir-se embora.
Ela abre os olhos e vê-o a apontar para a porta. Os pés não se mexem. Recusam-se a
transportá-la para longe daquelas três palavras.
Lembro-me de si.
Trezentos anos.
Trezentos anos, e ninguém disse essas palavras, nunca, nunca ninguém se lembrou. Quer
agarrá-lo pela manga, quer puxá-lo para a frente, quer saber porquê, como, o que há de tão
especial num rapaz de uma livraria — mas o homem com um livro sobre história militar está à
espera para pagar, com o miúdo agarrado à perna, e o rapaz dos óculos fita-a, e está tudo errado.
Agarra-se ao balcão, sente-se como se estivesse prestes a desmaiar. Os olhos dele suavizam-se,
apenas por uma fração de segundo.
— Por favor — diz ele baixinho. — Vá.
Ela tenta.
Não consegue.
Addie aproxima-se da porta aberta, dos quatro degraus breves que vão da loja à rua, antes de
algo em si ceder.
Afunda-se junto às escadas, põe a cabeça entre as mãos, sente-se como se pudesse chorar ou
rir, mas, em vez disso, volta a olhar pelo vidro trabalhado da porta da loja. Vê o rapaz de cada
vez que ele se aproxima do caixilho da porta. Não consegue afastar os olhos.
Lembro-me de si. Lembro-me de si. Lembro-me de si. Lembro-me de si. Lembro-me de si.
Lembro-me de si. Lembro-me de si. Lembro-me de si. Lembro-me de si. Lembro-me de si.
Lembro-me de si. Lembro-me de si. Lembro-me de si. Lembro-me de si. Lembro-me de si.
Lembro-me de...
— O que está a fazer?
Pestaneja e vê-o de pé, junto à porta, de braços cruzados. O sol desceu mais um pouco no
horizonte, com a luz a tornar-se mais suave.
— Estou à tua espera — responde, retraindo-se mal acaba de o dizer. — Queria pedir
desculpa — continua. — Pela história do livro.
— Não faz mal — diz ele secamente.
— Faz, sim — diz ela, levantando-se. — Deixa-me oferecer-te um café.
— Não tens de o fazer.
— Insisto. Como pedido de desculpa.
— Estou a trabalhar.
— Por favor.
E há certamente algo na forma como o diz, uma combinação simples de esperança e de
necessidade, a evidência de que havia ali mais do que um livro, mais do que um pedido de
desculpas, que faz com que o rapaz a olhe nos olhos, a faça dar-se conta de que, na verdade, não
o fizera, pelo menos até esse momento. Há algo estranho, uma busca, no seu olhar, mas, seja o
que for que vê quando olha para ela, fá-lo mudar de ideias.
— Um café — diz ele. — Mas continuas proibida de entrar na loja.
Addie sente o ar regressar-lhe precipitadamente aos pulmões.
— Combinado.
Nova Iorque
13 de março de 2014

Addie demora-se uma hora nos degraus da livraria até esta fechar.
Henry fecha tudo e vira-se para a ver ali, e Addie prepara-se mais uma vez para o vazio no
seu olhar, a confirmação de que o seu encontro anterior foi apenas uma avaria estranha, um
ponto falhado nos séculos da sua maldição.
Mas, quando ele olha para ela, conhece-a. Tem a certeza de que a conhece.
As sobrancelhas erguem-se por detrás das pestanas emaranhadas, como se estivesse
surpreendido pelo facto de ela ainda ali estar. Mas a sua irritação deu lugar a outra coisa — algo
que a confunde ainda mais.
É menos hostil do que a desconfiança, mais reservado do que o alívio, e continua a ser
maravilhoso, pelo conhecimento que contém. Não é um primeiro encontro, mas um segundo —
ou, antes, um terceiro —, e, pela primeira vez na vida, não é a única a saber.
— Então? — diz ele, estendendo-lhe a mão, não para que pegue nela, mas para apontar o
caminho, e ela fá-lo. Caminham alguns quarteirões num silêncio desconfortável, com Addie a
roubar olhares que não lhe dizem mais do que a linha do seu nariz, o ângulo do seu maxilar.
Tem um olhar esfaimado, feroz e magro, e, apesar de ser alto, de uma forma natural, reclina
os ombros como que para se tornar mais baixo, mais pequeno, mais discreto. Talvez, com a
roupa certa, com o ar certo, talvez, talvez; mas, quanto mais olha para ele, mais reduzidas são as
semelhanças com aquele outro estranho.
E, no entanto.
Há algo nele que continua a chamar a sua atenção, a puxá-la como um prego repuxa uma
camisola.
Apanha-a duas vezes a olhar para ele e franze o sobrolho.
Uma vez, Addie dá com ele a intercetar o seu próprio olhar e sorri.
No café, diz-lhe para se sentar a uma mesa enquanto vai buscar as bebidas, e ele hesita, como
se estivesse dividido entre o impulso de pagar e o medo de ser envenenado, antes de se enfiar
num lugar de canto. Addie pede um café com leite para ele.
— Três e oitenta — diz a rapariga do outro lado do balcão.
Addie retrai-se ao ouvir o preço. Tira umas quantas notas do bolso, o resto do que roubou a
James St. Clair. Não tem dinheiro que chegue para dois pedidos e não pode simplesmente sair
dali com eles, porque está um rapaz à espera dela. Que se lembra.
Addie lança uma olhadela para a mesa, onde ele está sentado, de braços cruzados, a olhar para
fora da janela.
— Eve! — chama a empregada de balcão. — Eve!
Addie assusta-se, apercebendo-se de que se referem a ela.
— Então — diz o rapaz quando ela se senta. — Eve?
Não, pensa ela.
— Sim — diz ela. — E tu és...
Henry, pensa, antes mesmo de ele dizer.
— Henry. — Assenta-lhe bem, como um casaco. Henry: suave, poético. Henry: calmo, forte.
Os caracóis negros, os olhos claros por detrás das armações pesadas. Conheceu uma série de
Henrys, em Londres, Paris, Boston e Los Angeles, mas este não se parece com nenhum deles.
O seu olhar desce para a mesa, para a chávena, para as mãos vazias.
— Não pediste nada.
Ela faz um aceno despreocupado.
— Não estou com muita sede — mente.
— É estranho.
— Porquê? — Addie encolhe os ombros. — Disse que te pagava um café. Além disso —
hesita —, perdi a carteira. Não tinha que chegasse para dois.
Henry franze o sobrolho.
— Foi por isso que roubaste o livro?
— Não o roubei. Queria fazer uma troca. E pedi desculpa.
— Pediste?
— Com o café.
— Por falar nisso — diz ele, levantando-se. — Como gostas de o tomar?
— O quê?
— O café. Não vou ficar aqui a beber sozinho, faz-me sentir um idiota.
Ela sorri.
— Chocolate quente. Simples.
As sobrancelhas negras voltam a arquear. Afasta-se para fazer o pedido, diz algo que faz a
empregada de balcão rir e inclina-se para a frente, como uma flor para o sol. Regressa com uma
segunda chávena e um croissant e coloca-os ambos diante dela antes de se voltar a sentar, e
agora estão de novo desemparelhados. Com o equilíbrio ameaçado, restaurado e novamente
ameaçado, é o tipo de jogo que ela jogou centenas de vezes, uma luta feita de pequenos gestos,
com o estranho a sorrir do outro lado da mesa.
Mas este não é o seu estranho, e não está a sorrir.
— Então — diz Henry —, o que foi aquela história toda hoje, com o livro?
— Sinceramente? — Addie coloca as mãos à volta da chávena. — Não pensei que te fosses
lembrar.
A pergunta chocalha como moedas soltas dentro do peito de Addie, como seixos numa tigela
de louça; agita-se dentro dela, ameaçando sair para fora.
Como te lembraste? Como? Como?
— The Last Word não tem assim tantos clientes — diz Henry. — E ainda menos que tentem
sair sem pagar. Acho que causaste impressão.
Impressão.
Uma impressão é como uma marca.
Addie passa os dedos pela espuma do chocolate quente, vê o leite alisar-se de novo depois do
gesto. Henry não repara, mas reparou nela, lembrou-se.
O que está a acontecer?
— Então — diz ele, mas a frase não chega a lado nenhum.
— Então — repete ela, porque não pode dizer o que quer. — Fala-me de ti.
Quem és tu? Por que motivo és tu? O que está a acontecer?
Henry morde o lábio e diz:
— Não tenho muito para dizer.
— Sempre quiseste trabalhar numa livraria?
O rosto de Henry fica pensativo.
— Não tenho a certeza se é o emprego com que as pessoas sonham, mas eu gosto.
Leva o café com leite aos lábios quando alguém passa apressadamente, dando um encontrão
na cadeira. Henry endireita a chávena a tempo, mas o homem começa a pedir desculpa. E não
para.
— Peço imensa desculpa. — O rosto contorce-se de culpa.
— Não faz mal.
— Fi-lo entornar a chávena? — pergunta o homem com uma preocupação genuína.
— Não — diz Henry. — Está tudo bem.
Se regista a intensidade do homem, não dá sinais disso. Continua profundamente concentrado
em Addie, como se fosse capaz de afastar o homem apenas com a sua força de vontade.
— Que estranho — diz ela, quando finalmente se foi embora.
Henry limita-se a encolher os ombros.
— Os acidentes acontecem.
Não era a isso que ela se referia. Mas os pensamentos passam como comboios, e ela não se
pode dar ao luxo de descarrilar.
— Então — diz ela —, a livraria... é tua?
Henry abana a cabeça.
— Não. Quero dizer, poderia perfeitamente ser, sou o único funcionário, mas pertence a uma
mulher chamada Meredith, que passa a maior parte do tempo em cruzeiros. Trabalho apenas lá. E
tu? O que fazes quando não andas a roubar livros?
Addie pondera a pergunta, as muitas respostas possíveis, todas elas mentiras, e decide-se por
algo mais próximo da verdade.
— Sou caçadora de talentos — diz. — Música, principalmente, mas também arte.
O rosto de Henry endurece.
— Devias conhecer a minha irmã.
— Oh? — pergunta Addie, desejando ter mentido. — É artista?
— Acho que ela diria que protege a arte, que isso corresponde de certa forma a um artista,
talvez. Gosta de... — faz um floreado — alimentar o potencial em bruto, de moldar a narrativa
do futuro criativo.
Addie pensa que gostaria de conhecer a irmã dele, mas não o diz.
— Tens irmãos? — pergunta ele.
Abana a cabeça, retirando uma pontinha do croissant porque ele não lhe tocou, e ela tem o
estômago a roncar.
— Sortuda — diz ele.
— Solitária — contrapõe ela.
— Bem, podes ficar com os meus. Tenho o David, que é médico, académico e um idiota
pretensioso, e a Muriel, que é, bem... a Muriel.
Olha para ela, e ali está de novo, aquela estranha intensidade, e talvez seja apenas por tão
poucas pessoas estabelecerem contacto visual na cidade, mas não consegue afastar a sensação de
que ele anda à procura de algo no seu rosto.
— O que foi? — pergunta, e ele começa a dizer uma coisa, mas muda de direção. — As tuas
sardas parecem estrelas.
Addie sorri.
— Já me disseram. A minha própria constelação. É a primeira coisa que toda a gente vê.
Henry mexe-se na cadeira.
— O que vês — diz ele — quando olhas para mim?
A sua voz é suficientemente leve, mas há qualquer coisa na pergunta, um peso, como uma
pedra enterrada numa bola de neve. Tem estando à espera para perguntar. A resposta é
importante.
— Vejo um rapaz de cabelo escuro, olhos gentis e rosto aberto.
Ele franze um pouco o sobrolho.
— Só isso?
— Claro que não — diz ela. — Mas ainda não te conheço.
— Ainda — ecoa ele, e há algo como um sorriso na sua voz. Addie comprime os lábios, volta
a observá-lo.
Por um instante, são o único ponto silencioso no café concorrido.
Quando se vive o tempo suficiente, aprende-se a ler uma pessoa. A abri-la facilmente como
um livro, com algumas passagens sublinhadas e outras escondidas entre as linhas. Addie
observa-lhe o rosto, o sulco leve onde as sobrancelhas sobem e descem, o conjunto dos lábios, a
forma como esfrega uma mão como se estivesse a eliminar uma dor, mesmo quando se inclina
para a frente e permanece, com a atenção completamente concentrada nela.
— Vejo alguém que se preocupa — diz ela lentamente. — Talvez demasiado. Que sente
demasiado. Vejo alguém perdido e esfaimado. O tipo de pessoa que se sente como se os outros
estiverem a esbanjar, num mundo cheio de comida, porque não conseguem decidir o que
desejam.
Henry olha para ela, sem qualquer réstia de humor no rosto, e ela sabe que se aproximou
demasiado da verdade.
Addie ri-se nervosamente, e o som repercute-se de volta, apressadamente.
— Desculpa — diz, abanando a cabeça. — Demasiado profundo. Provavelmente deveria ter
dito apenas que eras bonito.
A boca de Henry faz um esgar, mas o sorriso não lhe chega aos olhos.
— Pelo menos achas que sou bonito.
— E eu? — pergunta ela, tentando quebrar a tensão criada subitamente.
Mas, pela primeira vez, Henry não a olha diretamente.
— Nunca fui bom a interpretar pessoas. — Afasta a chávena com a mão e levanta-se, e Addie
pensa que estragou tudo. Está a ir-se embora.
Mas depois olha para ela e diz:
— Tenho fome. Tens fome?
E o ar regressa-lhe precipitadamente aos pulmões.
— Sempre — diz ela.
E, dessa vez, quando Henry lhe estende na mão, sabe que a está a convidar a agarrá-la.
Paris, França
29 de julho de 1719

Addie descobriu o chocolate.


Mais difícil de arranjar do que o sal ou o champanhe ou a prata, e, no entanto, a marquesa
guarda uma taça cheia de raspas negras e doces ao lado da cama. Addie pergunta-se, enquanto
deixa derreter uma lasca na língua, se a mulher contará os pedaços todas as noites ou se só repara
quando os dedos afloram o fundo vazio do recipiente. Não está em casa para lhe perguntar. Se
estivesse, Addie não estaria esparramada em cima do seu edredão.
Mas Addie e a dona da casa nunca se cruzaram.
Com sorte, nunca se cruzarão.
Afinal, o marquês e a esposa têm uma agenda social bastante preenchida, e, ao longo dos
últimos anos, a sua casa na cidade tornou-se um dos seus antros preferidos.
Antros é a palavra certa para alguém que vive como um fantasma.
Duas vezes por semana, recebem amigos para jantar na sua casa da cidade, uma vez por
semana organizam uma festa ainda mais sumptuosa e uma vez por mês, o que coincide com essa
noite, atravessam Paris de carruagem para irem jogar às cartas com outras famílias nobres e só
regressam de madrugada.
Por esta altura, os serviçais já se retiraram para os seus próprios aposentos, sem dúvida para
beber e saborear a sua pequena dose de liberdade. Farão turnos, para que, em qualquer momento,
uma única sentinela esteja de vigia ao fundo das escadas, enquanto os outros apreciam a sua paz.
Talvez também joguem às cartas. Ou talvez se deliciem apenas com o sossego de uma casa
vazia.
Addie coloca mais um pedaço de chocolate na língua e recosta-se na cama da marquesa,
afundando-se na nuvem arejada. Há mais almofadas ali do que em toda a Villon, disso tem a
certeza, e cada uma delas tem o dobro das penas. Aparentemente, os nobres são feitos de vidro,
criados para se quebrarem se forem depositados sobre uma superfície dura. Addie abre os braços,
como uma criança a fazer anjos na neve, e suspira de prazer.
Passou cerca de uma hora a vasculhar por entre os muitos vestidos da marquesa, mas não tem
mãos suficientes para se meter dentro de nenhum deles, por isso escolheu um roupão azul de
seda, mais requintado do que qualquer coisa que tenha possuído. O seu próprio vestido, uma
coisa cor de ferrugem com uma orla de renda creme, jaz abandonado em cima da chaise-longue,
e, quando olha para ele, lembra-se da indumentária de casamento, largada em cima da relva, na
margem do Sarthe, o linho muito branco despido como uma pele, ao seu lado.
A recordação cola-se como uma teia de aranha.
Addie puxa o vestido para junto de si, inspira o aroma a rosas na orla, fecha os olhos e
imagina que aquela é a sua cama, a sua vida, e, por alguns minutos, é suficientemente agradável.
Mas o quarto está demasiado quente, demasiado silencioso, e receia que, se se demorar na cama,
esta a possa engolir. Ou pior, poderia adormecer e ser acordada aos safanões pela dona da casa, e
que doloroso seria, visto que o quarto fica no segundo andar.
Demora um minuto completo a sair da cama, com as mãos e os joelhos a afundarem-se no
chão, enquanto se precipita para a beira e cai desajeitadamente em cima do tapete. Recupera o
equilíbrio com a ajuda do poste de madeira, ramos delicados esculpidos em carvalho, pensa em
árvores enquanto passa o quarto em revista, decidindo o que irá fazer de seguida. Uma porta de
vidro conduz à varanda exterior, outra de madeira ao corredor. Uma cómoda com gavetas. Uma
chaise-longue. Um toucador, encimado por um espelho polido.
Addie afunda-se num banco acolchoado frente ao toucador, com os dedos a dançarem por
cima dos frascos de perfume e dos recipientes com cremes, a plumagem suave de uma borla para
pó de arroz, uma taça com ganchos prateados.
Destes, tira uma mão-cheia e começa a enrolar e a prender madeixas de cabelo, a fixar os
caracóis atrás e em volta do rosto como se fizesse alguma ideia do que está a fazer. O estilo atual
faz lembrar o ninho de um pardal, um amontoado de mechas. Pelo menos ainda não se espera
que use uma cabeleira, uma daquelas coisas monstruosas e empoadas como torres de merengue
que ficarão na moda dali a cinquenta anos.
O seu ninho de caracóis está pronto, mas precisa de um toque final. Addie pega numa travessa
de madrepérola em forma de pena e passa os dentes pelas madeixas, mesmo atrás da orelha.
Estranho como as pequenas diferenças se acumulam.
Empoleirada no assento almofadado, rodeada pelo luxo, no seu vestido de seda azul
emprestado, com o cabelo preso em caracóis, Addie quase se poderia esquecer de si própria,
quase poderia ser outra pessoa. Uma senhora jovem, a dona da casa, capaz de se deslocar
livremente, a coberto da sua reputação.
Apenas as sardas no rosto se destacam, um lembrete de quem Addie era, é, sempre será.
Mas as sardas escondem-se facilmente.
Pega na borla de pó de arroz, quase a leva ao rosto, quando uma brisa suave agita o ar,
transportando o aroma, não de Paris, mas de campos abertos, e uma voz baixa diz:
— Preferia ver nuvens a tapar as estrelas.
O olhar de Addie incide no espelho e no reflexo do quarto, atrás dela. As portas para a
varanda ainda estão fechadas, mas o quarto já não está vazio. A sombra está encostada à parede
com todo o à-vontade de alguém que ali está já há algum tempo. Não está surpreendida por o ver
(tem aparecido, ano após ano), mas fica perturbada. Ficará sempre perturbada.
— Olá, Adeline — diz a sombra, e, embora esteja do outro lado do quarto, as palavras
afloram-lhe como folhas contra a pele.
Addie vira-se, sentada no banco, com a mão livre a subir até ao decote aberto do vestido.
— Vai-te embora.
Ele faz estalar a língua.
— Um ano sem me veres e é tudo o que tens para dizer?
— Não.
— Então que dizes?
— Digo não — repete. — É a minha resposta, à tua pergunta. O único motivo por que estás
aqui. Vieste perguntar se me rendo, e a resposta é não.
O sorriso dele estremece, muda. E o cavalheiro desaparece; surge de novo o lobo.
— Minha Adeline, cresceram-te dentes.
— Não sou tua — diz ela.
Um lampejo branco, de aviso, e depois o lobo recua, finge de novo ser homem, enquanto
avança para a luz. E, no entanto, as sombras agarram-se a ele, esbatendo as extremidades, no
escuro.
— Concedo-te a imortalidade, e passas as noites a comer bombons em camas alheias.
Esperava mais do que isto para ti.
— E, no entanto, condenaste-me a menos. Vieste regozijar-te?
Ele passa uma mão pelo poste de madeira, percorrendo os ramos.
— Tanto veneno no dia do nosso aniversário. E eu que só vinha oferecer-te um jantar.
— Não vejo comida. E não quero a tua companhia.
Desloca-se como fumo, num instante de um dos lados do quarto e, no seguinte, ao lado dela.
— Se fosse a ti, não me desprezava com tanta facilidade — diz, com um dedo comprido a
aflorar a travessa de madrepérola no cabelo dela. — Sou a única companhia que alguma vez
terás.
Antes de Addie conseguir recuar, o ar fica vazio; a sombra está de novo na extremidade
oposta do quarto, com uma mão pousada na borla ao lado da porta.
— Para — diz ela, pondo-se de pé, mas é demasiado tarde. Ele puxa e, um instante depois, a
campainha toca, quebrando o silêncio da casa.
— Maldito sejas — sibila ela, ao ouvir o som de passos nas escadas.
Addie já se está a virar para pegar no vestido, para surripiar o pouco que conseguiu antes de
fugir — mas a escuridão prende-lhe o braço. Obriga-a a ficar ali, ao seu lado, como uma criança
malcomportada, enquanto a criada da senhora abre a porta.
Deveria espantar-se ao vê-los, dois estranhos no quarto principal, mas não há choque no rosto
da mulher. Não há surpresa, raiva ou medo. Não há nada de nada. Apenas uma espécie de vazio,
uma calma característica dos sonhadores e dos aturdidos. A criada fica ali, de cabeça inclinada e
mãos entrelaçadas, à espera de ordens, e Addie compreende, com o horror e o alívio a despontar,
que a mulher foi enfeitiçada.
— Jantaremos hoje no salão — diz a escuridão, como se a casa fosse sua. Há um timbre de
voz novo na sua voz, uma película, como gaze a envolver pedra. Estremece no ar, enrola-se em
torno da criada, e Addie sente-o deslizar pela sua própria pele, mesmo que não consiga aderir a
ela.
— Sim, senhor — diz a criada com uma pequena vénia.
Vira-se para os conduzir escadas abaixo, e a escuridão olha para Addie e sorri.
— Anda — diz, com os olhos a assumirem um verde-esmeralda com um brilho arrogante. —
Ouvi dizer que o chef do marquês é um dos melhores de Paris.
Oferece-lhe o braço, mas ela não aceita.
— Não estás realmente à espera de que jante contigo?
Ele ergue o queixo.
— Vais desperdiçar uma refeição como esta simplesmente porque também estou à mesa?
Acho que o teu estômago é mais ruidoso do que o teu orgulho. Mas faz como quiseres, minha
querida. Fica aqui, no teu quarto emprestado, a empanturrares-te com guloseimas roubadas.
Jantarei sem ti.
E, com estas palavras, afasta-se, e ela fica dividida entre o impulso de bater com a porta atrás
dele e a consciência de que tem a noite estragada, quer jante com ele quer não, de que, mesmo
que fique ali, naquele quarto, a sua mente segui-lo-á escadas abaixo, até à sala de jantar.
E por isso vai.
Dali a sete anos, Addie verá um espetáculo de fantoches realizado numa praça de Paris. Uma
carroça com uma cortina, com um homem por trás, as mãos erguidas para mover as figurinhas de
madeira, os seus membros a dançarem para cima e para baixo, presos por fios.
E pensará naquela noite.
Naquele jantar.
Os empregados da casa movem-se à volta deles como se estivessem presos por fios, suaves e
silenciosos, cada gesto feito com a mesma facilidade sonolenta. Cadeiras puxadas para trás,
toalhas alisadas, garrafas de champanhe abertas e vertidas para flutes de cristal à espera.
Mas a comida aparece demasiado depressa, com o primeiro prato a chegar enquanto os copos
se enchem. Seja qual for o domínio que a escuridão tem sobre os criados desta casa, começou
antes da sua entrada no quarto roubado. Começou antes de tocar a campainha e de chamar a
criada e de a convidar para jantar.
Deveria parecer profundamente desenquadrado na sala em filigrana. Afinal, é uma coisa
selvagem, um deus das noites da floresta, um demónio condenado pela escuridão, e, no entanto,
está ali sentado com a pose e a graça de um nobre a apreciar o seu jantar.
Addie toca nos talheres de prata, na orla dourada dos pratos.
— Devo ficar impressionada?
A escuridão olha-a do outro lado da mesma.
— E não estás? — pergunta, enquanto os criados fazem uma vénia e recuam em direção às
paredes.
A verdade é que tem medo. Está perturbada pela exibição. Conhece o poder dele — pelo
menos, pensava que sim —, mas uma coisa é fazer um pacto, outra ser testemunha de tal
controlo. O que os poderia obrigar a fazer? Quão longe os poderia obrigar a ir? Será tão fácil
para ele como manusear fios?
O primeiro prato é colocado diante dela, uma sopa cremosa com a tonalidade laranja-clara da
madrugada. Cheira maravilhosamente, e o champanhe borbulha no copo, mas não se permite
tocar em nenhum dos dois.
A escuridão lê a prudência no seu rosto.
— Vamos, Adeline — diz —, não há aqui nada de fantasmagórico, nenhuma armadilha
composta por comida e bebida.
— E, no entanto, tudo parece ter um preço.
Ele expira, com os olhos a reluzirem num tom de verde mais claro.
— Como queiras — diz, pegando no copo e bebendo profundamente.
Depois de um momento prolongado, Addie cede e ergue o copo de cristal até aos lábios,
bebendo o primeiro gole de champanhe. Não se parece com nada que alguma vez tenha provado;
mil bolhinhas frágeis percorrem-lhe a língua, doces e pungentes, e derreteria de prazer, se fosse
outra mesa qualquer, outro homem qualquer, outra noite qualquer. Em vez de saborear cada
sorvo, esvazia imediatamente o copo, e, no momento em que o pousa na mesa, a cabeça tem uma
ligeira efervescência, e a criada já se encontra ao seu lado, a servi-la de novo.
A escuridão bebe a sua em pequenos goles e observa, sem dizer nada, enquanto come. O
silêncio da sala cresce, pesado, mas Addie não o quebra.
Em vez disso, concentra-se primeiro na sopa e depois no peixe e de seguida num prato de
carne envolvido numa crosta de massa. É mais do que comeu em meses, em anos, e sente-se
cheia de uma forma que excede o próprio estômago. E, ao abrandar, estuda o homem, que não é
um homem, do outro lado da mesa, a forma como as sombras se vergam, na sala, atrás dele.
Nunca estiveram tanto tempo juntos.
Antes disso, houve apenas aqueles escassos instantes no bosque, os minutos passados num
quarto decrépito, meia-hora junto ao Sena. Mas agora, pela primeira vez, não se esconde atrás
dela como uma sombra, não se demora como um fantasma nas orlas da sua visão. Agora, está
sentado à sua frente, totalmente exposto, e, apesar de ela conhecer os pormenores estáticos do
seu rosto, depois de os ter desenhado centenas de vezes, não consegue evitar estudá-lo em
movimento.
E ele permite-lho.
Não há timidez nos seus modos.
Parece, acima de tudo, apreciar a atenção dela.
Enquanto a faca desliza pelo prato, enquanto leva um pedaço de carne aos lábios, as suas
sobrancelhas negras erguem-se, a boca repuxa no canto. Menos um homem do que uma coleção
de traços, desenhados por uma mão meticulosa.
Com o tempo, isso mudará. Inchará, expandir-se-á para preencher os espaços entre as linhas
do desenho de Addie, a imagem será arrebatada ao seu controlo, até Addie deixar de sentir que
alguma vez foi sua.
Mas, por enquanto, o único traço que é dele — totalmente dele — são aqueles olhos.
Imaginou-os centenas de vezes e, sim, eram sempre verdes, mas, nos seus sonhos, tinham um
só tom: o verde constante das folhas no verão.
Os dele são diferentes.
Desconcertantes, inconstantes, com a mais pequena mudança de estado de espírito, de
temperamento, refletida neles, e apenas ali.
Addie demorará anos a aprender a linguagem daqueles olhos. A perceber que o divertimento
os deixa do tom da hera no estio, ao passo que a irritação os ilumina como uma maçã amarga, e o
prazer, o prazer os escurece até ao quase-preto dos bosques, de noite, com o verde a persistir
apenas nas margens.
Nessa noite, têm a cor escorregadia das ervas presas na corrente de um riacho.
No fim do jantar, assumirão um tom completamente diferente.
Existe algo lânguido na sua postura. Está ali sentado, com um dos cotovelos em cima da
toalha de mesa, a atenção a vaguear, a cabeça muito ligeiramente inclinada, como que a ouvir um
som longínquo, enquanto os dedos elegantes desenham a linha do queixo como se estivesse
divertido com a sua própria forma, e, antes de se dar conta disso, já Addie já quebrou de novo o
silêncio.
— Como te chamas?
Os seus olhos deslizam de um canto da sala, de volta a ela.
— Porque tenho de ter um nome?
— Todas as coisas têm nomes — diz ela. — Os nomes têm propósito. Os nomes têm poder.
— Addie inclina o copo na direção dele. — Sabes isso, caso contrário não me tinhas roubado o
meu.
Um sorriso assoma no canto da boca dele, cruel, divertido.
— Se for verdade — diz ele — que os nomes têm poder, então porque te haveria de dizer o
meu?
— Porque tenho de te chamar alguma coisa, a ti e na minha cabeça. E neste momento só
tenho impropérios.
A escuridão não se parece importar.
— Chama-me o que quiseres, não faz diferença. O que chamavas ao estranho nos teus
cadernos? O homem a partir do qual me moldaste?
— Tu moldaste-te a ti mesmo para fazer troça de mim, e preferia que assumisses qualquer
outra forma.
— Vês violência em todos os gestos — reflete, passando um polegar pelo copo. — Moldei-
me para me adaptar a ti. Para te deixar à vontade.
A raiva ergue-se no peito de Addie.
— Destruíste a única coisa que ainda tinha.
— Que pena só teres sonhos.
Resiste ao impulso de lhe atirar o copo de cristal, sabendo que não servirá de nada. Em vez
disso, olha para o criado junto à parede e ergue-o para que o encha. Mas o criado não se mexe —
nenhum deles o faz. Estão presos à vontade dele, não à dela. E por isso ela levanta-se e vai ela
própria buscar a garrafa.
— Qual era o nome do teu estranho?
Addie regressa ao seu lugar, volta a encher o copo, concentra-se nos milhares de bolhas
cintilantes que se erguem no centro. — Não tinha nome — diz ela.
Mas é mentira, claro, e a escuridão olha para ela como como se o soubesse. A verdade é que
tentou vários nomes ao longo dos anos — Michel e Jean, Nicolas, Henri, Vincent —, mas
nenhum deles lhe pareceu encaixar. E então, uma noite, ali estava, mesmo debaixo da língua,
quando estava aninhada na cama, envolvida na imagem dele ao seu lado, com os dedos longos a
percorrerem-lhe o cabelo. O nome passara-lhe pelos lábios, simples como uma respiração,
natural como o ar.
Luc.
Na sua cabeça, era o diminutivo de Lucien, mas agora, sentada em frente àquela sombra,
àquela farsa, a ironia era como uma bebida demasiado quente para se ingerir, uma brasa a arder-
lhe no peito.
Luc.
Como em Lucifer.
As palavras ecoam através dela, transportadas como uma brisa.
Serei o diabo ou a escuridão?
E ela não sabe, nunca saberá, mas o nome já está estragado.
Que fique com ele.
— Luc — murmura ela.
A sombra sorri, uma imitação ofuscante e cruel da alegria, e ergue o copo como se fosse fazer
um brinde.
— Então Luc será.
Addie volta a engolir o copo de um trago, agarrando-se ao aturdimento que o líquido lhe traz.
Os efeitos não duram, claro, sente os sentidos debaterem-se para regressar ao normal depois de
esvaziar cada copo, mas insiste, decidida a levar a melhor sobre eles, pelo menos por algum
tempo.
— Odeio-te — diz ela.
— Oh, Adeline — diz ele, pousando o copo. — Sem mim, onde estarias? — enquanto fala,
roda a base de cristal do copo entre os dedos, e, no seu reflexo facetado, ela vê outra vida — a
sua e não a sua —, uma versão em que Adeline não corria para o bosque enquanto o sol se punha
e o copo d’água se organizava, não pedia à escuridão que a libertasse.
No copo, vê-se a si própria — o seu velho eu, a pessoa que poderia ter sido, com os filhos de
Roger ao lado e um bebé pequeno na anca e o seu rosto familiar tornado macilento devido ao
cansaço. Addie vê-se ao lado dele, na cama, com um espaço frio entre os seus corpos, vê-se
inclinada sobre a lareira como a mãe estava sempre, as mesmas rugas cavadas, também, os dedos
a doerem demasiado para coser os rasgões na roupa, demasiado para pegar nos velhos lápis de
desenho; vê-se definhar na latada da vida e percorrer todos os degraus tão familiares a todas as
pessoas em Villon, o caminho breve do berço à sepultura — a igrejinha à espera, imóvel e
cinzenta como um túmulo.
Addie vê-o, e está grata por ele não perguntar se voltaria atrás, se trocaria o que tem por
aquilo, porque, apesar de toda a mágoa e loucura, da perda, da fome e do sofrimento, continua a
recusar a imagem no vidro.
A refeição terminou, e os criados da casa encontram-se na sombra, à espera da próxima
ordem do seu amo. E, apesar de as suas cabeças estarem inclinadas e de os seus rostos estarem
vazios, não pode evitar pensar neles como reféns.
— Gostava que os mandasses embora.
— Já não possuis mais desejos — diz ele. Mas Addie cruza o olhar com o dele e aguenta-o (é
mais fácil, agora que tem um nome, pensar nele como um homem, e os homens podem ser
desafiados) e, passado um instante, a escuridão suspira e vira-se para o criado mais próximo e
diz-lhe que abra uma garrafa aos serviçais e que se vão embora.
E agora estão sozinhos e que a sala parece mais pequena do que dantes.
— Pronto — diz Luc.
— Quando o marquês e a mulher chegarem a casa e encontrarem os criados bêbedos, estes
irão sofrer as consequências.
— E pergunto-me quem será culpado pelo desaparecimento dos chocolates no quarto da
senhora? Ou pelo roupão de seda azul? Achas que ninguém sofre as consequências quando
roubas?
Addie indigna-se, com o calor a subir-lhe às faces.
— Não me deste hipótese.
— Dei-te o que pediste, Adeline. Tempo, sem limitações. Vida sem restrições.
— Amaldiçoaste-me para ser esquecida.
— Pediste liberdade. Não há maior liberdade do que essa. Podes andar pelo mundo sem
impedimentos. Solta. Sem laços.
— Para de fingir que me fizeste um favor e não uma crueldade.
— Fiz um pacto contigo. — A mão bate com força no tampo da mesa enquanto o diz, com a
irritação a relampejar-lhe nos olhos, amarela, breve como um relâmpago. — Vieste ter comigo.
Suplicaste. Imploraste. Escolheste as palavras. Eu escolhi as condições. Não há volta atrás. Mas,
se já estás farta de continuar, basta dizeres.
E ali estava de novo, o ódio, ao qual era muito mais fácil agarrar-se.
— Foi um erro amaldiçoares-me. — A língua dela solta-se, e não sabe se é do champanhe ou
apenas da presença prolongada da escuridão, da habituação que decorre do tempo, como um
corpo a ambientar-se a um banho demasiado quente. — Se apenas me tivesses dado aquilo que
pedi, ter-me-ia esgotado com o tempo, teria tido a minha dose de vida, e teríamos, ambos,
ganhado. Mas agora, por mais cansada que esteja, nunca te darei esta alma.
Ele sorri.
— És mesmo teimosa. Mas mesmo as rochas se desgastam até se transformarem em nada.
Addie inclina-se para a frente na cadeira.
— Achas que és um gato, a brincar com a sua presa. Mas eu não sou um rato e não serei a tua
refeição.
— Espero que não. — Abre os braços. — Há muito tempo que não enfrentava um desafio.
Um jogo. Para ele, tudo é um jogo.
— Subestimas-me.
— Achas? — uma sobrancelha negra ergue-se enquanto sorve a bebida. — Veremos, então.
— Sim — diz Addie, bebendo a sua. — Veremos.
Nessa noite, Luc ofereceu-lhe algo, apesar de ela duvidar de que ele o saiba. O tempo não tem
rosto, não tem forma, nada contra o qual lutar. Mas, no seu sorriso trocista, nas suas palavras
zombeteiras, a escuridão revelou a única coisa de que realmente precisa: de um inimigo.
É aí que as linhas de batalha se desenham.
O primeiro tiro pode ter sido disparado em Villon, quando lhe roubou a vida, juntamente com
a alma, mas aquilo, aquilo é o deflagrar da guerra.
Nova Iorque
13 de março de 2014

Addie segue Henry até um bar demasiado concorrido, demasiado barulhento.


Todos os bares em Brooklyn são assim, muito pouco espaço para demasiados corpos, e o
Merchant aparentemente não é exceção, mesmo a uma quinta-feira. Addie e Henry estão
enfiados numa esplanada estreita, nas traseiras, comprimidos um contra o outro debaixo de um
toldo, mas ela continua a ter de se inclinar para a frente para ouvir a voz dele sobre um fundo de
ruído.
— De onde és? — começa ela.
— Do Norte. Newburgh. E tu?
— Villon-sur-Sarthe — diz ela. As palavras magoam-na um pouco na garganta.
— França? Não tens pronúncia.
— Viajei um pouco.
Partilham uma dose de batatas fritas e duas cervejas de happy-hour porque, explica ele, com
um emprego numa livraria não se ganha lá muito bem. Addie gostava de poder voltar atrás e ir
buscar bebidas decentes para ambos, mas já lhe contou a mentira acerca da carteira e não quer
usar mais expedientes, pelo menos depois d’A Odisseia.
Além disso, tem medo.
Medo de que ele se vá embora.
Medo de que ele desapareça do seu campo de visão.
Seja o que for que se está a passar, uma falha, um erro, um sonho bonito ou um golpe de sorte
impossível, tem medo de o perder. Tem medo de perder Henry.
Um passo em falso e acordará. Um passo em falso, e a corda partir-se-á, a maldição voltará a
abater-se sobre ela, e será o fim, e Henry desaparecerá, e ficará de novo sozinha.
Obriga-se a regressar ao presente. A apreciá-lo enquanto dura. Não pode durar. Mas ali,
agora...
— Dava tudo para saber em que estás a pensar — grita ele por cima da multidão.
Ela sorri.
— Estou ansiosa por que chegue o verão. — Não é mentira. Foi uma primavera longa e
húmida, e está cansada de ter frio. O verão significa dias quentes e noites em que a luz se
demora. O verão significa mais um ano viva. Mais um ano sem...
— Se pudesses pedir uma coisa — interrompe Henry —, o que seria?
Estuda-a, semicerrando os olhos como se ela fosse um livro, não uma pessoa; algo para ler.
Ela devolve-lhe o olhar como se ele fosse um fantasma. Um milagre. Algo impossível.
Isto, pensa, mas levanta o copo vazio e diz:
— Outra cerveja.
Addie consegue recordar cada segundo da sua vida, mas, nessa noite, com Henry, os momentos
parecem escoar-se todos juntos. O tempo desliza enquanto saltam de bar em bar, com a happy
hour a dar lugar ao jantar e depois a bebidas tardias, e, sempre que chegam ao ponto em que a
noite se cinde e uma rua os conduz a caminhos diferentes e a outra continua, em frente, escolhem
a segunda rua.
Permanecem juntos, cada um deles à espera de que o outro diga «Está a fazer-se tarde» ou
«Tenho de ir andando» ou «Vemo-nos por aí». Há uma espécie de acordo silencioso, uma falta
de vontade de quebrar o que quer que aquilo seja, e ela sabe porque tem medo de partir o fio,
mas pergunta-se o que sentirá Henry. Pergunta-se o que será a solidão que vê por detrás dos seus
olhos. Pergunta-se por que motivo os empregados de mesa e de bar e os outros clientes olham
para ele daquela forma, com um afeto em que não parece reparar.
E depois é quase meia-noite e comem piza barata, caminham lado a lado pela primeira noite
quente de primavera, enquanto as nuvens se alongam, lá em cima, baixas e iluminadas pela lua.
Olha para cima, e Henry também, e, por um instante, apenas por um instante, ele parece
esmagadoramente, insuportavelmente triste.
— Tenho saudades das estrelas — diz ele.
— Eu também — diz ela, e o seu olhar volta a fixar-se nele, e ele sorri.
— Quem és tu?
Os olhos dele tornaram-se vítreos, e a forma como diz quem quase parece como, menos uma
pergunta sobre a sua identidade ou estado do que uma pergunta sobre como se encontra ali, e ela
quer perguntar-lhe a mesma coisa, mas tem um bom motivo, ao passo que ele está apenas um
pouco ébrio.
E simplesmente, perfeitamente normal.
Mas ele não pode ser normal.
Porque as pessoas normais não se lembram dela.
Chegaram ao metro. Henry para.
— Fico aqui.
A mão dele liberta-se da dela, e ali está, o velho medo familiar, dos desfechos, de algo a dar
lugar a nada, de momentos não escritos e de memórias apagadas. Addie não quer que a noite
chegue ao fim.
Não quer dizer as palavras da rutura. Não...
— Quero voltar a estar contigo — diz Henry.
A esperança enche-lhe o peito, até doer. Ouviu aquelas palavras centenas de vezes, mas, pela
primeira vez, parecem reais. Possíveis.
— Também quero voltar a estar contigo.
Henry sorri, o tipo de sorriso que se apodera completamente de um rosto.
Tira o telemóvel, e o coração de Addie afunda-se. Diz-lhe que tem o telemóvel avariado,
quando a verdade é que nunca precisou de um antes. Mesmo que tivesse alguém a quem ligar,
não o poderia fazer. Os dedos deslizariam inutilmente sobre o ecrã. Também não tem e-mail,
nenhuma forma de enviar uma mensagem de qualquer espécie, graças à parte do não-escreverás
da sua maldição.
— Não sabia que se podia existir sem telemóvel nos tempos de hoje.
— Sou antiquada — diz ela.
Oferece-se para passar por casa dela no dia seguinte. Onde vive? E ela agora sente-se como se
o universo estivesse a escarnecer dela.
— Fiquei em casa de uns amigos enquanto eles estão fora — diz ela. — Porque não vou ter
contigo à loja?
Henry acena com a cabeça.
— Na loja, então — diz ele, recuando. — Sábado?
— Sábado.
— Não desapareças.
Addie ri-se, uma pequena gargalhada frágil. E depois ele começa a afastar-se, tem um pé no
primeiro degrau, e o pânico apodera-se dela.
— Espera — diz, chamando-o. — Preciso de te dizer uma coisa.
— Oh, meu Deus — geme Henry. — Andas com alguém.
O anel arde-lhe no bolso.
— Não.
— Pertences à CIA e amanhã vais partir numa missão altamente secreta.
Addie ri-se.
— Não.
— És...
— O meu verdadeiro nome não é Eve.
Ele recusa, confuso.
— ... OK.
Não sabe se o conseguirá dizer, se a maldição o permitirá, mas tem de tentar.
— Não te disse o meu verdadeiro nome porque, bem... é complicado. Mas gosto de ti e quero
que o saibas... que o oiças da minha boca.
Henry endireita-se, ficando subitamente sóbrio.
— Qual é então?
— É A... — o som fica preso, apenas por um segundo, com a rigidez de um músculo há muito
destreinado. Uma peça de engrenagem enferrujada. E então... solta-se.
— Addie. — Engole em seco, com dificuldade. — O meu nome é Addie.
Fica a pairar no ar, entre os dois.
E então Henry sorri.
— Muito bem — diz ele. — Boa noite, Addie.
Tão simples quanto isto.
Duas sílabas a caírem de uma língua.
E é o melhor som que alguma vez ouviu. Quer atirar-lhe os braços ao pescoço, quer ouvi-lo
de novo, e outra vez, com a palavra impossível a insuflá-la como ar, a fazê-la sentir-se sólida.
Real.
— Boa noite, Henry — diz Addie, desejando que ele vire costas e se vá embora, porque acha
que não conseguirá obrigar-se a afastar-se dele.
Fica ali, enraizada no chão, no cimo da escadaria do metro, até ele desaparecer de vista,
sustém a respiração e espera sentir o fio partir-se, o mundo voltar a fechar-se na sua forma,
espera pelo medo e pela perda e pela consciência de que foi apenas um acaso, um erro cósmico,
um engano, de que agora chegou ao fim, de que nunca mais voltará a acontecer.
Mas não sente nenhuma dessas coisas.
Sente apenas alegria e esperança.
Os tacões das botas matraqueiam a rua de forma ritmada, e, mesmo depois de todos aqueles
anos, continua um pouco à espera de que um segundo par de sapatos a siga. De ouvir a névoa
ondulante da sua voz, suave e doce e escarninha. Mas não há sombras ao seu lado, pelo menos
dessa vez.
A noite está calma, e está sozinha, mas pela primeira vez não é o mesmo que estar só.
Boa noite, Addie, disse Henry, e Addie não consegue evitar pensar se de alguma forma ele
terá quebrado o feitiço.
Sorri e sussurra para si mesma.
— Boa noite, Ad...
Mas a maldição fecha-se em torno da sua garganta, com o nome ali preso, como sempre
esteve.
E, no entanto.
E, no entanto.
Boa noite, Addie.
Ao longo de trezentos anos, testou os limites do seu pacto, descobriu os lugares em que este
cede, o dobrar e fletir subtil em torno das grades, mas nunca uma saída.
E, no entanto.
De alguma forma, de modo impossível, Henry descobriu uma maneira de entrar.
De alguma forma, lembra-se dela.
Como? Como? A pergunta martela com o bater do seu coração, mas, nesse momento, Addie
não quer saber.
Nesse momento, agarra-se ao som do seu nome, o seu verdadeiro nome, na língua de outra
pessoa, e é o suficiente, é o suficiente, é o suficiente.
Paris, França
29 de julho de 1720

O palco está pronto, os lugares preparados.


Addie alisa a toalha da mesa, dispõe os pratos de porcelana, os copos — não de cristal, mas
de vidro — e retira o jantar do cesto. Não é uma refeição de cinco pratos, servida por mãos
glamorosas, mas é comida fresca e substancial. Um pão, ainda quente. Um pedaço de queijo.
Uma peça de carne de porco. Uma garrafa de vinho tinto. Está orgulhosa daquele sortido de
alimentos, ainda mais orgulhosa do facto de não ter feito uso de qualquer magia, à exceção da
maldição, para o reunir, de não ter simplesmente fechado os olhos, dito uma palavra e fazê-lo
aparecer.
E não é apenas a mesa.
É o quarto. Não uma divisão roubada. Um casebre de pedinte. Mas um lugar a que pode
chamar seu, pelo menos por agora.
Demorou dois meses a encontrá-lo, quinze dias a arranjá-lo, mas valeu a pena. De fora, não
tem grande aspeto: vidro partido e madeira empenada. E, é verdade, os pisos de baixo desabaram
ficando em ruínas, constituindo agora o lar de roedores e dos ocasionais gatos vadios — e, no
inverno, ficam apinhados de corpos que procuram qualquer tipo de abrigo —, mas agora é o pico
do verão, e os pobres da cidade ocuparam as ruas, e Addie reclamou o andar de cima para si.
Vedou as escadas e arranjou forma de entrar e de sair através da janela superior, como uma
criança num forte de madeira. É uma entrada pouco convencional, mas vale a pena, pelo quarto
que se encontra para lá dela, onde criou um lar para si.
Uma cama, feita com cobertores amontoados. Uma cómoda, cheia de roupa roubada. O
parapeito da janela a transbordar de bugigangas, vidro e porcelana e osso, reunidos e dispostos
como uma linha de pássaros improvisados.
No meio do quarto estreito, duas cadeiras colocadas diante de uma mesa coberta por uma
toalha clara. E, no centro, um ramo de flores, surripiadas de noite num jardim real e escondidas
nas dobras da saia. E Addie sabe que nada disso durará, nunca dura — uma brisa acabará por
roubar os totens da prateleira; haverá um incêndio ou uma inundação; o chão cederá ou a casa
secreta será descoberta e reclamada por outra pessoa.
Mas guardou as peças no último mês, reuniu-as e dispô-las uma a uma de modo a criar uma
aparência de vida, e, se quiser ser realmente sincera, não o fez apenas para si.
Fê-lo para a escuridão.
Fê-lo para Luc.
Ou então foi para o irritar, para provar que está a viver, que é livre. Que Addie não o deixará
dominá-la, que não o deixará escarnecer dela com a sua caridade.
No primeiro assalto a vitória foi dele, no segundo será dela.
E assim criou a sua casa e preparou-a para a companhia, apanhou o cabelo e vestiu-se de seda
castanha-avermelhada, a cor das folhas de outono, chegando a cingir-se dentro de um corpete,
apesar de detestar as armações de osso.
Teve um ano para planear, para conceber a ofensiva, e, enquanto arranja a sala, pensa em todo
o tipo de provocações, afiando as armas do seu discurso. Imagina as investidas dele e a sua
própria defesa, a forma como os olhos dele se iluminam ou escurecem à medida que a conversa
decorre.
Cresceram-te dentes, disse ele, e Addie irá mostrar-lhe quão aguçados se tornaram.
O sol já se pôs, e só lhe resta esperar. Passa-se uma hora, e o estômago ronca de desejo,
enquanto o pão arrefece no pano, mas não se permite comer. Em vez disso, assoma para fora da
janela e observa a cidade, as luzes oscilantes de candeias a serem acesas.
E ele não aparece.
Serve-se de um copo de vinho e anda de um lado para o outro, enquanto as velas roubadas
pingam e a cera se acumula na toalha de mesa e a noite cresce, pesada, com as horas primeiro
tardias a transformarem-se depois nas primeiras da manhã.
E ele continua sem aparecer.
As velas derretem e apagam-se, e Addie fica sentada no escuro enquanto aquela perceção se
instala sobre ela.
A noite passou, os primeiros fios de luz filtram-se pelo céu, e já é amanhã, e o seu aniversário
passou, e cinco anos tornaram-se seis sem a sua presença, sem o seu rosto, sem ele lhe perguntar
se já se fartou, e o mundo avança, porque não é justo, é fazer batota, está mal.
Ele devia ter aparecido, era essa a natureza da sua dança. Ela não o queria ali, nunca o quis,
mas esperava-o, ele fê-la esperar aquilo. Deu-lhe apenas um parapeito onde se equilibrar, um
precipício estreito de esperança, por ser algo odiado, mas algo odiado continua a ser alguma
coisa. A única coisa que tem.
E claro que é essa a questão.
É esse o motivo para o copo vazio, para o prato limpo, para a cadeira por usar.
Addie olha pela janela e lembra-se do olhar dele quando brindaram, da curva dos seus lábios
quando declararam guerra, e percebe quão tola é, quão facilmente enganada.
E, de repente, toda a cena parece horrenda e patética, e Addie não suporta olhar para ela, não
consegue respirar dentro da seda vermelha. Rasga os atilhos do corpete, puxa os ganchos do
cabelo, liberta-se dos constrangimentos do vestido, tira os adornos da mesa e arremessa a garrafa
agora vazia contra a parede.
Fragmentos de vidro mordem-lhe a mão, e a dor é aguda e real, o ardor súbito de uma
queimadura sem a cicatriz duradoura, e não se importa. Dentro de momentos, os cortes já terão
fechado. Os vidros e a garrafa permanecem intactos. Em tempos pensara ser uma bênção, essa
incapacidade de quebrar, mas agora a sensação de impotência é de ensandecer.
Destrói tudo, só para o ver estremecer, de forma escarninha, e regressar ao estado inicial,
voltar, como um cenário, ao início do espetáculo.
E Addie grita.
A raiva inflama-se dentro dela, quente e flamejante, a raiva contra Luc e contra si própria,
mas começa a dar lugar ao medo e à mágoa e ao terror, porque tem de enfrentar mais um ano
sozinha, um ano sem ouvir o seu nome, sem se ver refletida nos olhos de ninguém, sem uma
noite de pausa daquela maldição, um ano ou cinco ou dez, e apercebe-se então de quanto contou
com isso, com a promessa da sua presença, porque, sem ela, está a desabar.
Afunda-se no chão entre os despojos da noite.
Passar-se-ão anos até ver o mar, as ondas a quebrarem-se contra falésias brancas irregulares, e
nesse momento lembrar-se-á das palavras de acicato de Luc.
Mesmo as rochas se desgastam até se transformarem em nada.
Addie adormece logo após a alvorada, mas é um sono irregular, breve e cheio de pesadelos, e,
quando acorda para ver o sol sobre Paris, não se consegue levantar. Dorme todo o dia e metade
da noite, e, quando acorda, instalou-se de novo a mesma coisa desfeita, como um osso mal
consolidado, uma suavidade endurecida.
— Chega — diz para si mesma, levantando-se.
— Chega — repete, regalando-se com o pão, agora bolorento, com o queijo, estiolado do
calor.
Chega.
Haverá outras noites negras, claro, outras madrugadas deploráveis, e a sua determinação
enfraquecerá sempre um pouco à medida que os dias se alongam e que o aniversário se aproxima
e que uma esperança traiçoeira se imiscui, como um esboço. Mas a mágoa esbateu-se, substituída
por uma raiva obstinada, e decide ateá-la, proteger e alimentar a chama até ser preciso mais do
que um único sopro para a extinguir.
Nova Iorque
13 de março de 2014

Henry Strauss regressa a casa sozinho, no escuro.


Addie, pensa, fazendo rolar o nome dentro da boca.
Addie, que olhou para ele e viu um rapaz de cabelo escuro, olhos afáveis e rosto aberto.
Nada mais. E nada menos.
Sopra um vento frio, e aconchega mais o casaco, olhando para cima, para o céu sem estrelas.
E sorri.
TREZENTOS ANOS... E TRÊS PALAVRAS
Título: Esboço de Salão, sem título
Artista: Bernard Rodel
Data: c. 1751–3
Suporte: Caneta e tinta sobre pergaminho
Origem: Cedido pela exposição The Paris Salon de The British Library
Descrição: Uma representação do famoso salão de Madame Geoffrin, cheio de figuras em várias poses de conversação e em
repouso. Podem identificar-se no grupo várias personalidades reconhecíveis — Rousseau, Voltaire, Diderot —, mas a
inclusão mais interessante corresponde à das três mulheres que espalhadas pela sala. Uma delas é claramente Madame
Geoffrin. Pensa-se que outra será Suzanne Necker. Mas a terceira, uma mulher elegante com o rosto cheio de sardas,
permanece envolta em mistério.
Contexto: Além de ser conhecido pelo seu contributo para a Enciclopédia de Diderot, Rodel foi um prolífico criador de
esboços e parece ter dado uso às suas capacidades de representação durante muitas das suas aparições no salão de Madame
Geoffrin. A mulher das sardas aparece em vários dos seus esboços, mas nunca é identificada.
Valor estimado: Desconhecido
Paris, França
29 de julho de 1724

A liberdade é um par de calças e um casaco com botões.


Uma camisa de homem e um chapéu de três bicos.
Se apenas tivesse sabido.
A escuridão alegara que lhe dera a sua liberdade, mas, na verdade, isso não existe para uma
mulher, pelo menos num mundo em que estas ficam presas dentro da roupa e seladas dentro de
suas casas, um mundo onde apenas os homens têm licença para deambular.
Addie passeia sem destino rua acima, com um cesto roubado enfiado acima do cotovelo do
casaco. Ali perto, uma idosa encontra-se à porta, a bater um tapete, e alguns trabalhadores
demoram-se nos degraus de um café, e nenhum deles pestaneja sequer, porque não veem uma
mulher, a caminhar sozinha. Veem um homem novo, pouco mais do que um jovem, a deambular
sob o crepúsculo; não pensam quão estranho, quão escandaloso é vê-la andar por ali. Não
pensam em nada de nada.
E pensar que Addie poderia ter salvado a alma e pedido simplesmente aquelas roupas.
Passaram-se agora quatro anos sem qualquer visita da escuridão.
Quatro anos, e, na alvorada de cada um deles, jura que não desperdiçará o tempo que possui à
sua espera. Mas é uma promessa que não consegue cumprir totalmente. Em todo o seu esforço,
Addie é como um relógio a que se deu corda quando o dia se aproxima, uma mola helicoidal que
só alivia quando é madrugada. E, mesmo nessa altura, descreve um desenrolar implacável,
menos alívio do que resignação, com a consciência de que irá começar de novo.
Quatro anos.
Quatro invernos, quatro verões, quatro noites sem visitas.
As outras, pelo menos, são suas, para gastar como quiser, mas, por muito que tente fazer
passar o tempo, esta pertence a Luc, mesmo que ele não esteja presente.
E, no entanto, não a declarará confiscada, não sacrificará as horas como se já estivessem
perdidas, como se já fossem dele.
Addie passa por um grupo de homens e toca no chapéu em sinal de saudação, usa o gesto para
descer o tricórnio um pouco mais sobre a sobrancelha. O dia ainda não deu completamente lugar
à noite, e, sob a longa luz de verão, tem o cuidado de manter a distância, sabendo que a ilusão se
dissipará sob um olhar mais atento. Poderia ter esperado mais uma hora e ficar em segurança a
coberto da noite, mas a verdade é que não conseguia suportar a imobilidade, os segundos
morosos do relógio.
Pelo menos nessa noite.
Nessa noite, decidiu celebrar a liberdade.
Subir até ao cimo de Notre Dame e fazer um piquenique ali, com a cidade a seus pés.
O cesto baloiça-lhe no cotovelo, a transbordar de comida. Os dedos tornaram-se leves e
rápidos com a prática, e passou os últimos dias a reunir o seu banquete — um pão, um pedaço de
carne curada, uma fatia de queijo e até um frasco de mel do tamanho de um palmo.
Mel — um luxo que Addie não conhece desde Villon, onde o pai de Isabelle tinha uma fiada
de cortiços e raspava o xarope cor de âmbar para levar para o mercado, deixando-as lamber as
coberturas dos favos até ficarem com os dedos manchados de doce. Agora transporta a sua
recompensa sob a luz minguante, deixa que o pôr do sol doure o seu conteúdo.
O homem surge vindo do nada.
Um ombro atinge-lhe o braço, e o frasco precioso escapa-lhe da mão e estatela-se no
pavimento empedrado. Por um instante, Addie pensa que está a ser atacada ou roubada, mas o
estranho já balbucia um pedido de desculpa.
— Idiota — sibila ela, com a atenção a saltar do xarope dourado, agora a reluzir, cheio de
vidros, para o homem que esteve na origem da perda. É jovem e belo e adorável, com maçãs do
rosto altas e um cabelo da cor do mel derramado.
E está sozinho.
Os companheiros ficaram para trás, em gritos de algazarra e aplausos perante o seu deslize —
têm o ar alegre de quem começa a diversão noturna a meio do dia —, mas o jovem faltoso cora
de forma violenta, claramente envergonhado.
— As minhas desculpas, a sério — começa, mas depois uma transformação varre-lhe o rosto.
Primeiro surpresa e depois divertimento, e ela apercebe-se, demasiado tarde, de quão próximo se
encontram, de quão claramente a luz incidiu sobre o seu próprio rosto. Apercebe-se, demasiado
tarde, de que ele divisou para lá do seu disfarce, de que a sua mão ainda se encontra ali, na
manga dela, e por um instante tem medo de que a exponha.
Mas, quando os companheiros o chamam para que se despache, diz-lhes que vão andando, e
agora estão sozinhos, na rua empedrada, e Addie está prestes a libertar-se, a desatar a correr, mas
não há sombras no rosto do homem, não há ameaças, apenas um estranho prazer.
— Larga-me — diz ela, baixando um pouco a voz quando fala, o que só parece agradar-lhe
mais, mesmo quando lhe solta o braço com a velocidade de alguém a tocar numa chama.
— Desculpa — volta a dizer —, distraí-me. — E, logo de seguida, um sorriso travesso. —
Parece que tu também.
— Nada disso — diz ela, com os dedos a desviarem-se para a faca pequena que guardou
dentro do cesto. — Posicionei-me mal de propósito.
O sorriso alarga-se então, e ele baixa o olhar e vê o mel desperdiçado no chão, abanando a
cabeça.
— Tenho de te compensar por isto — diz ele. E ela está prestes a dizer-lhe que não se
incomode, a dizer que não há problema, quando ele inclina a cabeça para a rua e diz. —Ah ah —
e enfia o braço no dela, como se já fossem amigos. — Anda — diz, conduzindo-a ao café da
esquina. Nunca esteve dentro de um, nunca teve a coragem suficiente para arriscar, pelo menos
sozinha, com um controlo tão delicado do seu disfarce. Mas ele arrasta-a como se nada fosse, e
no último instante coloca um braço em volta dos ombros dela, um peso tão súbito e tão íntimo
que Addie está prestes a afastar-se, antes de detetar a fímbria de um sorriso e se aperceber de que
ele transformou aquilo numa brincadeira, de que se alistou ao serviço do seu segredo.
Lá dentro, o café é um lugar cheio de energia e de vida, sobrepondo vozes e o aroma de algo
intenso e fumado.
— Agora cuidado — diz ele, com os olhos a dançarem de divertimento. — Deixa-te ficar
junto a mim e mantém a cabeça baixa, para não nos descobrirem.
Segue-o até ao balcão, onde ele pede duas chávenas pequenas, o conteúdo ralo e negro como
tinta.
— Senta-te ali — diz ele —, contra a parede, onde a luz não é muito intensa.
Aninham-se num lugar de canto, e ele coloca as chávenas entre ambos com um floreado,
virando as pegas para eles, ao mesmo tempo que lhe diz que é café. Claro que já ouviu falar
daquilo, a bebida da moda em Paris, mas, quando levanta a chávena até aos lábios e dá um gole,
fica um pouco dececionada.
É escuro e forte e amargo, como as lascas de chocolate que experimentou pela primeira vez
há anos, mas sem o toque de doçura. No entanto, o rapaz olha para ela, ansioso como um
cachorro, e por isso ela engole e sorri, envolve a chávena com as mãos e espreita por baixo da
aba do chapéu, estudando as mesas de homens, alguns deles com as cabeças inclinadas umas
sobre as outras, enquanto outros riem e jogam às cartas ou passam resmas de papel para a frente
e para trás. Observa estes homens e volta a pensar quão aberto o mundo é para eles, quão fácil é
transpor limiares.
A atenção regressa ao companheiro, que a observa com o mesmo fascínio desabrido.
— Em que estás a pensar? — pergunta ele.
— Neste momento?
Não há apresentações, interações formais. O rapaz mergulha simplesmente na conversa, como
se se conhecessem há anos e não há minutos.
— Estava a pensar — diz ela — que deve ser muito fácil ser homem.
— Foi por isso que te disfarçaste?
— Por isso — diz ela — e pela abominação que tenho a espartilhos.
Ele ri-se, um som tão aberto e fácil que Addie depara com um sorriso a erguer-se até aos
lábios.
— Tens nome? — pergunta ele, e ela não sabe se lhe está a perguntar o seu ou o do disfarce,
mas decide-se por «Thomas», vendo-o saborear a palavra como quem dá uma dentada numa
peça de fruta.
— Thomas — diz, pensativo. — É um prazer conhecer-te. O meu nome é Remy Laurent.
— Remy — repete ela, provando a suavidade, a vogal arrebitada. Fica-lhe bem, mais do que
Adeline alguma vez lhe ficou a ela. É jovem e doce e irá atormentá-la, como todos os nomes, a
oscilarem como maçãs na corrente. Por muitos homens que conheça, Remy evocá-lo-á sempre a
ele, aquele rapaz bem-disposto e alegre, um rapaz que poderia ter amado, talvez, se tivesse tido a
oportunidade.
Dá outro gole, tendo o cuidado de não segurar na chávena de forma demasiado delicada, de
ficar o peso no cotovelo e de se sentar da forma pouco autoconsciente que os homens assumem
quando não estão à espera de que alguém os analise.
— Espantoso — admira-se ele. — Estudaste bem o meu sexo.
— Ai sim?
— Fazes uma imitação excelente.
Addie podia dizer-lhe que tivera tempo para treinar, que se tornara uma espécie de jogo ao
longo dos anos, uma forma de se divertir. Que já acumulou várias personagens, que conhece as
diferenças exatas entre uma duquesa e uma marquesa, um trabalhador das docas e um vendedor.
Mas, em vez disso, diz apenas:
— Todos precisamos de maneiras de passar o tempo.
Ele ri-se novamente daquilo, levanta a chávena, mas depois, entre dois goles, a atenção de
Remy vagueia pela sala e aterra em algo que o deixa desconcertado. Engasga-se com o café, com
a cor a assomar-lhe ao rosto.
— O que foi? — pergunta ela. — Estás bem?
Remy tosse, quase deixando cair a chávena enquanto gesticula em direção à porta, onde um
homem acabou de entrar.
— Conhece-lo? — pergunta ela, e Remy fala precipitadamente:
— Tu não? Aquele homem é Monsieur Voltaire.
Ela abana um pouco a cabeça. O nome não lhe diz nada.
Remy retira um embrulho do casaco. Um livro, fino, com algo impresso na capa. Ela franze o
sobrolho perante o título em cursivo, conseguindo apenas ler metade das letras, quando Remy
abre o livro para lhe mostrar um muro de palavras, impressas numa tinta preta e elegante.
Passou-se demasiado tempo desde que o pai a tentou ensinar, e eram letras simples; uma
caligrafia solta, manuscrita.
Remy vê-a a estudar a página.
— Consegues lê-la?
— Identifico as letras — admite —, mas não tenho conhecimentos suficientes para retirar
grande sentido das mesmas. E, quando consigo chegar ao fim de uma linha, receio ter perdido o
seu significado.
Remy abana a cabeça.
— É um crime — diz ele — as mulheres não aprenderem o mesmo que os homens. Porquê?
Um mundo sem leitura é algo que não consigo imaginar. Uma vida inteira sem poemas ou peças
de teatro ou filósofos. Shakespeare, Sócrates, para não falar de Descartes!
— Só isso? — brinca ela.
— E Voltaire — continua ele. — Claro, Voltaire. E ensaios e romances.
Ela não conhece a palavra.
— Um enredo longo — explica ele —, mero fruto da invenção. Cheio de romance ou de
comédia ou de aventura.
Pensa nos contos de fadas que o pai lhe contava, quando era mais nova, nas histórias que
Estele tecia acerca de deuses antigos. Mas esta novela de que Remy fala parece abranger muito
mais. Passa os dedos pela página do livro estendido, mas a sua atenção está centrada em Remy, e
a dele, agora, em Voltaire.
— Vais apresentar-te?
O olhar de Remy reage, horrorizado.
— Não, não, hoje não. É melhor assim; pensa na história. — Volta a sentar-se no seu lugar, a
resplandecer de alegria. — Estás a ver? É disto que gosto em Paris.
— Então não és daqui.
— Haverá alguém que seja? — agora a sua atenção regressou a ela. — Não, sou de Rennes.
Da família de um impressor. Mas sou o filho mais novo, e o meu pai cometeu o grave erro de me
mandar para a escola, e, quanto mais lia, mais pensava, e, quanto mais pensava, mais sabia que
tinha de estar em Paris.
— A tua família não se importou?
— Claro que sim. Mas tinha de vir. É aqui que se encontram os pensadores. É aqui que vivem
os sonhadores. Este é o coração do mundo, e a cabeça, e está a mudar. — Os olhos dele dançam
com luz. — A vida é tão breve, e todas as noites, em Rennes, ia para a cama e ficava acordado e
pensava: «Passou-se mais um dia, e quem sabe quantos mais me restam.»
Foi o mesmo medo que a obrigou a ela a entrar no bosque, naquela noite, a mesma
necessidade que a conduziu ao seu destino.
— Por isso, aqui estou — diz animadamente. — Não desejaria estar em mais lado nenhum.
Não é maravilhoso?
Addie pensa na janela suja e na porta trancada, nos jardins e nos portões que os rodeiam.
— Pode ser — diz ela.
— Ah, achas que sou um idealista.
Addie leva a chávena de café aos lábios.
— Acho que para os homens é mais fácil.
— É verdade — reconhece, antes de acenar com a cabeça para a indumentária dela. — E, no
entanto — diz com um sorriso endiabrado —, pareces-me alguém que não se deixa refrear
facilmente. Aut viam invenium aut faciam, e por aí fora.
Ainda não sabe latim, e ele não a brinda com uma tradução, mas, dali uma década, procurará
as palavras e aprenderá o seu significado.
Descobrir um caminho ou criar o seu.
E sorrirá, então, um fantasma do sorriso que ele lhe conseguiu merecer, nessa noite.
Remy cora.
— Devo estar a aborrecer-te.
— De todo — diz ela. — Diz-me: compensa, ser um pensador?
O riso sai dele aos borbotões.
— Não, nem por isso. Mas continuo a ser filho do meu pai. — Mostra as mãos, com as
palmas viradas para cima, e ela repara no eco de tinta que lhe percorre as linhas, manchando as
espirais dos dedos, tal como o carvão costumava manchar as suas. — É um trabalho digno — diz
ele.
Mas, por detrás destas palavras, um som mais suave, o seu estômago a roncar.
Addie quase esqueceu o frasco partido, o mel desperdiçado. Mas o resto do banquete
encontra-se aos seus pés, à espera.
— Já alguma vez foste a Notre Dame?
Nova Iorque
15 de março de 2014

Passados tantos anos, Addie pensou ter aceitado a questão do tempo.


