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A ILUSTRE CASA DE RAMIRES

EÇA DE QUEIRÓS

CAPÍTULO VII
A caça ao voto
Nessa noite, na Assembleia, o Fidalgo, encetando a «caça à popularidade», aceitou um
convite do Comendador Romão Barros (do maçador, do burlesco Barros) para o bródio faustoso
com que ele celebrava, na sua quinta da Roqueira, a festa de S. Romão. E essa semana inteira,
depois outra, as gastou assim por Vila-Clara, amimando eleitores — a ponto de comprar
5 horrendas camisas de chita na loja do Ramos, de encomendar um saco de café na mercearia do
Telo, de oferecer o braço no largo do Chafariz à nojenta mulher do bebedíssimo Marques
Rosendo, e de frequentar, de chapéu para a nuca, o bilhar da rua das Pretas. João Gouveia não
aprovava estes excessos — aconselhando antes «boas visitas, com todo o chic, aos influentes
sérios». Mas Gonçalo bocejava, adiava, na insuperável preguiça de afrontar a maledicência
10 rabugenta do velho Gramilde ou a solenidade forense do Dr. Alexandrino.
Agosto findava; e, por vezes, na Livraria, Gonçalo, coçando desconsoladamente a cabeça,
considerava as brancas tiras de almaço, o Capítulo III da Torre de D. Ramires encalhado... Mas
quê! não podia, com aquele calor, com o afã da Eleição, remergulhar nas eras Afonsinas!
Quando refrescavam as tardes lentas montava, alongava o passeio pelas freguesias, não se
15 descuidando das recomendações do Cavaleiro — enchendo sempre o bolso de rebuçados de
avenca para atirar às crianças. Mas, numa carta ao querido André, já confessara que «a sua
popularidade não crescia, não enfunava...».
— «Não! positivamente, velho amigo, não tenho o dom! Sei apenas palestrar familiarmente
com os homens, cumprimentar pelo seu nome as velhas às soleiras das portas, gracejar com a
20 pequenada, e se encontro uma boeirinha de saiazita rota dar cinco tostões à boeirinha para
uma saiazita nova... Ora todas estas coisas tão naturais sempre as fiz naturalmente, desde
rapaz, sem que me conquistassem influência sensível... Necessito portanto de que essa querida
Autoridade me empurre com o seu braço possante e destro...»
Todavia já uma tarde, encontrando junto da Torre o velho Cosme de Nacejas, e depois, num
25 domingo, cruzando às Ave-Marias na Bica-Santa o Adrião Pinto do lugar da Levada, ambos
lavradores considerados e remexedores de eleições — lhes pedira os votos, desprendidamente
e rindo. E quase se assombrara da prontidão, do fervor, com que ambos se ofereceram. —
«Para o Fidalgo? Pois isso está entendido! Ainda que se votasse contra o Governo, que é pai!»
— E em Vila-Clara, com o Gouveia, Gonçalo deduzia destas ofertas tão acaloradas «a
30 inteligência política da gente do campo»:
— Está claro que não é pelos meus lindos olhos! Mas sabem que eu sou homem para falar,
para lutar pelos interesses da terra... O Sanches Lucena não passava de um Conselheiro muito
rico e muito mudo! Esta gente quer Deputado que grite, que lide, que imponha... Votam por
mim porque sou uma inteligência.
35 E o Gouveia volvia, contemplando pensativamente o Fidalgo:
— Homem! quem sabe? Você nunca experimentou, Gonçalo Mendes Ramires. Talvez seja
realmente pelos seus lindos olhos!
EÇA DE QUEIRÓS, A ilustre casa de Ramires, ed. Elena Losada Soler, Lisboa, IN-CM, 1999 [1900].
Educação Literária 11: 14.1; 14.2; 14.3; 14.4; 14.5; 14.11; 15.1; 15.2; 16.1
Oralidade 11: 3.1; 3.2; 3.3; 5.1; 5.2; 5.3; 5.4; 6.1; 6.2; 6.3

Educação Literária

1. Caracterize o comportamento de Gonçalo Mendes Ramires no primeiro parágrafo.


1.1 Explique o objetivo de tal comportamento.

2. Interprete a crítica que João Gouveia faz a esse comportamento de Gonçalo.

3. Explicite o desânimo de Gonçalo nos parágrafos 3 e 4.

4. Identifique o recurso expressivo presente no excerto: «Necessito portanto de que essa querida
Autoridade me empurre com o seu braço possante e destro...» (ll. 22-23).
4.1 Comente a expressividade do uso deste recurso.

5. Releia o parágrafo 5 deste excerto.


5.1 Explique o que se altera no percurso político de Gonçalo.

Oralidade — Expressão oral

1. Apresente oralmente um texto de opinião em que exponha a sua posição sobre dois «males» da política
portuguesa dos nossos dias. Faça acompanhar a sua exposição oral de exemplos ilustrativos.
Planifique a apresentação e ensaie-a previamente.
RESPOSTAS
CAPÍTULO VII
Educação Literária
1.
Gonçalo Mendes Ramires procurou cativar os seus conterrâneos. Foi mais afável do que costumava ser
e quis adulá-los, comprando camisas a um vendedor, convivendo com os outros homens da terra, etc.
1.1 O objetivo de Gonçalo era cativar os seus eleitores e conseguir que estes votassem nele. O fidalgo
praticava a «caça ao voto» com o intuito de ser eleito deputado.
2.
João Gouveia achava a atitude de Gonçalo indigna. Isto porque não concordava com que o fidalgo, que
devia ser um homem de carácter e íntegro, se submetesse a comportamentos subservientes apenas
para ser eleito deputado.
3.
Nos parágrafos 3 e 4, Gonçalo reconhece, em carta a André Cavaleiro, que não tem «Autoridade» —
diríamos hoje, não tem carisma. No fundo, o fidalgo dá conta de que não consegue aumentar a sua
popularidade, apesar dos seus atos de demagogia e popularismo.
4.
O recurso expressivo aqui usado é a personificação.
4.1 Gonçalo atribuiu características humanas à «querida Autoridade» para mostrar que necessita de que
seja a própria «Autoridade» a ganhar vida e a cativar os seus eleitores. Isto porque a personagem não se
sente à vontade nestas incursões de «caça ao voto».
5.
No parágrafo 5, Gonçalo cativa dois influentes lavradores para a sua causa. Com a ajuda destes, o
protagonista crê que receberá uma maior simpatia dos seus conterrâneos e espera, assim, ser eleito
deputado.

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