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eBook

Educação e o empoderamento da mulher negra


Educação e o
empoderamento da

Mulher
Negra
Neide Cristina da Silva
Francisca Mônica Rodrigues de Lima
Maria Lucia da Silva
(org.)

F
Editora Casa Flutuante
L i v r o - r e p o r t ag e m & a c a d ê m i c o s

São Paulo, 2017


Copyright © 2017 Organizadoras - Todos os direitos reservados.

Organização
Neide Cristina da Silva
Francisca Mônica Rodrigues de Lima
Maria Lucia da Silva

Editor
Editora Casa Flutuante
Rua Manuel Ramos Paiva, 429
São Paulo - SP - Brasil
Fone: (11) 2936-1706 / 95497-4044
www.editoraflutuante.com.br

Conselho Editorial
Marcia Furtado Avanza, doutora em Ciências da Comunicação / USP
Márcia Neme Buzalaf, doutora em História / UNESP
Maurício Pedro da Silva, pós-doutorado em Literatura Brasileira / USP
Vinicius Guedes Pereira de Souza, doutor em Comunicação / UNIP

Capa | Diagramação
Israel Dias de Oliveira

Ilustrações
Carolina Cristina dos Santos Nobrega

Dados Internacionais da Catalogação na Publicação (CIP)


(Editora Casa Flutuante, SP, Brasil)

Educação e o empoderamento da mulher negra / Organização Neide Cristina da


Silva, Francisca Mônica Rodrigues de Lima e Maria Lucia da Silva. — São Paulo: Editora
Casa Flutuante, 2017.

ISBN 978-85-5869-038-6

1. Educação 2. Mulhere negra 3. Educação étnico-racial I. Título

CDU 37.06
CDD 342.087

Nota: dado o caráter interdisciplinar da coletânea, os textos publicados respeitam


normas, revisão e técnicas bibliográficas utilizadas por cada autor/autora.
“Toda identidade se define como algo que lhe é exterior; entretanto, a
identidade negra só é possível dentro da magnitude interna, aquilo que
se diferencia dos demais, ao mesmo tempo em que universaliza homens
e mulheres protagonistas de suas terra. A essência dessa identidade negra
possibilita que nós professoras negras alcançemos na escola integridade
negra, a força vital, o axé e a arkhé de nossas matriarcas”

Edileuza Penha de Souza


SUMÁRIO

PREFÁCIO.............................................................................................................. 9
Jason Ferreira Mafra

MULHER NEGRA E EDUCAÇÃO

Mulher, transexual e negra: Intersecções da exclusão escolar........................ 17


Anselmo Clemente e Antonio Germano

Nada de novo, tudo outra vez: reflexões sobre a solidão da mulher negra.... 35
Maria Aparecida Oliveira Lopes e Francisca Mônica Rodrigues de Lima

Mulheres negras e educação: (re) construção de uma


história de vitimização e a possibilidade de empoderamento........................ 53
Vanda Aparecida de Araújo, Thiago Batista Costa e Sara Santos Xavier

“Dossiê Mulheres Negras”: um olhar sobre as


desigualdades enfrentadas pelas mulheres na educação superior.................. 73
Cláudio Aparecido de Sousa e Gilca Ribeiro dos Santos

Virgínia Leone Bicudo e Neusa Santos Souza:


professoras negras e suas valiosas trajetórias na educação............................. 91
Maria Lucia da Silva e Carolina Cristina dos Santos Nobrega
MULHER NEGRA: ARTE, LITERATURA E CULTURAS

Carolina Maria de Jesus: memórias de um tempo de eugenia e loucura........ 111


Régia Vidal dos Santos e Neide Cristina da Silva

Identidade de meninas negras: a força da história e do discurso................... 131


Jason Ferreira Mafra, Régia Vidal dos Santos e Anne Caroline Nardi dos Santos

A imagem falseada e as ações afirmativas:


agilidade e força regeneradoras da mulher negra............................................ 153
Francisca Eleodora Santos Severino e Fernando Leonel Henrique Simões de Paula

Entre o gênero e a raça: uma leitura de


A cor da ternura, de Geni Guimarães.. ............................................................. 171
Maurício Silva

MULHERES NEGRAS E POLÍTICAS PÚBLICAS

A mulher negra em situação de rua e a saúde................................................. 185


Fernando Leonel Henrique Simões de Paula, Flávia Abud Luz e
Monica Abud Perez de Cerqueira Luz

YLÊ-EDUCARE

Ylê-Educare: caminhos e memórias................................................................. 199


Neide Cristina da Silva e Telma Cezar da Silva Martins
PREFÁCIO

Jason Ferreira Mafra 1

Sinto-me profundamente honrado em fazer o prefácio de mais um


livro do querido Ylê-Educare, nosso grupo de pesquisa que, constituído
por estudantes e docentes dos programas de pós-graduação profissional
e acadêmico em educação, da Uninove, há 3 anos, vem deixando uma
importante marca no âmbito da pesquisa e da militância dentro e fora
do mundo acadêmico. Ylê-Educare, de um lado, é um grupo de estudo
como outro na academia brasileira; de outro, tem uma trajetória muito
particular que o situa em quadro diferente de outros grupos de pesquisa
próprios dos programas de pós-graduação no Brasil.
Há vinte anos pesquisando e atuando como docente no ensino superior
e há sete dirigindo o Programa de Mestrado em Gestão e Práticas Educa-
cionais (Progepe), pude observar, desde o meu início no mestrado na Fa-
culdade de Educação da USP, em 2008, uma trajetória que se convencionou

1  Líder do Grupo de Pesquisa Ylê-Educare no CNPq; Graduado em História; mestre e


doutor em educação pela USP; professor e diretor do Programa de Mestrado em Gestão
e Práticas Educacionais (Progepe); professor de Antropologia e Educação no curso de
Pedagogia, na Uninove.

9
hegemônica na constituição dos grupos de pesquisa. Em geral, eles nascem,
legitimamente é bom que se diga, pela iniciativa de um ou mais docentes
dos programas, seja em razão das demandas das linhas de pesquisas, seja
pela consolidação de temáticas e objetos de investigação dos próprios do-
centes. Esse é um percurso natural, considerando que, para se estruturar
um grupo de investigação científica, devidamente registrado na platafor-
ma do Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq), só se pode fazê-lo a partir
de um docente-pesquisador de algum programa de pesquisa, devidamente
reconhecido pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior (Capes). Além do mais, os grupos tendem a surgir como resul-
tado do acúmulo de experiências de investigação sobre um dado tema
de um ou mais docentes de um programa. É aí que reside a diferença do
percurso do Ylê-Educare.
O Ylê emergiu de uma demanda não propriamente de docentes, mas
dos próprios alunos. Para entender isso, vale aqui um breve contexto. Os
programas de pós-graduação stricto sensu da Universidade Nove de Julho
(Uninove) têm sido, até então, um modelo distinto no contexto dos pro-
gramas das instituições particulares de ensino superior. Com o propósito
de cumprir uma função pública também na pesquisa, desde a segunda
metade da primeira década deste século, a instituição decidiu oferecer
bolsa integral para todas as alunas e alunos de todos os cursos de mestra-
do e doutorado. Além disso, a exemplo de algumas universidades fede-
rais no Brasil, a Uninove instituiu o chamado “fator público”, um bônus,
em termos de pontuação (equivalente a 20%), para os candidatos que,
aprovados no processo seletivo, tenham vínculo com a escola pública; ou
seja, pessoas que atuem em cargos pedagógicos ou de gestão (professo-
res, coordenadores, diretores, supervisores etc.) em instituições federais,
estaduais ou municipais. Resultado desse incentivo é que grande parte
dos discentes, mestrandos e doutorandos dos programas, é composta por
pesquisadores provenientes das redes públicas de ensino. Nos casos dos
dois programas de educação (acadêmico e profissional), esse número é
superior a 85% dos pesquisadores.
Esse procedimento, sem nenhuma dúvida, ao abrigar candidatos des-
sas instituições, contribuiu, progressivamente, para a organização de um
grupo de pesquisadores voltados para temáticas prementes das escolas

10
públicas. Dentre esses diferentes temas que emergem no contexto escolar,
as questões étnico-raciais têm sido um objeto de grande interesse dos
pesquisadores. Especialmente, a partir de 2012, esse interesse se avolu-
mou. Tanto no programa acadêmico, quanto no mestrado profissional,
um grande número de alunas e de alunos passaram a ingressar nos cursos
com projetos de pesquisas voltados especificamente para as discussões
étnico-raciais. Não por coincidência, a maior parte desses pesquisadores
é formada por educadoras e educadores cujas identidades e trajetórias
pessoais estão diretamente relacionadas a essas questões, em especial, às
questões relativas às/aos afrodescendentes. Em geral, são professores ou
gestores, da educação básica, vinculados a organizações sociais, dentre as
quais, movimento negro, hip-hop, mulheres negras, grupo de tradições
artísticas, culturais e religiosas de matrizes africanas, dentre outros co-
letivos. A partir de então, esse grupo de pesquisadores e pesquisadoras
passou a se encontrar mais regularmente em seminário de pesquisas até
que, por fim, criaram o Grupo Ylê Educare, no ano de 2013.
Desde então, com apoio de professores, mas por iniciativa e protago-
nismo dos estudantes, o grupo se reuniu periodicamente para discutir suas
pesquisas e promover encontros científicos, de celebração e de reflexão,
destacando, além dos estudos regulares, os trabalhos desenvolvidos nos
encontros da semana da consciência negra. Em 2015, já consolidado em
pesquisas e publicações, o Ylê foi registrado na Plataforma dos Grupos de
Pesquisa do CNPq, contando, atualmente, com mais de 40 participantes,
entre pesquisadores, estudantes e militantes de movimentos sociais.
É nesse contexto que destaco a importância do livro “Educação e em-
poderamento da mulher negra”, organizado por Neide Cristina da Silva,
Francisca Mônica Rodrigues de Lima e Maria Lúcia da Silva, três mulhe-
res que, ao lado da militância, têm buscado respostas aos problemas e às
inquietações étnico-raciais a partir de suas pesquisas na pós-graduação.
Como o próprio título explicita, os capítulos deste livro estão integra-
dos organicamente pela temática das mulheres negras. Todos os trabalhos
aqui publicados são resultados de pesquisas já concluídas ou em fase de
conclusão. Embora a grande maioria dos pesquisadores/autores desta co-
letânea seja formada por professores mestres, mestrandos, doutores e dou-
torandos dos programas de educação da Uninove, pesquisadores de outras

11
universidades também se incorporaram a essa obra. Dentre essas, encon-
tram-se investigadores das seguintes instituições: Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo (PUC/SP), Universidade Federal do Sul da Bahia
(UFSBA), Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Faculdades Metro-
politanas Unidas (FMU) e Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Recomendo este livro não apenas pela atualidade das abordagens, mas
pelo fato de que, no imenso universo das questões étnico-raciais, os estudos
sobre a mulher negra, mesmo que crescentes nas últimas décadas, carecem
ainda de muita pesquisa e, sobretudo, de divulgação e debate. Embora haja
no Brasil um relevante número de pesquisadoras e pesquisadores sobre as
temáticas negras, as discussões particularmente relacionadas à história e ao
cotidiano da mulher negra, fora dos coletivos, ainda têm pouco eco na so-
ciedade brasileira. Evidentemente, não se trata de um problema particular
do movimento negro, mas de uma questão bem mais ampla na sociedade
em geral: a “secundarização do feminino”. Entenda-se “secundarização do
feminino” enquanto campo de dominação do machismo, mas, igualmente,
como a forma mais longeva e cruel de opressão humana. De fato, quando
fazemos uma incursão na História, não encontramos nenhum outro sis-
tema equivalente ao processo de dominação do gênero masculino sobre
o feminino. Salvos contextos muito singulares, em especial em sociedades
matriarcais, até o momento, a igualdade política de gênero tem um longo
caminho a percorrer para se consolidar.
Mas, se esta dominação se revelou historicamente tão eficaz e perver-
sa sobre as mulheres em geral, ela é ainda mais aviltante sobre as mulheres
negras, o segmento mais dominado entre os dominados, particularmente
nas sociedades de tradição escravocrata ou colonial. Observemos que,
apenas a partir da década de 1990, com o movimento conhecido como
“terceira onda do feminismo” é que, do ponto de vista do debate social,
as questões de luta pela emancipação da mulher negra ganharam maior
evidência, especialmente pela atuação das mulheres negras feministas.
Passadas quase 3 décadas, apesar dos muitos avanços, há muito o
que conquistar. Para se ter um breve panorama da inserção das mulheres
negras nesse cenário mundial feminista, basta observarmos que quando
fazemos uma busca na internet sobre as mais expressivas mulheres de
referência do feminismo, desde o século XVIII, apenas Bell Hooks, Patrí-