Pensou ter-se pacificado com o mesmo — ou ambos terem encontrado uma forma de
coexistir, não como amigos, de todo, mas pelo menos já não como inimigos.
E, no entanto, o tempo decorrido entre a noite de quinta-feira e a tarde de sábado é impiedoso,
cada segundo racionado com o cuidado de uma velha a contar os cêntimos para pagar o pão.
Nem uma vez parece apressar-se, nem uma vez perde noção do mesmo. Não parece conseguir
gastá-lo, desperdiçá-lo ou mesmo empregá-lo mal. Os minutos incham à sua volta, um oceano de
tempo imbebível entre o agora e o então, entre o aqui e a loja, entre ela e Henry.
Passou as duas últimas noites num sítio em Prospect Park, um T1 confortável com uma janela
saliente que pertence a Gerard, um escritor de livros para crianças que conheceu num inverno.
Uma cama gigante, um monte de cobertores, o zunido hipnótico e suave do radiador, e, mesmo
assim, não conseguiu dormir. Não conseguiu fazer nada além de contar e esperar e desejar ter
dito amanhã, para só ter de aguentar um dia, em vez de dois.
Conseguiu suportar o tempo por trezentos anos, mas agora, agora há um presente e um futuro,
agora há alguma coisa à espera, adiante, agora nem pode esperar para ver o olhar no rosto de
Henry, ouvir o seu nome nos lábios dele.
Addie toma um duche até a água ficar fria, enxuga o corpo e arranja o cabelo de três maneiras
diferentes. Senta-se na ilha da cozinha a atirar flocos de cereais para o ar, tentando apanhá-los
com a língua, enquanto o relógio na parede avança das 10h13 para as 10h14. Addie geme. Só
está previsto encontrar-se com Henry às 17h00, e o tempo abranda um pouco mais a cada
minuto, e pensa que poderá enlouquecer. Passou tanto tempo desde que sentiu este tipo de tédio,
a incapacidade doida de se concentrar, e demora toda a manhã a perceber que não está entediada,
de todo.
Está nervosa.
Nervosa, como amanhã, uma palavra para coisas que ainda não aconteceram. Uma palavra
para futuros, quando durante tanto tempo tudo o que teve foram presentes.
Addie não está habituada a estar nervosa.
Não há motivos para o estar quando se está sempre só, quando qualquer momento
embaraçoso pode ser apagado por um fechar de porta, a um instante de distância, e cada encontro
é um recomeço. Um registo limpo.
O relógio chega às 11h00, e decide que não consegue continuar em casa.
Varre os pedaços de cereais caídos, deixa o apartamento como estava quando o encontrou e
sai para a manhã tardia de Brooklyn. Vagueia por entre lojas, desesperada por distração, criando
uma nova combinação de roupas porque a que tem não serve. Afinal, é a mesma que usou da vez
anterior.
Anterior — mais uma palavra que perdeu a forma.
Addie pega numas calças de ganga claras e num par de sapatos de seda preta rasos, num top
com um decote acentuado e atira o casaco de cabedal por cima, apesar de não condizer. Continua
a ser uma peça que não suportaria perder.
Ao contrário do anel, não regressará.
Addie deixa que uma rapariga animada de uma loja de maquilhagem a sente num banco e
passe uma hora a aplicar vários tons, lápis de contorno e sombras. Quando termina, o rosto no
espelho é belo, mas parece errado, com o calor acastanhado dos olhos arrefecido pela sombra
esfumada em torno dos mesmos, a pele demasiado suave, as sete sardas escondidas sob uma base
mate.
A voz de Luc ergue-se como nevoeiro contra o reflexo.
Preferia ver nuvens a tapar as estrelas.
Addie pede à rapariga para ir buscar um batom cor de coral, e, no instante em que fica
sozinha, faz desaparecer as nuvens.
De alguma forma, consegue esgotar as horas até às 16h00, mas agora está à porta da livraria,
cheia de esperança e de medo. Por isso obriga-se a dar uma volta ao quarteirão, a contar as lajes
do pavimento, a memorizar cada montra até serem 16h45 e já não conseguir aguentar mais.
Quatro passos breves. Uma porta aberta.
Um único medo, de chumbo.
E se?
E se tiverem passado demasiado tempo afastados?
E se as fendas se tiverem voltado a fechar, com a maldição de novo selada sobre ela?
E se tiver sido apenas um golpe de sorte? Uma partida cruel? E se e se e se...
Addie sustém a respiração, abre a porta e entra.
Mas Henry não está ali — em vez dele, está outra pessoa ao balcão.
É a rapariga. A do outro dia, que estava sentada, curvada, na cadeira de couro, aquela que o
chamou pelo nome quando Henry correu até lá fora para apanhar Addie na curva. Agora está
encostada à caixa registadora, a folhear um livro grande, cheio de fotografias reluzentes.
A rapariga é uma obra de arte, incontestavelmente bela, com a pele negra envolvida em fios
de prata, uma camisola a escorregar de um dos ombros. Olha para cima, ao ouvir o som da
campainha.
— Posso ajudá-la?
Addie hesita, desequilibrada por uma vertigem de desejo e de medo.
— Espero que sim — diz. — Venho à procura do Henry.
A rapariga olha para ela, analisando-a...
Surge então uma voz familiar, vinda das traseiras.
— Bea, achas que isto parece... — Henry contorna a esquina, alisando a camisa, e cala-se
quando vê Addie. Por um instante, uma fração de uma fração de um segundo, pensa que está
tudo acabado. Que ele se esqueceu e que está de novo sozinha, com o suave feitiço, qual tecido,
cortado como um fio solto.
Mas nesse momento Henry sorri e diz:
— Vieste mais cedo. — E Addie está tonta de ar, de esperança, de luz.
— Desculpa — diz ela, um pouco sem fôlego.
— Não peças desculpa. Estou a ver que já conheces a Beatrice. Bea, esta é a Addie. — Gosta
da forma como Henry diz o seu nome.
Luc costumava esgrimi-lo como uma arma, uma faca a aflorar-lhe a pele, mas, na língua de
Henry, é um sino, algo leve e alegre e adorável.
Repica entre eles.
Addie. Addie. Addie.
— Déjà vu — diz Bea, abanando a cabeça. — Já alguma vez conheceste uma pessoa pela
primeira vez, mas tiveste a certeza de que já a viste antes?
Addie quase ri.
— Sim.
— Já dei de comer ao Book — diz Henry, dirigindo-se a Bea enquanto veste o casaco. — Não
espalhes mais erva-gateira na secção de terror. — Ela põe as mãos no ar, com as pulseiras a tinir.
Henry vira-se para Addie com um sorriso tímido. — Estás pronta?
Vão a meio caminho da porta quando Bea estala os dedos.
— Barroco — diz ela. — Ou talvez neoclássico.
Addie olha para trás, confusa.
— Os períodos artísticos?
A outra rapariga acena com a cabeça.
— Tenho a teoria de que cada rosto pertence a um deles. A um período. A uma escola.
— A Bea fez uma pós-graduação — intervém Henry. — História de arte, caso não tenhas
percebido.
— Aqui o Henry é claramente romantismo puro. O nosso amigo Robbie é pós-modernista, a
vanguarda, claro, não o minimalismo. Mas tu... — toca com um dedo nos lábios. — Há algo de
intemporal em ti.
— Para de namoriscar com o meu par para este encontro.
Encontro. A palavra palpita fazendo-a estremecer. Um encontro é algo criado, algo planeado;
não um acaso fugaz, mas tempo reservado em dada altura para outro instante, um momento no
futuro.
— Divirtam-se! — grita Bea, animadamente. — Não venham muito tarde.
Henry revira os olhos.
— Adeus, Bea — diz, segurando a porta.
— Ficas a dever-me uma — acrescenta ela.
— Estou a dar-te acesso gratuito aos livros.
— Quase como se fosse uma biblioteca!
— Isto não é uma biblioteca! — grita ele de volta, e Addie sorri enquanto o segue escadas
acima, até à rua. É obviamente uma piada privada, algo que partilham, uma coisa familiar, e ela
anseia por isso ardentemente, pergunta-se como seria conhecer alguém assim tão bem, como
seria esse conhecimento ter dois sentidos. Pergunta-se se poderiam ter uma piada como aquela,
ela e Henry. Se se poderão conhecer um ao outro pelo tempo suficiente.
Está um fim de tarde frio, e andam lado a lado, sem darem os braços, mas com os cotovelos a
aflorar, cada um deles a encostar-se um pouco ao calor do outro. Addie está maravilhada com
aquilo, com aquele rapaz ao seu lado, o nariz enterrado no cachecol em volta do pescoço. Está
maravilhada com as diferenças mínimas nos seus modos, com as pequenas mudanças no
comportamento. Dias antes, era uma estranha para ele, e agora não é, e Henry está a aprender
como ela é tal como ela está a aprender quem ele é, e ainda estão no princípio, ainda é tudo
muito novo, mas avançaram um passo pelo caminho que leva do desconhecido ao familiar. Um
passo que nunca teve autorização para dar com ninguém, à exceção de Luc.
E, no entanto.
Está ali, com aquele rapaz.
Quem és tu? pensa enquanto os óculos de Henry se embaciam com o vapor. Ele apanha-a a
olhar e pisca-lhe o olho.
— Onde vamos? — pergunta ela quando chegam ao metro, e Henry olha para ela e sorri, um
sorriso tímido, desigual.
— É surpresa — responde enquanto descem as escadas.
Apanham o comboio G para Greenpoint, retrocedem meio quarteirão até uma montra
indefinida, com um letreiro a dizer lavar e dobrar no vidro. Henry segura a porta, e Addie entra.
Olha em volta para as máquinas de lavar, o zunido de ruído branco do ciclo de enxaguamento, o
estremecimento da rotação.
— É uma lavandaria automática — diz ela.
Mas os olhos de Henry iluminam-se de traquinice.
— É um bar clandestino.
Uma recordação esgueira-se através dela ao ouvir a palavra, e encontra-se em Chicago, há
quase um século de distância, com o jazz a rodeá-la como fumo no bar clandestino, o ar pesado
do aroma a gim e charutos, o entrechocar dos copos, o segredo aberto de tudo. Sentam -se atrás
de uma janela de vidro pintada com a imagem de um anjo a erguer a taça, e o champanhe
escorre-lhe pela língua, e a escuridão sorri contra a sua pele e arrasta-a para uma pista de dança,
e é o princípio e o fim de tudo.
Addie estremece, retraindo-se. Henry segura a porta aberta ao fundo da lavandaria, e ela
prepara-se para a sala sombria, um recuo no passado, mas, em vez disso, é confrontada com as
luzes fluorescentes e com o carrilhão de sons de um salão de jogos. Pinball, para ser exato. As
máquinas estão alinhadas contra as paredes, encostadas umas às outras para criar espaço para as
mesas e para os bancos, para o bar de madeira.
Addie olha em volta, desconcertada. Não é um bar clandestino, de todo, pelo menos no
sentido literal. É apenas uma coisa escondida atrás de outra. Um palimpsesto ao contrário.
— Então? — pergunta ele com um sorriso acanhado. — O que achas?
Addie sente-se sorrir de volta, tonta de alívio.
— Adoro.
— Ótimo — diz ele, retirando um saco com moedas de um dos bolsos. — Pronta para perder?
É cedo, mas o sítio está longe de estar vazio.
Henry condu-la até ao canto, onde se apossa de duas máquinas vintage e empilha uma torre
de moedas em cima de cada uma delas. Ela sustém a respiração quando insere a primeira moeda,
prepara-se para o tinido inevitável da mesma a rolar de novo para fora da ranhura, em baixo. Mas
a moeda entra, e o jogo ganha vida, emitindo uma cacofonia alegre de cor e som.
Addie expira, uma mistura de prazer e alívio.
Talvez ela seja anónima, sendo o ato tão incógnito como um roubo. Talvez, mas, naquele
momento, não quer saber.
Puxa a alavanca e joga.
— Como consegues ser tão boa a jogar pinball? — pergunta Henry enquanto faz a contagem dos
pontos.
Addie não tem a certeza. A verdade é que nunca jogou antes e demorou algum tempo até
apanhar o jeito à coisa, mas agora encontrou o seu ritmo.
— Aprendo depressa — diz ela, mesmo antes de a bola deslizar por entre as peças em
movimento.
— HIGH SCORE! — anuncia o jogo num tom mecânico.
— Boa! — grita Henry por cima do alarido. — É melhor reclamares a vitória.
O ecrã lampeja, à espera de que ela introduza o seu nome. Addie hesita.
— Assim — diz ele, mostrando-lhe como assinalar a caixa vermelha entre as letras. Afasta-
se, mas, quando tenta, o cursor não se move. A luz limita-se a cintilar por cima da letra A,
escarninha.
— Não faz mal — diz ela, recuando, mas Henry avança.
— As máquinas são novas, mas os problemas são sempre os mesmos. — Dá-lhe um
solavanco com a anca, e o quadrado fixa-se em torno do A. — Ora bem.
Está prestes a ceder-lhe a vez, mas Addie agarra-lhe o braço.
— Introduz tu o meu nome enquanto eu passo à próxima ronda.
Agora que o sítio está cheio, é mais fácil. Surripia duas cervejas da extremidade do balcão e
regressa por entre a multidão antes que o empregado se chegue a virar. E, quando regressa, de
bebidas na mão, a primeira coisa que vê são as letras, a lampejar num vermelho-vivo no ecrã.
ADI.
— Não sabia soletrar o teu nome — diz ele.
E está mal, mas não importa; nada importa, a não ser aquelas três letras, a brilharem de volta
para ela, quase como uma marca, uma assinatura.
— Troca — diz Henry, com as mãos pousadas nas ancas enquanto a conduz até à sua própria
máquina. — Vamos ver se consigo dar cabo da tua pontuação.
Ela sustém a respiração e espera que nunca ninguém consiga.
Jogam até ficarem sem moedas e sem cerveja, até o sítio estar demasiado apinhado para ser
agradável, até não se conseguirem realmente ouvir um ao outro por cima do tinido e do estrondo
dos jogos e dos gritos das outras pessoas e saem para fora do salão de jogos. Voltam a passar
pela lavandaria demasiado iluminada e depois saem para a rua, ainda a fervilhar de energia.
Agora está escuro, lá fora, o céu lá em cima como uma abóbada baixa de nuvens cinzentas e
densas, a prometer chuva, e Henry enfia as mãos nos bolsos, olha para cima e depois para a rua.
— E agora?
— Queres que eu escolha?
— Estamos num encontro com igualdade de oportunidades — diz ele, balançando do
calcanhar à ponta dos dedos. — Tratei do primeiro capítulo. Agora é a tua vez.
Addie faz um som de hesitação, olhando em volta, convocando uma imagem mental do
bairro.
— Ainda bem que encontrei a carteira — diz ela, dando umas palmadinhas no bolso. Claro
que não é verdade, mas retirou algumas notas de vinte da gaveta da cozinha do escritor antes de
sair de casa, nessa manhã. A julgar pelo perfil recente que fizeram sobre ele no The Times e pela
dimensão referida do seu mais recente contrato editorial, Gerard não iria sentir falta delas.
— Por aqui. — Addie arranca pela rua abaixo.
— Vamos muito longe? — pergunta ele quinze minutos mais tarde, quando continuam a
andar.
— Pensei que eras um nova-iorquino — brinca ela.
Mas as passadas dele são suficientemente longas para acompanhar a velocidade dela, e, cinco
minutos mais tarde, viram numa esquina e ali está. O Nitehawk ilumina a rua, que começa a
escurecer, com lâmpadas brancas a desenharem formas na fachada de tijolo, com a palavra
cinema destacada numa luz fluorescente vermelha na parte da frente.
Addie já esteve em todos os cinemas de Brooklyn, nos complexos maciços, com os seus
lugares dignos de estádio e as pérolas de cinema independente e sofás gastos, viu todas as
seleções de lançamentos recentes e de cinema nostalgia.
E o Nitehawk é um dos seus preferidos.
Passa em revista o painel dos filmes em projeção, compra dois bilhetes para uma sessão de
Intriga Internacional, visto que Henry diz que nunca viu, e depois pega-lhe na mão e condu-lo
pelo corredor fora, até entrarem na sala às escuras.
Há mesinhas entre cada lugar, com menus de plástico e folhas de papel para escrever o
pedido. Nunca conseguiu pedir nada, claro — as marcas de lápis dissolvem-se, o empregado
esquece-se dela mal fica longe de vista —, por isso inclina-se para ver Henry preencher o seu
cartão, entusiasmada pelo potencial simples desse ato.
Os trailers de antestreia prosseguem enquanto os lugares se enchem à sua volta, e Henry
pega-lhe na mão, com os dedos a entrelaçarem-se como elos de uma corrente. Ela lança-lhe uma
olhadela, sob a luz baixa do cinema. Caracóis negros. Maçãs do rosto altas. O arco de cupido na
boca. O bruxulear de uma semelhança.
Não é a primeira vez que viu Luc repetido num rosto humano.
— Estás a olhar para mim fixamente — sussurra Henry sob o som das antestreias.
Addie pestaneja.
— Desculpa. — Abana a cabeça. — Fazes-me lembrar alguém que conheci.
— Alguém de quem gostavas, espero.
— Nem por isso. — Ele fuzila-a com um olhar de afronta fingida, e Addie quase ri. — Era
mais complicado do que isso.
— Amor, portanto?
Abana a cabeça.
— Não... — mas o seu discurso torna-se mais lento, menos empático. — Mas era muito
agradável de observar.
Henry ri-se enquanto as luzes se apagam, e o filme começa.
Aparece um empregado diferente, agachando-se enquanto distribui o pedido, e ela vai
debicando batatas fritas do prato, uma a uma, afundando-se no conforto do filme. Lança uma
olhadela a Henry para ver se se está a divertir, mas ele nem sequer está a olhar para o ecrã. O seu
rosto, todo energia e luz uma hora antes, é um ricto de tensão. Um dos joelhos saltita, irrequieto.
Aproxima-se dele e sussurra.
— Não gostas?
Henry exibe um sorriso superficial.
— É excelente — diz ele, mudando de posição no assento. — Apenas um pouco lento.
É Hitchcock, quer Addie dizer, mas, em vez disso, murmura:
— Vale a pena, garanto.
Henry contorce-se na direção dela, franzindo uma das sobrancelhas.
— Já viste?
Claro que Addie já o viu.
Primeiro em 1959, num cinema de Los Angeles, e depois nos anos setenta, numa
apresentação de conjunto com o seu último filme, Intriga em Família, e depois mais uma vez, há
alguns anos, precisamente em Greenwich Village, durante uma retrospetiva. Hitchcock arranja
sempre maneira de ressuscitar, devolvido ao sistema cinematográfico em intervalos regulares.
— Sim — sussurra-lhe ela de volta. — Mas não me importo.
Henry não diz nada, mas claramente importa-se. O joelho volta a saltar, e, alguns minutos
mais tarde, levantou-se do seu lugar e saiu para o átrio.
— Henry — chama ela, confusa. — O que foi? O que se passa?
Apanha-o no momento em que abre a porta do cinema e sai para o passeio.
— Desculpa — diz entre dentes. — Precisava de ar.
Mas é evidente que não se trata disso. Está a andar de um lado para o outro.
— Fala comigo.
Os passos abrandam.
— Gostava apenas que me tivesses dito.
— Dito o quê?
— Que já tinhas visto.
— Mas tu não tinhas — diz ela. — E eu não me importo de ver outra vez. Gosto de ver coisas
outra vez.
— Eu não — explode ele, e depois reduz a intensidade do tom. — Desculpa. — Abana a
cabeça. — Desculpa. Isto não é um problema teu. — Passa as mãos pelo cabelo escuro. — Eu
só... — abana a cabeça e vira-se para enfrentar o olhar de Addie, com os olhos verdes a
cintilarem no escuro. — Nunca sentes que estás a ficar sem tempo?
Addie pestaneja e recuou trezentos anos e está de novo de joelhos, no solo da floresta, com as
mãos a enterrarem-se na terra musgosa enquanto os sinos da igreja repicam, atrás dela.
— Não estou a referir-me à forma habitual de o tempo voa — diz Henry. — Refiro-me a
sentir-me como se ele estivesse a passar tão depressa que tentamos estender o braço e agarrá-lo,
mas ele continua a correr a toda brida. E cada segundo há um pouco menos de tempo e um pouco
menos de ar e por vezes, quando estou parado, começo a pensar nisso e, quando penso nisso, não
consigo respirar. Tenho de me levantar. Tenho de me mexer.
Tem os braços enrolados em volta do corpo, os dedos enterrados nas costelas.
Passou-se muito tempo desde que Addie sentiu esse tipo de urgência, mas lembra-se bem
dela, lembra-se do medo, tão pesado que pensava poder esmagá-la.
Um piscar de olhos, e metade da tua vida desapareceu.
Não quero morrer como vivi.
Nascer e ser enterrada no mesmo talhão de dez metros.
Addie estende a mão e agarra-lhe no braço.
— Anda — diz ela, puxando-o para começarem a descer a rua. — Vamos.
— Onde? — pergunta ele, e a mão dela desliza sobre a dele e aperta-a com firmeza.
— Descobrir algo novo para ti.
Paris, França
29 de julho 1724

Remy Laurent é riso engarrafado sob uma pele. Este derrama-se dele de cada vez que se move.
Enquanto se dirigem à Île de la Cité, inclina a aba do chapéu de Addie, puxa-lhe os colarinhos
para cima, enfia o braço por cima dos seus ombros e reclina a cabeça, como que para sussurrar
um segredo devasso. Remy está deliciado por fazer parte da farsa dela, e ela está deliciada por ter
alguém com quem a partilhar.
— Thomas, seu idiota — escarnece ele em voz alta quando passam por um grupo de homens.
— Thomas, seu malandreco — grita quando passam por duas mulheres (na verdade, são
raparigas, embora estejam cobertas de rouge e de rendas esfarrapadas), à entrada de uma viela.
Também elas respondem ao desafio.
— Thomas — repetem, brincalhonas e doces —, vem cá. Vem ser o nosso malandreco,
Thomas. Thomas, vem divertir-te connosco.
Enfiam-se na imensa catedral, agarrando-se às sombras enquanto sobem a torre norte. Param
lá em cima, com as pernas a doer, sem fôlego devido à subida e à vista. Remy espalha o casaco
em cima do empedrado, fazendo um gesto para que ela se sente.
Dividem a comida entre os dois, e, enquanto permanecem sentados, Addie estuda o seu
estranho companheiro.
Remy é o contrário de Luc, em todos os sentidos. O seu cabelo é uma coroa de louro lustroso,
os olhos de um azul de verão, mas, mais do que isso, há os seus modos: o seu sorriso fácil, o seu
riso aberto, a energia vibrante da juventude. Se um é a escuridão arrebatadora, o outro é o
esplendor do meio-dia, e, se o rapaz não é tão bem-parecido, bem, é apenas porque é humano.
É real.
Remy vê-a fitá-lo e ri-se.
— Estás a fazer um estudo do meu perfil, para a tua arte? Devo dizer que dominas a pose e os
modos da juventude parisiense.
Ela olha para baixo, apercebe-se de que está sentada com um dos joelhos erguidos, o braço a
envolver preguiçosamente a perna.
— Mas — acrescenta Remy — receio que sejas demasiado bela, mesmo no escuro. —
Aproximou-se mais de Addie, com as mãos a procurarem as dela.
— Qual é o teu verdadeiro nome? — pergunta, e como ela gostaria de lhe dizer. Tenta, tenta
— pensando que talvez seja desta, que talvez os sons consigam passar da língua. Mas a voz
interrompe-se a seguir à letra A, por isso muda de rumo e diz:
— Anna.
— Anna — repete Remy, ajeitando uma madeixa solta atrás da orelha. — Fica-te bem.
Ao longo dos anos, usará centenas de nomes e, vezes sem conta, ouvirá essas mesmas
palavras, até começar a interrogar-se sobre a importância de qualquer nome. Essa mesma ideia
começará a perder significado, como acontece com uma palavra, quando é dita demasiadas
vezes, desfazendo-se em sons e sílabas inúteis. Usará a deixa batida como prova de que um
nome, na verdade, não importa — mesmo que anseie por dizer e ouvir o seu.
— Diz-me, Anna — diz agora Remy. — Quem és tu?
E então ela diz-lhe. Ou pelo menos tenta — despeja todo o seu estranho e atribulado percurso
e depois, quando este nem sequer lhe chega aos ouvidos, recomeça e conta-lhe outra versão da
verdade, uma versão que contorna as arestas da sua história, alisando os cantos mais ásperos em
algo mais humano.
A história de Anna é uma sombra esbatida da de Adeline.
Uma rapariga a fugir da vida de uma mulher. Deixa para trás tudo o que conheceu e foge para
a cidade, renegada, sozinha, mas livre.
— Incrível — diz ele. — Partiste, simplesmente?
— Tive de o fazer — diz ela, e não é mentira. — Diz a verdade: achas que sou louca.
— Sem dúvida — diz Remy com um sorriso brincalhão. — A mais louca de todas. E a mais
incrível. Que coragem!
— Não o senti como coragem — diz Addie, brincando com a crosta do pão. — Senti que não
tive alternativa. Como se... — As palavras ficam presas na garganta, mas não tem a certeza se é
da maldição ou simplesmente da memória. — Senti-me como se pudesse morrer ali.
Remy acena com a cabeça, pensativo.
— Sítios pequenos dão origem a vidas pequenas. E algumas pessoas não têm qualquer
problema com isso. Gostam de saber onde pôr os pés. Mas, se apenas seguirmos as pegadas dos
outros, não poderemos criar o nosso próprio caminho. Não poderemos deixar uma marca.
O nó na garganta de Addie aperta-se.
— Achas que uma vida tem valor apesar de não deixar uma marca no mundo?
A expressão de Remy torna-se mais séria, e deve sentir a tristeza na voz dela, porque diz:
— Acho que existem muitas formas de fazer a diferença. — Retira o livro do bolso. — Estas
são as palavras de um homem, Voltaire. Mas também são as mãos que o compuseram. A tinta
que as tornou legíveis, a árvore que produziu o papel. Todas elas importam, embora os créditos
vão apenas para o nome que aparece na capa.
Claro que a interpretou mal, presumiu que a questão radicava num medo diferente e mais
comum. Ainda assim, as suas palavras pesaram — embora se tivessem de passar anos até Addie
descobrir a que ponto.
Ficaram então em silêncio, numa quietude dobrada sob o peso dos seus pensamentos. O calor
do verão interrompera-se, cedera lugar a um conforto arejado na parte mais densa da noite. A
hora cai sobre eles como uma folha de papel.
— É tarde — diz ele, quando finalmente descem, regressando à rua. — Deixa-me levar-te a
casa.
Ela abana a cabeça.
— Não tens de o fazer.
— Tenho, sim — protesta ele. — Podes disfarçar-te de homem, mas eu sei a verdade, e por
isso a honra não me permite deixar-te sozinha. A escuridão não é sítio para se estar só.
Não sabe quão acertadas são as suas palavras. O peito de Addie dói perante a ideia de perder
o rasto desta noite e o à-vontade que começa a ganhar forma entre eles, um à-vontade nascido de
horas em vez de dias ou de meses, mas é qualquer coisa, frágil e adorável.
— Muito bem — diz ela, e o seu sorriso, ao responder, é alegria pura.
— Atrás de ti.
Não tem um sítio onde o conduzir, mas arranca, na direção vaga de um lugar onde ficou há
vários meses. O peito aperta-se um pouco a cada passo, porque cada passo a aproxima mais do
fim daquilo, do fim deles. E, quando viram na rua onde instalou a sua casa inventada e param
diante da sua porta imaginada, Remy inclina-se sobre ela e beija-a uma vez, na face. Mesmo na
escuridão consegue vê-lo corar.
— Gostaria de ter ver de novo — diz ele —, à luz do dia ou no escuro. Como mulher ou
homem. Por favor, deixa-me ver-te de novo.
E o coração dela afunda-se, porque, naturalmente, não há amanhã, apenas essa noite, e Addie
não está preparada para que o fio se corte, para que a noite termine, e por isso responde:
— Deixa-me levar-te a casa — e, quando ele abre a boca para protestar, ela insiste: — A
escuridão não é sítio para se estar só.
Os seus olhares cruzam-se, e talvez ele saiba o que ela quer dizer ou talvez tenha tanto medo
como ela de deixar essa noite para trás, porque lhe oferece rapidamente o braço e diz:
— Uma frase digna de um cavalheiro — e começam de novo a andar, rindo quando se
apercebem de que percorrem o mesmo caminho, regressando ao local de onde vieram. E, se a
caminhada até à sua casa imaginada foi vagarosa, a caminhada até à dele é urgente, perpassada
de expectativa.
Quando chegam à sua hospedaria, não fingem despedir-se. Ele condu-la escadas acima, agora
com os dedos enredados nos dela, a tropeçar nos degraus e ofegante, e, quando chega ao seu
quarto alugado, não se demoram no patamar.
Ela quase para de respirar perante a ideia do que se segue.
Até então, o sexo foi apenas um fardo, uma necessidade de circunstância, uma moeda de troca
requerida, e, até esse momento, Addie esteve disposta a pagar o preço. Mesmo agora, está
preparada para que ele a empurre, para que lhe afaste as saias do caminho. Preparada para que o
desejo ceda, forçado por algum ato pouco subtil. Mas ele não investe contra ela. Existe
premência, sim, mas Remy mantém-na retesada, como uma corda, entre ambos. Alonga uma
mão firme e tira-lhe o chapéu da cabeça, pousando-o suavemente em cima da cómoda. Os dedos
deslizam pela nuca e pelo cabelo, ao mesmo tempo que a boca encontra a dela, com beijos
tímidos, a tatear.
Pela primeira vez, não sente relutância, medo, sente apenas uma espécie de excitação nervosa,
e a tensão no ar está ligada a uma ânsia sem fôlego.
Os dedos de Addie tropeçam nos atilhos das calças dele, mas as dele movem-se mais devagar,
desfazendo os laços da camisa dela, puxando o tecido por cima da cabeça, soltando a faixa de
musselina que lhe sustém o peito.
— Muito mais fácil do que espartilhos — murmura ele, beijando-lhe a pele do pescoço, e,
pela primeira vez desde as noites na sua cama de infância, ainda em Villon, Addie sente o calor
subir-lhe ao rosto, atravessar-lhe a pele, entre as pernas.
Guia-a às arrecuas até à enxerga, percorrendo-lhe a garganta com beijos, a curva dos seios,
antes de se soltar e de subir para a cama, para ela. Addie cinde-se em volta dele, com a
respiração entrecortada na primeira investida, e Remy recua, apenas o suficiente para a observar,
para se certificar de que está bem, e, quando ela acena com a cabeça, deixa cair a cabeça para a
beijar e só então continua, se adentra e aprofunda.
As costas de Addie arqueiam quando a pressão dá lugar ao prazer, um calor profundo e
ondulante. Os seus corpos comprimem-se e movem-se juntos, e ela deseja poder apagar os outros
homens, as outras noites, o hálito rançoso e a corpulência desajeitada, as investidas monótonas a
terminar num espasmo súbito e abrupto, antes de saírem, de se afastarem. Para eles, húmido era
apenas húmido, quente era apenas quente, e ela não era mais do que um veículo do seu prazer.
Não pode apagar a memória dessas outras noites — por isso decide tornar-se um palimpsesto,
deixar Remy escrever por cima das outras linhas.
Era assim que deveria ter sido.
O nome Remy sussurrado no seu cabelo não é dela, mas não importa. Nesse momento, pode
ser Anna. Pode ser qualquer pessoa.
A respiração de Remy acelera ao mesmo tempo que o seu ritmo se precipita, que investe mais
profundamente, e Addie sente-se apressar também, o corpo a contrair-se à volta dele, levado ao
extremo pelo balançar das ancas dele e pelos caracóis louros que lhe caem no rosto. Ondula,
contraindo-se cada vez mais, e depois solta-se, e, uns momentos mais tarde, ele também.
Remy desaba ao seu lado, na cama. Mas não se afasta dela. Estende uma mão, afasta uma
madeixa de cabelo da sua face, beija-lhe a têmpora e ri-se, pouco mais do que um sorriso com
som, mas que a aquece profundamente.
Volta a cair contra a almofada, e o sono apodera-se deles, o dele de chumbo, depois do
prazer, e dela leve, como uma sesta, mas sem sonhos.
Addie já não sonha.
Na verdade, não sonha desde a noite no bosque. Ou, se sonhou, é a única coisa de que nunca
se lembra. Talvez não haja espaço dentro da sua cabeça, cheia como está de memórias. Talvez
seja outra faceta da sua maldição, viver apenas como vive. Ou talvez seja uma bênção, num
estranho sentido, pelos muitos pesadelos que haveria de ter.
Mas fica feliz e quente ao lado dele e por algumas horas quase esquece.
Remy rolou para longe dela, no sono, expondo a estreiteza das suas costas. Ela pousa a mão
entre as suas omoplatas e sente-o respirar, passa os dedos pela curvatura da coluna, estudando-
lhe as formas do mesmo modo que ele estudara as suas no meio da paixão. O seu toque é leve
como uma pena, mas, passado um instante, ele mexe-se, vira-se e rebola, ficando de frente para
ela.
Por um breve instante, o seu rosto é amplo e aberto e afável; o rosto que se aproximou dela na
rua e sorriu por entre segredos partilhados no café e riu quando a acompanhou primeiro a casa e
depois até à dele.
Mas, no tempo que demora a acordar completamente, aquele rosto dissipa-se, e todo o
reconhecimento com ele. Uma sombra passa por aqueles calorosos olhos azuis, por aquela boca
agradável. Estremece um pouco, ergue-se sobre um cotovelo, perturbado pela presença daquela
estranha na sua cama.
Porque, como é evidente, agora ela é uma estranha.
Pela primeira vez desde que se conheceram, na noite anterior, franze o sobrolho, balbucia
uma saudação, palavras demasiado formais, rígido de embaraço, e o coração de Addie desfaz-se
um pouco. Está a tentar ser amável, mas não consegue suportar aquilo, por isso levanta-se e
veste-se o mais depressa possível, uma enorme inversão no tempo que demorou a despir a roupa.
Não se preocupa com os atilhos ou com as fivelas. Não se volta a virar para ele, pelo menos até
sentir o calor da sua mão no ombro, o toque quase delicado. Pensa, desesperadamente,
loucamente, que talvez — talvez — haja uma forma de salvar a situação. Vira-se, esperando
encontrar os seus olhos, para dar com ele a olhar para baixo, para outro lado, enquanto coloca
três moedas na mão dela.
E tudo arrefece.
Pagamento.
Passar-se-ão muitos anos até conseguir ler grego, muitos mais antes de ouvir falar no mito de
Sísifo, mas, quando toma conhecimento dele, acenará com a cabeça, em sinal de compreensão,
com as palmas das mãos a doerem de tanto empurrar pedras encosta acima, com o coração
pesado do fardo de as ver rolarem de novo até lá abaixo.
Neste momento, não tem mitos que lhe façam companhia. Apenas aquele magnífico rapaz, de
costas viradas para ela.
Apenas Remy, que não faz qualquer gesto para a acompanhar quando se apressa até à porta.
Algo chama a sua atenção, uma pilha de papéis caídos no chão. O livro do café. O último de
Voltaire. Addie não sabe o que a atrai nele — talvez deseje apenas uma recordação da sua noite,
algo além da moeda terrível que tem na mão —, mas, num instante, o livro está no soalho,
abandonado entre as roupas e, no seguinte, encontra-se encostado ao seu peito, com o resto dos
seus pertences.
As suas mãos afinal tornaram-se mais leves, e, mesmo que o roubo tenha sido desajeitado,
Remy não teria reparado, ali sentado na cama, com a atenção concentrada em tudo menos nela.
Nova Iorque
15 de março de 2014

Addie conduz Henry rua abaixo, dobrando uma esquina para uma porta de aço não identificada,
cheia de cartazes antigos. Um homem demora-se perto dela, a fumar cigarros atrás de cigarros e
a ver fotografias no telemóvel.
— Júpiter — diz ela, de súbito, e o homem endireita-se e abre a porta, expondo uma
plataforma estreita e um lanço de escadas que desce até um ponto longe da vista.
— Bem-vindos ao Fourth Rail.
Henry dirige-lhe um olhar perplexo, mas Addie pega-lhe na mão e puxa-o lá para dentro.
Vira-se, olhando para trás quando a porta se fecha.
— Não há quatro carris no metro — diz ele, e Addie brinda-o com um sorriso.
— Precisamente.
É disso que gosta numa cidade como Nova Iorque. Está cheia de divisões escondidas, de
portas infinitas conduzindo a salas infinitas. E, se se tiver tempo, é possível encontrar muitas
delas. Descobriu algumas por acaso, outras durante uma ou outra aventura. Mantém-nas
guardadas, como folhas de papel entre as páginas do seu livro.
Uma escadaria conduz a outra, a segunda mais larga, de pedra. Os arcos do teto, lá em cima, o
estuque a dar lugar a pedra e depois a tijolo, o túnel iluminado apenas por uma série de lanternas
elétricas, mas tão afastadas umas das outras que pouco fazem de facto para destruir a escuridão.
Um rasto de migalhas, apenas o suficiente para se divisar alguma coisa, motivo pelo qual Addie
tem o prazer de ver a expressão de Henry quando se apercebe de onde estão.
O Metro de Nova Iorque tem quase quinhentas estações ativas, mas o número de túneis
abandonados permanece uma questão controversa. Alguns deles estão abertos ao público,
simultaneamente monumentos ao passado e sinais de aquiescência face a um futuro
indeterminado. Alguns são pouco mais do que caminhos encastoados entre linhas em
funcionamento.
E, depois, alguns deles são secretos.
— Addie... — murmura Henry, mas ela levanta um dedo no ar, inclina a cabeça. À escuta.
A música começa como um eco, um matraquear distante, simultaneamente sensação e som.
Ergue-se a cada degrau que descem, parece encher o ar à sua volta, primeiro como um zunido,
depois como um retumbar e, finalmente, como um batimento.
Mais à frente, o túnel está vedado com tijolo, assinalado apenas pela faixa branca de uma seta
para a esquerda. Dobrando a esquina, a música intensifica-se. Mais um beco sem saída, mais
uma viragem e...
O som abate-se sobre eles.
Todo o túnel vibra com a força do baixo, a reverberação de acordes contra pedra. Projetores
intermitentes a latejar num azul-esbranquiçado, um estroboscópio a reduzir a discoteca escondida
a fotogramas; uma multidão a contorcer-se, corpos a saltar ao som da música; dois artistas a
erguer guitarras elétricas iguais num palco de betão; uma fila de empregados de bar imobilizados
no ato de verter bebidas em copos.
As paredes do túnel estão cobertas de azulejos cinzentos e brancos, faixas largas que
envolvem as arcadas, lá em cima, que as vergam de novo, como costelas, como se estivessem
dentro da barriga de um animal enorme, esquecido, com o ritmo a retumbar através do seu
coração.
O Fourth Rail é primitivo, impetuoso. O tipo de sítio que Luc iria adorar.
Mas este? Este é dela. Addie encontrou o túnel sozinha. Mostrou-o ao músico-que-se-tornou-
empresário, que andava à procura de um sítio. Mais tarde, nessa noite, chegou a sugerir o nome,
com as cabeças inclinadas sobre um guardanapo de cocktail. A caneta dele escreve. A ideia dela.
Tem a certeza de que acordou no dia seguinte com uma ressaca e com os primeiros rascunhos do
Fourth Rail. Seis meses mais tarde, viu o tipo do lado de fora da porta de aço. Viu o logótipo que
criaram, uma versão mais requintada, enfiado por detrás dos cartazes a descascar, e sentiu o
entusiasmo agora familiar de sussurrar algo ao mundo e de o ver tornar-se real.
Addie empurra Henry para o bar improvisado.
É simples, a parede do túnel dividida em três atrás de uma base ampla de pedra clara que
serve de balcão. As opções são vodca, bourbon ou tequila, e um empregado de bar espera, de pé,
diante deles.
Addie pede pelos dois. Duas vodcas.
A transação decorre em silêncio — não vale a pena tentar gritar por cima da parede de som.
Uma série de dedos ergue-se, dez pousam no balcão. O empregado de bar — um rapaz negro
esguio com sombra cinzenta nos olhos — serve dois shots e abre as mãos como um croupier a
dar as cartas.
Henry levanta o copo, e Addie ergue o seu, e as bocas de ambos movem-se ao mesmo tempo
(ela pensa que ele está a dizer à nossa enquanto responde saúde), mas os sons são engolidos,
com o tilintar dos copos a não passar de uma pequena vibração por entre os seus dedos.
A vodca inflama-lhe o estômago como um fósforo, com o calor a florescer por detrás das
costelas. Voltam a colocar os copos vazios em cima do balcão, e Addie já está a puxar Henry em
direção à amálgama de corpos perto do palco, quando o tipo atrás do balcão estende o braço e
agarra no pulso de Henry.
O empregado sorri, apresenta um terceiro copo de shot e volta a servir. Leva as mãos ao peito,
no gesto universal de esta é por minha conta.
Bebem, e ali está de novo o calor, a espalhar-se do peito para os membros, e depois a mão de
Henry na dela, movendo-se na multidão. Addie olha para trás, vendo o empregado de bar a olhar
para eles fixa- mente, e tem uma sensação estranha, a erguer-se como os últimos sedimentos de
um sonho, e quer dizer algo, mas a música é uma parede, e a vodca suaviza-lhe as arestas dos
pensamentos até se dissipar, e depois ambos começam a introduzir-se no meio da multidão.
Lá em cima pode ser início da primavera, mas, ali em baixo, é fim de verão, húmido e pesado.
A música é líquida, o ar espesso como xarope enquanto mergulham por entre os membros
emaranhados. O túnel está revestido a tijolos, atrás do palco, criando uma reverberação
extraordinária, um espaço onde o som se verga, duplica, com cada nota a ser transportada, a
diminuir, sem desaparecer completamente. Os guitarristas tocam um trecho em uníssono
perfeito, reforçando o efeito de eco na câmara, agitando as águas da multidão.
E então a rapariga avança sob as luzes.
Uma fada adolescente — uma coisa feérica, diria Luc —, num vestido preto curto e botas da
tropa. O seu cabelo louro-branco está apanhado no alto da cabeça, arranjado em dois carrapitos
iguais, com as pontas espetadas como uma coroa. A única cor reside na fenda dos seus lábios
vermelhos e no arco-íris desenhado como uma máscara, nos seus olhos. Os guitarristas
apressam-se, com os dedos a voarem sobre as cordas. O ar estremece, a batida martela através de
pele, músculo e osso.
E a rapariga começa a cantar.
A sua voz é um lamento, um grito de fada, se uma fada gritasse afi- nada. As sílabas sangram
juntas, as consoantes esbatem-se, e Addie dá consigo a aproximar-se mais, ansiosa por ouvir as
palavras. Mas estas recuam, deslizam sob o som dos instrumentos, vergam-se sob a energia
selvagem do Fourth Rail.
As guitarras tocam o seu coro hipnótico.
A cantora parece quase um fantoche, puxada pelos fios.
E Addie pensa que Luc a teria adorado, pergunta-se, por um instante, se ali terá estado
alguma vez, desde que ela descobriu aquele lugar. Inspira como se fosse capaz de cheirar a
escuridão, como fumo, no ar. Mas Addie obriga-se a parar, esvazia a cabeça dele, cria, em vez
disso, espaço para o rapaz que se encontra ao seu lado, a saltar ao som da batida.
Henry, com a cabeça inclinada para trás, os óculos a embaciarem-se, cinzentos, e o suor a
escorrer-lhe do rosto como lágrimas. Por um instante, parece impossivelmente,
incomensuravelmente triste, e ela lembra-se da dor na sua voz quando falou de perder tempo.
Mas depois olha para ela e sorri, e tudo desaparece, um truque das luzes, e pergunta-se quem
e como e de onde veio ele, sabe que é tudo demasiado bom para ser verdade, mas, nesse
momento, está simplesmente contente por ele ali estar.
Fecha os olhos, deixa-se entrar no ritmo da música, e está em Berlim, na Cidade do México,
em Madrid, e está ali, naquele momento, com ele.
Dançam até os membros doerem.
Até o suor lhes pintar a pele e o ar se tornar demasiado denso para se respirar. Até haver uma
pausa na música e outra conversa silenciosa ter passado entre os dois como uma centelha.
Até ele a arrastar de volta para o bar e para o túnel, pelo mesmo caminho por onde vieram,
mas o fluxo do movimento faz-se por uma rua de sentido único, as escadas e a porta de aço
conduzem apenas ao interior.
Até que ela vira a cabeça para o outro lado, para um arco negro instalado na parede do túnel,
perto do palco, encaminha-os para as escadas estreitas, com a música a esmorecer um pouco
mais a cada passo que sobem, os ouvidos a zunir do ruído branco deixado para trás.
Até saírem para a noite fresca de março, enchendo os pulmões de ar fresco.
E o primeiro som que Addie ouve é o riso dele.
Henry volta-se para ela, de olhos brilhantes, faces coradas, intoxicado de uma forma que tem
menos a ver com a vodca do que com o poder do Fourth Rail.
Ainda está a rir quando a tempestade começa.
O estrondo de um trovão, e, segundos depois, a chuva começa a cair. Não uma morrinha —
nem sequer as gotas esparsas de aviso que rapidamente dão lugar a um aguaceiro regular —, mas
a súbita precipitação de aço de uma carga de água. O tipo de chuva que nos atinge como tijolos,
que nos encharca completamente em segundos. Addie arqueja ao sentir o choque súbito do frio.
Estão a três metros do toldo mais próximo, mas nenhum deles corre a abrigar-se.
Ela sorri olhando para cima, para a chuva, deixa que a água lhe beije a pele.
Henry olha para ela, e Addie devolve-lhe o olhar, e então ele abre os braços como que a
acolher a tempestade, com o peito a palpitar. A água demora-se nas suas pestanas negras,
desliza-lhe pelo rosto, lavando a discoteca da roupa, e Addie apercebe-se subitamente de que,
apesar dos instantes de semelhança, Luc nunca teve aquele aspeto.
Jovem.
Humano.
Vivo.
Puxa Henry para si, saboreia a compressão do seu corpo, quente contra o frio. Passa-lhe a
mão pelo cabelo e, pela primeira vez, este permanece puxado para trás, expondo as linhas
definidas do seu rosto, as concavidades ávidas do maxilar, os olhos, de um tom de verde mais
claro do que vira neles, até esse momento.
— Addie — sussurra ele, e o som envia faúlhas que lhe percorrem a pele, e, quando a beija,
sabe a sal e a verão. Mas parece-se demasiado com um sinal de pontuação, e ela não está pronta
para que a noite chegue ao fim, por isso devolve-lhe o beijo, de forma mais profunda, transforma
o ponto final numa pergunta, numa resposta.
E então correm, não à procura de abrigo, mas atrás do metro.

Entram aos tropeções no apartamento dele, com as roupas molhadas coladas à pele.
São um emaranhado de membros no átrio, sem se conseguirem aproximar o suficiente. Ela
tira-lhe os óculos do nariz, atira-os para cima de uma cadeira próxima, despe o casaco, com a
pele a colar-se-lhe à pele. E estão de novo a beijar-se. Desesperados, famintos, selvagens,
enquanto os dedos dela lhe percorrem as costelas, se engancham na parte da frente das calças de
ganga dele.
— Tens a certeza? — pergunta ele, e, como resposta, ela puxa-lhe a boca para a sua, guia as
mãos dele para os botões da sua saia enquanto as dela procuram o cinto dele. Henry encosta-a
contra a parede e diz o nome dela, e há relâmpagos na pele de Addie, fogo no seu âmago, desejo
entre as suas pernas.
E depois estão na cama, e, por um instante, apenas por um instante, ela é outra pessoa, outro
tempo, com a escuridão a envolvê-la. Um nome sussurrado contra pele nua.
Mas, para ele, era Adeline, apenas Adeline. A sua Adeline. A minha Adeline.
Ali, agora, é finalmente Addie.
— Diz outra vez — implora.
— Digo o quê? — murmura ele.
— O meu nome.
Henry sorri.
— Addie — sussurra ele contra a sua garganta.
— Addie. — Beija-lhe a linha do pescoço.
— Addie. — O estômago.
— Addie. — As ancas.
A boca dele encontra o calor entre as suas pernas, e os dedos de Addie enredam-se naqueles
caracóis negros, com as costas arqueadas de prazer. O tempo estremece, desfoca-se. Ele faz o
caminho de volta, beija-a de novo, e então ela põe-se em cima dele, comprimindo-o contra a
cama.
Não encaixam perfeitamente. Ele não foi feito para ela, como Luc — mas isto é melhor,
porque é real e amoroso e humano, e ele lembra-se.
Quando chegam ao fim, ela cai, sem fôlego, nos lençóis ao seu lado, com o suor e a chuva a
arrefecerem-lhe na pele. Henry aninha-se à sua volta, puxa-a de novo para o círculo do seu calor,
e Addie consegue sentir o coração dele abrandar atrás das costelas, um metrónomo a regressar ao
seu ritmo.
O quarto fica em silêncio, apenas marcado pela chuva regular atrás das vidraças, o rescaldo
sonolento da paixão, e depressa o sente cair no sono.
Addie olha para o teto.
— Não te esqueças — diz baixinho, com as palavras a assemelharem-se um pouco a uma
prece, um pouco a uma súplica.
Os braços de Henry contraem-se, com o corpo a vir à tona do sono.
— Esqueço o quê? — murmura, já a afundar-se de novo.
E Addie espera que a respiração dele estabilize antes de sussurrar as palavras no escuro.
— De mim.
Paris, França
29 de julho de 1724

Addie irrompe noite dentro, a limpar as lágrimas das faces.


Puxa o casaco para junto do corpo, apesar do calor de verão, e percorre sozinha a cidade
adormecida. Não se dirige ao casebre a que chamou casa esta estação. Avança simplesmente,
porque não consegue suportar a ideia de ficar parada.
Por isso Addie caminha.
E, a dado momento, apercebe-se de que já não está sozinha. Há uma mudança no ar, uma
brisa subtil, transportando o aroma a folhas de bosques interiores, e então ele aparece ao seu
lado, a acompanhar o seu ritmo, passo a passo. Uma sombra elegante, vestida ao último grito da
moda de Paris, com o colarinho e os punhos orlados de seda.
Apenas os seus caracóis negros ondulam em torno do rosto, selvagens e livres.
— Adeline, Adeline — diz, com a voz eivada de prazer, e ela está de volta à cama, com a voz
de Remy a dizer Anna, Anna contra o seu cabelo.
Quatro anos se passaram sem uma visita.
Quatro anos a suster a respiração, e, embora nunca o admita, vê-lo é como vir à tona respirar.
Um alívio terrível, um desafogo. Por mais que deteste aquela sombra, aquele deus, aquele
monstro na sua carne roubada, continua a ser o único que se lembra dela.
Mas isso não a faz odiá-lo menos.
No máximo, odeia-o mais.
— Por onde andaste? — explode.
Um prazer presunçoso cintila nos seus olhos como luar.
— Porquê? Tiveste saudades minhas? — Addie não se atreve a falar. — Ora, vá lá — insiste
Luc —, não pensaste mesmo que eu iria facilitar as coisas?
— Passaram-se quatro anos — diz ela, assustando-se perante a raiva na sua voz, demasiado
próxima da necessidade.
— Quatro anos não são nada. Uma respiração. Um piscar de olhos.
— E, no entanto, apareceste hoje.
— Conheço o teu coração, minha querida. Sei quando vacila.
Os dedos de Remy fechados sobre os dela, sobre as moedas, o peso súbito da tristeza, e a
escuridão, atraída pela dor como um lobo pelo sangue.
Luc olha para baixo, para as calças dela, presas abaixo do joelho, para a camisa de homem,
aberta na garganta.
— Devo dizer — declara — que te preferia de vermelho.
O seu coração afunda-se perante a referência àquela noite, quatro anos antes, a primeira vez
que não apareceu. Ele saboreia a visão da sua surpresa.
— Tu viste — disse ela.
— Sou a própria noite. Vejo tudo. — Aproxima-se mais, carregando o aroma de tempestades
de verão, o beijo das folhas da floresta. — Mas era lindo o vestido que usaste por minha causa.
A vergonha perpassa como uma descarga sob a sua pele, seguida do ardor da raiva, ao saber
que ele a estava a observar. Que observara a sua esperança esvair-se como as velas no parapeito,
que observara enquanto ela se dilacerava, sozinha, no escuro.
Odeia-o, usa esse ódio como uma capa, envolve-se bem nele ao mesmo tempo que sorri.
— Pensaste que eu definharias em a tua atenção. Mas não definhei.
A escuridão emite um som entre dentes.
— Passaram-se apenas quatro anos — diz, pensativo. — Talvez da próxima vez espere mais
tempo. Ou talvez... — a mão aflora-lhe o queixo, inclinando-lhe o rosto de modo a aproximar-se
do seu. — Deixar-me-ei destas visitas e deixar-te-ei vaguear pela Terra até ao fim dos tempos.
É um pensamento arrepiante, apesar de ela não o deixar transparecer.
— Se fizesses isso — diz ela sem emoção —, nunca terias a minha alma.
Ele encolhe os ombros.
— Tenho milhares de outras à espera de serem colhidas, és apenas uma delas. — Agora está
mais perto, demasiado perto, com o polegar a percorrer-lhe o maxilar, os dedos a deslizarem-lhe
pela nuca. — Seria muito fácil esquecer-te. Todos os outros já o fizeram. — Ela tenta recuar,
mas a mão é de pedra, agarrando-a rapidamente. — Será suave. Será rápido. Aceita, agora —
insiste —, antes que mude de ideias.
Por um instante terrível, não confia na sua resposta. O peso das moedas na palma da mão
ainda é demasiado recente, a dor da noite a dilacerá-la, e a vitória a dançar como luz nos olhos de
Luc. É suficiente para a obrigar a cair em si.
— Não — diz ela, a palavra como um rosnido.
E ali está, como um presente, um lampejo de ira naquele rosto perfeito.
A mão dele solta-se, com o seu peso a desaparecer como fumo, e Addie fica mais uma vez
sozinha no escuro.

Há um ponto em que a noite cede.


Quando a escuridão finalmente começa a enfraquecer e perder o seu domínio sobre o céu. É
lento, tão lento que nem sequer repara, até que a luz se começa a infiltrar, até que a lua e as
estrelas desapareceram, e o peso da atenção de Luc lhe sai dos ombros.
Addie sobe os degraus do Sacré Coeur, senta-se lá em cima, com a igreja atrás de si e Paris a
espraiar-se aos seus pés, e vê o dia 29 de julho transformar-se no dia 30, vê o sol nascer sobre a
cidade.
Quase esqueceu o livro que tirou do chão, no quarto de Remy.
Agarrou-o com tal força que os dedos lhe doem. Agora, sob a luz aquosa da manhã, interroga-
se sobre o título, sondando a palavra. La Henriade. É um poema épico, esse termo novo, que
ainda não conhece. Addie abre a capa e tenta ler a primeira página, consegue apenas decifrar
uma linha antes de as palavras se desfazerem em letras e de as letras se esbaterem, e tem de
resistir ao impulso de atirar o maldito livro para longe, de o arremessar escadas abaixo.
Em vez disso, fecha os olhos, inspira profundamente e pensa em Remy, não nas suas
palavras, mas no prazer suave da sua voz quando fala de ler, no deleite dos seus olhos, na alegria,
na esperança.
Será uma jornada terrível, cheia de começos e de paragens e de uma miríade de frustrações.
Decifrar aquele primeiro poema épico demorar-lhe-á quase um ano — um ano passado a
trabalhar cada linha, a tentar compreender uma frase, depois uma página, de seguida um capítulo.
E passar-se-á mais uma década ainda, até o ato surgir naturalmente, até a tarefa em si se
dissolver, e descobrir o prazer oculto da história.
Levará tempo, mas tempo é a única coisa que Addie tem de sobra.
Por isso abre os olhos e recomeça.
Nova Iorque
16 de março de 2014

Addie acorda com o cheiro a torradas, o fervilhar de manteiga a cair numa frigideira quente. A
cama está vazia ao seu lado, a porta quase fechada, mas consegue ouvir Henry andar pela
cozinha sob o murmúrio suave de conversa de rádio. O quarto está frio, e a cama está quente, e
sustém a respiração tentando preservar o momento, como fez milhares de vezes, prendendo o
passado ao presente e protegendo-se do futuro, da queda.
Mas hoje é diferente.
Porque alguém se lembra.
Atira as cobertas para o lado, vasculha o chão do quarto à procura da roupa, mas não há sinal
das calças de ganga ou da camisa ensopadas pela chuva, apenas o blusão de cabedal familiar
dobrado em cima de uma cadeira. Addie descobre um roupão por baixo e enrola-se nele,
enterrando o nariz no colarinho. Está gasto e macio, cheira a algodão lavado e a amaciador de
roupa, com um ligeiro toque a champô de coco, um cheiro que acabará por reconhecer como
sendo dele.
Vai até à cozinha, descalça, enquanto Henry serve café de uma cafeteira francesa.
Olha para cima e sorri.
— Bom dia.
Duas palavrinhas que transformam o mundo.
Não desculpa. Não não me lembro. Não devia estar com os copos.
Apenas bom dia.
— Pus a roupa no secador — diz. — Deve estar quase seca. Tira uma caneca.
A maior parte das pessoas tem uma prateleira com canecas. Henry tem uma parede inteira.
Estão penduradas em ganchos num armário preso à parede, com cinco divisórias verticais e sete
prateleiras. Algumas têm motivos, outras são lisas, e não há duas iguais.
— Não sei se as canecas que aí tens serão suficientes.
Henry lança-lhe um olhar de esguelha. Tem uma maneira de quase sorrir. É como luz por trás
de uma cortina, o raio de sol por detrás das nuvens, mais uma promessa do que algo real, mas
irradia afeto.
— Era uma tradição, na minha família — diz. — Quem aparecesse para beber café escolhia
uma que lhe dissesse alguma coisa nesse dia.
A sua própria caneca, cinzento-carvão, está pousada na bancada, com o interior revestido por
algo que se assemelha a prata líquida. Uma nuvem de tempestade e o seu revestimento. Addie
analisa a parede, tentando decidir-se por uma. Tira uma caneca grande de porcelana com
folhinhas azuis e sente o seu peso na palma mão, antes de reparar noutra. Está prestes a devolvê-
la à prateleira, quando Henry a detém.
— Lamento imenso, mas todas as escolhas são definitivas — diz, barrando a torrada com
manteiga. — Terás de tentar de novo amanhã.
Amanhã. A palavra incha um pouco no seu peito.
Henry serve o café, e Addie pousa os cotovelos em cima da bancada, envolvendo a caneca
fumegante com as mãos, e inspira o aroma agridoce. Por um segundo, apenas por um segundo,
está em Paris, com o chapéu puxado para baixo, num canto do café, enquanto Remy lhe
empurrava a chávena e dizia Bebe. É assim que as memórias são, para ela, o passado a vir à tona
no presente, um palimpsesto visto à transparência.
— Oh, ei — diz Henry, chamando-a. — Encontrei isto no chão. É teu? — ela olha para cima
e vê o anel de madeira.
— Não toques nisso. — Addie retira-lho da mão, demasiado depressa. O interior do anel
aflora a ponta do seu dedo, contorna a unha como uma moeda prestes a pousar, com a facilidade
de uma bússola a encontrar o Norte.
— Merda. — Addie estremece e deixa cair o anel. Este cai com estrépito no chão, rolando
vários metros antes de parar ao embater na ponta de um tapete. Agarra os dedos como se se
tivesse queimado, com o coração a matraquear.
Não o pôs.
E, mesmo que o tivesse feito... o seu olhar atravessa a janela, mas é de manhã, a luz do sol
entra pelas cortinas em borbotões. A escuridão não a poderá encontrar ali.
— O que foi? — pergunta Henry, claramente confuso.
— Nada — diz ela, abanando a mão. — Foi só uma lasca. Raio de coisa. — Ajoelha-se
lentamente para o apanhar, tendo o cuidado de tocar apenas o exterior do anel. — Desculpa —
diz ela, pondo-se de pé. Pousa o anel em cima da bancada, entre ambos, abrindo as mãos de cada
um dos lados do mesmo. Sob a luz artificial, a madeira clara parece quase cinzenta. Addie olha
para o anel.
— Alguma vez tiveste uma coisa que adoras e odeias, mas não te consegues livrar dela? Algo
que quase desejavas perder, porque assim deixava de estar ali, e a culpa não seria tua se... —
tenta aligeirar as palavras, torná-las quase casuais.
— Sim — diz ele baixinho. — Tenho. — Abre uma gaveta da cozinha e tira um objeto
pequeno e dourado. Uma estrela de David. Um pendente, sem o fio correspondente.
— És judeu?
— Fui. — Duas palavras, é tudo o que tenciona dizer. A atenção desvia-se novo para o anel.
— Parece antigo.
— É. — Tem exatamente a sua idade.
Ambos deveriam há muito ter-se consumido.
Coloca a mão sobre o anel, sente a orla de madeira macia enterrar-se na palma.
— Pertenceu ao meu pai — disse, e não é mentira, embora seja apenas o princípio da verdade.
Fecha as mãos em volta do anel e guarda-o no bolso. O anel não tem peso, mas consegue senti-
lo. Consegue sempre senti-lo.
— Enfim — diz ela, com um sorriso demasiado resplandecente. — O que é o pequeno-
almoço?

Quantas vezes terá Addie sonhado com aquilo?


Com café quente e torradas com manteiga, com a luz do sol a atravessar as janelas, com dias
novos que não sejam todo um recomeço, sem o silêncio incómodo de estranhos, com um rapaz
ou com uma rapariga, com cotovelos em cima da bancada diante dela, o consolo simples de uma
noite recordada.
— Deves gostar mesmo de pequenos-almoços — diz Henry, e ela apercebe-se de que está a
sorrir de orelha a orelha para a comida.
— É a minha refeição preferida — responde, enchendo uma garfada com ovos. Mas, à
medida que come, a esperança começa a esmorecer.
Addie não é tola. Seja o que for que aquilo seja, sabe que não irá durar. Viveu demasiado para
acreditar na sorte, foi amaldiçoada demasiado tempo para acreditar no destino.
Começou a perguntar-se se será uma armadilha.
Uma forma nova de a atormentar. De sair do impasse, de a obrigar a regressar ao jogo. Mas,
mesmo depois de todos aqueles anos, a voz de Luc continua a envolvê-la, suave e baixa e
perversa.
Só me tens a mim. Só me terás a mim. Sou o único que se lembra.
Foi o único trunfo que ele sempre jogou, a arma da sua própria atenção, e Addie não acha que
Luc abdicaria dela. Mas e se não for uma armadilha? Será um acaso? Um golpe de sorte? Talvez
tenha enlouquecido. Não seria a primeira vez. Talvez tenha congelado no telhado de Sam e esteja
presa num sonho.
Talvez nada daquilo seja real.
E, no entanto, há uma mão sobre as suas, há o suave aroma de Henry no roupão, há o som do
seu nome, a chamá-la.
— Para onde foste? — pergunta ele, e Addie enche outra garfada de comida e mantém-na em
suspenso, entre ambos.
— Se só pudesses comer uma coisa para o resto da vida — diz ela —, o que seria?
— Chocolate — responde Henry sem hesitar por um segundo. — Daquele chocolate tão puro
que é quase amargo. E tu?
Addie reflete. Uma vida é muito tempo.
— Queijo — responde ponderadamente, e Henry acena com a cabeça, e o silêncio cai sobre
eles, menos desconfortável do que envergonhado. Um riso nervoso entre olhares roubados, dois
estranhos que já não são estranhos, mas sabem muito pouco um do outro.
— Se pudesses viver algures com uma estação apenas — pergunta Henry —, qual seria?
— Primavera — diz ela —, quando tudo é novo.
— Outono — diz ele —, quando tudo se desvanece.
Ambos escolheram pontos de sutura, linhas irregulares onde as coisas nem estão aqui nem ali,
mas num equilíbrio precário. E Addie pergunta-se, um pouco para si própria:
— Preferias não sentir nada ou sentir tudo?
Uma sombra percorre o rosto de Henry, e este hesita, olha para baixo, para o pequeno-almoço
por acabar e depois para o relógio na parede.
— Raios. Tenho de ir para a loja. — Levanta-se, deixando o prato no lava-louça. A última
pergunta fica por responder.
— Devia ir para casa — diz Addie, levantando-se também. — Mudar de roupa. Trabalhar
qualquer coisa.
Não há casa, claro, ou roupa ou emprego. Mas está a interpretar o papel de uma rapariga
normal, de uma rapariga que pode ter uma vida normal, dormir com um rapaz e acordar para
bom dia em vez de quem és tu.
Henry acaba o café num único trago.
— Como fazes para procurar talentos? — pergunta, e Addie lembra-se de que lhe disse que
era caça-talentos.
— Manténs-te atento — diz, contornando a bancada. Mas ele agarra-lhe a mão.
— Quero voltar a estar contigo.
— Quero que voltes a estar comigo — repete ela.
— Continuas sem telemóvel?
Ela acena com a cabeça, e ele tamborila com os dedos, por um momento, enquanto pensa.
— Há uma carrinha de comida em Prospect Park. Encontramo-nos lá às seis?
Addie sorri.
— Combinado. — Cinge o roupão em volta do corpo. — Importas-te que tome um duche
antes de sair?
Henry beija-a.
— Claro que não. Mas depois tens de sair sozinha.
Ela sorri.
— Claro.
Henry sai, batendo com a porta atrás de si, mas, desta vez, o som não faz com que o estômago
de Addie se contorça. É apenas uma porta. Não um ponto final. Uma elipse. Um episódio com
continuação.
Toma um duche demorado e quente, enrola o cabelo numa toalha e deambula pelo
apartamento, reparando em todas as coisas que não viu na noite anterior.
O apartamento de Henry é tão desarrumado e confuso como muitos outros sítios em Nova
Iorque, com muito pouco espaço para viver e respirar. Também está apinhado com os despojos
dos seus passatempos abandonados. Um armário com tintas de óleo, com os pincéis velhos e
rígidos dentro de uma caneca manchada. Blocos e cadernos, na sua maioria vazios. Alguns
blocos de madeira e uma faca de desbaste — algures, no espaço turvo antes da sua memória
imaculada, ouve o pai cantarolar e avança, afasta-se, abrandando apenas quando chega às
máquinas fotográficas.
Uma fileira fita-a de uma prateleira, com lentes volumosas e amplas e negras.
Vintage, pensa, apesar de a palavra nunca ter tido muito peso.
Estava presente quando as câmaras incluíam tripés animalescos, o fotógrafo escondido sob
um pano pesado. Estava presente aquando da invenção dos filmes a preto e branco e depois a
cores, presente quando os planos fixos se transformaram em vídeos, quando o analógico se
tornou digital e se podiam guardar histórias inteiras na palma da mão.
Passa os dedos pela superfície das câmaras, como carapaças, sente o pó sob o seu toque. Mas
há fotografias por toda a parte.
Nas paredes, pousadas em mesas laterais e depostas num canto, à espera de serem
penduradas. Há uma de Beatrice numa galeria de arte, um perfil contra o espaço extremamente
iluminado. Uma de Beatrice e de Henry, abraçados, o olhar dela virado para cima, a cabeça dele
voltada para baixo, ambos captados no princípio de um riso. Um de um corpo que Addie
adivinha ser de Robbie. Bea tinha razão; parece saído de uma festa num apartamento de último
andar de Andy Warhol. A multidão atrás dele é uma mancha de corpos, mas Robbie está focado,
meio a rir, com purpurina roxa nas maçãs do rosto, plumas verdes ao longo do nariz, dourado nas
têmporas.
Outra fotografia, no corredor. Nessa, os três estão sentados num sofá, Bea no meio, as pernas
de Robbie estendidas sobre o seu colo, e Henry do outro lado, com o queixo preguiçosamente
apoiado na mão.
E, do outro lado do corredor, o seu oposto. Um retrato de família em pose, rígido em
comparação com as fotografias informais. Mais uma vez, Henry está sentado na ponta do sofá,
mas mais direito e desta vez posicionado entre duas pessoas que são claramente o seu irmão e a
sua irmã. A rapariga, um turbilhão de caracóis, os olhos a dançarem atrás de umas armações
felinas, o modelo da mãe pousando uma mão no seu ombro. O rapaz, mais velho, mais severo,
um eco do pai atrás do sofá. E o filho mais novo, magro, cauteloso, esboçando o tipo de sorriso
que não alcança os olhos.
Henry devolve o olhar a Addie, das fotografias em que se encontra e daquelas que
obviamente tirou. Addie consegue senti-lo, o artista na moldura. Podia ficar ali, a analisar
aquelas imagens, a tentar descobrir a verdade acerca dele, nelas, o segredo, a resposta à pergunta
que não para de lhe dar voltas na cabeça.
Mas vê apenas alguém triste, perdido, à procura. Volta a atenção para os livros.
A coleção pessoal de Henry é eclética, espalhando-se pelas superfícies de todas as divisões.
Uma prateleira na sala de estar, uma mais estreita à entrada, uma estante junto à cama, outra em
cima da mesinha de apoio. Bandas desenhadas empilhadas em cima de manuais com títulos
como Revisão da Aliança e Teologia Judaica para o Período Pós-Moderno. Há romances,
biografias, livros de bolso e exemplares de capa dura juntos, alguns velhos e desgastados, outros
novinhos em folha. Os marcadores saem de dentro das páginas, assinalando dezenas de leituras
inacabadas.
Os seus dedos vagueiam pelas lombadas, pairam sobre um livro atarracado, dourado. Uma
História do Mundo em 100 Objetos. Pergunta-se se será possível resumir a vida de uma pessoa,
quanto mais a própria civilização humana, a uma lista de coisas, pergunta-se se será uma forma
válida de avaliar, de todo, o mérito, não pelas vidas tocadas, mas pelas coisas que se deixaram
para trás. Tenta construir a sua própria lista. Uma História de Addie LaRue.
O pássaro do pai, quase perdido entre os corpos, em Paris.
La Place Royale, roubado do quarto de Remy.
O anel de madeira.
Mas essas coisas deixaram a sua marca nela. E o legado de Addie? O seu rosto, uma aparição
em centenas de obras de arte. As suas melodias, no coração de centenas de canções. Ideias a
enraizar, a crescer selvaticamente, com sementes invisíveis.
Addie continua pelo apartamento, com a curiosidade ociosa a dar lugar a uma busca mais
premeditada. Procura pistas, persegue algo, qualquer coisa, que explique Henry Strauss.
Um portátil encontra-se pousado na mesinha de apoio. Liga-se imediatamente sem pedir
senha, mas, quando Addie passa com o polegar pelo sensor, o cursor não se mexe. Toca
distraidamente pelas teclas, mas nada acontece.
A tecnologia muda.
A maldição permanece a mesma.
Só que não.
Não permaneceu — pelo menos por completo.
Por isso anda de divisão em divisão, à procura de pistas para a pergunta a que não parece
conseguir responder.
Quem és tu, Henry Strauss?
No armário dos medicamentos, encontra uma mão-cheia de receitas na prateleira, com os
nomes carregados de consoantes. Ao lado deles, um frasco com comprimidos cor-de-rosa tendo
apenas um post-it colado — um minúsculo guarda-chuva desenhado à mão.
No quarto, outra prateleira, uma pilha de cadernos de várias formas e tamanhos.
Abre-os, mas estão todos em branco.
No parapeito, outra fotografia, mais antiga — de Henry e Robbie. Nesta, estão abraçados, o
rosto de Robbie encostado ao de Henry, a sua testa pousada na têmpora de Henry. Há algo de
íntimo naquela pose, na forma como os olhos de Robbie quase se fecham, na maneira como a
mão de Henry apoia a sua nuca, como se o estivesse a suportar ou a apertar com força. A curva
serena na boca de Robbie. Feliz. Em paz.
Junto à cama, um relógio antiquado encontra-se na mesinha de cabeceira. Não tem ponteiro
dos minutos, e a hora marca para lá das seis, apesar de o relógio na parede indicar 9h32. Segura-
o junto ao ouvido, mas deve ter ficado sem bateria.
E então, na gaveta de cima, um lenço, manchado de sangue. Quando pega nele, um anel cai.
Um pequeno diamante disposto num anel de platina. Addie olhar para baixo, para o anel de
noivado, e pergunta-se para quem seria, pergunta-se quem Henry seria antes de a ter conhecido,
o que terá acontecido para que se cruzasse com ela.
— Quem és tu? — sussurra para o quarto vazio.
Envolve o anel no lenço manchado e devolve-o ao seu lugar, fechando a gaveta.
— Retiro o que disse — diz ela. — Se só pudesse comer uma coisa para o resto da vida, seria
estas batatas fritas.
Henry ri-se e rouba umas quantas do cone que ela tem na mão enquanto esperam na fila para
pedir gyros. A carrinha de comida forma uma faixa colorida pela Flatbush, com magotes de
pessoas a fazerem fila para pedir crepes de lagosta e queijo grelhado, banh mi e kebabs. Até há
uma fila para sanduíches de gelado, apesar de o calor ter decaído no ar de março, prometendo
uma noite revigorante e fria. Addie está contente por ter levado um chapéu e um cachecol, por ter
trocado as sabrinas por botas de cano alto, apesar de se aninhar no calor dos braços de Henry, até
haver uma aberta na fila para os falafel e ele se esgueirar para se meter nela.
Addie vê-o chegar ao guiché do balcão e pedir, vê a mulher de meia-idade que gere a carrinha
inclinar-se para a frente, de cotovelos no parapeito, vê-os falar, com Henry a acenar
solenemente.Afila cresce atrás dele, mas a mulher não parece reparar. Não está propriamente a
sorrir; na melhor das hipóteses, parece estar prestes a chorar enquanto estende o braço, lhe agarra
a mão e a aperta.
— A seguir!
Addie pestaneja, chega ao primeiro lugar da sua fila, gasta o resto do dinheiro roubado num
gyro de borrego e num sumo de mirtilo, dá consigo a desejar, pela primeira vez em algum tempo,
ter um cartão de crédito ou mais em seu nome do que a roupa que traz vestida e os trocos no
bolso. Deseja que as coisas não pareçam escorrer-lhe por entre os dedos como areia, poder ter
algo sem ter de o roubar.
— Estás a olhar para essa sandes como se ela te tivesse dado um desgosto de amor.
Addie olha para Henry e esboça um sorriso.
— Está com tão bom aspeto — diz ela. — Estou só a pensar como será triste quando tiver
desaparecido.
Ele suspira num lamento fingido.
— A pior parte de todas as refeições é quando chegam ao fim.
Pegam na comida e instalam-se numa faixa de relva no parque, um charco de luz a
desaparecer rapidamente. Henry adiciona os falafel e uma encomenda de dumplings ao gyro e às
batatas fritas dela, e partilham-nos, trocando dentadas como cartas num jogo de gin rummy.
Henry estende a mão para os falafel, e Addie lembra-se da mulher no guiché.
— O que foi aquilo? — pergunta. — Na carrinha, aquela mulher parecia prestes a desatar a
chorar. Conhece-la?
Henry abana a cabeça.
— Disse que lhe fazia lembrar o filho.
Addie olha para ele. Não é mentira, não lhe parece, mas também não é totalmente verdade.
Há algo que não está a dizer, mas não sabe como lho perguntar. Espeta o garfo num dumpling e
enfia-o na boca.
A comida é uma das melhores coisas de se estar vivo.
Não apenas a comida. A comida boa. Há um abismo entre a sobrevivência e a satisfação, e,
enquanto ela passou a melhor parte dos trezentos anos a comer para enganar a fome, demorou-se
nos últimos cinquenta a deliciar-se com a descoberta do sabor. Uma grande parte da vida torna-
se rotina, mas a comida é como música, como arte, cheia de promessas de algo novo.
Limpa a gordura dos dedos e deita-se na relva ao lado de Henry, sentindo-se
maravilhosamente cheia. Sabe que não irá durar. Que a saciedade é como tudo na sua vida.
Esgota-se demasiado depressa. Mas ali, naquele momento, sente-se... perfeita.
Fecha os olhos e sorri e pensa que poderia ficar ali toda a noite, apesar de começar a ficar
frio, deixar que o crepúsculo desse lugar à escuridão, aninhar-se em Henry e ansiar pelo
aparecimento das estrelas.
Ouve-se um som claro vindo do bolso do casaco dele.
Henry atende.
— Olá, Bea — começa e depois senta-se abruptamente. Addie só consegue ouvir metade da
chamada, mas é capaz de adivinhar o resto.
— Não, claro que não me esqueci. Eu sei, estou atrasado, desculpa. Estou a caminho. Sim, eu
lembro-me.
Henry desliga, põe a cabeça entre as mãos.
— A Bea organizou um jantar. E fiquei de levar a sobremesa.
Olha para trás, para as carrinhas da comida, como se uma delas tivesse a resposta, olha para o
céu, que passou do crepúsculo à escuridão. Mas agora não há tempo para lamúrias, agora é tarde.
— Anda — diz Addie, puxando para o levantar. — Sei de um sítio.

A melhor pastelaria francesa de Brooklyn não tem letreiro.


Assinalada apenas por um toldo amarelo-manteiga, por uma montra de vidro estreita entre
duas fachadas largas de tijolo, pertence a um homem chamado Michel. Todas as manhãs, de
madrugada, este chega e dá início ao lento cortejo da sua arte. Tartes de maçã, com a fruta
cortada tão fina como folhas de papel, operas, com a parte de cima polvilhada com cacau, e petit
fours cobertos com maçapão e pequenas rosas guarnecidas.
A loja agora está fechada, mas consegue ver a sombra do seu proprietário enquanto se desloca
pela cozinha, nas traseiras, e Addie bate com os nós dos dedos na porta de vidro e espera.
— Tens a certeza disto? — pergunta Henry enquanto a forma se precipita para a frente da loja
e abre a porta.
— Estamos fechados — diz ele, numa pronúncia marcada, e Addie passa de inglês para
francês enquanto explica que é amiga de Delphine, e o homem suaviza perante a referência ao
nome da filha, suavizando cada vez mais ao som da sua língua nativa, e ela compreende. Sabe
falar alemão, italiano, espanhol, checo, mas o francês é diferente, o francês é o pão a assar no
forno da mãe, o francês são as mãos do pai a esculpir a madeira, o francês é Estele a murmurar
para o seu jardim.
O francês é regressar a casa.
— Pela Delphine — responde ele, abrindo a porta —, tudo.
Dentro da lojinha, Nova Iorque desaparece, e é pura Paris, o sabor do açúcar e da manteiga
ainda no ar. As montras encontram-se agora praticamente vazias, apenas uma mão-cheia das
belas criações permanece nas prateleiras, brilhantes e esparsas como flores silvestres num campo
vazio.
Ela conhece Delphine, embora, obviamente, a jovem não a conheça a ela. Também conhece
Michel, visita aquela loja como qualquer outra pessoa poderia visitar uma fotografia,
demoradamente, como uma memória.
Henry mantém-se alguns passos atrás enquanto Addie e Michel fazem conversa banal, cada
um deles satisfeito com o intervalo breve permitido pela língua do outro, e o pasteleiro coloca
cada um dos bolos restantes numa caixa cor-de-rosa e entrega-lhos. E, quando ela se oferece para
pagar, perguntando-se se terá dinheiro suficiente para isso, Michel abana a cabeça e agradece-lhe
pelo sabor a casa, e ela deseja-lhe boa noite, e, de volta à rua, Henry olha para ela como se
tivesse realizado um truque de magia, uma proeza estranha e deslumbrante.
Puxa-a para o círculo dos seus braços.
— És espantosa — diz, e ela cora, nunca tendo tido público antes.
— Toma — diz ela, empurrando a caixa de bolos para as mãos dele. — Diverte-te.
O sorriso de Henry esbate-se. A testa enruga-se como um tapete.
— Porque não vens comigo?
E ela não sabe como dizer Não posso quando não há explicação, quando ia passar a noite
inteira com ele. Por isso diz:
— Não devo.
E ele diz:
— Por favor — e ela sabe que é uma péssima ideia, que não poderá manter o segredo da sua
maldição a pairar sobre tantas cabeças, sabe que não o pode guardar só para si, que tudo não
passa de um jogo com tempo emprestado.
Mas é assim que se caminha até ao fim do mundo.
É assim que se vive para sempre.
Há um dia, e depois o seguinte, e o outro, e aproveita-se aquilo que é possível, saboreia-se
cada segundo roubado, agarra-se cada momento, até ter desaparecido.
Por isso aceita.

Caminham, de braço dado, enquanto o princípio da noite passa de fresco a frio.


— Há alguma coisa que deva saber? — diz ela. — Sobre os teus amigos?
Henry franze o sobrolho, enquanto pensa.
— Bem, o Robbie é ator. É muito bom, mas pode ser um pouco... difícil? — solta uma
expiração profunda. — Andámos, na faculdade. Foi o único tipo por quem me apaixonei.
— Mas não resultou?
Henry ri-se, mas a respiração é superficial.
— Não. Acabou comigo. Mas foi há séculos. Agora somos amigos, mais nada. — Abana a
cabeça, como que para a limpar. — Depois há a Bea, que já conheceste. É o máximo. Está a tirar
o doutoramento e vive com um tipo chamado Josh.
— Namoram?
Henry emite um risinho.
— Não. A Bea é gay. E ele também... acho. Na verdade, não sei, é um assunto que tem sido
alvo de especulação. Mas a Bea provavelmente irá convidar a Mel ou a Elise, seja qual for das
duas com quem ande agora... é uma espécie de namoro em pêndulo. Oh, e não faças perguntas
sobre a Professora. — Addie olha para ele, com ar interrogativo, e ele explica. — A Bea teve um
caso, há alguns anos, com uma professora da Columbia. A Bea estava apaixonada, mas ela era
casada, e tudo se desmoronou.
Addie repete os nomes para si mesma, e Henry sorri.
— Não é um teste — diz. — Não vais chumbar.
Addie deseja que ele tivesse razão.
Henry respira com um pouco mais de intensidade ao seu lado. Hesita, expira.
— Há outra coisa que devias saber — diz finalmente — sobre mim.
O coração de Addie martela-lhe no peito enquanto se prepara para uma confissão, para uma
verdade relutante, uma explicação para isto, para eles. Mas Henry limita-se a olhar para cima,
para a noite sem estrelas, e diz:
— Houve uma rapariga.
Uma rapariga. Não responde a nada.
— O nome dela era Tabitha — diz, e ela sente a dor em cada sílaba. Pensa no anel na gaveta
dele, no lenço manchado de sangue enrolado à sua volta.
— O que aconteceu?
— Pedi-a em casamento, e ela recusou.
É verdade, pensa, uma versão disto. Mas Addie começa a perceber quão bom Henry é a
contornar mentiras, deixando ao mesmo tempo verdades por contar.
— Todos temos as cicatrizes de guerra — diz ela. — Pessoas no nosso passado.
— Tu também? — pergunta ele, e, por um instante, está em Nova Orleães, o quarto em
desordem, com aqueles olhos verdes-negros de raiva, enquanto o edifício começa a arder.
— Sim — diz ela baixinho. E depois, sondando delicadamente: — E também temos os nossos
segredos.
Ele olha para ela, e Addie vê aquilo deslizar-lhe pelos olhos, aquilo que não dirá, mas ele não
é Luc, e o verde não desvenda nada.
Diz-me, pensa ela. Seja o que for.
Mas não o faz.
Chegam ao edifício de Bea em silêncio, e ela abre-lhes a porta com um zumbido do trinco, e,
enquanto sobem a escada, ela desvia os pensamentos para a festa e pensa que talvez corra bem.
Talvez se lembrem dela, no fim dessa noite.
Talvez, se ele estiver com ela...
Talvez...
Mas depois a porta abre-se, e Bea está ali, com as luvas de forno apoiadas nas ancas, as vozes
a derramarem-se pelo apartamento atrás dela enquanto diz:
— Henry Strauss, estás tão atrasado que é bom que isso seja a sobremesa. — E Henry
estende-lhe a caixa de bolos como se fosse um escudo, mas, enquanto Bea lhe retira a caixa das
mãos, olha por cima dele. — E quem é esta?
— É a Addie — diz ele. — Conheceste-a na loja.
Bea revira os olhos.
— Henry, não tens assim tantos amigos que nos possas confundir. Além disso — diz,
lançando a Addie um sorriso retorcido —, nunca esqueceria um rosto como o teu. Tem algo... de
intemporal.
A testa de Henry enruga-se.
— Vocês conheceram-se, e foi exatamente isso que disseste. — Olha para Addie. —
Lembras-te disto, não lembras?
Addie hesita, encurralada entre a verdade impossível e a mentira mais fácil, começando a
abanar a cabeça.
— Desculpa, eu...
Mas Addie é salva pela chegada de uma rapariga envergando um vestido de verão amarelo,
um desafio ousado ao frio do lado de fora das vidraças, e Henry sussurra-lhe ao ouvido que é
Elise. A rapariga beija Bea e retira-lhe a caixa das mãos, dizendo que não consegue encontrar o
saca-rolhas, e Josh aparece para lhes levar os casacos e dizer que entrem.
O apartamento consiste numas águas-furtadas transformadas, um espaço aberto em que a
entrada comunica com a sala, e a sala comunica com a cozinha, e está tudo agradavelmente livre
de paredes e de portas.
A campainha volta a tinir, e, momentos mais tarde, um rapaz entra disparado como um
cometa, preenchendo completamente o ambiente, com uma garrafa de vinho numa mão e um
cachecol na outra. E, apesar de Addie só o ter visto em fotografias na parede em casa de Henry,
sabe imediatamente que é Robbie.
Entra de rompante pela entrada, beijando Bea na face, acena para Josh e abraça Elise,
voltando-se para Henry, para depois reparar nela.
— Quem és tu? — diz.
— Não sejas indelicado — responde Henry. — Esta é a Addie.
— A acompanhante do Henry — acrescenta Bea, e Addie deseja que não o tivesse dito,
porque as palavras caem como água fria no bom humor de Robbie. Henry também deve ter
percebido, porque lhe pega na mão e diz: — A Addie é uma caça-talentos.
— Oh? — pergunta Robbie, reacendendo-se um pouco. — De que tipo?
— Arte. Música. Qualquer coisa.
Ele franze o sobrolho.
— Os caça-talentos não costumam especializar-se em alguma coisa?
Bea dá-lhe uma cotovelada.
— Comporta-te — diz, indo buscar o vinho.
— Não sabia que era para trazer acompanhantes — diz ele, seguindo-a até à cozinha.
Bea dá-lhe umas palmadinhas no ombro.
— Podes usar o Josh para isso.
A mesa de jantar encontra-se entre o sofá e a bancada da cozinha, e Bea põe mais um lugar
enquanto Henry abre as duas primeiras garrafas de vinho e Robbie serve e Josh leva uma salada
para a mesa e Elise vai ver a lasanha no forno e Addie se mantém fora do caminho.
Está habituada a receber toda a atenção ou nenhuma. A ser o centro breve, mas iluminado, de
um mundo de estranhos ou uma sombra nas suas margens. Isto é diferente. É novo.
— Espero que estejam todos com fome — diz Bea, pousando a lasanha e o pão de alho no
centro da mesma.
Henry faz uma leve careta ao ver a travessa, e Addie quase ri, lembrando-se do seu festim
com a comida das carrinhas. Ela está sempre esfomeada, com a última refeição a não passar
agora de uma memória, e aceita um prato de bom grado.
Paris, França
29 de julho de 1751

Uma mulher sozinha é uma visão escandalosa.


