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Cleo e Clea-1
Cleo e Clea-1
Peça em um ato
(Estão sentados em torno de uma mesa. Ele com um jornal, ela tricota).
Cleo: Com o José. Faz um tempão que ele não escreve. Sua última carta, acho que...
Quando veio sua última carta?
Clea: Talvez esteja muito ocupado. A vida é dura, principalmente para quem começa.
Cleo: Mas sempre se arranja um tempinho... Afinal uma carta não custa nada.
Clea: (Meio sorrindo) Puxou por você. Quando éramos noivos você também não
gostava de escrever. Até chegamos a brigar por causa disso quando você esteve no
norte. Esperei um mês inteiro notícias suas. Cheguei a pensar que você tivesse se
apaixonado por lá.
Cleo: Foi uma infecção dos diabos, se não fosse o helicóptero da Tecelagem Paraense,
acho que não teria escapado.
Cleo: Você acha que aconteceu alguma coisa com o José? Diga, Clea!
Clea: Não, Cleo. Não penso isto. Penso que os homens se enchem de tantas ocupações
que às vezes se descuidam do coração.
Cleo: Seja como for deveria escrever. Um filho deve ter alguma consideração pelos
pais.
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Clea: E se nós escrevêssemos?
Cleo: Não. Preferia que ele tomasse a iniciativa e depois essas malditas perfurações de
petróleo sempre o arrastam de um lugar para outro!
Cleo: Será que ele tem algum motivo para não escrever? Cléa, será que ele está
magoado conosco?
Clea: Na última carta ele não se queixou de nada. Você se preocupa à toa, Cleo!
Cleo: Ele era tão sensível... Talvez tenha ficado alguma mágoa. Tenho pensado muito
nisso ultimamente.
Clea: Nem tão sensível ele era. E se o corrigimos alguma vez foi por que mereceu.
Cleo: Eu nunca o repreendi. Sempre deixei que ele fizesse o que queria.
Clea: Você se omitia. Deixava tudo nas minhas costas com a desculpa do trabalho.
Essa é a verdade!
Clea: Você assistiu a tudo e nada disse. Creio mesmo que estava de acordo.
Cleo: Naquela época eu tinha minhas dúvidas acerca da educação dos filhos. Se fosse
hoje teria agido de outra maneira.
Clea: Quer dizer que sou culpada? Que fiz algo errado?
Cleo: Quero dizer que não precisava cortar as duas mão do menino. Bastava uma.
Talvez nem isso.
2
Clea: (Com profundo desprezo) Roubar patins de uma loja. Que coisa horrível!
Clea: Certas coisas me deixam possessa e creio que não vou mudar nunca, ouviu?
Cleo: (Acusando) Talvez seja por isso que ele não escreve.
Cleo: Pode ser que ele fique acanhado. Você sabe o trauma que ele teve depois que
perdeu as mãos. Vivia escondendo-as.
Clea: (Rindo) Não me faça rir! Ninguém pode esconder o que não tem.
Cleo: Quero dizer que ele vivia escondendo os braços nos bolsos.
Clea: O que José procurava era despertar piedade. Conheço pessoas sem pernas que
fazem maravilhas.
Clea: Você quer me perturbar, encher-me de dúvidas... Mas saiba que é inútil. O que
fiz, faria de novo sem titubear. Se não tivesse agido com severidade quem sabe o que
teria sido dele?... Um marginal, um vigarista... Até mesmo um ladrão!
Cleo: Mas também poderia ter sido um pianista. José tinha ouvidos afinados.
Clea: É tarde para recriminações. De resto um verdadeiro pianista é raro. Ele era
inconstante de mais.
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Clea: Nunca ficaria nove horas por dia debruçado sobre um piano. Vivia correndo.
Sempre mudando de companheiro e de jogos. Não era essa sua vocação.
Cleo: Sempre decidindo tudo. Sempre decidindo pelos outros. Você não é a
providência, Clea! Você ainda não é deus!
Clea: Depois que se aposentou, você ficou um velho ranzinza e aborrecido, sempre
remoendo essas histórias antigas. Pobre das mulheres!... São obrigadas a suportar as
loucuras dos filhos e a estupidez dos maridos!
Cleo: Tenho piedade mesmo. Na sua idade a gente deve ser doce. Doce e tranqüilo... É
isso, Cléa!
Clea: (Levantando-se) Acho bom você não me aborrecer! Como posso ser doce,
tranqüila... Como posso?... Se tenho um fardo nas minhas costas. Você pensa que é
fácil trazer comida o dia inteiro para você. Porque você come, come sem parar! E as
vezes que tenho que leva-lo à privada porque de uns tempos pra cá, você não sai da
privada! Não acha tudo isso um sacrifício? Vamos, diga?
Cleo: Acho, Cléa. Mas por que então, você cortou minhas pernas? Por que? Por que,
Cléa?
FIM