12
cia Collins, Audrey Lorde, Alice Walker são negras. Num universo de 34
escritoras feministas de expressões mundiais, 30 são brancas. Vale lem-
brar que todas as escritoras negras nesse panteão são estadunidenses, ou
seja, não existem, nesse âmbito mais global, representantes dos lugares de
maior população negra como os países africanos e o Brasil. Obviamente
que, para especialistas do tema, há muitas mulheres negras de grande ex-
pressão que não constam nessa lista. Mas, para não ir muito longe, falan-
do de nosso campo brasileiro da educação, somente em outubro de 2017,
uma pesquisadora negra, Nilma Gomes, proferiu a conferência de abertu-
ra da 38ª Reunião Nacional da Associação Nacional de Pós-Graduação e
Pesquisa em Educação (Anped). Esse fato se torna mais relevante quando
verificamos que a referida associação, a mais importante sobre pesquisa
em educação no Brasil, completou 40 anos de existência em 2016.
Nesse quadro geral, todo avanço que diz respeito à afirmação da mulher
negra deve ser interpretado como uma conquista social. O livro “Educação
e empoderamento da mulher negra” é, portanto, mais um dentre tantos tra-
balhos que já surgiram e surgirão nesse imenso cenário de questões relativas
às mulheres negras. Mas ele ganha destaque pelo amplo panorama de abor-
dagens que traz, revelando, especialmente para as leitoras e leitores inicias
do tema, a complexidade de questões que envolvem essa temática: a mulher
negra transexual; a solidão da mulher negra; as identidades das meninas ne-
gras; mulher negra na educação básica e no ensino superior; eugenia; ações
afirmativas; a mulher negra em situação de rua, dentre outras. Para além do
grande valor das abordagens aqui desenvolvidas, este livro é um ato político,
porque, não resulta apenas de reflexões realizadas a partir de categorias ana-
líticas da sociologia, da filosofia, da antropologia, da história etc., mas das ex-
periências existenciais e intelectuais de negras e não negras, de negros e não
negros que tomam como ponto de vista o olhar das oprimidas e dos oprimi-
dos em processo e em luta de emancipação. Nesse sentido, o empoderamento
da mulher negra é, antes de tudo, o empoderamento de toda sociedade.

São Paulo, Primavera de 2017.

13
Mulher
negra e
Mulher negra
educação
e educação
MULHER, TRANSEXUAL E NEGRA:
INTERSECÇÕES DA EXCLUSÃO ESCOLAR

Anselmo Clemente1
Antonio Germano 2

Introdução

Este texto trata da interseccionalidade das categorias de gênero, se-


xualidade e raça que atravessa e marca o corpo da mulher-negra-transe-
xual no contexto de inclusão/exclusão escolar. Acredita-se que tal inter-
secção é produtora de uma tripla vulnerabilidade em relação ao acesso à
educação, pois, tais categorias, tomadas como relações de poder, colocam
este mesmo corpo em, pelo menos, três registros distintos que se multi-
plicam para rebaixá-lo e torná-lo submisso em detrimento às condições
mais privilegiadas de seguir com os estudos. Para nos ajudar nesse debate,
contamos com a contribuição da Samantha, uma mulher-trans-negra.

1  Psicólogo, Mestre em Psicologia Institucional (UFES) e doutorando bolsista CNPQ


do Programa de Psicologia Clínica (Núcleo de Subjetividade) da PUC/SP. E-mail:
anselmo_clemente@hotmail.com

2  Mestre em Educação com o tema “A efetivação da História e Cultura Afro-brasileiras


e Africanas no ensino Público e privado: Um estudo comparativo entre duas escolas”
(UNINOVE, 2016). Especialização em Gênero e Diversidade na Escola-Unifesp. Professor
na Educação Básica do município de São Paulo. E-mail: cafeatoa@hotmail.com

17
MULHER, TRANSEXUAL E NEGRA: INTERSECÇÕES DA EXCLUSÃO ESCOLAR

Em que medida posições de gênero, raça e sexualidade de uma deter-


minada pessoa ou população se relacionam com o seu acesso à educação?
Essa pergunta é estruturante para o texto e trata-se de um ponto de parti-
da complexo e difícil de responder, pois, num primeiro aspecto, tais posi-
ções só podem ser discutidas a partir do contexto cultural que se inserem.
E no caso brasileiro, a exemplo de diversas ex-colônias espalhadas pelo
mundo, às experiências de cerceamento dos modos de vida das mulheres,
da população negra e mais especificamente das pessoas com identidades
divergentes ao padrão heterossexual, ganham contornos de vulnerabili-
dade social e guardam raízes profundas na própria constituição do país.
Outro aspecto bem mais abrangente relaciona-se com o fato de que os
recortes de gênero, raça e sexualidade - apesar de inerentes a cada cultura
- são também categorias progressivamente mais universalizáveis e renta-
bilizadas por um sistema econômico cada vez mais hegemônico. Numa
dimensão mais macroestrutural ou molar do capitalismo contemporâneo,
este processo de valoração ocorre por relações de poder que recortam as
pessoas em operações binárias. Deste modo, seccionam-se os indivíduos
polarizados por gênero - homem/mulher, por raça - branco/negro, por
sexualidade - homossexual/heterossexual e assim por diante.
A inter-relação destes recortes também contribui para definição de
quem está mais ou menos favorecido na ordem do capital vigente. Há
uma relação entre eles (e suas possíveis intersecções) e o chamado capita-
lismo mundial integrado3 que homogeneíza, organiza e ranqueia modos
de vida a partir de um sistema de valoração. Incluem-se, nesse sentido,
quais populações terão uma espécie de cidadania plena - com direitos
básicos reservados tais como: educação, saúde, trabalho, moradia, etc - e
quais populações se constituirão como cidadãos de segunda e de terceira
classe, ou seja, com algum ou nenhum direito preservado.
No caso brasileiro, a mulher-negra, a mulher negra-lésbica, a mulher-
-negra-transexual, mas também a “bicha-preta-periférica” são exemplos
de registros de pouco valor para este sistema em detrimento de outras
posições mais privilegiadas. Portanto, figuras recortadas por estas inter-
secções são alvo de maior violência estrutural, incluindo racismo, homo-

3  No sentido pensado por Felix Guattari (DE CAMARGO, 2011).

18
ANSELMO CLEMENTE E ANTONIO GERMANO

fobia, transfobia por parte das instituições e da vida social, e são produ-
toras de marginalização.

Refletindo sobre o conceito de “Raça”

Provavelmente é antiga a distinção étnica entre os povos humanos.


Mas a questão étnica não se refere à cor da pele ou aspectos físicos de al-
guém ou população. Trata-se também do compartilhamento de tradições
culturais, língua, nacionalidade, território (SANTOS, 2010). Contudo, as
ideias de raça são mais recentes e atravessaram a história moderna e con-
temporânea humana. Referem-se inicialmente aos séculos, XVII, XVIII
XIX e seu conceito instaura-se no mundo colonial eurocentrista.
Fundamentalmente, a noção de raça legitimou o processo coloniza-
dor das nações europeias sobre os territórios conquistados. Influenciou
enormemente o pensamento colonizador, a posição imperialista dos esta-
dos europeus, a aplicação de ideários educacionais, criminais e médicos
eugenistas e higienistas e todo um racismo de estado presente até os dias
atuais em nosso país (GUIMARÃES,1999).
O conceito de “raça” veio do italiano razza, que significa sorte, cate-
goria, espécie. Na história das ciências naturais, foi primeiramente usado
na Zoologia e na Botânica para classificar as espécies animais e vegetais,
pois tem seu campo semântico uma dimensão temporal e espacial. De
acordo com Munanga (2004, p.50),

[...] a raça não é uma realidade biológica, mas sim apenas um con-
ceito, aliás, cientificamente inoperante para explicar a diversidade
humana e para dividi-la em raças estanques. Ou seja, biológica e
cientificamente, as raças não existem.

O racismo antinegro, enquanto elemento estruturador das relações so-


ciais que foram estabelecidas no Brasil, fundamenta-se na ideia de inferio-
ridade do negro e superioridade do branco, o que justificou e consolidou
a escravidão a que alguns povos africanos, especialmente os negros, foram
submetidos. As consequências sociais dessas ideias de raça eram justifica-
das, segundo classificações científicas, em termos biológicos até meados do
século XX. Bento (2000, p. 24) corrobora esta perspectiva afirmando que:

19
MULHER, TRANSEXUAL E NEGRA: INTERSECÇÕES DA EXCLUSÃO ESCOLAR

[...] esta ideologia de que portadores de pele escura seriam infe-


riores e pessoas de pele alva seriam superiores se baseia na obra
“A origem das espécies”, na qual, a partir de estudos realizados em
plantas e animais, desenvolveu a teoria da seleção natural. Segundo
ela, na natureza sobrevivem e dominam as espécimes fortes. Existi-
riam, portanto, espécimes fortes e fracas.

Quanto ao conceito de raça como construção, Schwarz (2012. p.34)


afirma que:

Raça é, pois, uma categoria classificatória que deve ser compre-


endida como uma construção local, histórica e cultural, que tanto
pertence à ordem das representações sociais-assim como o são fan-
tasias, mitos e ideologias como exerce influência real no mundo,
por meio da produção e reprodução de identidades coletivas e de
hierarquias sociais politicamente poderosas.

O termo “raça social” é empregado por Antônio Sérgio Guimarães


(1999). Segundo ele, ‘raça’ é um conceito que não corresponde a nenhu-
ma realidade natural.

Trata-se, ao contrário, de um conceito que se denota tão somente


uma forma de classificação social, baseada numa atitude negativa
frente a certos grupos sociais, e informada por uma noção espe-
cífica de natureza, como algo endodeterminado. A realidade das
raças limita-se, portanto, ao mundo social. Mas, por mais que nos
repugne a empulhação que o conceito de ‘raça’ permite - ou seja,
fazer passar por realidade natural preconceitos, interesses e valores
sociais negativos e nefastos, tal conceito tem uma realidade social
plena, e o combate ao comportamento social que ele enseja é im-
possível de ser travado sem que se lhe reconheça a realidade social
que só o ato de nomear permite (GUIMARÃES, 1999.p.11).

No Brasil, a escravização de povos africanos foi praticada oficial-


mente pela coroa portuguesa por mais de três séculos. O sofrimento do
povo negro escravizado atravessou grande parte da História do país. No
dia-a-dia das províncias e das cidades que se desenvolviam, acostumou-
-se a ver os negros nas posições mais abjetas. Seus corpos objetificados
e explorados estavam expostos à venda - por vezes nus - em mercados.