E, no entanto, Addie veio para se deliciar com as murmurações. Está sentada nas Tuileries,
com as saias espalhadas à sua volta em cima do banco, folheia as páginas do seu livro e sabe que
está a ser observada. Ou, antes, fitada. Mas de que vale preocupar-se com isso? Uma mulher
sentada sozinha ao sol não é um crime, e não é como se os rumores se fossem espalhar para lá do
parque. Talvez os transeuntes fiquem desconcertados e reparem na estranheza da cena, mas todos
se esquecerão antes de terem a oportunidade de mexericar.
Vira a página, deixa os olhos percorrerem as palavras impressas. Por essa altura, Addie rouba
livros com a mesma avidez que comida, uma parte vital da sua alimentação diária. E, embora
prefira romances a filósofos — aventuras e fugas —, este em especial é uma base, uma chave,
concebida para lhe dar acesso a uma porta específica.
Escolheu o momento oportuno para a sua presença no parque, sentou-se na orla do jardim,
junto ao percurso que sabe que Madame Geoffrin tende a preferir. E, quando a mulher aparece a
caminhar vagarosamente pelo caminho, sabe exatamente o que fazer.
Vira a página, fingindo estar absorta.
Pelo canto do olho, Addie consegue ver a mulher aproximar-se, com a criada um passo atrás,
os braços cheios de flores, e levanta-se, com os olhos ainda cravados no livro, vira-se e dá dois
passos antes da colisão inevitável, tendo o cuidado de não fazer cair a senhora, mas de apenas a
assustar, enquanto o livro tomba por terra, entre elas.
— Que tolice — irrompe Madame Geoffrin.
— Lamento imenso — diz Addie ao mesmo tempo. — Ficou magoada?
— Não — diz a mulher, deixando o olhar passar da atacante para o livro. — Mas o que a
distraiu dessa maneira?
A criada apanha o livro caído e entrega-o à sua senhora.
Geoffrin estuda o título.
Pensées Philosophiques.
— Diderot — observa. — E quem a ensinou a ler coisas tão elevadas como estas?
— Foi o meu pai.
— Ele próprio? Que rapariga afortunada.
— Foi o princípio — responde Addie —, mas uma mulher tem de assumir a responsabilidade
pela sua própria educação, pois nenhum homem o fará realmente.
— Grande verdade — diz Geoffrin.
Estão a representar um enredo, embora a mulher mais velha não o saiba. A maior parte das
pessoas só tem uma oportunidade de causar uma primeira impressão positiva, mas, felizmente,
por esta altura, Addie já teve várias.
A mulher mais velha franze o sobrolho.
— Mas aqui no parque, sem qualquer serviçal a acompanhá-la? Sem acompanhante? Não se
preocupa com o falatório alheio?
Um sorriso desafiante lampeja nos lábios de Addie.
— Suponho que prefiro a liberdade à reputação.
Madame Geoffrin ri-se, um som breve, mais surpresa do que divertimento.
— Minha cara, existem formas de contornar o sistema e maneiras de o vergar. Como se
chama?
— Marie Christine — responde Addie — La Trémoille — acrescenta, saboreando a forma
como os olhos da mulher se abrem, em resposta. Passou um mês a aprender os nomes de famílias
nobres e a sua proximidade de Paris, eliminando aqueles que poderiam suscitar demasiadas
perguntas, descobrindo uma árvore com ramos suficientemente largos para que um primo
pudesse passar despercebido. E, felizmente, embora a salonnière se orgulhe de conhecer toda a
gente, não os pode conhecer a todos do mesmo modo.
— La Trémoille. Mais non! — diz Madame Geoffrin, mas não há descrença nas suas
palavras, apenas surpresa. — Terei de castigar Charles por a ter mantido escondida.
— Certamente — diz Addie com um ar acanhado, sabendo que nunca chegará a tanto. —
Bem,
Madame — continua, estendendo o braço à espera da devolução do livro. — Tenho de ir. Não
gostaria de lesar igualmente a sua reputação.
— Que tolice — diz Geoffrin, com os olhos a brilharem de prazer. — Sou bastante imune ao
escândalo. — Entrega o livro a Addie, mas o gesto não é de despedida. — Tem de vir ao meu
salão. O seu Diderot estará lá.
Addie hesita, por uma mera fração de segundo. Cometeu um erro, da última vez que os seus
caminhos se cruzaram, quando se decidiu por um ar de falsa humildade. Mas, desde que
percebeu que a salonnière prefere mulheres que se afirmam, desta vez sorri de satisfação.
— Teria imenso prazer.
— Formidável — diz Madame Geoffrin. —Apareça daqui a uma hora.
E ali a sua teia tem de se tornar precisa. Um ponto falhado, e tudo se desmoronará.
Addie olha para si própria.
— Oh — diz, deixando que a deceção lhe varra o rosto. — Receio não ter tempo de ir a casa
mudar de roupa, e certamente esta não será adequada.
Sustém a respiração, à espera de que a outra mulher responda, e, quando o faz, é para lhe
estender o braço.
— Não se preocupe — diz ela. — Tenho a certeza de que as minhas criadas lhe arranjarão
algo que lhe sirva.
Caminham juntas pelo parque, com a serviçal a segui-las.
— Porque nunca nos teremos cruzado antes? Conhecemos toda a gente digna de nota.
— Eu não sou digna de nota — objeta Addie. — E estarei por cá apenas durante o verão.
— A sua pronúncia é absolutamente parisiense.
— Tempo e prática — responde, e, evidentemente, é verdade.
— E, no entanto, não é casada?
Mais uma volta, mais um teste. Há algum tempo, Addie fora viúva, casara, mas hoje, decide,
não é casadoira.
— Não — afirma. — Confesso que não desejo um amo e ainda espero encontrar alguém que
me iguale.
A resposta merece um sorriso da sua interlocutora.
O interrogatório continua mesmo depois de terem passado pelo parque e percorrido a rue
Saint Honoré, quando a mulher finalmente se despede para se preparar para o salão.
Addie observa a salonnière afastar-se com alguma pena. A partir desse momento, estará por
sua conta.
A criada condu-la ao piso superior e deixa um vestido do guarda-fato mais próximo, em cima
da cama. É de seda brocada, um vestido com motivos, com uma camada de renda em torno do
pescoço. Nada que ela própria escolhesse, mas muito elegante. Addie viu em tempos uma peça
de carne envolvida em ervas e atada, pronta para o forno, e isso fê-la lembrar-se da moda
francesa da época.
Addie senta-se diante de um espelho e arranja o cabelo, ouvindo as portas abrir e fechar lá em
baixo, a casa a agitar-se com os movimentos dos convidados, a chegar. Tem de esperar que o
salão esteja florescente, as salas suficientemente apinhadas para se conseguir imiscuir entre eles.
Addie dá um toque final ao cabelo e alisa as saias e, quando o som lá em baixo se transforma
em algo suficientemente firme, as vozes a emaranharem-se com o tilintar dos copos, desce as
escadas até à sala principal.
Da primeira vez que Addie esteve no salão, foi por sorte, não por o ter planeado. Ficou
espantada ao descobrir um lugar onde uma mulher podia falar ou pelo menos ouvir, onde se
podia deslocar sozinha sem juízos de valor ou condescendência. Apreciou a comida, a bebida, a
conversa e a companhia. Podia fingir estar entre amigos em vez de estranhos.
Até dobrar uma esquina e ver Remy Laurent.
Ali estava ele, empoleirado num escabelo entre Voltaire e Rousseau, a agitar as mãos
enquanto falava, com os dedos ainda manchados de cinzento, da tinta.
Vê-lo foi como saltar um degrau, como tecido a prender-se num prego. Um momento de
desequilíbrio.
O seu amante endurecera com a idade, com a diferença entre os 23 e os 51 assinalada nas
rugas do rosto. Um vinco na testa de horas passadas a ler, um par de óculos agora equilibrados
no nariz. Mas, depois, qualquer tema lhe acendia uma faúlha nos olhos, e via o rapaz que fora, o
jovem apaixonado que viera para Paris em busca daquilo, grandes mentes com grandes ideias.
Não há sinal dele hoje.
Addie retira um copo de vinho de uma mesa baixa e avança de sala em sala como uma
sombra lançada sobre uma parede, sem se fazer notar, mas à vontade. Ouve e trava conversas
agradáveis e sente-se entre as pregas da história. Conhece um naturalista com preferência pela
vida marinha e, quando confessa que nunca viu o mar, este demora-se a meia-hora seguinte a
banqueteá-la com histórias sobre a vida dos crustáceos, e é uma forma muito agradável de passar
a tarde, e até a noite — essa noite mais do que a maior parte delas —, em que precisa de
distração.
Passaram-se seis anos — mas não quer pensar nisso, nele.
À medida que o sol se põe, e que o vinho é trocado por vinho do Porto, está a viver um serão
maravilhoso, a apreciar a companhia de cientistas, de homens de letras.
Já devia saber que ele iria dar cabo disso.
Luc entra na sala como uma lufada de vento frio, vestido em tons de cinza e preto, desde as
botas ao lenço no pescoço. Os seus olhos verdes são a única gota de cor nele.
Seis anos, e alívio é a palavra errada para aquilo que Addie sente ao vê-lo, e, no entanto, é a
que mais se aproxima. A sensação de um peso a ser pousado, uma respiração expelida, um corpo
a suspirar de consolo. Não há prazer nisso, além de libertação simples e física — o alívio de
trocar o desconhecido pela segurança.
Estava à espera, e agora não está.
Não, agora está preparada para os problemas, para a dor.
— Monsieur Lebois — diz Madame Geoffrin, cumprimentando o convidado, e Addie
pergunta-se, por um instante, se o facto de os seus caminhos se terem cruzado é apenas
coincidência, se a sua sombra aprecia o salão, as mentes que ali se acolhem — mas os homens
que se amontoam nesse espaço veneram o progresso e não os deuses. E a atenção de Luc já se
fixou firmemente nela, com o rosto banhado por uma luz simultaneamente acanhada e
ameaçadora.
— Madame — diz numa voz suficientemente alta para ser ouvida —, receio que tenhais
aberto demasiado as vossas portas.
O estômago de Addie tem um baque, e Madame Geoffrin recua um pouco, como se a
conversa na sala parecesse falhar, cessar.
— O que quer dizer?
Tenta recuar, mas o salão está apinhado, o caminho numa desordem de pernas e cadeiras.
— Aquela mulher. — As cabeças começam a virar-se na direção de Addie. — Conhece-a? —
Claro que Madame Geoffrin não a conhece, já não a conhece, mas é demasiado bem-educada
para admitir esse erro.
— O meu salão está aberto a muitos, monsieur.
— Desta vez foi demasiado generosa — diz Luc. — Aquela mulher é uma vigarista e uma
ladra. Uma criatura verdadeiramente desprezível. Veja — gesticula —, até traz um dos seus
próprios vestidos. Melhor será revistar-lhe os bolsos e certificar-se de que não roubou mais do
que pano do seu guarda-fato.
E, de um momento para o outro, transformou o jogo dela em seu favor.
Addie começa a avançar para a porta, mas há homens a rodeá-la, atrás de si.
— Detenham-na — exclama Geoffrin, e não tem outro remédio senão abandonar tudo aquilo
e precipitar-se para a porta, empurrar os convidados e sair do salão, rumo à noite.
Ninguém vai no seu encalço, claro.
Exceto Luc.
A escuridão segue-a de perto, a rir baixinho.
Ela vira-se para ele.
— Pensei que tinhas mais que fazer do que atormentar-me.
— E, no entanto, acho-o tão divertido.
Addie abana a cabeça.
— Isto não é nada. Estragaste um momento, arruinaste uma noite, mas, por causa do meu
dom, tenho milhões de outros; possibilidades infinitas de me reinventar. Podia voltar a entrar
agora mesmo, e as tuas descortesias seriam tão esquecidas quanto o meu rosto.
O divertimento brilha naqueles olhos verdes.
— Acho que irás descobrir que as minhas palavras não se esbatem tão depressa como as tuas.
— Encolhe os ombros. — Claro que não se irão lembrar de ti. Mas as ideias são muito mais
bravias do que as memórias, enraízam-se muito mais depressa.
Passar-se-ão cinquenta anos até Addie se aperceber de que ele tem razão.
As ideias são mais bravias do que as memórias.
E também as pode plantar.
Nova Iorque
16 de março de 2014

Há magia naquela noite.


Um prazer desafiante num ato simples.
Addie passa a primeira hora a reter a respiração, a preparar-se para a catástrofe, mas algures
entre a salada e o prato principal, entre o primeiro copo e o segundo, exala. Ali sentada, entre
Henry e Elise, entre a afabilidade e o riso, quase não consegue acreditar que é real, que encaixa,
uma rapariga normal ao lado de um rapaz normal num jantar normal. Ela e Bea falam de arte, e
ela e Josh falam de Paris, e ela e Elise falam de vinho, e a mão de Henry encontra o joelho dela
por baixo da mesa, e é tudo tão maravilhosamente simples e agradável. Quer agarrar-se à noite
como um chocolate na língua, saborear cada segundo antes de este derreter.
Só Robbie parece infeliz, apesar de Josh ter tentado namoriscar com ele toda a noite.
Contorce-se no seu lugar, um ator à procura de um holofote. Bebe demasiado, demasiado
depressa, incapaz de se manter quieto por mais de alguns minutos. É a mesma energia incansável
que Addie viu em Henry, mas, esta noite, ele parece perfeitamente à vontade.
Uma vez, Elise vai à casa de banho, e Addie pensa que será nesse momento, a peça de
dominó que faz desmoronar as outras. E é verdade que, quando regressa à mesa, Addie deteta a
confusão no rosto da rapariga, mas é o tipo de embaraço que se esconde e não mostra, e não diz
nada, limita-se a abanar a cabeça como que a varrer um pensamento, e sorri, e Addie imagina-a a
perguntar-se se terá bebido demais, imagina-a a puxar Beatrice à parte antes da sobremesa e a
sussurrar que não se consegue lembrar do nome dela.
Entretanto, Robbie e as suas anfitriãs estão mergulhadas numa conversa.
— Bea — lamenta-se. — Não podemos apenas...
— A festa é minha, por isso eu é que mando. Quando foi o teu aniversário, fomos a um sex
club em Bushwick.
Robbie revira os olhos.
— Era um local de encontro para música inspirada em exibicionismo.
— Era um sex club — dizem Henry e Bea ao mesmo tempo.
— Espera. — Addie inclina-se para a frente na cadeira. — Fazes anos hoje?
— Não — diz Bea enfaticamente.
— A Beatrice detesta aniversários — explica Henry. — Não nos diz quando faz anos. O
máximo que conseguimos apurar é que tem lugar em abril. Ou março. Ou maio. Por isso
qualquer jantar na primavera pode ser próximo do aniversário dela.
Bea beberrica o vinho e encolhe os ombros.
— Não vejo qual é a necessidade. É apenas um dia. Porquê pôr tanta pressão nele?
— Para poderes receber presentes, obviamente — diz Robbie.
— Eu compreendo — diz Addie. — Os melhores dias são sempre aqueles que não
planeamos.
Robbie olha ameaçadoramente.
— Como é que disseste que te chamavas? Andy?
E tenta corrigi-lo, para sentir apenas as letras alojadas na garganta.
A maldição cinge-se fortemente, estrangulando a palavra.
— É Addie — diz Henry. — E estás a ser um verdadeiro idiota.
Uma corrente nervosa percorre a mesa, e Elise, tentando claramente aliviar a energia, corta
um petit four e diz:
— A sobremesa é maravilhosa, Henry.
E ele diz:
— Foi tudo obra da Addie.
E é o suficiente para Robbie tombar como um copo e se derramar.
Sai disparado da mesa, a arfar.
— Preciso de um cigarro.
— Aqui não — diz Bea. — Vai para o terraço.
E Addie sabe que é o fim daquela bela noite, quando a porta se fecha com estrondo, porque
não os pode deter, e, quando ela estiver longe da vista...
Josh levanta-se:
— Também já fumava um.
— Vocês só se querem escapar a lavar a loiça — diz Bea, mas os dois já vão a caminho da
porta, longe da vista, longe da mente, e é meia-noite, pensa, e é assim que a magia acaba, é assim
que se volta a transformar numa abóbora.
— Vou andando.
Bea tenta convencê-la a ficar, pede-lhe que não se deixe perturbar pelo Robbie, e Addie diz
que não é culpa dele, que foi um dia longo, agradece a refeição maravilhosa, agradece a
companhia; e, na verdade, teve sorte em chegar tão longe, sorte em ter aquele tempo, aquela
noite, aquele vislumbre minúsculo de normalidade.
— Addie, espera — diz Henry, mas ela beija-o, rapidamente, e esgueira-se para fora do
apartamento e desce as escadas até à escuridão.
Suspira e abranda, com os pulmões a doerem do frio súbito. E, apesar das portas e das
paredes entre eles, consegue sentir o peso daquilo que deixou para trás e deseja poder ter ficado,
deseja que, quando Henry disse Espera, tivesse dito Vem comigo, mas sabe que não é justo
obrigá-lo a escolher. Ele está cheio de raízes, ao passo que ela só tem ramos.
E é então que ouve os passos atrás dela e abranda, estremece, mesmo agora, depois de todo
esse tempo, aguardando por Luc.
Luc, que sempre soube quando ela estava frágil.
Mas não é a escuridão, apenas um rapaz com óculos embaciados e de casaco aberto.
— Foste-te embora tão depressa... — diz Henry.
— Mas apanhaste-me — diz Addie.
E talvez devesse sentir-se culpada, mas está apenas grata.
Tornou-se boa a perder coisas.
Mas Henry continua ali.
— Os amigos às vezes são uma trapalhada, não é?
— Sim — diz ela, apesar de não fazer ideia.
— Desculpa — diz ele, acenando com a cabeça para o edifício. — Não sei o que lhe deu.
Mas Addie sabe.
Viveu o suficiente, e as pessoas abrem-se como livros. Robbie é um romance. Uma narrativa
de corações desfeitos. Está claramente apaixonado.
— Disseste que vocês eram apenas amigos.
— E somos — insiste ele. — Gosto dele como de uma pessoa da família, vou gostar sempre.
Mas não... eu nunca...
Addie pensa na fotografia, na cabeça de Robbie inclinada sobre a face de Henry, pensa no seu
olhar quando Bea disse que era a companheira dele e pergunta-se como pode não ver.
— Ainda está apaixonado por ti.
Henry desanima.
— Eu sei — diz. — Mas não posso retribuir.
Não posso retribuir. Não não retribuo. Não não devo retribuir.
Addie olha para Henry, diretamente.
— Há alguma coisa que me queiras dizer?
Não sabe o que espera que ele diga, que verdade poderia explicar esta presença persistente,
mas, por um segundo, quando ele lhe devolve o olhar, há uma tristeza breve e ofuscante.
Mas depois puxa-a para perto de si e geme e diz, numa voz baixa e vencida:
— Estou tão cheio.
E Addie ri-se, a contragosto.
Está demasiado frio para ficarem ali, e por isso caminham juntos por entre a escuridão, e ela
só repara que chegaram a casa dele quando vê a porta azul. Está tão cansada, e ele é tão
carinhoso; não se quer ir embora, e ele não lhe pede que o faça.
Nova Iorque
17 de março de 2014

Addie já acordou de centenas de formas.


Com o gelo a formar-se sobre a pele e sob um sol tão quente que a deveria ter queimado. Em
espaços vazios e noutros que o deveriam ter estado. Com guerras a deflagrar por cima da sua
cabeça e com o oceano a balançar contra o casco. Com sirenes e barulhos citadinos e silêncio e,
uma vez, com uma cobra enroscada junto à sua cabeça.
Mas Henry Strauss acorda-a com beijos.
Planta-os um a um, como bolbos de flores, deixa-os florescer na sua pele. Addie sorri e rebola
na sua direção, puxa os braços dele à volta do seu corpo, como uma capa.
A escuridão sussurra na sua cabeça: Sem mim, estarás sempre só.
Mas, em vez disso, ouve o som do coração de Henry, o murmúrio suave da sua voz no seu
cabelo quando lhe pergunta se tem fome.
É tarde, e ele devia estar a trabalhar, mas diz-lhe que The Last Word fecha às segundas-feiras.
Não pode saber que ela se lembra do pequeno letreiro de madeira, das horas que se seguem a
cada dia. A livraria fecha apenas às terças-feiras.
Não o corrige.
Vestem-se e dirigem-se vagarosamente à loja da esquina, onde Henry compra sanduíches de
ovo e queijo ao balcão e Addie deambula pela loja à procura de sumo.
E é então que ouve a campainha.
É então que vê uma cabeça arruivada e um rosto familiar, quando Robbie irrompe pela loja. É
então que o seu coração se afunda, quando acontece quando saltamos um degrau, o desamparo
súbito de um corpo em desequilíbrio.
Addie tornou-se boa a perder...
Mas não está pronta.
E quer parar o tempo, esconder-se, desaparecer.
Mas, dessa vez, não consegue. Robbie vê Henry, e Henry vê-a, e estão num triângulo de ruas
de sentido único. Uma comédia de memória e ausência e terrível acaso, quando Henry lhe põe o
braço à volta da cintura e Robbie olha para Addie com gelo nos olhos e diz:
— Quem é esta?
— Não tem piada — diz Henry. — Ainda estás com os copos?
Robbie recua, indignado.
— Estou... o quê? Não. Nunca vi esta rapariga. Nunca me disseste que andavas com alguém.
É um acidente de automóvel em câmara lenta, e Addie sabia que estava destinado a acontecer,
a colisão inevitável de pessoas e lugares, tempo e circunstância.
Henry é uma coisa impossível, o seu estranho e belo oásis. Mas também é humano, e os seres
humanos têm amigos, têm famílias, têm milhões de laços que os prendem a outras pessoas. Ao
contrário dela, nunca foi libertado, nunca existiu num vazio.
Por isso, era inevitável.
Mas, ainda assim, não está pronta.
— Caramba, Rob, acabaste de a conhecer.
— Tenho a certeza de que me haveria de lembrar. — Os olhos de Robbie escurecem. — Mas,
por outro lado, ultimamente, é difícil manter-me a par.
O espaço entre ambos desaba quando Henry avança. Addie antecipa-se, agarra-lhe na mão
quando esta se ergue e puxa-o para trás.
— Henry, para.
O frasco era tão bonito que os guardara lá dentro. Mas agora o vidro está fendido. A água
começa a escorrer.
Robbie olha para Henry, espantado, traído. E ela compreende. Não é justo. Nunca é justo.
— Anda — diz ela, apertando-lhe a mão.
A atenção de Henry volta-se finalmente para ela.
— Por favor — diz ela. — Vem comigo.
Saem para a rua, com a paz da manhã esquecida, deixada para trás, com o sumo de laranja e
as sandes.
Henry treme de raiva.
— Desculpa — diz. — O Robbie pode ser um idiota, mas aquilo foi...
Addie fecha os olhos e escorrega pela parede abaixo.
— A culpa não é dele. — Pode recuperar aqui, suster o frasco prestes a partir-se, comprimir
os dedos sobre as rachas. Mas por quanto tempo? Por quanto tempo poderá guardar Henry só
para si? Por quanto tempo poderá evitar que repare na maldição?
— Não me parece que ele se lembrasse de mim.
Henry franze os olhos, claramente confuso.
— Como poderia não se lembrar?
Addie hesita.
É fácil ser sincero quando não existem palavras erradas, porque as palavras não perduram.
Quando o que quer que digamos nos pertence apenas a nós.
Mas Henry é diferente, ouve-a, lembra-se, e subitamente cada palavra está cheia de peso, e a
sinceridade torna-se algo pesado.
Só tem uma oportunidade.
Pode mentir-lhe, como faria com qualquer outra pessoa, mas, se começar, não conseguirá
parar, e, além disso, não lhe quer mentir. Esperou demasiado para ser ouvida, vista.
E Addie lança-se em direção à verdade.
— Sabes que algumas pessoas não são boas a memorizar rostos? Olham para amigos, família,
pessoas que conheceram toda a vida e não as reconhecem.
Henry franze o sobrolho.
— Teoricamente, sim...
— Bem, comigo acontece o contrário.
— Lembras-te de toda a gente?
— Não — diz Addie. — Quero dizer, sim, lembro, mas não é disso que estou a falar. A
verdade é que... as pessoas me esquecem. Mesmo que nos tenhamos cruzado centenas de vezes.
Esquecem-me.
— Isso não faz sentido nenhum.
Não faz. Claro que não faz.
— Eu sei — diz ela —, mas é verdade. Se voltasse agora mesmo àquela loja, o Robbie não se
ia lembrar. Podias apresentar-me, mas, no momento em que eu virasse costas, no momento em
que ficasse longe da vista, esquecia-se outra vez.
Henry abana a cabeça.
— Como? Porquê?
As mais pequenas perguntas. A maior resposta.
Porque fui uma tola.
Porque tinha medo.
Porque não tive cuidado.
— Porque — diz ela, encostando-se à parede de betão — fui amaldiçoada.
Henry fica a olhar para ela, com a testa franzida atrás dos óculos.
— Não compreendo.
Addie inspira profundamente, tentando acalmar os nervos. E depois, porque decidiu dizer a
verdade, é o que faz.
— O meu nome é Addie LaRue. Nasci em Villon, no ano de 1691, os meus pais eram Jean e
Marthe, e vivíamos numa casa de pedra, junto a um velho teixo...
Villon-sur-Sarthe, França
29 de julho de 1764

A carroça range até parar junto ao rio.


— Não a posso levar mais longe — diz o condutor, agarrando as rédeas. — Ainda estamos a
quilómetro e meio de distância. — Não faz mal — diz ela. — Sei o caminho.
Uma carroça desconhecida e o condutor poderiam atrair as atenções, e Addie prefere
regressar pelo caminho percorrido, da mesma forma que aprendeu cada centímetro daquele lugar:
a pé.
Paga ao homem e desce, com a orla da capa cinzenta a aflorar a terra. Não se preocupou com
bagagens, aprendeu a viajar com pouca coisa; ou então a libertar-se das coisas com a mesma
facilidade com que estas lhe chegam. Assim é mais simples. É demasiado difícil agarrar-se às
coisas.
— Então é daqui? — pergunta ele, e Addie franze os olhos sob o sol.
— Sou — diz. — Mas estive muito tempo fora.
O condutor olhar para ela de cima a baixo.
— Não demasiado.
— Ficaria surpreendido — diz ela, e então ele faz estalar o chicote, e a carroça afasta-se, e
Addie fica novamente sozinha numa terra que conhece, até aos ossos. Um lugar de onde se
ausentou durante cinquenta anos. Estranho — já esteve longe o dobro do tempo que ali viveu e,
ainda assim, parece-lhe um regresso a casa. Não sabe quando tomou a decisão de regressar ou
como, apenas que a coisa se foi acumulando dentro dela como uma tempestade, desde o tempo
em que a primavera começou a parecer verão, com um peso a entranhar-se como a promessa de
chuva, até conseguir ver as nuvens escuras no horizonte, ouvir o trovão na sua cabeça,
instigando-a a ir.
Talvez seja uma espécie de ritual, desta vez. Uma forma de se limpar, de deixar Villon
claramente no passado. Talvez esteja a tentar libertar-se. Ou talvez esteja a tentar agarrar-se.
Não irá ficar, isso sabe.
A luz cintila na superfície do Sarthe, e, por um instante, pensa em rezar, em mergulhar as
mãos na corrente rasa, mas agora não tem nada para oferecer aos deuses do rio e nada para lhes
dizer. Não responderam quando era preciso.
Contornando a curva, e para lá de um conjunto de árvores, Villon ergue-se entre colinas
baixas, casas de pedra cinzenta aninhadas na bacia do vale. Cresceu um pouco, alargou-se como
um homem de meia-idade, estendendo-se para fora, mas continua a ser Villon. Há uma igreja, e a
praça central, e, ali, para lá do centro da vila, a linha verde-escura do bosque.
Não atravessa a vila, contorna-o ao invés por sul.
Em direção a casa.
O velho teixo continua de vigia ao fundo da alameda. Cinquenta anos acrescentaram alguns
ângulos emaranhados aos seus braços, uma largura adicional em volta da base, mas, excetuando
isso, está na mesma. E, por um instante, quando a única coisa que consegue ver é o contorno da
habitação, o tempo vacila e desliza, e tem outra vez 23 anos, caminha para casa vinda da vila ou
do rio ou de casa de Isabelle, com a roupa lavada na anca ou o caderno de desenho debaixo do
braço, e a qualquer instante verá a mãe na porta aberta, com farinha polvilhada sobre os pulsos,
ouvirá o golpe firme do machado do pai, o silêncio suave da égua, Maxime, a sacudir a cauda e a
mastigar erva.
Mas depois aproxima-se da casa, e a ilusão volta a desfazer-se em memória. O cavalo
desapareceu, claro, e, no pátio, a oficina do pai encontra-se agora penosamente inclinada para um
dos lados, enquanto, do outro lado da erva alta, a casa dos pais repousa, escura e silenciosa.
O que esperava?
Cinquenta anos. Addie sabia que já não estariam ali, mas a visão daquele lugar, em ruínas,
abandonado, ainda a perturba. Os pés movem-se ao seu próprio ritmo, transportando-a pela rua
suja, através do pátio, até aos despojos decadentes da loja do pai.
Abre a porta com facilidade — a madeira está podre, a desfazer-se — e entra na cabana.
A luz do sol entra pelas tábuas partidas, pintando a escuridão de faixas de luz, e o ar cheira a
decomposição e não a madeira acabada de talhar, terrosa e doce; todas as superfícies estão
cobertas de mofo e humidade e pó. As ferramentas que o pai amolava todos os dias jazem agora
abandonadas, de um castanho-ferrugem e vermelho. As prateleiras estão quase vazias; os
pássaros de madeira desapareceram, mas persiste uma taça grande, inacabada, ao lado de uma
cortina de teias de aranha e de fuligem.
Passa a mão pela poeira, vê-a voltar a formar-se à sua passagem.
Quanto tempo esteve fora?
Obriga-se a sair em direção ao pátio e para.
A casa ganhou vida ou pelo menos começou a mexer. Uma estreita fita de fumo ergue-se da
chaminé. Uma janela encontra-se aberta, cortinas finas a ondular suavemente com a corrente de
ar.
Alguém se encontra lá dentro.
Alguém ainda ali está.
Devia ir-se embora, sabe que devia, aquele lugar não é dela, já não, mas já está a atravessar o
pátio, já está a estender a mão para bater à porta.
Os dedos abrandam, lembrando-se daquela noite, da última de outra vida.
Fica ali, no degrau, a desejar que a mão decida por ela — mas já se anunciou. A cortina agita-
se, uma sombra a atravessar a janela, e Addie consegue apenas recuar dois passos, três, antes que
uma fresta da porta se abra. Apenas o suficiente para revelar uma fenda de um rosto enrugado,
um olho azul ameaçador.
— Quem está aí?
A voz da mulher é quebradiça, fina, mas, mesmo assim, aterra como uma pedra no peito de
Addie, rouba-lhe o ar, e tem a certeza de que, mesmo que fosse mortal, se a sua mente suavizasse
com o tempo, continuaria a lembrar-se daquilo — o som da voz da mãe.
A porta range ao abrir, e ali está ela, murcha como uma planta no inverno, dedos nodosos
agarrados a um xaile puído. Está velha, extremamente velha, mas viva.
— Conheço-a de algum lado? — pergunta a mãe, mas não há sinal de reconhecimento na sua
voz, apenas a dúvida dos velhos e inseguros. Addie abana a cabeça.
Mais tarde, perguntar-se-á se, caso tivesse respondido que sim, a mente da mãe, esvaziada de
memória, poderia ter arranjado espaço para essa verdade. Se poderia ter convidado a filha a
entrar, a sentar-se junto à lareira e a partilhar uma refeição simples, para que, quando Addie se
fosse embora, tivesse algo a que se agarrar além da versão da mãe a escorraçá-la.
Mas não o faz.
Tenta dizer a si mesma que esta mulher deixou de ser sua mãe quando ela deixou de ser sua
filha, mas claro que as coisas não funcionam assim. E, no entanto, tem de ser. Já fez o luto, e,
apesar do espanto no rosto da mulher ser profundo, a dor é superficial.
— O que deseja? — pergunta Marthe LaRue.
E essa é outra pergunta a que não pode responder, porque não sabe. Olha para lá da idosa,
para o espaço sombrio que costumava ser a sua casa, e só então se ergue uma estranha esperança
dentro do seu peito. Se a mãe está viva, então talvez, talvez..., mas sabe. Sabe pelas teias de
aranha na porta da oficina, pela poeira na taça por terminar. Sabe pelo olhar cansado no rosto da
mãe e pelo estado escuro e desalinhado da casa, atrás dela.
— Desculpe — diz, recuando.
E a mulher não lhe pergunta porquê, fica apenas a olhar, sem pestanejar, enquanto ela se
afasta.
A porta range ao fechar-se, e Addie sabe, enquanto se afasta, que nunca mais verá a mãe.
Nova Iorque
17 de março de 2014

É muito fácil dizer as palavras.


Afinal, a história nunca foi a parte mais difícil.
É um segredo que tentou partilhar muitas vezes, com Isabelle e Remy, com amigos e
estranhos e quem quer que pudesse ouvir, mas, de todas as vezes, observou as suas expressões
ficarem neutras, os rostos esvaziarem-se, viu as palavras pairarem no ar diante de si como fumo
antes de serem dissipadas.
Mas Henry olha para ela e ouve.
Ouve quando lhe conta do casamento e das orações que não foram atendidas, das oferendas
feitas de madrugada e sob o crepúsculo. Da escuridão no bosque, a desfilar como um homem, ou
do desejo, e da recusa dele, e do erro dela.
Podes ficar com a minha alma quando eu já não a quiser.
Ouve quando lhe fala de viver para sempre e de ser esquecida e de desistir. Quando chega ao
fim, sustém a respiração, esperando que Henry desfaça a névoa, pergunte o que ela estava prestes
a dizer. Em vez disso, os olhos dele estreitam-se numa concentração especial, e Addie percebe,
com o coração a bater descompassado, que ouviu cada palavra.
— Fizeste um pacto? — diz ele. Há um distanciamento na sua voz, uma calma imperturbada.
E claro que parece loucura.
Claro que não acredita nela.
É assim que o vai perder. Não para a memória, mas para a descrença.
E então, do nada, Henry ri-se.
Afunda-se contra um suporte de bicicletas, com a cabeça encostada à mão, e ri-se, e ela pensa
que ele enlouqueceu, pensa que alguma coisa dentro dele se partiu, pensa, até, que está a fazer
troça dela.
Mas não é o tipo de riso que se siga a uma piada. É demasiado alucinado, demasiado
esbaforido.
— Fizeste um pacto — volta a dizer.
Ela engole em seco.
— Olha, eu sei o que parece, mas...
— Acredito em ti.
Pestaneja, subitamente confusa.
— O quê?
— Acredito em ti — volta ele a dizer.
Três palavrinhas, tão raras como Lembro-me de si, e devia ser sufi- ciente — mas não é. Nada
faz sentido, nem Henry, nem aquilo; não faz desde o início e tem tido demasiado medo de
perguntar, de saber, como se saber pudesse fazer desabar todo o sonho, mas vê as fendas que ele
traz nos ombros, sente-as no seu próprio peito.
Quem és tu?, quer perguntar. Porque é que és diferente? Como é que te consegues lembrar
quando mais ninguém consegue? Porque achas que fiz um pacto?
Acaba por dizer apenas uma coisa.
— Porquê?
E as mãos de Henry deslizam-lhe do rosto, olhando para cima, para ela, com os seus olhos
verdes brilhantes de febre, e diz...
— Porque eu também fiz.
O HOMEM QUE NÃO SE MOLHAVA À CHUVA
Título: Aberto ao Amor
Artista(s): Muriel Strauss (conceção) e Lance Harringer (confeção)
Data: 2011
Suporte: Escultura de alumínio, aço e vidro
Origem: Cedido pela Tisch School of the Arts
Descrição: Originalmente exposta como instalação interativa, na qual o coração de alumínio, perfurado por buraquinhos, se
encontrava pendurado em cima de um balde. Numa mesa ao lado do coração de metal, recipientes com formas e tamanhos
variados continham líquidos de cores diferentes, alguns água, outros álcool, outros tinta, e os participantes eram encorajados
a escolher um deles e a esvaziar o conteúdo para dentro do coração. O líquido começava imediatamente a escorrer, com uma
velocidade dependente da viscosidade da substância vertida.
Contexto: Esta escultura constituía a peça central do portefólio de Strauss, uma coleção de obras sobre o tema da família.
Na altura, Strauss não especificou que membro da família correspondia a cada peça, mas insistiu que Aberto ao Amor fora
concebido como uma «homenagem ao esgotamento da monogamia em série e um testemunho dos perigos do afeto
desequilibrado».
Valor estimado: Desconhecido; a obra foi oferecida à Tisch pelo artista, para instalação permanente
Nova Iorque
4 de setembro de 2013

Um rapaz nasce com o coração partido.


Os médicos intervêm e reparam-no, devolvem-lhe a saúde, e o bebé é mandado para casa,
com a sorte de estar vivo. Dizem que agora está melhor, que pode viver uma vida normal, e, no
entanto, à medida que cresce, está convencido de que continua a ter algo errado dentro de si.
O sangue bombeia, as válvulas abrem e fecham, e, nas ecografias e nos ecrãs, tudo funciona
como deveria. Mas há algo que não está bem.
Deixaram-lhe o coração demasiado aberto.
Esqueceram-se de voltar a fechar a armadura do peito.
E agora ele sente... demasiado.
Outras pessoas chamar-lhe-iam sensível, mas é mais do que isso. O botão está avariado, o
volume está no máximo. Momentos de alegria são registados como breves, mas extáticos.
Momentos de dor prolongam-se por muito tempo e são insuportavelmente intensos.
Quando o seu primeiro cão morre, Henry chora durante uma semana. Quando os pais
discutem e não consegue suportar a violência das suas palavras, foge de casa. Levam mais de um
dia a conseguirem trazê-lo de volta. Quando David deita fora o urso da sua infância, quando a
primeira namorada, Abigail, o deixa especado no baile, quando têm de dissecar um porco na sala
de aula, quando perde o postal que o avô lhe deu antes de morrer, quando descobre Liz a traí-lo
durante a viagem de finalistas, quando Robbie acaba com ele antes da universidade, de todas as
vezes, seja algo insignificante ou importante, tem a sensação de que o coração está a quebrar-se
de novo no peito. Henry tem 14 anos da primeira vez que rouba um gole de uma bebida alcoólica
do pai, só para baixar o volume. Tem 16 quando surripia dois comprimidos do armário da mãe,
só para adormecer a dor. Tem 20 quando fica tão pedrado que acha que consegue ver as fendas
na pele, os pontos em que se está a desfazer.
O seu coração tem uma fuga.
Deixa entrar a luz.
Deixa entrar as tempestades.
Deixa entrar tudo.

O tempo passa terrivelmente depressa.


Um piscar de olhos, e vai a meio da escolaridade, paralisado pela ideia de que, o que quer que
escolha fazer, significa não fazer centenas de outras coisas, por isso muda de área dezenas de
vezes antes de, finalmente, acabar em Teologia, e, por algum tempo, parece o caminho certo,
mas é apenas um reflexo do orgulho no rosto dos pais, porque presumem que têm um rabino em
formação, mas a verdade é que não quer exercer, vê os textos sagrados como histórias, epopeias
arrebatadoras, e, quanto mais estuda, menos acredita em alguma coisa daquilo.
Um piscar de olhos, e tem 24 anos e viaja pela Europa, pensando — e esperando — que a
mudança desencadeie algo em si, que um vislumbre do mundo, vasto e imponente, ponha o seu
próprio mundo em perspetiva. E, por algum tempo, isso acontece. Mas não há emprego, não há
futuro, apenas um interlúdio, e, quando acaba, a conta bancária está esvaída e não se encontra
mais perto de alguma coisa.
Um piscar de olhos, e tem 26 anos e é chamado ao gabinete do orientador porque este percebe
que já não está para ali virado e aconselha-o a procurar outro caminho e assegura-lhe que irá
encontrar a sua vocação, mas o problema é precisamente esse, nunca se sentiu atraído por uma
coisa. Não há um impulso violento numa direção, mas um empurrão mais suave para centenas de
caminhos diferentes, e agora todos eles parecem fora do alcance.
Um piscar de olhos, e tem 28 anos, e toda a gente já vai muito mais à frente, e ainda está a
tentar encontrar o caminho, e é irónico pois, ao desejar viver, aprender, encontrar-se, se perdeu.
Um piscar de olhos, e conhece uma rapariga.

A primeira vez que Henry viu Tabitha Masters, ela estava a dançar.
Devia haver dez como ela em palco. Henry estava ali para ver Robbie atuar, mas os membros
dela tinham poder de atração, a sua forma, uma espécie de gravidade. O seu olhar continuava a
incidir sobre ela. Era o tipo de beleza de tirar o fôlego, aquele que não se consegue captar numa
fotografia, porque a magia está no movimento. A forma como se mexia era uma história que se
contava apenas com uma melodia e um vergar de coluna, com uma mão alongada, uma descida
lenta até ao solo escurecido.
A primeira vez que se conheceram foi numa festa depois de um espetáculo.
No palco, os seus traços eram uma máscara, uma tela para a arte das outras pessoas. Mas ali,
na sala apinhada de gente, Henry só conseguia ver o seu sorriso. Ocupava todo o seu rosto, do
queixo pontiagudo à linha do cabelo, um tipo de alegria devoradora que não conseguia parar de
observar. Estava a rir-se de qualquer coisa — nunca descobriu de quê —, e era como se alguém
tivesse acendido todas as luzes da sala.
E, ali, nesse momento, o seu coração começou a doer.
Henry demorou trinta minutos e três bebidas para arranjar coragem para dizer olá, mas, a
partir desse momento, foi fácil. O ritmo e o fluxo de frequências em sincronia. E, pelo fim da
noite, apaixonava-se.
Já se apaixonara antes.
Sophia no liceu.
Robbie na faculdade.
Sarah, Ethan, Jenna — mas era sempre difícil, complicado. Cheio de começos e paragens, de
viragens no sítio errado e de becos sem saída. Mas, com Tabitha, era fácil.

Dois anos.
Foi o tempo que estiveram juntos.
Dois anos de jantares e pequenos-almoços e gelados no parque e ensaios de dança e ramos de
rosas, de dormirem em casa um do outro, de brunches aos fins de semana e de ver séries
televisivas de enfiada e de viagens ao Norte para ela conhecer os pais dele.
Dois anos a beber menos por causa dela e a manter-se sóbrio por causa dela, a arranjar-se por
causa dela e a comprar coisas para as quais não tinha dinheiro porque queria fazê-la sorrir, queria
fazê-la feliz.
Dois anos, e nem uma única discussão, e agora pensa que afinal talvez não fosse assim tão
bom.
Dois anos — e, algures entre uma pergunta e uma resposta, tudo desabou.
Com um joelho no chão e um anel no meio do parque, Henry é um verdadeiro idiota, porque
ela disse não.
Ela disse não, e essa nem foi a pior palavra.
— És espetacular — disse ela. — És mesmo. Mas não és...
E não termina, e não tem de o fazer, porque ele sabe o que vem a seguir.
Não és a pessoa certa.
Não és suficiente.
— Pensei que te querias casar.
— E quero. Um dia.
As palavras, claras como a água, apesar de nunca terem sido ditas.
Mas não contigo.
E depois desapareceu, e agora Henry está ali, no bar, e está embriagado, mas não
suficientemente embriagado.
Sabe, porque o mundo ainda ali está, porque toda a noite ainda parece demasiado real, porque
tudo ainda magoa. Está reclinado para a frente, com o queixo apoiado nos braços dobrados,
especado a olhar por entre a coleção de garrafas vazias em cima da mesa. A sua imagem
devolve-lhe o olhar de meia-dúzia de reflexos distorcidos.
O Merchant está cheio de gente, um muro de ruído branco, por isso Robbie tem de gritar por
cima da barulheira.
— Ela que se lixe.
E, por algum motivo, vindo do seu ex-namorado, aquilo não faz Henry sentir-se muito
melhor.
— Estou bem — diz, da forma automática com que as pessoas respondem sempre que se lhes
pergunta como estão, apesar de o seu coração estar escancarado, pendurado pelas dobradiças.
— É melhor assim — acrescenta Bea, e se fosse outra pessoa qualquer a dizê-lo, a rapariga
tê-lo-ia expulsado para o canto do bar por ser uma banalidade. Dez minutos de intervalo para
lugares-comuns. Mas é tudo o que têm para ele nessa noite.
Henry termina a bebida que tem à sua frente e pega noutra.
— Calma, miúdo — diz Bea, esfregando-lhe a nuca.
— Estou bem — volta a dizer.
E ambos o conhecem o suficiente para saber que é mentira. Conhecem o seu coração
despedaçado. E ambos o apoiaram durante as suas tempestades. São as melhores pessoas da sua
vida, aquelas que o mantêm de pé ou, pelo menos, que o impedem de se desmoronar. Mas,
naquele momento, existem demasiadas fendas. Naquele momento, existe um fosso entre as
palavras deles e os ouvidos dele, as mãos deles e a pele dele.
Estão mesmo ali, mas parecem estar muito longe.
Olha para cima, estudando as suas expressões, repletas de comiseração, sem surpresa, e uma
consciência cai sobre ele como um arrepio.
— Vocês sabiam que ela ia recusar.
O silêncio prolonga-se um pouco de mais. Bea e Robbie trocam um olhar, como se
estivessem a tentar decidir quem tomará a iniciativa, e então Robbie estende o braço para lhe
agarrar a mão.
— Henry...
Ele recua.
— Vocês sabiam.
Agora está de pé, quase a embater na mesa atrás dele.
O rosto de Bea franze-se.
— Vá lá. Senta-te.
— Não. Não. Não.
— Ei — diz Robbie, apoiando-o. — Vou levar-te a casa.
Mas Henry detesta a forma como Robbie está a olhar para ele, por isso abana a cabeça, apesar
de o gesto fazer a sala toldar-se.
— Não — diz ele. — Só quero estar sozinho.
A maior mentira que alguma vez disse.
Mas a mão de Robbie solta-se, e Bea abana a cabeça na direção dele, e ambos deixam Henry
ir-se embora.

Henry ainda não está suficientemente bêbedo.


Entra numa loja de bebidas e compra uma garrafa de vodca a um tipo que olha para ele como
se já tivesse bebido demasiado, mas também como se claramente precisasse daquilo. Arranca a
tampa com os dentes enquanto começa a chover.
O telemóvel vibra no bolso.
É provavelmente Bea. Ou Robbie. Mais ninguém lhe ligaria.
Deixa-o tocar, sustém a respiração até parar. Diz para si mesmo que, se voltar a tocar,
atenderá. Se voltarem a ligar, dir-lhes-á que não está bem. Mas o telemóvel não toca uma
segunda vez.
Não os culpa por isso, agora não, depois também não. Sabe que não é um amigo fácil, sabe
que devia ter antecipado aquilo, que devia ter...
A garrafa escorrega-lhe por entre os dedos, estatela-se no passeio, e devia deixá-la ali, mas
não o faz. Baixa-se para a apanhar, mas perde o equilíbrio. A mão cai sobre o vidro partido, e
Henry volta a levantar-se. Dói, claro que dói, mas a dor é um pouco amortecida pela vodca, pelo
poço de mágoa, pelo seu coração destroçado, por tudo o resto.
Henry procura à pressa o lenço no bolso, a seda branca bordada com um T prateado. Não
queria uma caixa — o estojo clássico e impessoal que denunciava sempre a pergunta —, mas
agora, enquanto puxa o lenço para fora, o anel solta-se e saltita pelo passeio húmido.
As palavras ecoam-lhe na cabeça.
És espetacular, Henry. És mesmo. Mas não és...
Comprime o lenço contra a mão ferida. Em segundos, a seda fica manchada de vermelho.
Arruinada.
Não és suficiente.
As mãos são como as cabeças; sangram sempre demasiado.
Foi o irmão, David, quem lho disse. David, o médico, que sabia o que queria ser desde os 10
anos de idade.
É fácil mantermo-nos no caminho certo quando a estrada segue a direito e os passos estão
numerados.
Henry vê o lenço ficar vermelho, olha para baixo, para o diamante, no passeio, e pensa em
deixá-lo ali, mas não se pode dar ao luxo de o fazer, por isso obriga-se a dobrar-se e a apanhá-lo.

Bebe um copo sempre que ouvires que não és suficiente.


Que não és a pessoa certa.
Que não tens o aspeto certo.
Que não tens a concentração certa.
Que não tens o impulso certo.
Que não tens o tempo certo.
Que não tens o emprego certo.
Que não tens o caminho certo.
Que não tens o futuro certo.
Que não tens o presente certo.
Que não tens o eu certo.
Tu não.
(Eu não?)
Falta simplesmente qualquer coisa.
(Falta...)
A nós.
O que poderia ter feito?
Nada. É apenas...
(A pessoa que és.)
Não pensei que fosse uma relação séria.
(És demasiado...
... doce.
... delicado.
... sensível.)
Simplesmente não nos vejo ficar juntos.
Conheci outra pessoa.
Desculpa.
Não és tu.
Aguenta.
Não estamos no mesmo comprimento de onda.
Não estamos em sintonia.
Não és tu.
Não podemos escolher por quem nos apaixonamos.
(E por quem não nos apaixonamos.)
És um amigo extraordinário.
Vais trazer felicidade à rapariga certa.
Mereces melhor.
Vamos ficar amigos.
Não te quero perder.
Não és tu.
Desculpa.
E agora sabe que bebeu demasiado.
Estava a tentar alcançar o ponto em que deixaria de sentir, mas pensa que o poderá ter
ultrapassado, que poderá dispersado para um sítio pior. A cabeça rodopia, uma sensação que há
muito deixou de ser agradável. Descobre uns quantos comprimidos no bolso de trás, ali enfiados
pela irmã, Muriel, na sua última visita. Chapelinhos de chuva cor-de-rosa, foi o que disse.
Engole-os a seco enquanto o chuvisco se transforma numa carga de água.
A água pinga-lhe do cabelo, escorrendo-lhe em fios pelos óculos e encharcando-lhe a camisa.
Não quer saber.
Talvez a chuva o limpe.
Talvez o arraste consigo.
Henry chega ao seu prédio, mas não se consegue obrigar a subir os seis degraus até à porta, os
vinte e quatro que se seguem até ao seu apartamento, que pertence a um passado onde tinha um
futuro, por isso afunda-se contra o pilar, recosta-se e olha para cima, para o ponto em que o
terraço se encontra com o céu, e pergunta-se quantos mais degraus serão precisos para chegar ao
parapeito. Obriga-se a parar, comprime as palmas das mãos contra os olhos e diz para si mesmo
que é apenas uma tempestade.
Reforça as escotilhas e espera que passe.
É apenas uma tempestade.
É apenas uma tempestade.
É apenas...
Não tem bem a certeza de quando o homem se senta ao seu lado no degrau.
Num segundo Henry está sozinho, no segundo seguinte não está.
Ouve o estalido de um isqueiro, uma pequena chama a dançar-lhe no canto do olho. Depois
uma voz. Por um segundo apenas, parece vir de toda a parte e depois mesmo do seu lado.
— Noite má. — Pergunta sem ponto de interrogação.
Henry olha e vê um homem, vestido com um fato cor de carvão lustroso sob uma gabardine
preta aberta e, por um instante terrível, pensa que é o irmão, David. Que está ali para recordar a
Henry todos os sentidos em que este é uma desilusão.
Têm o mesmo cabelo preto, o mesmo maxilar saliente, mas David não fuma, não o
apanhavam nem morto naquela parte de Brooklyn e não é tão bem-parecido. Quanto mais Henry
olha para o estranho, mais as semelhanças se esbatem — substituídas pela perceção de que o
homem não está a ficar molhado.
Apesar de a chuva continuar a cair com força, continuar a ensopar o casaco de malha de
Henry, a sua camisa de algodão, a agarrar-lhe a pele com mãos frias. O estranho do fato elegante
não tenta proteger a pequena chama do isqueiro ou o próprio cigarro. Dá uma baforada longa
reclina os cotovelos para trás, contra os degraus encharcados, e vira o queixo para cima, como se
desse as boas-vindas à chuva.
Esta não o chega a atingir.
Cai à sua volta, mas ele mantém-se seco.
Henry pensa então que o homem é um fantasma. Ou um mago. Ou, muito provavelmente,
uma alucinação.
— O que desejas? — pergunta o estranho, ainda a estudar o céu, e Henry encolhe-se,
instintivamente, mas não há raiva na voz do homem. No máximo, está curioso, a inquirir. A
cabeça volta a inclinar-se para baixo e olha para Henry com os olhos mais verdes que este já viu.
Tão brilhantes que cintilam no escuro.
— Neste momento, neste instante — diz o estranho. — O que desejas?
— Ser feliz — responde Henry.
— Ah — diz o estranho, com o fumo a deslizar-lhe por entre os lábios —, ninguém te pode
dar isso.
A ti não.
Henry não faz ideia de quem possa ser este homem ou se é real, até, e sabe, apesar da névoa
da bebida e dos comprimidos, que deveria levantar-se e ir para dentro. Mas não consegue obrigar
as pernas a moverem-se, o mundo é demasiado pesado, e as palavras agora continuam a
irromper, derramando-se dele.
— Não sei o que querem de mim — diz. — Não sei quem querem que seja. Dizem-nos para
sermos nós próprios, mas não falam a sério, e estou simplesmente cansado... — a voz quebra. —
Estou cansado de ficar aquém das expectativas. Cansado de estar... não é o facto de estar
sozinho. Não me importo de estar sozinho. Mas isto... — os dedos entrelaçam-se sobre o peito da
camisa. — Magoa.
Uma mão ergue-se sob o seu queixo.
— Olha para mim, Henry — diz o estranho, que não lhe chegou a perguntar o nome.
Henry olha para cima, cruzando-se com aquelas íris luminosas. Vê algo contorcer-se dentro
deles, como fumo. O estranho é belo, de uma forma que se assemelha a um lobo. Esfomeado e
acutilante. O seu olhar de esmeralda desliza sobre ele.
— És perfeito — murmura o homem, passando um polegar pela face de Henry.
A sua voz é de seda, e Henry apoia-se nela, no toque, quase perde o equilíbrio quando a mão
do homem se afasta.
— A dor pode ser bela — diz, expirando uma nuvem de fumo. — Pode transformar. Pode
criar.
— Mas eu não quero sofrer — diz Henry numa voz rouca. — Quero...
— Queres ser amado.
Um som pequeno e vazio, meio tosse, meio soluço.
— Sim.
— Então sê amado.
— Fá-lo parecer tão simples.
— E é — diz o estranho. — Se estiveres disposto a pagar. Henry engasga-se numa
gargalhada.
— Não ando à procura desse tipo de amor.
O tremeluzir negro de um sorriso brinca no rosto do estranho.
— Não estou a falar de dinheiro.
— Que mais há, então?
O estranho estende o braço e pousa a mão contra o esterno de Henry.
— A única coisa que qualquer ser humano tem para dar.
Por um instante, Henry pensa que o estranho quer o seu coração, por mais despedaçado que
esteja — e depois compreende. Trabalha numa livraria, leu epopeias suficientes, devorou as
alegorias e os mitos. Caramba, Henry passou os primeiros dois terços da sua vida a estudar as
Escrituras e cresceu a alimentar-se regularmente de Blake, Milton e Fausto. Mas há muito que
qualquer um deles lhe pareceu mais do que uma história.
— Quem és tu? — pergunta.
— Sou aquele que descobre os gravetos e os acende até serem chama. O que alimenta todo o
potencial humano.
Olha para o estranho, ainda seco, apesar do temporal, uma beleza demoníaca num rosto
familiar, e aqueles olhos, subitamente mais serpenteantes, e Henry percebe o que aquilo é: um
devaneio. Já os teve uma ou duas vezes, em resultado de uma automedicação agressiva.
— Não acredito em demónios — diz, levantando-se.
— E não acredito em almas.
O estranho inclina a cabeça.
— Então não tens nada a perder.
A tristeza profunda, desviada nos últimos minutos pela companhia fácil do estranho, regressa
agora a toda a brida. Pressão contra vidro a fender. Vacila um pouco, mas o estranho apoia-o.
Henry não se lembra de ver outro homem levantar-se, mas agora estão olhos nos olhos. E,
quando o diabo volta a falar, há uma profundidade nova na sua voz, um calor firme, como um
cobertor a envolver-lhe os ombros. Henry sente-o inclinar-se sobre ele.
— Queres ser amado — diz o estranho —, por todos eles. Queres ser suficiente para todos
eles. E posso conceder-to, em troca de algo de que nem sentirás falta. — O estranho estende a
mão. — Então, Henry? O que dizes?
E Henry não pensa que nada daquilo seja real.
Por isso não importa.
Ou talvez o homem à chuva tenha razão.
Simplesmente não tem mais nada a perder.
Afinal, é fácil.
Tão fácil como subir para o parapeito do terraço.
E cair.
Henry pega-lhe na mão, e o estranho aperta-a, com força suficiente para lhe reabrir os cortes
na palma. Mas pelo menos não sente. Não sente nada, enquanto a escuridão sorri e diz uma única
palavra.
— Feito.
Nova Iorque
17 de março de 2014

Existem centenas de tipos de silêncio.


Há um silêncio denso de lugares há muito selados e o silêncio surdo de ouvidos tapados. O
silêncio vazio dos mortos e o silêncio pesado dos moribundos.
Há o silêncio oco de um homem que parou de rezar, o silêncio arejado de uma sinagoga vazia
e o silêncio contido de alguém a esconder-se dos outros.
Há o silêncio incómodo que preenche o espaço entre pessoas que não sabem o que dizer. E o
silêncio tenso que cai sobre aqueles que o fazem, mas não sabem onde ou como começar.
Henry não sabe que tipo de silêncio é aquele, mas está a dar cabo de si.
Começou a falar no exterior da loja de esquina e continuou a falar enquanto caminhavam,
porque era mais fácil para ele falar quando tinha um ponto para onde olhar, além do rosto dela.
As palavras derramaram-se enquanto se aproximavam da porta azul do seu prédio, enquanto
subiram as escadas, enquanto entraram no apartamento, e agora a verdade preenche o ar entre
eles, pesada como fumo, e Addie não está a dizer nada.
Está sentada no sofá, com o queixo na mão.
Do outro lado da janela, o dia simplesmente continua como se nada tivesse mudado, mas tudo
parece ter-se alterado, porque Addie LaRue é imortal, e Henry Strauss está condenado.
— Addie — diz, quando já não consegue aguentar mais. — Por favor, diz qualquer coisa.
E ela olha para ele, com os olhos a brilhar, não devido a um feitiço, mas das lágrimas, e ele
primeiro não sabe se está desolada ou feliz.
— Não conseguia perceber — diz ela. — Nunca ninguém se lembrou. Pensei que era um
acaso. Pensei que era uma armadilha. Mas não és nenhum acaso, Henry. Não és uma armadilha.
Lembras-te porque fizeste um pacto. —Abana a cabeça. — Trezentos anos passados a ten- tar
quebrar esta maldição, e o Luc fez a única coisa que nunca esperei. — Limpa as lágrimas e abre-
se num sorriso. — Cometeu um erro.
Há um imenso triunfo nos seus olhos. Mas Henry não compreende.
— Então os nossos pactos ficam anulados? É por isso que somos imunes a eles?
Addie abana a cabeça.
— Eu não sou imune, Henry.
Ele inclina-se para trás, como se tivesse sido atingido.
— Mas o meu pacto não funciona contigo.
Addie abranda, pega-lhe na mão.
— Claro que funciona. O teu pacto e o meu combinam como bonecas russas, umas dentro das
outras. Olho para ti e vejo exatamente o que quero. Só que aquilo que eu quero não tem nada a
ver com aparência ou encanto ou sucesso. Pareceria terrível, noutra vida, mas aquilo que mais
desejo, aquilo de que preciso, não tem nada a ver contigo, nada. O que desejo, o que sempre
desejei verdadeiramente, é alguém que se lembre de mim. É por isso que consegues dizer o meu
nome. É por isso que te podes ir embora e voltar e continuar a saber quem sou. E é por isso que
posso olhar para ti e ver-te como és. E é o suficiente. Será sempre suficiente.
Suficiente. A palavra desvela-se entre eles, abrindo-se na garganta de Henry. Deixa entrar
imenso ar.
Suficiente.
Henry enterra-se no sofá, ao lado dela. A mão de Henry desliza pela dela, os dedos de ambos
enredados.
— Disseste que nasceste em 1691 — reflete ele. — Isso faz com que tenhas...
— Trezentos e vinte e três anos — diz ela.
Henry assobia.
— Nunca estive com uma mulher mais velha. — Addie ri-se. — Estás muito, mas muito bem
conservada para a tua idade.
— Ora, muito obrigada.
— Como é? — diz ele.
— O quê?
— Não sei. Tudo. Trezentos anos é imenso tempo. Presenciaste guerras e revoluções.
Assististe ao surgimento de comboios e carros e aviões e televisões. Viste a história acontecer.
Addie franze o sobrolho.
— Pois, acho que sim — diz —, mas não sei; a história é algo para o qual olhamos
retrospetivamente, não algo que sintamos realmente na altura. No momento, estamos apenas... a
viver. Não quis viver para sempre. Quis apenas viver.
Aninha-se nele, e ficam, de cabeças juntas, no sofá, entrelaçados como amantes numa
história, e um novo silêncio instala-se sobre eles, leve como um lençol de verão.
E depois ela diz:
— Por quanto tempo?
A cabeça dele vira-se para ela.
— O quê?
— Fizeste o teu pacto — diz ela, com uma voz cautelosa e leve, um pé a testar gelo fino. —
Por quanto tempo o fizeste?
Henry hesita e olha para cima, para o teto, e não para ela.
— Pelo tempo de uma vida — diz ele, e não está a mentir, mas uma sombra atravessa o rosto
de Addie.
— E ele concordou?
Henry assente e volta a puxá-la contra si, esgotado de tudo o que disse e de tudo o que não
disse.
— O tempo de uma vida — sussurra ela.
As palavras pairam entre eles, no escuro.
Nova Iorque
18 de março de 2014

Addie é muitas coisas, pensa Henry. Mas não é esquecível.


Como pode alguém esquecer esta rapariga, quando ocupa tanto espaço? Enche uma sala com
histórias, com riso, com calor e luz.
Pô-la a trabalhar, ou melhor, ela pôs-se a trabalhar, organizando os stocks e as prateleiras,
enquanto ele ajuda os clientes.
Chamou fantasma a si própria, e pode sê-lo para as outras pessoas, mas Henry só consegue
olhar para ela.
Move-se por entre os livros como se fossem amigos. E talvez, de certa forma, sejam. São uma
parte da sua história, imagina, outra coisa em que tocou. Está ali, diz ela, um escritor que
conheceu, aqui uma ideia que teve, acolá um livro que leu quando foi publicado pela primeira
vez. De vez em quando, Henry vislumbra tristeza, vislumbra saudade, mas são apenas lampejos,
e depois Addie intensifica-se, ilumina-se, lançando-se noutra história.
— Conheceste o Hemingway? — pergunta ele.
— Cruzámo-nos uma ou duas vezes — diz ela, com um sorriso —, mas a Colette era a mais
inteligente.
Book segue Addie como uma sombra. Nunca viu o gato tão interessado noutro ser humano, e,
quando pergunta porquê, ela tira uma mão-cheia de guloseimas do bolso com um sorriso
embaraçado.
Os seus olhos cruzam-se agora pela loja, e ele sabe que ela disse que não é imune, que os seus
pactos simplesmente funcionam juntos, mas a verdade é que não há névoa naqueles olhos
castanhos. O seu olhar é límpido. Um farol através do nevoeiro.
Quando sorri, o mundo de Henry torna-se mais luminoso. Quando se afasta, fica novamente
sombrio.
Uma mulher aproxima-se do balcão de pagamento, e Henry arrasta-se de novo para lá.
— Encontrou alguma coisa? — Os olhos dela já brilham, leitosos.
— Sim, sim — diz a mulher com um sorriso caloroso, e ele pergunta-se o que verá em vez de
Henry. Será um filho ou um amante, um irmão, um amigo?
Addie pousa os cotovelos em cima do balcão.
Tamborila em cima do livro que tem andado a mostrar aos clientes. Uma coleção de
instantâneos em Nova Iorque.
— Reparei nas máquinas fotográficas em tua casa — diz ela. — E nas fotografias. São tuas,
não são?
Henry assente, resiste ao impulso de dizer É apenas um hobby, ou melhor, Foi um hobby, em
tempos.
— És muito bom — diz ela, o que é simpático, especialmente vindo da sua parte. E é
razoável, Henry sabe; talvez até um pouco melhor do que razoável, às vezes.
Tirou fotografias de rosto de Robbie na faculdade, mas era porque Robbie não tinha dinheiro
para pagar um fotógrafo a sério. Muriel achou as fotografias queridas. Subversivas na sua forma
convencional.
Mas Henry não estava a tentar subverter nada. Queria apenas captar algo.
Olha para baixo, para o livro.
— Há uma fotografia de família — diz —, não a que está na parede, outra, de quando eu tinha
6 ou 7 anos. Esse dia foi horrível. A Muriel pôs pastilha elástica no livro do David, e eu estava
constipado, e os meus pais estiveram a discutir mesmo até ao instante em que o flash disparou. E,
na fotografia, estamos todos com um ar tão... feliz. Lembro-me de ver essa fotografia e de
perceber que as fotografias não são reais. Não há contexto, apenas a ilusão de que se está a
mostrar o instantâneo de uma vida, mas a vida não são instantâneos, a vida é fluida. Por isso as
fotografias são como ficções. Gosto disso nelas. Toda a gente pensa que uma fotografia é a
verdade, mas é apenas uma mentira muito convincente.
— Porque paraste?
Porque o tempo não funciona como as fotografias.
Clique, e permanece imóvel.
Um piscar de olhos, e dá um salto em frente.
Sempre pensou no facto de tirar fotografias como um hobby, um crédito em troca de aulas de
arte, e, quando se apercebeu de que seria algo que podia fazer, era demasiado tarde. Ou, pelo
menos, foi o que pareceu.
Estava demasiado atrasado.
Por isso desistiu. Pôs as máquinas na prateleira com o resto dos passatempos abandonados.
Mas algo em Addie o faz desejar retomá-lo.
Claro que não tem uma máquina fotográfica consigo, apenas o telemóvel, mas, hoje em dia, é
mais do que suficiente. Pega-lhe, enquadrando Addie no contexto, com as prateleiras de livros a
erguerem-se atrás dela.
— Não vai resultar — diz ela, no instante exato em que Henry dispara. Ou tenta. Bate no
ecrã, mas não há clique, não há captura. Tenta de novo, e desta vez o telemóvel tira a fotografia,
mas surge uma imagem indistinta.
— Eu avisei — disse ela baixinho.
— Não percebo — diz ele. — Foi há tanto tempo. Como poderia ter antecipado a fotografia
ou os telemóveis?
Addie consegue esboçar um sorriso triste.
— Não foi com a tecnologia que ele interferiu. Foi comigo.
Henry imagina o estranho, a sorrir no escuro.
Pousa o telemóvel.
Nova Iorque
5 de setembro de 2013

Henry acorda com a barulheira do trânsito matinal.


Estremece ao som das buzinas dos automóveis, com a luz do sol a infiltrar-se pela janela.
Vasculha as memórias da noite anterior e, por um segundo, não se lembra de nada, uma tábua
rasa e negra, um silêncio de algodão. Mas quando semicerra os olhos, a escuridão fende-se, dá
lugar a uma vaga de dor e de tristeza, uma confusão de garrafas partidas e chuva intensa, e um
estranho num fato preto, uma conversa que deve ter sido um sonho.
Henry sabe que Tabitha recusou... essa parte foi real, com a memória demasiado pungente
para poder ser outra coisa senão a verdade. Afinal, foi por isso que começou a beber. Foi a
bebida que o conduziu a casa através da chuva, que o levou a parar junto ao poste antes de ir para
dentro, e foi aí que o estranho..., mas, não, essa parte não aconteceu.
O estranho e a conversa travada são produtos de ficção, um óbvio comentário subconsciente,
os seus demónios exibidos num desespero mental.
Uma dor de cabeça martela regularmente o crânio de Henry, e esfrega os olhos com as costas
de uma das mãos. Um peso metálico aflora-lhe a face. Olha para cima furtivamente e vê uma
bracelete de couro preto à volta do pulso. Um relógio analógico elegante, com números dourados
cravados numa base de ónix. No mostrador, um único ponteiro dourado encontra-se imóvel, mal
passando da meia-noite.
Henry nunca usou relógio.
Vê-lo no pulso, pesado e pouco familiar, fá-lo pensar numa algema. Senta-se, com as unhas a
abrirem a fivela, consumido pelo medo súbito de a pulseira estar presa a ele, de não sair — mas,
à mais pequena pressão, a fivela solta-se, e o relógio tomba em cima do edre- dão enrodilhado.
Cai virado para baixo, e ali, na parte de trás, Henry vê duas palavras gravadas numa caligrafia
esguia.
Vive bem.
Sai da cama aos tropeções, afastando-se do relógio, olha para ele como que esperando que o
ataque. Mas encontra-se apenas ali, silencioso. O coração retumba dentro do peito, tão alto que o
consegue ouvir, e está de volta à escuridão, com a chuva a escorrer-lhe pelo cabelo enquanto o
estranho sorri e lhe segura na mão.
Feito.
Mas aquilo não aconteceu.
Henry olha para a palma da mão e vê os cortes superficiais, cobertos por sangue seco. Repara
nas gotas vermelho-acastanhadas que pintalgam os lençóis. A garrafa partida. Então isso também
foi real. Mas a mão do diabo na dele foi um sonho febril. A dor pode fazer isso, imiscuir-se do
estado de vigília para o sono. Uma vez, quando tinha 9 ou 10 anos, Henry teve uma amigdalite,
com dores tão intensas que sempre que caía no sono sonhava que estava a engolir carvão em
brasa, que ficava encurralado em edifícios em chamas, com o fumo a arranhar-lhe a garganta até
ao fundo. A mente a tentar criar sentido para o sofrimento.
Mas o relógio...
Henry ouve um matraquear baixo e rítmico quando o encosta ao ouvido. Não faz outro som
(uma noite, dali a pouco tempo, desmontará o objeto e descobrirá o interior despojado de
engrenagens, vazio de tudo o que pudesse explicar o seu sinistro movimento de avanço).
E, no entanto, é sólido, pesado até, na sua mão. Parece real.
O tamborilar ouve-se mais alto, e apercebe-se então de que não vem de todo do relógio. É
apenas o bater sólido de nós de dedos em madeira, de alguém à porta. Henry sustém a respiração,
espera para ver se cessa, mas não acontece. Afasta-se do relógio, da cama, tira uma T-shirt
lavada do espaldar de uma cadeira.
— Vou já — murmura, enfiando-a pela cabeça. O colarinho prende-se nos óculos, e o ombro
choca com a ombreira da porta. Pragueja baixinho, desde a cama até à porta, à espera de que a
pessoa que se encontra atrás dela desista, se vá embora. Não o faz, por isso Henry abre a porta,
esperando ver Bea ou Robbie ou talvez Helen no patamar das escadas, mais uma vez à procura
do gato.
Mas é a irmã, Muriel.
Muriel, que esteve em casa de Henry exatamente duas vezes nos últimos cinco anos. E uma
das delas por ter bebido demasiado chá de ervas num almoço e não conseguir aguentar até
Chelsea.
— O que estás aqui a fazer? — pergunta, mas ela já o ultrapassou, desenrolando um cachecol
mais decorativo do que funcional.
— E quando é que a família precisa de motivos? — Uma pergunta claramente retórica.
Vira-se, com os olhos a percorrê-lo, como imagina que faz nas exposições, e Henry espera
pela sua avaliação habitual, uma variação qualquer de estás com péssimo aspeto.
Ao invés, a irmã diz:
— Estás com bom ar — o que é estranho, porque Muriel nunca foi uma pessoa dada a
mentiras («não gosta de estimular o engano num mundo cheio de discursos vazios»), e um olhar
de raspão pelo espelho da entrada é suficiente para confirmar que Henry, de facto, tem um aspeto
quase tão mau como o estado em que se sente. — A Beatrice mandou-me uma mensagem ontem
à noite quando não atendeste o telemóvel — continua. — Contou-me da Tabitha e da história da
recusa. Lamento, Hen.
Muriel abraça-o, e Henry não sabe onde pôr as mãos. Estas acabam por ficar a pairar no ar,
em volta dos ombros dela, até que a irmã o solta.
— O que se passou? Andava a enganar-te? — E Henry deseja que a resposta fosse sim,
porque a verdade é pior, a verdade é que simplesmente não estava suficientemente interessada.
— Não importa — continua Muriel. — Que se lixe, mereces melhor.
Quase se ri, porque não consegue contar as vezes que a Muriel referiu que Tabitha era
demasiada areia para a camioneta dele.
Ela olha em volta, para o apartamento.
— Andaste a redecorar? Está muito confortável.
Henry analisa a sala, pontuada por velas e arte e outros vestígios de Tabitha. A tralha é dele.
O estilo era dela.
— Não.
A irmã continua de pé. Muriel nunca se senta, nunca cede, nunca verga.
— Bem, estou a ver que estás ótimo — diz —, mas da próxima vez atende o telemóvel. Ah
— acrescenta, voltando a pegar no cachecol, já a meio caminho da porta. — Feliz Ano Novo.
Demora um instante a lembrar-se.
Rosh Hashaná.
Muriel vê a confusão no seu rosto e sorri.
— Tinhas dado um péssimo rabino.
Não discorda. Henry normalmente iria a casa — ambos iriam —, mas David não se conseguiu
esquivar ao turno no hospital, nesse ano, por isso os pais fizeram outros planos.
— Vais ao templo? — pergunta-lhe ele agora.
— Não — diz Muriel. — Mas hoje à noite há um espetáculo na zona alta da cidade, um
híbrido burlesco picante, e tenho a certeza de que irão fazer qualquer coisa com fogo. Acendo
uma vela por alguém.
— A mãe e o pai iriam ficar muito orgulhosos — diz ele seca- mente, mas, na verdade,
desconfia de que sim. Muriel Strauss nunca faz nada malfeito.
Ela encolhe os ombros.
— Cada um celebra à sua maneira. — Volta a enrolar o cachecol no pescoço com um
floreado. — Vemo-nos pelo Yom Kippur.
Muriel estende a mão para a porta e depois volta-se de novo para ele e estica-se para
despentear o cabelo de Henry.
— Minha pequena nuvem turbulenta — diz. — Não deixes que as coisas fiquem demasiado
negras.
E depois desaparece, e Henry deixa-se cair contra a porta, atordoado, cansado e
absolutamente confuso.

Henry ouviu dizer que a dor tem fases.


Pergunta-se se o mesmo será verdade para o amor.
Se é normal sentir-se perdido e zangado e triste, oco e, de alguma forma, terrivelmente
aliviado. Talvez seja o latejar da ressaca a baralhar todas as coisas que deveria estar a sentir,
misturando-as com aquilo que efetivamente faz.
Para no Roast, o café apinhado de gente a um quarteirão de distância da livraria. Tem bons
queques, bebidas quase decentes e um serviço terrível, o que é mais ou menos habitual nesta
zona de Brooklyn, e avista Vanessa na caixa.
Nova Iorque está cheia de gente bonita, atores e modelos a fazerem biscates como
empregados de bar e de café, a prepararem bebidas para pagar a renda até à sua primeira grande
oportunidade. Sempre presumiu que Vanessa fizesse parte desse grupo, uma loira platinada com
um pequeno símbolo de infinito tatuado na parte interior do pulso. Também presume que o seu
nome é Vanessa — é o nome que consta na identificação que traz presa ao avental —, mas, na
verdade, ela nunca lho disse. Nunca lhe disse nada, para todos os efeitos, além de: «O que
deseja?»
Henry colocar-se-á em frente ao balcão e ela perguntar-lhe-á o que vai tomar e o seu nome
(apesar de ali ter aparecido seis dias por semana ao longo dos últimos três anos e de ela ali ter
estado em dois deles) e, desde o momento em que lhe serve o seu café expresso com cobertura
espumosa de leite até ao instante em que escreve o seu nome no copo e chama pelo próximo
cliente, nunca olhará para ele. O seu olhar saltará da camisa de Henry para o computador e
depois para o seu queixo, e Henry sentir-se-á como se nem sequer ali estivesse.
É assim que acontece sempre.
Só que hoje é diferente.
Hoje, quando aceita o seu pedido, olha para cima.
É uma mudança muito ligeira, uma diferença de cinco centímetros, talvez sete, mas agora
consegue ver-lhe os olhos, que são de um azul assombroso, e a empregada olha para ele, não
para o seu queixo. Sustém o olhar e sorri.
— Viva — diz ela —, o que deseja?
Pede um café com leite e diz o seu nome, e é por aí que a coisa costuma terminar.
Mas não termina.
— Está a planear um dia divertido? — pergunta, fazendo conversa de circunstância enquanto
escreve o nome dele no copo.
Vanessa nunca antes fez conversa de circunstância com ele.
— Só trabalho — diz ele, e a atenção da empregada volta a virar-se para o seu rosto. Desta
vez, capta uma ligeira cintilação — algo errado — nos seus olhos. É um truque de luz, deve ser,
mas, por um segundo, parece gelo ou nevoeiro.
— Em que ramo trabalha? — pergunta, parecendo genuinamente interessada, e ele fala-lhe de
The Last Word, e os olhos dela iluminam-se um pouco. Sempre leu e não consegue pensar num
sítio melhor do que uma livraria. Quando Henry paga, os dedos de ambos afloram, e Vanessa
lança-lhe outro olhar.
— Até amanhã, Henry.
A empregada diz o seu nome como se o tivesse roubado, com um ar malandro no sorriso.
E só consegue perceber que está a namoriscar com ele quando vê a setinha preta que ela
desenhou, a apontar para o fundo do copo. E, quando o vira para ver, o seu coração tem um
pequeno baque como uma máquina que para de funcionar.
Escreveu o seu nome e número de telemóvel na base.

