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“CLEO E CLEA”

Autor: Celso Luiz Paulini

Peça em um ato

(Estão sentados em torno de uma mesa. Ele com um jornal, ela tricota).

Cleo: Sabe, Clea, estou muito preocupado!

Clea: Com o que?

Cleo: Com o José. Faz um tempão que ele não escreve. Sua última carta, acho que...
Quando veio sua última carta?

Clea: Em julho. Vai fazer seis meses.

Cleo: É muito tempo. Ele devia ser mais atencioso.

Clea: Talvez esteja muito ocupado. A vida é dura, principalmente para quem começa.

Cleo: Mas sempre se arranja um tempinho... Afinal uma carta não custa nada.

Clea: (Meio sorrindo) Puxou por você. Quando éramos noivos você também não
gostava de escrever. Até chegamos a brigar por causa disso quando você esteve no
norte. Esperei um mês inteiro notícias suas. Cheguei a pensar que você tivesse se
apaixonado por lá.

Cleo: Foi uma infecção dos diabos, se não fosse o helicóptero da Tecelagem Paraense,
acho que não teria escapado.

Clea: Então, às vezes a falta de notícias não significa desinteresse!

Cleo: Você acha que aconteceu alguma coisa com o José? Diga, Clea!

Clea: Não, Cleo. Não penso isto. Penso que os homens se enchem de tantas ocupações
que às vezes se descuidam do coração.

Cleo: Seja como for deveria escrever. Um filho deve ter alguma consideração pelos
pais.

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Clea: E se nós escrevêssemos?

Cleo: Não. Preferia que ele tomasse a iniciativa e depois essas malditas perfurações de
petróleo sempre o arrastam de um lugar para outro!

Clea: É... Seria difícil localiza-lo.

Cleo: Será que ele tem algum motivo para não escrever? Cléa, será que ele está
magoado conosco?

Clea: Na última carta ele não se queixou de nada. Você se preocupa à toa, Cleo!

Cleo: Ele era tão sensível... Talvez tenha ficado alguma mágoa. Tenho pensado muito
nisso ultimamente.

Clea: Nem tão sensível ele era. E se o corrigimos alguma vez foi por que mereceu.

Cleo: Eu nunca o repreendi. Sempre deixei que ele fizesse o que queria.

Clea: Você se omitia. Deixava tudo nas minhas costas com a desculpa do trabalho.
Essa é a verdade!

Cleo: Você às vezes exagerava. Punha empenho demais na educação do menino.

Clea: Não me venha de novo com aquela história dos patins.

Cleo: E não acha que foi de mais?

Clea: Tenho a consciência tranqüila. Era meu dever educar o José.

Cleo: Mas não precisava de tanta violência!

Clea: Você assistiu a tudo e nada disse. Creio mesmo que estava de acordo.

Cleo: Naquela época eu tinha minhas dúvidas acerca da educação dos filhos. Se fosse
hoje teria agido de outra maneira.

Clea: Quer dizer que sou culpada? Que fiz algo errado?

Cleo: Quero dizer que não precisava cortar as duas mão do menino. Bastava uma.
Talvez nem isso.

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Clea: (Com profundo desprezo) Roubar patins de uma loja. Que coisa horrível!

Cleo: Afinal era uma criança.

Clea: (Com repugnância) Uma criança perversa.

Cleo: Você continua intransigente, Cléa. A idade não te abrandou.

Clea: Certas coisas me deixam possessa e creio que não vou mudar nunca, ouviu?

Cleo: (Acusando) Talvez seja por isso que ele não escreve.

Clea: Não exagere!

Cleo: Como escrever sem as mãos?

Clea: Poderia ditar para alguém, como faz muita gente.

Cleo: Pode ser que ele fique acanhado. Você sabe o trauma que ele teve depois que
perdeu as mãos. Vivia escondendo-as.

Clea: (Rindo) Não me faça rir! Ninguém pode esconder o que não tem.

Cleo: Quero dizer que ele vivia escondendo os braços nos bolsos.

Clea: O que José procurava era despertar piedade. Conheço pessoas sem pernas que
fazem maravilhas.

Cleo: Não um tipo sensível e delicado como ele.

Clea: Você quer me perturbar, encher-me de dúvidas... Mas saiba que é inútil. O que
fiz, faria de novo sem titubear. Se não tivesse agido com severidade quem sabe o que
teria sido dele?... Um marginal, um vigarista... Até mesmo um ladrão!

Cleo: Mas também poderia ter sido um pianista. José tinha ouvidos afinados.

Clea: É tarde para recriminações. De resto um verdadeiro pianista é raro. Ele era
inconstante de mais.

Cleo: Mas amava apaixonadamente a música.

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Clea: Nunca ficaria nove horas por dia debruçado sobre um piano. Vivia correndo.
Sempre mudando de companheiro e de jogos. Não era essa sua vocação.

Cleo: Sempre decidindo tudo. Sempre decidindo pelos outros. Você não é a
providência, Clea! Você ainda não é deus!

Clea: Depois que se aposentou, você ficou um velho ranzinza e aborrecido, sempre
remoendo essas histórias antigas. Pobre das mulheres!... São obrigadas a suportar as
loucuras dos filhos e a estupidez dos maridos!

Cleo: Não é preciso ficar furiosa.

Clea: Não estou furiosa.

Cleo: Tenho piedade de você.

Clea: Cão. Cão baboso... Não me provoque, hein!

Cleo: Tenho piedade mesmo. Na sua idade a gente deve ser doce. Doce e tranqüilo... É
isso, Cléa!

Clea: (Levantando-se) Acho bom você não me aborrecer! Como posso ser doce,
tranqüila... Como posso?... Se tenho um fardo nas minhas costas. Você pensa que é
fácil trazer comida o dia inteiro para você. Porque você come, come sem parar! E as
vezes que tenho que leva-lo à privada porque de uns tempos pra cá, você não sai da
privada! Não acha tudo isso um sacrifício? Vamos, diga?

Cleo: Acho, Cléa. Mas por que então, você cortou minhas pernas? Por que? Por que,
Cléa?

FIM

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