20
ANSELMO CLEMENTE E ANTONIO GERMANO

Eram açoitados e castigados das maneiras mais horrendas em praça pú-


blica para toda gente ver.
Os negros e negras vistos como mercadoria eram explorados, muti-
lados, esquartejados e estuprados e isso não seria alvo de revolta durante
séculos, em grande parte, por movimentar a economia local. O horror
de tal prática foi naturalizado na vida cotidiana do país em formação e
contribui enormemente, desde os tempos da colônia, para a consolidação
de um racismo de estado estruturante no caso brasileiro.
Na medida em que o projeto escravocrata começava a diminuir, os
homens e mulheres racializados em posições inferiores, isto é, os negros,
os índios, mas também os mestiços que iam constituindo em toda a parte
o povo brasileiro, eram vistos com desconfiança para o desenvolvimento
do país e foram alvo privilegiado da medicina higienista do século XIX.
A raça negra seria relacionada pela ordem médico/criminal como
inferiores, mais pretensos a cometerem crimes, propensos aos vícios,
portadores das mais diversas doenças, e toda ordem de impurezas que
atravancaria o desenvolvimento da nação. Tanto que segundo esta ordem
médica-criminal os negros, mas também a população mais pobre e os que
mais ou menos destoavam da tentativa de branqueamento do país, foram
população privilegiada dos manicômios do século XIX.
O fim oficial da escravidão no país não significou exatamente uma
mudança na relação de poder a partir da noção de raça. Muito pelo con-
trário, a “libertação” dos negros até então escravizados não veio acom-
panhada de um projeto de reparação imediata por parte do estado. Os
cortiços e depois as favelas seriam as novas senzalas destinadas ao povo
negro e provavelmente superamos muito pouco o racismo de estado. Os
corpos negros passariam todo o século XX criminalizados e engrossando
os presídios brasileiros. Teriam também menos acesso, mesmo em tem-
pos mais democráticas, a direitos sociais básicos como moradia, saúde,
educação etc.
Na construção das sociedades, na forma como negros e brancos são vis-
tos e tratados no Brasil, a raça tem uma operacionalidade na cultura e na
vida social. Se ela não tivesse esse peso, as particularidades e características
físicas não seriam usadas por nós para identificar quem é negro e quem é
branco no Brasil. E mais, não seriam usadas para discriminar e negar direitos

21
MULHER, TRANSEXUAL E NEGRA: INTERSECÇÕES DA EXCLUSÃO ESCOLAR

e oportunidades aos negros em nosso país. É essa mesma leitura sobre raça,
de uma maneira positiva e política, que os defensores das políticas de ações
afirmativas no Brasil têm trabalhado (GOMES, 2005).
Enfim, discutir o conceito de raça leva-nos a uma reflexão sobre a
sociedade ter um papel de construtora na formação dos cidadãos e pro-
motora de ações e políticas que visem criar oportunidades iguais para
negros e brancos, entre outros grupos raciais, nos mais diversos setores.
É preciso ensinar para as novas gerações que algumas diferenças cons-
truídas na cultura e nas relações de poder receberam uma interpretação
social e política.

Gênero e transgênero

Gênero pode significar a diferença entre homens e mulheres, e refe-
re-se à identidade adotada por uma pessoa de acordo com seus genitais,
psicologia ou seu papel na sociedade. Para Izquierdo (1999), poderíamos
nos referir aos gêneros como obras culturais, modelos de comportamento
mutuamente excludentes cuja aplicação supõe o hiperdesenvolvimento
de um número de potencialidades comuns aos humanos em detrimento
de outras. Modelos que se impõem ditatorialmente às pessoas em função
do seu sexo. Mas esta só seria uma aproximação superestrutural do fenô-
meno dos gêneros.
De acordo com Bento (2011), o gênero, portanto, é o resultado de
tecnologias sofisticadas que produzem corpos-sexuais. Quando se diz
“é um menino!”, não se está descrevendo um menino, mas criando um
conjunto de expectativas para aquele corpo que será construído como
“menino”. Ainda de acordo com a autora, nascemos e somos apresenta-
dos a uma única possibilidade de construirmos sentidos identitários para
nossas sexualidades e gêneros. Há um controle minucioso na produção
da heterossexualidade.
A sexualidade dita “normal” e “natural” é a heterossexualidade. É
através dela que se constroem papeis sociais que sempre beneficiam prin-
cipalmente o homem heteronormativo e branco, desta forma, é possível
apreendermos que também essas questões passam pela aquisição de po-
der que é conferido ao homem. As formas idealizadas dos gêneros ge-

22
ANSELMO CLEMENTE E ANTONIO GERMANO

ram hierarquia e exclusão. Refletindo sobre esta exclusão, relacionando


à questão da cor da pele, o fato é que quanto mais escura é a pele mais
excluída se torna a pessoa, e em relação ao gênero quanto mais o ser hu-
mano foge do padrão masculino e feminino, mais a sociedade exclui. São
enormes as violências cometidas contra pessoas transexuais.
O binário de gênero é a classificação do sexo e do gênero em duas
formas distintas, opostas e desconectadas de masculino e feminino; ho-
mem e mulher. É um dos tipos gerais de sistemas de gênero. O termo
descreve um sistema no qual a sociedade divide as pessoas entre homem
e mulher e determina para elas papeis sociais de gênero, identidades de
gênero e atributos. Neste sentido, nos tornamos muito limitados em re-
lação aos nossos desejos e vontades e nossa própria condição sexual. A
forma como nos sentimos é cerceada pela sociedade e isso causa vários
problemas como: depressão, angústia etc.
De acordo Silva (2010), o regime binário que reduz o sexo à classifi-
cação de lícito e ilícito, permitido e proibido, apresenta a mesma lógica
que, segundo Foucault (2007), organiza o conhecimento e a prática sobre
os sujeitos e sobre os corpos. Auad (2006) coloca que sexo e gênero não
são a mesma coisa, apesar de se relacionarem. E o gênero aparece nessa
concepção como “um conjunto de ideias e representações sobre o mas-
culino e o feminino”, ou seja, “o gênero é uma construção biológica” que
vem a partir dos fatores genéticos e não com eles.
O gênero adquire vida através das roupas que compõem o corpo, dos
gestos, dos olhares, ou seja, de uma estilística definida como apropriada.
Como diz Tereza de Lauretis (1994, p.209), “a construção do gênero tam-
bém se faz por meio de sua desconstrução”.
O termo transgênero se refere a uma pessoa que sente que ele ou ela
pertence ao gênero oposto, ou pertence a ambos ou nenhum dos dois
sexos tradicionais, abrangendo travestis, transexuais, Drag Queens e Drag
Kings. De acordo com Marina de Carvalho Carneiro (2012, p.11), “a tran-
sexualidade reside justamente neste sentimento de não pertencimento ao
seu sexo biológico ou ao pertencimento a mais de um sexo”.
Transgeneridade e transexualidade são conceitos que dialogam entre
si por se fundamentarem na não concordância entre o sexo biológico e
o gênero pelo qual uma pessoa deseja ser reconhecida socialmente. Por

23
MULHER, TRANSEXUAL E NEGRA: INTERSECÇÕES DA EXCLUSÃO ESCOLAR

isso podemos concluir também que a discussão que gera conflitos pode se
resumir especificamente no fato exatamente da não identificação com o
sexo biológico. De acordo com Berenice Bento (2008, p, 20) “transexuali-
dade, travestilidade, transgênero são expressões, identitárias que revelam
divergências com as normas de gênero uma vez que estas são fundadas no
diformismo, na heterossexualidade e nas idealizações”.
No Brasil, as posições não heterossexuais ao longo da história nunca fo-
ram criminalizadas por legislação específica. Apesar disso, em diversos mo-
mentos podemos observar como o sistema regulatório da hetenormativida-
de efetivou o controle desta população alegando crime de vadiagem, dentre
outros. Durante o regime ditatorial no país, por exemplo, as travestis foram
perseguidas pela polícia numa tentativa higienista de retirá-las das ruas.

Abordagem Metodológica

Decidimos pela abordagem qualitativa com o recurso à entrevista


como instrumento metodológico de pesquisa. A metodologia qualitati-
va permite um estudo em profundidade por intermédio do discurso dos
sujeitos. Interpretar e compreender as práticas discursivas e os diversos
sentidos dos discursos, quer do ponto de vista ideológico quer do social
e político, constitui a grande finalidade das abordagens qualitativas e da
análise de discurso, técnica utilizada no artigo.
O discurso foi entendido como prática social, na perspectiva de Mi-
chel Pêcheux (1995) e Orlandi (2005), vinculado ao seu lugar de enun-
ciação (a escola), às condições sociais de produção e ao seu marco de
produção institucional, ideológica, cultural e histórico-conjuntural. De
um modo geral, os sujeitos emissores do discurso não estão na origem do
significado, mas este é determinado pelas condições ideológicas que são
postas em jogo em cada momento histórico e social no qual se produzem
as palavras e os respectivos significados.
Em nosso artigo buscamos abordar a figura da mulher-“trans”-negra
e sua passagem pelo mundo da escola em função das seguintes formações
discursivas: a interseccionalidade dos segmentos raça, gênero e sexuali-
dade e o acesso e permanência na escola. A entrevista foi realizada no dia
27 de maio de 2017.

24
ANSELMO CLEMENTE E ANTONIO GERMANO

Formação discursiva: a interseccionalidade dos segmentos raça, gê-


nero e sexualidade

Saímos pelas ruas da região central de São Paulo entre a Praça da


República e o Largo do Arouche. Este pedaço da cidade é um tradicional
e histórico território de ocupação da população LGBTTT4. Na Avenida
Vieira de Carvalho, uma espécie de artéria principal de circulação de lés-
bicas, gays, bissexuais, homens e mulheres “trans”, paramos em um dos
bares frequentados por toda essa diversidade sexual.
Ali, conhecemos Samantha5, uma linda jovem de 26 anos, muito sim-
pática que prontamente topou conversar conosco e contribuir com nosso
estudo. Ela nos contou um pouco da sua história. Negra e oriunda da re-
gião leste de São Paulo, nos diz que passou por quase todo período escolar
na condição de menino homossexual apesar de se considerar transgênero
desde os 9 anos. Desde os 20 anos, quando começou a se apresentar so-
cialmente pelo gênero feminino, passou pelo processo de hormonização.
Atualmente este processo é acompanhado em atendimentos médicos e
psicológicos pelo Centro de Triagem e Aconselhamento (CTA) da Penha.
Samantha nos conta que durante a adolescência, mesmo sendo iden-
tificada como menino, preferia as atividades de mulher. Sua socialização
em atividades tidas como masculinas como jogar futebol com outros me-
ninos era restrita e acabava optando por atividades físicas como jogar
vôlei. A condição social de Samantha trouxe poucas oportunidades para
que ela desenvolvesse mais cedo sua expressão como mulher. Acredita
que se houvesse chance na família teria feito antes. Mas como tática de
sobrevivência, para expressar sua transgeneridade, ainda morando com
a família, utiliza-se dos banheiros do transporte urbano para conquistar
sua feminilidade:

Eu saia, saia de lá [da casa dos pais], começava a me maquiar den-


tro do trem... [...] e, eu me trocava dentro do banheiro masculino.
E eu saía de dentro do banheiro masculino. Assim, com a roupa fe-

4  Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros.

5  Nome fictício para preservar a identidade de nossa colaboradora.

25
MULHER, TRANSEXUAL E NEGRA: INTERSECÇÕES DA EXCLUSÃO ESCOLAR

minina. Aí sempre tinha um ou outro, um cara querendo me pegar.


[Para transar, ou para pegar para bater?] - Os dois.

Travestis, Transexuais e Transgêneros tencionam e desnaturalizam a


cisgeneridade pela via da despatologização de suas identidades. Contudo,
mais difícil do que dar vozes a essas expressões individuais, é realizar es-
ses recortes interseccionais como quando relacionado à raça, sexualidade
ou classe social. Além disso, a população contida na chamada letra T é
muito variada pois,

[...] não se refere à orientação sexual (onde está o meu desejo)


como lésbicas, gays e bissexuais. Refere-se à identidade de gênero.
Incluem-se aqui mulheres trans, homens trans, pessoas trans não
binárias, monstras, tenebrosas e que querem mesmo aterrorizar o
sistema. Dentro da população as pessoas também tem orientação
sexual. (Informação verbal) 6

Quando perguntamos sobre as questões de raça e gênero, Samantha


nos relatou que o fato de ser mulher transgênero e negra tornou sua vida
escolar muito mais difícil.

Foi. Mais difícil para mim. Juntou as duas coisas. Fora essas duas coi-
sas, juntou outras coisas a mais. Que nem, a família não aceitava mui-
to bem a minha condição, não queria saber, queria que eu mudasse o
jeito, queria mudar tudo. Eu tinha que mudar as coisas todinhas.