Em The Last Word, Henry destranca a grade e abre a porta enquanto termina o café. Vira o
letreiro e passa pela rotina de alimentar Book e de abrir a loja e arrumar livros novos na prateleira
até que a campainha tilinta, anunciando o seu primeiro cliente.
Henry percorre as prateleiras cheias de livros para deparar com uma senhora idosa, a
caminhar penosamente por entre os corredores, entre história e mistério e depois romance e de
volta ao início. Dá-lhe alguns minutos, mas, quando ela descreve a mesma volta pela terceira
vez, aproxima-se.
— Posso ajudá-la?
— Não sei, não sei — murmura, um pouco para si mesma, mas depois vira-se para olhar para
ele, e algo muda no seu rosto. — Quero dizer, sim, por favor, espero que sim. — Há um ligeiro
brilho nos seus olhos, uma cintilação remelosa, e explica que anda à procura de um livro que já
leu.
— Ultimamente, não me consigo lembrar do que li e do que não li — explica, abanando a
cabeça. — Soa tudo tão familiar. Todas as capas parecem iguais. Porque farão as coisas assim?
Porque farão tudo parecer semelhante?
Henry presume que terá a ver com marketing e com tendências, mas sabe que provavelmente
não ajudará dizê-lo. Em vez disso, pergunta-lhe se se lembra de alguma coisa sobre o livro.
— Oh, deixe ver. Era um livro grande. Era sobre a vida e a morte, e sobre história.
Aquilo não reduz propriamente as possibilidades, mas Henry está habituado à falta de
pormenores. Ao número de pessoas que ali entram, à procura de algo que viram, sem
conseguirem dizer mais do que «A capa era vermelha» ou «Acho que tinha a palavra rapariga no
título».
— Era triste e maravilhoso — explica a idosa. — Tenho a certeza de que se passava em
Inglaterra. Oh, meu Deus. A minha cabeça. Acho que tinha uma rosa na capa.
Olha em volta, para as prateleiras, contorcendo as mãos. E obviamente não vai decidir, por
isso é ele quem o faz. Desesperadamente pouco à vontade, tira um romance histórico denso da
prateleira de ficção mais próxima.
— Seria este? — pergunta, apresentando-lhe Wolf Hall. Mas, mal o tem na mão, sabe que não
é aquele. Tem uma papoila na capa, não uma rosa, e não há nada de especialmente triste ou
maravilhoso na vida de Thomas Cromwell, ainda que a escrita seja bela e comovente. —
Esqueça este — diz, já estendendo o braço para o devolver à prateleira, quando o rosto da idosa
de ilumina de prazer.
— É esse! — agarra-lhe no braço com dedos ossudos. — Era exatamente aquele de que
andava à procura. — Henry tem dificuldade em acreditar, mas a alegria da senhora é tão evidente
que começa a duvidar de si mesmo.
Está prestes a registar o livro quando se lembra. Atkinson. Life After Life. Um livro sobre a
vida e a morte e sobre história, triste e maravilhoso, passado em Inglaterra, com duas rosas na
capa.
— Espere — diz ele, contornando a esquina e avançando até à secção de ficção recente para ir
buscar o livro.
— Será este?
O rosto da senhora ilumina-se, exatamente como antes.
— Sim! Mas que inteligente! É esse mesmo — diz, com a mesma convicção.
— Ainda bem que pude ajudar — diz Henry, sem ter a certeza de o ter feito.
A senhora decide levar os dois livros, diz que tem a certeza de que vai gostar deles.
O resto da manhã é igualmente estranho.
Um homem de meia-idade aparece à procura de um thriller e sai com cinco títulos que Henry
recomenda. Uma estudante universitária vem em busca de um livro sobre mitologia japonesa e,
quando Henry lamenta não o ter na livraria, ela praticamente tropeça nas palavras para dizer que
a culpa não é dele e insiste em deixá-lo encomendá-lo para ela, apesar de não ter a certeza de vir
realmente a fazer a cadeira. Um tipo com constituição de modelo e um maxilar mais pronunciado
do que um canivete surge para analisar a secção de fantasia e escreve o seu endereço de e-mail
no recibo, por baixo da assinatura, quando paga.
Henry sente-se desajustado, como quando Muriel lhe disse que estava com bom aspeto. É
como um déjà vu, e nada como um déjà vu, porque a sensação é completamente nova. É como o
dia 1 de abril, quando as regras mudam e tudo é uma brincadeira e toda a gente participa, e
Henry ainda está encantado com o último encontro, com o rosto um pouco corado, quando
Robbie irrompe porta adentro, com a campainha a tinir à sua passagem.
— Oh, meu Deus — diz, abraçando Henry, e por um instante este pensa que algo terrível
deve ter acontecido, antes de se aperceber de que já aconteceu, à sua própria pessoa.
— Está tudo bem — diz Henry, e claro que não está, mas o dia foi tão estranho que tudo o
que se passou antes dele parece um sonho. Ou será que o sonho é agora? Se for, não tem assim
tanta vontade de acordar. — Está tudo bem — volta a dizer.
— Não tem de estar tudo bem — diz Robbie. — Só quero que saibas que estou aqui, também
estaria presente ontem à noite... quis passar por tua casa quando vi que não respondias ao
telemóvel, mas a Bea disse que te devíamos dar espaço, e, não sei porquê, dei-lhe ouvidos.
Desculpa.
Tudo isto sai numa correnteza única de palavras.
Robbie aperta-o com mais força enquanto fala, e Henry saboreia o abraço. Encaixam um no
outro com o conforto familiar de um casaco muito usado. O abraço demora-se um pouco demais.
Henry pigarreia e recua, e Robbie lança uma gargalhada desajeitada e vira-se, com o rosto a
captar a luz. Henry repara então numa estreita linha roxa ao longo da têmpora de Robbie, no
ponto exato em que esta encontra a raiz do seu cabelo cor de areia.
— Estás a brilhar.
Robbie esfrega a maquilhagem sem grande empenho.
— Oh, ensaio.
Há um brilho estranho nos olhos de Robbie, um aspeto vítreo que Henry conhece demasiado
bem, e pergunta-se se Robbie terá tomado alguma coisa ou se simplesmente passou algum tempo
sem dormir. Na faculdade, Robbie ficava tão pedrado em drogas ou sonhos ou grandes ideias que
esgotava toda a energia do corpo e depois adormecia.
Ouve a campainha da porta.
— Filho da mãe — anuncia Bea, atirando com a mochila para cima do balcão. — Sacana!
Cabeça de avestruz!
— Olha os clientes — avisa Henry, apesar de o único que se encontra então por perto ser um
idoso surdo, um frequentador habitual chamado Michael, que frequenta a secção de terror.
— A que devemos esta birra? — pergunta Robbie alegremente. O drama deixa-o sempre de
bom humor.
— O estúpido do meu orientador — diz ela, passando por eles de rompante, em direção à
secção de história de arte. Olham um para o outro e depois vão atrás dela.
— Não gostou da proposta? — perguntou Henry.
Bea passou a maior parte do ano a tentar obter a aprovação de um tema para uma dissertação.
— Recusou-a! — precipita-se por um dos corredores, quase fazendo tombar uma pilha de
revistas. Henry segue-a, fazendo os possíveis para compor a destruição espalhada à sua
passagem.
— Disse que era demasiado esotérica. Como se soubesse o significado da palavra... nem que
ela lhe desse uma dentada no traseiro.
— Usa-a numa frase — pede Robbie, mas ela ignora-o, levantando o braço para retirar um
livro de cima.
— Aquele cadáver...
E outro.
— ... tacanho...
E outro.
— ... de cérebro bafiento.
— Isto não é uma biblioteca — diz Henry enquanto ela transporta a pilha de livros até à
cadeira de couro baixa ao canto e se refastela nela, espantando a bolinha de pelo laranja de entre
duas almofadas gastas.
— Desculpa, Book — murmura, levantando o gato cuidadosamente e pousando-o nas costas
da cadeira velha, onde ele faz a sua melhor imitação de um pão de forma contrariado. Bea
continua a emitir uma fiada de impropérios em voz baixa, enquanto passa as páginas dos livros.
— Sei exatamente do que precisamos — diz Robbie, voltando-se para a sala de dispensário.
— A Meredith não tem uma reserva de uísque guardada nas traseiras?
E, apesar de serem apenas três da tarde, Henry não protesta. Deixa-se cair até ao chão, senta-
se com as costas viradas para a prateleira mais próxima, de pernas estendidas, sentindo-se de
súbito insuportavelmente cansado.
Bea olha para ele e suspira.
— Desculpa — começa, mas Henry agita a mão como sinal para que continue a falar.
— Por favor, podes continuar a amaldiçoar o teu orientador e a dar cabo da minha secção de
história de arte. Alguém tem de se comportar normalmente.
Mas ela fecha o livro, pousa-o em cima da pilha e junta-se a Henry, no chão.
— Posso dizer-te uma coisa? — A voz dela sobe ligeiramente no fim da frase, mas Henry
sabe que não é uma pergunta. — Estou contente por teres acabado com a Tabitha.
Uma pontada de dor, como o corte na palma da mão.
— Foi ela que acabou comigo.
Bea agita a mão como se esse pormenor não importasse.
— Mereces alguém que te ame por quem és. Pelo bom, pelo mau e pelo que é exasperante.
Queres ser amado. Queres ser suficiente.
Henry engole em seco.
— Pois, bem, ser eu mesmo não tem corrido lá muito bem.
Bea inclina-se para ele.
— Mas a questão é essa, Henry, não tens sido tu próprio. Desperdiças imenso tempo com
pessoas que não te merecem. Com pessoas que não te conhecem, porque não deixas que te
conheçam. — Bea põe-lhe as mãos em volta do rosto, com aquele brilho estranho nos olhos. —
Henry, tu és inteligente e delicado e irritante. Detestas azeitonas e pessoas que falam durante os
filmes. Gostas de batidos e de pessoas que consigam rir até chorar. Achas que é um crime passar
partes de um livro sem as ler. Quando te zangas, ficas calado, quando estás triste, barafustas, e,
quando cantarolas, estás feliz.
— E?
— E não te oiço cantarolar há anos. — As mãos dela afastam-se do seu rosto. — Mas já te vi
comer uma tonelada de azeitonas.
Robbie regressa com uma garrafa e três canecas na mão. O único cliente de The Last Word
sai lentamente, e então Robbie fecha a porta atrás dele, virando o letreiro para fechado. Vem
sentar-se no chão entre Henry e Bea e arranca a tampa da garrafa com os dentes.
— Estamos a beber para celebrar o quê? — pergunta Henry.
— Os recomeços — diz Robbie, com os olhos ainda a brilhar enquanto enche os copos.
Nova Iorque
18 de março de 2014

A campainha toca, e Bea entra.


— O Robbie quer saber se o estás a evitar — diz, à laia de olá.
O coração de Henry afunda-se. A resposta é sim, claro e não. Não consegue esquecer o olhar
de mágoa nos olhos de Robbie, mas isso não desculpa a forma como agiu, ou talvez desculpe.
— Vou tomar isso como um sim — diz Bea. — E onde tens estado escondido?
Henry quer dizer Estive convosco no jantar, mas pergunta-se se ela terá esquecido toda a
noite ou apenas partes em que Addie tenha estado envolvida.
Por falar nisso.
— Bea, esta é a Addie.
Beatrice vira-se para ela e, por um segundo, apenas por um segundo, Henry acha que ela se
lembra. Pela forma como olha para Addie, como se fosse uma peça de arte, mas uma peça com
que Bea já tivesse deparado antes. Apesar de tudo, Henry espera que ela assinta, que diga «Oh,
que bom ver-te de novo», mas, em vez disso, Bea sorri. Diz:
— Sabes, há algo de intemporal no teu rosto — e ele é embalado pela estranheza do eco, pela
força do déjà vu.
Mas Addie limita-se a sorrir e dizer:
— Não é a primeira vez que ouço isso.
Enquanto Bea continua a estudar Addie, Henry estuda-a a ela.
Sempre foi impiedosamente imaculada, mas hoje tem tinta fluorescente nos dedos, um toque
de dourado na têmpora, algo semelhante a açúcar em pó na manga.
— O que andaste a fazer? — pergunta ele.
Bea olha para baixo.
— Oh, estive na Artifact — diz ela, como se isso devesse significar alguma coisa. Ao
perceber a sua confusão, explica. A Artifact é, de acordo com Beatrice, em parte uma feira e em
parte uma exposição de arte, uma combinação interativa de instalações na High Line.
Enquanto Bea fala de salas espelhadas e de abóbadas de vidro cheias de estrelas, de nuvens de
açúcar, de penas de lutas de almofadas e de murais feitos com milhares de anotações de
estranhos, Addie entusiasma-se, e Henry pensa que deve ser difícil surpreender uma rapariga que
viveu trezentos anos.
Por isso, quando Addie se volta para ele, de olhos a cintilar, e diz «Temos de lá ir», não há
nada que ele mais desejasse fazer. Claro que há a questão da livraria, o facto de ser o único
funcionário e de ainda faltarem quatro horas para fechar. Mas tem uma ideia.
Henry pega num marcador de livros, o único artigo produzido pela loja, e começa a escrever
nas costas.
— Olá, Bea — diz, empurrando o cartão improvisado por cima do balcão. — Importas-te de
fechar a loja?
— Tenho uma vida — diz ela, mas depois olha para a caligrafia apertada e oblíqua de Henry.
A Biblioteca de The Last Word.
Bea sorri e enfia o cartão no bolso.
— Divirtam-se — diz, acenando-lhes enquanto saem.
Nova Iorque
5 de setembro de 2013

Às vezes Henry desejava ter um gato.


Talvez pudesse simplesmente adotar Book, mas o gato malhado parece indivisível de The
Last Word, e não consegue afugentar a crença supersticiosa de que, se tentasse retirar o velho
felino da livraria em segunda mão, ele se transformaria em pó antes de chegar a casa.
O que é, sabe-o perfeitamente, uma forma mórbida de pensar sobre as pessoas e os lugares,
ou, neste caso, os animais de estimação e os lugares, mas o dia está a terminar, e bebeu um
pouco de uísque a mais, e Bea teve de ir dar uma aula, e Robbie tinha um espetáculo de um
amigo, por isso está sozinho, de regresso a um apartamento vazio, a desejar ter um gato ou algo à
sua espera no regresso a casa.
Experimenta a frase enquanto entra.
— Olá, gatinho, cheguei — diz, antes de se aperceber de que isso faz dele um solteirão de 28
anos a falar com um animal de estimação imaginário e que parece infinitamente pior.
Tira uma cerveja do frigorífico, fica a olhar para o saca-rolhas e dá-se conta de que pertence a
Tabitha. Uma coisa rosa e verde com a forma de uma lucha libre de uma viagem que fez à
Cidade do México, no mês anterior. Atira-o para o lado, abre uma gaveta da cozinha, à procura
de outro, e descobre uma colher de pau, um magneto de uma companhia de dança, uma mão-
cheia de palhinhas ridiculamente listadas. Olha em volta e vê então mais uma série de coisas
espalhadas pelo apartamento, todas dela. Pega numa caixa com livros e vira-a, despejando-os no
chão e começando a enchê-la de novo com fotografias, postais, livros, um par de sapatilhas de
ballet, uma caneca, uma pulseira, uma escova, uma fotografia.
Termina a primeira cerveja, abre uma segunda usando a aresta do balcão e continua, andando
de divisão em divisão, menos uma procissão metódica do que uma deambulação vaga. Uma hora
mais tarde, a caixa ainda só vai a meio, mas Henry começa a perder a energia. Já não quer fazer
aquilo, nem sequer quer estar ali, num apartamento que, de certa forma, parece simultaneamente
vazio e atravancado. Há demasiado espaço para pensar. Não há suficiente para respirar.
Henry senta-se entre as garrafas de cerveja vazias e a caixa meio cheia por vários minutos, a
abanar os joelhos, e então põe-se de pé num rompante e sai.
O Merchant está cheio.
Está sempre — é um daqueles bares de bairro cujo sucesso se deve mais à mera proximidade
do que à qualidade das bebidas. Uma instituição local. A maior parte das pessoas que frequenta o
Merchant refere-se a ele simplesmente como «o bar».
Henry serpenteia por entre a multidão, apropria-se de um banco na extremidade do balcão,
esperando que o ruído ambiente do local o faça sentir-se menos só.
Esta noite, Mark está a trabalhar, um homem na casa dos 50 com patilhas grisalhas e um
sorriso de catálogo. Normalmente demora uns bons dez minutos a reparar em Henry, mas hoje, o
empregado de bar vai direito a ele, ignorando a fila. Henry pede tequila, e Mark regressa com
uma garrafa e dois copos de shot.
— Oferta da casa — diz, servindo-se também de um copo. Henry consegue esboçar um
sorriso.
— Pareço assim tão mal?
Mas não há sinal de comiseração no olhar de Mark, apenas uma luz estranha e subtil.
— Estás com ótimo aspeto — diz, tal como Muriel, e é a primeira vez que diz mais do que
uma única frase, com as suas respostas a limitarem-se normalmente às bebidas pedidas e a
acenos de cabeça. Os copos entrechocam, e Henry pede um segundo e um terceiro. Sabe que está
a beber demasiado, demasiado depressa, a acrescentar mais a bebida às cervejas tomadas em
casa, ao uísque vertido nas horas de expediente.
Uma rapariga aproxima-se do balcão e olha para Henry.
Desvia o olhar e volta a fitá-lo, como se o visse pela primeira vez. E ali está de novo, aquele
brilho, uma camada de luz sobre os olhos enquanto se reclina para ele, e Henry não consegue
fixar o nome dela, mas não faz mal.
Fazem os possíveis para conversar por cima do ruído de fundo, a mão dela pousada primeiro
no seu antebraço, depois no ombro, antes de lhe deslizar pelo cabelo.
— Vem até minha casa — diz ela, e Henry fica preso no desejo na voz dela, na ânsia
evidente. Mas depois os amigos da rapariga aparecem e arrastam-na, os olhos também a brilhar
quando dizem Desculpa, quando dizem És mesmo fixe, quando dizem Uma noite excelente para
ti.
Henry escorrega do banco, dirige-se à casa de banho e, desta vez, sente o efeito, as cabeças
virarem-se na sua direção.
Um tipo agarra-lhe no braço e diz qualquer coisa sobre um projeto fotográfico, que ele seria
perfeito, antes de lhe passar o seu cartão.
Duas mulheres tentam arrastá-lo para o círculo da sua conversa.
— Gostava de ter um filho como tu — diz uma delas.
— Filho? — diz a outra, com uma gargalhada rouca, enquanto ele se solta, se esgueira pelo
corredor, até à casa de banho.
Prepara-se, encostando-se ao lavatório.
Não faz ideia do que está a acontecer.
Volta a pensar no café, nessa manhã, no número de Vanessa na base do copo. Nos clientes, na
loja, todos sedentos da sua ajuda. Em Muriel, que lhe disse que estava com bom aspeto. Na
névoa clara, como fumo de uma vela, nos olhos de todos.
Olha para baixo, para o relógio, no pulso, a cintilar sob a luz da casa de banho, e, pela
primeira vez, tem a certeza de que é real.
De que o homem à chuva foi real.
De que o pacto foi real.
— Ei.
Olha para cima e vê um tipo, de olhos vítreos e a sorrir para Henry como se fossem os
melhores amigos.
— Estás com ar de quem está a precisar de um coice.
Estende-lhe um pequeno recipiente de vidro, e Henry fica a olhar para a minúscula coluna de
pó dentro dele.
Tinha 12 anos da primeira vez que ficou pedrado.
Alguém lhe passou um charro atrás dos pavilhões, e o fumo queimou-lhe os pulmões, e quase
vomitou, mas depois ficou tudo um pouco... suave. A erva criou espaço no crânio, aliviou-lhe o
terror nervoso no coração. Mas não conseguia controlar os lugares a que conduzia a sua mente. O
Valium e o Xanax eram melhores, entorpecendo tudo ao mesmo tempo, mas sempre se manteve
afastado das drogas mais duras, por medo — não por medo de algo poder correr mal.
Precisamente o contrário: medo de poder parecer a coisa certa. Medo de escorregar, de resvalar,
de saber que não teria força suficiente para parar.
Nunca ansiou propriamente pela sensação de perda de controlo.
Apenas pela calma.
Pelo efeito secundário da felicidade.
Tentou ser melhor, por Tabitha.
Mas Tabitha partiu, e agora, seja como for, não importa.
Já não importa.
Agora Henry só se quer sentir bem.
Despeja o pó sobre o polegar, não faz ideia se está a fazer aquilo bem, mas inala, e é
acometido por um frio súbito e brusco, e depois... o mundo abre-se. Os pormenores avivam-se,
as cores intensificam-se, e, de certa forma, tudo ganha forma e se esbate ao mesmo tempo.
Henry deve ter dito alguma coisa, porque o tipo ri-se. E depois estende o braço e limpa um
vestígio da face de Henry, e o contacto é como um choque elétrico, uma faúlha de energia no
ponto em que pele aflora pele.
— És perfeito — diz o estranho, com os dedos a deslizarem-lhe pelo maxilar, e Henry cora
com um calor vertiginoso que o faz sentir a necessidade de se mexer.
— Desculpa — diz, saindo para o corredor.
Deixa-se cair contra a parede encardida, espera que o mundo estabilize.
— Ei.
Olha para cima e vê um tipo com um braço a envolver os ombros de uma rapariga, ambos
altos e esbeltos e selvagens.
— Como te chamas? — pergunta o tipo.
— Henry.
— Henry — repete a rapariga com um sorriso felino.
Olha para ele com um desejo tão óbvio que Henry acaba por voltar a tombar para trás. Nunca
ninguém olhou para ele assim. Nem Tabitha. Nem Robbie. Ninguém — nem no primeiro
encontro ou a meio do sexo ou quando se ajoelhou...
— Eu sou a Lucia — diz ela. — Este é o Benji. Temos andado à tua procura.
— O que é que eu fiz? — pergunta ele.
O sorriso dela contorce-se.
— Nada, ainda.
Lucia morde o lábio, e o tipo olha para Henry, o rosto extático de desejo, e primeiro não
percebe do que estão a falar.
Mas depois entende.
O riso arrebata-o, um acesso estranho, desenfreado.
Nunca participou numa ménage à trois, sem contar com aquela vez na escola em que ele e o
Robbie e um dos seus amigos ficaram terrivelmente embriagados e ainda não sabe bem até que
ponto as coisas foram.
— Vem connosco — diz ela, estendendo-lhe a mão.
E uma série de desculpas passam-lhe pela cabeça e voltam a sair enquanto Henry os segue até
casa.
Nova Iorque
7 de setembro de 2013

Meu Deus, como sabe bem ser desejado.


Onde quer que vá, sente o efeito, a atenção voltar-se para a sua pessoa. Henry finca-se nessa
atenção, nos sorrisos, no calor, na luz. Pela primeira vez, compreende verdadeiramente o que
significa estar ébrio de poder.
É como pousar um fardo muito depois de os braços se terem cansado. Há uma leveza súbita,
avassaladora, como o ar no peito, como a luz do sol depois da chuva.
Sabe bem ser quem usa em vez de ser usado.
Ser aquele que ganha em vez de aquele que perde.
Sabe bem. Não devia, reconhece, mas sabe bem.
Está na fila do Roast, a precisar desesperadamente de um café. Os últimos dias pareceram
indistintos, com as noites a darem lugar a manhãs estranhas, cada momento alimentado pelo
prazer arrebatador de ser desejado, de saber que, o que quer que vejam, é bom, é excelente, é
perfeito.
Ele é perfeito.
E não é apenas a gravidade franca do desejo, nem sempre. As pessoas agora aproximam-se
dele, cada uma delas atraída para a sua órbita, mas o porquê é sempre diferente. Por vezes é
apenas mero desejo, mas outras vezes é algo mais matizado. Por vezes é uma necessidade óbvia,
e outras vezes não consegue adivinhar o que veem quando olham para ele.
Na verdade, essa é a única parte desconcertante — os seus olhos. A névoa que os percorre,
adensando-se em frio, em gelo. Uma forma de o lembrar constantemente de que a vida não é
propriamente normal, não é totalmente real.
Mas é suficiente.
— Próximo!
Avança e olha para cima, vendo Vanessa.
— Oh, olá — diz ele.
— Não me ligaste.
Mas não parece zangada ou irritada. No máximo, parece demasiado alegre, brincalhona, mas
é o tipo de brincadeira que se usa para esconder o embaraço. Devia saber — usou esse tom
dezenas de vezes para ocultar o seu sofrimento.
— Desculpa — diz, corando. — Não tinha a certeza se devia fazê-lo.
Vanessa sorri de forma marota.
— O nome completo e o número de telemóvel foram demasiado subtis?
Henry ri-se e entrega-lhe o telemóvel por cima do balcão.
— Liga-me — diz, e ela escreve o número dela e prime a tecla de ligar. — Pronto — diz
Henry, recebendo o telemóvel de volta —, agora não tenho desculpa.
Sente-se um idiota, mesmo enquanto o diz, como uma criança a repetir deixas de filmes, mas
Vanessa limita-se a corar e morde o lábio inferior, e ele pergunta-se o que aconteceria se lhe
dissesse para sair com ele, nesse mesmo instante, se tiraria o avental e passaria por baixo do
balcão, mas não o tenta fazer, diz apenas:
— Eu ligo.
E ela diz:
— Acho bem.
Henry sorri, vira costas para se ir embora. Está quase à porta, quando ouve o seu nome.
— Sr. Strauss.
O estômago de Henry contorce-se. Conhece aquela voz, consegue imaginar o casaco de
fazenda do idoso, o seu cabelo grisalho, o olhar de deceção no seu rosto quando aconselhou
Henry a afastar-se do departamento, da escola, a tentar descobrir a sua paixão, porque claramente
não estava ali.
Henry tenta esboçar um sorriso, sente-se aquém.
— Professor Melrose — diz, virando-se para enfrentar o homem que o empurrou para fora da
estrada.
E ali está ele, de carne e osso e casaco tweed. Mas, em vez do desprezo que Henry se
habituou a ver nele, o professor parece agradado. Um sorriso cinde a sua barba cinzenta aparada.
— Ora que grande sorte — diz ele. — É precisamente a pessoa que queria encontrar.
Henry tem dificuldade em acreditar nisso, até que repara no fumo claro que rodopia pelos
olhos do homem. E sabe que deveria ser bem-educado, mas o que quer é dizer ao professor para
ir dar uma volta ao bilhar grande, por isso atalha a conversa e pergunta simplesmente:
— Porquê?
— Vai vagar um cargo na Faculdade de Teologia, e acho que seria perfeito para ele.
Henry quase ri.
— Deve estar a brincar.
— De todo.
— Não cheguei a concluir o doutoramento. Chumbou-me.
O professor levanta um dedo.
— Não o chumbei.
Henry indigna-se.
— Ameaçou fazê-lo, se não me fosse embora.
— Eu sei — diz ele, parecendo genuinamente arrependido. — Estava enganado.
Duas palavras que tem a certeza de que este homem nunca disse. Henry quer saboreá-las, mas
não consegue.
— Não — diz —, tinha razão. Eu não me encaixava. Não estava feliz ali. E não desejo
regressar.
É mentira. Sente falta da estrutura, sente falta do caminho, sente falta do propósito. E talvez
não encaixasse perfeitamente, mas nada encaixa.
— Apareça e marcamos uma entrevista — diz o professor Melrose, entregando-lhe o seu
cartão. — Deixe-me fazê-lo mudar de ideias.

— Estás atrasado.
Bea está à espera nos degraus da livraria.
— Desculpa — diz ele, destrancando a porta. — Mas isto continua a não ser uma biblioteca
— acrescenta enquanto ela atira com uma nota de cinco dólares para cima do balcão e
desaparece na secção de arte. Bea emite um hum-hum prudente, e ele ouve-a tirar livros das
prateleiras.
Bea foi a única pessoa que não mudou, a única que não o parece tratar de forma diferente.
— Ei — diz ele, seguindo-a pelo corredor. — Pareço-te estranho?
— Não — diz ela, analisando as prateleiras.
— Bea, olha para mim.
Ela vira-se e faz-lhe uma avaliação de cima a baixo.
— Para além de teres batom no pescoço?
Henry cora, esfregando a pele.
— Sim — diz —, para além disso.
Ela encolhe os ombros.
— Nem por isso.
Mas ali, nos olhos dela, a mesma cintilação inconfundível, uma película leve e iridescente que
parece espalhar-se enquanto o analisa.
— A sério? Nada?
Bea tira um livro da prateleira.
— Henry, o que queres que diga? — pergunta, procurando um segundo. — Pareces tu
próprio.
— Então não... — não sabe como perguntar. — Então não me desejas?
Bea vira-se, olha para ele por algum tempo e depois desata a rir.
— Desculpa, querido — diz, quando recupera o fôlego. — Não me leves a mal. És giro. Mas
eu continuo a ser lésbica.
E, no momento em que o diz, ele sente-se absurdo e absolutamente aliviado.
— O que se passa? — pergunta ela.
Fiz um pacto com o diabo e agora quem quer que olhe para mim vê apenas aquilo que
deseja. Abana a cabeça.
— Nada. Não ligues.
— Bem — diz ela, acrescentando mais um livro à pilha —, acho que descobri um novo tema
para a tese.
Carrega os volumes de volta ao balcão e espalha-os por cima dos livros contabilísticos e dos
recibos. Henry vê-a virar as páginas até encontrar aquilo que procura em cada um deles e depois
recua para conseguir ver o que ela descobriu.
Três retratos, todos eles representações de uma jovem, apesar de provirem claramente de
tempos e escolas diferentes.
— O que me estás a mostrar? — pergunta ele.
— Chamo-lhe o fantasma da moldura.
Um deles é um esboço a lápis, com os contornos indefinidos, inacabados. Nele, uma mulher
está deitada de bruços, enrolada em lençóis. O cabelo espalha-se à sua volta, e o seu rosto é
pouco mais do que aplicações de sombra, com algumas sardas suaves espalhadas pelas faces. O
título da peça está escrito em italiano.
Ho Portato le Stelle a Letto
A tradução fica aquém.
Levei as Estrelas para a Cama.
A segunda peça é francesa, um retrato mais abstrato, realizado nos azuis e verdes intensos do
impressionismo. A mulher está sentada numa praia, com um livro virado ao contrário na areia, ao
seu lado. Olha por cima do ombro, para o artista, com apenas o contorno do rosto visível, as
sardas pouco mais do que manchas de luz, ausências de cor.
La Sirène, é como se chama este.
A Sereia.
A última peça é um baixo-relevo suave, um perfil esculpido a contraluz, pontinhos perfurados
talhados numa peça de cerejeira.
Constelação.
— Estás a ver? — pergunta Bea.
— São retratos.
— Não — diz ela —, são retratos da mesma mulher.
Henry levanta uma sobrancelha.
— Essa é arrojada.
— Repara no ângulo do maxilar, na linha do nariz e nas sardas.
Conta-as.
Henry fá-lo. Em cada imagem, são exatamente sete.
Bea toca no primeiro e no segundo.
— O italiano é da viragem do século xix. O francês é de cinquenta anos mais tarde. E este —
diz, batendo na fotografia da escultura —, este é dos anos sessenta.
— Então talvez um tenha sido inspirado pelo outro — diz Henry. — Não havia uma tradição
de... não me lembro de como se chamava, mas que era basicamente um telefone visual? Um
artista escolhia uma coisa, e depois outro artista escolhia esse artista, e por aí fora? Como um
modelo.
Mas Bea já está a recusar a ideia com um aceno da mão.
— Claro, nos léxicos e nos bestiários, mas não nas escolas formais de arte. Isto é como pôr a
rapariga do brinco de pérola num quadro do Warhol e do Degas, sem nunca ver visto a pintura de
Vermeer. E, mesmo que ela se tivesse tornado um modelo, o facto é que este «modelo»
influenciou séculos de arte. É tecido conjuntivo entre eras. Portanto...
— Portanto... — repete Henry.
— Portanto, quem era ela? — os olhos de Bea estão brilhantes, como os de Robbie às vezes,
quando acabou de fazer um bom espetáculo ou de snifar cocaína, e Henry não quer desanimá-la,
mas Bea está claramente à espera de que diga alguma coisa.
— Muito bem — começa, suavemente. — Mas, Bea, e se ela não for ninguém de importante?
Mesmo que estes retratos se baseiem na mesma mulher, e se o primeiro artista simplesmente a
inventou? — Bea franze o sobrolho, já a abanar a cabeça. — Repara — diz ele —, ninguém,
mais do que eu, quer que descubras um tema para a tua dissertação. Por esta loja, bem como pela
tua sanidade mental. E tudo isto parece muito fixe. Mas a tua última proposta não foi rejeitada
pelo facto de ser demasiado extravagante?
— Esotérica.
— Exato — diz Henry. — E se um tema como «O pós-modernismo e os seus efeitos na
arquitetura de Nova Iorque» era demasiado esotérico, o que achas que o professor Parrish irá
pensar deste?
Gesticula para os livros abertos, com os rostos sardentos a fitarem-no de cada página.
Bea olha para ele em silêncio por um bom bocado e depois para os livros.
— Raios! — grita, pegando num dos livros gigantes e saindo da loja de rompante.
Henry vê-a sair e suspira.
— Isto não é uma biblioteca — grita à sua passagem, devolvendo o resto dos livros às
prateleiras.
Nova Iorque
18 de março de 2014

Henry abranda, quando a ideia começa a tornar-se consciente.


Esquecera-se da tentativa de Bea descobrir um novo tema para a tese, um pormenor
silencioso numa sessão muito ruidosa, mas agora é evidente.
A rapariga no esboço, no quadro, na escultura, está encostada ao corrimão, ao seu lado, com o
rosto aberto, deliciada.
Caminham por Chelsea, a caminho da High Line, e ele para, a meio de uma passadeira,
apercebendo-se da verdade óbvia, do raio de luz, como uma lágrima, na sua história.
— Eras tu — diz.
Addie exibe um sorriso radiante.
— Era.
Um carro buzina, com o semáforo a fixar-se no vermelho, em aviso, e correm para o outro
lado.
— Mas é engraçado — diz ela enquanto sobem os degraus de ferro. — Não sabia do segundo.
Lembro-me de me sentar naquela praia, lembro-me do homem com o cavalete, no cais, mas
nunca deparei com a peça acabada.
Henry abana a cabeça.
— Pensei que não podias deixar marcas.
— E não posso — diz ela, olhando para cima. — Não posso segurar numa caneta. Não posso
contar uma história. Não posso manusear uma arma ou fazer com que alguém se lembre. Mas a
arte — diz ela, com um sorriso mais apagado —, a arte tem a ver com ideias. E as ideias são
mais bravias do que as memórias. São como ervas daninhas, sempre a arranjarem maneira de
crescer.
— Mas nada de fotografias. Nada de gravações.
A expressão dela vacila, apenas por uma fração de segundo.
— Não — diz, a palavra como uma forma nos seus lábios. E ele sente-se mal por perguntar,
por a arrastar de volta às grades da sua maldição, em vez de aos espaços que encontrou entre
elas. Mas nesse momento Addie endireita-se, ergue o queixo, sorri com um tipo de alegria quase
desafiante.
— Mas não achas maravilhoso — diz — ser uma ideia?
Chegam à High Line ao mesmo tempo que sopra uma lufada de vento, o vento ainda cortante
do inverno, mas, em vez de se encolher contra ela, de se abrigar da brisa, Addie abre o peito ao
vento forte, com as faces a corarem de frio, o cabelo a esvoaçar em torno do seu rosto, e, nesse
momento, Henry consegue ver o que todos os artistas viram, o que os atraiu para os seus lápis e
para a sua tinta, esta rapariga impossível de captar.
E, apesar de estar seguro, com os dois pés solidamente assentes no chão, Henry sente-se
começar a cair.
Nova Iorque
13 de setembro de 2013

As pessoas falam muito de casa.


A casa é onde o coração está, dizem. Não há lugar como a nossa casa. Demasiado tempo
longe, e fica-se com saudades de casa.
Saudades de casa — Henry sabe que o natural é sentir saudades de casa, não de não estar em
casa, mas ainda assim parece-lhe acertado. Gosta da família, a sério que gosta. Simplesmente
nem sempre gosta deles. Não gosta de quem é quando está perto deles.
E, no entanto, ali está, a conduzir há noventa minutos em direção ao Norte, com a cidade a
afundar-se atrás de si enquanto um carro alugado ronrona sob as suas mãos. Henry sabe que
podia apanhar o comboio, sai certamente mais barato, mas a verdade é que gosta de conduzir. Ou
melhor, gosta do ruído branco que acompanha a condução, da concretude firme de ir daqui para
ali, das direções, do controlo. Acima de tudo, gosta da incapacidade de fazer qualquer outra coisa
que não seja guiar, mãos no volante, olhos na estrada, música a retumbar pelas colunas.
Ofereceu-se para dar boleia a Muriel, mas ficou secretamente aliviado quando ela disse que já
planeara ir de comboio, que David chegara nessa manhã e a ia buscar à estação, o que significa
que Henry será o último a aparecer.
Seja como for, Henry é sempre o último a aparecer.
Quanto mais perto chega de Newburgh, mais o tempo muda na sua cabeça, um ribombar de
aviso no horizonte, uma tempestade a aproximar-se. Inspira profundamente, preparando-se para
um jantar da família Strauss.
Consegue imaginá-lo, os cinco sentados à mesa posta como uma imitação estranha de
Ashkenazi de um quadro de Rockwell, um quadro rígido, a mãe numa das extremidades, o pai na
outra, os irmãos sentados lado a lado, diante dele.
David, o pilar, com os seus olhos severos e a postura austera.
Muriel, o tornado, com os seus caracóis escuros e revoltos e a energia constante.
E Henry, o fantasma (nem o nome encaixa — nada judeu, mas uma homenagem a um dos
amigos mais antigos do pai).
Pelo menos parecem constituir uma família — depois de uma observação rápida da mesa, é
possível captar facilmente o eco de uma face, um maxilar, uma sobrancelha. David usa óculos
como o pai, empoleirados na ponta do nariz, por isso a linha superior da armação atravessa-lhe o
olhar.
Muriel sorri como a mãe, de forma aberta e fácil, ri-se como ela, também, atirando a cabeça
para trás, num som alegre e pleno.
Henry tem os caracóis largos e pretos do pai, os olhos verde-acinzentados da mãe, mas algo
se perdeu na combinação. Falta-lhe a firmeza de um e a alegria do outro. A posição dos ombros,
a linha da boca — as coisas subtis que sempre o fizeram parecer mais um convidado em casa de
outra pessoa.
É assim que o jantar se irá passar: o pai e o irmão a falar de medicina, a mãe e a irmã a falar
de arte, e Henry a recear o momento em que as perguntas se voltem na sua direção. Quando a
mãe se preocupar em voz alta com tudo e o pai arranjar uma desculpa para usar a palavra
desamarrar e David o lembrar de que já tem quase 30 anos e Muriel o aconselhar a empenhar-se,
a empenhar-se realmente — como se os pais não lhe pagassem ainda a conta do telemóvel.
Henry sai da autoestrada e sente o vento assobiar-lhe aos ouvidos.
Passa pelo centro da cidade e ouve o trovão dentro do crânio. A energia estática da tensão.
Sabe que está atrasado.
Está sempre atrasado.
Foi esse o princípio de muitas discussões, e houve um tempo em que pensou que era descuido
da sua parte, antes de se aperceber de que era uma estranha tentativa de sobrevivência, uma
demora intencional, se não mesmo subconsciente, uma procrastinação da necessidade inevitável,
desconfortável, de aparecer. Estar sentado à mesa, encurralado pelos irmãos, posicionado em
frente aos pais como um criminoso diante de um pelotão de fuzilamento.
Por isso Henry está atrasado, e, quando o pai for abrir a porta, estará preparado para a
referência às horas, para o sobrolho franzido em ar castigador, para a observação acutilante de
que o irmão e a irmã conseguem chegar cinco minutos mais cedo...
Mas o pai limita-se a sorrir.
— Cá está ele! — diz, de olhos brilhantes e calorosos.
E envolvidos em névoa.
Talvez este não seja como qualquer outro jantar da família Strauss.
— Vejam quem chegou! — grita o pai, conduzindo Henry para o escritório.
— Bons olhos te vejam — diz David, apertando-lhe a mão, porque, apesar de viverem na
mesma cidade (que diabo, servidos pela mesma linha de metro), a última vez que Henry viu o
irmão foi ali, na primeira noite de Hanukkah.
— Henry! — um turbilhão de caracóis negros e, logo de seguida, Muriel lança-lhe os braços
ao pescoço. Beija-o na face, deixando uma mancha de batom cor de coral que mais tarde limpará
diante do espelho da entrada.
E em lado nenhum, entre o escritório e a sala de jantar, alguém comenta o comprimento do
seu cabelo, que é sempre demasiado longo, ou o estado da camisola que traz vestida, que está
coçada, mas que também é a coisa mais confortável que possui.
Nem uma única vez algum deles lhe diz que está demasiado magro ou que precisa de apanhar
mais sol ou que parece cansado, apesar de todas estas observações precederem as afirmações
contundentes de que não pode ser assim tão difícil gerir uma livraria em Brooklyn.
A mãe sai da cozinha, descalçando um par de luvas de forno. Envolve-lhe o rosto nas mãos,
sorri e diz-lhe que está muito feliz por ele estar ali.
Henry acredita nela.
— À família — brinda o pai quando se sentam para comer. — De novo reunida.
Sente-se como se tivesse entrado noutra versão da sua vida — não à frente, não atrás, mas de
lado. Uma versão em que a irmã o admira e o irmão não o despreza, em que os pais sentem
orgulho e todos os juízos de valor foram aspirados do ar como fumo de um fogo. Não se
apercebeu de quanto tecido conjuntivo era constituído por culpa. Sem o peso da mesma, sente-se
tonto e leve.
Eufórico.
Não há referências a Tabitha ou à proposta recusada, apesar de, evidentemente, o
conhecimento da separação ter circulado, com o resultado a tornar-se óbvio pela cadeira vazia
que ninguém tenta sequer virar contra ele, como tradição familiar.
No mês passado, ao telemóvel, quando Henry contou a David do anel, o irmão perguntou-lhe,
quase de forma ausente, se achava que ela iria realmente aceitar. Muriel nunca gostou dela, mas
Muriel nunca gostava dos companheiros de Henry. Não por serem demasiado bons para ele,
embora também o tivesse dito, mas simplesmente porque os achava aborrecidos, uma extensão
do que sentia pelo próprio Henry.
Televisão por cabo, era o que às vezes lhes chamava. Melhor do que ver tinta secar, claro,
mas pouco mais do que repetições. O único que aprovou, ainda que vagamente, foi Robbie, e,
mesmo então, Henry teve a certeza de que fora principalmente pelo escândalo que causaria se
alguma vez o levasse lá a casa. Só Muriel sabe de Robbie, que foi mais do que um amigo. Foi o
único segredo que conseguiu guardar. Nada no jantar é desconcertante.
David é afável, curioso.
Muriel é atenta e delicada.
O pai ouve tudo o que ele diz e parece genuinamente interessado.
A mãe diz-lhe que está orgulhosa.
— De quê? — pergunta ele, genuinamente confuso, e ela ri-se como se a pergunta fosse
ridícula.
— De ti.
A ausência de julgamento é dissonante, uma espécie de vertigem existencial.
Diz-lhes que se cruzou com o professor Melrose, espera que David aponte o óbvio, que não
tem qualificações suficientes, espera que o pai lhe pergunte qual é a rasteira. A mãe permanecerá
em silêncio, enquanto a irmã irá barafustar, exclamando que mudou de rumo por um motivo e
exigindo saber para que serviu tudo se se limitar a rastejar de volta para lá.
Mas nada disso acontece.
— Boa — diz o pai.
— Serão uns sortudos se te conseguirem agarrar — diz a mãe.
— Davas um bom professor — diz David.
Apenas Muriel apresenta uma sombra de divergência.
— Nunca foste feliz lá...
Mas não há juízo de valor nas palavras, apenas um feroz instinto de proteção.
Depois do jantar, toda a gente se retira para os respetivos cantos, a mãe para a cozinha, o pai e
o irmão para o escritório, a irmã lá para fora, para a noite, para ver as estrelas e se sentir
enraizada, o que normalmente é linguagem em código para pedrada.
Henry vai para a cozinha ajudar a mãe com os pratos.
— Eu lavo e tu secas — diz, entregando-lhe um pano. Encontram um ritmo agradável, e
depois a mãe pigarreia.
— Lamento imenso pela Tabitha — diz, em voz baixa, como se soubesse que o tema é tabu.
— Lamento imenso que tenhas desperdiçado tanto tempo com ela.
— Não foi tempo desperdiçado — diz ele, apesar de se sentir um pouco assim.
A mãe passa uma travessa por água.
— Só quero que sejas feliz. Mereces ser feliz. — Os seus olhos brilham, e não tem a certeza
se é da névoa estranha ou apenas lágrimas maternais. — És forte e inteligente e bem-sucedido.
— Quanto a isso não sei — diz Henry, secando uma travessa. — Ainda sinto que dececionei
toda a gente.
— Não digas isso — diz a mãe, parecendo genuinamente magoada. Põe-lhe uma mão na cara.
— Gosto de ti, Henry, exatamente como és. — A mão desce até à travessa. — Deixa-me acabar
— diz. — Vai ter com a tua irmã.
Henry sabe exatamente onde ela está.
Sai para o alpendre das traseiras, vê Muriel sentada no banco-baloiço, a fumar um charro e a
olhar para as árvores, numa pose pensativa. Senta-se sempre assim, como se estivesse à espera de
que alguém lhe tirasse uma fotografia. Ele tirou, uma ou duas vezes, mas pareciam sempre
demasiado rígidas, demasiado enquadradas. Só a Muriel para fazer um instantâneo parecer
encenado.
Agora as tábuas rangem um pouco sob os seus pés, e ela sorri sem olhar para cima.
— Viva, Hen.
— Como sabias que era eu? — pergunta ele, enterrando-se ao lado dela.
— Tens uma forma de andar muito leve — diz ela, passando-lhe o charro.
Henry aspira uma baforada longa, retém o fumo no peito até o sentir na cabeça. Uma névoa
suave, um zumbido. Vão passando o charro um ao outro, atentos aos pais, do outro lado da
janela. Bem, aos pais e ao David, que anda atrás do pai, repetindo exatamente as mesmas poses.
— Sinistro — murmura Muriel.
— Perturbador, mesmo.
Ela ri-se.
— Porque não nos encontramos mais vezes?
— Estás ocupada — diz ele, porque é mais amável do que lembrá-la de que, na verdade, não
são amigos.
Ela encosta a cabeça no ombro dele.
— Tenho sempre tempo para ti.
Fumam em silêncio até não haver mais nada para fumar, e a mãe grita que está na hora da
sobremesa. Henry levanta-se, com a cabeça a flutuar de uma forma agradável.
— Um rebuçado? — pergunta ela, estendendo uma caixinha, mas, quando a abre, vê um
monte de pequenos comprimidos cor-de-rosa. Chapéus de chuva. Pensa no aguaceiro a cair
violentamente, no estranho ao seu lado, perfeitamente seco, e fecha a caixa abruptamente.
— Não, obrigado.
Voltam para dentro para comer a sobremesa, passam a hora seguinte a falar de tudo e de nada,
e é tão simpático, tão agressivamente saboroso, tão agradavelmente livre de observações
sarcásticas, de quezílias mesquinhas, de desaprovação passiva que Henry se sente como se ainda
estivesse a reter a respiração, ainda a agarrar-se à sensação transmitida pelo charro, com os
pulmões a doerem, mas o coração feliz.
Levanta-se, pondo o café de lado.
— Tenho de ir andando.
— Podias ficar — sugere a mãe, e, pela primeira vez em dez anos, sente-se realmente tentado,
pergunta-se como seria acordar com aquela sensação calorosa e fácil da família, mas a verdade é
que a noite foi demasiado perfeita. Sente-se como se estivesse a percorrer uma linha estreita
entre uma emoção agradável e uma noite no chão da casa de banho e não quer que nada destrua o
equilíbrio.
— Tenho de voltar — diz —, a loja abre às dez.
— Trabalhas demasiado — algo que a mãe nunca disse. Algo que aparentemente agora diz.
David agarra-o pelos ombros e olha para ele com aqueles olhos agradavelmente toldados e
diz:
— Gosto de ti, Henry. Fico feliz por as coisas te estarem a correr tão bem.
Muriel abraça-o pela cintura.
— Não desapareças.
O pai acompanha-o até ao carro e, quando Henry estende a mão, puxa-o para lhe dar um
abraço e diz:
— Estou orgulhoso de ti, filho.
E uma parte de si quer perguntar porquê, morder o isco, testar os limites do feitiço, levar o pai
a hesitar, mas não se consegue obrigar a fazê-lo. Sabe que não é real, pelo menos no sentido mais
literal, mas não se importa.
Ainda assim, sabe bem.
Nova Iorque
18 de março de 2014

O riso espalha-se pela High Line.


Construído ao longo de uma linha de caminho de ferro desativada, o parque suspenso
percorre a extremidade ocidental de Manhattan desde a Thirtieth até à Twelfth. Normalmente é
um sítio agradável, com carrinhas de comida e jardins, túneis e bancos, caminhos sinuosos e
vistas sobre a cidade.
Hoje, é algo completamente diferente.
A Artifact ocupou uma extensão do trilho elevado, transformou-o num ginásio selvático
digno de sonho, cheio de cor e de luz. Uma paisagem tridimensional de extravagância e fantasia.
À entrada, uma voluntária entrega-lhes pulseiras de borracha coloridas para usarem nos
pulsos. Um arco-íris contra a pele, cada uma delas a dar acesso a uma parte diferente da
exposição.
— Esta leva-vos ao Céu — diz, como se as obras de arte fossem atrações num parque de
temático.
— Esta leva-vos à Voz.
— Esta leva-vos à Memória.
Sorri para Henry enquanto fala, os olhos de um azul leitoso. Mas, enquanto se deslocam pela
feira de exposições livres, todos os artistas se viram para Addie. Ele pode ser o sol, mas ela é um
cometa resplandecente, atraindo as atenções como meteoros incandescentes, à sua passagem.
Ali perto, um tipo esculpe peças de algodão-doce como se fossem balões e depois entrega as
obras de arte comestíveis. Algumas delas são formas reconhecíveis — aqui um cão, ali uma
girafa, acolá um dragão —, ao passo que outras são abstratas — eis um pôr do sol, um sonho, a
nostalgia.
Para Henry, todas elas sabem a açúcar.
Addie beija-o e também ela sabeaçúcar.
A fita verde leva-os à Memória, que acaba por se revelar uma espécie de caleidoscópio
tridimensional, feito de vidro colorido — uma escultura que se ergue de cada lado e vira a cada
passo.
Agarram-se um ao outro enquanto o mundo verga e se endireita e volta a dobrar à sua volta, e
nenhum deles o diz, mas, pensa Henry, ambos se sentem contentes por sair dali.
A arte derrama-se no espaço entre as exposições. Um campo de girassóis de metal. Uma
piscina de lápis derretidos. Uma cortina de água, fina como papel, que não deixa mais do que
uma neblina nos óculos, um brilho iridescente na pele de Addie.
O Céu, afinal, vive dentro de um túnel.
Criado por um artista luminotécnico, consiste numa série de salas interligadas. Do exterior,
não parecem grande coisa, a estrutura de madeira de uma construção despojada, pouco mais do
que pregos e barrotes, mas lá dentro... lá dentro é tudo.
Deslocam-se de mãos dadas para não se perderem um do outro. Um espaço é
deslumbrantemente brilhante, o seguinte tão escuro que o mundo parece desaparecer, e Addie
treme ao seu lado, os dedos contraídos no braço de Henry. O próximo é claro como nevoeiro,
como o interior de uma nuvem, e, no próximo, filamentos finos como chuva erguem-se e
precipitam-se por todos os lados. Henry passa os dedos pelo campo de gotas prateadas, e estas
tilintam como sinos.
A última divisão está cheia de estrelas.
É uma sala preta, semelhante à anterior, só que, desta vez, milhares de luzes do tamanho de
alfinetes atravessam a escuridão, esculpindo uma Via Láctea suficientemente próxima para se
poder tocar — uma majestade de constelações. E, mesmo nos sítios mais escuros, Henry
consegue ver o rosto de Addie voltado para cima, os contornos do seu sorriso.
— Trezentos anos... — sussurra ela. — E ainda é possível descobrir algo novo.
Quando saem pelo outro lado, a pestanejar sob a luz da tarde, ela já o está a puxar para fora
do Céu, em direção à próxima arcada, à porta seguinte, ávida de descobrir o que a espera do
outro lado.
Nova Iorque
19 de setembro de 2013

Ao menos uma vez na vida, Henry chegou adiantado.


O que, pensa, é melhor do que chegar atrasado, mas não quer estar demasiado adiantado
porque isso ainda é pior, ainda mais esquisito, e... tem de parar de pensar demasiado no assunto.
Alisa a camisola, verifica o estado do cabelo no vidro lateral de um carro estacionado e entra.
A taquería está animada e cheia de gente, um sítio que é uma caverna de betão, com janelas
semelhantes a portas de garagem e uma carrinha de comida estacionada num canto da sala, e não
importa se chegou adiantado, porque Vanessa já se encontra lá dentro.
Trocou o avental de empregada de balcão por umas leggings e por um vestido estampado, e o
seu cabelo louro, que só viu apanhado para cima, está solto, a contornar-lhe o seu rosto, e,
quando o vê, abre-se num sorriso.
— Fico contente por teres ligado — diz ela.
E Henry devolve-lhe o sorriso.
— Eu também.
Fazem o pedido usando uns blocos de papel e uns lápis minúsculos que Henry não via desde
que jogara minigolfe, uma vez, quando tinha 10 anos, os dedos a aflorarem quando ela aponta
para os tacos e ele os enche com o recheio. As mãos tocam-se de novo por cima das batatas
fritas, as pernas a pairarem sob a mesa de metal, e de cada uma das vezes é como uma minúscula
explosão de luz dentro do seu peito.
E, pela primeira vez na vida, não está a forçar todas as respostas, não está a censurar-se por
cada movimento, não está a convencer-se de que tem de dizer a coisa acertada — não precisa de
encontrar as palavras certas quando não há palavras erradas. Não tem de mentir, não tem de
tentar, não tem de ser ninguém que não ele próprio, porque ele próprio é suficiente.
A comida é excelente, mas o sítio é barulhento, com as vozes a ecoarem sob os tetos altos, e
Henry encolhe-se quando alguém arrasta a cadeira pelo chão de betão.
— Desculpa — diz. — Sei que não é lá muito fino.
Escolheu o sítio, sabe que provavelmente deveriam ter ido apenas tomar um copo, mas estão
em Nova Iorque, e os cocktails custam o dobro da comida, e ele mal se pode dar ao luxo de pagar
aquilo com o seu ordenado de empregado de livraria.
— Esquece — diz ela, mexendo uma agua fresca —, eu trabalho num café.
— Ao menos recebes gorjetas.
Vanessa finge um ar chocado.
— O quê? Então os empregados das livrarias não recebem gorjetas?
— Não.
— Nem quando recomendam um bom livro?
Ele abana a cabeça.
— Isso é um crime — diz ela. — Deviam pôr um frasco em cima do balcão.
— O que haveria de escrever? — tamborila com os dedos na mesa. — Os livros alimentam
mentes ávidas. As gorjetas alimentam o gato?
Vanessa ri-se, de forma súbita e animada.
— Tens tanta piada.
— Tenho?
Ela deita-lhe a língua de fora.
— Com que então andamos à procura de elogios?
— Não — diz ele. — Estou apenas curioso. O que vês em mim?
Vanessa sorri, subitamente envergonhada.
— És... bem, parece um pouco foleiro, mas és exatamente aquilo que procurava.
— E isso é o quê? — pergunta ele.
Se tivesse dito verdadeiro, sensível, atencioso, poderia ter acreditado.
Mas não o faz.
Usa as palavras sociável, divertido, ambicioso e, quanto mais fala sobre ele, mais densa se
torna a névoa nos seus olhos, mais esta se espalha, até ele mal conseguir distinguir a cor que se
encontra por baixo. E Henry pergunta-se como consegue ver, mas claro que não consegue.
A questão é precisamente essa.

Uma semana mais tarde, estão no Merchant, ele e Bea e Robbie, com três cervejas e um cesto
de batatas fritas de permeio.
— Como está a Vanessa? — pergunta ela, enquanto Robbie olha intencionalmente para a sua
bebida.
— Está ótima — diz Henry.
E está. Ele está. Estão ambos.
— Tens passado muito tempo com ela.
Henry franze a testa.
— Foste tu que me disseste para esquecer a Tabitha.
Bea levanta as mãos em sinal de defesa.
— Eu sei, eu sei.
— É recente. Sabes como são as coisas. Ela é...
— Uma cópia chapada — murmura Robbie.
Henry vira-se para ele.
— O que disseste? — pergunta, irritado. — Fala. Sei que te ensinaram a projetar a voz.
Robbie bebe um longo gole de cerveja, aparentando um ar infeliz.
— Estou só a dizer que ela é uma cópia chapada da Tabby. Magra, loura...
— Mulher?
Há muito tempo que existe um ponto sensível entre ambos, o facto de Henry não ser gay, de
primeiro ser atraído por uma pessoa e só depois pelo seu género. Robbie retrai-se, mas não pede
desculpa.
— Além disso — diz Henry. — Não fui eu que fui atrás da Vanessa. Foi ela que me engatou.
Gosta de mim.
— E tu gostas dela? — pergunta Bea.
— Claro que sim — diz ele, um pouco depressa demais. Gosta dela. E, claro, também gosta
do facto de ela gostar dele (o ele que ela vê), e existe um diagrama de Venn entre os dois, um
ponto em que se sobrepõem. Tem quase a certeza de que se encontra em segurança na zona
sombreada. Não está propriamente a usá-la, certo? Pelo menos, não é o único a ser superficial —
ela também o está a usar, a pintar outra pessoa qualquer na tela da sua vida. E, se for mútuo,
bem, a culpa não é dele... ou será?
— Só queremos que sejas feliz — diz Bea. — Depois de tudo o que aconteceu,
simplesmente... não avances demasiado depressa.
Mas, pela primeira vez na vida, não é ele que precisa de abrandar.
Henry acordou nessa manhã com panquecas com pepitas de chocolate e um copo de sumo de
laranja, um bilhetinho escrito à mão em cima da bancada ao lado do tabuleiro com um coração e
um V. Ela ficou a dormir lá em casa nas últimas três noites e, de cada uma das vezes, deixou
qualquer coisa para trás. Uma blusa. Um par de sapatos. Uma escova de dentes no copo, junto ao
lavatório.
Os amigos fitam-no, com a névoa clara ainda a rodopiar-lhes nos olhos, e ele sabe que se
preocupam, sabe que gostam dele, sabe que só querem o melhor para ele. Agora têm de o fazer,
por causa do pacto.
— Não se preocupem — diz ele, beberricando a cerveja. — Eu vou devagar.

— Henry...
Está meio a dormir quando a sente percorrer-lhe as costas com uma unha pintada. Uma luz
cinzenta e fraca atravessa as janelas.
— Hum? — diz ele, voltando-se para ela.
Vanessa tem a cabeça numa mão, o cabelo louro espalhado sobre a almofada, e ele pergunta-
se há quanto tempo estará assim inclinada, à espera de que ele acorde, antes de finalmente
intervir.
— Tenho de te dizer uma coisa. — Fita-o, com os olhos cobertos por aquela luz leitosa. Ele
começa a recear aquele brilho, o fumo claro que o persegue, de rosto em rosto.
— O que foi? — pergunta, apoiando-se num dos cotovelos. — Qual é o problema?
— Nada. Eu só... — abre-se num sorriso. — Amo-te.
E o mais assustador é que parece falar a sério.
— Não tens de dizer o mesmo. Sei que é demasiado cedo. Só queria que soubesses.
Aconchega-se a ele.
— Tens a certeza? — pergunta ele. — Quero dizer, só se passou uma semana.
— E depois? — diz ela. — Quando se sabe, sabe-se. E eu sei.
Henry engole em seco, beija-lhe a têmpora.
— Vou tomar um duche.
Fica debaixo da água quente o máximo que consegue, a perguntar-se o que deverá responder
àquilo, se e como poderá convencer Vanessa de que não é amor, apenas uma obsessão, mas,
claro, isso também não é verdade. Fez o pacto. Definiu as condições. Era isto que desejava.
Ou não?
Fecha a torneira, enrola a toalha à cintura e sente o cheiro a fumo. Não o aroma de um fósforo
a acender uma vela ou de algo a ferver ao lume, mas o cheiro a queimado de coisas que não
deviam estar a arder, mas agora estão.
Henry irrompe pelo corredor e vê Vanessa na cozinha, diante da bancada, com uma caixa de
fósforos numa mão e a caixa de cartão com as coisas de Tabitha a arder no lava-louça.
— O que estás a fazer? — pergunta.
— Estás a agarrar-te ao passado — diz ela, riscando outro fósforo e atirando-o para dentro da
caixa. — Estás literalmente a agarrar-te a ele. Tens esta caixa desde que estamos juntos.
— Só te conheço há uma semana! — grita ele, mas ela insiste.
— E mereces melhor. Mereces ser feliz. Mereces viver no presente. Isto é uma coisa boa. Isto
é um ponto final. Isto é...
Henry arranca-lhe os fósforos da mão e empurra-a para o lado, estendo o braço para a
torneira.
A água atinge a caixa fazendo um crepitar, enviando uma nuvem de fumo, enquanto apaga as
chamas.
— Vanessa — diz ele, rangendo os dentes —, preciso que te vás embora.
— Mas quê? Tipo, para casa?
— Tipo, sai.
— Henry — diz ela, tocando-lhe no branco. — O que fiz eu de mal?
E ele poderia apontar os despojos em combustão no lava-louça da cozinha ou facto de tudo
estar a avançar demasiado depressa ou o de, quando ela olha para ele, ver uma pessoa
completamente diferente. Mas, em vez disso, limita-se a dizer.
— Não és tu. Sou eu.
— Não, não és — diz ela, com as lágrimas a deslizarem-lhe pelo rosto.
— Preciso de espaço, OK?
— Desculpa — soluça ela, agarrando-se a ele. — Desculpa. Amo-te.
Os braços dela envolvem-lhe a cintura, a cabeça enterrada no seu peito, e, por um segundo,
pensa que poderá ter de a enxotar, fisicamente.
— Vanessa, larga-me.
Condu-la até à porta, e ela tem um ar devastado, destroçado. Assemelha-se à forma como ele
próprio se sentia na noite em que fez o pacto, e parte-lhe o coração pensar que irá sair dali a
sentir-se igualmente perdida, igualmente sozinha.
— Gosto de ti — diz ele, agarrando-a pelos ombros. — Gosto de ti, a sério.
Ela anima-se, apenas um pouco. Uma planta a murchar regada com água.
— Então não estás zangado?
Claro que está zangado.
— Não, não estou zangado.
Ela enterra o rosto no peito dele, e ele acaricia-lhe o cabelo.
— Gostas de mim.
— Gosto. — Liberta-se dela. — Eu ligo-te. Prometo.
— Prometes — repete ela, enquanto ele a ajuda a reunir as suas coisas.
— Prometo — diz ele, enquanto a conduz corredor fora, até à porta.
A porta fecha-se entre os dois, e Henry deixa-se escorregar encostado a ela, quando o alarme
de fumo finalmente dispara.
Nova Iorque
23 de outubro de 2013

— Noite de cinema!
Robbie atira-se para o sofá de Henry e posiciona-se como uma estrela-do-mar, com os
membros compridos a saírem pelas costas e pelas extremidades. Bea revira os olhos e empurra-o.
— Chega-te para lá.
Henry tira o saco do micro-ondas, passando-o de uma mão para a outra, para evitar o vapor.
Despeja as pipocas na taça.
— Qual é o filme? — pergunta, contornando o balcão.
— The Shining.
Henry lamenta-se. Nunca foi fã de filmes de terror, mas Robbie adora ter um motivo para
gritar, trata tudo aquilo como outro tipo de interpretação, e é a semana em que é ele escolher.
— É Halloween! — alega Robbie.
— É dia 23 — diz Henry, mas Robbie trata as festividades do mesmo modo que os
aniversários, alongando-os de dias em semanas e por vezes estações inteiras.
— Hora de rever os disfarces — diz Bea.
Mascarar-se, pensa, é como ver desenhos animados, algo de que se gostava quando se era
criança, antes de se passar pela terra de ninguém da angústia adolescente, pela idade irónica do
início da casa dos 20. E depois, de alguma forma, milagrosamente, regressa-se ao reino do
genuíno, do nostálgico. A um lugar reservado à fantasia.
Robbie faz uma pose no sofá.
— Ziggy Stardust — diz, o que faz sentido. Passou os últimos anos a trabalhar várias
encarnações de Bowie. No ano passado foi Thin White Duke.
Bea anuncia que vai de Dread Pirate Roberts, num jogo de palavras intencional, e Robbie
estende o braço e tira uma máquina fotográfica da mesa de café de Henry, uma Nikon vintage
que faz agora as funções de pesa-papel. Inclina a cabeça para trás e espreita Henry através do
visor, de pernas para o ar.
— E tu?
Henry sempre gostou do Halloween — não da parte assustadora, apenas do pretexto para
mudar, para ser outra pessoa. Robbie diz que devia simplesmente ter-se tornado ator, que podem
brincar às mascaradas o ano inteiro, mas a ideia de viver a vida no palco deixa-o nauseado. Já foi
Freddie Mercury e o Chapeleiro Louco, o Mascarado e o Joker.
Mas nesse momento já se sente outra pessoa.
— Já estou disfarçado — diz ele, gesticulando para as suas calças de ganga pretas habituais,
para a camisa estreita. — Não conseguem adivinhar quem sou?
— Peter Parker? — arrisca Bea.
— Um vendedor de livros?
— O Harry Potter numa crise de meia-meia-idade?
Henry ri-se e abana a cabeça.
Bea semicerra os olhos.
— Ainda não escolheste nada, pois não?
— Não — reconhece ele —, mas vou escolher.
Robbie ainda está a brincar com a máquina. Vira-a, comprime os lábios e tira uma fotografia.
A máquina emite um clique oco. Não tem rolo. Bea tira-lha das mãos.
— Porque não tiras mais fotografias? — pergunta. — És mesmo bom.
Henry encolhe os olhos, sem ter a certeza se ela acredita realmente nisso.
— Talvez noutra encarnação — diz ele, entregando uma cerveja a cada um deles.
— Ainda o podes fazer, sabes — diz ela. — Não é demasiado tarde.
Talvez, mas, se começasse agora, valeriam as fotografias por si mesmas, consideradas boas
ou más por mérito próprio? Ou cada uma das fotografias transportaria o seu desejo? Será que
cada pessoa veria a fotografia que desejaria ver, em vez daquela que tirara? Poderia porventura
confiar nelas, se isso acontecesse?
O filme começa, e Robbie insiste em apagar todas as luzes, ficando os três enfiados no sofá.
Obrigam Robbie a deixar a taça das pipocas em cima da mesa para não atirar com ela no
primeiro momento assustador, para Henry não ter de andar a apanhar milho depois de se terem
ido embora, e ele passa a próxima hora a desviar os olhos sempre que a banda sonora geme em
sinal de aviso.
Quando o rapaz anda de triciclo pelo corredor, Bea murmura «Não, não, não», e Robbie
senta-se na ponta do sofá, à beira do pânico, e Henry enterra a cara no seu ombro. As raparigas
gémeas aparecem, de mãos dadas, e Robbie agarra a perna de Henry.
E, quando o momento passa, uma pausa no terror, a mão de Robbie continua pousada na sua
coxa. E é como se uma chávena partida voltasse a ficar inteira, as formas quebradas a
encaixarem na perfeição — o que, naturalmente, está mal.
Henry levanta-se, levando a taça de pipocas vazia e dirigindo-se à cozinha.
Robbie levanta a perna, saltando por cima das costas do sofá.
— Eu ajudo.
— São só pipocas — diz Henry por cima do ombro enquanto dobra a esquina. Rasga a
embalagem de plástico, agita o saco. — Tenho a certeza de que basta pôr o saco dentro do micro-
ondas e carregar no botão.
— Deixas sempre ficar demasiado tempo — diz Robbie, mesmo atrás dele.
Henry enfia o saco no micro-ondas e fecha a porta.
Prime o botão de iniciar e vira-se para a porta.
— Então agora é especialista em pip...
Não tem oportunidade de terminar, pois a boca de Robbie cola-se à sua. Henry inspira
profundamente, surpreendido pelo beijo súbito, mas Robbie não desiste. Empurra-o contra o
balcão, ancas contra ancas, dedos a deslizarem-lhe pelo maxilar quando o beijo se torna mais
intenso.
E isto, isto é melhor do que todas as outras noites.
Isto é melhor do que a atenção de centenas de estranhos.
Isto é a diferença entre uma cama de hotel e sentir-se em casa.
Robbie está ereto contra ele, e o peito de Henry dói de desejo, e seria tão fácil voltar a cair
naquilo, regressar ao calor familiar do seu beijo, do seu corpo, ao conforto simples de algo real.
Mas o problema é precisamente esse.
Foi real. Eles foram reais. Mas, como tudo na vida de Henry, acabou.
Falhou.
Interrompe o beijo quando as primeiras pipocas começam a saltar.
— Há semanas que ando à espera de fazer isto — sussurra Robbie, a face corada, os olhos
brilhantes de febre. Mas não estão límpidos. Uma névoa varre-os, turvando o azul intenso.
Henry estremece enquanto expira, esfrega os olhos por detrás dos óculos. As pipocas
matraqueiam e saltam, e Henry puxa Robbie para o corredor, para longe de Bea e do filme de
terror, e Robbie começa de novo a aproximar-se dele, pensando que se trata de um convite, mas
Henry estende a mão, mantendo-o à distância.
— Isto é um erro.
— Não, não é — diz Robbie. — Amo-te. Sempre te amei.
E parece tão sincero, tão real, que Henry tem de semicerrar os olhos para se concentrar.
— Então porque acabaste comigo?
— O quê? Não sei. Eras diferente, não encaixávamos.
— Como? — insiste Henry.
— Não sabias o que querias.
— Queria-te a ti. Queria que fosses feliz.
Robbie abana a cabeça.
— Não pode ser só a outra pessoa a importar. Também tens de ser alguém. Tens de saber
quem és. Na altura, não sabias. — Sorri. — Mas agora sabes.
Mas a questão é precisamente essa.
Não sabe.
Henry não faz ideia de quem é, e, agora, mais ninguém faz também.
Sente-se apenas perdido. Mas este é o único caminho que não irá seguir.
Ele e Robbie foram amigos antes de serem mais e voltaram a ser amigos durante anos depois
de Robbie ter acabado com tudo, quando Henry ainda estava apaixonado por ele, e agora é ao
contrário, e Robbie vai ter de arranjar maneira de andar em frente ou, pelo menos, de transformar
suavemente a palavra amor para amor como Henry fizera quando fora o seu caso.
— Demora muito tempo fazer pipocas? — grita Bea.
Um cheiro a chamuscado liberta-se do micro-ondas, e Henry empurra Robbie para o lado ao
entrar na cozinha, pressiona o botão de stop e retira o saco para fora.
Mas é demasiado tarde.
As pipocas estão irremediavelmente queimadas.
Nova Iorque
14 de novembro de 2013

Felizmente, Brooklyn tem muitos cafés.


Henry não voltou ao Roast, pelo menos desde o Grande Incêndio de 2013, como Robbie
chama a todo o episódio com Vanessa (com uma alegria um pouco excessiva). Chega ao início
da fila e pede um café com leite a um tipo muito simpático chamado Patrick, que, graças a Deus,
é hétero e que olha para ele com olhos turvos, mas parece apenas ver um cliente perfeito, alguém
amável e breve e...
— Henry?
O estômago contorce-se. Porque conhece aquela voz, alta e doce, conhece a forma como se
curva em torno do seu nome, e regressa àquela noite e está ajoelhado como um idiota, e ela
recusa.
És espetacular. És mesmo. Mas não és...
Vira-se, e ali está ela.
— Tabitha.
O cabelo está um pouco mais comprido, a franja cresceu até formar uma extensão de louro na
testa, um caracol contra a face, e encontra-se ali, com a graciosidade fácil de uma dançarina entre
posições. Henry não a vê desde aquela noite, conseguiu, até esse momento, evitá-la, evitar
aquilo. E quer recuar, deixar o máximo possível de distância entre ambos. Mas as pernas
recusam-se a mexer.
Ela sorri-lhe, alegre e afável. Lembra-se de estar apaixonado por aquele sorriso, nos tempos
em que parecia uma vitória sempre que merecia um vislumbre dele. Agora oferece-lho
simplesmente, com os olhos castanhos envolvidos em névoa.
— Tive saudades tuas — diz ela. — Tive tantas saudades tuas.
— Também tive saudades tuas — diz ele, porque é verdade. Dois anos de vida em comum,
substituídos por uma vida separados, e haverá sempre um espaço vazio com a forma dela. —
Tinha uma caixa com as tuas coisas — diz ele —, mas houve um incêndio.
— Oh, meu Deus. — Toca-lhe no braço. — Estás bem? Alguém se magoou?
— Não, não. — Abana a cabeça, a pensar em Vanessa, junto ao lava-louça. — Foi apagado.
Tabitha caminha para ele, hesitante.
— Oh, meu Deus.
De perto, cheira a lilás. Foi preciso passar-se uma semana para que aquele aroma
desaparecesse dos seus lençóis, mais uma para se dissipar das almofadas do sofá, das toalhas de
banho. Encosta-se a ele, e seria tão fácil voltar atrás, ceder à mesma gravidade perigosa que o
atraiu para Robbie, a atração familiar de algo amado e perdido e depois recuperado.
Mas não é real.
Não é real.
— Tabitha — diz ele, guiando-a de volta. — Foste tu que acabaste.
— Não. — Abana a cabeça. — Não estava pronta para dar o próximo passo. Mas nunca quis
que acabasse. Amo-te, Henry.
E, apesar de tudo, fraqueja. Porque acredita nela. Ou, pelo menos, acredita que ela acredita
nela, e isso é pior porque continua a não ser real.
— Podemos tentar de novo? — pergunta.
Henry engole em seco e abana a cabeça.
Quer perguntar-lhe o que vê, compreender o abismo entre quem era e o que ela desejava. Mas
não pergunta.
Porque, no fim de contas, não importa.
A névoa rodopia em torno da sua visão. E ele sabe-o: seja quem for que ela veja, não é ele.
Nunca foi.
Nunca será.
Por isso deixa-a ir.
Nova Iorque
18 de março de 2014

Henry e Addie vão entregando as pulseiras de borracha na Artifact, sacrificando uma cor de cada
vez.
Em troca da pulseira roxa, andam por entre poças, charcos de três centímetros de altura que
formam círculos à volta dos seus pés. Por baixo da água, o pavimento é constituído por espelhos,
que cintilam, refletindo tudo e todos. Addie olha para as faixas em movimento, para as
reverberações a diminuir, e é difícil dizer se os dela terminam um instante antes dos dele.
Em troca da amarela, são guiados para cubos insonorizados do tamanho de armários, uns dos
quais amplificam o som e outros que parecem engolir cada respiração. Seria uma sala de
espelhos, se as superfícies inclinadas retorcessem a voz em vez de um reflexo.
A primeira mensagem diz-lhes que sussurrem, a palavra escrita na parede numa letra pequena
e preta, e, quando Addie sussurra «Tenho um segredo», a palavra curva-se e enrola-se e envolve-
os.
A seguinte diz-lhes que gritem, a palavra desta vez gravada a toda a extensão da parede em
que está escrita. Henry não consegue obrigar-se a dar mais do que um berro pequeno e
autoconsciente, mas Addie inspira profundamente e ruge, como se faria debaixo de uma ponte se
estivesse a passar um comboio, e algo na liberdade destemida da sua atitude transmite-lhe ar, e
subitamente ele esvazia os pulmões, o som gutural e quebrado, tão selvagem como um grito.
E Addie não se encolhe. Simplesmente ergue a voz, e, juntos, gritam até ficarem sem fôlego,
gritam até ficarem roucos, saem dos cubos a sentir-se tontos e leves. Os pulmões de Henry ainda
irão doer, no dia seguinte, mas terá valido a pena.
Na altura em que saem de lá aos tropeções, com o som a acompanhá-los nos ouvidos, o sol
começa a pôr-se, e as nuvens estão em chamas, uma daquelas estranhas noites de primavera que
lançam uma luz laranja sobre tudo.
Dirigem-se ao varandim mais próximo e olham para a cidade, a luz a refletir-se nos edifícios,
o pôr do sol deixar laivos no aço, e Henry puxa-a para si, beija-lhe a nuca, sorrindo para o seu
pescoço.
Está cheio de açúcar e um pouco embriagado, e mais feliz do que nunca.
Addie é melhor do que qualquer chapelinho de chuva cor-de-rosa.
É melhor do que uísque forte numa noite fria.
Melhor do que qualquer coisa que tivesse sentido há séculos.
Quando Henry está com ela, o tempo acelera e não o assusta.
Quando está com Addie, sente-se vivo, e isso não o magoa.
Ela recosta-se contra ele, como se Henry fosse o chapéu de chuva e Addie aquela que precisa
de ser protegida. E Henry sustém a respiração, como se isso mantivesse o céu, lá em cima. Como
se evitasse que os dias passassem.
Como se evitasse que tudo desabasse.
Nova Iorque
9 de dezembro de 2013

Bea diz sempre que regressar ao campus é como chegar a casa.