Pudemos observar, no contexto onde foi realizada a entrevista, o de-


sejo de Samantha em ter condições - inclusive financeiras - de seguir com
seu processo de “transformação” e realização corporal segundo o estereó-
tipo do que é ser uma mulher. Quando criança se identificava como me-
nino gay, mas as suas atividades eram como mulher. Seu pensamento vai
ao encontro do Manual de Comunicação LGBT que define brevemente:

6 Explicação fornecida por Angela Lopes acerca das identidades “Trans” durante a
mesa de debate LGBTQIA + Mínimo Denominador Comum, 2ª CONFERÊNCIA
INTERNATIONAL [SSEX BBOX] & MIXBRASIL, no Centro Cultural São Paulo, São
Paulo, em 19 de novembro de 2016.

26
ANSELMO CLEMENTE E ANTONIO GERMANO

Seria uma pessoa transexual, a qual o documento define como uma


Pessoa que possui uma identidade de gênero diferente do sexo de-
signado no nascimento. Homens e mulheres transexuais podem
manifestar o desejo de se submeterem a intervenções médico-ci-
rúrgicas para realizarem a adequação dos seus atributos físicos de
nascença (inclusive genitais) a sua identidade de gênero constitu-
ída. (s/d, p.17)

Entendemos, de acordo com o discurso de Samantha, que sua transe-


xualidade supera a ordem de gênero preestabelecida pela sociedade. Ela
é mais que isso, é uma experiência identitária que está permanentemente
em construção, observação e seus desejos foram reprimidos na infância e
durante sua passagem pela vida escolar.

Formação discursiva: acesso e permanência das alunas negras trans


na escola

Ela relata que terminou o ensino médio com dificuldades, “os meni-
nos queriam me bater, eu não poderia entrar dentro do banheiro, senão
eles me pegavam para me bater dentro do banheiro.” Então perguntamos
se só os meninos tinham este comportamento agressivo “Só os meninos”?

Os meninos e algumas meninas também. Do lado de [fora] quando


eu saía da escola, sempre eu tinha que ir com umas outras meni-
nas para casa, que me acompanhavam, por causa dos meninos que
queriam me bater.

Quando questionada sobre sua luta para concluir os estudos, refere


que na escola pública onde frequentou buscava ser uma aluna regular e
com poucas faltas, mas:

Eu até pensei em deixar a escola, mas meus pais falaram assim:


“Você vai seguir até o terceiro colegial, terminar tudinho.” Eu ter-
minei em 2008 e, depois eu comecei a fazer um curso de... queria
fazer um curso de cabeleireira, mas eu fiz o curso de construção
civil. Na época eles queriam que eu fizesse esse curso. Aí eu fiz. Eu
aprendo algumas coisas rápido, rapidinho hoje em dia...

27
MULHER, TRANSEXUAL E NEGRA: INTERSECÇÕES DA EXCLUSÃO ESCOLAR

Também, diz que durante o período escolar reclamava com a diretora


sobre as constantes violências sofridas e que esta, por sua vez, conversava
com alunos e alunas, mas isso surtia pouco efeito positivo: “Eu fui espanca-
da dentro da sala de aula já. Os professores [...] falava para os alunos para-
rem com isso, de querer me bater. É um ser humano como todo mundo”.
Relata que apesar do apoio de todos os professores, era a única alu-
na transgênero da escola e mesmo não expressando ainda socialmente
seu processo de mudança de gênero foi muito perseguida. Isolada, sua
presença incomodava. E a escola forçava para sua expulsão do sistema
educacional:

um ou outro queria que passasse de ano, mesmo eu tendo notas


diferentes dos outros alunos. Que nem, eu tinha umas notas meio
baixas, aí depois eu comecei a penar para retomar. Uma “A” na épo-
ca era “A, B, C, D”, aí, depois começava a numeração. Aí, eu estou
aqui firme até hoje.

Provavelmente sua expressão social tardia da condição de mulher


transexual foi uma tática de sobrevivência e ajudou a jovem a concluir o
ensino médio, contudo, não pode contar com a sua família nem mesmo
na posição social de “menino gay”:

Nem como menino gay. Quando eu assumi com meus pais, foi de
18 para 19. Aí minha mãe... eu já falei para minha mãe. Minha mãe
pegou a... pegou faca, pegou um monte de coisas e tacou em mim,
que até me machucou. Se não fosse o meu irmão para tirar ela de
cima de mim, eu não estaria nem aqui.

E acrescenta, acerca de sua vulnerabilidade social atual, que

Hoje em dia eu não tenho o apoio da família não. Eu moro... eu


estou ficando de favor na casa de uma colega minha. Depois... O
irmão dela não quer que eu fique mais lá. Aí, eu estou vendo um
jeito para eu sair de lá. Senão, eu vou ter que voltar para a casa dos
meus pais.

Para Guacira Lopes Louro (1997, p. 68)

28
ANSELMO CLEMENTE E ANTONIO GERMANO

A negação dos/as homossexuais no espaço legitimado da sala de


aula acaba por confiná-los às gozações e aos insultos dos recreios e
dos jogos, fazendo com que, deste modo, jovens gays e lésbicas só
possam se reconhecer como desviantes, indesejados ou ridículos.

Samantha nos diz que se pudesse voltar a estudar gostaria de fazer


enfermagem, mas acha que seria mais fácil se seus documentos já esti-
vessem em seu nome social. Pois, mesmo concluindo o ensino médio e se
sentindo privilegiada nesse sentido a outras mulheres trans, o ingresso no
mundo do trabalho esbarra no preconceito da sociedade. Depois de assu-
mir sua posição de gênero, teve poucas oportunidades de trabalho: “Eu já
tentei em mercado, em hospital, porque hospital aceita, mas do jeito que
eles querem. [Que é?] - Que é homenzinho ou gay”
Os direitos de ser o que escolhemos deveria compreender também
nossa identificação sexual. Maria de Carvalho Carneiro (2012, p. 38) nos
aponta que:“ No contexto da transexualidade esse princípio se perfaz jus-
tamente na capacidade do indivíduo de poder envidar seus maiores esfor-
ços na busca e realização do gênero que se identifica”.
No ensino médio, apesar de tudo o que sofreu, gostava da escola, suas
disciplinas favoritas eram “Português, Química, Geografia...”. Em relação
à Educação Física, não teve grandes problemas, pois tinha dispensa das
aulas já que trabalhava como atendente de telemarketing. Entretanto, sua
fala deixa claro o tanto que a escola é excludente neste aspecto, não está
preparada para criar condições e atividades que incluam os diversos tipos
de talentos.
E finaliza deixando um recado para as mulheres trans que reflete
também suas expectativas de futuro e o papel da educação e da família na
inclusão social:

Eu queria falar para elas seguirem a vida delas e não deixar nin-
guém passar por cima delas, porque... principalmente as pessoas
da rua e as pessoas da família. Porque a maioria comete homicídio,
começa a usar drogas. Eu quero, eu queria que elas fizessem dife-
rente. [...] Porque a maioria vai para rua só para fazer programa.
[...] Eu queria que mudasse isso. [...] A maioria das meninas hoje
em dia vão todas para rua para ganhar o sustento delas. E eu respei-
to muito isso. Eu respeito todas elas. Até porque eu já fiz uma vez e,

29
MULHER, TRANSEXUAL E NEGRA: INTERSECÇÕES DA EXCLUSÃO ESCOLAR

é muito ruim. Você corre risco de vida na rua. [...] Estudando elas
conseguem mais. A família devia dar apoio também, para as trans,
travestis, todo mundo. Já que a família não dá apoio a gente pro-
cura... [...] Eu aprendi muito na escola. E eu quero que as meninas
voltem a estudar para aprender o que é bom para elas.

De acordo com Bento (2011, p.555),



A escola, que se apresenta como uma instituição incapaz de lidar
com a diferença e a pluralidade funciona como uma das principais
instituições guardiãs das normas de gênero e produtora da heteros-
sexualidade. Para os casos em que as crianças são levadas a deixar a
escola por não suportarem o ambiente hostil, é limitador falarmos
em evasão.

A escola infelizmente tornou-se espaço privilegiado de vigilância,


disciplinarização e normalização do gênero. Ao invés de acolher os alu-
nos e ajudá-los a enfrentar todas dificuldades impostas por um mundo
aparelhado por sistema binarizante idealizado de homem/mulher, reforça
o preconceito e a exclusão. Esse movimento de expulsão pode ocorrer
tanto pela omissão e apagamento da pluralidade de gênero e sexualida-
de em seu cotidiano escolar, quanto com o reforço da patologização da
transgeneridade, ao reduzir sua atuação pedagógica aos casos individuais
lidos como problemáticos pelos membros da instituição.

Considerações Finais

Chegamos à conclusão de que o breve relato da vida escolar de Sa-


mantha é representativo quando se pensa no debate da interseccionalida-
de de raça, gênero e sexualidade como produtora de violência estrutural,
por meio do racismo e da transfobia vivenciados nas instituições e na
vida social. Tal condição de vulnerabilidade afetou, dentre outros aspec-
tos da vida, o ingresso e sobretudo sua permanência escolar.
Esta permanência, quando ocorre, é conflituosa e agressiva. Também
o tensionamento produzido faz com que o equipamento escola pública se
reveja muito pouco, o que acaba anexando essa instituição a um sistema

30
ANSELMO CLEMENTE E ANTONIO GERMANO

muito maior, de caráter opressivo em relação aos negros e às negras e,


sobretudo às populações divergentes da heteronorma. A escola, em seu
projeto político-pedagógico deveria, dentre muitos aspectos, estar mais
preparada para lidar com estas questões enquanto proposta estruturante.
Contudo, o acolhimento às questões de Samantha em seu ambiente - pon-
tual e circunscrito a determinados profissionais - é desproporcional em
relação à violência sofrida.
Obviamente, a atenção escolar à transgeneridade sozinha não é capaz
de reverter toda a vulnerabilidade vivida socialmente por figuras com his-
tórias de vida como de nossa interlocutora. O convívio familiar conflituoso,
uma rede de apoio restrita e poucas oportunidades de trabalho também
contribuem para a construção de um modo de vida mais precário.
Outra questão frequente na vida social das mulheres-trans, resultante
dos efeitos das intervenções corporais e também dos diversos graus de
formalização de seu nome social, é a chamada passabilidade cisgênera.
Ou seja, quando uma mulher transexual é passável, vista socialmente
como uma mulher cisgênera, sem ser notada em sua transgeneridade.
Mulheres-trans com alta passabilidade são aquelas mais facilmente
assimiladas pelo sistema de regulatório de gênero. Isto significa também
que tais mulheres conseguem uma passagem menos violenta pelas insti-
tuições formais, como no âmbito escolar, por exemplo.
Contudo, a alta passabilidade não é uma possibilidade ou mesmo
desejo de todas. Aquelas mulheres que não passam ou não querem ser
facilmente assimiladas são consequentemente muito mais violentadas,
marginalizadas, expulsas dos espaços de convivência social ou mesmo
mortas. Assim, a intersecção que recorta a mulher-trans-negra contribui
para uma baixa passabilidade no atual sistema regulatório de gênero e
racial, pois são desqualificadas pelos signos de poder que organizam a
cisheteronormatividade.
Por fim, basta saber quem estará na linha de frente deste conflito.
Recentemente, ganhou a mídia o horror do espancamento e morte da tra-
vesti Dandara filmada por seus próprios assassinos7. Provavelmente, uma

7  O caso repercutiu amplamente nas redes sociais e em diversos veículos de comunicação, como
na edição virtual da Revista Forum, de 7 de março de 2017.

31
MULHER, TRANSEXUAL E NEGRA: INTERSECÇÕES DA EXCLUSÃO ESCOLAR

mulher negra transexual, ainda mais com uma história de violência es-
trutural de Samantha, está no fio da navalha para se manter viva e muito
mais exposta a um sistema que, quando não consegue assimilar, MATA!

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ANSELMO CLEMENTE E ANTONIO GERMANO

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34
NADA DE NOVO, TUDO OUTRA VEZ:
REFLEXÕES SOBRE A SOLIDÃO DA MULHER
NEGRA

Maria Aparecida Oliveira Lopes1


Francisca Mônica Rodrigues de Lima2

Introdução

Maria Odila da Silva Dias, em Quotidiano e Poder em São Paulo no


século XIX (1995), refletiu sobre os papéis sociais de mulheres das classes
oprimidas escravas e forras no processo incipiente da urbanização da ci-
dade de São Paulo. A autora analisou as representações sobre as mulheres
negras livres, escravas, pobres e brancas com a preocupação de examinar
os papéis informais vividos por elas.
Nesse sentido, a investigação Maria Odila Dias parte dos preconceitos
que desclassificavam as mulheres socialmente a partir de valores machis-
tas e misóginos, ou seja, entranhados no sistema escravista e moldados
no menosprezo do trabalho e de qualquer ofício de subsistência. Além
desses, existiam os preconceitos advindos da organização da família e do

1  Professora Associada da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSBA) campus de Porto


Seguro. E-mail: marialopes@uft.edu.br

2  Mestre em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) da Universidade


Nove de Julho (UNINOVE). E-mail: franciscamoni@yahoo.com.br

35
NADA DE NOVO, TUDO OUTRA VEZ: REFLEXÕES SOBRE A SOLIDÃO DA MULHER NEGRA

sistema de herança das classes dominantes que encaravam as mães soltei-


ras e concubinas como excedentes sociais.
Dias confirma que o fenômeno das mulheres solteiras e chefes de
família esteve entranhado à estrutura colonial. Dessa forma, a urbaniza-
ção foi considerada peculiar como um todo nas colônias do Brasil sendo
estudada em Vila Rica, nos demais arraiais de mineração, em Salvador e
no Rio de Janeiro. Em suas palavras, as múltiplas causas e fatores que con-
tribuíram para manter a solidão das mulheres solteiras em São Paulo, e
no Brasil, estavam emaranhadas à estrutura colonial (DIAS, 1995, p. 31).
A autora tratou da dificuldade de explicar as razões do fenômeno
das mulheres solteiras, pois elas faziam parte de um meio social comple-
xo. Em suas palavras, o casamento prendia-se ao sistema de dominação
social das classes dominantes. Estas classes perpetuaram os privilégios e
estipulavam papéis sociais difíceis de serem mantidos por homens e mu-
lheres das classes desfavorecidas. As normas e valores ideológicos relati-
vos ao casamento e à organização da família, nos meios senhoriais, não se
estenderam aos meios mais pobres de homens livres, sem propriedades a
transmitir. As moças pobres sem dotes permaneceram solteiras ou cons-
tituíram uniões sucessivas.
Segundo Dias, vários historiadores revelam uma incapacidade de tra-
tar da participação das mulheres no processo de formação da sociedade
brasileira, pois se perdem em juízos de valor e não conseguem desfa-
zer-se de idealidades e estereótipos que os impedem de ver com clareza
o contexto histórico tratado. Paulo Padro, em Retrato do Brasil (1928),
referiu-se às índias como simples máquinas de gozo e as negras africa-
nas como dotadas de passividade infantil. Gilberto Freyre viu a mulher
branca como “uma serva do homem branco de carne do marido” (DIAS,
2005, p. 40).
Na vila e nos arraiais a presença dos escravos de ganho era intensa
e eles trabalhavam fora, sem controle ou supervisão direta. Era o caso
de mulheres escravas, em geral mais velhas, que moravam sozinhas em
quartos de aluguel e sustentavam seus filhos e netos. Elas deviam às pro-
prietárias, a cada semana, certa quantia estipulada ou, mais comumente,
quatro dias de jornal, guardando os outros para si. Conforme analisa Ma-
ria Odila Dias, a semana de quatro dias era costume entre as africanas co-

36
MARIA APARECIDA OLIVEIRA LOPES E FRANCISCA MÔNICA RODRIGUES DE LIMA

merciantes da costa ocidental da África (do Marfim, do Ouro, do Congo,


Senegal, Daomé).
O comércio de rua e a prostituição foram aspectos da vida urbana
presentes nas observações de viajantes e contemporâneos. Algumas se-
nhoras brancas negavam os tratos ilícitos com suas escravas. A prosti-
tuição foi secundária, casual e complementadora de outros recursos de
ganho para a escrava lavadeira, negociante ou vendedora, que morava em
quartos alugados, e tinha a possibilidade de juntar-se com companheiros
fixos, escravos, às vezes, forros. Para Dias, a formalização de casamentos
religiosos, por ser caro demais, não tinha sentido para a vida cotidiana
do escravo, assim como não era prática da maioria da população livre e
pobre. O casamento foi alvo de preocupação da Igreja e das classes domi-
nantes, porém, distante da prática usual da população.
Os traços dos costumes africanos permearam a prática do comércio
de rua, onde se recrutava uma maioria de escravas recém-chegadas do
tráfico e em pleno processo de “aculturação.” Conforme afirma a histo-
riadora, a documentação sobre a predominância das escravas, apesar de
esparsa, se consubstancia em anúncios de jornais e dados da população e
informa a origem dos escravos e a predominância numérica das escravas,
de Angola e de Moçambique, que praticavam um comércio ambulante
e feiras de comestíveis e de gêneros de primeira necessidade. Vale re-
gistrar ainda as práticas de comércio do Daomé e do Congo, realizadas
por escravas muçulmanas, principalmente iorubanas, que completavam
o trabalho doméstico com quitandas e pequenas vendas noturnas. As es-
tratégias lançadas pelas vendedoras de ganho, as mesmas que moravam
em quartos de aluguel pela cidade, permitiu-lhes comprar a liberdade e
tornar-se líderes em espaços de convívio social e religioso. O cotidiano
de trabalho e de lazer destas mulheres alternava-se com os cantos do co-
mércio ambulante.
Raquel Soihet, no livro Em condições femininas e formas de violência
(1989), realizou um trabalho referente à criminalidade feminina no Rio
de Janeiro, no período de 1890 a 1920, e advertiu que as mulheres não se
encaixavam no padrão universal de mulher. Nesse sentido, as mulheres em
foco não se adaptaram às características dadas como universais ao sexo
feminino: submissão, recato, delicadeza, fragilidade, etc. Elas trabalhavam

37
NADA DE NOVO, TUDO OUTRA VEZ: REFLEXÕES SOBRE A SOLIDÃO DA MULHER NEGRA

muito e, em sua maioria, não eram formalmente casadas, brigavam e pro-


nunciam palavrões, fugindo, em grande escala, aos estereótipos que lhe
eram atribuídos. Mônica Velloso (1999) resgata a memória dos negros baia-
nos na “cidade moderna”, no caso, o Rio de Janeiro, do final do século XIX até
a primeira década do século XX, e destaca a liderança que as mulheres negras
baianas exerceram como forma de coesão de uma cultura que foi perdida ou
desarrumada durante o processo de escravidão. Elas participaram ativamen-
te da criação de suas próprias organizações de ranchos, cordões, terreiros,
entre outras, incorporando o poder informal e construindo poderosas redes
de sociabilidade. Marginalizadas da sociedade global, destituída de cidadania
e de identidade, elas criaram novos canais de comunicação sócio-políticos.
Confirmou-se uma tradição entre as mulheres baianas: a prática de se
agruparem em torno de pequenas corporações de trabalho, como comér-
cio de doces e salgados, costuras e aluguel de roupas carnavalescas. Nor-
malmente, essa solidariedade era ditada pelos laços de nação e religião.
Esse tipo de relação predominou nas famílias extensivas que se diferen-
ciavam do modelo de família burguesa. A literatura que trata da família
de mulheres negras informou que a negra, no período da escravidão e nos
primeiros tempos de liberdade, foi a viga mestra da família e da comuni-
dade negra. É nessa perspectiva que as mulheres negras tornam-se gran-
des mães-de-santo ou zeladoras, constituindo-se como transmissoras e
guardiãs das tradições religiosas e culturais.

Da solidão nas relações afetivas à solidão intelectual

A antropóloga Ana Claudia Pacheco, no livro Mulher negra: afetivi-


dade e solidão (2013), cita Frantz Fanon para destacar como os marca-
dores raciais influenciam as preferências afetivas. Nesse sentido, o autor
em Pele Negra, Máscaras Brancas (1983), analisa as relações afetivas entre
a “mulher de cor” e o homem branco; entre o “homem de cor” e a mu-
lher branca, no período da colonização francesa nas Antilhas. Ao tratar
deste período e contexto cultural, Fanon observou o racismo como um
sistema de opressão que se expressa no corpo, na linguagem, na imagem,
na sexualidade, no campo da afetividade e na regulação das preferências
afetivo-sexuais dos indivíduos.

38
MARIA APARECIDA OLIVEIRA LOPES E FRANCISCA MÔNICA RODRIGUES DE LIMA

No Brasil, as ideologias veiculadas pelas teorias do luso-tropicalis-


mo marcaram as escolhas dos parceiros afetivo-sexuais entre homens e
mulheres brancos(as), negros(as) e mestiços(as) na sociedade. Os ditos
populares “branca para casar, mulata para f....” e “negra para trabalhar”,
evocados e legitimados na obra freyreana atuaram como elementos estru-
turantes das práticas sociais e afetivas dos indivíduos. Conforme indicam
alguns estudos, a miscigenação brasileira é uma prática cultural realizada
mais pela preferência afetivo-conjugal de homens negros por mulheres
brancas, do que o contrário. Esta realidade refuta a existência da demo-
cracia nas relações sexuais-raciais no Brasil.
Nina Rodrigues tinha uma concepção negativa da mistura racial e
uma visão pessimista em relação ao destino da nação. No processo de
transição vivido pela nação brasileira, após a abolição da escravatura, Ro-
drigues ficou intrigado com o contato (íntimo) crescente entre negros e
brancos. Na sua obra Os Africanos no Brasil (1932) afirmou que, nos Esta-
dos Unidos, os casamentos inter-raciais e o contato sexual entre negros e
brancos foram veementemente repelidos, enquanto que, no Brasil, a imi-
gração negra se integrou e se misturou com os brancos, o que explicaria o
progresso da sociedade norte-americana.
Na década de 1930, com o declínio das teorias do racismo cientí-
fico, os estudos de Gilberto Freyre inaugurariam uma nova linha in-
terpretativa referente às relações raciais brasileiras introduzindo um
marco diferencial entre a sua teoria e as teorias racistas do século XIX.
Mais do que substituir o conceito de “raça” pelo de “cultura”, o enfo-
que analítico deste autor lançou o leitor para os “novos objetos” da
história: a família, a intimidade e a sexualidade. Na sua abordagem, a
miscigenação, como resultante do contato entre negros(as), índios(as)
e brancos(as), teria colaborado para uma maior reciprocidade racial-
-sexual-afetiva entre os três povos que formaram o Brasil. A miscige-
nação colaborou para atenuar as desigualdades raciais entre senhores
e escravos no período colonial.
As pesquisas de Freyre foram inovadoras e sofreram críticas na for-
ma como interpretou e “adocicou” o sistema racial colonial brasileiro. A
crítica mais frequente aos seus trabalhos refere-se à criação do mito da
democracia racial. A miscigenação arranjaria e acomodaria os conflitos

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NADA DE NOVO, TUDO OUTRA VEZ: REFLEXÕES SOBRE A SOLIDÃO DA MULHER NEGRA

étnico-raciais entre as três raças que formaram o Brasil, camuflando-se a


violência do sistema racial e patriarcal.
Giacomini (1988) contestou a tese de Freyre no que se refere à con-
cepção de “liberdade sexual/sensual” da mulher negra no sistema es-
cravista. Nas palavras dela, a lógica patriarcal-escravista se apropriou
do trabalho da escrava como ama-de-leite, cozinheira, arrumadeira,
mucama dos filhos da família branca, além de seu corpo como merca-
doria nas investidas sexuais dos senhores. Conforme aponta a autora,
as relações entre senhores e escravas, das amas-de-leite com a família
patriarcal, não foram construídas sobre laços suaves de afetividade e
reciprocidade. A escrava era um objeto de desejo dos senhores que sa-
ciavam suas taras por meio de ataques e estupros contra o corpo da
mulher negra/mestiça.
Na obra A Cidade das Mulheres, Ruth Landes trata de sua incursão
etnográfica nos principais terreiros de Candomblé da Bahia observando
o comportamento das pessoas negras nos cultos afro-baianos e destacan-
do a importância do poder feminino dentro dos Candomblés (LANDES,
1967, p. 2). Nessa perspectiva, percebeu as relações afetivas e sociais entre
homens negros e mulheres negras nas casas de Candomblé. Ao destacar o
poder das mulheres negras nesses espaços registra algumas passagens da
vida afetiva e das relações de gênero. Ela observou que as Yalorixás (mães
de santo) e as outras sacerdotisas (filhas de santo) eram mulheres negras
que “comandavam” tudo nos templos sagrados e que gozavam de muito
prestígio social e religioso dentro e fora dos terreiros. Landes referiu-se
às mulheres do candomblé como grandes “matriarcas” que contrariavam
a cultura patriarcal da sociedade tradicional baiana.
No entanto, a autora sublinhou a pobreza de algumas sacerdotisas e
as suas responsabilidades enquanto mulheres chefes de família. Consta-
tou que boa parte dessas mulheres negras, religiosas e pobres, vivia soli-
tária, não tinha marido para dividir as despesas da casa e nem a respon-
sabilidade na educação com os filhos (LANDES, 1967, p. 48).
Algumas pesquisas demográficas tiveram uma importância signifi-
cativa acerca da problemática das relações afetivas da mulher negra. Tais
estudos apontam para a predominância de um modelo de relações conju-
gais-afetivas endogâmicas e exogâmicas da população brasileira. A partir