Mas Henry não o sente da mesma maneira. No entanto, por outro lado, em casa nunca se
sentiu em casa, sentiu apenas uma impressão de medo, o andar sobre cascas de ovos de alguém
sempre prestes a desiludir. E é mais ou menos isso que sente agora, por isso talvez ela afinal
tenha razão.
— Sr. Strauss — diz o professor, estendendo a mão por cima da secretária. — Fico muito
satisfeito por ter vindo.
Dão um aperto de mãos, e Henry senta-se na cadeira de escritório. A mesma cadeira onde se
sentou três anos antes, quando o professor Melrose ameaçou chumbá-lo se não tivesse o bom
senso de se ir embora. E agora...
Queres ser suficiente.
— Desculpe ter demorado tanto — diz, mas o professor gesticula, não dando importância ao
pedido de desculpas.
— Tenho a certeza de que é um homem ocupado.
— Exato — diz Henry, mexendo-se na cadeira. O fato fricciona; demasiados meses passado
entre bolas de naftalina no fundo do guarda-roupa. Não sabe o que fazer com as mãos.
— Então — diz ele desajeitadamente —, referiu que havia uma vaga na Faculdade de
Teologia, mas não disse se era para estagiário ou assistente.
— É para passar aos quadros.
Henry olha para o homem grisalho do outro lado da mesa e tem de resistir ao impulso de se
rir na sua cara. Uma carreira universitária não é apenas algo que se cobice, é algo que suscita
uma concorrência feroz. As pessoas passam anos a rivalizar por esses cargos.
— E pensou em mim.
— No momento em que o vi naquele café — diz o professor com um sorriso de angariação de
fundos.
Queres ser o que quer que os outros desejem.
O professor senta-se na ponta da cadeira.
— A questão, Sr. Strauss, é simples. O que deseja para si?
As palavras ecoam-lhe pela cabeça, uma simetria terrível, ressonante.
Foi a mesma pergunta que Melrose lhe fez naquele dia de outono em que chamou Henry ao
seu gabinete, três anos depois de começar o doutoramento, e lhe disse que terminara. Em certa
medida, Henry sabia o que o esperava. Já pedira transferência do seminário teológico para um
plano de estudos religiosos mais lato, com a concentração a desviar-se para outros temas que
centenas de pessoas já haviam explorado, incapaz de descobrir novos pontos de apoio, incapaz
de acreditar.
— O que deseja para si? — perguntara, e Henry ponderou dizer o orgulho dos meus pais, mas
não a considerara uma boa resposta, por isso dissera a coisa que lhe parecera mais verdadeira, a
seguir a essa — que sinceramente não tinha a certeza. Que piscara os olhos e, de alguma forma,
os anos tinham passado, e toda a gente marcara o seu trilho, fizera o seu caminho, e ele ainda
estava de pé, num campo, sem saber onde cavar.
O professor ouvira e pousara os cotovelos em cima da mesa e dissera-lhe que ele era bom.
Mas não era suficientemente bom.
O que significava, claro, que ele não era suficiente.
— O que deseja para si? — pergunta agora o professor. E Henry continua a não ter outra
resposta.
— Não sei.
E esta é a parte em que o professor abana a cabeça, quando se apercebe de que Henry Strauss
continua tão perdido como dantes. Só que não o faz, claro. Sorri e diz:
— Não faz mal. É bom manter-se aberto. Mas quer voltar, não quer?
Henry está calado. Pondera a pergunta.
Sempre gostou de aprender. Na verdade, sempre adorou. Se pudesse passar a vida inteira
numa sala de conferências, a tirar apontamentos, se pudesse ter saltado de departamento em
departamento, atrás de estudos diferentes, a assimilar a língua e a história e a arte, talvez se
sentisse cheio, feliz.
Foi assim que passou os primeiros dois anos.
E nesses primeiros dois anos foi feliz. Tinha Bea e Robbie e só tinha de aprender. De
construir os alicerces. Foi a casa, aquela que deveria ter construído sobre essa superfície suave,
que foi o problema.
Era tão... permanente.
Escolher um curso tornou-se em escolher uma área, e escolher uma área tornou-se em
escolher uma carreira, e escolher uma carreira tornou-se em escolher uma vida, e como era
possível fazê-lo quando só se tinha uma?
Mas ensinar, ensinar poderia ser uma forma de obter o que desejava.
Ensinar é uma extensão de aprender, uma forma de ser um eterno estudante.
E, no entanto.
— Não tenho as qualificações necessárias.
— É uma escolha pouco convencional — reconhece o professor —, mas isso não significa
que seja uma escolha errada.
Só que, neste caso, é precisamente o que significa.
— Não fiz o doutoramento.
A névoa espalha-se numa camada de gelo que atravessa a visão do professor.
— Tem uma perspetiva diferente.
— Mas não há requisitos mínimos?
— Há, mas há alguma latitude, de modo a abranger diferentes antecedentes.
— Não acredito em Deus.
As palavras caem como pedras, aterrando na secretária, entre ambos.
E Henry apercebe-se, agora que lhe saíram da boca, de que não são completamente
verdadeiras. Não sabe em que acredita, não sabe há muito tempo, mas é difícil descartar por
completo a presença de um poder maior quando ainda há pouco tempo vendeu a alma a um
poder menor.
Henry apercebe-se de que a divisão continua em silêncio.
O professor olha para ele longamente, e Henry pensa que conseguiu, que quebrou o feitiço.
Mas nesse momento Melrose inclina-se para a frente e diz, num tom contido:
— Eu também não. — Volta a sentar-se. — Sr. Strauss, somos uma instituição académica,
não uma igreja. A divergência está no cerne da evolução.
Mas o problema é precisamente esse. Ninguém irá divergir. Henry olha para o professor
Melrose e imagina ver essa mesma aceitação cega no rosto de todos os membros da faculdade,
de todos os professores, de todos os alunos, e sente-se indisposto. Todos olharão para ele e verão
exatamente o que desejam. Quem desejam. E, mesmo que se cruze com alguém que queira
argumentar, que aprecie o confronto ou o debate, não será real.
Nada voltará a ser real.
Do outro lado da mesa, os olhos do professor são de um cinza leitoso.
— Pode fazer tudo o que desejar, Sr. Strauss. Ser quem desejar. E gostaríamos de o ter
connosco. — Levanta-se e estende a mão. — Pense nisso.
Henry diz:
— Vou pensar.
E pensa.
Pensa nisso enquanto atravessa o campus e no metro, com cada estação a afastá-lo mais
daquela vida. Da vida que foi e da que não foi. Pensa nisso enquanto abre a loja, despe o casaco
que lhe assenta mal e o atira para a prateleira mais próxima, desfaz a gravata na garganta. Pensa
nisso enquanto dá de comer ao gato e abre a última caixa de livros, agarrando neles até lhe
doerem os dedos, mas pelo menos são sólidos, são reais, e consegue sentir as nuvens de
tempestade formarem-se na cabeça, por isso vai até à divisão das traseiras, pega na garrafa de
uísque de Meredith, alguns dedos que restaram do dia que se seguiu ao pacto, e leva-a para a
parte da frente da loja.
Ainda nem é meio-dia, mas Henry não quer saber.
Tira a tampa e enche uma chávena de café enquanto os clientes começam a entrar, esperando
que alguém o fuzile com um olhar de repulsa, que abane a cabeça em sinal de desaprovação, que
murmure alguma coisa ou que saia, mesmo. Mas todos eles continuam as suas compras,
continuam a sorrir, continuam a olhar para Henry como se este não pudesse fazer nada de errado.
Finalmente, um polícia fora de serviço entra, e Henry nem sequer tenta esconder a garrafa
junto à caixa registadora. Em vez disso, olha diretamente para o homem e dá um gole demorado
da chávena, na certeza de que está a transgredir alguma lei, seja pela garrafa aberta seja pela
intoxicação pública.
Mas o polícia limita-se a sorrir e ergue um copo imaginário.
— À sua! — diz, os olhos a enevoarem-se enquanto fala.
Bebe um copo sempre que ouvires uma mentira.
És um excelente cozinheiro.
(Dizem quando deixas queimar as torradas.)
És tão engraçado.
(Nunca contaste uma anedota.)
És tão...
... bonito.
... ambicioso.
... bem-sucedido.
... forte.
(Já estás a beber?)
És tão...
... encantador.
... inteligente.
... sexy.
(Bebe.)
Tão confiante.
Tão tímido.
Tão misterioso.
Tão aberto.
És impossível, um paradoxo, uma coleção de opostos.
És tudo para toda a gente.
O filho que nunca tiveram.
O amigo que sempre desejaram.
Um estranho generoso.
Um filho bem-sucedido.
Um perfeito cavalheiro.
Um companheiro perfeito.
Um perfeito...
Perfeito...
(Bebe.)
Gostam do teu corpo.
Dos teus abdominais.
Do teu riso.
Do teu cheiro.
Do som da tua voz.
Desejam-te.
(Não a ti.)
Precisam de ti.
(Não de ti.)
Amam-te.
(Não a ti.)
És quem quer que eles querem que sejas.
És mais do que suficiente, porque não és real.
És perfeito, porque tu não existes.
(Tu não.)
(Tu nunca.)
Olham para ti e veem o que quer que desejem...
Porque não te veem, de todo.
Nova Iorque
31 de dezembro de 2013

O relógio marca o tempo com o seu tiquetaquear, os últimos minutos do ano a esvaírem-se. Toda
a gente diz para se viver no presente, para saborear o momento, mas é difícil quando o momento
envolve centenas de pessoas apinhadas num apartamento alugado em Bed-Stuy que Robbie
partilha com outros atores. Henry está encurralado num canto, onde o bengaleiro se encontra
com um guarda-fato. Tem uma cerveja na mão e a outra enredada na camisa do tipo que o está a
beijar, um tipo que decididamente está fora do campeonato de Henry, ou estaria, se Henry ainda
tivesse um campeonato.
Acha que o nome do fulano é Mark, mas é difícil ouvir por cima de toda a algazarra. Também
pode ser Max ou Malcolm. Henry não sabe. E quer dizer que é a primeira pessoa que beijou
nessa noite, o primeiro homem até, mas a verdade é que não tem a certeza de nenhuma das duas
hipóteses. Não tem a certeza de quantas bebidas tomou ou se o sabor que se derrete na sua língua
neste momento é de açúcar ou de outra coisa qualquer.
Henry tem bebido demasiado, demasiado depressa, tentando não pensar, e há demasiadas
pessoas no Castelo.
Castelo é o que chamam à casa de Robbie, embora Henry não se consiga lembrar bem quando
o batizaram assim ou porquê. Procura Bea, não a vê desde que serpenteou por entre a multidão
até à cozinha, uma hora antes, a viu empoleirada na bancada, a brincar aos empregados de balcão
e a fazer a corte a um grupo de mulheres e...
Subitamente, o tipo começa a debater-se com o cinto de Henry.
— Espera — diz ele, mas a música está tão alta que tem de gritar, tem de puxar o ouvido de
Mark/Max/Malcolm para junto da boca, o que Mark/Max/Malcolm interpreta como um sinal
para o continuar a beijar.
— Espera — grita, empurrando-o. — Queres mesmo isto?
O que é uma pergunta estúpida. Ou, no mínimo, a pergunta errada.
O fumo claro rodopia nos olhos do estranho.
— Porque não haveria de querer? — pergunta, caindo de joelhos. Mas Henry agarra-o pelo
cotovelo.
— Para. Para, por favor. — Puxa-o para cima. — O que vês em mim?
Uma pergunta que começou a fazer a toda a gente, na esperança de ouvir algo de semelhante
à verdade. Mas o tipo olha para ele, com os olhos toldados de névoa, e diz as palavras de
rompante:
— És lindo. Sexy. Inteligente.
— Como é que sabes? — grita Henry por cima da música.
— O quê? — grita o rapaz de volta.
— Como sabes que sou inteligente? Mal falámos.
Mas Mark/Max/Malcolm limita-se a esboçar um sorriso lamechas, de olhos entornados, com
a boca vermelha de beijar, e diz:
— Sei simplesmente — e já não é suficiente, já não está certo, e Henry começa a libertar-se
dele quando Robbie dobra a esquina e vê Mark/Max/Malcolm praticamente a copular com Henry
no corredor. Robbie olha para ele como se lhe tivesse atirado uma cerveja à cara.
Vira costas e vai-se embora, e Henry geme, e o tipo que se meneia contra ele parece julgar
que o som é para ele, e está demasiado calor ali para Henry pensar, para respirar.
A divisão começa a rodopiar, e Henry murmura qualquer coisa sobre ter de ir fazer chichi,
mas caminha para lá da casa de banho e entra no quarto de Robbie, fechando a porta atrás de si.
Vai até à janela, puxa o vidro para cima e é atingido em cheio no rosto por uma explosão de frio
gelado. Este morde-lhe a pele enquanto salta para a escada de incêndio.
Aspira uma lufada de ar frio, deixa que este lhe queime os pulmões, tem de se inclinar para a
janela para a voltar a fechar, mas, no instante em que o vidro desce, o mundo aquieta.
Não é silêncio — Nova Iorque nunca é silenciosa —, e o Ano Novo enviou uma corrente que
reverbera pela cidade, mas pelo menos consegue respirar, consegue pensar, consegue esquecer a
noite — o ano — numa paz relativa.
Tenta dar um gole na cerveja, mas a garrafa está vazia.
— Merda — murmura para si mesmo apenas.
Está gelado, o casaco ficou enterrado algures num monte, em cima da cama de Robbie, mas
não se consegue obrigar a entrar de novo para ir buscar um agasalho ou uma bebida. Não
consegue suportar a maré de cabeças a virarem-se, o fumo a encher-lhes os olhos, não quer o
peso da sua atenção. E alcança a ironia de tudo aquilo, mesmo. Naquele momento, daria tudo por
um dos chapelinhos de chuva cor-de-rosa de Muriel, mas já se acabaram, por isso senta-se nos
degraus de metal gelados, diz para si mesmo que é feliz, diz para si mesmo que foi aquilo que
desejou.
Pousa a garrafa vazia ao lado de um vaso que outrora foi o lar de uma planta.
Neste momento, contém apenas uma pequena montanha de beatas.
Às vezes Henry desejava fumar, apenas pelo pretexto de ir apanhar ar.
Tentou, uma vez ou duas, mas não conseguia suportar o sabor a alcatrão, o cheiro bafiento
que lhe deixava na roupa. Quando era miúdo, tinha uma tia que fumava até as unhas ficarem
amarelas e a pele estalada, como couro puído, até que cada ataque de tosse dava a impressão de
que tinha moedas soltas a matraquearem-lhe dentro do peito. Sempre que aspirava uma baforada,
pensava nela e sentia-se maldisposto e não sabia se era da memória ou do sabor, sabia apenas
que não valia a pena.
Claro que havia a erva, mas a erva era algo que se partilhava com outras pessoas, ninguém se
escapulia para a fumar sozinho, e, fosse como fosse, fazia-o sempre sentir-se com fome e triste.
Ou, na verdade, ainda mais triste. Não lhe alisava nenhuma das rugas que tinha no cérebro,
depois de várias tentativas, limitava-se a transformá-las em espirais, com os pensamentos a
virarem-se cada vez mais para dentro, para sempre.
Tem uma memória muito clara de ter ficado pedrado no último ano de faculdade, ele e Bea e
Robbie, deitados num emaranhado de membros na praça de Columbia, às três da manhã,
completamente nas nuvens e a olhar para o céu. E, apesar de terem de semicerrar os olhos para
conseguir divisar quaisquer estrelas e possam ter sido apenas os seus olhos a debater-se para
captar alguma coisa daquela extensão negra, Bea e Robbie não paravam de falar sobre quão
grande tudo era, quão maravilhoso, quão calmos os fazia sentir o facto de serem tão pequenos, e
Henry não disse nada porque estava demasiado ocupado a suster a respiração para evitar gritar.
— Que raio estás a fazer aqui fora?
Bea assoma à janela. Passa a perna por cima do parapeito e junta-se a ele no degrau,
assobiando quando as leggings tocam no metal frio. Ficam sentados em silêncio por alguns
instantes. Henry olha por cima dos edifícios. As nuvens estão baixas, com as luzes de Times
Square a brilharem contra elas.
— O Robbie está apaixonado por mim — diz ele.
— O Robbie sempre esteve apaixonado por ti — diz Bea.
— Mas o problema é precisamente esse — diz ele, abanando a cabeça. — Não estava
realmente apaixonado por quem eu era. Estava apaixonado por quem eu poderia ter sido. Queria
que eu mudasse, e não mudei, e...
— Porque haverias de mudar? — Bea vira-se para olhar para ele, com a névoa a rodopiar-lhe
nos olhos. — És perfeito exatamente como és.
Henry engole em seco.
— E isso é como? — pergunta. — Como é que eu sou?
Tem tido medo de perguntar, medo de saber o significado do brilho nos olhos dela, o que vê
quando olha para ele. Naquele preciso instante, deseja ter retirado o que disse. Mas Bea limita-se
a sorrir e diz:
— És o meu melhor amigo, Henry.
O peito dele alivia, apenas um pouco. Porque é real.
É verdade.
Mas depois ela continua.
— És delicado e sensível e espantoso a ouvir os outros.
E aquela última parte causa-lhe um baque no estômago, porque Henry nunca soube ouvir os
outros. Perdeu a conta ao número de discussões em que se viu envolvido por não estar a prestar
atenção.
— Estás sempre presente quando preciso de ti — continua ela, e o peito dói-lhe, porque sabe
que não esteve, e esta não é como todas as outras mentiras, esta não tem a ver com abdominais
definidos ou com um maxilar acentuado ou com uma voz profunda, isto não é um encanto
espirituoso ou o filho que sempre se desejou ou o irmão de quem se tem saudades, isto não é
nenhum dos milhares de coisas que outras pessoas veem quando olham para ele, coisas fora do
seu controlo.
— Gostava que te visses como eu te vejo.
O que Bea vê é um bom amigo.
E Henry não tem desculpa para não o ser.
Põe a cabeça entre as mãos, comprime as palmas contra os olhos até ver estrelas e pergunta-se
se poderá resolver isto, isto apenas, se poderá tornar-se a versão de Henry que Bea vê, se isso
fará com que névoa nos seus olhos se dissipe, se pelo menos ela o poderá ver claramente.
— Desculpa — sussurra para o espaço entre os joelhos e o peito. Sente-a passar-lhe os dedos
pelo cabelo.
— Porquê?
E o que poderá ele dizer?
Henry estremece ao expirar e olha para cima.
— Se pudesses ter alguma coisa — diz —, o que pedirias?
— Depende — diz ela. — Qual é o preço a pagar?
— Como sabes que há um preço?
— Há sempre dar e receber.
— Muito bem — diz Henry —, se vendesses a tua alma por uma coisa, o que seria? Bea
morde o lábio.
— Felicidade.
— O que é isso? — pergunta ele. — Quero dizer, é apenas sentires-te feliz sem motivo? Ou é
fazeres outras pessoas felizes? É seres feliz no emprego ou na vida ou...
Bea ri-se.
— Pensas sempre demasiado nas coisas, Henry. — Olha para fora, por cima da escada de
incêndio. — Não sei, talvez queira apenas dizer que gostaria de ser feliz comigo própria. Estar
satisfeita. E tu?
Ele pensa em mentir, não o faz.
— Acho que gostaria de ser amado.
Bea olha para ele então, com os olhos num turbilhão de névoa e, apesar da neblina, parece de
súbito incomensuravelmente triste.
— Não podes obrigar as pessoas a gostarem de ti, Hen. Se não for uma opção, não é real.
A boca de Henry fica seca.
Ela tem razão. Claro que tem razão.
E ele é um idiota, preso num mundo onde nada é real.
Bea choca com o ombro no dele.
— Vem para dentro — diz ela. — Arranja alguém para beijares antes da meia-noite. Dá sorte.
Levanta-se, à espera, mas Henry não se consegue levantar.
— Está tudo bem — diz. — Vai tu.
E sabe que é por causa do pacto que fez, sabe que é o que ela vê e não o que ele é — mas,
ainda assim, fica aliviado quando Bea volta a sentar-se e se encosta a ele, um melhor amigo a
fazer-lhe companhia no escuro. E, passado pouco tempo, o volume da música começa a baixar, e
as vozes sobem de tom, e Henry ouve a contagem decrescente atrás deles.
Dez, nove, oito.
Oh, meu Deus.
Sete, seis, cinco.
O que foi ele fazer?
Quatro, três, dois.
Está a avançar demasiado depressa.
Um.
O ar está enche-se de assobios e de vivas, e Bea encosta os lábios aos dele, um momento de
calor contra o frio. De um momento para o outro, o ano passou, os relógios recomeçam, um três
substituído por um quatro, e Henry sabe que cometeu um erro terrível.
Pediu a coisa errada ao deus errado, e agora é suficiente porque não é nada. É perfeito porque
não está presente.
— Vai ser um ano bom — diz Bea. — Sinto-o. — Suspira uma nuvem de nevoeiro para o ar
entre ambos. — Foda-se, está frio! — levanta-se, esfregando as mãos. — Vamos para dentro.
— Vai tu andando — diz ele. — Eu já vou.
E ela acredita nele, os passos a retinir enquanto atravessa a escada de incêndio e se esgueira
de novo pela janela, deixando-a aberta para que ele a siga.
Henry fica ali sentado, sozinho, no escuro, até não conseguir aguentar mais o frio.
Nova Iorque
Inverno de 2014

Henry desiste.
Resigna-se ao prisma do seu pacto, que acabou por encarar como uma maldição. Tenta... ser
um melhor amigo, um melhor irmão, um melhor filho, tenta esquecer o significado da névoa nos
olhos das pes- soas, tenta fingir que é real, que ele é real.
E depois, um dia, conhece uma rapariga.
Entra na livraria e rouba um livro e, quando a surpreende na rua e ela se vira para olhar para
ele, não há névoa, não há película, não há parede de gelo. Apenas uns olhos castanhos cristalinos
num rosto em forma de coração, sete sardas espalhadas pelas maçãs do rosto como estrelas.
E Henry pensa que deve ser um efeito da luz, mas ela regressa no dia seguinte, e ali está mais
uma vez. A ausência. Não apenas uma ausência, também, mas algo, em vez dela.
Uma presença, um peso sólido, a primeira atração firme que sentiu em meses. A força da
gravidade de outrem.
Outra órbita.
E, quando a rapariga olha para ele, não vê a perfeição. Vê alguém que se preocupa
demasiado, que sente demasiado, que está perdido e ávido e desperdiçado, dentro da sua
maldição.
Vê a verdade, e ele não sabe como ou porquê, sabe apenas que não quer que aquilo acabe.
Porque, pela primeira vez em meses, em anos, em toda a sua vida, talvez, Henry não se sente
nada amaldiçoado.
Pela primeira vez, sente que é visto.
Nova Iorque
18 de março de 2014

Falta apenas uma exposição.


À medida que a luz escasseia, Henry e Addie entregam as pulseiras de borracha azuis e
entram num espaço constituído apenas por acrílico. As paredes transparentes erguem-se em
fileiras. Fazem-no pensar nas estantes de uma biblioteca, ou da livraria, mas não há livros,
apenas um letreiro instalado no ar, por cima das suas cabeças, que diz:

TU ÉS A ARTE

Há taças com tinta fluorescente em cada corredor, e claro que as paredes estão cobertas de
marcas.
Assinaturas e garatujas, marcas de mãos e padrões.
Algumas percorrem toda a extensão da parede, outras estão encaixadas, como segredos,
dentro das marcas maiores.
Addie mergulha um dedo em tinta verde e leva-o até à parede. Desenha uma espiral, uma
única marca em expansão. Mas, quando chega à quarta volta, a primeira já se esbateu,
desaparecendo como um seixo em água profunda.
Impossível, apagada.
O seu rosto não vacila, não desanima, mas ele capta a tristeza antes que esta também
desapareça, afundando-se para longe da vista.
Como consegues aguentar?, quer perguntar. Ao invés, mergulha a mão na tinta verde,
estende-a para lá de Addie, mas não desenha nada. Ao invés, espera, com a mão junto ao vidro.
— Põe a tua mão por cima da minha — diz ele, e Addie hesita apenas um momento antes de
pousar a palma no dorso da mão dele, encostando os dedos sobre os de Henry. — Pronto — diz
ele —, agora podemos desenhar.
Dobra a mão sobre a dele, guia o dedo indicador no vidro e deixa uma única marca, uma linha
de verde. Ele sente o ar preso no peito dela, sente a rigidez súbita dos seus membros, enquanto
espera que a tinta desapareça.
Mas não desaparece.
Persiste, devolvendo-lhes o olhar naquele tom ousado. Então algo se quebra dentro dela.
Faz uma segunda marca e uma terceira, solta uma gargalhada ofegante e, depois, com a mão
sobre a de Henry, a dele no vidro, Addie começa a desenhar. Pela primeira vez em trezentos
anos, desenha pássaros e árvores, desenha um jardim, desenha uma oficina, desenha uma cidade,
desenha um par de olhos. As imagens derramam-se dela, e através dele, na parede, com uma
ânsia desajeitada e frenética. E está a rir, com as lágrimas a escorrerem-lhe pelo rosto, e ele quer
limpá-las, mas as mãos dele são as mãos dela, e ela está a desenhar. E então ela mergulha o dedo
na tinta e leva-o à superfície do vidro e, dessa vez, escreve numa caligrafia hesitante, uma letra
de cada vez.
O seu nome.
Este persiste, encaixado entre os muitos desenhos.
Addie LaRue
Dez letras, duas palavras. Não é diferente, pensa ele, das centenas de outras marcas que
fizeram, só que é. Sabe que é.
A mão dela afasta-se da de Henry, e Addie estende o braço, passa os dedos pelas letras, e, por
um instante, o nome fica esborratado, manchas de verde contra o vidro. Mas, quando os seus
dedos se afastam, regressa, imaculado, imutável.
Algo muda então nela. Percorre-a, do mesmo modo que as tempestades o percorrem a ele,
mas esta é diferente, não é sombria, mas assombrosa, de uma nitidez súbita, acutilante.
E então puxa-o para longe dali. Para longe do labirinto, para longe das pessoas deitadas sob a
noite sem estrelas, para longe da feira de arte e da ilha, e ele percebe que não o está a afastar,
mas a aproximar de algo.
A aproximar do ferry.
A aproximar do metro.
A aproximar de Brooklyn.
A aproximar de casa.
Durante todo o caminho, agarra-se com força a Henry, os dedos entrelaçados, a tinta verde a
manchar as mãos de ambos, enquanto sobem as escadas, enquanto ele abre a porta e ela o larga
então, irrompendo porta adentro, para o interior, pelo apartamento. Henry encontra-a no quarto, a
tirar um bloco azul de uma prateleira, a surripiar uma caneta da mesa. Empurra-os para as mãos
dele, e Henry baixa-se ao fundo da cama, abre a capa do caderno, um dos muitos que nunca
usou, e ela ajoelha-se, ofegante, ao seu lado.
— Faz outra vez — diz ela.
E ele leva a ponta da caneta até à folha em branco e escreve o nome dela, numa caligrafia
rígida, mas cuidada.
Addie LaRue.
Não se dissolve, não se esbate, fica ali, apenas, no centro da página. E Henry olha para cima,
para ela, à espera que continue, que dite o que vem a seguir, e ela olha para baixo, para lá dele,
para as palavras.
Addie pigarreia.
— Começa assim — diz.
E ele começa a escrever.
A SOMBRA QUE SORRIA E A RAPARIGA
QUE DEVOLVIA O SORRISO
Título: Ho Portato le Stelle a Letto
Artista: Matteo Renatti
Data: c. 1806–08
Suporte: Esboço a lápis em papel, com 20 cm x 35 cm
Origem: Cedido pela Gallerie dell’Accademia
Descrição: Uma ilustração de uma mulher, com as linhas do corpo mimetizadas pelos lençóis contorcidos. O seu rosto é
pouco mais do que um conjunto de ângulos, enquadrado por um cabelo despenteado, mas o artista representou-a com um
traço muito específico: sete pequenas sardas alinhadas nas maçãs do rosto.
Contexto: Alguns críticos consideram que este desenho, encontrado no bloco de desenho de Renatti de 1806–8, terá servido
de inspiração para a sua obra-prima posterior A Musa. Embora a postura da modelo e o suporte da obra sejam diferentes, o
número e a localização das sardas é suficientemente óbvio para que muitos especulem sobre a importância desta mulher na
obra de Renatti.
Valor estimado: 267 mil dólares
Villon-sur-Sarthe, França
29 de julho de 1764

Addie dirige-se à igreja.


Esta situa-se perto do centro de Villon, atarracada e cinzenta e imutável, com o campo
contíguo, delimitado por um muro de pedra baixo.
Não demora muito a encontrar o túmulo do pai.
Jean LaRue.
O túmulo do pai é espartano — um nome e datas, um versículo da Bíblia — Todo aquele que
invocar o nome do Senhor será salvo. Sem referência ao homem que o pai era, sem referência ao
seu ofício ou sequer à sua bondade.
Uma vida reduzida a um bloco de pedra, um retângulo de relva.
Pelo caminho, Addie apanhara uma mão-cheia de flores, plantas silvestres que crescem na
orla do caminho, botões cobertos de ervas daninhas, amarelos e brancos. Ajoelha-se para as
deixar no solo, detém-se quando vê as datas por baixo do nome do pai.
1670–1714.
O ano em que Addie partiu.
Passa a memória em revista, tenta lembrar-se de quaisquer sinais de doença. A tosse
persistente no seu peito, a sombra de fraqueza nos membros. As memórias da sua segunda vida
estão presas em âmbar, perfeitamente preservadas. Mas as de antes, de quando era Adeline
LaRue — memórias de amassar pão num banco, ao lado da mãe, de ver o pai talhar rostos em
blocos de madeira, de seguir Estele pelos baixios do Sarthe —, essas, começam a esbater-se. Os
vinte três anos que viveu antes do bosque, antes do pacto, desfeitos em pouco mais do que
contornos.
Mais tarde, Addie conseguirá lembrar-se de quase trezentos anos em pormenor, todos os
momentos de todos os dias, preservados.
Mas já está a perder o som do riso do pai.
Não se consegue lembrar da cor exata dos olhos da mãe.
Não consegue recordar o contorno do queixo de Estele.
Durante anos, ficará acordada na cama e contará a si própria histórias da rapariga que foi, na
esperança de conservar cada fragmento fugidio, mas isso terá o efeito contrário — as memórias
tornam-se talismãs, se forem tocadas com demasiada frequência; como medalhas de santos, a
gravura desgastada até uma chapa prateada e impressões esbatidas.
Quanto à doença do pai, deve ter-se esgueirado entre estações, e pela primeira vez Addie está
grata pela natureza purificadora da sua maldição, por ter feito o pacto — não por si própria, mas
pela mãe. Pelo facto de Marthe LaRue só ter tido de chorar uma perda, em vez de duas.
Jean está enterrado entre os outros elementos da sua família. Uma irmã mais nova que
conheceu apenas dois anos de vida. Uma mãe e um pai, ambos falecidos antes de a própria Addie
ter 10 anos. Uma fileira adiante, os seus próprios pais e irmãos que não casaram. A campa ao seu
lado vazia, à espera da esposa.
Claro que não há ali lugar para ela. Mas esta fiada de túmulos, como uma cronologia,
apontando do passado até ao futuro, foi o que a conduziu ao bosque naquela noite, o medo de
uma vida como esta, rumo ao mesmo pequeno retângulo de relva.
Enquanto fita o túmulo do pai, Addie sente a tristeza compacta do fim, o peso de um objeto a
pousar. A mágoa surgiu e passou — perdeu este homem há cinquenta anos, já fez o luto, e,
embora doa, o sofrimento não é recente. Há muito que se entorpeceu num sentimento incómodo,
com a ferida a dar lugar à cicatriz.
Deixa as flores na campa do pai e levanta-se, entranhando-se mais por entre as sepulturas,
recuando no tempo a cada passo, até já não ser Addie, mas Adeline; até já não ser um fantasma,
mas carne e sangue e mortal. Ainda ligada àquele lugar, com as raízes a doerem como membros-
fantasma.
Analisa os nomes nas pedras tumulares, conhece cada um deles, mas a diferença é que, em
tempos, esses nomes também a conheciam. Ali está Roger, enterrado ao lado da primeira e única
mulher, Pauline.
Ali está Isabelle, e a filha mais nova, Sara, levadas no mesmo ano.
E ali, quase no centro do cemitério, encontra-se o nome que mais conta. Aquele que lhe
segurou a mão tantas vezes, que lhe mostrou que a vida era mais do que aquilo.
Estele Magritte, lê-se na lápide. 1642–1719.
As datas estão esculpidas numa cruz simples, e Addie quase consegue ouvir a velha sibilar
por entre os dentes.
Estele, enterrada na sombra de uma casa que não venerava.
Estele, que diria que uma alma é apenas a semente devolvida ao solo, que não desejava mais
do que uma árvore sobre os seus ossos. Devia ter sido deixada a descansar na orla da floresta ou
entre os legumes da sua horta. Devia, no mínimo, ter sido enterrada numa campa de canto, onde
os ramos de um teixo antigo alcançassem o muro baixo para fazer sombra aos túmulos.
Addie faz o caminho até ao pequeno abrigo na extremidade do pátio da igreja e encontra uma
colher de pedreiro entre as ferramentas, dirigindo-se à floresta.
É o pico do verão, mas o ar é fresco sob a copa das árvores. É meio-dia, mas o cheiro da noite
ainda perdura nas folhas. O aroma daquele lugar, tão universal e específico. A cada respiração, o
sabor a terra na língua, a memória do desespero, uma rapariga, a afundar as mãos no solo
enquanto reza.
Agora, ao invés, enterra a colher de pedreiro, retira uma arvorezinha do terreno. É algo frágil,
passível de se desfazer na próxima tempestade forte, mas leva-o de volta para o pátio da igreja,
embalado como uma criança, nas suas mãos, e, se alguém achar estranho, esquecerão que o
viram muito antes de pensarem em contar a alguém. E, se repararem na árvore que cresce por
cima da campa da idosa, talvez parem para pensar de novo nos deuses antigos.
E, enquanto Addie deixa a igreja para trás, os sinos começam a repicar, chamando os aldeões
para a missa.
Percorre a estrada enquanto estes saem de suas casas, as crianças de mão dada com as mães,
os homens e as mulheres lado a lado. Alguns rostos são novos para ela, outros conhece.
Ali vai George Therault e a filha mais velha de Roger e os dois filhos de Isabelle, e, da
próxima vez que Addie ali for, todos eles estarão mortos, com o resto da sua vida anterior — a
sua primeira vida — enterrado no mesmo talhão de dez metros.

A cabana encontra-se abandonada na orla do bosque.


A vedação baixa desmoronou-se, e o jardim de Estele cresceu agora demasiado, com a
própria casa a ceder lentamente, descaindo devido à idade e à falta de cuidados. A porta fecha-se
depressa, mas as portadas pendem de dobradiças quebradas, expondo o vidro de uma única
janela, estilhaçado como um olho cansado.
Da próxima vez que Addie ali for, o contorno da casa ter-se-á perdido sob o verde, e, depois
disso, o bosque ter-se-á esgueirado para o seu interior e engolido tudo.
Mas, hoje, ainda se encontra de pé, e abre caminho por entre o trilho cheio de ervas, com a
lanterna roubada numa das mãos. Continua à espera de que a idosa saia dos bosques, com os
braços engelhados cheios de cortes, mas o único restolhar que se ouve vem das pegas e do som
dos seus próprios pés.
No interior, a cabana está húmida e vazia, o espaço atulhado de detritos — os fragmentos de
barro de uma taça partida, uma mesa a desfazer-se —, mas desapareceram as tigelas em que
misturava os seus unguentos e a bengala que usava quando o tempo estava húmido e os ramos de
ervas pendurados das vigas e o tacho de ferro que estava sempre na lareira.
Addie tem a certeza de que as coisas de Estele foram levadas depois da sua morte,
distribuídas pela aldeia, exatamente como a sua vida, condenada à propriedade pública
simplesmente pelo facto de não se ter casado. Villon ficou com a sua guarda, porque Estele não
teve filhos.
Vai até ao jardim e colhe o que consegue do terreno selvagem, carrega um saque grosseiro de
cenouras e feijão comprido para dentro e coloca-o em cima da mesa. Abre as portadas de par em
par e dá consigo diante do bosque.
As árvores erguem-se numa linha escura, com os braços entrelaçados cravados no céu. As
suas raízes crescem para diante, rastejando até ao jardim e através do relvado. Um avanço lento e
paciente.
Agora o sol está a pôr-se, e, apesar de ser verão, a humidade esgueirou-se para o interior
através das fendas do telhado coberto de colmo, por entre as pedras e por baixo da porta, e um ar
frio paira sobre os ossos da pequena cabana.
Addie leva a lanterna roubada até à lareira. Foi um mês chuvoso, e a madeira está húmida,
mas é paciente, alimentando a chama a partir da lanterna até esta se acender.
Cinquenta anos, e ainda está a aprender a forma da sua maldição.
Não consegue fazer uma coisa, mas consegue usá-la.
Não consegue partir uma coisa, mas consegue roubá-la.
Não consegue fazer lume, mas consegue mantê-lo.
Não sabe se é uma espécie de bênção ou simplesmente uma fenda na argamassa da sua
maldição, uma das poucas fissuras que descobriu nas paredes da sua nova vida. Talvez Luc não
tenha reparado. Ou talvez as tenha deixado ali de propósito, para a atrair, para lhe dar esperança.
Addie retira um galho a arder da lareira e leva-o indolentemente até ao tapete coçado. É
suficientemente seco para pegar fogo e arder, mas não acontece. Tremeluz e arrefece demasiado
depressa, fora da segurança da lareira.
Senta-se no chão, a cantarolar baixinho enquanto alimenta pau atrás de pau na chama até
consumir o frio do espaço como uma respiração a espalhar pó.
Sente-o como se fosse uma corrente de ar.
Ele não bate à porta.
Nunca bate à porta.
Num instante está sozinha, no outro não está.
— Adeline.
Detesta a forma como a faz sentir ouvi-lo dizer o seu nome, odeia a forma como se encosta à
palavra como um corpo à procura de abrigo numa tempestade.
— Luc.
Vira-se, esperando vê-lo como estava em Paris, vestido à maneira requintada dos salões, mas,
em vez disso, está exatamente como estava na noite em que se conheceram, fustigado pelo vento
e recortado pelas sombras, numa túnica preta simples, os atilhos abertos no pescoço. A luz do
fogo dança-lhe pelo rosto, lança sombras nos contornos do seu maxilar e da face e sobrancelha,
como carvão.
Os seus olhos percorrem o saque escasso em cima do parapeito, antes de regressarem a ela.
— De volta ao ponto de partida...
Addie levanta-se, para que não possa olhar de cima para ela.
— Cinquenta anos — diz ele. — Passam tão depressa.
Não se passaram nada depressa, pelo menos para ela, e ele sabe-o. Procura pele nua, pontos
macios onde enterrar a faca, mas ela não se permitirá ser um alvo tão fácil.
— Num instante — ecoa friamente. — Como poderia o tempo de uma vida ser suficiente...
Luc exibe apenas o esboço de um sorriso.
— Que belo quadro davas, a vigiar esse lume. Quase podias ser a Estele.
É a primeira vez que ouve aquele nome nos seus lábios, e há algo na forma como o diz, quase
nostálgico. Luc percorre a divisão até à janela e olha para fora, para a fiada de árvores. —
Quantas vezes esteve aqui mesmo e sussurrou para o bosque.
Lança uma olhadela por cima do ombro, com um sorriso dissimulado nos lábios.
— Depois de ter falado tanto de liberdade, estava tão só, no fim. Addie abana a cabeça.
— Não.
— Devias ter estado aqui com ela — diz ele. — Devias ter-lhe aliviado o sofrimento quando
adoeceu. Devias tê-la enterrado. Devias-lhe isso.
Addie recua como se tivesse sido atingida.
— És tão egoísta, Adeline. E, por tua causa, ela morreu sozinha.
Todos morremos sozinhos. Era o que Estele diria — pelo menos, é o que pensa. O que espera.
Em tempos, teria tido a certeza, mas a confiança esbateu-se com a memória da voz da mulher.
Do outro lado da sala, a escuridão move-se. Num instante está junto à janela, no outro atrás
dela, com a voz a entrelaçar-se no seu cabelo.
— Ela estava tão pronta para morrer — diz Luc. — Tão desesperada por aquele lugar à
sombra. Pôs-se à janela e implorou sem parar. Podia ter-lho concedido.
Uma memória, dedos velhos apertados à volta do seu pulso.
Nunca rezes aos deuses que respondem depois de escurecer.
Addie vira-se para ele.
— Ela nunca teria rezado a ti.
Um sorriso bruxuleante.
— Não. — Um sorriso escarninho. — Mas pensa quão triste seria ter sabido que tu o fizeste.
Addie perde a cabeça. A mão dispara antes de pensar em detê-la, e, mesmo nesse instante,
quase espera não atingir nada, apenas ar e fumo. Mas Luc é apanhado desprevenido, e por isso a
palma da mão dela atinge pele ou algo de semelhante. A cabeça dele vira-se uma fração com a
força do golpe. Claro que não há sangue naqueles lábios perfeitos, não há calor na pele fria, mas
ao menos arrancou-lhe o sorriso da cara.
Ou é o que pensa.
Até ele desatar a rir.
O som é arrepiante, irreal, e, quando vira o rosto de novo para ela, Addie imobiliza-se. Agora
não há nada de humano nele. Os ossos são demasiado afiados, as sombras demasiado profundas,
os olhos demasiado brilhantes.
— Estás a esquecer-te de quem és — diz ele, com a voz a dissolver-se no fumo de lareira. —
Estás a esquecer-te de quem eu sou.
A dor atinge os pés de Addie, súbita e acutilante. Olha para baixo, procurando um ferimento,
mas a dor acende-se vinda de dentro. Uma dor profunda e interior, com a força de todos os
passos que já deu.
— Talvez tenha sido demasiado misericordioso.
A dor sobe-lhe pelos membros, contagiando joelho e anca, pulso e ombro. As pernas cedem
sob o seu peso, e o máximo que consegue fazer é não gritar.
A escuridão olha-a de cima, com um sorriso.
— Tornei isto demasiado fácil.
Addie observa, horrorizada, as mãos começarem a engelhar-se e a minguar, com veias azuis a
destacar-se sob uma pele fina como papel.
— Pediste vida, apenas. Eu dei-te a tua saúde e a tua juventude, também.
O cabelo de Addie solta-se do carrapito e escorre-lhe, liso, diante dos olhos, com as madeixas
a secarem, a enfraquecerem e a ficarem grisalhas.
— Isso tornou-te arrogante.
A visão dela enfraquece, toldando-se até a divisão ser apenas feita de manchas e de formas
indistintas.
— Talvez precises de sofrer.
Addie semicerra os olhos, com o coração num alvoroço de pânico.
— Não — diz ela, e é o mais próximo que fica de suplicar.
Sente-o aproximar-se. Sente a sombra dele ameaçá-la.
— Eliminarei estes sofrimentos. Deixar-te-ei descansar. Plantarei até uma árvore sobre os
teus ossos. E a única coisa que tens de fazer — a voz atravessa o ar — é renderes-te.
Aquela palavra, como um rasgão no véu. E, apesar de toda a dor e do terror daquele
momento, Addie sabe que não irá ceder.
Já sobreviveu a coisas piores. Sobreviverá a coisas piores. Isto não passa do mau génio de um
deus.
Quando recupera o fôlego para falar, as palavras saem num sussurro irregular.
— Vai para o inferno.
Prepara-se, pergunta-se se a deixará apodrecer até ao fim, curvar o seu corpo até se
transformar num cadáver e deixá-la ali, um invólucro partido no chão da casa da idosa. Mas
surge apenas mais riso, baixo e retumbante, e depois nada, a noite prolongar-se no silêncio.
Addie tem medo de abrir os olhos, mas, quando o faz, descobre que está sozinha.
A dor desapareceu-lhe dos ossos. O seu cabelo solto recuperou o tom de avelã. As mãos,
antes arruinadas, são de novo jovens, suaves e fortes.
Levanta-se, a tremer, e volta-se para a lareira.
Mas o lume, tão bem vigiado, apagou-se.
Nessa noite, Addie enrosca-se na enxerga a desfazer-se, sob um cobertor puído que ninguém
reclamou, e pensa em Estele.
Fecha os olhos e inspira até quase conseguir cheirar as ervas que se agarravam ao cabelo da
velha, o jardim e a seiva na sua pele. Agarra-se à memória do sorriso retorcido de Estele, do seu
riso de corvo, da voz que usava quando falava com os deuses e daquela que tinha para com
Addie. Quando era nova, quando Estele a ensinou a não ter medo das tempestades, das sombras,
dos sons da noite.
Nova Iorque
19 de março de 2014

Addie encosta-se à janela, vendo o sol nascer sobre Brooklyn.


Pousa os dedos à volta de uma chávena de chá, saboreando o calor contra as palmas das
mãos. O vidro está embaciado do frio, os restos do inverno a agarrarem-se aos contornos do dia.
Traz vestida uma das sweatshirts de Henry, algodão com o logótipo da Columbia estampado.
Tem o cheiro dele. A livros antigos e café acabado de fazer.
Volta para o quarto descalça, onde Henry está deitado, de bruços, com os braços dobrados por
baixo da almofada, a face virada para o outro lado. E, nesse momento, parece-se imenso com
Luc, e, no entanto, não se parece nada com Luc. A semelhança entre ambos hesita, como visão
dupla. Os seus caracóis, espalhados como plumas pretas sobre a almofada branca,
transformando-se numa penugem mais rala na nuca. As costas sobem e descem, numa
regularidade resultante do curso suave e pouco profundo do sono.
Addie pousa a chávena na mesinha de cabeceira, entre os óculos de Henry e um relógio com
bracelete de couro. Passa o dedo pela orla de metal preto, pelos números dourados fixos no
mostrador preto. Oscila sob o seu toque, revela a pequena inscrição no verso.
Vive bem.
É percorrida por um calafrio minúsculo, e está prestes a pegar nele quando Henry geme na
almofada, um protesto suave dirigido à manhã.
Addie larga o relógio e volta para a cama, instalando-se ao seu lado.
— Olá. — Ele procura os óculos às apalpadelas, põe-nos, olha para ele e sorri, e esta é a parte
que nunca se desgastará. O conhecimento. O presente a empoleirar-se sobre o passado, em vez
de o apagar, de o substituir. Volta a puxá-la para si.
— Olá — sussurra ele para o seu cabelo. — Que horas são?
— Quase oito.
Henry queixa-se e aperta-a com mais força. Ele está quente, e Addie diz-lhe que desejava
poderem ficar assim o dia inteiro. Mas agora está acordado, com aquela energia imparável a
enrolar-se à sua volta como uma corda. Consegue senti-lo na tensão dos braços, na transferência
subtil do seu peso.
— Tenho de ir — diz ela, porque presume que é aquilo que se deve dizer quando se está na
cama de outra pessoa. Quando nos lembramos de como lá fomos parar. Mas não diz «Tenho de ir
para casa», e Henry capta a palavra em falta.
— Onde moras? — pergunta.
Em lado nenhum, pensa ela. Em todo o lado.
— Desenvencilho-me. A cidade está cheia de camas.
— Mas não tens um sítio teu.
Addie olha para a sweatshirt emprestada, todos os seus atuais pertences atirados para cima da
cadeira mais próxima.
— Não.
— Então podes ficar aqui.
— Depois de três encontros, estás a convidar-me para viver contigo?
Henry ri-se, porque é obviamente absurdo. Mas não é a coisa mais estranha nas suas vidas.
— Que tal então convidar-te a ficares... por enquanto?
Addie não sabe o que dizer. E, antes de conseguir pensar em alguma coisa, ele já saiu da
cama, abrindo a gaveta de baixo. Empurra o conteúdo para um dos lados, arranjando espaço.
— Podes pôr as tuas coisas aqui.
Olha para ela, subitamente hesitante.
— Tens coisas?
Addie acabará por explicar os pormenores da sua maldição, a forma como esta se contorce e
enrola à sua volta. Mas ele ainda não os conhece — não há necessidade. Para ele, a história dela
principiou agora mesmo.
— Na verdade, não vale a pena ter mais do que aquilo que se consegue transportar quando
não temos um sítio onde o pôr.
— Então, se arranjares coisas, se as quiseres, podes pô-las ali.
E, com essas palavras, dirige-se de forma sonolenta para o duche, e ela olha para o espaço que
Henry arranjou para ela e pergunta-se o que aconteceria se tivesse coisas para pôr lá dentro.
Desapareceriam imediatamente? Perder-se-iam lenta e despreocupadamente, como meias
engolidas por uma máquina de secar? Nunca se conseguiu agarrar a algo por muito tempo.
Apenas ao blusão de cabedal e ao anel de madeira, e sempre soube que era porque Luc queria
que tivesse ambos — porque os associara a ela, como presentes.
Vira-se e observa a roupa atirada para cima da cadeira.
Está manchada de tinta da High Line. Tem verde na camisa, uma mancha roxa no joelho das
calças de ganga. As botas também estão sarapintadas de amarelo e azul. Sabe que a tinta se irá
esbater, molhada numa poça de água ou simplesmente dissipada pelo tempo, mas é assim que as
memórias devem funcionar.
Presentes... e depois, pouco a pouco, já não.
Veste a roupa do dia anterior e pega no blusão de cabedal, mas, em vez de o enfiar, dobra-o
cuidadosamente e coloca-o na gaveta vazia. Fica ali, rodeado de espaço vazio, à espera de ser
preenchido.
Addie volta para a cama e quase pisa o caderno.
Encontra-se aberto no chão — deve ter deslizado da cama durante a noite —, e levanta-o
delicadamente, como se fosse feito de cinza e teias de aranha, em vez de papel e cola. Quase
espera que se desfaça sob o seu toque, e, quando arrisca abrir a capa, descobre as primeiras
páginas preenchidas. Addie arrisca de novo, passa os dedos levemente por cima das palavras,
sente a indentação da caneta, os anos escondidos por detrás de cada palavra.
Começa assim, escreveu ele por baixo do nome dela.
A primeira coisa de que ainda se lembra é da ida ao mercado. O pai no banco, ao seu lado, a
carroça carregada com as suas peças...
Sustém a respiração enquanto lê, com o som do duche a encher o quarto numa quietude
tranquila.
O pai conta-lhe histórias. Não se lembra das palavras, mas lembra-se da forma como as
dizia...
Addie endireita-se nesse ponto, lendo até ficar sem palavras, a caligrafia a dar lugar a página
após página de espaço vazio, à espera de ser preenchido.
Quando ouve Henry fechar a torneira, obriga-se a encerrar o caderno e volta a pousá-lo
suavemente, quase de forma reverencial, em cima da cama.
Fécamp, França
29 de julho de 1778

Pensar que podia ter vivido e morrido sem nunca ter visto o mar...
Mas não importa. Agora Addie está ali, com as falésias claras a erguerem-se à direita,
sentinelas de pedra na orla da praia, onde está sentada, com as saias espalhadas pela areia. Olha
para toda aquela extensão, a linha da costa a dar lugar à água, e a água a dar lugar ao céu. Claro
que viu mapas, mas tinta e papel não têm nada a ver com aquilo. Com o cheiro a sal, o murmúrio
das ondas, a atração hipnótica da maré. Com o alcance e a escala do mar e com a consciência de
que, para lá do horizonte, há mais.
Passar-se-á um século até atravessar o Atlântico, e, quando o fizer, perguntar-se-á se os
mapas estarão errados, começará a duvidar da própria existência de terra — mas, naquele
instante, Addie está simplesmente encantada.
Em tempos, o seu mundo tinha a dimensão de uma pequena aldeia no meio de França. Mas
continua a alargar-se. O mapa da sua vida desenrola-se, revelando montes e vales, vilas e cidades
e mares. Revelando Le Mans. Revelando Paris. Revelando aquilo.
Encontra-se em Fécamp há quase uma semana, passando os dias entre o pontão e a maré, e, se
alguém reparou na jovem estranha que anda sozinha na areia, não pareceu preocupado em
incomodá-la com isso. Addie vê os barcos chegar e partir e pergunta-se onde se dirigirão;
pergunta-se, também, o que aconteceria se embarcasse num, onde a conduziria. Em Paris, a
escassez de comida está a piorar, as sanções são piores, tudo cada vez pior. A tensão também se
propagou para fora da cidade, com a energia nervosa a chegar até ali, à costa. Mais um motivo,
diz Addie para si mesma, para navegar para longe dali.
E, no entanto.
Algo a retém, sempre.
Hoje, é a tempestade que se aproxima. Paira sobre o mar, enegrecendo o céu. Em alguns
pontos, o sol perpassa por entre as nuvens, uma linha de luz ardente a despenhar-se na água
cinzenta, cor de ardósia. Pega no livro, que jaz na areia, ao seu lado, e recomeça a ler.

Our revels now are ended. These our actors,


As I foretold you, were all spirits and
Are melted into air, into thin air:

É A Tempestade, de Shakespeare. De vez em quando, tropeça na cadência da peça, no estilo


estranho, na rima inglesa e na métrica ainda alheia à sua mente. Mas está a aprender, e de vez em
quando dá consigo a entrar no ritmo.

And, like the baseless fabric of this vision,


The cloud-capp’d towers, the gorgeous palaces,
The solemn temples, the great globe itself...

Os olhos começam a debater-se com a falta de luz.

Yea, all which it inherit, shall dissolve


And, like this insubstantial pageant faded,
Leave not a rack behind...

— «Somos feitos da matéria dos sonhos» — diz uma voz familiar atrás dela. — «E a nossa
breve existência é cercada pelo sono». — Um som suave, como um riso sem ar. — Bem, nem
todas as existências.
Luc aproxima-se dela como uma sombra.
Addie não lhe perdoou a violência da noite em Villon. Prepara-se para ela, neste instante,
apesar de se terem visto várias vezes nos anos que decorreram desde então, de terem feito uma
estranha espécie de trégua.
Mas sabe que não pode confiar nela quando Luc se senta na areia, ao seu lado, com um braço
preguiçosamente pousado em cima do joelho, a imagem da graciosidade lânguida, mesmo ali.
— Eu estava lá, sabes, quando ele escreveu este verso.
— Shakespeare? — Addie não consegue esconder a sua surpresa.
— Quem achas que ele chamava pela calada da noite, quando as palavras não surgiam?
— Estás a mentir.
— Estou a vangloriar-me — diz ele. — Não é a mesma coisa. O nosso Williamandava à
procura de um protetor, e eu fiz-lhe a vontade.
A tempestade é iminente, uma cortina de chuva a deslizar em direção à costa.
— É mesmo assim que te vês? — pergunta ela, sacudindo areia do livro. — Como um
benfeitor maravilhoso?
— Não amues simplesmente porque escolheste mal.
— Ai escolhi? — réplica ela. —Afinal de contas, sou livre.
— E não lembrada.
Mas ela está pronta para as farpas.
— Como a maior parte das coisas.
Addie olha para o mar.
— Adeline — repreende-a —, és mesmo teimosa. E, no entanto, ainda nem se passaram cem
anos. Pergunto-me como te sentirás quando decorrerem mais cem.
— Não sei — diz ela maliciosamente. — Acho que terás de me perguntar na altura.
A tempestade chega à costa. As primeiras gotas começam a cair, e Addie aperta o livro contra
o peito, protegendo as páginas da água.
Luc levanta-se.
— Vem comigo — diz, estendendo-lhe a mão. É mais uma ordem do que um convite, mas a
chuva está a transformar-se rapidamente de promessa em torrente regular, e ela só tem aquele
vestido. Levanta-se sem a ajuda dele, sacudindo a areia das saias.
— Por aqui.
Condu-la através da vila, em direção a um edifício que se perfila, o campanário abobadado a
perfurar as nuvens mais baixas. É, de tudo o que seria possível imaginar, uma igreja.
— Só podes estar a brincar.
— Não sou eu que estou a ficar molhado — diz ele. E, de facto, não está. Ela está encharcada
na altura em que chegam à cobertura de pedra, mas Luc está seco. A chuva ainda nem sequer o
atingiu.
Sorri, alongando a mão para a porta.
Não importa que a igreja esteja trancada. Mesmo que estivesse presa com correntes,
continuaria a estar aberta para ele. Limitações como estas, Addie aprendeu, não significam nada
para as trevas.
Lá dentro, a ar está abafado, com as paredes de pedra a reterem o calor de verão. Está
demasiado escuro para ver mais do que os contornos dos bancos, a figura na cruz.
Luc abre os braços.
— Contemplai a casa do Senhor!
A sua voz ecoa pela câmara, baixa e sinistra.
Addie sempre se perguntou se Luc poderia pisar solo sagrado, mas o som dos seus sapatos no
pavimento da igreja é a resposta a essa pergunta.
Addie percorre o corredor, mas não consegue dissipar a estranheza que o local lhe provoca.
Sem os sinos, o órgão, os corpos amontoados para as liturgias, a igreja parece abandonada.
Mais um túmulo do que um espaço de adoração.
— Queres confessar os teus pecados?
Luc deslocou-se com a facilidade das sombras na escuridão. Já não está atrás dela, mas
sentado na primeira fila, os braços estendidos ao longo do encosto do banco, as pernas
alongadas, com os tornozelos cruzados numa posição preguiçosa.
Addie foi ensinada a ajoelhar-se na capelinha de pedra no centro de Villon, a passar os dias
vergada nos bancos de Paris. Ouviu os sinos e o órgão e os apelos à oração. E, no entanto, apesar
de tudo, nunca compreendeu a atração de tudo aquilo. Como pode um teto aproximar-nos do
paraíso? Se Deus é tão grande, porquê construir paredes para o conter?
— Os meus pais eram crentes — reflete, passando os dedos pelos bancos. — Falavam sempre
de Deus. Da Sua força, da Sua misericórdia, da Sua luz. Diziam que estava em todo o lado, em
tudo. — Addie para diante do altar. — Acreditavam em tudo tão facilmente...
— E tu?
Addie olha para cima, para os painéis de vitral, as imagens pouco mais do que fantasmas sem
o sol para as iluminar. Queria acreditar. Ouvia e esperava ouvir a Sua voz, sentir a Sua presença,
do mesmo modo que poderia sentir o sol nos ombros ou o trigo entre as mãos. Do mesmo modo
que sentia a presença dos deuses antigos que Estele tanto venerava. Mas ali, na casa de pedra
fria, nunca sentiu nada.
Abana a cabeça e diz em voz alta:
— Nunca compreendi porque deveria acreditar em algo que não conseguia sentir, ouvir ou
ver.
Luc ergue uma sobrancelha.
— Acho — diz ele — que lhe chamam fé.
— Diz o diabo na casa do Senhor. — Addie olha na sua direção enquanto o diz e capta um
vislumbre momentâneo de amarelo no verde constante.
— Uma casa é uma casa — diz ele, irritado. — Esta pertence a todos ou a ninguém. E agora
achas que sou o diabo? Não tinhas assim tanta certeza no bosque.
— Talvez — diz ela — me tenhas transformado numa crente.
Luc inclina a cabeça para trás, um sorriso perverso a contorcer-se na boca.
— E achas que, se eu sou real, então ele também é. A luz da minha sombra, o dia da minha
noite? E estás convencida de que, se tivesses rezado a ele, e não a mim, ele te teria mostrado a
sua bondade e a sua misericórdia.
Addie perguntou-se isso mesmo centenas de vezes, apesar de, obviamente, não o dizer.
As mãos de Luc deslizam do banco enquanto se inclina para a frente.
— E agora — acrescenta — nunca irás saber. Na minha opinião — diz, erguendo-se —,
bem... diabo é simplesmente uma palavra nova para uma ideia antiga. Quanto a Deus, bom, se
basta um toque de dramatismo e um pouco de requinte dourado...
Estala os dedos, e subitamente os botões do seu casaco, as fivelas dos seus sapatos, a costura
do colete já não são pretos, mas dourados. Estrelas polidas contra uma noite sem luar.
Sorri e depois sacode a filigrana como se fosse pó.
Ela vê-a cair, volta a olhar de novo para cima, para ele, a centímetros do seu rosto.
— Mas esta é a diferença entre nós, Adeline — sussurra, com os dedos a aflorarem-lhe o
queixo. — Eu responderei sempre.
Ela estremece, a contragosto. Ao toque demasiado familiar na sua pele, ao verde medonho
dos seus olhos, ao seu sorriso cruel, feroz.
— Além disso — diz ele, com os dedos a deslizarem-lhe pelo rosto —, todos os deuses têm
um preço. Não sou o único no negócio das almas. — Luc abre a mão, de um dos lados do corpo,
e a luz floresce no ar, mesmo no centro da palma. — Ele deixa as almas definharem nos peitoris.
Eu rego-as.
A luz deforma-se e enrola-se.
— Ele faz promessas. Eu pago à cabeça.
Flameja uma vez, súbita e brilhante, e depois aproxima-se, assumindo uma forma sólida.
Addie sempre se perguntou que aspeto teria uma alma.
É uma palavra tão grandiosa, alma. Como deus, como tempo, como espaço, e, quando se
cansou de a imaginar, invocou imagens de relâmpagos ou de raios de sol através da poeira, de
tempestades sob a forma humana, de um branco vasto e ilimitado.
A verdade é muito mais pequena.
A luz na mão de Luc é um berlinde, vítreo e cintilante, com uma luz interior fraca.
— Só isso?
E, no entanto, Addie não consegue afastar o olhar da esfera frágil. Sente-se alongar a mão
para ela, mas ele recua, para longe do seu alcance.
— Não te deixes enganar pelas aparências. — Roda o globo reluzente entre os dedos. —
Olhas para mim e vês um homem, apesar de saberes que não sou nada disso. Esta forma é apenas
um aspeto, concebido para o observador. — A luz tremeluz e bruxuleia, com o orbe a achatar-se
num disco. E depois num anel.
O anel dela. A madeira de freixo cintila, e o coração dói-lhe quando a vê, quando o segura,
quando sente a superfície gasta contra a pele. Mas fecha as mãos em punhos para se impedir de
alongar o braço de novo.
— Qual é o seu aspeto verdadeiro?
— Posso mostrar-te — ronrona ele, deixando que a luz pouse na mão. — Diz a palavra, e
mostrar-te-ei a tua alma nua. Rende-te, e prometo que a última coisa que verás será a verdade.
E ali está de novo.
Uma vez sal, depois mel, cada uma delas concebida para disfarçar veneno.
Addie olha para o anel, permite-se demorar-se nele uma última vez e depois obriga-se a olhar
para lá da luz, em direção às trevas.
— Sabes — diz ela —, acho que prefiro viver e imaginar.
A boca de Luc contorce-se, e ela não consegue perceber se é de raiva ou de divertimento.
— Como queiras, minha querida — diz ele, apagando a luz entre os dedos.
Nova Iorque
23 de março de 2014

Addie encontra-se sentada numa cadeira de couro, no canto de The Last Word, aninhada, com o
ronronar suave do gato a emanar das prateleiras, algures atrás da sua cabeça, enquanto vê os
clientes inclinarem-se para Henry como flores em direção ao sol.
Quando se sabe uma coisa, começamos a vê-la por todo o lado.
Alguém diz as palavras elefante roxo, e de repente avistamo-lo em montras de lojas e T-
shirts, bonecos de peluche e cartazes e perguntamo-nos como nunca tínhamos reparado.
Acontece o mesmo com Henry e com o pacto que fez.
Um homem, a rir-se de tudo o que ele diz.
Uma mulher, a irradiar, iluminada pela alegria.
Uma adolescente arrisca tocar-lhe no ombro, no braço, corando, numa atração flagrante.
Apesar de tudo, Addie não tem ciúmes.
Viveu demasiado e perdeu demasiado, e o pouco que teve foi-lhe arrebatado ou roubado,
nunca ficou para si. Aprendeu a partilhar — e, no entanto, sempre que Henry olha na sua
direção, sente uma onda de calor agradável, tão bem-vinda como o aparecimento súbito do sol
por entre as nuvens.
Addie soergue as pernas na cadeira, com um livro de poemas no colo. Trocou a roupa
manchada de tinta por um novo par de calças de ganga pretas e uma camisola demasiado grande,
arrebatada de uma loja de artigos usados, enquanto Henry estava a trabalhar. Mas ficou com as
botas, com as pintinhas de amarelo e azul, como recordação da noite anterior, a coisa mais
próxima que tem de uma fotografia, de uma memória material.
— Pronta?
Olha para cima, vê o letreiro da loja já voltado para fechado e Henry de pé, junto à porta, com
o casaco no braço. Estende-lhe a mão, ajuda-a a sair da cadeira de couro, que, explica, tem a
particularidade de engolir pessoas.
Saem e sobem os quatro degraus que conduzem à rua.
— Onde vamos? — pergunta Addie.
É cedo, e Henry está carregado de uma energia inquieta. Parece piorar por volta do
crepúsculo, sendo o pôr do sol um indicador inequívoco da passagem de um dia, do tempo a
decorrer com o desaparecimento da luz.
— Já foste à Ice Cream Factory?
— Parece divertido.
O rosto dele desanima.
— Já lá foste.
— Não me importo de ir outra vez.
Mas Henry abana a cabeça e diz:
— Quero mostrar-te algo novo. Há algum sítio onde não tenhas estado? — pergunta, e,
passado um longo instante, Addie encolhe os ombros.
— Tenho a certeza de que deve haver — diz ela. — Mas ainda não o encontrei.
Queria que soasse divertido, leve, mas Henry franze o sobrolho, absorto em pensamentos, e
olha em volta.
— Muito bem — diz, agarrando-lhe na mão. — Vem comigo.
Uma hora mais tarde, encontram-se na Grand Central.
— Detesto ter de to dizer — diz ela, olhando em volta para a estação concorrida —, mas já
aqui estive. Como a maior parte das pessoas.
Mas Henry lança-lhe um sorriso que é marotice pura.
— Por aqui.
Segue-o pelas escadas rolantes até ao nível inferior da estação. Serpenteiam, de mãos dadas,
por entre um mar consistente de viajantes noturnos, em direção ao animado átrio da zona da
restauração, mas Henry para abruptamente, sob uma interseção de arcos de tijolo, com os
corredores a ramificarem-se em todas as direções. Puxa-a para um dos cantos rodeados por
pilares, onde as arcadas se dividem, curvando-se lá em cima e de través, e volta-a para a parede
de tijolo.
— Fica aqui — diz e começa a afastar-se.
— Onde vais? — pergunta ela, já a virar-se para o seguir.
Mas Henry regressa, encostando-lhe os ombros ao arco.
— Fica aqui, assim — diz ele. — E escuta.
Addie vira a orelha para a parede de tijolo, mas não consegue ouvir nada além do som do
arrastar de passos, da algazarra e da barulheira da multidão da noite. Olha por cima do ombro.
— Henry, eu não...
Mas Henry desapareceu. Percorreu o átrio a correr até à extremidade oposta do arco, talvez a
uns trinta passos de distância. Olha para trás, para ela, e depois volta-se e enterra o rosto no
canto, olhando para o mundo inteiro como uma espécie de jogo de escondidas, contando até dez.
Addie sente-se ridícula, mas inclina-se para junto da parede de tijolo e espera e escuta.
E então, como algo impossível, ouve a voz dele.
— Addie.
Fica estupefacta. A palavra soa baixo, mas de forma nítida, como se ele estivesse mesmo ao
seu lado.
— Como consegues fazer isto? — pergunta ao arco. E consegue ouvir o sorriso na voz dele
quando responde.
— O som acompanha a curva do arco. Um fenómeno que acontece quando os espaços se
inclinam na perfeição. Chama-se galeria sussurrante.
Addie está maravilhada. Trezentos anos, e ainda há coisas novas a aprender.
— Fala comigo — diz de novo a voz contra a fiada de tijolos.
— O que poderei dizer? — sussurra ela contra a parede.
— Ora... — diz Henry, baixinho, ao ouvido dela. — Porque não me contas uma história?
Paris, França
29 de julho de 1789

Paris está em chamas.


Lá fora, o ar tresanda a pólvora e a fumo, e, embora a cidade nunca tenha sido propriamente
silenciosa, nos últimos quinze dias o barulho tem sido incessante. São saraivadas de mosquetes e
disparos de canhão, são soldados a gritar ordens e a retaliação carregada de boca em boca.
Vive la France. Vive la France. Vive la France.
Duas semanas desde a Tomada da Bastilha, e a cidade parece determinada a dividir-se ao
meio. E, no entanto, tem de continuar, tem de sobreviver, e todos os que se encontram nela estão
entregues à descoberta de um caminho por entre a tempestade diária.
Addie decidiu deslocar-se preferencialmente de noite.
Deambula por entre a escuridão, com um sabre a pender-lhe da cintura e um chapéu de três
bicos sobre a testa. As roupas, surripiou-as a um homem que fora morto na rua, o tecido rasgado
e a mancha escura no estômago escondidos sob um casaco recuperado de outro cadáver. Os
pedintes não podem ser esquisitos, e é demasiado perigoso viajar como mulher sozinha. Pior
ainda, nestes tempos, fazer de conta que se é nobre — é preferível passar despercebido de outras
formas.
Uma vaga varreu a cidade, outrora triunfante e intoxicante, e, com o tempo, Addie aprenderá
a saborear as mudanças no ar, a sentir a linha entre o vigor e a violência. Mas, nessa noite, a
rebelião ainda é nova, a energia estranha e impossível de interpretar.
Quanto à cidade em si, as avenidas de Paris transformaram-se todas num labirinto, com o
levantamento súbito de barreiras e barricadas a transformar todos os caminhos numa espécie de
becos sem saída. Não é, portanto, surpreendida, quando, ao dobrar outra esquina, depara com um
monte de caixas e destroços a arder, um pouco adiante.
Addie pragueja baixinho, está prestes a voltar para trás, quando ouve botas na rua, atrás de si,
e uma arma dispara, acertando na barricada, por cima da sua cabeça.
Vira-se para dar de caras com meia-dúzia de homens a barrarem-lhe a retirada, vestidos com a
indumentária sarapintada da rebelião. Os seus mosquetes e sabres brilham pesadamente sob a luz
noturna. Sente-se, então, grata por as suas roupas terem outrora pertencido a um homem do
povo.
Addie pigarreia, tendo o cuidado de tornar a voz mais grave, rude, enquanto grita Vive la
France!
Os homens devolvem a aclamação, mas, para sua consternação, não recuam. Em vez disso,
continuam a avançar para ela, com as mãos pousadas nas armas. À luz das chamas, os seus olhos
afiguram-se brilhantes do vinho e da energia inexprimível da noite.
— O que andas a fazer por aqui? — pergunta um.
— Pode ser um espião — diz outro. — Há muitos soldados por aí a desfilar em roupas
comuns. A roubarem os corpos dos mortos valorosos.
— Não quero problemas — grita ela. — Estou simplesmente perdido. Deixem-me passar e
desaparecerei destas paragens.
— E regressarás com mais dez — murmura o segundo.
— Não sou espião, nem soldado, nem cadáver — grita ela de volta. — Andava apenas à
procura...
— ... de sabotagem — atalha um terceiro.
— Ou de assaltar as nossas reservas — sugere outro.
Já não estão a gritar. Não precisam. Aproximaram-se o suficiente para falar em níveis
normais, empurrando-a contra a barricada a arder. Se conseguisse apenas passar por eles, fugir,
para longe da vista e da mente — mas não há maneira de correr. As ruas laterais foram todas
barradas. As caixas ardem, quentes, atrás do seu corpo.
— Se és amigo, prova-o.
— Pousa a espada.
— Tira o chapéu. Deixa-nos ver a tua cara.
Addie engole em seco e atira o chapéu para o lado, na esperança de que a escuridão seja
suficiente para esconder a suavidade dos seus traços. Mas, nesse mesmo instante, a barricada
desaba atrás dela, com uma das vigas a dar lugar às chamas, e, por um instante, o fogo incendeia
o ar, e ela sabe que a luz é suficientemente forte para tornar tudo visível. Sabe-o pela mudança
nos seus rostos.
— Deixem-me passar — volta a dizer, com a mão a descer até à espada, na anca. Sabe como
empunhá-la, também sabe que eles são cinco e ela apenas uma e que, se partir para o confronto,
só conseguirá sobreviver à situação passando por eles. A promessa de sobrevivência é um
escasso consolo face à perspetiva do que poderá acontecer primeiro.
Aproximam-se, e Addie empunha a espada.
— Para trás — ruge.
E, para sua surpresa, os homens detêm-se. Os seus passos interrompem-se, e uma sombra
passa-lhes pelos rostos, com as expressões a aquietarem. As mãos caem das armas, as cabeças
tombam sobre os ombros, e a noite silencia, à exceção do estampido das caixas a arder e do
surgimento de uma voz atrás dela, como o vento.
— Os seres humanos estão muito pouco preparados para a paz.
Vira-se, de espada ainda em riste, e depara com Luc, o seu perfil negro contra as chamas. Não
se afasta da espada, levanta simplesmente a mão e passa-a pelo aço com toda a elegância de um
amante a aflorar pele, de um músico a acariciar um instrumento. Addie quase espera que a
lâmina cante sob os seus dedos.
— Minha Adeline — diz a escuridão —, tens realmente queda para te meter em sarilhos. —
Aquele olhar verde intenso desvia-se para os homens imobilizados. — Que sorte eu andar por
aqui.
— Tu és a própria noite — papagueia ela. — Não devias estar por todo o lado?
Um sorriso acende-se no rosto dele.
— Que bela memória. — Os dedos fecham-se à volta da espada, e esta começa a enferrujar.
— Deve ser muito cansativo.
— De todo — diz ela secamente. — É uma bênção. Pensa em tudo o que há para aprender. E
eu, com todo o tempo q...
É interrompida por uma saraivada de tiros ao longe, a resposta de um canhão, pesado como
um trovão. Luc franze a testa de desagrado, e ela diverte-se por o ver agitado. Ouve-se de novo o
canhão, e ele agarra-a pelo pulso.
— Anda — diz ele —, nem me consigo ouvir a pensar.
Roda rapidamente sobre os calcanhares e arrasta-a atrás de si. Mas, em vez de avançar, mete
por uma rua lateral, penetrando na sombra profunda da parede mais próxima. Addie salta para
trás, esperando esbarrar contra a pedra, mas a parede abre-se, e o mundo cede, e, antes de
conseguir respirar, recua, Paris desapareceu, e Luc também.
E fica mergulhada numa escuridão total.
Não é tão silencioso como a morte, não é tão vazio ou calmo. Existe violência naquele vazio
negro e cedo. São asas de pássaros a bater-lhe contra a pele. É a fúria do vento no seu cabelo.
São milhares de vozes a sussurrar. É o medo, e é estar a cair, e é uma sensação selvagem, feroz,
e, na altura em que pensa em gritar, a escuridão volta a desaparecer, a noite forma-se de novo, e
Luc está mais uma vez ao seu lado.
Addie vacila, encosta-se à ombreira de uma porta, sentindo-se indisposta e vazia e confusa.
— O que foi aquilo? — pergunta, mas Luc não responde. Encontra-se a alguns passos dela,
com as mãos abertas sobre a balaustrada de uma ponte, enquanto olha por cima do rio.
Mas não é o Sena.
Não há barricadas em chamas. Não há tiros de canhão. Não há homens à espreita, com armas
à ilharga. Apenas um rio a correr sob uma ponte estranha e edifícios estranhos a erguerem-se ao
longo de margens estranhas, com os telhados forrados a telhas vermelhas.
— Assim está melhor — diz ele, ajeitando os punhos. Inesperadamente, no instante do nada,
mudou de roupa, exibindo agora um colarinho subido, as peças cortadas numa seda mais suave,
enquanto Addie enverga a mesma túnica mal-amanhada, recuperada de uma rua de Paris.
Um casal passa de braço dado, e ela capta apenas os altos e baixos de uma língua estrangeira.
— Onde estamos? — pergunta.
Luc olha por cima do ombro e diz algo no mesmo tom irregular, antes de o repetir em francês.
— Estamos em Florença.
Florença. Já ouviu esse nome antes, mas sabe pouco acerca dele, além do óbvio — que não
fica em França, mas na Toscana.
— O que fizeste? — pergunta. — Como é que... Não, esquece. Leva-me simplesmente de
volta.
Luc arqueia uma sobrancelha.
— Adeline, para alguém que só tem tempo, estás sempre com pressa.
E com essas palavras afasta-se tranquilamente, e Addie não tem outro remédio senão segui-lo.
Absorve a estranheza da nova cidade. Florença é toda feita de formas estranhas e contornos
pronunciados, cúpulas e pináculos, paredes de pedra branca e telhados cobertos de tons
acobreados. É um lugar pintado numa paleta diferente, com música tocada num acorde distinto.
O seu coração vacila perante a sua beleza, e Luc sorri como se conseguisse captar o seu
deslumbramento.
— Preferias as ruas a arder de Paris?
— Pensei que gostavas de guerra.
— Aquilo não é guerra — diz brevemente. — É apenas uma escaramuça.
Segue-o até um grande espaço aberto, uma praça cheia de bancos de pedra, o ar pesado do
aroma das flores de verão. Luc caminha à frente, a imagem de um cavalheiro a aproveitar o ar
noturno, abrandando apenas quando vê um homem, com uma garrafa de vinho debaixo do braço.
Contrai os dedos, e o homem muda de rumo, aproximando-se dele como um cão. Luc fala nessa
outra língua, um dialeto que ela acabará por conhecer como florentino, e, embora ainda não
conheça as palavras, identifica o fascínio na voz dele, aquele lustro leve que ganha forma no ar
que os envolve. Também identifica o ar sonhador nos olhos do florentino quando entrega o vinho
com um sorriso plácido e se afasta distraidamente.
Luc senta-se num banco e faz aparecer dois copos do nada.
Addie não se senta. Fica de pé e vê-lo retirar a rolha da garrafa, verter o vinho e dizer:
— Porque haveria de gostar de guerra?
É a primeira vez, pensa Addie, que ele lhe fez uma pergunta sincera, uma pergunta não
destinada a acicatar, a exigir, a forçar.
— Não és um deus do caos?
A sua expressão azeda.
— Sou um deus de promessas, Adeline, e as guerras são amos terríveis. — Oferece-lhe um
copo e, vendo que ela não o aceita, ergue o seu, como que para brindar a ela. — A uma vida
longa.
Addie não se contém. Abana a cabeça, perplexa.
— Umas noites, gostas de me ver sofrer, para eu ceder. Outras, pareces desejar poupar-me a
isso. Gostava muito que te decidisses.
Uma sombra passa-lhe pelo rosto.
— Acredita em mim, minha querida, não irias gostar. — Um pequeno arrepio percorre-a
enquanto ele leva o copo de vinho até aos lábios. — Não confundas isto, nada disto, com
bondade, Adeline. — Os seus olhos brilham de travessura. — Quero apenas ser aquele que te faz
ceder.
Ela olha em volta, para a praça rodeada de árvores, iluminada por candeias, com o luar a
brilhar nos telhados vermelhos.
— Bem, então terás de te esforçar mais...
Mas para de falar quando a sua atenção regressa ao banco de pedra.
— Oh, raios — murmura, olhando em volta para a praça vazia.
Porque, evidentemente, Luc desapareceu.
Nova Iorque
6 de abril de 2014

— Deixou-te pura e simplesmente ali? — diz Henry, chocado.


Addie tira uma batata frita, rodando-a entre os dedos.
— Há sítios piores.
Estão sentados a uma mesa de tampo elevado num pretenso pub — o que passa por pub fora
do Reino Unido — a partilhar uma dose de fish-and-chips com vinagre e uma caneca de cerveja
quente. Um empregado de mesa passa e sorri para Henry.
Duas raparigas a caminho da casa de banho abrandam quando se aproximam da sua órbita e
ficam a olhar, enquanto voltam a andar.
Uma fiada de palavras paira de uma mesa próxima, o staccato baixo e rápido do alemão, e a
boca de Addie desenha um sorriso.
— O que foi? — pergunta Henry.
Ela inclina-se para a frente.
— Aquele casal. — Faz um sinal com a cabeça na sua direção. — Estão a discutir. Ao que
parece, o tipo dormiu com a secretária. E com a assistente. E com a professora de pilates. A
mulher sabia das duas primeiras, mas está furiosa por causa da terceira, porque frequentam as
aulas de pilates no mesmo ginásio.
Henry olha para ela, assombrado.
— Quantas línguas sabes?
— As suficientes — diz ela, mas ele parece mesmo interessado em saber, por isso Addie
enumera-as, tocando nas pontas dos dedos. — Francês, claro. E inglês. Grego e latim. Alemão,
italiano, espanhol, checo, um pouco de português, embora não seja perfeito.
— Davas uma espia fantástica.
Addie arqueia a sobrancelha atrás da cerveja.
— E quem te diz a ti que não fui?
Os pratos estão vazios quando olha em volta e vê o empregado enfiar-se na cozinha.
— Anda — diz ela, agarrando-lhe na mão.
Henry franze o sobrolho.
— Mas não pagámos.
— Eu sei — diz ela, saltando do banco —, mas, se formos agora, ele irá pensar que se
esqueceu apenas de levantar a mesa. Não se irá lembrar.
É este o problema numa vida como a de Addie.
Passou tanto sempre sem raízes que já não sabe como as fazer crescer.
Está tão habituada a perder coisas que já não sabe bem como as manter.
Como ocupar espaço num mundo com a sua dimensão.
— Não — diz Henry. — Ele não se vai lembrar de ti. Mas vai lembrar-se de mim. Não sou
invisível, Addie. Sou precisamente o oposto de invisível.
Invisível. A palavra aflora-lhe a pele.
— Eu também não sou invisível — diz ela.
— Sabes o que quero dizer. Não posso simplesmente andar por aí sem dar nas vistas. E,
mesmo que pudesse — diz ele, puxando da carteira —, continuaria a ser incorreto.
A palavra atinge-a como um golpe, e está de volta a Paris, dobrada sobre si mesma, de fome.
Está em casa do marquês, a jantar, vestida com roupas roubadas, o estômago a contorcer-se
enquanto Luc a lembra de que alguém irá pagar por cada dentada sua.
A cara arde-lhe de vergonha.
— Muito bem — diz ela, tirando uma mão-cheia de notas de vinte do bolso. Deixa-as em
cima da mesa. — Melhor? — mas, quando olha para Henry, a ruga na sua testa é apenas mais
profunda.
— Onde arranjaste esse dinheiro?
Não lhe quer dizer que saiu de uma loja de marca e entrou numa loja de penhores, deslocando
peças de uma para a outra. Não quer explicar que tudo o que tem — excetuando ele — é
roubado. E que, num certo sentido, ele também é. Addie não quer ver o seu ar de reprovação, não
quer pensar em quão pode merecido pode ser.
— E isso importa? — pergunta.
E Henry diz:
— Sim — com tal convicção que ela fica violentamente corada.
— Achas que quero viver assim? — Addie cerra os dentes. — Sem emprego, sem laços, sem
forma de me agarrar a alguém ou a alguma coisa? Achas que gosto de estar tão só?
Henry parece magoado.
— Não estás sozinha — diz ele. — Tens-me a mim.
— Eu sei, mas não devias ter de fazer tudo, de ser tudo.
— Não me importo...
— Mas importo-me eu! — explode ela, abalada pela raiva na sua própria voz. — Sou uma
pessoa, não um animal de estimação, Henry, e não preciso de que olhes por mim ou de que me
mimes. Faço o que tenho de fazer, e nem sempre é bonito, e nem sempre é justo, mas é o modo
como sobrevivo. Lamento imenso que não aproves. Mas sou assim. É assim que as coisas
funcionam para mim.
Henry abana a cabeça.
— Mas não vão funcionar para nós.
Addie recua como se tivesse sido atingida. Subitamente, o pub tornou-se demasiado
barulhento, demasiado cheio, e não consegue ficar ali, não consegue ficar parada, por isso vira-se
e sai porta fora de rompante.
No instante em que o ar da noite a atinge, sente-se mal.
O mundo balança, volta a equilibrar-se... e, algures entre um passo e o seguinte, a irritação
evapora-se, e sente-se apenas cansada e triste.
Não compreende como a noite pôde correr mal.
Não compreende o peso súbito no peito, até perceber o que é — medo. Medo de ter errado, de
ter deitado fora a única coisa que sempre desejou. Medo de isso ser frágil ao ponto de se desfazer
com toda aquela facilidade.
Mas depois ouve passos, sente Henry aproximar-se dela.
Não diz nada, caminha apenas, meio passo atrás, e é um novo tipo de silêncio. O silêncio
depois das tempestades, quando os danos ainda não foram avaliados.
Addie limpa uma lágrima da face.
— Dei cabo de tudo?
— De tudo o quê? — pergunta ele.
— De nós.
— Addie. — Agarra-a pelo ombro. Ela vira-se, esperando ver o seu rosto raiado de raiva, mas
está calmo, suave. — Foi apenas uma discussão. Não é o fim do mundo. E, certamente, não é o
nosso fim.
Sonha com isto há trezentos anos.
Sempre pensou que seria fácil.
O oposto de Luc.
— Não sei como estar com alguém — sussurra. — Não sei ser uma pessoa normal.
A boca dele desenha um sorriso desajeitado.
— És incrível e forte e teimosa e genial. Mas acho que se pode dizer com segurança que
nunca serás normal.
Caminham, de braço dado, pelo ar fresco da noite.
— Voltaste a Paris? — pergunta Henry.
É um ramo de oliveira, uma ponte construída, e ela sente-se grata por isso.
— Acabei por voltar — diz ela.
Demorara muito mais tempo a regressar, sem a ajuda de Luc ou o seu desejo ingénuo de
chegar à cidade, e tem vergonha de dizer que não se apressou a fazê-lo. De que, mesmo que Luc
a quisesse abandonar, deixando-a ali, em Florença, ao fazê-lo, quebrou uma espécie de selo. De
outra forma exasperante, obrigou-a a ser livre.
Até esse momento, Addie nunca concebera abandonar França. É absurdo pensar nisso agora,
mas o mundo parecia muito mais pequeno na altura. E depois, subitamente, não era.
Talvez ele a quisesse lançar ao caos.
Talvez pensasse que ela estava a ficar demasiado confortável, a tornar-se teimosa.
Talvez quisesse que ela o voltasse a chamar. Para lhe suplicar que a deixasse regressar.
Talvez talvez talvez — mas nunca saberá.
Veneza
29 de julho de 1806

Addie acorda para a luz solar, envolta em lençóis de seda.


Sente os membros de chumbo, a cabeça cheia de musselina. O tipo de peso que resulta de
demasiado sol e demasiado sono.
Está um calor terrível em Veneza, muito mais do que alguma vez em Paris.
A janela está aberta, mas nem a brisa leve nem as cobertas de seda são suficientes para
dissipar a temperatura sufocante. É apenas manhã, e o suor já se lhe acumula na pele nua.
Apavora-a a ideia de chegar ao meio-dia enquanto se arrasta para fora do sono e vê Matteo
empoleirado à beira da cama.
É igualmente belo à luz do dia, beijado pelo sol e forte, mas sente -se menos perturbada pelos
seus traços adoráveis do que pela estranha calma do momento.
As manhãs são normalmente perturbadas por pedidos de desculpa, confusão, o dia a seguir ao
esquecimento. Por vezes são dolorosas e sempre estranhas.
Mas Matteo parece absolutamente imperturbado.
Não se lembra dela, claro, essa parte é evidente — mas a sua presença ali, aquela estranha na
sua cama, não o parece nem assustar nem incomodar. Está apenas concentrado no bloco de
desenho, que equilibra no joelho, o carvão a deslizar graciosamente pelo papel. É apenas quando
o seu olhar se vira para ela e depois de novo para baixo que se apercebe de que a está a desenhar.
Não faz qualquer gesto para se tapar, para alcançar a combinação lançada sobre a cadeira ou o
roupão fino aos pés da cama. Há muito tempo que Addie não sente vergonha do seu corpo. Na
verdade, acabou por apreciar ser admirada. Talvez seja o abandono natural que vem com o tempo
ou a permanência da sua forma ou a libertação que decorre de saber que os seus observadores
não se irão lembrar.
Afinal, existe liberdade em ser esquecida.
E, no entanto, Matteo continua a desenhar, com movimentos rápidos e fáceis.
— O que estás a fazer? — pergunta delicadamente, e ele afasta o olhar do papel.
— Desculpa — diz. — A tua imagem. Tive de a captar.
Addie franze o sobrolho, começa a levantar-se, mas ele emite um som abafado e diz:
— Ainda não — e ela precisa de toda a sua força para ficar ali, na cama, as mãos enredadas
nos lençóis até ele suspirar e pôr a obra de lado, os olhos iluminados com o brilho único dos
artistas.
— Posso ver? — pergunta no italiano melódico que aprendeu.
— Ainda não está acabado — diz ele, mas, ainda assim, entrega-lhe o bloco.
Addie fica a olhar para o desenho. Os traços são fáceis, imprecisos, um estudo rápido por uma
mão talentosa.
O seu rosto mal está desenhado, quase abstrato nos gestos de luz e sombra.
É ela — e não é ela.
Uma imagem, distorcida pelo filtro do estilo de alguém. Mas consegue ver-se nela. Da curva
da face à forma dos ombros, o cabelo desalinhado pelo sono e as pintas a carvão espalhadas pelo
rosto. Sete sardas dispersas, como estrelas.
Aflora o carvão espalhado ao fundo da página, onde os membros se dissolvem nos lençóis da
cama, sente-o manchar-lhe a pele.
Mas, quando afasta a mão do bloco, o polegar está sujo, mas a linha nítida. Não deixou
qualquer marca. E, no entanto, deixou. Deixou uma impressão em Matteo, e ele deixou-a
impressa no papel.
— Gostas? — pergunta ele.
— Sim — murmura, resistindo ao impulso de rasgar o desenho do bloco e de o levar consigo.
Todos os centímetros do seu corpo querem conservá-lo, guardá-lo, olhar para a imagem como
Narciso no lago. Mas, se o levar agora, acabará por desaparecer ou pertencer-lhe-á a ela, e a ela
apenas, e então será o mesmo que ter-se perdido, desaparecido.
Se Matteo guardar o desenho, esquecerá a fonte, mas não o esboço em si. Talvez regresse a
ele quando ela tiver desaparecido e se pergunte quem é a mulher deitada nos seus lençóis e,
mesmo que pense que é produto de uma folia ébria, de algum sonho febril, a sua imagem
continuará a estar ali, em carvão sobre papel, um palimpsesto sob uma obra terminada.
Será real, e ela também.
Por isso Addie estuda o desenho, grata pelo prisma da memória, e devolve-o ao artista.
Levanta-se, procurando a roupa.
— Passámos um bom bocado? — pergunta Matteo. — Confesso que não me consigo lembrar.
— Eu também não — mente ela.
— Bom — diz ele com um sorriso dissoluto —, então devemos ter passado um excelente
bocado.
Beija-lhe o ombro nu, e o coração dela agita-se, com o corpo a aquecer com a recordação da
noite anterior. Agora é uma estranha para ele, mas Matteo tem a paixão fácil de um artista
apaixonado pelo seu novo tema. Seria bastante simples ficar, recomeçar, apreciar a sua
companhia por mais um dia — mas os seus pensamentos ainda estão no desenho, no significado
daquelas linhas, no seu peso.
— Tenho de ir — diz, inclinando-se para o beijar uma última vez. — Tenta lembrar-te de
mim.
Ele ri-se, um som arejado e leve, enquanto a puxa para si, deixando dedadas fantasmagóricas
de carvão na sua pele.
— Como poderia esquecer?

Nessa noite, o pôr do sol transforma os canais em ouro.


Addie encontra-se numa ponte sobre a água, esfrega o carvão que lhe ficou no polegar e
pensa no desenho, na representação de um artista, como um eco da verdade, pensa nas próprias
palavras de Luc, há tanto tempo, quando a expulsou do salão de Geoffrin.
As ideias são mais bravias do que as memórias.
Disse-o como uma estocada, sem dúvida, mas devia tê-lo encarado como uma pista, uma
chave. As memórias são rígidas, mas os pensamentos são mais livres do que as coisas. Lançam
raízes, disseminam-se e enredam-se e saem livres da sua fonte. São inteligentes e teimosas e
talvez — talvez — estejam ao alcance.
Porque, a dois quarteirões de distância, naquele pequeno estúdio por cima do café, encontra-
se um artista, e, numa das suas páginas, encontra-se um desenho, que é dela. E agora Addie fecha
os olhos e inclina a cabeça para trás e sorri, com a esperança a encher-lhe o peito. Uma fissura no
muro da sua maldição inflexível. Pensou ter estudado cada centímetro, mas há ali uma porta,
entreaberta para uma divisão nova e por descobrir. O ar muda atrás dela, com o aroma fresco de
árvores, impossível e deslocado sob o calor exuberante de Veneza.
Os seus olhos abrem-se.
— Boa noite, Luc.
— Adeline.
Vira-se para o enfrentar, este homem que tornou real, esta escuridão, este demónio trazido à
vida. E, quando lhe pergunta se já teve o suficiente, se já está farta, se cederá a ele essa noite, ela
sorri e diz:
— Esta noite não.
Esfrega de novo o dedo contra o polegar, sente o carvão ali e pensa contar-lhe a sua
descoberta, só para poder saborear a sua surpresa.
Descobri uma maneira de deixar uma marca, quer dizer-lhe. Pensei que me podias apagar
deste mundo, mas não podes. Continuo aqui. Estarei sempre aqui.
O sabor das palavras — aquele triunfo — é doce como açúcar na sua língua. Mas há um tom
de alerta no olhar dele esta noite, e, conhecendo Luc como conhece, sabe que arranjaria maneira
de o virar contra ela, de lhe roubar aquele pequeno consolo antes de Addie descobrir uma forma
de o usar.
Por isso não diz nada.
Nova Iorque
25 de abril de 2014

Uma salva de palmas varre o relvado.


Está um magnífico dia de primavera, um dos primeiros em que o calor persiste depois de o sol
se ter posto, e estão sentados em cima de uma manta ao fundo de Prospect Park, enquanto vários
artistas sobem e descem de um palco improvisado do outro lado do relvado.
— Não acredito que te consigas lembrar de tudo — diz ele quando mais um cantor sobe os
degraus.
— É como viver um déjà vu — diz ela —, só que sabes exatamente onde viste ou ouviste ou
sentiste uma coisa antes. Sabes todas as vezes e lugares, e esses conhecimentos empilham-se uns
em cima dos outros como páginas num livro muito longo e complicado.
Henry abana a cabeça.
— Eu teria enlouquecido.
— Oh, e eu enlouqueci — diz ela jovialmente. — Mas, quando se vive muito tempo, até a
loucura chega ao fim.
O cantor novo... não é bom.
Um adolescente cuja voz é feita de rugidos e guinchos, em partes iguais. Addie não consegue
apanhar mais do que uma ou duas palavras da letra, quanto mais identificar uma melodia. Mas o
relvado está cheio, o público carregado de entusiasmo, menos pelo desempenho do que pela
oportunidade de agitar os seus cartões numerados.
É a resposta de Brooklyn a um microfone aberto: um concerto de beneficência em que umas
pessoas pagam para atuar e outras para as avaliar.
— Parece um pouco cruel — assinalou quando Henry lhe entregou os cartões.
— É por uma boa causa — disse ele, encolhendo-se nas notas finais de um saxofone insípido.
A canção termina com uma aclamação fraca.
O relvado é um mar de 2 e de 3. Henry exibe um 9.
— Não podes dar noves e dez a todos — diz ela.
Henry encolhe os ombros.
— Sinto-me mal por eles. É preciso muita coragem para subir ao palco e atuar. E tu?
Addie olha para os cartões.
— Não sei.
— Disseste-me que eras caçadora de talentos.
— Sim, bem, era mais fácil do que dizer-te que era um fantasma com trezentos e vinte e três
anos cujo único passatempo é inspirar artistas.
Henry estende o braço e passa-lhe um dedo pela face.
— Não és um fantasma.
A canção seguinte começa e termina, e aplausos dispersos caem como chuva pelo relvado.
Henry atribui um 7.
Addie exibe um 3.
Henry olha para ela, chocado.
— O que foi? — diz ela. — Não foi muito bom.
— Então estamos a pontuar talento? Que grande treta.
Addie ri-se, e há um intervalo entre atuações, alguma discussão sobre quem deverá subir ao
palco de seguida. Música gravada sai das colunas, e deitam-se na relva, a cabeça de Addie
pousada no estômago dele, o suave inspirar e expirar como uma onda suave por baixo dela.
Há ali uma espécie de silêncio, mais rara do que os outros tipos. A tranquilidade fácil de
espaços familiares, de espaços que simplesmente se enchem porque não estamos sós dentro
deles. Há um caderno ao seu lado, em cima da manta. Não o azul; esse já está cheio. Este novo é
de um verde-esmeralda, quase do mesmo tom que os olhos de Luc quando se está a exibir.
Uma caneta destaca-se entre as páginas, assinalando o espaço de Henry. Todos os dias, Addie
conta-lhe histórias. À volta de ovos e café, narrou a caminhada tortuosa até Le Mans. Na livraria,
uma manhã, enquanto desempacotavam publicações novas, reviveu o primeiro ano em Paris.
Enrodilhados nos lençóis, na noite anterior, falou-lhe de Remy. Henry pediu-lhe a verdade, a sua
verdade, e por isso está a contá-la. Aos poucos, fragmentos enfiados como marcadores de livros
entre o movimento dos seus dias.
Henry é como um relâmpago dentro de uma garrafa, incapaz de ficar quieto por muito tempo,
cheio de energia nervosa, mas sempre que há um intervalo, um pouco de paz e tranquilidade,
pega no último bloco e numa caneta e, apesar de ela se entusiasmar sempre ao ver as palavras —
as suas palavras — derramarem-se na página, espicaça-o pela urgência com que as escreve.
— Temos tempo — lembra-o, alisando-lhe o cabelo.
Addie espreguiça-se contra ele e olha para cima, para a luz a morrer, para o céu raiado de
púrpura e azul. É quase noite, e sabe que um telhado não serviria de nada se a escuridão olhasse
para ela, mas, ali deitada, sob o céu aberto, continua a sentir-se exposta.
Têm tido sorte, muita sorte, mas o problema da sorte é que acaba sempre.
E talvez seja apenas do tamborilar dos dedos de Henry no jornal.
E talvez seja apenas do céu sem lua.
E talvez seja apenas do facto de a felicidade ser assustadora.
A banda seguinte sobe ao palco.
Mas, quando a música se espalha pelo relvado, não consegue afastar os olhos da escuridão.
Londres, Inglaterra
26 de março de 1827

Podia viver na National Gallery.


Na verdade, passou ali uma estação, deambulando de sala em sala, banqueteando-se com os
quadros e os retratos, as esculturas e as tapeçarias. Uma vida passada entre amigos, entre ecos.
Desloca-se por entre corredores de mármore e conta as peças que influenciou, as marcas
deixadas por outras mãos, mas guiadas pelas suas.
Na última contagem, havia seis naquela coleção em particular.
Seis colunas, a manterem-na bem erguida.
Seis vozes, a transportarem-na.
Seis espelhos, a refletirem pedaços de si de volta ao mundo.
Não há sinal do esboço de Matteo, pelo menos entre estas obras acabadas, mas essas linhas
incipientes refletidas na sua obra-prima, A Musa, volta a vê-las na escultura de um rosto pousado
numa mão, na pintura de uma mulher sentada à beira-mar.
É um fantasma, uma teia de aranha, depositada como uma camada sobre a obra.
Mas está ali.
Está ali.
Um vigilante informa-a de que irão fechar dentro em pouco, e Addie agradece-lhe e continua
a sua ronda. Podia ficar, mas as salas amplas não são tão acolhedoras como o apartamento em
Kensington, uma pérola desocupada durante os meses de inverno.
Addie para em frente à sua peça preferida, um retrato de uma rapariga diante de um espelho.
Está de costas para o artista, com a divisão e a rapariga representadas em grande pormenor, mas
o seu reflexo é pouco mais do que traços. O rosto é apenas representado nas manchas prateadas
do espelho. E, no entanto, de perto, qualquer pessoa poderia ver a disseminação das sardas, como
estrelas a pairar contra o céu cinzento e deformado.
— És muito esperta — diz uma voz atrás dela.
Addie estava sozinha na galeria, e agora não está.
Olha para a esquerda e vê Luc a observar o quadro, com a cabeça inclinada como quem
admira a obra, e, por um instante, Addie sente-se como um armário, as portas abertas de par em
par. Não está preparada, não está ancorada à espera, porque ainda faltam meses até ao seu
aniversário.
— O que estás aqui a fazer? — pergunta.
A boca dele contorce-se uma vez, saboreando a surpresa dela.
— Estou em todo o lado.
Nunca lhe tinha ocorrido que ele podia aparecer como lhe apetecesse, que não está limitado
de alguma forma pelas datas do seu pacto. Que as suas visitas, tal como a ausência das mesmas,
sempre foram intencionais — uma escolha.
— Estou a ver que tens andado ocupada — diz, com os seus olhos verdes a percorrerem o
retrato.
E tem. Tem-se espalhado como migalhas, pulverizado por centenas de obras de arte. Não
seria fácil para ele eliminá-las a todas. E, no entanto, há uma escuridão no seu olhar, um estado
de espírito em que não confia.
Luc estende uma mão, passa um dedo pela moldura.
— Se a destruíres — diz ela —, arranjo mais.
— Não importa — diz, baixando a mão. — Tu não importas, Adeline.
As palavras são mordentes, mesmo naquele instante.
— Fica com os teus ecos e finge que são uma voz.
Conhece bem o mau génio de Luc, os seus acessos temperamentais, breves e claros como um
relâmpago. Mas dessa vez há violência no seu tom. Algo afiado, e não lhe parece que tenha sido
a sua argúcia a perturbá-lo, este vislumbre dela entre as camadas da arte.
Não, trouxe aquela disposição sinistra consigo. Uma sombra a arrastar-se atrás dele.
Mas passou-se quase um século desde que o atacou, naquela noite em Villon, quando ele lhe
retribuiu o golpe, a reduziu a um cadáver deformado no chão da casa de Estele. E por isso, em
vez de recuar perante a possibilidade de um confronto, ergue-se à altura da situação.
— Tu próprio o disseste, Luc. As ideias são mais bravias do que as memórias. E eu posso ser
bravia. Posso ser teimosa como as ervas daninhas, e não me irás desenraizar. E acho que estás
contente por isso. Acho que foi por isso que vieste, porque também estás só.
Os olhos de Luc lampejam num verde perverso e tempestuoso.
— Não sejas absurda — escarnece. — Toda a gente conhece os deuses.
— Mas muito poucos os recordam — réplica. — Com quantos mortais te cruzaste mais de
duas vezes: uma vez para fazer um pacto, outra para pagarem o preço? Quantos fizeram parte da
tua vida durante tanto tempo como eu? — Addie exibe um sorriso triunfante. — Talvez seja por
isso que me amaldiçoaste desta forma. Para poderes ter companhia. Para alguém te poder
recordar.
Paira sobre ela num instante, encostando-a contra a parede do museu.
— Amaldiçoei-te por seres tola.
E Addie ri-se.
— Sabes, quando imaginava os deuses antigos, em criança, pensava neles como imortais
imponentes, superiores às preocupações mesquinhas que atormentavam aqueles que os
veneravam. Pensava que eram melhores do que nós. Mas não são. São tão volúveis e ávidos
como os seres humanos que desprezam. — As mãos dele apertam-se sobre ela, mas Addie não
estremece, não se acobarda, limita-se a aguentar o seu olhar. — Não somos assim tão diferentes,
pois não?
A irritação de Luc endurece, arrefece, com o verde dos seus olhos a afundar-se em preto.
— Dizes conhecer-me agora muito bem. Vamos ver... — as mãos descem do ombro até ao
pulso, e, demasiado tarde, Addie percebe o que ele tenciona fazer.
Passaram-se quarenta anos desde que a arrastou pela escuridão, mas não se esqueceu da
sensação, do medo instintivo e da esperança insana e da liberdade ousada de portas abertas para a
noite.
É infinito...
E depois acaba, e fica de gatas num chão de madeira, com os membros a tremer da estranheza
da viagem.
Uma cama jaz nesse espaço, desalinhada e vazia, as cortinas esvoaçam, e o chão está coberto
de partituras e sente-se um ar bafiento a enfermidade.
— Que desperdício — murmura Luc.
Addie levanta-se, vacilante.
— Onde estamos?
— Confundes-me com um mortal solitário — diz ele. — Um ser humano desolado à procura
de companhia. Não sou nenhum dos dois.
Movimento, no quarto, e Addie percebe que não estão sozinhos. O fantasma de um homem,
de cabelo branco e olhos ferozes, está sentado num banco de piano, de costas voltadas para o
teclado.
Suplica em alemão.
— Ainda não — diz, apertando uma série de partituras contra o peito. — Ainda não. Preciso
de mais tempo.
A sua voz é estranha, demasiado alta, como se não conseguisse ouvir. Mas a de Luc, quando
responde, é num tom duro, um timbre baixo, um som simultaneamente sentido e ouvido.
— O mais aborrecido no tempo — diz — é que nunca é suficiente. Talvez uma década a
menos, talvez um instante. Mas uma vida termina sempre demasiado cedo.
— Por favor — implora o homem, deixando-se cair sobre as mãos e os pés diante da
escuridão, e Addie sofre por ele, sabe que as suas súplicas não irão resultar.
— Deixa-me fazer outro pacto!
Luc obriga o homem a levantar-se.
— O tempo dos pactos passou, Herr Beethoven. Agora, tem de dizer as palavras.
O homem abana a cabeça.
— Não.
E Addie não consegue ver os olhos de Luc, mas sente o seu humor mudar. O ar rumoreja no
quarto, à sua volta, um vento e algo mais forte.
— Entrega a tua alma — diz Luc. — Ou tomá-la-ei à força.
— Não! — grita o homem, agora de forma histérica.
— T’arrenego, demónio! T’arrenego e...
É a última coisa que diz antes de Luc se revelar.
É a única forma de explicar aquilo.
O cabelo negro ergue-se do seu rosto, espalhando-se pelo ar como ervas daninhas, e a sua
pele ondula e cinde-se, mas aquilo que verte não é um homem. É um monstro. É um deus. É a
própria noite, e outra coisa, algo que ela nunca viu, algo que não consegue suportar observar.
Algo mais antigo do que as trevas.
— Rende-te.
E agora a voz não é de todo uma voz, mas uma salgalhada de ramos a quebrar e de vento de
verão, um rosnar baixo de lobo e o súbito aluir de pedras sob os pés.
O homem gagueja e suplica.
— Socorro! — grita, mas é inútil. Se estiver alguém do outro lado da porta, não irá ouvir.
— Socorro! — grita de novo, em vão.
E então o monstro afunda a mão no seu peito.
E o homem vacila, pálido e cinzento, enquanto a escuridão colhe a sua alma como uma peça
de fruta. Solta-se com o som de algo a rasgar-se, e o compositor vacila e cai no chão. Mas os
olhos de Addie estão presos na explosão de luz na mão da sombra, irregular e instável. E, antes
de conseguir estudar as faixas de cor que se curvam na sua superfície, antes de poder maravilhar-
se com as imagens que se enrolam dentro dela, a escuridão fecha os dedos sobre a alma, e esta
crepita através dela como um relâmpago e desaparece de vista.
O compositor encontra-se curvado sobre o banco do piano, com a cabeça voltada para trás e
os olhos vazios.
A mão de Luc, como aprenderá, é sempre subtil. Quem observar o seu trabalho, chamar-lhe-á
doença, chamar-lhe-á falha cardíaca, chamar-lhe-á loucura, suicídio, overdose, acidente.
Mas, nessa noite, só ela sabe que o homem que jaz no chão está morto.
A escuridão vira-se para Addie então, e não há vestígio de Luc no fumo irritante. Não há
olhos verdes. Sorriso trocista. Apenas uma voz ameaçadora, uma sombra cheia de dentes.
Passou-se muito tempo desde que Addie sentiu verdadeiro medo. A tristeza, conhece-a;
conhece a solidão e o sofrimento. Mas o medo pertence àqueles que têm mais a perder.
E, no entanto.
Ao olhar para aquela escuridão, Addie tem medo.
Obriga as pernas a ficarem imóveis, obriga-se a manter-se no mesmo lugar e fá-lo, enquanto
ele dá o primeiro passo e o segundo, mas, ao terceiro, dá consigo a recuar. Para longe da
escuridão bruxuleante, da noite monstruosa, até ficar de costas contra a parede.
Mas a escuridão continua a aproximar-se.
A cada passo que avança, concentra-se, com os contornos a firmarem-se até ser menos uma
tempestade do que fumo dentro de um recipiente de vidro. O rosto ganha forma, as sombras a
rodopiarem em caracóis negros e soltos, e os olhos — ali estão de novo os olhos — iluminam-se
como uma pedra a secar, e a goela cavernosa estreita-se num arco de cupido, os lábios a
curvarem-se numa satisfação matreira.
E ali está Luc de novo, envolto em carne e osso, suficientemente próximo para conseguir
sentir o ar fresco da noite soprar dele como uma brisa.
E, desta vez, quando fala, é com a voz que ela conhece tão bem.
— Bem, minha querida... — diz, levando uma mão à sua face. — Somos assim tão diferentes
agora?
Dá um leve empurrão, e a parede abre-se atrás dela, e não tem a certeza se cai ou se as
sombras se alongam e a puxam para baixo, apenas que Luc desapareceu e que o quarto do
compositor desapareceu, e, por um instante, a escuridão está por todo o lado e depois ela está lá
fora, nas margens cheias de seixos, e a noite está cheia de risos e de luzes a cintilar na água e da
força suave e melódica de um homem a cantar algures, ao longo do Tamisa.
Nova Iorque
15 de maio de 2014

Foi ideia de Addie levar o gato para casa.


Talvez sempre tivesse querido um animal de estimação.
Talvez pense apenas que deve sentir-se sozinho.
Talvez pense que fará bem a Henry.
Não sabe. Não importa. Acontece apenas que, um dia, enquanto ele está a fechar a loja, ela
aparece ao pé dele no passeio, com um romance debaixo de um braço e o velho gato malhado no
outro e pronto.
Levam Book para casa de Henry e apresentam-no à porta azul e sobem ao apartamento
acanhado de Brooklyn, e, apesar da superstição de Henry, ele não se transforma em pó ao ser
afastado da loja. Deambula simplesmente durante uma hora antes de se encostar a uma estante
com livros de filosofia e está em casa.
E ela também.
Estão aninhados no sofá quando ouve o clique da máquina Polaroid, capta o lampejo súbito
de luz, e há um momento em que se pergunta se irá resultar, se Henry conseguirá tirar-lhe uma
fotografia, do mesmo modo que escreveu o seu nome.
Mas nem a escrita nos seus diários é completamente sua. É a sua história pela caneta dele, a
sua vida pelas palavras dele.
E claro que, quando o filme é revelado, e o instantâneo aparece, não é propriamente dela. A
rapariga na fotografia tem o seu cabelo castanho ondulado. A rapariga da fotografia enverga a
mesma camisa branca. Mas a rapariga da fotografia não tem rosto. Se tiver, está desviado da
câmara, como se tivesse sido captado no momento em que se virava noutra direção.
E ela sabe que não iria resultar, mas o coração persiste em sentir um baque.
— Não compreendo — diz Henry, virando a máquina nas mãos. — Posso voltar a tentar? —
pergunta, e ela compreende a ânsia. É difícil de lidar com aquilo, quando o impossível é tão
óbvio. A sua mente não consegue perceber, por isso tenta repetidamente, convencido de que,
desta vez, será diferente.
Sabe que é assim que se enlouquece.
Mas Addie faz a vontade a Henry, deixando-o tentar uma segunda vez, e uma terceira. Vê a
máquina encravar, cuspir uma folha em branco, resultar numa sobre-exposição, numa
subexposição, desfocada, até ficar com a cabeça a transbordar de lampejos de luz branca.
Deixa-o tentar ângulos diferentes, uma luz diferente, até as fotografias se amontoarem no
chão entre ambos.
Está ali, e não está ali, é real e um fantasma.
Deve vê-la mais desgastada a cada flash, com a tristeza a aumentar, a partir das fendas, e
obriga-se a pousar a câmara.
Addie olha para as fotografias e pensa na pintura de Londres, na voz de Luc na sua cabeça.
Não importa.
Tu não importas.
Addie pega na última tentativa, estuda a forma da rapariga retratada, os seus traços
desfocados impossíveis de reconhecer. Fecha os olhos, lembra-se de que há muitas formas de
deixar uma marca, lembra-se de que as imagens mentem.
E então sente o corpo sólido da câmara ser colocado nas suas mãos, e inspira, para lhe dizer
que não irá resultar, que não irá resultar, mas depois Henry está ali, por trás dela, fechando os
dedos sobre os dela, levantando o visor à altura do seu olhar. Deixando-a guiar a pressão das
mãos dele tal como fez com a tinta na parede transparente. E o coração dela acelera quando
aponta para as fotografias acumuladas no chão, com os seus próprios pés descalços na
extremidade inferior.
Sustém a respiração e espera pelo melhor.
Um clique. Um flash.
Desta vez, a fotografia aparece.

Ali está uma vida em fragmentos de segundo imóveis.


Momentos como instantâneos. Como quadros. Como flores esmagadas entre as páginas de
um livro. Perfeitamente preservada.
Os três, a dormir a sesta ao sol.
Addie a acariciar o cabelo de Henry enquanto lhe conta histórias, e ele escreve e escreve e
escreve.
Henry encostado a ela, na cama, com os dedos entrelaçados, a respiração rápida, o nome dela
como um eco no seu cabelo.
Ali estão, juntos na cozinha dele, os braços dele emaranhados nos dela, as mãos dela sobre as
dele enquanto preparam molho bechamel, enquanto amassam pão.
Quando já está no forno, pousa-lhe as mãos enfarinhadas no rosto, deixa marcas onde quer
que toque.
Deixam tudo em desalinho, enquanto a divisão se enche com o aroma a pão acabado de cozer.
E, de manhã, é como se fantasmas tivessem andado a dançar pela cozinha, e eles fingem ter
sido dois em vez de apenas um.
Villon-sur-Sarthe, França
29 de julho de 1854

Villon não deveria mudar.


Quando estava a crescer, era sempre tão dolorosamente imóvel, como o ar de verão antes de
uma tempestade. Uma aldeia esculpida em pedra. E, no entanto, o que dissera Luc?
Mesmo as rochas se desgastam até se transformarem em nada.
Villon ainda não estava desgastada. Ao invés, mudara, crescera, com novas raízes a
espraiarem-se, outras cortadas. O bosque fora obrigado a recuar, as árvores na orla da floresta
acabaram todas por alimentar os lumes das lareiras e abrir caminho para campos e colheitas. Há
agora mais muros do que havia dantes. Mais edifícios. Mas estradas.
Enquanto Addie caminha pela vila, com o cabelo enfiado numa touca apertada, destaca um
nome, um rosto, um fantasma de um fantasma de uma família que em tempos conheceu. Mas a
Villon da sua juventude finalmente dissipou-se, e pergunta-se se é assim que os outros vivem a
memória, este apagar lento de pormenores.
Pela primeira vez, não reconhece cada atalho.
Pela primeira vez, não tem a certeza se sabe o caminho.
Vira num ponto, esperando encontrar uma casa, mas, em vez disso, encontra duas, divididas
por um muro de pedra baixo. Dirige-se para a esquerda, mas, em vez de um campo aberto,
encontra um estábulo, rodeado por uma vedação. Finalmente, reconhece o caminho para casa,
sustém a respiração enquanto percorre a alameda, sente algo dentro de si soltar-se ao divisar o
velho teixo, ainda inclinado e enredado na extrema da propriedade.
Mas, para lá da árvore, o local está mudado. Roupas novas cobrem ossos novos.
A oficina do pai foi eliminada, com a pegada da cabana apenas marcada por uma sombra no
chão, tendo a erva selvagem há muito preenchido o seu lugar, num tom ligeiramente diferente. E,
embora Addie se tenha preparado para a imobilidade bafienta dos lugares abandonados, depara
em vez disso com movimento, vozes, riso.
Alguém se mudou para a casa de família, um dos recém-chegados à vila em crescimento.
Uma família, com uma mãe que sorri mais e um pai que não o faz, e dois rapazes a correrem no
pátio, com o cabelo cor de palha. O mais velho vai atrás de um cão, que fugiu com uma meia, e o
mais novo trepa ao velho teixo, com os pés descalços a encontrarem os mesmos nós e curvas que
ela, quando era criança, com o caderno de desenho debaixo do braço. Devia ter aquela idade... ou
seria mais velha?
Fecha os olhos, tenta reter a imagem, mas esta desliza e escorrega-lhe por entre os dedos.
Essas primeiras memórias não estão presas dentro do prisma. Esses anos anteriores, perdidos
para uma outra vida. Os olhos fecham-se apenas por um momento, mas, quando os abre, a árvore
está vazia. O rapaz desapareceu.
Mesmo as rochas se desgastam até se transformarem em nada.
— Olá — diz uma voz, algures atrás dela.
É o mais novo, o rosto aberto e virado para cima.
— Olá — diz ela.
— Está perdida?
Ela hesita, dividida entre sim e não, sem saber qual está mais perto da verdade.
— Sou um fantasma — diz ela. Os olhos do rapaz abrem-se de surpresa, de assombro, e pede-
lhe que o prove. Ela diz-lhe que feche os olhos e, quando o faz, desaparece.

No cemitério, a árvore que Addie transplantou ganhou raízes.


Ergue-se sobre a campa de Estele, mergulhando os seus ossos num charco de sombra.
Addie passa a mão pela casca, maravilha-se com a facilidade com que o rebento se
transformou uma árvore de tronco grosso, com as raízes e ramos a escapulirem-se para todos os
lados. Cem anos depois de ter sido plantada — um período de tempo outrora demasiado longo
para imaginar e agora demasiado difícil de medir. Até agora, contou o tempo em segundos, e em
estações, em vagas de frio e em degelos, em insurreições e rescaldos. Viu edifícios desabar e
nascer, cidades arder e serem refeitas, o passado e o presente confundidos em algo fluido e
efémero.
Mas isto, isto é tangível.
Os anos marcados em madeira e casca, raiz e solo.
Addie senta-se com as costas apoiadas na pedra tumular da mulher e repousa os seus próprios
ossos antigos na sombra sarapintada e calcula o tempo desde a sua última visita. Conta a Estele
histórias sobre Inglaterra e sobre Veneza e Espanha, sobre Matteo e a galeria, sobre Luc e sobre a
sua arte e sobre todas as formas como o mundo mudou. E, apesar de não haver resposta, à
exceção do restolhar de folhas, sabe o que a velha diria.
Tudo muda, sua tola. Faz parte da natureza do mundo. Nada permanece igual.
Exceto eu, pensa ela, mas Estele responde, seca como gravetos.
Nem mesmo tu.
Sentiu falta dos conselhos da idosa, mesmo dentro da sua cabeça. A voz tornou-se frágil,
desgastada com o passar dos anos, esbatida como todas as memórias mortais.
Mas ali, pelo menos, regressa a ela.
O sol já atravessou o céu no momento em que se levanta e caminha até à orla da aldeia, à orla
do bosque, ao sítio a que a velha em tempos chamara casa. Mas o tempo também reclamou ali o
seu lugar. O jardim, outrora demasiado crescido, foi engolido pela mata invasora, e a natureza
selvagem ganhou a guerra contra a cabana, arrastou-a, com árvores jovens a rebentarem junto às
estruturas. A madeira apodreceu, as pedras tombaram, o telhado desapareceu, e as ervas daninhas
e a hera começam lentamente a desmantelar o resto.
Da próxima vez que ali for, não haverá vestígios, os despojos terão sido engolidos pelo
avanço do bosque. Mas, por enquanto, ainda persiste o esqueleto, a ser lentamente enterrado pelo
musgo.
Addie está a meio caminho da cabana decrépita quando se apercebe de que esta não está
completamente deserta.
Um estremecimento no monte destruído, e semicerra os olhos, esperando encontrar um coelho
ou talvez um veado jovem. Em vez disso, depara com um rapaz. Está a brincar entre as ruínas,
trepando ao que resta das velhas paredes de pedra, esmagando as ervas com um ramo arrancado
da mata.
Conhece-o. É o filho mais velho, o rapaz que viu antes a perseguir um cão pelo pátio. Deve
ter 9 ou 10 anos. Idade suficiente para que os olhos se estreitem de desconfiança quando a vê.
Segura o pau como se fosse uma espada.
— Quem és tu? — pergunta.
E desta vez Addie não se satisfaz em ser um fantasma.
— Sou uma bruxa.
Não sabe porque o diz. Talvez simplesmente para se divertir. Talvez porque, quando a
verdade não é uma opção, a ficção ganha vontade própria. Ou talvez porque seria o que Estele
diria, se ali estivesse.
Uma sombra atravessa o rosto do rapaz.
— As bruxas não existem — diz, mas a sua voz vacila, quando o diz, e, quando ela se
aproxima, com os sapatos a estalar sobre ramos ressequidos pelo sol, ele começa a recuar.
— Estás a brincar com os meus ossos — avisa ela. — Sugiro que saias daí antes de caíres.
O rapaz tropeça de surpresa, quase escorrega num pedaço de musgo.
— A menos que prefiras ficar — reflete ela. — Tenho a certeza de que também haverá espaço
para os teus.
O rapaz desce dos escombros e vai-se embora a correr. Addie vê-o partir, com o riso de corvo
de Estele a crocitar-lhe aos ouvidos.
Não se sente mal por ter assustado o rapaz; não espera que ele se lembre. E, no entanto,
amanhã, ele voltará, e Addie ficará escondida na orla do bosque e observá-lo-á trepar às ruínas,
para hesitar, com uma sombra nervosa nos olhos. Voltará a vê-lo ir-se embora e perguntar-se-á
se estará a pensar em bruxas e ossos meio enterrados. Se a ideia lhe cresceu na cabeça como uma
erva daninha.
Mas hoje Addie está sozinha e pensa apenas em Estele.
Passa as mãos por uma parede meio desabada e pensa em ficar, em tornar-se a bruxa do
bosque, a invenção do sonho de outra pessoa. Imagina reconstruir a casa da velha, até se ajoelha
para empilhar umas quantas pedras. Mas, à quarta, o monte desmorona-se, com as pedras a
aterrarem na erva alta precisamente nos sítios de onde antes as tirara.
A tinta apaga-se.
A ferida desfaz-se.
A casa desconstrói-se.
Addie suspira quando uma mão-cheia de pássaros levanta voo na mata próxima, num riso
crocitado. Volta-se para as árvores. Ainda há luz, uma hora talvez até ser noite, e, no entanto, ao
olhar para a floresta, consegue sentir a escuridão fitá-la de volta. Anda por entre as pedras meio
enterradas e pisa na sombra, sob as árvores.
É percorrida por um arrepio.
É como passar por um véu.
Vagueia por entre as árvores. Outrora, teria tido medo de se perder. Agora, os passos estão-
lhe cravados na memória. Não se conseguiria perder, mesmo que tentasse.
O ar ali está mais fresco, a noite mais próxima sob a copa das árvores. Agora é fácil perceber
como naquele dia poderá ter perdido a noção das horas. Como a linha entre o crepúsculo e a
escuridão se tornou tão esbatida. E pergunta-se se porventura teria pedido ajuda, caso soubesse
que horas eram?
Teria rezado, sabendo que deus responderia?
Não é ela quem responde.
Não precisa de o fazer.
Não sabe quanto tempo ele esteve ali, atrás dela, se a seguiu por algum tempo, em silêncio.
Sabe apenas no momento em que ouve ramos estalar atrás de si.
— Que estranha peregrinação insistes em fazer.
Addie sorri para si mesma.
— Achas?
Vira-se para deparar com Luc, encostado a uma árvore.
Não é a primeira vez que o vê desde a noite em que colheu a alma de Beethoven. Mas ainda
não se esqueceu do que viu. Nem se esqueceu de que ele queria que o testemunhasse, que
olhasse para ele e alcançasse a verdade do seu poder. Mas foi algo tolo de se fazer. Como
mostrar o jogo, quando as apostas mais altas se encontram em cima da mesa.
Vejo-te, pensa enquanto ele se desencosta da árvore e se endireita. Vi-te na tua verdadeira
forma. Já não me consegues assustar.
Luc avança para uma clareira estreita de luz.
— O que te traz de volta aqui? — pergunta.
Addie encolhe os ombros.
— Nostalgia, talvez.
Ele levanta o queixo.
— Diria antes fraqueza. Andar apenas em círculos, quando podias criar caminhos novos.
Addie franze o sobrolho.
— Como posso criar um caminho quando nem sequer consigo empilhar uma mão-cheia de
pedras? Liberta-me e verás quão bem me desenvencilho.
Ele suspira e dissolve-se na escuridão.
Quando volta a falar, encontra-se atrás dela, a sua voz como uma brisa pelo cabelo.
— Adeline, Adeline — ralha, e ela sabe que, se se virar de novo, Luc não estará ali e por isso
não se mexe, mantém os olhos fixos na floresta. Não estremece quando as mãos dele deslizam
pela sua pele. Quando o seu braço serpenteia pelos seus ombros.
De perto, cheira a carvalho e a folhas e a campos encharcados pela chuva.
— Não estás cansada? — sussurra ele.
E ela estremece ao ouvir as palavras.
Estava preparada para o seu ataque, para as suas farpas verbais, mas não estava preparada
para aquela pergunta, não estava preparada para a forma quase delicada como a faz.
Passaram-se cento e quarenta anos. Um século e meio, a viver como um eco, como um
fantasma. Claro que está cansada.
— Não gostavas de descansar, minha querida?
As palavras arrastam-se como teias de aranha pela pele.
— Podia enterrar-te ali, ao lado da Estele. Plantar uma árvore, fazê-la crescer por cima dos
teus ossos.
Addie fecha os olhos.
Sim, está cansada.
Pode não sentir os anos enfraquecer-lhe os ossos, o corpo ficar mais frágil com a idade, mas a
fadiga é uma coisa física, como a decomposição, dentro da sua alma. Há dias em que lamenta a
perspetiva de mais um ano, de mais uma década, de mais um século. Há noites em que não
consegue dormir, momentos em que fica acordada e sonha morrer.
Mas depois acorda e vê a madrugada rosa e laranja contra as nuvens ou ouve o lamento de um
violino solitário, a música e a melodia, e lembra-se que há uma beleza imensa no mundo.
E não quer perdê-la... nem um pedaço.
Addie vira-se no círculo dos braços de Luc e olha para cima, para o seu rosto.
Não sabe se é da noite que se aproxima ou da natureza do próprio bosque, mas ele parece
diferente. Nestes últimos anos, viu-o envolvido em veludo e renda, ataviado ao último grito da
moda. E viu-o como o vazio, desenfreado e violento. Mas, ali, não é nenhum dos dois.
Ali, é a escuridão que conheceu naquela noite. Magia selvagem na forma de um amante.
Os seus olhos turvam-se em sombras, a pele fica da cor do luar, os olhos precisamente do
mesmo tom que o musgo, atrás dele. É selvagem.
Mas ela também é.
— Cansada? — diz ela, invocando um sorriso. — Ainda agora acabo de acordar.
Prepara-se para o seu desagrado, para a sombra selvagem, para o lampejo dos dentes.
Mas não há vestígio de amarelo nos seus olhos.
Na verdade, têm um tom de verde novo e sinistro.
Demorará anos a aprender o significado dessa cor, a interpretá-la como divertimento.
Nessa noite, há apenas esse breve vislumbre e depois o aflorar dos seus lábios contra o rosto
de Adeline.
— Mesmo as rochas... — murmura ele e depois desaparece.
Nova Iorque
13 de junho de 2014

Um rapaz e uma rapariga caminham de braço dado.


Dirigem-se à Knitting Factory, e, como a maior parte das coisas em Williamsburg, não é o
que parece, não é uma oficina de artes manuais ou um lugar onde se pode fiar, mas um local
preparado para concertos, na extremidade norte de Brooklyn.
É o aniversário de Henry.
Tempos antes, quando lhe perguntou quando era o aniversário dela e quando Addie lhe disse
que fora em março, uma sombra atravessou o rosto de Henry.
— Desculpa tê-lo perdido.
— É isso que é bom nos aniversários — disse ela, encostando-se a ele. — Acontecem todos
os anos.
Rira-se um pouco então, e ele também, mas havia algo oco na voz dele, uma tristeza que
confundiu com mera distração.
Os amigos de Henry já marcaram lugar perto do palco, deixando caixinhas empilhadas na
mesa, entre eles.
— Henry! — grita Robbie, com duas garrafas já vazias à frente.
Bea despenteia-lhe o cabelo.
— O nosso querido bebé de verão, literalmente.
A atenção desvia-se para lá dele e fixa-se em Addie.
— Ei — diz ele —, esta é a Addie.
— Finalmente! — diz Bea. — Estávamos mortos por te conhecer.
Claro que já tinham conhecido.
Andavam há semanas a pedir para conhecer a rapariga nova na vida de Henry. Estavam
sempre a acusá-lo de a esconder, mas Addie conhecera-os uma vez à volta de umas quantas
cervejas, fora a uma noite de cinema em casa de Bea, cruzara-se com eles em galerias e parques.
E, de cada uma das vezes, Bea fala de déjà vu e depois, mais uma vez, de movimentos artísticos,
e, de cada uma das vezes, Robbie amua, apesar dos melhores esforços de Addie para o acalmar.
O facto parece incomodar mais Henry do que ela própria. Deve pensar que ela fez paz com
esse assunto, mas a verdade é que não há paz à vista. O ciclo interminável de olá, quem é esta,
prazer em conhecer-te, olá desgasta-a como água sobre pedra — danos lentos, mas inevitáveis.
Aprendeu simplesmente a viver com isso.
— Sabes — diz Bea, estudando-a —, pareces-me tão familiar.
Robbie levanta-se da mesa para ir buscar uma rodada de bebidas, e o peito de Addie aperta-se
ao pensar no reset, em ter de começar tudo outra vez, mas Henry intervém, toca no braço de
Robbie.
— Eu vou — diz ele.
— O aniversariante não paga! — protesta Bea, mas Henry agita a mão na sua direção e
desaparece por entre a multidão crescente.
E Addie fica sozinha com os seus amigos.
— É mesmo fixe ver-vos juntos — diz ela. — O Henry está sem- pre a falar de ti.
Os olhos de Robbie semicerram-se de desconfiança.
Addie sente o muro erguer-se entre eles, mais uma vez, mas já conhece as oscilações de
humor de Robbie, sim, e por isso insiste.
— És ator, certo? Adorava assistir a um dos teus espetáculos. O Henry diz que és fantástico.
Ele brinca com o rótulo da cerveja.
— Pois, pois... — murmura, mas Addie capta a sombra de um sorriso quando o diz.
E depois Bea interrompe.
— O Henry parece estar feliz. Realmente feliz.
— E estou — diz Henry, pousando uma rodada de cervejas.
— Aos 29 — diz Bea, levantando o copo.
Começam a debater as vantagens da idade e concordam que é um ano bastante inútil, no que
diz respeito a aniversários, ficando mesmo atrás dos monumentais 30.
Bea agarra Henry pelo pescoço.
— Mas, para o ano, serás oficialmente adulto.
— Tenho quase a certeza de que isso foi quando fiz 18 — diz ele.
— Não sejas ridículo. Os 18 são suficientes para votar, os 21 para beber, mas os 30 são para
tomar decisões.
— Mais perto de uma crise de meia-idade do que de uma crise dos 25 anos — brinca Robbie.
O microfone faz-se ouvir, lamentando-se ligeiramente quando um homem sobe ao palco e
anuncia uma atuação especial de abertura.
— É uma estrela em ascensão. Tenho a certeza de que já ouviram este nome, mas, se não for
o caso, ouvirão dentro de muito pouco tempo. Os vossos aplausos para Toby Marsh!
O coração de Addie tem um baque.
A multidão aclama e aplaude, e Robbie assobia, e Toby sobe ao palco, o mesmo rapaz belo e
corado, mas, quando acena para a multidão, o seu queixo levanta-se, o sorriso fixa-se, orgulhoso.
A diferença entre as primeiras linhas exploratórias de um esboço e o desenho acabado.
Senta-se ao piano e começa a tocar, e as primeiras notas atingem-na numa vaga de nostalgia.
E então ele começa a cantar.
Estou apaixonado por uma rapariga que nunca conheci.
O tempo salta, e ela está na sala de estar dele, empoleirada no banco do piano, com o chá a
libertar vapor no parapeito da janela, enquanto os seus dedos ausentes tocam as notas.
Mas parece que a vejo todas as noites...
Está na cama dele, com as suas mãos largas a tocarem a melodia na sua pele. O rosto
incendeia-se com essa memória, enquanto ele canta.
E tenho tanto medo, medo de a esquecer, apesar de só a ter conhecido nos meus sonhos.
Nunca lhe disse a letra, mas, mesmo assim, ele acabou por a descobrir.
A sua voz é mais nítida, mais forte, o tom mais confiante. Precisava apenas da canção certa.
De algo que fizesse a multidão inclinar-se e escutar.
Addie fecha os olhos com força, o passado e o presente enredados na sua cabeça.
Todas as noites no Alloway, a vê-lo tocar.
Todas as vezes que ele a encontrou no bar e sorriu.
Todas as estreias que não foram estreias para ela.
O palimpsesto a perpassar o papel.
Toby olha por cima do piano, e não há forma de a poder ver num sítio tão grande, mas ela tem
a certeza de que os seus olhos se cruzaram, e a sala rodopia um pouco, e ela não sabe se é das
cervejas que bebeu demasiado depressa ou da vertigem da memória, mas depois a canção chega
ao fim, substituída por uma salva de aplausos, e ela levanta-se, dirigindo-se para a porta.
— Addie, espera — diz Henry, mas ela não consegue, apesar de saber o que significa virar
costas, de saber que Robbie e Bea se irão esquecer dela e que terá de recomeçar, e Henry
também, mas, naquele momento, não quer saber.
Não consegue respirar.
A porta abre-se de par em par, e a noite precipita-se para o interior, e Addie arqueja,
obrigando o ar a entrar nos pulmões.
E devia ser bom ouvir a sua música, devia parecer acertado.
Afinal, foi visitar tantas vezes peças da sua arte.
Mas eram apenas peças, retiradas do contexto.
Pássaros esculpidos em bases de mármore e quadros atrás de cordas. Caixas didáticas
afixadas a paredes pintadas de branco e caixas de vidro que mantêm o presente separado do
passado.
É diferente quando o vidro se parte.
É a mãe à porta, consumida até aos ossos.
É Remy, no salão de Paris.
É Sam, a convidá-la a ficar, de cada uma das vezes.
É Toby Marsh, a tocar a sua canção.
A única forma que Addie conhece de persistir é continuar em frente. Eles são Orfeu, ela é
Eurídice, e, sempre que eles olham para trás, ela é destruída.
— Addie? — Henry está mesmo atrás dela. — O que se passa?
— Desculpa — diz ela. Limpa as lágrimas e abana a cabeça porque a história é demasiado
longa e demasiado curta. — Não consigo voltar lá para dentro, pelo menos por enquanto.
Henry olha por cima do ombro e deve ter visto a cor desaparecer-lhe do rosto durante a
atuação porque diz:
— Conhece-lo? Esse Toby Marsh?
Não lhe contou essa história — ainda não chegaram lá.
— Conheci — diz ela, o que não é propriamente verdade, porque o faz parecer como se fosse
algo do passado, quando o passado é algo a que Addie não tem direito, e Henry deve ouvir a
mentira enterrada nas palavras, porque franze a testa. Entrelaça as mãos atrás da cabeça.
— Ainda sentes alguma coisa por ele?
E ela quer ser sincera, dizer que, obviamente, sente. Nunca termina as coisas, nunca chega a
dizer adeus — não há pontos finais ou pontos de exclamação, apenas uma vida de elipses. Todas
as outras pessoas começam de novo, têm direito a uma página em branco, mas as dela estão
cheias de texto. As pessoas dizem transportar archotes com chamas antigas, mas não se trata de
um verdadeiro incêndio. Contudo, as mãos de Addie estão cheias de velas. Como se pretende que
as pouse ou apague? Há muito que ficou sem fôlego.
Mas não é amor.
Não é amor, e é isso que ele está a perguntar.
— Não — diz ela. — Ele só... apanhou-me desprevenida. Desculpa.
Henry pergunta-lhe se quer ir para casa, e Addie não sabe se isso significa os dois ou apenas
ela, não quer descobrir, por isso abana a cabeça, e voltam para dentro, e as luzes mudaram, e o
palco está vazio, com a house music a criar ambiente até ao espetáculo principal, e Bea e Robbie
estão a conversar, com as cabeças inclinadas, tal como estavam quando eles entraram. E Addie
faz os possíveis por sorrir quando chegam à mesa.
— Aí está ele! — diz Robbie.
— Onde te meteste? — pergunta Bea, com os olhos a saltar de Henry para Addie. — E quem
é esta?
Henry envolve-a pela cintura.
— Ei, esta é a Addie.
Robbie olha-a de cima a baixo, mas Bea limita-se a mostrar-se radiante.
— Finalmente! — diz Bea. — Estávamos mortos por te conhecer...
A caminho de Berlim, Alemanha
29 de julho de 1872

Os copos tilintam ligeiramente em cima da mesa enquanto o comboio percorre o campo, na


Alemanha. Addie vai sentada no vagão-restaurante, a sorver pequenos goles de café e a olhar
pela janela, maravilhando-se com a velocidade a que o mundo passa.
Os seres humanos são capazes de coisas extraordinárias. De crueldade e de guerra, mas
também de arte e de invenção. Terá este pensamento repetidamente, ao longo dos anos, quando
forem largadas bombas e caírem edifícios, quando o terror consumir países inteiros. Mas também
quando as primeiras imagens forem gravadas em filme, quando os aviões se erguerem nos ares,
quando os filmes passarem de preto e branco a cores.
Sente-se assombrada.
Sentir-se-á sempre assombrada.
Perdida nos seus pensamentos, só ouve o revisor quando este se encontra ao seu lado,
pousando-lhe uma mão levemente no ombro.
— Fräulein — diz —, o seu bilhete, por favor.
— Com certeza.
Olha para a mesa, finge vasculhar na bolsa.
— Desculpe — diz ela, levantando-se. — Devo tê-lo deixado no compartimento.
Não é a primeira vez que fizeram esta dança, mas é a primeira vez que o revisor decide ir
atrás dela, segui-la como uma sombra enquanto caminha em direção a um compartimento que
não reservou, para ir buscar um bilhete que não comprou.
Addie estuga o passo, na esperança de deixar uma porta entre ambos, mas não vale a pena, o
revisor está ao seu lado a cada instante, e por isso abranda e para diante de uma porta que se abre
para um compartimento que certamente não é seu, esperando que pelo menos esteja vazio.
Não está.
Estende a mão para o puxador, este cede, deslizando e dando entrada para um compartimento
obscuro, com um homem elegante encostado à entrada, caracóis negros desenhados como tinta
contra as têmporas.
É acometida por uma sensação de alívio.
— Herr Wald — diz o revisor, endireitando-se, com se o homem à porta fosse um duque e
não a escuridão.
Luc sorri.
— E aqui estás tu, Adeline — diz numa voz tão suave e intensa como mel de verão. Os seus
olhos verdes saltam dela para o revisor. — Esta minha mulher tem artes de se escapar. Ora então
— diz ele —, o que te trouxe de volta à minha companhia?
Addie consegue esboçar um sorriso, enjoativamente doce.
— Meu amor — diz. — Esqueci-me do bilhete.
Luc dá umas gargalhadinhas, retirando um pedaço de papel do bolso do casaco. Aproxima
Addie de si.
— És mesmo esquecida, minha querida.
Ela indigna-se, mas mantém-se calada, inclinando-se, ao invés, para ele.
O revisor verifica o bilhete e deseja-lhes uma noite agradável, e, no momento em que
desaparece, ela afasta-se de Luc.
— Minha Adeline. — Faz um som depreciativo com a língua. — Isso não é maneira de tratar
um marido.
— Não sou tua — diz ela. — E não precisava da tua ajuda.
— Claro que não — responde ele secamente. — Vá, não vamos discutir no corredor.
Luc puxa-a para o compartimento ou pelo menos é o que ela pensa que está a fazer, mas, em
vez entrar no espaço familiar da cabine, depara apenas com a escuridão, vasta e profunda. O
coração tem um baque no degrau falhado, na queda súbita, enquanto o comboio desaparece, o
mundo desaparece, e estão de volta ao nada, ao espaço intermédio vazio, e ela sabe que nunca o
conhecerá completamente, que nunca conseguirá abarcar a natureza das trevas. Porque agora
percebe o que é, aquele lugar.
É ele.
É a sua verdade, a noite vasta e selvagem, a escuridão, cheia de promessas e violência, medo
e liberdade.
E, quando a noite volta a ganhar forma à volta deles, já não estão no comboio e na Alemanha,
mas numa rua, no centro de uma cidade que ainda não sabe ser Munique.
E devia sentir-se furiosa com o rapto, a mudança súbita de direção da sua noite, mas não
consegue abafar a curiosidade que floresce depois da confusão. O surgimento súbito de algo
novo. O entusiasmo da aventura.
O coração acelera, mas decide não o deixar perceber o seu assombro. Ainda assim, desconfia
de que ele sabe.
Há um brilho de prazer naqueles olhos, uma faixa de verde mais escuro.
Encontram-se junto à escadaria do edifício de colunas que é a ópera, já sem a roupa de
viagem, substituída por uma indumentária muito mais elegante, e Addie pergunta-se se o vestido
será real, da mesma forma que tudo é real, ou simplesmente uma magia feita de fumo e sombra.
Luc encontra-se ao seu lado, um lenço cinzento à volta do pescoço. Os olhos verdes a dançar sob
a aba de uma cartola de seda.
A noite está cheia de movimento, homens e mulheres a subir os degraus de braços dados para
assistirem ao espetáculo. Fica a saber que é Wagner, que é Tristão e Isolda, embora isso ainda
não lhe diga nada. Não sabe que é o ponto mais alto da sua carreira. Não sabe que se tornou a sua
obra-prima. Mas capta o sabor a promessa, como açúcar no ar, enquanto passam por um átrio de
colunas de mármore e arcos pintados e entram na sala de concertos, forrada a veludo e ouro.
Luc pousa-lhe uma mão ao fundo das costas, guiando-a até à parte da frente de um camarote,
uma caixa baixa com uma visão perfeita do palco. O coração dela acelera de excitação, antes de
se lembrar de Florença.
Não confundas isto com bondade, disse ele. Quero apenas ser aquele que te faz ceder.
Mas não há maldade nos seus olhos quando ocupam os seus lugares. Não há esgares cruéis no
seu sorriso. Apenas o prazer lânguido de um gato ao sol.
Chegam dois copos, a transbordar de champanhe, e ele entrega-lhe um.
— Feliz aniversário — diz, enquanto as luzes se apagam e a cortina sobe.
Começa com música.
A tensão crescente de uma sinfonia, notas como ondas: a rolarem pela sala, a quebrarem-se
contra as paredes. A investida de uma tempestade contra uma embarcação.
E depois, a chegada de Tristão. De Isolda.
As suas vozes maiores do que o palco.
Claro que já ouviu musicais, ouviu sinfonias e peças de teatro, vozes tão puras que a levam às
lágrimas. Mas nunca ouviu nada como aquilo.
A forma como cantam. A intenção e a escala das emoções.
A paixão desesperada nos movimentos. A energia crua da alegria e da dor.
Quer guardar aquela sensação, transportá-la consigo pela escuridão.
Passar-se-ão anos até ouvir uma gravação daquela sinfonia e subir o volume até doer, rodear-
se de som, embora nunca seja como ali.
Uma vez, Addie afasta o olhar dos cantores em palco, para perceber apenas que Luc a observa
a ela, não a eles. E ali está de novo, aquele matiz especial de verde. Não de reserva ou de
censura, mas de prazer.
Perceberá mais tarde que é a primeira noite que não lhe pede que se renda.
A primeira vez que não refere a sua alma.
Mas, naquele instante, pensa apenas na música, na sinfonia, na história. Volta a ser atraída
para o palco pela angústia de uma nota. Pelo enredar dos membros num abraço, pelo ar dos
amantes em palco.
Inclina-se para diante, inspira a ópera até lhe doer dentro do peito.
A cortina desce sobre o primeiro ato, e Addie está de pé, a aplaudir efusivamente.
Luc ri-se, suave como a seda, quando ela volta a sentar-se no seu lugar.
— Estás a gostar.
E não mente, nem para o espicaçar.
— É maravilhoso.
Um sorriso brinca-lhe no rosto.
— Consegues adivinhar quais delas são minhas?
Primeiro, não compreende e, depois, claro que sim.
O entusiasmo esmorece.
— Estás aqui para as reclamar? — pergunta, aliviada, quando Luc abana a cabeça.
— Não — diz ele —, hoje não. Mas em breve.
Addie abana a cabeça.
— Não compreendo. Porque hás de pôr fim às suas vidas quando estão a chegar ao seu ponto
mais alto?
Ele olha para ela.
— Fizeram um pacto. Sabem qual é o preço.
— Porque haveria alguém de trocar uma vida inteira de talento por alguns anos de glória?
O sorriso de Luc ensombrece.
— Porque o tempo é cruel para toda a gente, e ainda mais cruel para os artistas. Porque a sua
vista tolda-se, e o talento esmorece. — Aproxima-se mais dela, enrola uma madeixa do seu
cabelo à volta de um dedo. — Porque a felicidade é breve, e a história é duradoura, e, no fim —
diz —, toda a gente quer ser recordada.
As palavras são uma faca, a cortar célere e profundamente.
Addie afasta-lhe a mão com um gesto brusco e volta a concentrar-se no palco, enquanto a
ópera continua.

É uma peça longa, e, no entanto, termina demasiado depressa.


Horas, passadas em instantes. Addie deseja poder ficar enfiada na cadeira e recomeçar a
ópera, aninhar-se entre os amantes e a sua tragédia, perder-se na beleza das suas vozes.
E, no entanto, não consegue evitar perguntar-se se todas as coisas que amou foi por elas
próprias — ou por ele.
Luc levanta-se, oferecendo o braço.
Ela não o aceita.
Caminham lado a lado, pela noite de Munique, e Addie ainda se sente flutuar depois da ópera,
com as vozes a repicarem através dela como um sino.
Mas a pergunta de Luc também ecoa.
Quais delas são minhas?
Olha para ele, a forma elegante ao seu lado no escuro.
— Qual foi o pacto mais estranho que fizeste?
Luc inclina a cabeça para trás e pondera.
— Joana d’Arc — diz. — Uma alma em troca de uma espada abençoada, para que não
pudesse ser atingida.
Addie franze o sobrolho.
— Mas foi.
— Ah, mas não em batalha. — O sorriso de Luc torna-se matreiro. — A semântica pode não
parecer importante, Adeline, mas o poder de um pacto reside nas palavras em que é formulado.
Ela pediu a proteção de um deus enquanto isso estivesse nas suas mãos. Não pediu a capacidade
de a manter.
Addie abana a cabeça, pensativa.
— Recuso-me a acreditar que Joana d’Arc tenha feito um pacto com as trevas.
O sorriso abre-se mais, mostrando dentes.
— Bem, talvez eu a tenha deixado acreditar que foi um pouco mais... angelical? Mas, lá no
fundo, acho que ela sabia. A grandiosidade exige sacrifício. A quem nos sacrificamos importa
menos do que aquilo por que nos sacrificamos. E, no fim, tornou-se aquilo que queria ser.
— Uma mártir?
— Uma lenda.
Addie abana a cabeça.
— Mas os artistas... Pensa em tudo o que poderiam ter feito. Não lamentas a sua perda?
O rosto de Luc ensombrece. E Addie lembra-se do seu mau humor na noite em que se
encontrou com ela no National, lembra-se das suas primeiras palavras, no quarto de Beethoven.
Que desperdício.
— Claro que sim — diz ele. — Mas os grandes artistas só surgem em troca de um preço. —
Afasta o olhar. — Devias sabê-lo. Afinal, ambos somos mecenas, à nossa maneira.
— Não tenho qualquer semelhança contigo — diz ela, mas não há veneno nas palavras. —
Sou uma musa, e tu és um ladrão.
Ele encolhe os ombros.
— Dar e tirar — diz ele, apenas.
Mas, quando fica tarde e ele desaparece e Addie é deixada a deambular, por ali, a ópera ouve-
se, perfeitamente preservada dentro do prisma da sua memória, e Addie pergunta-se, baixinho,
silenciosamente, se as suas almas terão sido um preço justo por uma arte tão elevada.
Nova Iorque
4 de julho de 2014

As luzes explodem sobre a cidade.


Juntaram-se no terraço por cima do prédio de Robbie, com mais vinte pessoas, para ver o
fogo de artifício pintar o horizonte de Manhattan de rosa e verde e dourado.
Addie e Henry estão juntos, claro, mas está demasiado calor para se tocarem. Os óculos dele
estão sempre a embaciar-se, e parece menos interessado em beber a sua cerveja do que em
encostar a lata ao pescoço.
Uma brisa percorre o ar, trazendo tanto alívio quanto a saída de ar de uma máquina de secar, e
toda a gente no terraço faz sons exagerados, soltando oohs e ahhs que poderão dever-se ao fogo
de artifício ou simplesmente à lufada de vento morno.
Há uma piscina de criança no centro do terraço, rodeada de cadeiras de jardim, com uma série
de pessoas a chapinhar com os pés na água tépida.
O fogo de artifício chega ao fim, e Addie olha em volta, à procura de Henry, mas este
desapareceu.
Tem estado com uma disposição estranha o dia inteiro, mas imagina que seja do calor, que
assenta como um peso sobre toda a gente. A livraria estava fechada, e passaram a maior parte do
dia estendidos no sofá em frente a uma ventoinha, com Book a dar patadas a um cubo de gelo
enquanto viam televisão, sendo o calor inclusivamente suficiente para fazer abrandar a energia
maníaca de Henry.
Ela estava demasiado cansada para lhe contar histórias.
Ele estava demasiado cansado para as escrever.
As portas do terraço abrem-se, e Robbie aparece, parecendo ter assaltado uma carrinha de
gelados, com os braços cheios de doces a derreter. As pessoas gritam e aclamam, e ele vai
andando pelo terraço, a distribuir guloseimas outrora refrescantes.
À décima segunda é de vez, pensa Addie quando lhe entrega um gelado com sabor a fruta,
mas, apesar de não se lembrar dela, Henry obviamente disse o suficiente ou talvez Robbie
reconheça simples- mente todas as outras pessoas e faça a dedução.
Uma destas coisas não é igual às outras.
Addie não perde um segundo. Desfaz-se num sorriso súbito.
— Oh, meu Deus, deves ser o Robbie. — Atira-lhe os braços ao pescoço. — O Henry contou-
me tudo a teu respeito.
Robbie liberta-se.
— Ai foi?
— És o ator. Ele disse que és espantoso. Que é apenas uma questão de tempo até estares na
Broadway. — Robbie cora um pouco, afasta o olhar. — Adorava assistir a um dos teus
espetáculos. O que andas a fazer agora?
Robbie hesita, mas ela sente-o vacilar, dividido entre evitá-la e partilhar a notícia.
— Estamos a fazer uma adaptação do Fausto — diz ele. — Sabes, o homem faz um pacto
com o diabo...
Addie morde o gelado, projetando uma onda de choque que se transmite aos dentes. É o
suficiente para disfarçar a sua reação, enquanto Robbie continua.
— Mas a peça vai ser montada num palco que é mais como o Labirinto. Pensa em
Mefistófeles mais como o Rei dos Goblins. — Faz um gesto para a sua própria pessoa quando o
diz. — É uma adaptação muito fixe. O guarda-roupa é fantástico. Seja como for, só estreia em
setembro.
— Parece excelente — diz ela. — Fico ansiosa por ver.
Perante estas palavras, Robbie quase sorri.
— Acho que vai ser muito bom.
— Ao Fausto — diz ela, levantando o gelado.
— E ao diabo — responde Robbie.
As mãos dela ficaram pegajosas. Mergulha-as na piscina de criança e vai à procura de Henry.
Encontra-o finalmente, sozinho num canto do terraço, um ponto que as luzes não alcançam. Está
a olhar para fora, não para o céu, mas por cima do parapeito.
— Acho que finalmente percebi o Robbie — diz ela, limpando as mãos aos calções.
— Hum? — diz ele, sem estar realmente a ouvir. Uma gota de suor corre-lhe pela face, e
fecha os olhos sob a suave brisa de verão, balançando um pouco sobre os pés.
Addie puxa-o da beira do edifício.
— O que se passa?
Tem os olhos escuros e, por um instante, parece assombrado, perdido.
— Nada — diz baixinho. — Estava apenas a pensar.
Addie já viveu o suficiente para reconhecer uma mentira. A mentira tem a sua própria
linguagem, como a linguagem das estações ou a dos gestos ou a do tom dos olhos de Luc.
Por isso sabe que Henry lhe está a mentir nesse momento.
Ou que, pelo menos, não lhe está a dizer toda a verdade.
E talvez seja apenas uma das suas tempestades, pensa. Talvez seja do calor do verão.
Claro que não é, e mais tarde saberá a verdade e desejaria ter perguntado, desejaria ter
insistido, desejaria ter sabido.
Mais tarde — mas, nessa noite, ele puxa-a para perto de si. Nessa noite, beija-a,
profundamente, avidamente, como se a pudesse fazer esquecer o que viu.
E Addie deixa-o tentar.
Nessa noite, quando chegam a casa, está demasiado calor para pensar, para dormir, por isso
enchem a banheira de água fria, apagam as luzes e entram, estremecendo sob o alívio súbito e
clemente.
Ficam ali, no escuro, com as pernas nuas entrelaçadas debaixo de água. Os dedos de Henry
tocam uma melodia no joelho dela.
— Quando nos conhecemos — pensa em voz alta —, porque não me disseste o teu verdadeiro
nome?
Addie olha para cima, para os azulejos do teto escurecidos, e vê Isabelle como estava, no
último dia, sentada à mesa, de olhos vazios. Vê Remy no café, com os olhos sonhadoramente
fixos num ponto para lá das suas palavras, incapaz de as ouvir.
— Porque não pensei que conseguisse — diz ela, passando os dedos pela água. — Quando
tentava dizer a verdade às pessoas, os seus rostos ficavam vazios. Quando tentava dizer o meu
nome, ficava-me sempre entalado na garganta. — Sorri. — Exceto contigo.
— Mas porquê? — pergunta ele. — Se vais ser esquecida, o que importa dizeres a verdade?
Addie fecha os olhos. É uma boa pergunta, uma pergunta que fez a si mesma centenas de
vezes.
— Acho que ele me queria apagar. Certificar-se de que eu não me sentia vista, ouvida, real.
Só nos apercebemos realmente do poder de um nome quando este desaparece. Antes de ti, ele era
o único que o conseguia dizer.
A voz enrola-se como fumo dentro da sua cabeça.
Oh, Adeline.
Adeline, Adeline.
Minha Adeline.
— Que estupor — diz Henry, e ela ri-se em pequenas gargalhadas, lembrando-se das noites
em que gritou para o céu, em que chamou nomes muito piores às trevas.
E então ele pergunta:
— Quando foi a última vez que o viste? — e Addie hesita. Por um instante, está numa cama,
com lençóis de seda pretos enrolados aos seus membros, no calor opressivo de Nova Orleães,
mesmo no escuro. Mas Luc é um peso fresco, em torno dos seus membros, os dedos a aflorarem-
lhe o ombro enquanto sussurra a palavra contra a sua pele.
Rende-te.
Addie engole em seco, empurra a memória pela garganta abaixo, como bílis.
— Há quase trinta anos — diz, como se não contasse os dias. Como se o aniversário não se
precipitasse para ir ao seu encontro.
Olha para o lado, para a roupa amontoada no chão da casa de banho, para a marca do anel de
madeira no bolso dos calções.
— Tivemos um desentendimento — diz, e é a versão mais aproximada da verdade.
Henry olha para ela, claramente curioso, mas não pergunta o que aconteceu, e Addie sente-se
grata por isso.
Há uma ordem na história.
Dir-lhe-á quando lá chegar.
Por agora, Addie levanta o braço e liga o chuveiro, e a água cai sobre eles como chuva,
relaxante e firme. E é o tipo de silêncio perfeito. Fácil e vazio. Sentam-se um em frente ao outro
sob a corrente gelada, e Addie fecha os olhos e inclina a cabeça para trás na banheira, a ouvir a
tempestade improvisada.
The Cotswolds, Inglaterra
11 de dezembro de 1899

Está a nevar.
Não uma pátina de gelo ou uns quantos flocos isolados, mas um mergulho de branco.
Addie está sentada à janela da pequena casa de campo, aninhada, com o lume atrás de si e um
livro aberto sobre o joelho, enquanto vê o céu despenhar-se.
Passou o virar dos anos de formas muito diferentes.
Empoleirada nos telhados de Londres com garrafas de champanhe e com um archote na mão
pelas ruas empedradas de Edimburgo. Dançou nos salões de Paris e viu o céu ficar branco com o
fogo de artifício, em Amesterdão. Beijou estranhos e cantou sobre amigos que nunca viria a
conhecer. Saiu ao som de estampidos e de sussurros.
Mas esta noite sente-se satisfeita por estar ali sentada a ver o mundo ficar branco do outro
lado da janela, cada linha e cada curva apagadas pela neve.
A casa não é dela, claro. Pelo menos em sentido literal.
Encontrou-a mais ou menos intacta, um lugar abandonado, ou simplesmente esquecida. Os
móveis estavam completamente gastos, os armários quase vazios. Mas teve uma estação para a
tornar sua, para juntar madeira da mata, do outro lado do campo. Para tratar do jardim selvagem
e roubar aquilo que não conseguiu cultivar.
É apenas um sítio onde pode deixar os ossos a repousar.
Lá fora, a tempestade aquietou.
A neve permanece imóvel no chão. Suave e limpa como papel em branco.
Talvez seja isso que a faz levantar-se.
Puxa a capa bem para junto aos ombros e sai de rompante, com as botas a afundarem-se
imediatamente na neve. É leve, envolvida numa camada de açúcar, o sabor a inverno na língua.
Uma vez, quando tinha 5 ou 6 anos, nevou em Villon. Uma visão rara, uma camada de branco
com vários centímetros de profundidade que cobriu tudo. Numa questão de horas, foi destruída
por cavalos e carroças, e pessoas, a andarem penosamente de cá para lá, mas Addie descobriu
uma pequena extensão de branco imaculado. Precipitou-se sobre ele, deixando um rasto de
pegadas. Passou as mãos nuas pelas camadas de gelo, deixou dedadas sob o seu toque. Destruiu
cada centímetro da tela.
E depois, quando terminou, olhou em volta, para o campo, então coberto de marcas, e
lamentou tudo ter chegado ao fim. No dia seguinte, a geada desfez-se, e o gelo derreteu, e foi a
última vez que brincou na neve.
Até agora.
Agora, os seus passos esmagam a neve perfeita, e esta volta a erguer-se, à sua passagem.
Agora, passa os dedos pelos montículos suaves, e estes alisam-se após o seu toque.
Agora, brinca no campo e não deixa marcas.
O mundo permanece imaculado, e pela primeira vez sente-se grata.
Gira e rodopia e dança sozinha pela neve, rindo-se da magia estranha e simples do momento,
antes de pousar mal o pé, numa área mais profunda do que pensava.
Perde o equilíbrio e cai em cima de um monte de branco, arfando sob o frio súbito ao longo
do pescoço, a neve que se introduziu pelo capuz. Olha para cima. Começou a nevar outra vez,
agora levemente, os flocos a caírem como estrelas. O mundo é abafado, um silêncio semelhante a
algodão. E, não fosse pela humidade gelada que perpassa a roupa, acha que poderia ficar ali para
sempre.
Decide que, pelo menos por enquanto, irá ficar.
Afunda-se na neve, deixa-a engolir-lhe os contornos da visão, até não haver mais do que uma
moldura à volta do céu aberto, a noite fria e límpida e cheia de estrelas. E tem de novo 10 anos,
está estendida na relva alta, atrás da oficina do pai, a sonhar que está noutro sítio qualquer que
não em casa.
Estranho, a forma tortuosa como um sonho se torna realidade.
Mas agora, ao olhar para a escuridão infindável, não pensa em liberdade, mas nele.
E então ele aparece.
De pé, sobre dela, aureolado pela escuridão, e pensa que talvez esteja outra vez a
enlouquecer, não seria a primeira vez.
— Duzentos anos — diz Luc, ajoelhando-se ao lado dela —, e ainda a comportares-te como
uma criança.
— O que estás aqui a fazer?
— Podia fazer-te a mesma pergunta.
Segura-lhe na mão, e ela aceita-a, deixa-o levantá-la do frio, e juntos caminham de volta à
casinha, deixando apenas os passos dele na neve.
Lá dentro, o lume apagou-se, e ela resmoneia consigo própria, alcançando a candeia,
esperando que seja o suficiente para devolver o fogo à vida.
Mas Luc olha apenas para os destroços fumegantes e estala os dedos de forma ausente, e as
chamas irrompem dentro da lareira, uma explosão de calor, lançando sombras sobre todas as
coisas.
Quão facilmente Luc se desloca pelo mundo, pensa ela.
Quão difíceis tornou as coisas para ela.
Luc avalia a pequena casa de campo, a vida emprestada.
— Minha Adeline — diz —, ainda a desejar crescer e transformar-se na Estele.
— Não sou tua — diz ela, embora por esta altura as palavras já tenham perdido o seu veneno.
— Com o mundo inteiro diante de ti, e passas o tempo a interpretar o papel de uma bruxa na
floresta, uma velha a invocar os deuses.
— Não te invoquei. E, no entanto, estás aqui.
Deixa-o entrar, envergando um casaco de lã e um lenço de caxemira, as golas bem subidas até
às faces, e percebe que é a primeira vez que vê Luc no inverno. Fica-lhe bem, tal como o verão.
A pele bela das faces assumiu um branco de mármore, e os caracóis negros, a cor do céu sem
luar. Os olhos verdes, frios e brilhantes como estrelas. E, pelo seu aspeto, de pé em frente à
lareira, desejava poder desenhá-lo. Mesmo passado todo este tempo, os seus dedos anseiam por
carvão.
Luc passa uma mão pela pedra da lareira.
— Vi um elefante em Paris.
As palavras dela para ele, muitos anos antes. É uma resposta tão estranha agora, cheia de
coisas não ditas. Vi um elefante e pensei em ti.
Estive em Paris, e tu não.
— E pensaste em mim — diz ela.
É uma pergunta. Ele não responde. Em vez disso, olha em volta e diz:
— Que forma deplorável de passar um ano. Podemos fazer melhor do que isto. Vem comigo.
E ela está curiosa — está sempre curiosa —, mas, nessa noite, abana a cabeça.
— Não.
O queixo dele ergue-se, de orgulho. As sobrancelhas negras arqueiam, juntas.
— Porquê?
Addie encolhe os ombros.
— Porque estou feliz aqui. E não acredito que me tragas de volta. O sorriso dele tremeluz,
como lume. E Addie espera que a coisa tenha ficado resolvida.
Espera virar-se e descobrir que ele desapareceu, devolvido à escuridão.
Mas continua ali, a sua sombra na casa emprestada de Addie.
Senta-se na segunda cadeira.
Faz aparecer copos de vinho, do nada, e sentam-se diante da lareira como amigos ou, pelo
menos, como inimigos numa trégua, e ele fala-lhe de Paris no fecho de uma década — na
viragem do século. Dos escritores, a florescer como botões, da arte e da música e da beleza.
Sempre soube como a tentar. Diz que é uma época de ouro, um tempo de luz.
— Havias de gostar — diz. — Tenho a certeza.
Ela irá, na primavera, e assistirá à Feira Mundial, verá a Torre Eiffel, a escultura de ferro
erguer-se em direção ao céu. Andará por entre edifícios de vidro, instalações efémeras, e toda a
gente falará do século antigo e do novo, como se houvesse uma linha na areia entre o presente e
o passado. Como se tudo não existisse ao mesmo tempo.
A história é algo concebido em retrospetiva.
Por enquanto, ouve-o falar, e é o suficiente.
Não se lembra de ter adormecido, mas, quando acorda, é quase manhã, e a casa está vazia,
com o lume reduzido a cinzas. Puseram-lhe um cobertor sobre os ombros e, do outro lado do
vidro, o mundo está novamente branco.
E Addie perguntar-se-á se realmente terá ali estado.
NÃO FAÇAS DE CONTA QUE ISTO É AMOR
Título: «Rapariga de Sonho»
Artista: Toby Marsh
Data: 2014
Suporte: Partitura
Origem: Cedido pela família Pershing
Descrição: Esta folha de uma partitura original, assinada pelo cantautor Toby Marsh, regista o princípio da canção
«Rapariga de Sonho» e foi leiloada como parte da gala anual da Music Notes para patrocinar programas de arte em escolas
públicas de Nova Iorque. Embora algumas das letras difiram da canção final, os versos mais famosos — «E tenho tanto
medo, medo de a esquecer,/Apesar de só a ter conhecido nos meus sonhos» — leem-se claramente no centro da página.
Contexto: É consensual ter sido esta a canção a lançar a carreira de Marsh. O músico limitou-se a fomentar a mitologia que
rodeia o tema, alegando que a canção lhe surgiu ao longo de vários sonhos. «Acordava com as notas musicais na cabeça»,
disse numa entrevista ao Paper Magazine, em 2016. «Descobria a letra escrevinhada em blocos e recibos, mas não tinha
memória de a ter escrito. Era uma espécie de sonambulismo. De produção enquanto dormia. Parecia tudo um sonho.»
Marsh nega estar sob a influência de qualquer droga na altura.
Valor estimado: 15 mil dólares
Villon-sur-Sarthe
29 de julho de 1914

Chove torrencialmente em Villon.