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MARIA APARECIDA OLIVEIRA LOPES E FRANCISCA MÔNICA RODRIGUES DE LIMA

desses estudos extraíram-se pistas acerca das escolhas afetivas entre ne-
gros e brancos e sobre a “solidão” das mulheres negras.
Nas palavras de Ana Claudia Pacheco, as transformações ocorridas
na família, na sexualidade e nas relações de gênero, nas sociedades mo-
dernas, foram causadas pelas mudanças de valores do ideal do amor ro-
mântico, os quais que se disseminaram na sociedade burguesa e se choca-
ram com a o “amor confluente”. O amor confluente depende de critérios
sociais externos para se efetivar, como raça, classe, sexo, idade etc. Gid-
dens (1993), citado por Pacheco, tinha uma explicação para as relações
amorosas na modernidade. Segundo o autor, o ideal de amor romântico
tende a fragmentar-se, em função da autonomia sexual emancipatória das
mulheres, provocando um choque entre o “amor romântico” e o “amor
confluente”. O amor romântico pode ser definido como infinito, “para
sempre” e o “amor confluente” seria uma espécie de amor real.
Giddens observou a diferença, principalmente, para as mulheres, en-
tre amor carnal e amor ideal. O amor ideal seria uma espécie de amor
romântico propagado pelo pensamento ocidental que, a partir do século
XVIII, considerou que o amor vence tudo, vence todas as barreiras sociais
e culturais entre os indivíduos. A idealização do amor foi frustrada pela
realidade concreta ou pelos interesses dos indivíduos nas sociedades con-
temporâneas (PACHECO, 2013, p. 284).
Bell Hooks (2000), analisando o contexto norte americano, acentuou
que os sistemas de dominação e exploração geraram uma dificuldade de
amar entre os negros e as negras no período escravista e pós-escravista.
Para a autora, as mulheres negras aprenderam a reprimir as emoções em
detrimento da luta pela sobrevivência. Para Hooks, as mulheres negras
precisam criar condições para viver plenamente sem negar sua necessida-
de de conhecer o amor.
Vale a pena também observar como a questão do corpo e suas relações
afetivas foi pensada pelas feministas negras, sobretudo o enfrentamento
da solidão nas relações afetivas e no trabalho intelectual. As teorias for-
muladas por feministas negras norte-americanas e latino-americanas con-
tribuíram para as pesquisas nos contextos contemporâneos. Essas teorias
enfatizaram a necessidade de pensar a produção do conhecimento a partir
da experiência da mulher negra. Notam-se, nestes estudos feministas, uma

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NADA DE NOVO, TUDO OUTRA VEZ: REFLEXÕES SOBRE A SOLIDÃO DA MULHER NEGRA

crítica à produção científica hegemônica por estar permeada pelos valores


dominantes construídos pelo conhecimento androcêntrico, eurocêntrico e
heteronormativo.
No contexto americano, as feministas e intelectuais negras formula-
ram algumas teorias nos anos de 1970 e 1980 avaliando a ciência como
um todo e, em particular, o “sujeito feminista” universal. Parte deste mo-
vimento criticava as feministas e pesquisadores que pensavam a expe-
riência das mulheres como se fosse única, sem reconhecer a diversidade
cultural, étnica, racial, social e sexual. As intelectuais requisitaram a va-
lorização do conhecimento produzido pelos grupos subalternos que ficou
conhecido como a “metodologia dos oprimidos”. Nesta perspectiva, as
mulheres negras produziram um conhecimento científico significativo
situado no contexto em que foram elucidadas as várias experiências his-
tóricas de opressão – gênero, raça, classe e sexualidade.
Segundo a socióloga Nubia Moreira, na dissertação O feminismo negro
brasileiro, o movimento feminista surgiu num período de transformação
dos paradigmas das Ciências Sociais pregando a igualdade de uma mulher
universal. Este movimento era composto de mulheres das camadas médias
intelectualizadas próximas às minorias ligadas aos movimentos negros, po-
pulares ou rurais favorecendo a absorção das ideias feministas.
A proposta de existência do feminismo negro colocou as mulheres
frente a um movimento que reclamava para si uma representatividade
tradutora das próprias demandas das mulheres negras. Do ponto de vista
das feministas negras, era necessário desmontar a imagem e as represen-
tações sobre as mulheres negras como corpos meramente sexualizados,
além da figura das mulatas ou do servilismo das negras-pretas ou das
mães-pretas.
Na década de 1970, a feminista negra brasileira, Lélia Gonzales, dis-
corre sobre a figura da mãe-preta no artigo “Racismo e sexismo na cultu-
ra brasileira” defendendo que foi exatamente a mãe negra quem deu uma
“rasteira na raça dominante”:

É através dela que o obscuro objeto do desejo [...] acaba se trans-


formando na vontade de comer carne na boca branca que fala por-
tuguês. O que a gente quer dizer é que ela não é esse exemplo

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MARIA APARECIDA OLIVEIRA LOPES E FRANCISCA MÔNICA RODRIGUES DE LIMA

extraordinário de amor e dedicação totais como querem os bran-


cos e nem tampouco essa entreguista, essa traidora da raça como
querem alguns negros muito apressados em seu julgamento. Ela,
simplesmente, é a mãe. É isso mesmo, é a mãe. Porque a branca,
na verdade, é a outra. Se assim não é, a gente pergunta: quem é que
amamenta, que dá banho, que limpa cocô, que põe pra dormir, que
acorda de noite para cuidar, que ensina a falar, que conta história
por aí afora? É a mãe, não é? Pois então. Ela é a mãe nesse bara-
to doido da cultura brasileira. Enquanto mucama, é a mulher;
enquanto bá, é a mãe. A branca, a chamada legítima esposa, é
justamente a outra que, por impossível que pareça, só serve para
parir os filhos do senhor. Não exerce a função materna. Esta é efe-
tuada pela negra. Por isso a mãe preta é a mãe (GONZALES, 1982,
p. 33, grifos nossos).

A “sexualização” dos corpos foi lançada como pauta política, como


negação desse lugar estereotipado – da boa de cama ou da preta servil
e serviu como munição geradora da força política e estímulo para orga-
nização das mulheres negras, no momento em que elas tomavam a con-
dução de suas vidas – o que significou lutar contras os estereótipos e as
opressões que recaíam sobre elas ou sobre o seu cotidiano.
Desafiando a ideologia do patriarcado, as feministas implementaram
lutas em busca de igualdade de direitos políticos que lhes possibilitaria
transitar no mundo público. As mulheres negras reclamaram que a cria-
ção da universalidade mulher propagada pelas feministas não era capaz de
abarcar a singularidade das mulheres negras que histórico e culturalmente
foram responsabilizadas pela sobrevivência dos seus filhos e dos outros.
Há vestígios da participação de mulheres negras no Encontro Na-
cional de Mulheres realizado em março de 1979. A apresentação do Ma-
nifesto das Mulheres Negras, durante o Congresso de Mulheres Brasi-
leiras, em junho de 1975, marcou o primeiro reconhecimento formal de
divisões raciais dentro do movimento feminista brasileiro. Além disso,
chamou atenção para as especificidades das experiências de vida, das re-
presentações e das identidades sociais das mulheres negras e sublinhou
o impacto da dominação racial em suas vidas. Nesse sentido, ao desmas-
carar o quanto a dominação racial é marcada pelo gênero e o quanto a
dominação de gênero é marcada pela raça, o Manifesto destacou que as

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NADA DE NOVO, TUDO OUTRA VEZ: REFLEXÕES SOBRE A SOLIDÃO DA MULHER NEGRA

mulheres negras foram vítimas de antigas práticas de exploração sexual


(MOREIRA, 2007, p. 99).
Segundo Moreira, a partir do Manifesto das Mulheres Negras foi
consolidado um discurso feminista, uma vez que, em décadas anteriores,
havia uma rejeição por parte de algumas mulheres negras em aceitar a
identidade feminista. Elas não reconheciam nas suas bandeiras o feminis-
mo porque o feminismo era uma coisa feia de “Bety Fridman, de mulher
feia que rasgava soutien, de mulheres lésbicas que muita gente não queria
se identificar”. O feminismo da década de 1980 no Brasil era o feminis-
mo do direito ao corpo e as mulheres negras reivindicavam, para além
das questões do corpo, o direito ao trabalho, à creche, à casa, à vida, à
autoimagem. Algumas de suas pautas não eram consideradas feministas
(MOREIRA, 2007, p. 100).
A proximidade do movimento de mulheres negras com o movimento
feminista apresentou alguns conflitos no que dizia respeito à condução
das demandas prioritárias e, ao mesmo tempo, deu sustentação político-
-prática às organizações das mulheres negras. Porém, as feministas fo-
ram formadas para desconhecer as desigualdades raciais, pensar o Brasil
como uma democracia racial e, apesar de perceber como a diferença de
sexo era utilizada na reprodução das desigualdades, não conseguiram
alcançar como as diferenças raciais foram trabalhadas na recriação dos
mecanismos de discriminação racial.
Ainda em diálogo com as feministas negras, destaca-se agora o pen-
samento de outra ativista para aprofundar o debate sobre corpo, relações
e intelectualidade. Bell Hooks (1995), uma das expoentes do movimento
negro feminista norte-americano, no texto Intelectuais negras, afirmou
que é difícil ser intelectual negra na sociedade anti-intelectual norte-a-
mericana. Sua escrita permite paralelos emblemáticos com a experiência
das mulheres negras e intelectuais no Brasil. Para Hooks, nos círculos
políticos progressistas o trabalho das intelectuais negras raramente é
reconhecido. Dessa forma, tal desvalorização torna difícil para os gru-
pos marginalizados considerarem importante o trabalho intelectual. Na
história dos afro-americanos, nos Estados Unidos, surgiram intelectuais
negros de todas as classes. Contudo, a decisão de trilhar conscientemente
um caminho intelectual foi sempre uma opção excepcional e difícil. No