O Sarthe incha contra as margens, e a chuva transforma os caminhos em rios de lama.
Derrama-se sobre as soleiras das portas, enche-lhe os ouvidos com o ruído branco regular de
água a precipitar-se, e, quando Addie fecha os olhos, os anos dissolvem-se, e tem de novo 10
anos, tem 15, tem 20, as saias encharcadas e o cabelo a esvoaçar atrás dela enquanto corre,
descalça, por um campo lavado pela chuva.
Mas depois abre os olhos de novo, e passaram-se duzentos anos, e não consegue negar que
aquela aldeiazinha de Villon mudou. Reconhece cada vez menos coisas, estranha cada vez mais
coisas. Aqui e ali, ainda consegue divisar o lugar que outrora conheceu, mas as suas memórias
estão puídas, com os anos anteriores à sua partida a definhar e a esbater-se.
E, no entanto, algumas coisas são constantes.
A extensão da rua que percorre a vila.
A igrejinha mesmo no centro.
O muro baixo do cemitério, imune ao lento desfilar da mudança.
Addie demora-se à porta da capela, observando a tempestade. Tinha um chapéu de chuva
quando começou, mas uma rajada de vento violenta dobrou a estrutura, e sabe que deverá esperar
que a chuva abrande, que tem apenas aquele vestido. Mas, enquanto ali está, com uma mão
estendida para colher a água que cai, pensa em Estele, que costumava ficar de pé sob as
tempestades, de braços abertos, em boas-vindas.
Addie abandona o seu abrigo e dirige-se ao portão do cemitério.
Em pouco tempo, fica encharcada, mas a chuva é quente, e ela dificilmente derreterá. Passa
por umas quantas lápides novas e por muitas antigas, coloca uma rosa selvagem em cada uma
das sepulturas dos pais e vai à procura de Estele.
Teve saudades da velha durante todos aqueles anos, saudades do seu consolo, do seu
conselho, teve saudades da força do seu abraço e do seu riso lenhoso e da forma como acreditava
em Addie quando esta era Adeline, quando ainda ali estava, quando ainda era humana. E, apesar
de se agarrar ao que pode, a voz de Estele fez tudo menos desaparecer com os anos decorridos. É
o único lugar onde ainda a consegue invocar, sentindo a sua presença nas velhas pedras, na terra
emaranhada de ervas, na árvore retorcida por cima da sua cabeça.
Mas a árvore não está ali.
A sepultura afunda-se, abatida, no talhão, a pedra a desfazer-se e fendida, mas a bela árvore,
com os seus troncos amplos e as suas raízes profundas, desapareceu.
Resta apenas um cepo entalhado.
Addie arqueja de forma audível, deixando-se cair de joelhos, passa as mãos pela cabeça e pela
madeira lascada. Não. Não, isto não. Perdeu muito e já se lamentou por tudo antes, mas, pela
primeira vez em anos, é acometida por uma sensação de perda tão intensa que lhe rouba o fôlego,
a força, a vontade.
A mágoa, profunda como um poço, abre-se dentro dela.
De que vale plantar sementes?
Porque se há de cuidar delas?
Porque se deve ajudá-las a crescer?
Tudo se desmorona no fim.
Tudo morre.
E ela é tudo o que resta, um fantasma solitário de vela sobre coisas esquecidas. Fecha os
olhos com força e tenta invocar Estele, tenta chamar a voz da idosa, para lhe poder dizer que
tudo ficará bem, que é apenas madeira — mas a voz desapareceu, perdida sob a tempestade
furiosa.
Addie ainda ali está, à espera, ao fim do dia.
A chuva abrandou, transformando-se numa morrinha, o pingar ocasional de água contra
pedra. Está encharcada, mas já não o consegue sentir, não consegue sentir grande coisa — até
sentir o ar mudar e a chegada da sombra, atrás dela.
— Lamento — diz ele, e é a primeira vez que ouviu aquelas palavras naquela voz sedosa, a
única vez que irão soar sinceras.
— Foste tu que fizeste isto? — sussurra sem olhar para cima.
E, para sua surpresa, Luc ajoelha-se ao seu lado na terra ensopada. A sua roupa não parece
molhada.
— Não me podes culpar por todas as perdas — diz ele.
Só se apercebe de que está a tremer quando o braço dele lhe envolve os ombros, quando sente
os membros tiritar contra o seu peso firme.
— Sei que posso ser cruel — diz ele. — Mas a natureza ainda consegue ser mais.
Agora é óbvia, a linha escura no centro do cepo. O corte rápido e quente de um relâmpago.
Não alivia a sensação de perda.
Não suporta olhar para a árvore.
Não aguenta ficar ali mais tempo.
— Anda — diz ele, fazendo-a levantar-se, e não sabe onde vão e não quer saber, desde que
seja outro sítio qualquer. Addie vira a cabeça para o cepo destruído, para a sepultura desgastada
até ao nada. Mesmo as rochas, pensa enquanto segue Luc para longe do cemitério e da aldeia e
do passado.
Nunca mais voltará.
Claro que Paris mudou muito mais do que Villon.
Com os anos, viu-a ser polida até reluzir, os edifícios brancos serem cobertos com telhados de
carvão. Janelas longas e varandas de ferro e avenidas amplas carregadas de floristas e cafés sob
toldos vermelhos.
Sentam-se numa esplanada, o vestido dela a secar sob a brisa de verão, uma garrafa de Porto
aberta entre ambos. Addie bebe avidamente, tentando varrer a imagem da árvore, sabendo que
não haverá vinho que chegue para limpar as suas memórias.
Isso não a impede de tentar.
Algures ao longo do Sena, um violino começa a tocar. Sob as notas altas, ouve a trepidação
do motor de um automóvel. O casco teimoso de um cavalo. A estranha música de Paris.
Luc ergue o copo.
— Feliz aniversário, minha Adeline.
Ela olha para ele, os lábios a abrirem-se no trejeito habitual, mas logo se interrompe
abruptamente. Se ela é dele — então, por esta altura, ele também deve ser dela.
— Feliz aniversário, meu Luc — responde, só para ver a cara que ele irá fazer.
É recompensada por uma sobrancelha arqueada, pelo contorcer da sua boca, pelo verde dos
olhos a mudar, de surpresa.
Então Luc olha para baixo, roda o copo de Porto entre os dedos.
— Uma vez disseste-me que éramos parecidos — diz ele, quase para si mesmo. — Ambos...
solitários. Odiei-te por o teres dito. Mas suponho que, em alguns sentidos, tens razão. Suponho
— continua lentamente — que há algo na ideia de companhia.
É o mais próximo que alguma vez chegou de parecer humano.
— Tens saudades minhas — pergunta ela — quando não estás aqui?
Aqueles olhos verdes desviam-se, com o verde-esmeralda a brilhar, mesmo no escuro.
— Estou aqui, contigo, mais vezes do que pensas.
— Claro — diz ela —, tu apareces e desapareces sempre que queres. Eu não tenho remédio
senão esperar.
Os olhos dele escurecem de prazer.
— Esperas por mim?
E agora é Addie quem desvia o olhar.
— Tu próprio o disseste. Todos ansiamos por companhia.
— E se me pudesses chamar, tal como eu te chamo?
O coração dela acelera um pouco.
Não olha para cima, e é por isso que o vê, a rolar na mesa, na sua direção. Um anel fino, de
madeira de freixo, esculpido.
É um anel.
É o seu anel.
A dádiva que ofereceu às trevas, naquela noite.
A dádiva de que ele desdenhou e que transformou em fumo.
A imagem invocada numa igreja à beira-mar.
Mas, se é uma ilusão agora, é uma ilusão extraordinária. Aqui, o entalhe onde o cinzel do pai
se afundou com um pouco mais de profundidade. Ali, a curva alisada como pedra por anos de
preocupação.
É real. Tem de ser real. E, no entanto...
— Destruíste-o.
— Aceitei-o — diz Luc, olhando por cima do copo. — Não é a mesma coisa.
A irritação acende-se nela.
— Disseste que não valia nada.
— Disse que não era suficiente. Mas não destruo a beleza sem motivo. Foi meu, por algum
tempo, mas sempre foi teu.
Addie maravilha-se perante o anel.
— O que devo fazer?
— Sabes como chamar os deuses.
A voz de Estele, suave como uma brisa.
Tens de te prostrar perante eles.
— Se o puseres, eu venho. — Luc inclina-se para trás, na cadeira, com a brisa noturna a
soprar por entre os seus cabelos de corvo. — Pronto — diz ele. — Agora estamos em pé de
igualdade.
— Nunca estaremos em pé de igualdade — diz ela enquanto roda o anel entre dedo e polegar
e decide que não o irá usar.
É um desafio. Um jogo, apresentado como uma concessão. Mais uma aposta do que uma
batalha. Uma guerra de vontades. Para ela, pôr o anel, chamar Luc, seria vergar-se, reconhecer a
derrota.
Render-se.
Enfia o objeto no bolso da saia, obriga os dedos a soltarem o talismã.
Só então repara na tensão que existe no ar, nessa noite. É uma energia que já sentiu antes, mas
que não consegue situar, até que Luc diz:
— Está prestes a deflagrar uma guerra.
Addie não sabia. Ele conta-lhe do assassinato do arquiduque, o rosto como uma máscara de
desagrado terrível.
— Detesto a guerra — diz de forma sombria.
— Pensei que gostavas de conflito.
— O rescaldo alimenta a arte — diz ele. — Mas a guerra transforma cínicos em crentes.
Delatores em pessoas desesperadas por salvação, com toda a gente a agarrar-se subitamente às
suas almas, a apertá-las com força, como uma mãe de família às suas melhores pérolas. — Luc
abana a cabeça. — Devolvam-me a Belle Époque.
— Quem diria que os deuses eram tão nostálgicos?
Luc termina a bebida e levanta-se.
— Devias partir, antes que comece. — Addie ri-se. Quase parece que se importa. O anel
permanece, um peso súbito no bolso. Estende a mão. — Posso levar-te.
Devia ter aceitado, devia ter dito que sim. Devia tê-lo deixado levá-la pela escuridão terrível e
novamente para fora dela e poupado um oceano, uma semana miserável a bordo de um navio, no
mar, com a beleza da água maculada pela sua natureza interminável.
Mas aprendeu demasiado bem a manter-se firme.
Luc abana a cabeça.
— Continuas a ser uma tola obstinada.
Brinca com a possibilidade de ficar, mas, depois de ele se ir embora, não consegue evitar
lembrar as sombras no seu olhar, a forma sinistra como falou do conflito futuro. É um sinal,
quando os deuses e os demónios receiam uma contenda.
Uma semana mais tarde, Addie foge e embarca num navio para Nova Iorque. Quando atraca,
o mundo já está em guerra.
Nova Iorque
29 de julho de 2014

É mais um dia, apenas.


É o que Addie diz para si mesma.
É um dia, apenas — como todos os outros —, mas claro que não é.
Passaram-se trezentos anos desde que se deveria ter casado — um futuro recebido contra a
sua vontade.
Trezentos anos desde que se ajoelhou na floresta e invocou as trevas e perdeu tudo, exceto a
liberdade.
Trezentos anos.
Devia haver uma tempestade, um eclipse. Alguma forma de assinalar a monumentalidade da
data.
Mas o dia amanhece perfeito e sem nuvens e azul.
A cama está vazia ao seu lado, mas consegue ouvir o arrastar baixo dos passos de Henry a
andar pela cozinha, e deve ter agarrado os cobertores com força, porque os dedos lhe doem, um
nó de sofrimento no centro da palma esquerda.
Quando abre a mão, o anel de madeira cai de dentro dela.
Afasta-o para fora da cama como se fosse uma aranha, um mau agouro, ouve-o aterrar e saltar
e rolar pelo soalho de madeira. Addie ergue os joelhos e deixa a cabeça cair sobre eles e respira
para o espaço entre as costelas e lembra-se de que é apenas um anel e de que é um dia, apenas.
Mas tem uma corda dentro do peito, um terror surdo a apertá-la com mais força, a dizer-lhe que
parta, que se afaste o máximo possível de Henry, para o caso de ele aparecer.
Não vai aparecer, diz para si mesma.
Mas não quer correr esse risco.
Os dedos de Henry martelam na porta aberta, e ela olha para cima vendo-o trazer uma
travessa com um donut, no qual se encontram espetadas três velas.
E, apesar de tudo, ri-se.
— O que é isto?
— Então, não é todos os dias que a nossa namorada faz trezentos anos.
— Não faço anos hoje.
— Eu sei, mas não sabia bem como lhe chamar.
E, sem mais nem menos, a voz ergue-se como fumo dentro da sua cabeça.
Feliz aniversário, meu amor.
— Pede um desejo — diz Henry.
Addie engole em seco e sopra as velas.
Deita-se na cama ao lado dela.
— Tenho o dia inteiro — diz. —A Bea ficou a substituir-me na loja, e pensei que podíamos
apanhar o comboio para... — mas cala-se quando vê o rosto dela.
— O que foi?
O terror crava as unhas no seu estômago, mais profundo do que a fome.
— Não acho que devamos estar juntos — diz ela. — Pelo menos hoje.
O rosto dele afunda-se.
— Oh.
Addie apoia o rosto dele nas suas mãos e mente.
— É apenas um dia, Henry.
— Tens razão — diz ele. — É um dia. Mas de quantos é que ele deu cabo? Não deixes que to
roube. — Beija-a. — Que no-lo roube.
Se Luc os encontrar juntos, roubará mais do que isso.
— Vá lá — insiste Henry. — Trago-te muito antes de te transformares numa abóbora. E
depois, se quiseres que passemos a noite separados, eu compreendo. Preocupa-te com ele quando
for noite, mas ainda faltam horas até lá, e mereces um dia bom. Uma recordação boa.
E Henry tem razão. Addie merece.
O terror abranda um pouco no seu peito.
— Muito bem — diz ela, duas palavrinhas, e todo o rosto de Henry se acende de prazer. —
Em que estavas a pensar?
Desaparece na casa de banho e volta a aparecer envergando uns calções de banho amarelos,
com uma toalha atirada por cima de um ombro. Atira-lhe um biquíni azul e branco.
— Vamos.

Rockaway Beach é um mar de toalhas coloridas e de bandeiras plantadas na areia.


O riso rola como a maré enquanto as crianças fazem castelos de areia e as pessoas ficam
deitadas sob o sol ofuscante. Henry estende as toalhas numa extensão estreita de areia por
reclamar, fixa-as com sapatos, e depois Addie pega-lhe na mão e correm praia fora, com as
plantas dos pés a ferver até chegarem à linha húmida do mar e mergulharem na água.
Addie arqueja ao sentir o aflorar bem-vindo das ondas, frias, mesmo no calor do verão, e
avança um pouco até o oceano lhe envolver a cintura. Henry mergulha a cabeça ao seu lado e
regressa à tona, com a água a escorrer-lhe dos óculos. Puxa-a para si, beija-lhe o sal dos dedos.
Ela afasta-lhe o cabelo do rosto. Ficam ali, enredados na rebentação.
— Estás a ver — diz ele —, não achas melhor assim?
E é.
Nadam juntos até lhes doerem os membros e a pele começar a ficar engelhada e depois
regressam às toalhas que os esperam na praia e estendem-se a secar ao sol. Está demasiado calor
para ficar ali muito tempo, e logo o aroma de comida soprada do passadiço é suficiente para os
fazer levantar de novo.
Henry arruma as suas coisas e começa a sair da praia, e Addie levanta-se para ir atrás dele,
sacudindo a areia da toalha.
E o anel de madeira cai.
Fica ali, um pouco mais escuro do que a areia, como uma gota de chuva num passeio seco.
Um lembrete. Addie inclina-se diante dele e enterra-o sob uma mão-cheia de areia, antes de ir a
correr atrás de Henry.
Dirigem-se à fiada de bares que dão para a praia, pedem tacos e um jarro de margaritas
geladas, saboreando o seu sabor pungente e o arrepio doce e salgado. Henry limpa a água dos
óculos, e Addie olha para o oceano e sente o passado envolver o presente, como as marés.
Déjà vu. Déjà su. Déjà vecu.
— O que foi? — pergunta Henry.
Addie olha para ele.
— Hum?
— Estás com aquele ar — diz ele —, o ar de quando te estás a lembrar de alguma coisa.
Addie volta a olhar para o Atlântico, para o debrum infinito da praia, as memórias a
desenrolarem-se sobre o horizonte. E, enquanto comem, fala-lhe de todos os litorais que viu, da
vez em que passou o canal da Mancha de barco, com as falésias brancas de Dover a erguerem-se
no nevoeiro. Da vez em que navegou pela costa de Espanha, uma passageira clandestina nas
entranhas de um barco roubado, e, depois, quando fez a travessia para a América, de toda a
tripulação do barco ter adoecido e de também se ter fingido enferma para não pensarem que era
uma bruxa.
E, quando se cansa de falar e ambos chegam ao fim das bebi- das, passam as próximas horas a
saltar entre a sombra das bancas e o beijo fresco da rebentação, demorando-se na areia apenas o
suficiente para secar.
O dia passa demasiado depressa, como acontece com os dias bons.
E, quando chega a hora da partida, dirigem-se à estação e enterram-se no banco, ébrios de sol
e de sono, enquanto o comboio parte.
Henry tira um livro, mas os olhos de Addie ardem, e encosta-se a ele, saboreando o seu aroma
e sol e a papel, e o assento é de plástico e o ar está saturado, e ela nunca se sentiu tão confortável.
Sente-se afundar em Henry, com a cabeça a baloiçar no seu ombro.
E então ele sussurra-lhe duas palavras contra o cabelo.
— Amo-te — diz, e Addie pergunta-se se será amor, aquele sentimento delicado.
Se deverá ser assim tão suave, tão delicado.
A diferença entre fogo e calor.
Paixão e contentamento.
— Também te amo — diz.
Deseja que seja verdade.
Chicago, Illinois
29 de julho de 1928

Há um anjo por cima do bar.


Um painel de vidro pintado, iluminado por trás, com uma única figura, o cálice erguido e a
mão estendida, como que a chamar à oração.
Mas não se trata de uma igreja.
Os bares clandestinos ultimamente são como ervas daninhas, florescendo entre as pedras da
Lei Seca. Este não tem nome, à exceção do anjo com o seu cálice, da indicação XII na porta
doze, meio-dia e meia-noite, as cortinas de veludo e as cadeiras reclinadas como pessoas
adormecidas, pelo chão de madeira, com máscaras a serem oferecidas aos clientes, à porta.
É, como a maior parte, apenas um boato, um segredo passado de boca alcoolizada em boca
alcoolizada.
E Addie adora-o.
Há um ardor selvagem neste sítio.
Dança — por vezes sozinha e por vezes na companhia de estranhos. Perde-se no jazz que
retumba contra as paredes, que ressoa, enchendo de música o espaço apinhado. Dança, até as
plumas da máscara se lhe colarem ao rosto, e Addie fica ofegante e corada e só então para,
deixando-se cair numa cadeira de couro.
É quase meia-noite, e os seus dedos movem-se como os ponteiros de um relógio pela sua
garganta, onde o anel está pendurado de um fio de prata, o anel de madeira quente contra a sua
pele.
Está sempre ao seu alcance.
Uma vez, quando o fio se partiu, pensou que o perdera, para depois o descobrir em segurança,
dentro do bolso da blusa. Outra vez, deixou-o em cima do parapeito de uma janela e encontrou-o,
horas mais tarde, de novo ao pescoço.
A única coisa que não perde.
Brinca com ele, um hábito ocioso, agora, como enrolar uma madeixa de cabelo à volta de um
dedo. Aflora a extremidade do anel com a unha, fá-lo rodar, tendo o cuidado de nunca o deixar
deslizar para lá do nó do dedo.
Procurou-o centenas de vezes: quando se sentia só, quando estava entediada, quando via algo
belo e pensava nele. Mas é demasiado teimosa, e ele é demasiado orgulhoso, e ela está decidida a
ganhar esta batalha.
Durante catorze anos resistiu ao impulso de o pôr.
E durante catorze anos ele não apareceu.
Por isso tinha razão — é um jogo. Outra espécie de cedência, uma versão mais suave de
rendição.
Catorze anos.
E sente-se só, e um pouco ébria, e pergunta-se se será esta noite que cede. Seria uma queda,
mas a altura não é assim tão grande. Talvez... talvez... Tem de ocupar as mãos, por isso decide ir
buscar outra bebida.
Vai até ao bar e pede um gim tónico, mas homem da máscara branca deixa-lhe antes um copo
de champanhe à frente. Uma única pétala de rosa cristalizada flutua entre as bolhinhas, e, quando
pergunta, o empregado do bar acena para uma sombra num canto forrado a veludo. A sua
máscara pretende dar a ideia de ramos, com as folhas a formarem uma moldura perfeita para uns
olhos perfeitos.
E Addie sorri ao vê-lo.
Estaria a mentir a si mesma se dissesse que foi apenas de alívio. Um peso retirado de cima.
Uma respiração libertada.
— Ganhei — diz ela, sentando-se no banco ao seu lado.
E, embora ele tenha vergado primeiro, tem os olhos brilhantes de triunfo.
— Em que medida?
— Não te chamei, mas mesmo assim vieste.
O queixo dele levanta-se, a imagem do desprezo.
— Presumes que estou aqui por tua causa.
— Já me esquecia — diz ela, entrando na sua cadência suave e baixa. — Há por aqui tantos
seres humanos doidos para negociar a alma.
Um sorriso irónico repuxa os lábios perfeitos de Luc.
— Garanto-te, Adeline, poucos são tão doidos como tu.
— Poucos? — brinca ela. — Tenho de me esforçar mais.
Ele ergue o copo e inclina-o na direção do bar.
— Os factos falam por si: foste tu que me procuraste. Este lugar é meu.
Addie olha em volta e, subitamente, torna-se óbvio.
Vê as marcas por todo o lado.
Apercebe-se, pela primeira vez, de que o anjo por cima do bar não tem asas. De que os
caracóis que lhe emolduram o rosto são negros. De que o anel que confundiu com uma auréola
também poderia ser o luar.
E pergunta-se o que a atraiu ali em primeiro lugar.
Pergunta-se se serão como ímanes, ela e Luc.
Se andaram tanto tempo um à volta do outro que agora partilham uma órbita.
Tornar-se-á um hobby dele, aquele tipo de bares. Instalá-los-á em dezenas de cidades, cuidará
deles como jardins e deixá-los-á crescer livremente.
Tão abundantes como igrejas, dirá, com o dobro da popularidade.
E muito depois dos tempos da Lei Seca, continuarão a florescer, agradando a todos os gostos,
e ela perguntar-se-á se é a sua energia que o atiça ou se serão terreno fértil para almas. Um lugar
para frequentar e observar e prometer. E, num certo sentido, um lugar para rezar, embora num
tipo diferente de adoração.
— Por isso, estás a ver — diz Luc —, talvez tenha sido eu quem ganhou.
Addie abana a cabeça.
— Foi apenas sorte — diz ela. — Eu não te chamei.
Ele sorri, com o olhar a dirigir-se para o anel contra a pele dela.
— Conheço o teu coração. Senti-o vacilar.
— Mas eu não vacilei.
— Não — diz ele, a palavra como uma mera respiração. — Mas cansei-me de esperar.
— Então tu tiveste saudades minhas — diz ela com um sorriso, e há um lampejo muito breve
naqueles olhos verdes. Uma fração de luz.
— A vida é longa, e os seres humanos são aborrecidos. A tua companhia é melhor.
— Esqueces-te de que sou humana.
— Adeline — diz ele, com uma sombra de piedade na voz. — Não és humana desde a noite
em que nos conhecemos. Nunca mais serás humana.
O calor percorre-a ao ouvir aquelas palavras. Já não um calor agradável, mas raiva.
— Ainda sou humana — diz ela, com a voz a apertar-se em torno das palavras como se estas
fossem o seu nome.
— Andas por entre eles como um fantasma — diz Luc, com a testa a inclinar-se contra a dela
— porque não és um deles. Não podes viver como eles. Não podes amar como eles. Não podes
pertencer-lhes.
A sua boca paira sobre a dela, a voz a reduzir-se ao ponto de não passar de uma brisa.
— Pertences-me a mim.
Ouve-se um som semelhante a um trovão no fundo da sua garganta.
— És minha.
E, quando ela olha para cima, para os seus olhos, vê um novo tom de verde e sabe exatamente
o que é. A cor de um homem desequilibrado. O peito dele sobe e desce como se fosse humano.
No lugar onde se pode introduzir uma faca.
— Preferia ser um fantasma.
E, pela primeira vez, a escuridão bruxuleia. Recua como sombras diante da luz. Os seus olhos
empalidecem de raiva, e ali está o deus que conhece, o monstro que aprendeu a enfrentar.
— Como queiras — murmura Luc, e Addie espera que ele se esvaia no escuro, prepara-se
para o vazio súbito e ilimitado, espera ser engolida e cuspida do outro lado do mundo.
Mas Luc não desaparece, e ela também não.
Acena com a cabeça para o bar.
— Vai lá, então — diz —, volta para eles.
E ela preferia que a tivesse expulsado. Em vez disso, levanta-se, apesar de ter perdido a
vontade de beber, de dançar, de qualquer tipo de companhia.
É como sair da luz do sol, com a divisão húmida a arrefecer-lhe a pele, enquanto se senta ali,
no banco forrado a veludo, e revê os movimentos da noite e pela primeira vez sente a distância
entre os seres humanos e ela própria e receia que ele tenha razão.
Acabará por ser ela a ter de partir.
E, no dia seguinte, o bar clandestino é fechado, e Luc desaparece. E, de um momento para o
outro, desenham-se novas linhas, as peças são posicionadas, a batalha começa.
Não o voltará a ver até à guerra.
Nova Iorque
29 de julho de 2014

O comboio A dá um solavanco, acordando Addie.


Abre os olhos no momento exato em que as luzes, lá em cima, tremeluzem e se apagam,
mergulhando a carruagem na escuridão. O pânico irrompe como uma corrente pelo seu peito,
com o mundo do lado de fora das janelas às escuras, mas a mão de Henry aperta-lhe a dela.
— É apenas o carril — diz ele, quando as luzes se voltam a ligar e o comboio é devolvido ao
seu movimento fácil, e ela percebe, quando a voz surge no intercomunicador, que estão de volta
a Brooklyn, de volta ao último troço do metro, e, quando saem, o sol encontra-se posicionado em
segurança, no céu.
Regressam a pé a casa de Henry, moídos do calor e sonolentos, tomam um duche para
eliminar o sal e a areia e atiram-se para cima dos lençóis, com o cabelo molhado a arrefecer na
pele. Book aninha-se aos seus pés. Henry puxa-a para perto de si, e a cama está fresca, e ele está
quente, e, se não for amor, é suficiente.
— Cinco minutos — murmura-lhe contra o cabelo.
— Cinco minutos — responde ela, as palavras como uma espécie de súplica, uma espécie de
promessa, enquanto se enrosca nele.
Lá fora, o sol paira sobre os edifícios.
Ainda têm tempo.
Addie acorda no meio da escuridão.
Quando fechou os olhos, o sol ainda ia alto. Agora, o quarto está cheio de sombras, o céu é
uma nódoa índigo-escura do lado de fora da janela.
Henry ainda está a dormir, mas o quarto está demasiado silencioso, e o terror percorre Addie
quando se senta.
Não diz o nome dele, nem sequer pensa nele quando se levanta, sustendo a respiração
enquanto sai para o corredor às escuras. Passa a sala de estar em revista, preparada para o ver
sentado no sofá, com os braços estendidos ao longo do encosto almofadado.
Adeline.
Mas não está ali.
Claro que não está ali.
Passaram-se quase trinta anos.
Ele não vem. E Addie está farta de esperar por ele.
Regressa ao quarto, vê Henry levantado, com o cabelo num emaranhado de caracóis negros e
soltos, enquanto procura os óculos debaixo das almofadas.
— Desculpa — diz. — Devia ter posto o despertador. — Abre o fecho de um saco, enfia uma
muda de roupa lá dentro. — Posso ficar em casa da Bea. Vou...
Mas Addie agarra-lhe na mão.
— Não vás.
Henry hesita.
— Tens a certeza?
Não tem a certeza de nada, mas passou um dia tão agradável que não quer desperdiçar a noite,
não a quer dar a ele.
Já se apossou do suficiente.
Não há comida em casa, por isso vestem-se e dirigem-se ao Merchant, e há uma ligeireza
sonolenta em tudo aquilo, a desorientação de acordar depois de ter escurecido acrescentada aos
efeitos de uma exposição tão prolongada ao sol. Confere a tudo uma atmosfera de sonho, o
desfecho perfeito para um dia perfeito.
Dizem à empregada que estão a festejar e, quando ela pergunta se é um aniversário ou um
noivado, Addie levanta a cerveja e diz:
— Aniversário.
— Parabéns — diz a empregada. — Quantos anos?
— Trezentos? — diz ela.
Henry engasga-se na bebida, e a empregada ri-se, presumindo que se trata de uma piada
privada. Addie limita-se a sorrir.
Ouve-se uma música, daquelas que se erguem acima da algazarra, e ela obriga-o a levantar-
se.
— Dança comigo — diz ela, e Henry tenta dizer-lhe que não sabe dançar, apesar de ela ter
estado presente, no Fourth Rail, quando se sacudiram ao som da batida, e ele diz que é diferente,
mas Addie não acredita nele, porque os tempos mudam, mas toda a gente sabe dançar, já viu
dançar a valsa e a quadrilha, o fox-trot e o swing e dezenas de outras danças, e tem a certeza de
que ele consegue desenvencilhar-se pelo menos numa delas.
E por isso arrasta-o por entre as mesas, e Henry não sabia que o Merchant tinha pista de
dança, mas ali está ela, e são os únicos a pisá-la. Addie mostra-lhe com levantar a mão, a mexer-
se com ela em movimentos-espelho. Mostra-lhe como conduzir, como a fazer rodopiar, como
baixar-se. Mostra-lhe onde pôr as mãos e como sentir o ritmo nas ancas dela e, por algum tempo,
tudo é perfeito e fácil e tudo está certo.
Desequilibram-se, a rir, enquanto se dirigem ao bar para pedir mais um copo.
— Duas cervejas — diz Henry, e o empregado de bar acena e recua; aparece um minuto
depois e pousa as bebidas.
Mas apenas uma delas é uma cerveja.
A outra é champanhe, com uma pétala de rosa cristalizada a flutuar no centro.
Addie sente o mundo vacilar, o túnel da escuridão.
Há bilhete por baixo do copo, escrito num francês elegante e inclinado.
Para a minha Adeline.
— Ei — diz Henry —, não pedimos isto.
O empregado aponta para a extremidade do balcão.
— Com cumprimentos daquele cavalheiro... — começa, interrompendo-se. — Ah — diz. —
Estava ali agora mesmo.
O coração de Addie martela-lhe no peito. Pega na mão de Henry.
— Tens de ir.
— O quê? Espera...
Mas não há tempo. Empurra-o para a porta.
— Addie.
Luc não os pode ver juntos, não pode saber que encontraram...
— Addie. — Olha finalmente para trás. E sente o mundo desabar sob os pés. O bar está
perfeitamente imóvel.
Não está vazio, não; continua apinhado de gente.
Mas ninguém se move.
Todos pararam a meio de um passo, a meio de uma frase, a meio de um gole. Não
propriamente congelados, mas paralisados à força. Marionetas, presas por fios. Amúsica
continua a tocar; baixinho, agora, mas é o único som, além da respiração irregular de Henry e do
bater do coração de Addie.
E uma voz, a erguer-se das trevas.
— Adeline.
O mundo inteiro sustém a respiração, reduz-se ao eco suave de passos no soalho de madeira, a
figura a surgir das sombras.
Trinta anos, e ali está ele, imutável, tal como ela é imutável, os mesmos caracóis cor de asa
corvo, os mesmos olhos esmeralda, o mesmo esgar dissimulado na boca em forma de arco de
cupido. Traz vestida uma camisa preta, com as mangas enroladas até aos cotovelos, um blazer de
fato atirado por cima do ombro, a outra mão enganchada livremente no bolso das calças de
pinças.
A imagem da descontração.
— Meu amor — diz ele —, estás com bom aspeto.
Algo dentro dela se solta ao som da sua voz, como sempre. Algo no seu âmago se desprende,
libertação sem alívio. Porque esperou, claro que esperou, susteve a respiração tanto de terror
como de esperança. Agora ambos os sentimentos se precipitam para fora dos pulmões.
— O que estás aqui a fazer?
Luc tem a desfaçatez de se mostrar afrontado.
— É o nosso aniversário. Certamente não te esqueceste.
— Passaram-se trinta anos.
— E de quem é a culpa?
— Completamente tua.
Um sorriso esboça-se nos cantos da boca. E então o seu olhar desvia-se para Henry.
— Suponho que me deveria sentir lisonjeado pela semelhança.
Addie não responde ao desafio.
— Ele não tem nada a ver com isto. Manda-o embora. Irá esquecer.
O sorriso de Luc desfaz-se.
— Por favor. Estás a envergonhar-nos aos dois. — Descreve um círculo lento à volta de
ambos, um tigre a rodear a sua presa. — Como se eu não me mantivesse a par de todos os meus
pactos. Henry Strauss, completamente desesperado por que o desejem. Vendeu a alma só para
ser amado. Que belo par devem fazer, vocês os dois.
— Então deixa-nos estar.
Uma sobrancelha negra ergue-se.
— Achas que eu vos queria afastar um do outro? De todo. O tempo em breve se encarregará
de o fazer. — Olha para Henry. — Tiquetaque. Diz-me, ainda contas a vida em dias ou já
começaste a medi-la em horas? Ou será que isso ainda a torna mais difícil?
Addie alterna o olhar de um para outro, lendo o verde triunfante nos olhos de Luc, a cor a
esvair-se do rosto de Henry.
Ela não compreende.
— Oh, Adeline.
O nome é uma chamada de atenção para Addie.
— Os seres humanos vivem vidas tão breves, não é? Alguns muito mais breves do que outros.
Saboreia o tempo que te resta. E fica sabendo que a escolha foi dele.
E, com estas palavras, Luc roda nos calcanhares e dissolve-se na escuridão.
Depois do seu desaparecimento, o bar volta a estremecer de movimento. O tumulto irrompe
pelo espaço, e Addie olha para as sombras até ter a certeza de que estão vazias.
Os seres humanos vivem vidas tão breves.
Volta-se para Henry, que já não está ao seu lado, mas enterrado numa cadeira.
Alguns muito mais breves do que outros.
Tem a cabeça inclinada, uma mão a agarrar o pulso onde o relógio deveria estar. Onde está,
de alguma forma, de novo. Addie tem a certeza de que não o pôs. A certeza de que não o trazia
consigo.
Mas ali está ele, a reluzir como uma algema à volta do braço.
A escolha foi dele.
— Henry — diz ela, ajoelhando-se diante dele.
— Eu queria dizer-te — murmura ele.
Addie puxa o relógio para si e observa o mostrador. Há quatro meses que está com Henry e,
durante esse tempo, o ponteiro das horas avançou das seis e meia para as dez e meia. Quatro
meses e quatro horas mais perto da meia-noite, e ela sempre presumiu que continuaria a andar à
volta.
O tempo de uma vida, disse ele, e ela sabia que era mentira.
Tinha de ser.
Luc nunca daria tanto tempo a outro ser humano — pelo menos depois dela.
Addie percebeu, deve ter percebido. Mas pensou que talvez Henry tivesse vendido a alma por
cinquenta ou trinta ou mesmo dez anos — teria sido suficiente.
Mas um relógio tem apenas doze horas, um ano apenas doze meses, e ele não iria ser, não
poderia ser tolo a esse ponto.
— Henry — diz ela —, quanto tempo pediste?
— Addie — suplica ele, e, pela primeira vez, o seu nome soa de forma errada nos seus lábios.
Tem fissuras. Está a quebrar-se.
— Quanto tempo? — pergunta ela.
Ele fica em silêncio por muito tempo.
E, finalmente, ao menos, diz-lhe a verdade.
Nova Iorque
4 de setembro de 2013

Um rapaz farto do seu coração partido.


Está cansado do seu cérebro tempestuoso.
Por isso bebe até deixar de sentir as peças arranharem dentro do peito, até deixar de ouvir o
trovão ribombar-lhe pela cabeça. Bebe quando os amigos lhe dizem que tudo vai correr bem.
Bebe quando lhe dizem que vai passar. Bebe até a garrafa estar vazia e o mundo ficar com os
contornos indistintos. Aliviar a dor não chega, por isso vai-se embora, e eles deixam-no ir.
E, a dado momento, a caminho de casa, começa a chover.
A dado momento, o telemóvel toca, e não atende.
A dado momento, a garrafa escorrega, e corta a mão.
A dado momento, está fora do seu prédio e senta-se no passeio e encosta as palmas das mãos
aos olhos e diz a si mesmo que é apenas mais uma tempestade.
Mas desta vez não dá sinal de passar. Desta vez, não há abertura nas nuvens, não há luz no
horizonte, e o trovão dentro da sua cabeça é terrivelmente ruidoso. Por isso toma alguns
comprimidos da irmã, os chapelinhos de chuva cor-de-rosa, mas continuam a não conseguir fazer
frente à tempestade, e por isso também toma alguns dos seus.
Recosta-se nas escadas molhadas pela chuva e olha para cima, para o ponto em que o terraço
toca o céu, e pergunta-se, não pela primeira vez, quantos passos serão dali até ao parapeito.
Não tem a certeza de quando decide saltar.
Talvez nunca o chegue a fazer.
Talvez decida entrar e depois decida ir lá para cima e, quando chega à sua porta, decida
continuar a subir e, quando chega à última porta, decida sair para o terraço — e, a dado
momento, ali fora, sob a chuva torrencial, decide que já não quer decidir.
Ali, o caminho é a direito. Uma extensão alcatroada de asfalto desimpedido, apenas passos
entre ele e a beira do terraço. Os comprimidos começam a fazer efeito, a atordoar a dor e a deixar
para trás um silêncio de algodão que, de alguma forma, ainda é pior. Os olhos fecham-se, os
membros estão muito pesados.
É apenas uma tempestade, diz para si mesmo, mas está cansado de procurar abrigo.
É apenas uma tempestade, mas há sempre outra à espera, atrás dele.
É apenas uma tempestade, apenas uma tempestade — mas esta noite é demasiado, e Henry
não é suficiente e por isso atravessa o terraço, não abranda enquanto não consegue ver o fundo,
não para enquanto as pontas dos dedos não afloram o ar vazio.
E é aí que o estranho o encontra.
É aí que a escuridão faz uma oferta.
Não do tempo de uma vida, mas de um único ano.
Será fácil olhar para trás e perguntar-se como o pode ter feito, como pode ter abdicado de
tanto por tão pouco. Mas, no momento, com os sapatos já a roçarem a noite, a verdade nua e crua
é que teria vendido a alma por menos, teria trocado uma vida inteira daquilo por um dia apenas
— uma hora, um minuto, um instante — de paz.
Só para entorpecer a dor dentro do peito.
Só para aquietar a tempestade dentro da cabeça.
Está cansado de sofrer, cansado de ser magoado. E é por isso que, quando o estranho lhe
estende a mão e se oferece para puxar Henry da beira do precipício, não há hesitação.
Aceita simplesmente.
Nova Iorque
29 de julho de 2014

Agora tudo faz sentido.


Ele faz sentido.
Este rapaz, que nunca consegue estar quieto, que nunca desperdiça tempo, que nunca adia
nada. Este rapaz, que escreve todas as palavras que ela diz, para que ela fique com algo, quando
ele desaparecer, que não quer perder um único dia, porque não tem muito mais.
Este rapaz por quem ela se está a apaixonar.
Este rapaz, que em breve desparecerá.
— Como? — pergunta ela. — Como pudeste abdicar de tanto por tão pouco?
Henry olha para ela, de rosto vazio.
— Naquele momento — diz —, tê-la-ia dado por menos. Um ano. Outrora, parecia tanto
tempo.
Agora não é nada.
Um ano, e está quase a chegar ao fim, e ela só consegue ver a curva do sorriso de Luc, a cor
triunfante nos seus olhos. Não foram inteligentes, não tiveram sorte, não passaram
despercebidos. Ele sabia, claro que sabia, e deixou que as coisas chegassem àquele ponto.
Deixou-a cair.
— Addie, por favor — diz Henry, mas já se levantou, já está a andar pelo bar.
Tenta agarra-lhe na mão, mas é demasiado tarde.
Addie está fora do seu alcance.
Já desapareceu.
Trezentos anos.
Sobreviveu trezentos anos, e, nesses séculos, houve muitas vezes em que o solo cedeu,
momentos em que não se conseguiu equilibrar ou controlar a respiração. Em que o mundo a
deixou sentir-se perdida, destroçada, impotente.
À porta da casa dos pais, na noite depois do pacto.
Nas docas de Paris, onde aprendeu o valor de um corpo.
Remy, a deixar-lhe as moedas na palma da mão.
Encharcada, junto ao cepo destruído do carvalho de Estele.
Mas, naquele momento, Addie não está perdida ou destroçada ou desesperada.
Está furiosa.
Enfia a mão no bolso, e claro que o anel está lá. Está sempre lá. Grãos de areia cobrem a
superfície suave de madeira quando Addie passa o anel por cima do nó do dedo.
Passaram-se trinta anos desde que o usou pela última vez, mas o anel desliza sem esforço.
Sente o vento, como uma respiração fresca atrás das costas, e vira-se, esperando encontrar
Luc. Mas a rua está vazia — pelo menos vazia de sombras e de promessas e de deuses.
Roda o anel em volta do dedo.
Nada.
— Mostra-te! — grita pelo quarteirão.
As cabeças viram-se, mas Addie não quer saber. Em breve irão esquecer, e, mesmo que não
fosse um fantasma, está em Nova Iorque, um lugar imune às ações de um estranho na rua.
— Raios — pragueja. Arranca o anel do dedo e atira-o para a rua, ouve-o saltitar e rolar. E
depois o som esmorece, subitamente. O candeeiro de rua mais próximo apaga-se, e uma voz
surge das trevas.
— Passados todos estes anos, continuas a ter mau feitio.
Algo lhe aflora o pescoço, e depois um fio de prata, fino como brilho de orvalho, o mesmo
que que se partiu há tanto tempo, brilha-lhe no decote.
Os dedos de Luc percorrem-lhe a pele.
— Tiveste saudades minhas?
Vira-se para o rechaçar, mas as mãos atravessam-no, e depois ele aparece atrás dela. Quando
tenta pela segunda vez, Luc é sólido e duro como uma pedra.
— Desfá-lo — explode ela, batendo-lhe no peito, mas o punho mal aflora a parte da frente da
camisa antes de Luc lhe agarrar no pulso.
— Quem és tu para me dares ordens, Adeline?
Addie tenta libertar-se, mas a mão dele é de pedra.
— Sabes — diz ele, quase de forma descontraída —, houve um tempo em que te prostraste,
em que rastejaste pelo solo encharcado da floresta e imploraste pela minha intercessão.
— Queres que suplique? Muito bem, então. Suplico-te. Por favor. Desfá-lo.
Ele avança, obrigando-a a recuar.
— O Henry fez este pacto.
— Ele não sabia...
— Eles sabem sempre — diz Luc. — Simplesmente não querem pagar o preço. A alma é a
coisa mais fácil de trocar. É no tempo que ninguém pensa.
— Luc, por favor.
Os seus olhos verdes cintilam, não de maldade ou de triunfo, mas de poder. A sombra de
alguém que sabe que controla a situação.
— Porque o deveria fazer? — pergunta. — Porque o haveria de fazer?
Addie tem uma série de perguntas preparadas, mas debate-se, tentando encontrar as palavras
certas, as palavras que possam apaziguar as trevas. Contudo, antes de as conseguir descobrir, Luc
estende o braço e levanta-lhe o queixo, e ela espera que debite as suas deixas velhas e batidas,
que faça troça dela ou que lhe peça a sua alma, mas não faz nada disso.
— Passa a noite comigo — diz ele. — Amanhã. Vamos celebrar este aniversário como deve
ser. Concede-me isso, e pensarei em libertar o Sr. Strauss das suas obrigações. — A boca
contorce-se. — Ou seja, se me conseguires convencer.
Claro que é mentira.
É uma cilada, mas Addie não tem outra hipótese.
— Combinado — diz ela, e a escuridão sorri e, de seguida, dissolve-se à volta dela.
Fica sozinha no passeio, até o coração estabilizar, e depois regressa a pé até ao Merchant.
Mas Henry desapareceu.

Encontra-o em casa, sentado às escuras.


Encontra-se na beira da cama, com os cobertores ainda enrodilhados da sesta da tarde. Olha
em frente, para longe, como naquela noite de verão, no terraço, depois do fogo de artifício.
E Addie percebe que o vai perder, tal como perdeu toda a gente.
E não sabe se é capaz, outra vez, desta vez.
Não perdeu já o suficiente?
— Desculpa — sussurra ele quando Addie se aproxima. — Desculpa — diz, enquanto passa
os dedos pelo cabelo.
— Porque não me disseste? — responde ela.
Henry fica calado por um instante e depois diz:
— Como se vai até ao fim do mundo? — Olha para cima, para ela. — Queria guardar cada
passo.
Um suspiro baixo e tremente.
— O meu tio teve cancro, quando eu ainda andava na faculdade. Era terminal. Os médicos
concederam-se alguns meses, e ele disse a toda a gente. E sabes o que fizeram? Não conseguiam
enfrentá-lo. Estavam tão enredados na sua dor que fizeram o luto ainda antes de estar morto. Não
há maneira de des-saber o facto de alguém estar a morrer. É algo que consome toda a
normalidade e deixa algo errado e podre no seu lugar. Desculpa, Addie. Não queria que olhasses
para mim dessa maneira.
Ela mete-se na cama e puxa-o para baixo, para o seu lado.
— Desculpa — diz ele, em voz baixa e repetitiva, como uma prece. Ficam ali deitados, frente
a frente, com os dedos entrelaçados.
— Desculpa.
E Addie obriga-se a perguntar.
— Quanto tempo te falta?
Henry engole em seco.
— Um mês.
As palavras aterram como um golpe numa pele suave.
— Um pouco mais — diz. — Trinta e seis dias.
— Já passa da meia-noite — suspira Addie.
Henry expira.
— Então trinta e cinco.
Addie abraça-o com mais força, e ele corresponde a esse aperto, e ficam nos braços um do
outro até doer, como se a qualquer minuto alguém pudesse tentar afastá-los, como se o outro
pudesse soltar-se e desaparecer.
França Ocupada
23 de novembro de 1944

As costas batem contra a parede de pedra dura.


A cela fecha-se rangendo, e soldados alemães riem-se atrás das grades quando Addie se deixa
cair no chão, a tossir sangue. Uma mão-cheia de homens está amontoada num canto da cela,
acocorados, a murmurar. Pelo menos não parecem importar-se com o facto de ela ser mulher. Os
alemães repararam. Embora a tenham apanhada vestida com umas calças e um casaco
inclassificáveis, embora tenha apanhado o cabelo para trás, percebeu pela forma mal-
intencionada e lúbrica como a olharam que tinham percebido qual era o seu sexo. Disse-lhes
numa série de línguas diferentes o que faria se se aproximassem, e eles riram e satisfizeram-se
em espancá-la até perder os sentidos.
Levanta-te, ordena ao corpo esgotado.
Levanta-te, ordena aos ossos cansados.
Addie obriga-se a pôr-se de pé, vacila até à parte da frente da cela.
Agarra o aço gelado com as mãos, puxa até os músculos gritarem, até as grades gemerem,
mas não se mexem. Força os ferrolhos até os dedos sangrarem e um soldado bater com a mão
contra as grades e ameaçar usar o seu corpo como acendalha.
É mesmo tola.
É tola por ter pensado que poderia resultar. Por pensar que ser esquecida era o mesmo que ser
invisível, que isso a iria proteger ali.
Devia ter ficado em Boston, onde a pior coisa com que tinha de se preocupar era com o
racionamento da guerra e com o frio do inverno. Nunca deveria ter regressado. Foi sentido de
honra tolo e orgulho teimoso. Foi por causa da última guerra e do facto de ter fugido, atravessado
o Atlântico, em vez de enfrentar o perigo em casa. Porque, de alguma forma, apesar de tudo, é
isso que França será sempre.
Casa.
E, algures pelo caminho, decidiu que podia ajudar. Não de uma forma oficial, claro, mas os
segredos não têm dono. Podiam ser tocados e trocados, por qualquer pessoa, por um fantasma,
até.
A única coisa que tinha de fazer era evitar ser apanhada.
Três anos a transportar segredos pela França Ocupada.
Três anos, para ir acabar ali.
Numa prisão nos arredores de Orléans.
E não importa que se esqueçam do seu rosto. Não importa, porque estes soldados não querem
saber de lembrar-se. Aqui, todos os rostos são estranhos e estrangeiros e anónimos, e, se não sair
dali, irá desaparecer.
Addie deixa-se escorregar contra a parede gelada e puxa o casaco esfarrapado para junto do
corpo. Fecha os olhos. Não reza, propriamente, mas pensa nele. Deseja até, talvez, que fosse
verão — uma noite de julho em que ele a pudesse encontrar sozinha.
Os soldados revistaram-na, brutalmente, levando tudo o que pudesse usar para os magoar ou
para fugir. Também levaram o anel, partiram o fio de cabedal onde estava preso, arremessaram o
aro de madeira para longe.
E, no entanto, quando vasculha por entre a roupa andrajosa, continua ali, à espera, com uma
moeda na dobra da algibeira. Sente-se grata, então, por aparentemente não o conseguir perder.
Grata, enquanto o aproxima do dedo.
Por um instante, vacila — tem o anel há vinte e nove anos, com tudo o que isso implica.
Vinte e nove anos, e nunca o usou.
Mas, agora, até a satisfação enfatuada de Luc seria melhor do que a eternidade numa cela de
prisão ou pior.
Se ele aparecer.
As palavras como um sussurro no fundo da mente. Um medo que não consegue afugentar.
Chicago a subir-lhe como bílis na garganta.
A raiva no seu próprio peito. O veneno nos olhos dele.
Preferia ser um fantasma.
Enganara-se.
Não quer ser este tipo de fantasma.
E, por isso, pela primeira vez em séculos, Addie reza.
Faz deslizar o anel de madeira pelo dedo e sustém a respiração, espera sentir algo, um
estremecimento mágico, uma rajada de vento.
Mas não acontece nada.
Nada, e pergunta-se se, depois de todo aquele tempo, foi apenas mais um truque, uma forma
de lhe dar esperança, para depois apenas a desiludir, deixando-a despedaçada. Já tem um
impropério debaixo da língua quando sente a brisa — não cortante, mas quente, atravessando a
cela da prisão, carregando consigo o aroma longínquo do verão.
Os homens da cela param de falar.
Aninham-se no seu canto, despertos, mas inertes, fitando o espaço, como que absortos numa
ideia. No exterior da cela, as botas dos soldados param de martelar o chão de pedra, e as vozes
alemães caem como uma pedra no fundo de um poço.
O mundo fica estranha e impossivelmente silencioso.
Até que o único som que se ouve é o tamborilar suave, quase rítmico de dedos a percorrerem
as grades.
Não o vê desde Chicago.
— Oh, Adeline — diz ele, com a mão a deslizar pelas grades geladas. — O estado em que te
encontras.
Ela consegue soltar uma pequena gargalhada dolorida.
— A imortalidade desenvolve uma grande tolerância ao risco.
— Há coisas piores do que a morte — diz ele, como se ela ainda não soubesse.
Olha em volta, para a prisão, com a testa franzida de desprezo.
— Guerras — murmura.
— Diz-me que não os estás a ajudar.
Luc quase parece ofendido.
— Até eu tenho limites.
— Uma vez vangloriaste-te por causa dos sucessos de Napoleão. Ele encolhe os ombros.
— Há a ambição e há o mal. E, por muito que gostasse de fazer uma lista das minhas proezas
passadas, é a tua vida que importa neste momento. — Encosta os cotovelos nas grades. — Como
tencionas sair desta situação?
Addie sabe o que ele quer que ela faça. Quer que ela implore. Como se ter posto o anel não
fosse suficiente. Como se esta mão, este jogo, não estivesse já ganha. O estômago aperta-se, e as
costelas magoadas doem-lhe, e tem tanta sede que podia gritar só para ter alguma coisa para
beber. Mas Addie não se consegue obrigar a vergar.
— Tu conheces-me — diz, com um sorriso cansado. — Descubro sempre uma maneira.
Luc suspira.
— Como queiras — diz, virando costas, e é demasiado; não consegue suportar a ideia de que
a vai deixar ali, sozinha.
— Espera — chama, desesperadamente, aproximando-se das grades, para descobrir que a
fechadura está aberta, com a porta da cela a abrir-se sob o seu peso.
Luc olha por cima do ombro e quase sorri, virando-se para ela apenas o suficiente para lhe
oferecer a mão.
Avança aos tropeções, para fora da cela e para a liberdade, para ele. E, por um instante, o
abraço é apenas isso, e ele é sólido e quente, dobrado sobre ela, no escuro, e seria fácil acreditar
que é real, que é humano, que é a sua casa.
Mas depois o mundo abre-se de par em par, e as sombras engolem-nos inteiros.
A prisão dá lugar ao nada, à escuridão, às trevas mais profundas. E, quando se desfaz, Addie
está de volta a Boston, com o sol a começar a pôr-se, e podia beijar o chão de puro alívio. Addie
puxa o casaco para junto do corpo e afunda-se no passeio, com as pernas a tremer, o anel de
madeira ainda enfiado no dedo. Chamou, e ele veio. Pediu, e ele respondeu. E sabe que terá de
lho pagar, mas agora não quer saber.
Não quer estar sozinha.
Mas, quando Addie olha para cima para lhe agradecer, Luc já desapareceu.
Nova Iorque
30 de julho de 2014

Henry segue-a pelo apartamento enquanto ela se prepara.


— Porque haverias de fazer isto? — pergunta.
Porque conhece a escuridão melhor do que ninguém, conhece a forma como pensa, e o seu
coração.
— Porque não te quero perder — diz Addie, puxando o cabelo para cima.
Henry parece cansado, esvaziado.
— É demasiado tarde — diz.
Mas não é demasiado tarde.
Ainda não.
Addie leva a mão à algibeira e sente o anel no lugar onde sempre se encontra, à espera, a
madeira quente de estar encostada ao seu corpo.
Retira-o, mas Henry agarra-lhe na mão.
— Não faças isto — suplica.
— Queres morrer? — pergunta ela, com as palavras a dilacerarem o espaço. Ele recua um
pouco ao ouvir as palavras.
— Não. Mas tomei uma decisão, Addie.
— Cometeste um erro.
— Fiz um pacto — diz ele. — E lamento, lamento imenso não ter pedido mais tempo.
Lamento não te ter contado a verdade mais cedo.
Mas é o que é.
Addie abana a cabeça.
— Tu aceitaste a situação, Henry, mas eu não.
— Não vai resultar — avisa ele.
— Não o conseguirás chamar à razão.
Addie liberta-se dele.
— Estou disposta a tentar — diz, enfiando o anel no dedo.
Não há vaga de escuridão.
Apenas um silêncio, uma quietude vazia, e depois...
Batem à porta.
E sente-se grata por, pelo menos, não se ter feito convidado. Mas Henry põe-se entre ela e a
porta, de braços abertos no corredor estreito. Não se mexe, tem os olhos suplicantes. Addie
envolve-lhe o rosto nas mãos.
— Preciso que confies em mim — diz.
Algo se fende dentro dele. Uma mão desliza da ombreira da porta.
Beija-o e depois passa por ele e abre a porta às trevas.
— Adeline.
Luc deveria parecer deslocado no patamar do edifício, mas nunca parece.
As luzes nas paredes esmoreceram um pouco, suavizadas por uma névoa amarela que rodeia
os caracóis negros em torno do seu rosto, como uma auréola e capta laivos dourados nos seus
olhos verdes.
Veste-se todo de preto, calças de corte justo e uma camisa com as mangas enroladas até aos
cotovelos, um alfinete verde a atravessar a gravata de seda que traz ao pescoço.
Está demasiado calor para uma indumentária como aquela, mas Luc não parece incomodado.
O calor, tal como a chuva, tal como o próprio mundo, parecem não o afetar.
Não lhe diz que está bonita.
Não lhe diz nada.
Vira-se simplesmente, esperando que ela o siga.
E, enquanto ela sai para o patamar das escadas, olha para Henry. E pisca um olho.
Addie deveria ter parado naquele instante.
Deveria ter voltado para trás, deixado que Henry a puxasse de novo para dentro. Deviam ter
fechado a porta e colocado a tranca, em proteção contra as trevas.
Mas não o fizeram.
Não o fazem.
Addie olha para Henry por cima do ombro, que fica parado à entrada, com uma nuvem a
ensombrecer-lhe o rosto. Obriga-o a fechar a porta, mas ele não o faz, e ela não tem outro
remédio senão afastar-se e seguir Luc enquanto Henry os observa.
Lá em baixo, abre-lhe a porta do prédio, mas Addie para. Olha para o portal. A escuridão
redemoinha para lá da ombreira, cintila entre eles e os degraus que descem até à rua.
Não confia nas sombras, não consegue ver onde a conduzem, e a última coisa de que precisa é
de que Luc a deixe numa terra remota se e quando a noite correr mal.
— Esta noite, tenho regras — diz ela.
— Ah sim?
— Não sairei da cidade — diz ela, acenando para a porta. — E não passarei por aí.
— Por uma porta?
— Pelas trevas.
As sobrancelhas de Luc arqueiam-se.
— Não confias em mim?
— Nunca confiei — diz ela. — Não vale a pena começar agora.
Luc ri-se, uma gargalhada baixa e sem som, e sai para o exterior para chamar um carro.
Segundos mais tarde, um sedan preto e lustroso encosta à berma. Luc estende a mão para a
ajudar a entrar. Ela não a aceita.
Não dá uma morada ao motorista.
Este não a pede.
E, quando Addie lhe pergunta onde vão, Luc não responde.
Passado pouco tempo, chegam à ponte de Manhattan.
O silêncio entre ambos deveria ser desconfortável. A conversa hesitante de ex-amantes há
demasiado tempo afastados, e ainda assim não o suficiente para terem perdoado alguma coisa.
O que são trinta anos em comparação com trezentos?
Mas é um silêncio nascido da estratégia.
É o silêncio de um jogo de xadrez, no momento em que está a ser jogado.
E, desta vez, Addie tem de ganhar.
Los Angeles, Califórnia
7 de abril de 1952

— Meu Deus, és mesmo bonita — diz Max, erguendo o copo.


Addie cora, com os olhos a descerem sobre o martíni.
Conheceram-se nessa manhã, numa rua de Wilshire, os vincos dos lençóis dele ainda
marcados na pele dela. Addie estava parada no passeio envergando o vestido cor de vinho que é
o preferido dele, e, quando ele saiu para o seu passeio matinal, parou e perguntou-lhe se podia ter
a ousadia de a convidar para a acompanhar, onde quer que ela fosse, e, quando lá chegaram, a
um edifício bonito escolhido ao acaso, beijou-lhe a mão e despediu-se, mas não se foi embora, e
ela também não. Passaram o dia inteiro juntos, saltitando de uma casa de chá para um parque e
de seguida para o museu de arte, arranjando desculpas para continuar na companhia um do outro.
E, quando ela lhe disse que era o melhor aniversário que tivera em anos, ele pestanejou de
horror, chocado com a ideia de uma rapariga como ela estar sozinha, e por isso ali estão, a beber
martínis no Roosevelt.
(Claro que não é o seu aniversário, e não sabe bem porque lhe disse que era. Talvez para ver o
que ele faria. Talvez porque até ela começa a estar cansada de reviver a mesma noite, vezes sem
conta.)
— Já alguma vez conheceste alguém — diz ele — e sentiste que conheces essa pessoa há
muito tempo?
Addie sorri.
Diz sempre as mesmas coisas, mas, de cada uma das vezes, é sincero. Ela brinca com o fio de
prata ao pescoço, o anel de madeira enfiado no decote do vestido. Um hábito que parece não
conseguir destruir.
Um empregado de mesa aparece junto dela com uma garrafa de champanhe.
— O que é isto? — pergunta ela.
— Para a aniversariante, nesta noite especial — diz Max animadamente. — E para o
cavalheiro felizardo que tem a oportunidade de a passar com ela.
Admira as bolhinhas minúsculas que se erguem da flute, sabe, ainda antes de dar um gole,
que é do bom; velho, caro. Também sabe que Max se pode dar facilmente a esses luxos.
É escultor — Addie sempre teve um fraco por belas-artes — e talentoso, sim, mas longe de
estar a passar fome. Ao contrário de muitos dos artistas com quem Addie esteve, este tem
dinheiro, com fundos de família suficientemente robustos para resistir às guerras e aos anos de
escassez entre as mesmas.
Ele ergue o copo, enquanto uma sombra cai sobre a mesa.
Presume que é do empregado, mas depois Max olha para cima e enruga um pouco a testa.
— Posso ajudá-lo?
E Addie ouve uma voz como seda e fumo.
— Penso que sim.
Ali está Luc, num elegante fato preto. É belo. É sempre belo.
— Olá, minha querida.
A testa de Max franze-se mais profundamente.
— Conhecem-se?
— Não — diz ela ao mesmo tempo que Luc diz «Sim», e não é justo, a forma como a voz
dele se impõe e a dela não.
— É um velho amigo — diz ela, com um tom cortante. — Mas...
Mas, mais uma vez, ele interrompe-a.
— Mas não nos vemos há algum tempo, por isso, se tivesse a gentileza de...
Max indigna-se.
— Isso é bastante inoportuno...
— Vá.
É apenas uma palavra, mas o ar reverbera com a sua força, a sílaba a envolver o homem como
gaze. O confronto dissipa-se do rosto de Max. A irritação abranda, e os seus olhos ficam vítreos
enquanto se levanta da mesa e se afasta. Não chega a olhar para trás.
— Raios — pragueja ela, afundando-se no seu lugar. — Porque tens de ser tão enervante?
Luc senta-se na cadeira vaga e ergue a garrafa de champanhe, voltando a encher os copos.
— O teu aniversário é em março.
— Quando se tem a minha idade — diz ela —, festeja-se as vezes que se quer.
— Há quanto tempo estás com ele?
— Dois meses. Não é assim tão mau — diz ela, sorvendo a bebida.
— Apaixona-se por mim todos os dias.
— E esquece-te todas as noites.
As palavras magoam, mas não tão profundamente como dantes.
— Pelo menos faz-me companhia.
Os olhos esmeralda varrem-lhe a pele.
— Eu também faria — diz ele —, se quisesses.
Uma onda de calor percorre-lhe as faces.
Luc não pode saber que teve saudades dele. Que pensou nele, tal como costumava pensar no
seu estranho, sozinha na cama, à noite. Que pensou nele sempre que brincou com o anel
pendurado ao pescoço e de todas as vezes que não o fez.
— Bem — diz ela, terminando a bebida — Roubaste-me o companheiro. O mínimo que
podes fazer é tentar preencher esse vazio.
E, sem mais nem menos, o verde nos olhos de Luc está de volta, mais brilhante.
— Anda — diz ele, puxando-a da cadeira. — A noite é uma criança, e podemos fazer muito
melhor do que isto.

O Cicada Club fervilha de vida.


Candelabros art déco pendem, baixos, cintilando contra um teto lustroso. Todo o lugar é
alcatifa vermelha pisada e escadas a serpentearem até lugares em mezanino. São mesas cobertas
com toalhas de linho e uma pista de dança polida instalada diante de um palco baixo.
Chegam quando uma banda constituída por metais termina uma atuação, as trompetes e o
saxofone a ecoarem pelo clube. O sítio está apinhado, e, no entanto, quando Luc a arrasta por
entre a multidão, há uma mesa vazia mesmo à frente. A melhor da casa.
Ocupam os seus lugares, e, instantes depois, aparece um empregado de mesa, com dois
martínis equilibrados na bandeja. Addie pensa no primeiro jantar que partilharam em casa do
marquês, há séculos, com a refeição pronta antes de ter chegado a aceitá-la, e pergunta-se se Luc
terá planeado aquilo com antecedência ou se o mundo simplesmente se verga perante a sua
vontade.
A multidão irrompe em aplausos quando um novo intérprete sobe ao palco.
Um homem estreito com um rosto macilento, sobrancelhas finas arqueando-se sob um chapéu
cinzento.
Luc olha para ele com o orgulho feroz de algo que se possui.
— Como se chama? — pergunta ela.
— Sinatra — responde quando a banda se levanta e o homem começa a cantar. Uma melodia
leve, suave e doce, derrama-se pela sala. Addie ouve, enfeitiçada, e depois os homens e as
mulheres começam a levantar-se das cadeiras e a avançar para a pista de dança.
Addie levanta-se, estendendo a mão.
— Dança comigo — diz.
Luc olha para ela, mas não se levanta.
— O Max teria dançado comigo — diz ela.
Espera que ele recuse, mas Luc levanta-se e pega-lhe na mão, conduzindo-a até à pista.
Addie espera que seja rígido, inflexível, mas Luc move-se com a graciosidade fluida do vento
a percorrer campos de trigo, das tempestades a varrerem céus de verão.
Tenta lembrar-se de um momento em que tenham estado tão próximos e não consegue.
Sempre mantiveram a distância.
Agora, o espaço desaparece.
O corpo dele envolve o dela como um cobertor, como uma brisa, como a própria noite. Mas,
nessa noite, não parece algo feito de sombra e de fumo. Nessa noite, os braços são sólidos contra
a sua pele. A sua voz desliza-lhe pelo cabelo.
— Mesmo que todas as pessoas que conheces se lembrassem — diz Luc —, continuo a ser eu
quem te conhece melhor.
Ela procura o rosto dele.
— E eu conheço-te a ti?
Inclina a cabeça sobre a dela.
— És a única a conhecer-me.
Os seus corpos comprimem-se, encaixando perfeitamente.
O ombro dele, moldado à face dela.
As mãos dele, moldadas à sua cintura.
A sua voz, moldada aos seus espaços vazios enquanto diz:
— Desejo-te. — E depois, outra vez: — Sempre te desejei.
Luc olha para ela, com os seus olhos verdes-negros de prazer, e Addie tenta manter-se firme.
— Desejas-me como troféu — diz ela. — Desejas-me como a uma refeição ou um copo de
vinho. Mais uma coisa a ser consumida.
Ele enterra a cabeça, pressiona os lábios contra a clavícula dela.
— E será assim tão errado?
Addie evita um estremecimento quando ele lhe beija o pescoço.
— Será tão mau... — a boca dele percorre-lhe o maxilar — ... ser saboreada? —A sua
respiração aflora-lhe a orelha. — Ser apreciada?
A boca dele paira sobre a dela, e os seus lábios também se moldam aos dela.
Ela nunca terá a certeza do que aconteceu primeiro — se foi ela a beijá-lo ou ele a beijá-la a
ela, quem começou o gesto e quem lhe correspondeu. Saberá apenas que havia espaço entre
ambos e que este desapareceu. Claro que já tinha pensado em beijar Luc, quando ele era apenas
uma invenção da sua mente, e, depois, quando passou a ser mais do que isso. Mas, em todas as
suas invocações, ele apossara-se da sua boca como se fosse um troféu. Afinal, foi assim que a
beijou na noite em que se conheceram, quando selou o pacto com sangue nos seus lábios. Era
assim que imaginava que beijaria sempre.
Mas agora beija-a como alguém a provar veneno.
Com cautela, testando, quase com medo.
E só quando ela responde, retribui o beijo da mesma forma, ele aprofunda a investida, com os
dentes a aflorarem o lábio inferior, o peso e o calor do seu corpo contra o dela.
Sabe ao ar da noite, arrebatado pelo peso das tempestades de verão. Sabe aos vestígios leves e
remotos de fumo de lareira, um lume a extinguir-se no escuro. Sabe à floresta e, de certa forma,
de modo impossível, sabe a casa.
E então a escuridão alcança-a, alcança-os, e o Cicada Club desaparece; o som baixo da
música e a melodia ligeira são engolidos pelo vazio opressivo, por um vento impetuoso e por
corações acelerados, e Addie está a cair, para sempre e num único passo para trás — e depois os
seus pés encontram o pavimento de mármore suave de um quarto de hotel, e Luc está ali,
encostado ao seu corpo, e ela está ali, a puxá-lo contra a parede mais próxima.
Os braços dele erguem-se à sua volta, formando uma gaiola livre e aberta.
Podia destruí-la, se tentasse.
Não tenta.
Ele beija-a de novo e desta vez não está a provar veneno. Desta vez não há cautela, não há
resistência; o beijo é súbito, acutilante e profundo, roubando ar e pensamento e deixando-a ainda
mais esfomeada, e, por um instante, Addie sente as trevas escancaradas, sente-as abrirem-se à
sua volta, apesar de o chão ainda ali estar.
Beijou muitas pessoas. Mas nenhuma delas a beijou como ele. A diferença não reside nos
detalhes técnicos. A boca dele não está mais preparada para a tarefa. É apenas a forma como a
usa.
É a diferença entre experimentar um pêssego fora de época e a primeira dentada numa peça
de fruta amadurecida pelo sol.
A diferença entre ver apenas a preto e branco e uma vida a cores.
Dessa primeira vez, é uma espécie de luta, sem nenhum deles baixar a guarda, cada um deles
à espreita da cintilação reveladora de uma lâmina esquecida à procura de carne.
Quando finalmente colidem, é com toda a força de corpos que estiveram demasiado tempo
separados.
É uma batalha travada entre os lençóis.
E, de manhã, todo o quarto exibe os sinais da sua guerra.
— Há muito tempo — diz ele — que não quero ir-me embora.
Ela olha para a janela, o primeiro fio estreito de luz.
— Então não vás.
— Tenho de ir — diz ele. — Sou um ser das trevas.
Ela encosta a cabeça numa das mãos.
— Irás desaparecer com o sol?
— Vou simplesmente para onde há escuridão, de novo.
Addie levanta-se, vai até à janela e corre as cortinas, voltando a mergulhar o quarto numa
negritude sem luz.
— Pronto — diz, tateando o caminho de volta à cama. — Já está escuro de novo.
Luc ri-se, um som suave e belo, e puxa-a para a cama.
Por toda a parte, em lado nenhum
1952–1968

É apenas sexo.
Pelo menos, começa assim.
Ele é uma coisa que tem de arrancar de dentro de si.
Ela é uma novidade a ser apreciada.
Addie quase espera que se esgotem numa única noite, que gastem toda a energia que
acumularam nos seus anos de rotação.
Mas, dois meses mais tarde, Luc vai de novo à procura dela, aparece vindo do nada e de volta
à sua vida, e ela pensa quão estranho é vê-lo sobre um fundo de vermelhos e dourados de outono,
as folhas a mudar, um cachecol cor de carvão enrolado à volta do pescoço.
Passam-se semanas até à sua próxima visita.
E depois dias, apenas.
Tantos anos de noites solitárias, de horas à espera e de ódio e de esperança.
Agora ele está ali.
Ainda assim, no espaço entre as visitas dele, Addie faz pequenas promessas a si mesma.
Não se demorará nos seus braços.
Não adormecerá ao seu lado.
Não sentirá nada a não ser os seus lábios pela pele, as mãos enredadas nas suas, o seu peso
contra o si.
Pequenas promessas que, no entanto, não cumpre.
É apenas sexo.
E depois deixa de ser.
— Janta comigo — diz Luc quando o inverno dá lugar à primavera.
— Dança comigo — diz quando um novo ano começa.
— Fica comigo — diz, finalmente, quando uma década se transforma noutra.
E uma noite Addie acorda no escuro sob a pressão suave das pontas dos dedos de Luc a
desenharem padrões na sua pele e fica perturbada com o seu olhar. Não, não com o olhar. Com o
reconhecimento.
É a primeira vez que acorda na cama com alguém que não a esqueceu. A primeira vez que
ouve o seu nome repetidamente depois do intervalo do sono. A primeira vez que não se sente
sozinha.
E algo dentro de si estilhaça-se.
Addie já não o odeia. Há muito tempo.
Não sabe quando a mudança começou, se houve um momento específico no tempo ou, como
Luc em tempos a avisou, se foi como a lenta erosão de uma costa.
Só sabe que está cansada e que ele é o sítio onde quer descansar.
E que, de alguma forma, está feliz.
Mas não é amor.
Sempre que Addie sente estar a esquecer, encosta o ouvido ao seu peito nu e escuta o tambor
da vida, o som da respiração, e ouve apenas o bosque de noite, a quietude calma do verão. Um
aviso de que ele é uma mentira, de que o seu rosto e a sua carne são apenas um disfarce.
De que não é humano e de que aquilo não é amor.
Nova Iorque
30 de julho de 2014

A cidade desliza do lado de fora da janela, mas Addie não vira a cabeça, não admira o horizonte
de Manhattan, os edifícios a erguerem-se dos dois lados. Em vez disso, estuda Luc, refletido no
vidro escuro, a linha do seu maxilar, o arco da sobrancelha, ângulos desenhados pela sua mão há
muitos, muitos anos. Observa-o, como se observa um lobo na orla da floresta, à espera de ver o
que fará.
Ele é o primeiro a quebrar o silêncio.
O primeiro a mover uma peça.
— Lembras-te da ópera em Munique?
— Lembro-me de tudo, Luc.
— Da forma como olhavas para os cantores naquele palco, como se nunca tivesses assistido a
uma representação.
— E nunca tinha assistido a uma representação como aquela.
— O assombro nos teus olhos, perante a visão de algo novo. Soube nesse momento que nunca
ganharia.
Addie quer saborear as palavras como um gole de bom vinho, mas as uvas azedam-lhe na
boca. Não confia nelas.
O carro para junto a Le Coucou, um magnífico restaurante francês na zona baixa de SoHo,
com hera a trepar pelas paredes exteriores. Já ali esteve, duas das melhores refeições que
experimentou em Nova Iorque, e pergunta-se se Luc saberá o quanto aprecia o estabelecimento
ou se simplesmente partilha o seu gosto.
Mais uma vez, oferece-lhe a mão.
Mais uma vez, ela não aceita.
Addie vê um casal aproximar-se das portas do restaurante, para descobrir apenas que está
fechado, vê-o afastar-se, murmurando algo sobre reservas. Mas, quando Luc toca na maçaneta, a
porta abre-se facilmente.
Lá dentro, candelabros enormes pendem de tetos altos, e as amplas janelas de vidro reluzem,
negras. O luar parece imenso, suficientemente grande para sentar cem pessoas, mas esta noite
está vazio, à exceção de dois chefs visíveis na cozinha aberta, de dois empregados de mesa e do
maître, que se baixa numa vénia baixa quando Luc se aproxima.
— Monsieur Dubois — diz numa voz etérea. — Mademoiselle.
Condu-los à sua mesa, posta com pratos num tom vermelho-rosado. O maître puxa a cadeira
de Addie, e Luc espera que ela se sente antes de ocupar o seu lugar. O homem abre uma garrafa
de Merlot e serve-os, e Luc ergue o copo para ela e diz:
— À tua, Adeline.
Não há ementa. Não há pedido a fazer. Os pratos chegam simplesmente.
Foie gras com cerejas e um guisado de coelho. Halibute em beurre blanc e pão acabado de
cozer e meia-dúzia de queijos diferentes.
A comida é, obviamente, requintada.
Mas, enquanto comem, o anfitrião e os empregados mantêm-se junto às paredes, de olhos
abertos, vazios, uma expressão insípida no rosto. Sempre detestou este aspeto do seu poder e a
forma descuidada como o usa.
Inclina o copo na direção das marionetas.
— Manda-os embora — diz ela, e ele fá-lo. Um gesto silencioso, e os empregados
desaparecem, e ficam sozinhos no restaurante vazio.
— Farias isso comigo? — pergunta depois de terem desaparecido.
Luc abana a cabeça.
— Não poderia — diz ele, e ela pensa que é por gostar tanto dela, mas depois ele diz: — Não
tenho poder sobre almas prometidas. Têm a sua própria vontade.
Não serve de grande consolo, pensa ela, mas é qualquer coisa.
Luc olha para o copo de vinho. Roda o pé entre os dedos e, ali, no vidro escurecido, vê-os a
ambos, enredados em lençóis de seda, vê os dedos dele no seu cabelo, as suas mãos a tocarem
música na sua pele.
— Diz-me, Adeline — diz ele. — Tiveste saudades minhas?
Claro que teve saudades dele.
Pode dizer a si mesma, como lhe disse a ele, que teve apenas saudades de ser vista ou que
teve saudades da intensidade da sua atenção, da inebriação da sua presença — mas é mais do que
isso. Teve saudades do som da sua voz, da experiência do seu toque, da fricção de pedra sobre
pedra das suas conversas, da forma como encaixam.
Ele é a gravidade.
É trezentos anos de história.
É a única constante na sua vida, o único que sempre, sempre se lembrará.
Luc é o homem com quem sonhou quando era nova e depois aquele que mais odiou e aquele
que amou, e Addie teve saudades dele todas as noites que esteve longe dela, e ele não merecia a
sua dor porque a culpa foi dele, foi culpa dele mais ninguém se lembrar, foi culpa dele ela ter
perdido e perdido e perdido, mas não diz nada disso porque não irá mudar nada e porque ainda
há uma coisa que não perdeu. Uma parte da sua história que pode salvar.
Henry.
Por isso Addie joga o seu gambito.
Estende o braço por cima da mesa e pega na mão de Luc, diz-lhe a verdade.
— Tive saudades tuas.
Os seus olhos verdes cintilam e mudam ao ouvir as palavras. Toca-lhe no anel, no dedo,
percorre as espirais na madeira.
— Quantas vezes estiveste prestes a pô-lo? — pergunta. — Com que frequência pensas em
mim? — E ela parte do pressuposto de que lhe está a armar uma cilada, até que a voz baixa até
um sussurro, um levíssimo trovão no ar entre ambos. — Porque eu pensei em ti. Sempre.
— Não vieste.
— Não chamaste.
Addie olha para as suas mãos entrelaçadas.
— Diz-me, Luc — diz. — Alguma parte foi real?
— O que é real para ti, Adeline? Visto que o meu amor não conta para nada?
— Não és capaz de sentir amor.
Ele franze o sobrolho, com os olhos a lampejarem, cor de esmeralda.
— Porque não sou humano? Porque não definho e morro?
— Não — diz ela, retirando a mão. — Não és capaz de sentir amor porque não consegues
compreender o que é gostar mais de alguém do que de nós próprios. Se me amasses, já me terias
libertado.
Luc afasta os dedos rapidamente.
— Que disparate — diz. — É porque te amo que não o faço. O amor é fome. O amor é
egoísmo.
— Estás a pensar em posse.
Ele encolhe os ombros.
— Serão assim tão diferentes? Vi o que os seres humano fazem às coisas que amam.
— As pessoas não são coisas — diz ela. — E nunca as irás compreender.
— Compreendo-te a ti, Adeline. Conheço-te, melhor do que qualquer pessoa neste mundo.
— Porque não me deixas ter mais ninguém. — Inspira profundamente para se acalmar. — Sei
que não me irás dispensar, Luc, e talvez tenhas razão, fomos feitos para estar juntos. Por isso, se
me amas, abdica do Henry Strauss. Se me amas, liberta-o.
O mau humor lampeja-lhe no rosto.
— Esta é a nossa noite, Adeline. Não dês cabo dela a falar de outra pessoa.
— Mas disseste...
— Anda — diz, afastando-a da mesa. — Este sítio já não me agrada.
O empregado tinha acabado de deixar uma tarte de pera em cima da mesa, mas esta
transforma-se em cinza quando Luc fala, e Addie espanta-se, como sempre se espantou, perante
o génio dos deuses.
— Luc — começa, mas ele já se levantou, atirando o guardanapo para cima da comida
estragada.
Nova Orleães, Luisiana
29 de julho de 1970

— Amo-te.
Estão em Nova Orleães quando ele o diz, a jantar num bar escondido no Bairro Francês, uma
das suas muitas encenações.
Addie abana a cabeça, espantada por as palavras não se transformarem em cinzas na sua boca.
— Não faças de conta que isto é amor.
A irritação lampeja no rosto de Luc.
— O que é o amor, então? Diz-me. Diz-me que o teu coração não estremece quando ouves a
minha voz. Que não sofre quando ouves o teu nome nos meus lábios.
— É pelo meu próprio nome que sofre, não pelos teus lábios.
Os contornos da boca dele contorcem-se para cima, os olhos agora cor de esmeralda. Um
brilho nascido do prazer.
— Em tempos, talvez — diz ele. — Mas agora é mais do que isso.
Addie tem receio de que ele tenha razão.
E então Luc pousa uma caixa diante dela.
É simples e preta e, se Addie estendesse a mão para lhe tocar, seria suficientemente pequena
para lhe caber na palma.
Mas não o faz, pelo menos de início.
— O que é isto? — pergunta.
— Um presente.
Ainda assim, não o aceita.
— Francamente, Adeline — diz ele, retirando a caixa da mesa. — Não mordo.
Abre-a e volta a pousá-la diante dela.
Lá dentro encontra-se uma chave de metal simples, e, quando lhe pergunta de onde é, ele
responde:
— De casa.
Não teve casa desde Villon. Na verdade, nunca teve um sítio seu, e quase se sente grata, antes
de se lembrar de que, evidentemente, ele é o motivo de tudo isso.
— Não faças troça de mim, Luc.
— Não estou a fazer troça de ti — diz ele.
Pega-lhe mão e leva-a a percorrer o bairro, até um sítio ao fundo da Bourbon Street, uma casa
amarela com uma varanda e janelas altas como portas. Addie introduz a chave na fechadura,
ouve o som pesado da volta e apercebe-se de que, se pertencesse a Luc, ao invés de a ela, a porta
simplesmente abriria. E, de súbito, a chave de metal parece real e sólida na sua mão, um tesouro.
A porta abre-se para uma casa com tetos altos e soalhos de madeira, com mobília e armários e
espaços a serem preenchidos. Addie sai para varanda, com os sons em camadas do bairro a
erguerem-se para ir ao seu encontro, no ar húmido. Música jazz derrama-se pelas ruas, colidindo,
sobrepondo-se, uma melodia caótica, mutável e viva.
— É tua — diz Luc —, uma casa — e os velhos sinais de aviso ecoam, profundamente, na
medula dos seus ossos.
Mas, ultimamente, é um raio a minguar, um farol visto de demasiado longe do porto.
Luc puxa-a para si, e Addie repara de novo na perfeição com que os seus corpos encaixam.
Como se ele fosse feito para ela.
Foi-o, evidentemente. O seu corpo, o seu rosto, aqueles traços, feitos para a deixar à vontade.
— Vamos sair — diz ele.
Addie quer ficar ali, estrear a casa, mas ele diz haverá tempo para isso, que haverá sempre
tempo. E, pela primeira vez, ela não receia a ideia de eternidade. Pela primeira vez, os dias e as
noites não se arrastam, precipitam-se para diante.
Sabe-o, sabe que, seja aquilo o que for, não irá durar.
Não pode durar.
Nada dura.
Mas, naquele momento, está feliz.
Percorrem o bairro, de braço dado, e Luc acende um cigarro, e, quando ela lhe diz que lhe faz
mal à saúde, ele solta uma gargalhada aspirada e silenciosa, com o fumo a sair-lhe por entre os
lábios.
Os passos de Addie abrandam diante da montra de uma loja.
A loja está fechada, claro, mas, mesmo por trás do vidro fumado, consegue ver o casaco de
cabedal, preto com fivelas prateadas, a envolver um manequim.
O reflexo de Luc cintila atrás dela enquanto acompanha o olhar de Addie.
— É verão — diz ele.
— Não será sempre.
Luc passa as mãos pelos ombros dela, e Addie sente o cabedal macio pousar-lhe na pele,
ficando o manequim da montra agora despido, e tenta não pensar em todos os anos em que não o
teve, obrigada a suportar o frio, em todas as vezes que teve de se esconder e de lutar e de roubar.
Tenta não pensar nelas, mas pensa.
Estão a meio caminho, de volta à casa amarela, quando Luc descola dela.
— Tenho trabalho a fazer — diz. — Vai andando para casa.
Casa — a palavra ressoa no seu peito enquanto ele se afasta.
Mas ela não vai.
Vê Luc dobrar a esquina e atravessar a rua e depois demora-se na sombra enquanto ele se
aproxima de uma loja com uma palmeira luminescente pintada na porta.
Uma mulher mais velha encontra-se no passeio, a fechar o estabelecimento, o perfil inclinado
sobre uma argola cheia de chaves, um saco grande pendendo de um cotovelo.
Deve ouvi-lo aproximar-se, porque murmura algo para a escuridão, algo sobre fechar, algo
sobre mais um dia. E depois vira-se e vê-o.
No vidro da montra, Addie também vê Luc, não como é para ela, mas como deve parecer à
mulher que se encontra à porta. Ainda tem os caracóis negros, mas o rosto é mais magro, mais
afiado, com um ar selvagem, os olhos encovados, os membros demasiado finos para serem
humanos.
— Um pacto é um pacto — diz ele, as palavras a vergarem-se no ar. — E está feito.
Addie observa, esperando que a mulher suplique, que corra.
Mas pousa o saco no chão e ergue o queixo.
— Um pacto é um pacto — diz. — E estou cansada.
E, de certa forma, é pior.
Porque Addie compreende.
Porque também está cansada.
E, enquanto observa, a escuridão desfaz-se outra vez.
Passaram-se mais de cem anos desde a última vez que Addie o viu em toda a verdade, a ira da
noite, com todos os seus dentes. Só que, desta vez, não há laceração, não há rutura, não há
horror.
A escuridão envolve simplesmente a idosa como uma tempestade, cobrindo a luz.
Addie vira costas.
Regressa à casa amarela em Bourbon Street e serve-se um copo de vinho branco, revigorante
e gelado. Está um calor tórrido; as portas da varanda encontram-se abertas de par em par para
aligeirar a noite de verão. Está encostada ao varandim de ferro quando o ouve chegar, não na rua,
lá em baixo, como um amante a fazer a corte, mas no quarto, atrás dela.
E, quando os seus braços a envolvem pelos ombros, Addie lembra-se da forma como agarrou
a mulher, à entrada, na forma como a envolveu, engolindo-a inteira.
Nova Iorque
30 de julho de 2014

O humor de Luc melhora um pouco enquanto caminham.