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MARIA APARECIDA OLIVEIRA LOPES E FRANCISCA MÔNICA RODRIGUES DE LIMA

Brasil, as oportunidades educacionais cresceram, mas a escolha do cami-


nho intelectual continua problemática.
Hooks pensou o trabalho intelectual casado com a política do cotidia-
no e optou por tornar-se uma intelectual, visto que o trabalho intelectual
lhe permitiria entender sua realidade e o mundo a sua volta. Essa experiên-
cia lhe fez compreender que a vida intelectual não está dissociada dos laços
com a comunidade negra. Confirmou que os líderes negros do século XIX
sabiam que o trabalho intelectual fazia parte da luta pela libertação. Por
isso, angariaram esforços para passar de objeto a sujeito das pesquisas, na
tentativa de descolonizar e libertar suas mentes (HOOKS, 1995, p. 464).
Nos Estados Unidos, ao se escrever sobre os eruditos negros, os pes-
quisadores focalizaram a vida e obra de homens. A obra de Harold Cruse,
The Crisis of the Negro Intellectual (A crise do intelectual negro), e o en-
saio de Cornet West, O Dilema do Intelectual Negro, não contemplaram
a vida intelectual das negras. Nas palavras de Hooks, os autores não as
reconhecem apesar de desempenharem um papel importante como pro-
fessoras, pensadoras, críticas e teóricas culturais na vida negra. A maioria
dos seus alunos, quando pensa em grandes intelectuais, citam os nomes
de intelectuais como Du Bois, Delaney Garvey, Malcolm X e até contem-
porâneos como Cornel West e Henry Louis Gates. Com muita insistência
citam as escritoras negras contemporâneas famosas como Alice Walker,
Toni Morrison e Angela Davis. Desconhecem as obras das intelectuais
negras do século XIX e as pensadoras negras críticas como Anna Juba
Cooper, Mary Church Terrel e Ida B. Wells.
O conceito ocidental sexista/racista eliminou a possibilidade da
evocação de lembranças da mulher negra como intelectual. Acredita-se
que a resistência ativa pode exigir o direito de afirmar uma presença
intelectual negra. O sexismo e o racismo atuam juntos e perpetuam uma
representação da negra na consciência cultural coletiva, uma represen-
tação ligada a ideia de que a mulher negra está para servir aos outros.
Como já foi dito anteriormente, da escravidão à atualidade, o corpo da
negra tem sido visto pelos ocidentais como uma presença orgânica pró-
xima da natureza animalesca.
Hooks tratou das mulheres assassinadas como bruxas na sociedade
colonial americana. Entre elas, as negras foram vistas historicamente

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NADA DE NOVO, TUDO OUTRA VEZ: REFLEXÕES SOBRE A SOLIDÃO DA MULHER NEGRA

como encarnação de uma perigosa natureza feminina, como um corpo


sem mente. Daí a utilização de corpos femininos negros na escravidão
como incubadoras para a geração de outros escravos. Para justificar a
exploração masculina branca e o estupro das negras durante a escravidão,
a sociedade produziu uma iconografia de corpos de negras dotados de
sexo, erotismo e primitivismo. O fato é que ainda persiste a aceitação cul-
tural dessas representações. Dentro das hierarquias de sexo/raça/classe
dos Estados Unidos as negras sempre estiveram no nível mais baixo e o
mesmo pode ser pensado para as outras diásporas.
As representações globais nos meios de comunicação de massa con-
temporâneos identificam as mulheres negras como aberrações primitivas
descontroladas, selvagens sexuais desqualificadas e/ou prostitutas onde
ainda existe o estereótipo da mãe preta. Registra-se, mais uma vez, a pre-
sença feminina negra como significada pelo corpo, a construção de mu-
lher como mãe e um peito amamentando e sustentando a vida de outros
(HOOKS, 1995, p. 465).
Nos Estados Unidos, as empregadas ou babás negras não são neces-
sariamente mulheres negras, mas, como afirma Hooks, as suposições ra-
cistas e sexistas de que as negras são mais capazes para cuidar dos outros
permeiam o pensamento. As negras de diferentes segmentos sociais, pro-
fessoras universitárias e empregadas domésticas se queixam dos colegas
que lhes pedem que assumam papeis de zeladoras, que sejam suas consul-
toras, orientadoras e babás. O mundo branco e o mundo negro criam tais
expectativas em relação às mulheres negras, homens negros e crianças
negras conferem ainda o papel de servidão para as mulheres negras sen-
do. Tal papel é reforçado nas comunidades negras pela ênfase no ensino
religioso, na necessidade do trabalho abnegado, como a mais elevada ma-
nifestação da caridade cristã. Coletivamente, muitas negras internalizam
a ideia de que devem estar sempre prontas para atender às necessidades
dos outros.
A insistência cultural para que as negras sejam vistas como empre-
gadas domésticas, independentemente do status no trabalho ou carreira,
bem como a aceitação passiva desses papéis pela mulher negra, consti-
tuem-se como uma barreira que impede que mais negras escolham tor-
nar-se intelectuais. O trabalho intelectual também não é bem visto pela

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MARIA APARECIDA OLIVEIRA LOPES E FRANCISCA MÔNICA RODRIGUES DE LIMA

sociedade. Um dos estereótipos culturais do intelectual é o da pessoa que


se preocupa com as próprias ideias, é um trabalho de pessoa egocêntrica.
Até nas áreas onde o trabalho intelectual é respeitado, ele é visto,
na maioria das vezes, como um trabalho que resulta da concentração e
envolvimento em si mesmo. Nas conversas de Hooks, com acadêmicas e
não acadêmicas negras, um dos temas constantes que surgiu foi o receio
de parecer egoísta e não servir aos outros. Muitas negras descreveram
experiências de infância em que foram desestimuladas a falar e ler sobre
assuntos diferentes daqueles relacionados à comunidade negra e às tare-
fas domésticas (HOOKS, 1995, p. 497).
As pensadoras negras enfrentam o desafio de dedicar tempo e energia
ao trabalho intelectual e ficam insatisfeitas porque precisam se desdobrar
para atender às exigências múltiplas de suas vidas. Queixam-se do tempo
para seguir o trabalho intelectual livre e manifestam o receio de que um
empenho apaixonado às metas intelectuais poderia provocar isolamento
e solidão. Em suas entrevistas com estudantes negras, Hooks narrou que
elas não pareciam ávidas por questionar os motivos pelos quais relutam
em reivindicar o trabalho intelectual como digno de atenção básica. Con-
centrou suas entrevistas, particularmente, em estudantes negras que in-
terromperam o curso universitário no momento de escrita da tese final.
Elas compartilharam sentimentos contraditórios sobre o valor acadêmico
e/ou trabalho intelectual.
As estudantes negras que se sentiram culpadas em relação ao uso do
tempo não conseguiram reivindicar ou criar espaço para a escrita solitá-
ria, sobretudo, as que são mães. As estudantes solteiras tiveram que lutar
com preocupações materiais e de sustento para concentrar-se intensa-
mente, pensar e escrever. As estudantes sem pressões materiais ou re-
lacionais relutaram tanto quanto as menos favorecidas economicamente
para reivindicar o trabalho intelectual como vocação básica. Para a auto-
ra, o medo do isolamento da comunidade, ou a sensação de que a vida
só é bem vivida se for desfrutada em comunidade, foi identificado como
uma barreira impeditiva para que as negras se entregassem de corpo e
alma ao trabalho intelectual.
Os trabalhadores negros e pobres não foram criados em ambien-
tes que valorizassem abertamente a prática de observar a passagem

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NADA DE NOVO, TUDO OUTRA VEZ: REFLEXÕES SOBRE A SOLIDÃO DA MULHER NEGRA

do tempo. Ao analisar como a questão do tempo foi apreciada pelos


diversos segmentos de trabalhadoras com mulheres negras, Hooks fez
a seguinte explanação:

Na discussão com outras negras descobri que nosso tempo para


pensar normalmente só ocorria quando se haviam terminado os
afazeres domésticos. Era sempre tempo roubado. E às vezes a gente
tinha de escolher entre ter esse espaço ou prazeres relacionados a
ficar com os amigos ou a família. As intelectuais negras sabem o
valor do tempo passado sozinhas. Muitas pensadoras negras que
entrevistei falaram que acham difícil sentar-se e escrever durante
longos períodos de tempo. Parte dessa dificuldade se deve ao fato
das pessoas não saberem como ficar à vontade em isolamento com
uma atividade solitária. Certamente nem todo trabalho intelectual
ocorre em isolamento (algumas de nossas melhores ideias surgem
em contextos de troca) mas essa realidade coexiste com a de que a
contemplação solitária de ideias é um componente muito impor-
tante do processo intelectual. Para sentir que temos direito a um
tempo solitário nós negras temos de romper com as ideias sexistas/
racistas sobre o papel da mulher (HOOKS, 1995, p. 474).

A autora cita o livro de Cornel West, O Dilema do Intelectual Negro,


para dizer que os intelectuais negros enfrentam um modelo burguês de
atividade intelectual. Por isso, eles têm sempre a necessidade de demons-
trar e defender a humanidade dos negros incluindo sua habilidade e ca-
pacidade de raciocinar logicamente.
Em concordância com Hooks, acreditamos que neste contexto social ca-
pitalista de supremacia patriarcal branca não é possível tornar uma intelec-
tual sem descolonizar a mente. As mulheres negras não podem tornar-se aca-
dêmicas bem-sucedidas sem passar pelo processo de manutenção da mente
colonizada. As que empenham-se em tornar-se intelectuais precisam con-
trabalançar a baixa estima constante e ativamente imposta às negras numa
cultura racista/sexista e anti-intelectual que desacredita na sua capacidade
de aprender. É preciso conscientizar-se de que seu trabalho é valioso mesmo
que não seja julgado assim dentro de estruturas socialmente legitimadas.
A principal prioridade dos intelectuais negros é a criação ou reati-
vação de redes institucionais que promovam a insurgência negra e que

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abranjam intelectuais negros que não tenham nenhuma filiação institu-


cional formal. A tarefa central dos intelectuais negros pós-modernos se-
ria estimular práticas alternativas desalojando discursos e poderes predo-
minantes e eliminando o sexismo e a opressão, por exemplo.
Um passo importante é a ação das diversas comunidades negras na
criação de estratégias que enfoquem os problemas de gênero, a leitura e o
debate público dos trabalhos de estudiosas como uma forma de estimular
os jovens estudantes. Essas atividades podem ser promovidas por comuni-
dades sem qualquer contato com instituições acadêmicas. Segundo Hooks,
é preciso transcender a palavra escrita já que tantos companheiros negros
que mal são alfabetizados ou são analfabetos. É preciso falar em igrejas,
lares, escolas, nos locais formais e informais sobre as questões relevantes
da população negra. O trabalho intelectual arrasta as mulheres negras para
perto do sofrimento ao mesmo tempo em que permite a elas trabalharem
com ideias catalisadoras da transformação de suas vidas e consciências,
principalmente quando o trabalho intelectual surge de uma preocupação
com a mudança social e política, quando esse trabalho é dirigido para as
necessidades das pessoas e para a solidariedade nas comunidades.

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VELLOSO, Monica Pimenta. As tias baianas tomam conta do pedaço:


espaço e identidade cultural no Rio de Janeiro. In: Estudos Históricos,
Rio de Janeiro, v. 3, n

52
MULHERES NEGRAS E EDUCAÇÃO: (RE)
CONSTRUÇÃO DE UMA HISTÓRIA DE
VITIMIZAÇÃO E A POSSIBILIDADE DE
EMPODERAMENTO

Vanda Aparecida de Araújo1


Thiago Batista Costa2
Sara Santos Xavier3

Introdução

O presente trabalho foi elaborado majoritariamente para discutir de


que maneira ocorreu a construção da história das “mulheres negras”, que
foram e ainda são vitimizadas não somente por um histórico escravista,
mas por uma constituição socioeconômica em que não se localiza o en-
trecruze da democracia com a igualdade que propicie às cidadãs estar no
cerne das relações democráticas, onde sejam reconhecidas suas garantias
constitucionais com vistas à dignidade da pessoa humana.
Todavia é com o intuito de estimular esta reflexão crítica que focare-
mos nosso trabalho no reconhecimento da dignidade que lhes foi tirada,

1  Mestre e Doutoranda em Educação – Programa de Pós-Graduação em Educação


(PPGE). Universidade Nove de Julho (UNINOVE). E-mail: araujo.vanda.ap@gmail.com

2  Mestre em Educação – Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE). Universidade


Nove de Julho (UNINOVE). E-mail: thiagocosta5@hotmail.com

3  Mestranda em Educação – Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE).


Universidade Nove de Julho (UNINOVE). E-mail: sara.xavierdossantos@gmail.com

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MULHERES NEGRAS E EDUCAÇÃO: (RE) CONSTRUÇÃO DE UMA HISTÓRIA DE VITIMIZAÇÃO E A
POSSIBILIDADE DE EMPODERAMENTO

principalmente com relação à educação, além de uma série de outras for-


mas de arbitrariedades: nas relações matrimoniais, nas relações familia-
res, profissionais, acadêmicas, na mídia e nas instituições. Os indicadores
sociais evidenciam a leitura das desigualdades de gênero, de raça e de
classe no contexto da educação, mercado de trabalho e renda das mulhe-
res negras no Brasil, o que permite afirmar que a atual estrutura desigual,
impiedosa da sociedade brasileira se estampa ora simbólica, ora explícita,
mas não menos perversa.
Nessa esteira, apontaremos que o feminismo negro é um conceito que
vem sendo forjado na luta do movimento de mulheres negras pelo reco-
nhecimento das especificidades do grupo no contexto da luta feminista e
do combate ao racismo.
Embora a matriz do preconceito contra a mulher negra tenha uma
ligação clara com a historicidade desse grupo social, é interessante perce-
ber como a atual conjuntura social tende a legitimar e, de alguma manei-
ra, validar essa impressão. Quando se constata que, atualmente, a mulher
negra ocupa posições de trabalho inferiores em relação a homens brancos
e mulheres brancas, que tem uma jornada de trabalho doméstico mais
extenuante, é possível utilizarmo-nos desses dados para inverter a lógica.
Sinaliza-se que o preconceito tem um reflexo na realidade, quando na
verdade, essa realidade se mantém, justamente por conta de uma socie-
dade desigual que perpetua as diferenças e a discriminação. Se não con-
siderarmos o contexto sociocultural e essa lógica perversa, perceberemos
como os preconceitos são retroalimentados. Assim, quando notamos que
a mulher negra continua ocupando um lugar de pouco destaque no mer-
cado de trabalho, que uma grande parte ainda pertence às camadas mais
pobres da população (o que se soma a tantos outros preconceitos que in-
feriorizam o negro e sua cultura), observamos, também, que há um movi-
mento para legitimar o preconceito e a um só tempo tende a perpetuá-lo.