A noite está quente, a lua mal forma um crescente, lá em cima. A cabeça dele inclina-se para
trás, e ele inspira, aspirando o ar como se não estivesse maduro do calor de verão, demasiadas
pessoas num espaço tão pequeno.
— Há quanto tempo estás aqui? — pergunta ela.
— Vou e venho — diz, mas ela aprendeu a ler o espaço entre as suas palavras e adivinha que
está em Nova Iorque quase há tanto tempo quanto ela, à espreita, como uma sombra, no seu
encalço.
Não sabe onde se dirigem e, pela primeira vez, pergunta-se se Luc saberá ou se está
simplesmente a andar, a tentar criar espaço entre eles e o fim da refeição.
No entanto, à medida que vão subindo pela cidade, Addie sente o tempo envolvê-los e não
sabe se será da magia dele ou da sua própria memória, mas, a cada quarteirão que passam, vê-se
fugir dele, ao longo do Sena. Ele a afastá-la do mar. Ela a segui-lo em Florença. Caminham lado
a lado, em Boston, e de braço dado pela Bourbon Street.
Estão ali juntos, em Nova Iorque. E pergunta-se o que teria acontecido se Luc não tivesse dito
a palavra. Se não tivesse aberto o jogo. Se não tivesse dado cabo de tudo.
— A noite é nossa — diz, virando-se para ela, e os seus olhos brilham de novo. — Onde
haveremos de ir?
Para casa, pensa ela, embora não o possa dizer.
Addie olha para cima, para os arranha-céus, irrompendo dos dois lados.
— Qual deles — pergunta-se — terá a melhor vista?
Um instante depois, Luc sorri, exibindo os dentes, e diz:
— Segue-me.

Ao longo dos anos, Addie aprendeu muitos dos segredos da cidade.


Mas ali está um que não conhecia.
Não se encontra debaixo do solo, mas no cimo de um edifício.
Oitenta e cinco patamares acima, alcançadas por dois elevadores, o primeiro inclassificável,
subindo apenas até ao octogésimo primeiro. O segundo, uma réplica exata das Portas do Inferno
de Rodin, com os seus corpos contorcidos, a cravarem as unhas para fugir, transporta-os pelo que
resta do caminho.
Se tiverem uma chave.
Luc tira o cartão preto do bolso da camisa e fá-lo passar por uma abertura, ao longo da
moldura do elevador.
— É um dos teus? — pergunta ela quando as portas deslizam, abrindo-se.
— Nada é realmente meu — diz ele à laia de resposta enquanto entram.
É uma subida breve, três andares apenas, e, quando para, as portas abrem para uma visão
ininterrupta da cidade.
O nome do bar aparece em letras pretas, aos pés dela.
THE LOW ROAD.

Addie revira os olhos.


— Perdition já estava tomado?
— O Perdition — diz ele, com os olhos a cintilarem de travessura — é um tipo de bar
diferente.
O pavimento é de bronze, as balaustradas de vidro, e o teto abre-se para o céu, com as pessoas
amontoadas em sofás de veludo, a mergulharem os pés em piscinas pouco profundas e a
demorarem-se junto às varandas que contornam o terraço, admirando a cidade.
— Sr. Green — diz a anfitriã. — Bem-vindo de volta.
— Obrigada, Renee — diz baixinho. — Esta é a Adeline. Sirva-lhe tudo o que ela desejar.
A anfitriã olha para ela, mas não há compulsão nos seus olhos, não há consciência de que foi
enfeitiçada, apenas a cooperação de uma funcionária, aliás, muito boa no seu trabalho. Addie
pede a bebida mais cara, e Renee sorri para Luc.
— Encontrou uma companheira à sua altura.
— É verdade — diz ele, pousando a mão ao fundo das costas de Addie enquanto a conduz
para diante. Ela apressa o passo até a mão se afastar do corpo e serpenteia por entre a multidão
comprimida contra a balaustrada de vidro, a olhar para Manhattan. Claro que não se veem
estrelas, mas Nova Iorque espraia-se por todos os lados, a sua própria galáxia de luz.
Pelo menos ali consegue respirar.
É o riso fácil da multidão. O barulho de fundo de pessoas a divertirem-se, muito mais
agradável do que o silêncio abafado do restaurante vazio, do que a quietude enclausurada do
carro. É o céu a abrir-se por cima dela. A beleza da cidade de cada lado e o facto de não estarem
sozinhos.
Renee regressa com uma garrafa de champanhe, com uma camada visível de pó a cobrir o
vidro.
— Dom Perignon, 1959 — explica, segurando a garrafa para que a avaliem. — Da sua caixa
especial, Sr. Green.
Luc faz um sinal com a mão, e Renee abre a garrafa, enchendo duas flutes, com bolhinhas tão
pequenas que parecem pedaços de diamante dentro do copo.
Addie dá um gole, saboreia a forma como o líquido lhe fervilha na língua.
Passa a multidão em revista, cheia do tipo de rostos que se reconheceriam, mesmo que não se
tivesse a certeza de onde ter visto. Luc aponta-lhos, senadores e atores, autores e críticos, e ela
pergunta-se se algum deles terá vendido a sua alma. Se algum deles estará prestes a fazê-lo.
Addie olha para baixo, para o copo, as bolhinhas a erguerem-se suavemente até à superfície,
e, quando fala, as palavras quase não passam de um sussurro, com o som a ser roubado pela
multidão a tagarelar. Mas sabe que ele está a ouvir, sabe que ele a consegue ouvir.
— Liberta-o, Luc.
A boca dele comprime-se por uma fração de segundo.
— Adeline — avisa.
— Disseste que me ouvirias.
— Muito bem. — Recosta-se contra a balaustrada e estica as pernas. — Diz-me. O que vês
nele, neste último amante humano?
Henry Strauss é atencioso e amável, quer dizer. É inteligente e bem-disposto e carinhoso e
afável.
É tudo o que tu não és.
Mas Addie sabe que deve avançar com cautela.
— O que vejo nele? — diz ela. — Vejo-me a mim. Não quem eu sou agora, talvez, mas quem
era na noite em que vieste em meu auxílio.
Luc franze o sobrolho.
— O Henry Strauss queria morrer. Tu querias viver. Não têm nada de semelhante.
— Não é assim tão simples.
— Não?
Addie abana a cabeça.
— Só vês falhas e defeitos, vulnerabilidades a explorar. Mas os seres humanos são muito
complicados, Luc. É esse o seu encanto. Vivem e amam e cometem erros e sentem
extraordinariamente. E talvez... talvez eu já não faça parte deles.
As palavras dilaceram-na enquanto as pronuncia, porque sabe que é verdade. Para o bem ou
para o mal.
— Mas lembro-me — continua. — Lembro-me de como era, e o Henry está...
— Perdido.
— À procura — contrapõe. — E irá descobrir o seu caminho, se lho permitires.
— Se lho permitir — diz Luc —, não saltará de cima de um prédio.
— Não sabes isso — diz ela. — Nunca saberás, porque intervieste.
— Adeline, a mim, o meu negócio são as almas, não segundas oportunidades.
— E estou a suplicar-te que o libertes. Não me darás a minha alma, por isso dá-me antes a
dele.
Luc expira e faz um gesto para o terraço.
— Escolhe uma pessoa — diz.
— O quê?
Vira-se de modo a ficar de frente para a multidão.
— Escolhe uma alma para ocupar o lugar da dele. Seleciona um estranho. Condena um deles
em substituição. — A sua voz é baixa e suave e segura. — Há sempre um preço — diz ele
delicadamente. — É preciso pagar um preço. O Henry Strauss trocou a sua própria alma.
Venderias a de outra pessoa para ter a dele de volta?
Addie olha para o terraço concorrido, para os rostos que reconhece e para os que não
reconhece. Novos e velhos, acompanhados ou sozinhos.
Algum deles será inocente?
Algum deles será cruel?
Addie não sabe se o conseguirá fazer — até que a mão se ergue. Até apontar para um homem
na multidão, com o coração a afundar-se no estômago enquanto espera que Luc a largue, avance
e reclame a sua recompensa.
Mas Luc não se mexe.
Ri-se apenas.
— Minha Adeline — diz ele, beijando-lhe o cabelo. — Mudaste mais do que pensas.
Ela sente-se tonta e indisposta quando se vira para o enfrentar.
— Chega de jogos — diz.
— Muito bem — diz ele, mesmo antes de a puxar para dentro da escuridão.
O terraço desaparece, e o vazio irrompe à sua volta, engolindo tudo menos um céu sem
estrelas, de um negro infinito e violento. E, quando se retira de novo, um instante depois, o
mundo fica em silêncio, e a cidade desapareceu, e está sozinha no bosque.
Nova Orleães, Luisiana
1 de maio de 1984

É assim que acaba.


Com velas a arderem no parapeito, uma luz tremeluzente a lançar sombras longas pela cama.
Com a parte mais escura da noite a espraiar-se para lá da janela aberta e a primeira cor de verão
no ar e Addie nos braços de Luc, as trevas a envolvê-la como um lençol.
E isto, pensa, é estar em casa.
Isto talvez seja amor.
E essa é a pior parte. Finalmente esqueceu algo. Só que é a coisa errada. É a única coisa de
que se deveria lembrar. Que o homem na cama não é um homem. Que a vida não é uma vida.
Que há jogos e batalhas, mas, no fim, é tudo uma espécie de guerra.
Um toque como o de dentes ao longo do seu maxilar.
A escuridão a sussurrar contra a sua pele.
— Minha Adeline.
— Não sou tua — diz ela, mas a boca dele limita-se a sorrir contra o seu pescoço.
— E, no entanto — diz ele — estamos juntos. Pertencemos um ao outro.
Tu pertences-me a mim.
— Amas-me? — pergunta ela.
Os dedos dele percorrem-lhe as ancas.
— Sabes que sim.
— Então liberta-me.
— Não te estou a prender aqui.
— Não foi isso que quis dizer — diz ela, apoiando-se num braço. — Liberta-me.
Ele recua, apenas o suficiente para cruzar o seu olhar com o dela.
— Não posso quebrar o pacto. — A cabeça dele cai, com os caracóis negros a aflorarem-lhe a
face.´— Mas talvez — sussurra contra o seu peito — o possa contornar.
O coração de Addie tem um baque dentro do peito.
— Talvez possa mudar as condições.
Ela sustém a respiração enquanto as palavras de Luc lhe brincam na pele.
— Posso melhorá-lo — murmura. — Tens apenas de te render.
A palavra é um choque a frio.
Uma cortina a cair sobre uma peça: o cenário adorável, a encenação, os atores bem treinados,
todos desaparecem atrás do pano escuro.
Rende-te.
Uma ordem sussurrada nas trevas.
Um aviso dado a um homem despedaçado.
Um pedido repetido vezes sem conta ao longo de anos — até ter cessado. Há quanto tempo
parou de perguntar? Mas claro que Addie sabe — foi quando o seu método mudou, quando o seu
mau génio em relação a ela suavizou.
E ela é uma tola. Uma tola por pensar que significava paz ao invés de guerra.
Rende-te.
— O que foi? — pergunta Luc, fingindo confusão, até lhe lançar de novo a palavra à cara.
— Rende-te? — rosna ela.
— É apenas uma palavra — diz ele. Mas Luc ensinou-lhe o poder de uma palavra. Uma
palavra é tudo, e a palavra dele é uma serpente, uma armadilha preparada, uma maldição. — É
assim que as coisas se passam — diz ele. — Para se poder alterar o pacto — diz.
Mas Addie recua, afasta-se, solta-se.
— E deverei confiar em ti? Ceder e acreditar que ma devolverás?
Tantos anos, tantas maneiras diferentes de pedir a mesma coisa.
Cedes?
— Deves pensar que sou uma idiota, Luc. — Tem o rosto a arder de raiva. — Estou
surpreendida por teres tido tanta paciência. Mas, por outro lado, sempre gostaste da perseguição.
Os olhos verdes estreitam-se, no escuro.
— Adeline.
— Não te atrevas a dizer o meu nome. — Está de pé, a sibilar de raiva. — Eu sabia que eras
um monstro, Luc. Vi-o vezes suficientes. E, no entanto, ainda pensei, de certa forma pensei que,
passado todo este tempo..., mas claro que não era amor, pois não? Nem sequer era amabilidade.
Era apenas mais um jogo.
Há um instante em que pensa que poderá estar enganada.
Uma fração de segundo em que Luc parece magoado e confuso, e ela pergunta-se se terá
querido dizer o que disse, se, se...
Mas depois acaba-se tudo.
A mágoa desaparece-lhe do rosto e transforma-se em sombra, o efeito tão suave como o de
uma nuvem a atravessar o sol. Um sorriso sinistro brinca-lhe nos lábios.
— E que cansativo tem sido este jogo.
Addie sabe que a arrancou à força, mas, ainda assim, a verdade colide contra ela. Se já estava
fendida, agora está a partir-se.
— Não me podes culpar por tentar uma jogada diferente.
— Culpo-te por tudo.
Luc levanta-se, a escuridão a aglomerar-se como seda, à sua volta.
— Dei-te tudo.
— Nada era real!
Não irá chorar.
Não lhe irá dar a satisfação de a ver sofrer.
Nunca mais lhe voltará a dar seja o que for.
É assim que o confronto começa.
Ou melhor, é assim que acaba.
Afinal, a maior parte dos confrontos não se resolve num instante. Acumula-se ao longo de
anos ou de semanas, cada uma das fações a reunir as acendalhas, a alimentar as suas chamas.
Mas este confronto foi forjado ao longo de séculos.
É tão antigo e inevitável como a mudança no mundo, o passar de uma era, a colisão de uma
rapariga com as trevas.
Devia ter percebido que iria acontecer.
Talvez tenha percebido.
Mas, até hoje, Addie não sabe como o fogo começou. Se foram as velas que varreu de cima
da mesa ou o candeeiro que arrancou da parede, se foram as lâmpadas que Luc estilhaçou ou
simplesmente um derradeiro ato de ódio.
Sabe que não tem força para destruir nada, e, no entanto, fê-lo. Fizeram-no. Talvez ele a tenha
deixado atear o fogo. Talvez o tenha deixado simplesmente arder.
Não importa, no fim de tudo.
Addie está na Bourbon Street e vê a casa consumida pelas chamas, e, quando os bombeiros
chegam, não há nada para salvar. Apenas cinzas.
Mais uma vida desfeita em fumo.
Addie não tem nada, nem a chave no bolso. Estava ali, mas, quando a procura, desapareceu.
A mão sobe até ao anel de madeira que ainda traz ao pescoço.
Arranca-o, atira o anel para os despojos fumegantes de sua casa e vai-se embora.
Nova Iorque
30 de julho de 2014

Addie está rodeada de árvores.


O aroma a musgo do verão nos bosques.
O medo percorre-a, a certeza súbita, terrível, de que Luc quebrou as duas regras em vez de
apenas uma, de que a arrastou pela escuridão, de que a arrebatou de Nova Iorque, de que a
abandonou algures, longe, longe de casa.
Mas depois os olhos adaptam-se à escuridão e ela vira-se e vê o horizonte erguer-se acima das
árvores e percebe que deve estar em Central Park.
É acometida por uma sensação de alívio.
E então a voz de Luc varre as trevas.
— Adeline, Adeline... — diz, e ela não consegue perceber o que é eco e o que é simplesmente
ele, liberto de carne e osso e formas mortais.
— Prometeste — grita ela.
— Prometi?
Luc sai da escuridão, como naquela noite, moldando-se em fumo e sombra. Uma tempestade,
engarrafada sob pele.
Sou o diabo ou as trevas?, perguntou-lhe uma vez. Sou um monstro ou um deus?
Já não traz o fato preto lustroso, mas apresenta-se como estava quando o invocou pela
primeira vez, um estranho vestido com umas calças, uma túnica clara aberta no peito, o cabelo
negro a formar caracóis junto às têmporas.
O sonho invocado tantos anos antes.
Mas uma coisa mudou. Não há triunfo nos seus olhos. A cor desapareceu deles, tão clara que
ficaram quase cinzentos. E, embora nunca tenha visto aquele tom, imagina que seja de tristeza.
— Dar-te-ei o que desejas — diz ele. — Se fizeres uma coisa.
— O quê? — pergunta ela.
Luc estende a mão.
— Dança comigo — diz.
Há desejo na sua voz e perda, e ela pensa que talvez seja o fim, daquilo, deles. Um jogo que
finalmente se desenrola até ao fim. Uma guerra sem vencedores.
E por isso aceita dançar.
Não há música, mas não importa.
Quando pega na mão dele, ouve a melodia, suave e relaxante, na cabeça. Não é propriamente
uma canção, mas o som da floresta no verão, o restolhar firme do vento pelos campos. E ele
puxa-a para mais perto, ouve um violino, baixo e lamentoso, ao longo do Sena. A mão dele
desliza pela dela, e há o murmúrio regular da beira-mar. A sinfonia a retumbar por Munique.
Addie encosta a cabeça no ombro dele e ouve a chuva a cair em Villon, a banda de metais a tocar
no bar de Los Angeles e a reverberação do saxofone através das janelas abertas, em Bourbon
Street.
A dança interrompe-se.
A música esmorece.
Uma lágrima desliza-lhe pelo rosto.
— Bastava libertares-me.
Luc suspira e levanta-lhe o queixo.
— Não podia.
— Por causa do pacto.
— Porque és minha.
Addie contorce-se, tentando libertar-se.
— Nunca fui tua, Luc — diz, virando-lhe costas. — Nem no bosque, naquela noite. Nem
quando me levaste para a cama. Foste tu que disseste que era apenas um jogo.
— Menti. — As palavras como uma faca. — Tu amavas-me — diz ele. — E eu amava-te.
— E, no entanto — diz ela —, só vieste à minha procura quando encontrei outra pessoa.
Addie vira-se para ele, esperando ver os olhos ficar amarelos de inveja. Mas, em vez disso,
assumiram uma tonalidade verde-relva, arrogante, refletido pela expressão do seu rosto, o
arquear ligeiro de uma só sobrancelha, do canto da boca.
— Oh, Adeline — diz. — Achas mesmo que se encontraram um ao outro?
As palavras são como um degrau falhado.
Uma queda súbita.
— Achas mesmo que eu iria deixar que isso acontecesse?
O solo vacila sob os seus pés.
— Achas que, com todos os pactos que faço, uma coisa como essa alguma vez poderia passar
despercebida?
Addie fecha os olhos com força e está deitada ao lado de Henry, os dedos enlaçados, na relva.
Está a olhar para o céu noturno. Está a rir da ideia de que Luc finalmente cometeu um erro.
— Devem ter-se achado muito espertos — diz agora. — Amantes amaldiçoados, reunidos
pelo destino. Que probabilidade haveria de se conhecerem, de ambos estarem ligados a mim, de
ambos terem vendido as almas em troca de algo que apenas o outro lhes poderia dar? Quando a
verdade é muito mais fácil do que isso: eu pus o Henry no teu caminho. Ofereci-to, envolvido em
papel de embrulho e com um laço, como um presente.
— Porquê? — pergunta ela, com a garganta a fechar-se à volta da palavra. — Porque haverias
de o fazer?
— Porque era o que querias. Estavas tão concentrada na tua necessidade de amor que não
conseguias ver para lá dela. Dei-te isto, deito, para poderes ver que o amor não merecia o espaço
que reservavas para ele. O espaço que guardaste para mim.
— Mas merecia. Merece.
Luc estende uma mão para lhe aflorar o rosto.
— Vai deixar de merecer, quando ele tiver desaparecido.
Addie afasta-se. Das suas palavras, do seu toque.
— Isto é cruel, Luc. Até para ti.
— Não — rosna ele. — Crueldade seria dez anos em vez de um. Crueldade seria deixar-te ter
uma vida inteira com ele e teres de sofrer mais com a perda.
— Mesmo assim, escolhê-lo-ia! — abana a cabeça. — Nunca fizeste tenção de o deixar viver,
pois não?
Luc inclina a cabeça.
— Um pacto é um pacto, Adeline. E os pactos são um compromisso.
— Fizeste tudo isto para me atormentar...
— Não — explode ele. — Fi-lo para te mostrar. Para te fazer compreender. Puseste-os num
pedestal, mas os seres humanos são breves e insípidos, e o seu amor também. É superficial, não
dura. Anseias por amor humano, mas não és humana, Adeline. Não és humana há séculos. Não
tens lugar entre eles. Pertences-me.
Addie recua, com a raiva a endurecer sob a forma de gelo, dentro de si.
— Que difícil lição deve ser para ti — diz ela. — O facto de não conseguires ter tudo o que
queres.
— O quê? — diz sorrindo de forma escarninha. — Querer é coisa de crianças. Se isto fosse
querer, já me teria descartado de ti. Ter-te-ia esquecido há séculos — diz, com um ódio amargo
na voz. — Isto é precisar. E precisar é algo doloroso, mas paciente. Estás a ouvir-me, Adeline?
Preciso de ti. Tal como tu precisas de mim. Amo-te, tal como tu me amas.
Addie capta sofrimento na sua voz.
Talvez seja por isso que o quer magoar ainda mais.
Ele ensinou-a bem, a descobrir a vulnerabilidade na armadura.
— Mas o problema é esse, Luc — diz ela. — Eu não te amo, de todo.
As palavras são ditas em voz baixa, firme, e, no entanto, ribombam pelas trevas. As árvores
sussurram, as sombras adensam-se, e os olhos de Luc ardem num tom que ela nunca viu. Uma
cor venenosa. E, pela primeira vez em séculos, tem medo.
— Ele significa assim tanto para ti? — pergunta, com uma voz monocórdica e dura como
seixos de rio. — Então vai. Fica com o teu amor humano. Enterra-o e chora-o e planta uma
árvore por cima da sua sepultura. — Os seus contornos começam a esbater-se no escuro. — Eu
continuarei por aqui — diz ele. — E tu também.
Luc vira costas e desaparece.
Addie cai de joelhos na relva.
Fica ali até os primeiros fios de luz atravessarem o céu e depois, finalmente, obriga-se a
levantar-se, caminha até ao metro, desconcertada, com as palavras de Luc a andarem-lhe às
voltas na cabeça.
Não és humana, Adeline.
Achaste mesmo que se tinham encontrado um ao outro?
Devem ter-se achado muito espertos.
Fica com o teu amor.
Eu continuarei por aqui.
E tu também.
O sol está a nascer quando chega a Brooklyn.
Detém-se para ir buscar o pequeno-almoço, uma concessão, um pedido de desculpas, por ter
estado longe toda a noite. E é então que vê os jornais empilhados contra a banca do quiosque. É
então que vê a data impressa no canto superior.
6 de agosto de 2014.
Saiu do apartamento a 30 de julho.
Fica com o teu amor, disse ele.
Mas Luc apoderara-se desse tempo. Não roubara apenas uma noite. Arrebatara uma semana
inteira. Sete dias preciosos, eliminados da sua vida... e da de Henry.
Addie corre.
Entra de rompante pela porta, sobe as escadas, vira a mala ao contrário, mas a chave
desapareceu, e bate com os punhos na porta, o terror a irromper através dela perante a ideia de
que o mundo possa ter mudado, de que Luc de alguma forma possa ter reescrito mais do que o
tempo, de que de alguma forma tenha levado mais, tenha levado tudo.
Mas depois o trinco desliza e a porta abre-se, e ali está Henry, exausto, desgrenhado, e Addie
sabe, pelo seu olhar, que não estava à espera de que ela voltasse. De que, a dado momento, entre
a primeira manhã e a seguinte e a outra, pensou que ela tinha desaparecido.
Addie lança-lhe então os braços ao pescoço.
— Lamento imenso — diz, e não é apenas pela semana roubada.
É pelo pacto, pela maldição, pelo facto de a culpa ser dela.
— Desculpa — diz, repetidamente, e Henry não grita, não se enfurece, nem sequer diz Eu
avisei. Limita-se a apertá-la com força e diz:
— Chega — diz. — Promete-me — diz. — Fica.
E nenhuma destas palavras é uma pergunta, mas ela sabe que Henry está a perguntar, a pedir-
lhe que deixe andar, que pare de se debater, que pare de tentar mudar os seus destinos e se limite
a estar com ele até ao fim.
E Addie não consegue suportar a ideia de desistir, de ceder, de ser vencida sem dar luta.
Mas Henry está a perder as forças, e a culpa é dela, e por isso acaba por concordar.
Nova Iorque
Agosto de 2014

São os dias mais felizes da vida de Henry.


É algo esquisito de se dizer, Addie sabe.
Mas há uma estranha liberdade naquilo, um consolo peculiar no conhecimento. O fim
precipita-se ao seu encontro, e, no entanto, não sente que está a cair para ele.
Sabe que deveria estar assustado.
Todos os dias, prepara-se para o terror irrequieto, espera que as nuvens de tempestade se
aproximem, aguarda que o pânico inevitável lhe trepe dentro do peito, se intrometa, destruindo-
o. Mas, pela primeira vez em meses, em anos, em tanto tempo quanto se consegue lembrar, não
tem medo. Está preocupado com os amigos, claro, com a loja e com o gato. Mas, para lá do
zunido baixo da preocupação, reside apenas uma estranha calma, uma estabilidade e o alívio
incrível de ter encontrado Addie, de a ter conhecido, de a ter amado, de a ter ali, ao seu lado.
Está feliz.
Está pronto.
Não tem medo.
É o que diz para si mesmo.
Não tem medo.
Decidem ir para fora.
Sair da cidade, do calor estagnante do verão.
Ver as estrelas.
Aluga um carro, e conduzem para norte, e Henry dá-se conta, a meio caminho de Hudson, que
Addie nunca conheceu a sua família e depois dá-se conta, com um peso súbito que o afunda, que
só deveria ir a casa pelo Rosh Hashanah e que, por essa altura, já terá desaparecido. De que, se
virar nesta saída, nunca terá a oportunidade de se despedir.
E então as nuvens começam a aproximar-se, e o medo tenta trepar-lhe dentro do peito, porque
não sabe o que diria, não sabe de que serviria.
E depois já passou a saída, depois é demasiado tarde, e pode respirar de novo, e Addie está a
apontar para um cartaz a anunciar fruta fresca e saem da autoestada e compram pêssegos na
banca e sandes no mercado e guiam durante uma hora para norte, até um parque estadual, onde o
sol está quente, mas a sombra sob as árvores é fresca, e passam o dia a deambular por trilhos
arborizados e, quando a noite cai, fazem um piquenique no capô do carro alugado e deitam-se
entre a relva bravia e selvagem e as estrelas.
Tantas que a noite não parece negra.
E ele continua a sentir-se feliz.
E ele continua a conseguir respirar.
Não têm tenda, mas, seja como for, está demasiado calor para resguardos.
Deitam-se numa manta, em cima da relva, e olham para cima, para o fantasma da Via Láctea,
e ele pensa na Artifact, na High Line, na exposição do céu, em quão próximas as estrelas
pareciam na altura e, agora, quão remotas.
— Se pudesses fazer tudo de novo — diz ele —, voltarias a fazer o pacto?
E Addie diz que sim.
Tem sido uma vida difícil e solitária, diz, mas também maravilhosa. Atravessou guerras e
combateu nelas, assistiu a revoluções e renascimentos. Deixou a sua marca em milhares de obras
de arte, como uma impressão digital no fundo de uma tigela a secar. Viu prodígios e
enlouqueceu, dançou nas margens cobertas de neve e geladas até à morte, ao longo do Sena.
Apaixonou-se pela escuridão muitas vezes, apaixonou-se por um ser humano uma vez.
E está cansada. Inexprimivelmente cansada.
Mas não há dúvida de que viveu.
— Nada é apenas bom ou mau — diz ela. — A vida é muito mais complicada do que isso.
E ali, no escuro, Henry pergunta se realmente valeu a pena.
Houve instantes de alegria que compensassem os períodos de sofrimento?
Houve momentos de beleza que compensassem os anos de agruras?
E ela vira a cabeça e olha para ele e diz:
— Sempre.
Adormecem sob as estrelas, e, quando acordam, de manhã, o calor dissipou-se, o ar está
fresco, os primeiros sussurros de outra estação, a primeira que ele não verá, à espera, ao longe.
E, ainda assim, diz para si mesmo que não tem medo.

E depois as semanas transformam-se em dias.


Há algumas despedidas que tem de fazer.
Encontra-se com Bea e Robbie no Merchant, uma noite. Addie senta-se no balcão do bar, a
beber um refrigerante, dando-lhe espaço. Ele quer que ela esteja presente, precisa de que ela
esteja presente, uma âncora silenciosa na tempestade. Mas ambos sabem que, se ela estivesse na
mesa com ele, Bea e Robbie se poderiam esquecer, e ele precisa de que se lembrem.
E, por algum tempo, tudo é maravilhosamente, dolorosamente normal.
Bea fala da sua última proposta para tese. Ao que parece, à nona é de vez, porque foi aceite, e
Robbie fala da estreia do espetáculo na próxima semana, e Henry não lhe diz que se esgueirou
para um dos ensaios com adereços no dia anterior, que ele e Addie estavam à espreita na última
fila, enterrados nas cadeiras para ele poder ver Robbie em palco, brilhante e belo e no seu
elemento, instalado no seu trono com o fulgor de Bowie e um sorriso de diabo e uma magia
própria.
E, finalmente, Henry mente e diz-lhes que vai para fora.
Para norte, para visitar os pais. Não, não está na altura, diz, mas vão aparecer uns primos, a
mãe pediu. Durante o fim de semana apenas, diz.
Pergunta a Bea se pode tomar conta da loja.
Pergunta a Robbie se pode dar de comer ao gato.
E eles dizem que sim, tão simples como isto, porque não sabem que é uma despedida. Henry
paga a conta, e Robbie brinca, e Bea queixa-se dos colegas da faculdade, e Henry diz-lhes que
lhes liga quando voltar.
E, quando se levanta para se ir embora, Bea beija-lhe a face, e ele puxa Robbie para um
abraço, e Robbie diz que é melhor que ele não perca o espetáculo, e Henry promete que não irá
perder, e depois estão a sair, desapareceram.
E é assim, conclui, que deveria ser uma despedida.
Não um ponto final, mas uma elipse, uma frase com reticências, até alguém aparecer para a
continuar.
Uma porta que se deixou entreaberta.
Cair lentamente no sono.
E diz para si mesmo que não tem medo.
Diz para si mesmo que está tudo bem, que ele está bem.
E, quando começa a duvidar, a mão de Addie está ali, suave e firme, no seu braço, levando-o
de volta a casa. E metem-se na cama e enroscam-se num no outro, contra a tempestade.
E algures, a meio da noite, ele sente-a levantar-se, ouve os seus passos no corredor.
Mas é tarde, e não deduz nada sobre aquilo.
Vira-se para o outro lado e volta a adormecer, e, quando acorda de novo, ainda é escuro, e ela
está de volta à cama, ao seu lado.
E o relógio na mesinha de cabeceira avança mais um passo em direção à meia-noite.
Nova Iorque
4 de setembro de 2014

É um dia perfeitamente normal.


Ficam na cama, enroscados no ninho dos lençóis, cabeça contra cabeça e mãos a percorrerem
braços, a percorrerem rostos, dedos a memorizarem pele. Ele sussurra o nome dela,
repetidamente, como se Addie pudesse guardar o som, engarrafá-lo para o usar quando ele não
estiver presente.
Addie, Addie, Addie.
E, apesar de tudo, Henry está contente.
Ou, pelo menos, diz para si mesmo que está contente, diz para si mesmo que está pronto, diz
para si mesmo que não tem medo. E diz para si mesmo que, se ficarem ali apenas, na cama, o dia
irá alongar-se. Se sustiver a respiração, conseguirá impedir os segundos de avançarem, prender
os minutos entre os seus dedos entrelaçados.
É um pedido silencioso, mas Addie parece captá-lo, porque não faz qualquer movimento para
se levantar. Em vez disso, fica com ele na cama e conta-lhe histórias.
Não de aniversários — já esgotaram todos os dias 29 de julho —, mas de setembros e de
maios, de dias tranquilos, o tipo de história de que mais ninguém, se lembraria. Fala-lhe dos
lagos de fadas da ilha de Skye e das luzes do Norte, na Islândia, de nadar num lago tão límpido
que conseguia ver o fundo, a dez metros de profundidade, em Portugal... ou seria Espanha?
São as únicas histórias que ele nunca escreverá.
A culpa é sua; não se consegue obrigar a sentar, a largar as mãos de Addie e a sair da cama e
tirar o último caderno da prateleira — agora já são seis, com o último preenchido apenas até
meio, e apercebe-se de que irá ficar assim, com as últimas páginas em branco, a sua letra
pequena e apertada como uma parede, um fim falso para uma história em curso, e o seu coração
saltita um pouco, um estremecimento minúsculo de pânico, mas não pode permitir que aquilo
recomece, sabe que o ficará dilacerado, tal como um arrepio transforma um arrefecimento
momentâneo num frio capaz de deixar os dentes a bater, e não pode perder o controlo, ainda não,
ainda não.
Ainda não.
Por isso, Addie fala, e ele ouve, deixando que as histórias deslizem como dedos pelo seu
cabelo. E, sempre que o pânico tenta vir à tona, resiste, sustém a respiração e diz para si mesmo
que está bem, mas não se mexe, não se levanta. Não consegue, porque, se o fizer, quebrará o
feitiço, e o tempo irá disparar, e tudo chegará ao fim demasiado depressa.
É um disparate, bem sabe, uma estranha vaga de superstição, mas o medo está ali agora, agora
real, e a cama é segura, e Addie é firme, e está tão contente por ela estar ali, tão contente por
cada minuto desde que se conheceram.
Algures à tarde, fica subitamente com fome. Faminto.
Não devia. Sente-se frívolo e errado, irracional mesmo, mas a fome é rápida e profunda, e,
com a sua chegada, o relógio começa a contar o tempo.
Não consegue mantê-lo à distância.
Agora dispara, precipita-se.
E Addie olha para ele como se lhe conseguisse ler a mente, ver a tempestade formar-se na sua
cabeça. Mas ela é a luz do sol. Ela é céus azuis.
Arrasta-o da cama para a cozinha, e Henry senta-se num banco e ouve-a enquanto ela prepara
uma omeleta e lhe conta da primeira vez que viu um avião, que ouviu uma canção na rádio, que
assistiu a um filme no cinema.
É o último presente ela que lhe pode dar, os momentos que nunca mais terá. E é o último
presente que ele lhe pode dar a ela, ouvir.
E Henry desejava poder voltar para a cama com Book, mas ambos sabem que não há volta
atrás. E, agora que está levantado, não consegue suportar a imobilidade. É todo energia irrequieta
e necessidade urgente, e não há tempo suficiente, e ele obviamente sabe que nunca haverá.
Que o tempo termina sempre um segundo antes de estarmos prontos.
Que a vida são os minutos que desejamos, menos um.
E por isso vestem-se e saem e caminham, descrevendo círculos pelo quarteirão, enquanto o
pânico começa a levar a melhor. É uma mão a comprimir gelo frágil, uma pressão firme sobre
fissuras que se começam a espalhar, mas Addie está ali, com os dedos entrelaçados nos dele.
— Sabes como se vive trezentos anos? — diz ela.
E, quando ele pergunta como, ela sorri.
— Da mesma maneira que se vive um. Um segundo de cada vez.
E, aos poucos, as pernas dele começam a cansar-se, e a inquietação diminui, não desaparece,
mas entorpece até um nível que consegue gerir, e vão até ao Merchant e pedem comida que não
comem e pedem cervejas que não bebem porque ele não suporta a ideia de entorpecer as últimas
horas, por mais assustador que seja encará-las sóbrio.
E faz um comentário qualquer sobre a sua última refeição, ri-se desse pensamento mórbido, e
o sorriso de Addie vacila, por um segundo apenas, e depois ele está a pedir desculpa, a dizer que
lamenta, e ela dobra-se sobre ele, e o pânico têm as garras cravadas em Henry.
A tempestade prepara-se na sua cabeça, agitando o céu no horizonte, mas ele não a evita.
Deixa-a chegar.
Só quando começa a chover é que percebe que a tempestade é real.
Inclina a cabeça para trás e sente o pingar da chuva no rosto e pensa na noite em que foram ao
Fourth Rail, na carga de água que os deixou sem fôlego quando chegaram à rua. Pensa nisso
antes de pensar no terraço, e é qualquer coisa.
Sente-se tão longe do Henry que subiu até lá um ano antes — ou talvez não esteja assim tão
longe. Afinal, é apenas uma questão de degraus, da rua até ao parapeito.
Mas o que daria para voltar a descer.
Deus, o que daria por mais um dia, apenas.
O sol agora desapareceu, com a luz a tornar-se mais esparsa, e nunca mais o irá ver, e o medo
esmaga-o, súbito e traiçoeiro. É uma rajada, a cortar uma cena demasiado parada. Debate-se
contra ele, ainda não, ainda não, e Addie aperta-lhe a mão, para que não seja arrastado pelo
vento.
— Fica comigo — diz ela, e ele responde:
— Estou aqui.
Os dedos apertam-se nos dela.
Ele não tem de perguntar, ela não tem de responder.
Há um acordo silencioso de que Addie ficará ali, com ele, mesmo até ao fim.
De que, desta vez, não estará sozinho.
E ele está bem.
Está tudo bem.
Ficará tudo bem.
Está quase na hora, e estão no terraço.
O mesmo terraço de que quase se atirou um ano antes, o mesmo onde esteve com o diabo e
fez o seu pacto. É o momento de fechar o círculo, e não sabe se tem de ser ali, se ele tem de estar
ali, mas parece-lhe o mais acertado.
A mão de Addie está presa na sua, e isso também parece acertado.
Uma ligação à terra contra uma tempestade crescente.
Ainda há algum tempo, o ponteiro do relógio a uma fração de fração de fração de distância da
meia-noite, e consegue ouvir a voz de Bea na sua cabeça.
Só tu para chegares adiantado à tua própria morte.
E Henry sorri, a contragosto, e deseja ter dito mais a Bea e a Robbie, mas a verdade pura e
dura é que simplesmente não confiou em si mesmo. Despediu-se, apesar de eles só o virem a
saber quando ele tiver desaparecido, e lamenta por isso, por eles, por qualquer dor que possa
causar. Está contente por se terem um ao outro.
A mão de Addie aperta-se na sua.
Está quase na hora, e pergunta-se como será perder uma alma.
Se será como um enfarte, súbito e violento, ou tão fácil como adormecer. A morte assume
muitas formas. Talvez neste caso também aconteça o mesmo. Irá a escuridão aparecer e enfiar
uma mão dentro do seu peito e arrancar-lhe a alma de entre as costelas, como um truque de
magia? Ou alguma força o irá obrigar a terminar o que começou? Andar até à beira do terraço e
saltar? Será encontrado na rua, lá em baixo, como se tivesse saltado?
Ou descobri-lo-ão ali em cima, no terraço?
Não sabe.
Não precisa de saber.
Está pronto.
Não está pronto.
Não estava pronto no ano passado, no terraço, quando o estranho lhe estendeu a mão. Não
estava pronto na altura e não está pronto agora e começa a desconfiar de que nunca estará pronto,
nem quando o momento chegar, nem quando a escuridão aparecer para reclamar o seu troféu.
Ouve-se música derramar-se, fina e minúscula, pela janela aberta de um vizinho, e Henry
desvia os pensamentos da morte e do parapeito do terraço, para a rapariga de mãos dadas com
ele, aquela que lhe diz para dançar com ela.
Puxa-a para perto, e ela cheira a verão, cheira a tempo, cheira a casa.
— Estou aqui — diz ela.
Addie prometeu ficar com ele até ao fim.
O fim. O fim. O fim.
A palavra ecoa pela sua cabeça como o tiquetaque de um relógio, mas não está na altura,
ainda tem tempo, embora este esteja a consumir-se muito depressa.
Ensinam-nos, quando estamos a crescer, que somos apenas uma coisa de cada vez —
zangados, sós, satisfeitos —, mas nunca achou que fosse verdade. É dezenas de coisas ao mesmo
tempo. Está perdido e assustado e grato, está arrependido e feliz e receoso.
Mas não está sozinho.
Começa a chover de novo, o ar a ficar húmido com o aroma metálico de tempestades na
cidade, e Henry não quer saber, pensa que tem de haver alguma simetria.
Viram-se num círculo lento pelo terraço.
Não dorme bem há dias, e isso deixou-lhe as pernas pesadas, a mente demasiado lenta, os
minutos a precipitarem-se à sua volta, e deseja que a música estivesse mais alta, deseja que o céu
estivesse mais leve, deseja ter tido apenas um pouco mais de tempo.
Ninguém está pronto para morrer.
Mesmo quando pensa que o deseja.
Ninguém está pronto.
Ele não está pronto.
Mas está na hora.
Está na hora.
Addie está a dizer qualquer coisa, mas o relógio parou de avançar, paira agora, sem peso,
sobre ele, e está na hora, e ele sente-se deslizar, sente os contornos da sua mente suavizarem, a
noite pesar, e a qualquer instante o estranho surgirá, vindo das trevas.
Addie dirige o rosto de Henry para o seu, está a dizer qualquer coisa, e ele não quer ouvir,
tem medo de que seja uma despedida, quer apenas agarrar-se a este momento, fazê-lo durar,
obrigá-lo a parar, transformar o filme numa imagem congelada, deixar que o fim seja isso, não a
escuridão, não o nada, apenas um momento eterno. Uma memória, presa em âmbar, em vidro, no
tempo.
Mas ela continua a falar.
— Prometeste que ouvirias — diz ela —, prometeste que escreverias.
Ele não compreende. Os cadernos estão na prateleira. Escreveu a história dela — todas as
partes.
— Pois foi — diz ele. — Pois foi.
Mas Addie abana a cabeça.
— Henry — diz. — Não te disse como acaba.
Nova Iorque
1 de setembro de 2014
(3 noites até ao fim)

Algumas decisões acontecem de repente.


Outras constroem-se ao longo do tempo.
Uma rapariga faz um pacto com as trevas, depois de anos passados a sonhar.
Uma rapariga apaixona-se por um rapaz num momento e decide libertá-lo.
Addie não sabe exatamente quando decidiu.
Talvez sempre tenha sabido desde a noite em que Luc regressou às suas vidas.
Ou talvez tenha sabido desde a noite em que ele escreveu o seu nome.
Ou talvez tenha sabido desde que ele disse estas palavras:
Lembro-me de si.
Não tem a certeza.
Não importa.
O que importa é que, três noites antes do fim, Addie sai da cama. Henry vira-se para o outro
lado, no sono, desperta o suficiente para ouvir os passos dela no corredor, mas não o suficiente
para a ouvir calçar os sapatos ou esgueirar-se para a escuridão.
São quase duas da manhã — o momento que medeia entre o muito tarde e o muito cedo —, e
mesmo Brooklyn aquietou até se transformar num murmúrio enquanto ela percorre os dois
quarteirões até ao bar Merchant. Falta uma hora para fechar, a multidão reduzida a alguns
clientes persistentes.
Addie senta-se num banco, ao balcão, e pede um shot de tequila. Nunca foi grande fã de
bebidas fortes, mas engole o líquido de uma assentada, sente o calor instalar-se no peito
enquanto leva a mão ao bolso e encontra o anel.
Os dedos dobram-se sobre o aro de madeira.
Retira-o da algibeira, equilibra o anel bem direito, em cima do balcão.
Fá-lo rodar como uma moeda, mas não há cara ou coroa, não há sim ou não, não há opção
para lá daquela que já tomou. Decide quando o anel para: irá pô-lo no dedo. Quando cair..., mas
quando este começa a oscilar e a inclinar-se, uma mão pousa em cima dele, comprimindo-o
contra o balcão.
A mão é suave e forte, os dedos longos, os pormenores exatamente como os desenhou,
outrora.
— Não devias estar com o teu amado?
Não há humor nos olhos de Luc. Estão impassíveis e negros.
— Está a dormir — diz ela —, e eu não consigo.
Luc retirou a mão, e Addie olha para o círculo claro do anel ainda em cima do balcão.
— Adeline — diz ele, acariciando-lhe o cabelo. — Sofrerás. E depois irá passar. Como todas
as coisas.
— Menos nós — murmura ela. E depois acrescenta, como que para si mesma. — Fico
contente por ter sido apenas um ano.
Luc senta-se no banco ao seu lado.
— E como foi, o teu amor humano? Foi tudo aquilo com que sonhaste?
— Não — diz ela, e é verdade.
Foi complicado. Foi difícil. Foi maravilhoso e estranho e assustador e frágil, tão frágil que
magoava, e valeu cada instante. Não lhe diz nada disto. Ao invés, deixa o «não» pairar no ar
entre eles, pesado com o fardo da suposição de Luc. Os seus olhos num tom de verde
absolutamente enfatuado.
— Mas o Henry não merece morrer para provares que tinhas razão.
A arrogância lampeja, combinada com raiva.
— Um pacto é um pacto — diz. — Não pode ser quebrado.
— E, no entanto, uma vez disseste-me que se podia contornar um pacto, que as condições
podiam ser reescritas. Estavas a falar a sério? Ou era apenas parte de um estratagema para me
fazeres render?
A expressão de Luc ensombrece.
— Não havia estratagema, Adeline. Mas, se pensas que vou mudar as condições do...
Addie abana a cabeça.
— Não estou a falar do pacto do Henry — diz ela. — Estou a falar do meu. — Treinou as
palavras, mas, ainda assim, tropeçam-lhe desajeitadamente da língua. — Não vou pedir a tua
compaixão, e sei que não tens caridade. Por isso proponho-te uma troca. Liberta o Henry. Deixa-
o viver. Deixa-o lembrar-se de mim, e...
— Entregas a tua alma? — Há uma sombra no seu olhar quando o diz, uma hesitação nas
palavras, mais preocupação do que ânsia, e ela sabe então que o apanhou.
— Não — diz ela. — Mas só porque não a queres. — E, antes que ele possa protestar,
continua. — Tu queres-me a mim.
Luc não diz nada, mas os seus olhos iluminam-se, com o interesse espicaçado.
— Tens razão — diz ela. — Não sou como eles. Já não sou. E estou cansada de perder.
Cansada de lamentar a perda de tudo o que tentei amar. — Estende a mão para tocar no rosto de
Luc. — Mas não te vou perder a ti. E tu não me vais perder. Por isso, sim. — Addie olha-o
fixamente. — Faz isto, e serei tua, enquanto me quiseres ao teu lado.
Ele parece suster a respiração, mas é ela que não consegue respirar. O mundo balança, oscila,
ameaçando cair.
E então, finalmente, Luc sorri, com os olhos verde-esmeralda de vitória.
— Aceito.
Ela deixa-se cair, inclinando-se sobre o corpo, com a cabeça contra o peito, de alívio. E então
os dedos de Luc pousam sob o queixo de Addie, inclinando-lhe o rosto para o seu, e beija-a
como na noite em que se conheceram, de forma rápida e profunda e esfaimada, e Addie sente os
dentes deslizarem pelo lábio inferior, o sabor a cobre florescer-lhe na língua.
E sabe que está feito.
Nova Iorque
4 de setembro de 2014

— Não — diz Henry, a palavra quase engolida pela tempestade.


A chuva cai torrencialmente sobre o terraço. Sobre eles.
O relógio parou, com o ponteiro virado para cima, em desistência, em rendição. Mas Henry
continua ali.
— Não podes fazer isto — diz ele, com a cabeça a andar às voltas. — Não te vou deixar.
Addie lança-lhe um olhar compadecido, porque, como é evidente, não a pode impedir.
Nunca ninguém o conseguiu.
Estele costumava dizer que ela era teimosa como uma rocha. Mas mesmo as rochas se
desgastam até se transformarem em nada. E ela não.
— Não podes fazer isto — diz ele de novo, e ela responde:
— Já está feito — e Henry sente-se tonto, sente-se indisposto, sente o chão balançar sob os
pés.
— Porquê? — pergunta. — Porque o haverias de fazer?
— Pensa nisto como um agradecimento — diz ela —, por me veres. Por me mostrares o que é
ser visto. Ser amado. Agora vais ter uma segunda oportunidade. Mas tens de os deixar verem-te
como és. Tens de encontrar pessoas que te vejam realmente.
Está mal.
Está tudo mal.
— Não o amas.
Um sorriso triste atravessa o rosto de Addie.
— Já tive o meu quinhão de amor — diz ela, e está na hora, deve estar na hora, porque a visão
dele começa a turvar, os contornos estão a ficar negros.
— Ouve-me. — A voz dela agora é urgente. — A vida às vezes pode parecer muito longa,
mas, no fim, passa muito depressa. — Tem os olhos brilhantes das lágrimas, mas está a sorrir. —
Por isso, é bom que vivas uma boa vida, Henry Strauss.
Começa a afastar-se, mas a mão dele aperta-se.
— Não.
Ela suspira, com os dedos a passarem-lhe pelo cabelo.
— Deste-me imenso, Henry. Mas preciso que faças mais uma coisa. — Encosta a testa à dele.
— Preciso que te lembres.
E Henry sente a mão soltar-se quando a escuridão lhe varre a visão, toldando o horizonte e o
terraço e a rapariga inclinada sobre ele.
— Promete-me — diz ela, e o rosto de Addie começa a esbater-se, o movimento dos seus
lábios, os caracóis castanhos num rosto em forma de coração, dois olhos muito grandes, sete
sardas como estrelas.
— Promete — sussurra, e ele ainda está a levantar as mãos, a apertá-la contra si, a prometer,
mas, no momento em que os seus braços se fecham sobre ela, Addie desapareceu.
E ele está a cair.
LEMBRO-ME DE TI
Título: A Rapariga que Desapareceu
Artista: Desconhecido
Data: 2014
Suporte: Polaroid
Origem: Cedido dos arquivos pessoais de Henry Strauss
Descrição: Coleção de seis (6) fotografias que representam uma rapariga em movimento, com os traços apagados,
escurecidos ou irreconhecíveis. A fotografia final é diferente. Representa o pavimento de uma sala de estar, a extremidade
de uma mesa, uma pilha de livros, vendo-se apenas dois pés em baixo.
Contexto: O tema das fotografias permanece como alvo de intensa especulação, dada a relação do autor com o material que
serviu de fonte. O flash eliminou todos os pormenores significativos, mas é o suporte que torna as peças notáveis. Na
fotografia comum, uma longa exposição permitiria alcançar o efeito de movimento desejado, mas a velocidade da objetiva
fixa da Polaroid cria uma ilusão de movimento ainda mais impressionante.
Valor estimado: Não se encontra à venda
Todas as obras se encontram atualmente em exibição na exposição do Modern Museum of Art intitulada À Procura da
Verdadeira Addie LaRue, organizada por Beatrice Caldwell, doutorada pela Universidade de Columbia.
Nova Iorque
5 de setembro de 2014

É assim que acaba.


Um rapaz acorda sozinho na cama.
A luz do sol derrama-se pelo espaço entre as cortinas, os edifícios lá fora molhados, no
rescaldo da chuva.
Sente-se sem energia, ressacado, ainda preso nos sedimentos do sono. Sabe que esteve a
sonhar, mas não consegue de maneira nenhuma lembrar-se dos pormenores do sonho, e não deve
ter sido muito agradável, porque sente apenas um alívio profundo por acordar.
Book olha por cima do monte formado pelo edredão, os olhos laranja bem abertos,
expectantes.
É tarde, percebe o rapaz pelo ângulo da luz, pelos sons de trânsito na rua.
Não queria dormir até tão tarde.
A rapariga que ama é sempre a primeira a acordar. Remexe-se por baixo dos lençóis, com o
peso da sua atenção, o toque suave dos seus dedos na pele dele — são sempre suficientes para o
despertar do sono. Só uma vez foi ele a acordar primeiro, e então teve o estranho prazer de a ver,
de joelhos dobrados em direção ao peito e com o rosto enfiado nas almofadas, ainda sob a
superfície do sono.
Mas isso foi numa manhã chuvosa, mesmo antes da madrugada, quando o mundo estava
cinzento, e hoje o sol está tão brilhante que não sabe como conseguiram dormir com toda a
luminosidade.
Vira-se para a acordar.
Mas o outro lado da cama está vazio.
Pousa a mão no sítio onde ela deveria estar, mas os lençóis estão frios e suaves.
— Addie? — chama, levantando-se.
Caminha pelo apartamento, procura na cozinha, na casa de banho, nas escadas de incêndio,
embora saiba, saiba, saiba que ela não está ali.
— Addie?
E, depois, claro que se lembra.
Não do sonho, não houve sonho, apenas da noite anterior.
Da última noite da sua vida.
O cheiro a betão húmido do terraço, o último movimento do relógio quando o ponteiro
chegou ao doze, o sorriso dela quando olhou para o seu rosto e o obrigou a prometer que se
lembraria.
E agora ele está ali, e ela desapareceu, e não deixou qualquer vestígio para trás, exceto as
coisas que guarda na cabeça e...
Os cadernos.
Está de pé, a atravessar o quarto em direção ao conjunto estreito de prateleiras onde os
guardou: vermelho, azul, prateado, preto, branco, verde; seis cadernos, todos ainda ali. Tira-os da
prateleira, espalha-os em cima da cama, e, quando o faz, as fotografias instantâneas caem para
fora.
A que tirou naquele dia a Addie, o rosto desfocado, de costas para a máquina, um fantasma na
moldura da imagem, e fica a olhar para ela por muito tempo, convencido de que, se semicerrar os
olhos, acabará por focar. Mas, por muito que olhe, só consegue discernir as formas, as sombras.
A única coisa que divisa são as sete sardas, e estas estão tão esbatidas que não consegue perceber
se são realmente visíveis ou se a sua memória está simplesmente a colocá-las no sítio onde
deveriam estar.
Põe a fotografia de lado, pega no primeiro caderno e depois para, absolutamente convencido
de que, se e quando o abrir, descobrirá as páginas em branco, a tinta apagada, como qualquer
outra marca que ela tentou deixar.
Mas precisa de espreitar, é o que faz, e ali estão, página após página, escritas na sua caligrafia
inclinada, protegidas da maldição pelo facto de as palavras em si serem dele, embora a história
seja dela.
Ela quer ser uma árvore.
Não há nada de errado com Roger.
Quer simplesmente viver antes de morrer.
Demorará anos a aprender a linguagem daqueles olhos.
Sobe usando as unhas como garras, para fora, com as mãos espalhadas pelo monte de ossos
das costas de um homem morto.
É a sua estreia. É assim que deveria ter sido.
Sente-o colocar-lhe três moedas na mão.
Alma é uma palavra tão grandiosa. A verdade é muito mais pequena.
Não demora muito a encontrar o túmulo do pai.
Pega no próximo caderno.
Paris está em chamas.
A escuridão revela-se.
E no próximo.
Há um anjo por cima do bar.
Henry fica ali sentado durante horas, do seu lado da cama, a folhear cada página de cada
caderno de cada história que ela contou, e, quando chega ao fim, fecha os olhos e põe a cabeça
entre as mãos no meio dos livros abertos.
Porque a rapariga que amou desapareceu.
E ele continua ali.
Lembra-se de tudo.
Brooklyn, Nova Iorque
13 de março de 2015

— Henry Samuel Strauss, isto é uma treta.


Bea passa a última página com violência, sobre o balcão da máquina de café, assustando o
gato, que foge para uma torre de livros próxima.
— Não podes acabar assim. — Agarra o resto do manuscrito com força, contra o peito, como
se tentasse protegê-lo dele. A página de rosto devolve o olhar a Henry.
A Vida Invisível de Addie LaRue .
— O que lhe aconteceu? Foi mesmo com o Luc? Depois de tudo?
Henry encolhe os ombros.
— Presumo que sim.
— Presumes que sim?
A verdade é que não sabe.
Passou os últimos seis meses a tentar transcrever as histórias dos cadernos, a compilá-las
naquele rascunho. E todas as noites, depois de ficar com cãibras nas mãos e de a cabeça lhe
começar a doer de tanto olhar para o ecrã de computador, atirava-se para a cama — já não tem o
cheiro dela — e perguntava-se como terminaria.
Se terminaria.
Escreveu dezenas de desfechos diferentes para o livro, uns em que ela era feliz e outros em
que não era, uns em que ela e Luc estavam loucamente apaixonadas e outros em que ele se
agarrava a ela como um dragão ao seu tesouro, mas todos esses desfechos lhe pertenciam a ele,
não a ela. Eram a história dele, e esta é dela. E tudo o que escrevesse para lá desses últimos
segundos partilhados, desse beijo final, seria ficção.
Tentou.
Mas isto é real — apesar de mais ninguém saber.
Não sabe o que aconteceu a Addie, para onde foi, como está, mas pode esperar. Espera que
ela esteja feliz. Espera que ainda irradie alegria desafiante e esperança obstinada. Espera que não
o tenha feito ape- nas por ele. Espera, de alguma forma, que, um dia, a possa ver de novo.
— Vais mesmo fingir que esta porcaria aconteceu, não vais? — diz Bea.
Henry olha para ela.
Quer dizer-lhe que é tudo verdade.
Que Bea conheceu Addie, tal como escreveu, que repetiu a mesma coisa de cada uma das
vezes. Quer dizer-lhe que teriam sido amigas. Que foram amigas, num estilo de a-primeira-noite-
do-resto-das-nossas-vidas. Que foi, afinal, o máximo que Addie conseguiu ter.
Mas ela não iria acreditar nele, por isso deixa que o sinta como se fosse ficção.
— Gostaste? — pergunta.
E Bea desfaz-se num sorriso rasgado. Já não há névoa nos seus olhos, não há brilho, e ele
nunca se sentiu mais grato por ouvir a verdade.
— Está bom, Henry — diz ela. — Está mesmo, mesmo bom. — Bate com a mão na página de
rosto. — Não te esqueças só de me incluíres nos agradecimentos.
— O quê?
— A minha tese. Lembras-te? Queria fazê-la sobre a rapariga daquelas peças. O fantasma na
moldura. É ela, não é?
E é claro que é.
Henry passa a mão pelo manuscrito, aliviado e triste por estar terminado. Desejava ter podido
viver um pouco mais com ele, desejava ter podido viver com ela.
Mas agora está contente por o ter.
Porque a verdade é que já se começa a esquecer.
Não que tenha sido alvo da maldição dela. Ela não foi apagada, de todo. Os pormenores estão
simplesmente a esbater-se, como acontece com todas as coisas, a atenuar-se aos poucos, com a
mente a perder o domínio sobre o passado de modo a abrir caminho para o futuro.
Mas ele não quer deixá-lo ir.
Está a tentar não o deixar ir.
Fica deitado na cama, à noite, fecha os olhos e tenta invocar o seu rosto. A curva exata da sua
boca, o tom particular do seu cabelo, a forma como o candeeiro da mesinha de cabeceira lhe
iluminava a face esquerda, a têmpora, o queixo. O som do seu riso, noite dentro, a sua voz
quando estava prestes a adormecer.
Sabe que estes pormenores não são tão importantes como os do livro, mas não consegue
suportar perdê-los.
Acreditar é um pouco como a gravidade. Se houver pessoas sufi- cientes a acreditarem numa
coisa, esta torna-se sólida e real como o chão debaixo dos pés. Mas, quando se é o único a
agarrar-se a uma ideia, a uma memória, a uma rapariga, é difícil evitar que esta escape.
— Sabia que ias ser escritor — diz Bea. — Todas as armadilhas... tens estado apenas em
negação.
— Não sou escritor — diz, de forma ausente.
— Diz isso ao livro. Vais vender os direitos, certo? Tens de o fazer... é demasiado bom.
— Oh. Sim — diz ele, pensativo. — Acho que gostava de tentar.
E fá-lo-á.
Arranjará um agente, e os direitos serão negociados, e acabará por vender a obra com uma
condição — haver apenas um nome na capa, não o dele —, e, por fim, irão concordar. Pensarão
que é um truque de marketing inteligente, sem dúvida, mas o coração de Henry exultará ao
pensar noutras pessoas a lerem aquelas palavras — não as dele, mas as dela, no nome dela
passado de lábios em lábios, da mente para a memória.
Addie, Addie, Addie.
O adiantamento chegará para pagar os empréstimos universitários, será suficiente para
respirar um pouco enquanto pensa no que irá fazer depois. Ainda não sabe o que será, mas, pela
primeira vez na vida, isso não o assusta.
O mundo é grande, e viu tão pouco dele com os seus próprios olhos. Quer viajar, tirar
fotografias, ouvir as histórias de outras pessoas, talvez fazer um pouco da sua. Afinal, a vida às
vezes parece tão longa, mas sabe que avançará muito depressa e por isso não quer perder nem
um instante.
Londres, Inglaterra
3 de fevereiro de 2016

A livraria está prestes a fechar.


Nesta altura do ano, fica escuro muito cedo, e previram queda de neve, no boletim
meteorológico, o que é raro em Londres. Os vários funcionários afadigam-se de um lado para o
outro, a desfazer velhos expositores e a montar outros novos, tentando terminar o trabalho antes
que o nevoeiro, lá fora, se transforme em gelo.
Demora-se por ali, com o polegar a percorrer o anel pendurado ao pescoço, enquanto duas
adolescentes reabastecem uma estante de ficção recente.
— Já leste? — pergunta uma.
— Sim, este fim de semana — diz a outra.
— Nem acredito que o autor não pôs o nome no livro — diz a primeira. — Deve ser uma
manobra publicitária.
— Não sei — diz a segunda. — Acho adorável. Faz com que tudo pareça real. Como se fosse
realmente o Henry a contar a história dela. A primeira rapariga ri-se.
— És uma romântica incurável.
— Por favor — interrompe um homem mais velho. — Pode arranjar-me um exemplar do
Addie LaRue?
Tem uma sensação de formigueiro na pele. O senhor diz o seu nome com tanta facilidade.
Parece tropeçar numa língua estrangeira.
Espera que os três tenham avançado até à caixa registadora e então, finalmente, aproxima-se
do expositor. Não é apenas uma mesa, mas uma prateleira inteira, trinta cópias do livro, com a
capa voltada para cima, o padrão a repetir-se pela parede. A capa é simples, com a maior parte do
espaço cedido ao título, que é comprido e suficiente- mente amplo para preencher a sobrecapa.
Está escrito numa letra inclinada, exatamente como os apontamentos nos cadernos junto à cama,
uma versão mais legível das suas palavras, pela mão de Henry.
A Vida Invisível de Addie LaRue.
Passa os dedos pelo nome, sente o arco em relevo das letras sob o seu toque, como se ela
própria as tivesse escrito.
As raparigas da loja têm razão. O nome do autor não aparece. Nem fotografia na contracapa.
Não há sinal de Henry Strauss, para lá do facto simples e belo de ter o livro nas mãos, de a
história ser real.
Abre a capa, folheia as páginas de rosto até à dedicatória.
Três palavrinhas encontram-se no centro da página.
Lembro-me de ti.
Fecha os olhos e vê-o como era naquele primeiro dia na livraria, com os cotovelos apoiados
no balcão, quando olhou para cima e franziu o sobrolho para ela, por trás dos óculos.
Lembro-me de ti.
Vê-o na Artifact, nos espelhos e depois nos campos de estrelas, vê os dedos a desenharem o
seu nome na parede de vidro e a espreitar por cima de uma máquina Polaroid, a sussurrar pela
Grand Central e de cabeça inclinada sobre o caderno, com os caracóis negros a caírem-lhe para o
rosto. Vê-o deitado ao seu lado, na cama, na relva, quando saíram da cidade, na praia, os dedos
enganchados como elos numa corrente.
Sente o círculo quente dos seus braços quando a puxava de volta para debaixo dos cobertores,
o seu aroma limpo, a ligeireza na sua voz quando Addie disse Não te esqueças e ele respondeu
Nunca.
Sorri, limpando as lágrimas, ao vê-lo no terraço, na última noite.
Addie disse muitos olás, mas essa foi a primeira e a única vez que pôde dizer adeus. Aquele
beijo, como um sinal de pontuação há muito esperado. Não as reticências de uma linha
interrompida ou a elipse de uma fuga silenciosa, um parêntese fechado, um final.
Um final.
É isso que acontece quando se vive no presente, e apenas no presente, uma frase que
continua. E Henry foi uma pausa perfeita na história. Uma oportunidade de recuperar o fôlego.
Não sabe se foi amor ou apenas uma suspensão. Se a satisfação pode competir com a paixão, se o
afeto poderá ser tão forte como o ardor.
Mas foi uma bênção.
Não um jogo ou uma guerra, não um confronto de vontades. Apenas uma bênção.
O tempo e a memória, como amantes numa fábula.
Passa os capítulos do livro, do seu livro, e maravilha-se ao ver o seu nome em cada página. A
sua vida, à espera de ser lida. Agora, é maior do que ela. Maior do que qualquer um deles,
humanos ou deuses ou coisas sem nome. A história é uma ideia, bravia como uma erva daninha,
a florescer onde quer que seja plantada.
Começa a ler, vai até ao seu primeiro inverno em Paris, quando sente o ar mudar atrás de si.
Ouve o nome, como um beijo, na nuca.
— Adeline.
E depois Luc está ali. O braço a envolver-lhe os ombros, e ela encosta-se ao seu peito.
Encaixam de facto na perfeição. Sempre encaixaram, embora ela se pergunte, mesmo nesse
momento, se é simplesmente por causa da natureza dele, fumo a espalhar-se, preenchendo
qualquer espaço.
Os olhos dele descem para o livro que Addie tem nas mãos. O seu nome esparramado pela
capa.
— És muito esperta — diz ele, murmurando as palavras para a sua pele. Mas não parece
zangado.
— Eles que fiquem com a história... — diz. — Desde que eu fique contigo.
Roda nos braços de Luc para olhar para ele.
Luc é belo quando regozija.
Claro que não deveria ser. A arrogância é um traço repulsivo, mas
Luc usa-o com todo o conforto de um fato feito por medida. Cintila com a luz do seu próprio
trabalho. Está muito habituado a ter razão.
A controlar.
Os seus olhos estão brilhantes, de um verde triunfante.
Trezentos anos, e Addie teve de aprender a cor dos seus estados de espírito. Agora já os
conhece de cor, o significado de cada tom, conhece o seu mau génio, os seus desejos e
pensamentos, apenas de observar aqueles olhos.
Espanta-se pelo facto de, no mesmo período de tempo, ele não ter aprendido a interpretar os
seus.
Ou talvez veja apenas aquilo que esperava: a raiva de uma mulher e a sua necessidade, o seu
medo e esperança e luxúria, todos estes sentimentos as coisas mais simples, mais transparentes.
Mas nunca aprendeu a ler a sua astúcia ou a sua inteligência, nunca aprendeu a ler os matizes
das suas ações, os ritmos subtis do seu discurso.
E, ao olhar para ele, pensa em todas as coisas que os seus próprios olhos poderiam dizer.
Que ele cometeu um grande erro.
Que o mais importante reside nos pormenores, e que ele não reparou num que é essencial.
Que a semântica pode não parecer importante, mas uma vez ensinou-lhe que as palavras são
tudo. E que, quando ela definiu as condições do seu novo pacto, quando trocou a sua alma por si
própria, não disse sempre, mas enquanto me quiseres ao teu lado.
E não é de todo a mesma coisa.
Se os seus olhos pudessem falar, rir-se-iam.
Diriam que ele é um deus volúvel e que, muito antes de a amar, a odiou, a levou à loucura, e
que, com a sua memória infalível, Addie se tornou uma estudiosa das suas maquinações, uma
discípula da sua crueldade. Teve trezentos anos para estudar e transformará o arrependimento de
Luc numa obra-prima.
Talvez demore vinte anos.
Talvez demore cem.
Mas ele é incapaz de amar, e Addie irá prová-lo.
Irá destruí-lo. Destruir a ideia que Luc tem deles.
Irá despedaçar-lhe o coração, e ele acabará por a odiar de novo.
Irá levá-lo à loucura, afastá-lo.
E, depois, ele rechaçá-la-á.
E, finalmente, será livre.
Addie sonha dizer estas coisas a Luc, só para ver de que tom ficam os seus olhos, o verde de
ser vencido. O verde da derrota e da perda.
Mas, se Luc lhe ensinou alguma coisa, foi a paciência.
Por isso Addie não diz nada sobre o jogo novo, sobre as regras novas, sobre a batalha nova
que agora principia.
Limita-se a sorrir e devolve o livro à prateleira.
E segue-o até à rua, à escuridão.
AGRADECIMENTOS

Quem quer que me siga online sabe que tenho uma relação bastante problemática com histórias.
Ou melhor, com o ato de lhes dar vida. Com o domínio dessa besta desgovernada, até os
braços tremerem e a cabeça doer, e sei que, se a largar então, antes de estar pronta, ela se desfará,
e terei de a eliminar e perderei pelo menos algumas partes pelo caminho.
E por isso, enquanto sustive a história de Addie, muitas pessoas sustiveram-me a mim.
Sem elas, não haveria livro.
E é neste momento que se espera que agradeça a todas elas.
(Odeio agradecimentos.)
(Ou melhor, odeio os «Agradecimentos». Tenho uma memória terrível. Acho que a minha
cabeça ficou cheia de buracos por causa de todos estes livros, por isso, quando se trata de
agradecer às pessoas que ajudaram este livro a ganhar vida, paraliso, com a certeza de que irei
esquecer.)
(Sei que irei esquecer.)
(Estou sempre a esquecer.)
(Acho que é por isso que escrevo, para tentar captar as ideias antes de me escaparem e de me
deixarem a olhar para o vazio, a pensar porque entrei naquela divisão ou porque abri aquele
tabulador do browser ou do que andava à procura no frigorífico.)
(Claro que é irónico, tendo em conta o tema deste livro.)
(Este livro, que viveu durante tanto tempo na minha cabeça e que ocupou tanto espaço, é
responsável por pelo menos parte do esquecimento.)
Assim sendo, será uma lista incompleta.
Este livro é para o meu pai, que caminhou pelas ruas do nosso bairro, em East Nashville, e me
ouviu enquanto verbalizei pela primeira vez a ideia que me crescia na cabeça.
Para a minha mãe, que me acompanhou em todos os caminhos tortuosos e nunca permitiu que
me perdesse.
Para a minha irmã, Jenna, que sabia exatamente quando eu precisava de escrever e quando
precisava de parar de escrever e de, em vez disso, beber um cocktail requintado.
Para a minha agente, Holly, que me arrastou para fora de muitos pântanos de fogo e nunca
deixou que me chamuscasse ou afogasse ou fosse devorada por ratos gigantes.
Para a minha editora, Miriam, que esteve comigo a cada passo deste longo e tortuoso
caminho.
Para a minha agente publicitária, Kirstin, que se tornou a minha cavaleira, a minha defensora
e minha amiga.
Para Lucille, Sarah, Eileen e o resto da incrível equipa da Tor, que acreditaram nesta história
quando não passava de uma ideia, que me aplaudiram quando era apenas um esboço, que me
defenderam quando se tornou um livro acabado e me fizeram sentir, a cada passo, que me
poderia soltar, que eles me iriam agarrar.
Para os meus amigos — que sabem quem são —, que me arrastaram pela escuridão e fugiram
comigo à procura de palavras (e de frango assado).
Para Al Mare e Red Kite, por me cederem um lugar para pensar e escrever e por me
fornecerem muitos bules de chá.
Para Danielle, Ilda, Britt e Dan, pela sua paixão e por me enfiarem piza por baixo da porta.
Para todos os livreiros que me deixaram ficar até hoje nas prateleiras.
Para todos os leitores que me disseram que estavam ansiosos por o ler, apesar de terem
prometido esperar.

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