Analfabetismo da mulher negra: causas e consequências

Historicamente, o Brasil beneficiou-se do trabalho escravo ao longo


de mais de três séculos, colocando à margem, à sua própria sorte o negro,
que construiu, organizou e trabalhou muito para o crescimento e desen-

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VANDA APARECIDA DE ARAÚJO, THIAGO BATISTA COSTA E SARA SANTOS XAVIER

volvimento deste país. No momento em que foi assinada a Lei Áurea4, o


negro passou a viver de forma miserável, sem trabalho, sem nenhuma
possibilidade de construir uma sobrevivência em condições da dignidade
da pessoa humana.

Ao ser abolida a escravidão, a vida não significou liberdade, mas


sim outra situação de precariedade: sem qualquer ressarcimento por
parte do Estado, sem os direitos que os brancos tinham, as possibi-
lidades de sobrevivência que lhe restavam advinham de trabalhos
sub-humanos, morar em zonas periféricas, preconceito. Ou seja, o
racismo institucionalizado e expresso nas relações sociais foi a he-
rança passada às gerações, o que se repercute, material e subjetiva-
mente, no acesso pleno aos direitos ditos essenciais e à reprodução
de desigualdades, como a educação (VILAS BOAS, 2015, p. 2).

É nesse contexto que se encontra a mulher negra, pois sua exclusão


se dá de forma muito mais perversa e repugnante. É sabido que, desde o
momento que a mulher negra chegou ao Brasil, foi-lhe imposta a condi-
ção de escravizada, sofrendo todo o tipo de exploração, inclusive violação
sexual, tendo como responsabilidade todo o serviço doméstico da Casa
Grande, além de ser requisitada como objeto sexual e ventre gerador, ama
de leite dos filhos da elite brasileira e, posteriormente, como empregada
doméstica. Todavia, mesmo com muitas limitações e sacrifícios, inicia
sua luta de resistência pela sobrevivência, contra a discriminação e o pre-
conceito, ora declarado, ora camuflado. Segundo Valente (1994), as mu-
lheres negras e mulatas em geral sofrem de tripla discriminação: sexual,
social e racial; consequentemente, tudo o que se avalia como problemáti-
ca para a população negra atinge especialmente as mulheres.
Nessa esteira é possível identificar a dificuldade encontrada pela mu-
lher negra para ter acesso e permanência numa instituição educacional.
Almeida e Alves (2011, p. 87) asseguram:

Revisitando a história da educação brasileira, que não se separa da


história do Brasil, o que se percebe é que a escola elementar, eleita

4  Lei Áurea: oficialmente, Lei Imperial n.º 3.353, sancionada em 13 de maio de 1888,
foi o diploma legal que extinguiu a escravidão no Brasil.

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MULHERES NEGRAS E EDUCAÇÃO: (RE) CONSTRUÇÃO DE UMA HISTÓRIA DE VITIMIZAÇÃO E A
POSSIBILIDADE DE EMPODERAMENTO

pela classe popular como importante espaço de acesso a cidada-


nia, consolidou-se em meio às representações sociais negativas em
relação à presença negra. A parcela da população negra que teve
acesso a tal espaço – principalmente a partir da expansão da rede,
ocorrida de maneira significativa na década de 1940 – encontrou
um ambiente hostil a tudo aquilo que caracterizava sua existência:
seus modos de vida, sua linguagem, sua cor, seu cabelo, seus cul-
tos. Tudo isso era visto como sinal de atraso, de degenerescência e
precisava, então, ser corrigido.

Nesta perspectiva, ainda hoje a situação da mulher negra no Brasil


contemporâneo se configura num prolongamento da sua realidade viven-
ciada durante o período escravista, com ínfimas mudanças, pois ela ainda
ocupa o lugar mais desprivilegiado na escala social. Numerosas pesquisas
efetuadas nos últimos anos demonstram que a mulher negra apresenta
menor nível de escolaridade, tem uma das maiores cargas de trabalho
diário, no entanto, com o menor rendimento comparado a mulheres
brancas, homens brancos e homens negros.
Vilas Boas (2015, p. 4) denuncia:

A precarização tem rosto de mulher, e negra. E se hoje não as ve-


mos nas salas de aula, as encontramos 90% das vezes limpando o
seu chão, em serviços terceirizados. Uma realidade que tende a au-
mentar conforme avança a crise econômica que acentua cortes nos
direitos sociais, chegando a nove bi na educação somente neste ano.

Destarte que a mulher negra apresenta uma história fossilizada e


oprimida de séculos, em que marca sua expulsão da escola, principal-
mente pela necessidade socioeconômica que a obriga a trabalhar ainda
muito jovem, história essa que foi cunhada como mão de obra barata para
o trabalho precário e semiescravo. Entretanto, a luta por melhores condi-
ções de acesso e permanência na educação tem que estar imbricada num
conjunto de fatores sociais, indo além do desenvolvimento das políticas
educacionais, tais como: a real democratização do ensino, moradia, servi-
ço de saúde de qualidade, além de declarar como crime a naturalização do
“local” de marginalização social, econômica e cultural em que uma socie-
dade sexista, racista, classista e lgbtfóbica insiste em manter cristalizado.

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VANDA APARECIDA DE ARAÚJO, THIAGO BATISTA COSTA E SARA SANTOS XAVIER

Segundo Tavares (2014), a luta contra uma forma de dominação que é


cada vez mais pluridimensional e multifacetada significa, perversamente,
“[...] lutar contra a indefinição entre quem domina e quem é dominado, e,
muitas vezes, lutar contra nós próprios” (SANTOS, 2010 apud TAVARES,
2014, p. 349).

Breve histórico sobre a escolarização das mulheres negras: do final


do século XIX ao início do século XXI

Almeida e Alves (2011) declaram que as políticas públicas voltadas


à escolarização formal têm grande interferência na vida de toda a socie-
dade, na medida em que podem ser responsáveis por oportunidades que
não seriam vivenciadas apenas por esforços sociais impetrados pelos in-
divíduos. Em razão disso, a ausência de políticas públicas deve ser enten-
dida como um dos fatores determinantes da exclusão educacional em que
ainda se deparam hodiernamente determinados grupos que constituem a
sociedade brasileira, tendo como exemplo as mulheres negras.
Considerando a história das mulheres negras e da sua exclusão nas
instituições de educação formal, faremos uma discussão num período en-
tre final do século XIX e início do século XXI, e de que forma a presença
ou ausência de políticas públicas voltadas à escolarização possa ter inter-
ferido no grupo em questão.
No final do século XIX, a escola popular passou a fazer parte do cená-
rio ocidental, configurando um fenômeno histórico, constituindo assim
o discurso dos republicanos no Brasil, diante das barreiras impostas pelo
abismo da desigualdade social que demarcava a sociedade brasileira. A
questão da difusão do acesso à escola, garantindo o ingresso das crian-
ças pobres, não se configurou um avanço significativo para este grupo,
uma vez que, nesse mesmo período histórico, as teorias racistas, propa-
gadas tanto na Europa como nos Estados Unidos da América, tentavam
demonstrar, de forma científica, que os negros eram inferiores aos bran-
cos. Arthur de Gobineau, que se tornou embaixador da França no Brasil,
em 1869 era um dos maiores adeptos dessa teoria. Ele assegurava que as
raças podiam ser classificadas por hierarquia, isto é, os brancos (arianos)
no topo da pirâmide e os negros na base, ocupando o lugar mais baixo

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MULHERES NEGRAS E EDUCAÇÃO: (RE) CONSTRUÇÃO DE UMA HISTÓRIA DE VITIMIZAÇÃO E A
POSSIBILIDADE DE EMPODERAMENTO

e, nesse contexto, os mestiços não tinham nenhuma classificação. Para o


intelectual, a mestiçagem levaria a civilização ao fim. Um povo mesti-
ço, como se apresenta o povo brasileiro, era, na sua perspectiva, um povo
degenerado. Dessa forma, a expansão da escola pública de muitos esta-
dos brasileiros, a partir de São Paulo, não foi o suficiente para banir seu
traço elitista e racista. A escola pública, que se abriu para recepcionar as
crianças de famílias pobres e também negras, possuía uma cultura conta-
minada pelos padrões dominantes de preconceito e discriminação racial.
Araújo (2016) declara que, na década de 1930, surgiu um movimento de
intelectuais conhecido como o Movimento dos Pioneiros, representando um
dos mais significativos e propositivos movimentos nacionais em defesa da
democratização e do movimento do escolanovismo na educação nacional.
Saviani (2008) destaca que o escolanovismo desloca a questão do intelecto
para o sentimento, do lógico para o psicológico, da cognição para os pro-
cessos pedagógicos, do esforço para o interesse, da disciplina para a espon-
taneidade, da quantidade para a qualidade. Todavia, os resultados permitem
verificar que a grande camada da população continuava fora da escola, ou
nela não conseguira permanecer. “Nesse ponto, é importante que se destaque
a questão das representações sociais e simbolismos ligados a escolarização”
(ALMEIDA; ALVES, 2011, p. 86), para que se possa conceber os fatos históri-
cos e as relações que tais circunstâncias tiveram com o grupo aqui discutido.
Almeida e Alves (2011) alertam sabiamente que não existia uma se-
quência obrigatória entre uma ou outra etapa de ensino. Pela estrutura
do sistema educacional vigente à época, o curso primário possuía caráter
de terminalidade, conferindo um diploma alusivo a um primeiro nível de
ensino. E os mesmos autores asseveram:

Assim se apresenta a trama raça e classe. O ensino secundário não


é concebido, ao menos até a Lei nº 5.692/71, como um direito dos
estudantes das classes populares. Nesse período, portanto, o acesso
ao secundário era baseado em critérios de seleção que subjetiva-
mente privilegiavam uma ideologia de classe. Entretanto, ainda que
houvesse possibilidade de romper essa barreira financeira, grande
parte da população negra ficava ainda alijada dessa etapa de ensino
em virtude dos simbolismos e, principalmente, das representações
sociais que o envolviam (ALMEIDA; ALVES, 2011, p. 99).

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VANDA APARECIDA DE ARAÚJO, THIAGO BATISTA COSTA E SARA SANTOS XAVIER

Ao analisar – no caso das mulheres negras, em particular – o Dossiê


Mulheres Negras: retrato das condições de vida das mulheres negras no
Brasil (MARCONDES, 2013), constata-se que sua participação no ensino
médio, entre o final do século XX e início do século XXI, manteve uma
tendência de crescimento. Ao longo de todo esse período apresentavam
uma taxa de escolarização de 14,9%. Esta mais do que triplicou na sequên-
cia histórica, chegando a 49,8%, aproximando-se dos homens brancos, que
contavam com uma taxa de 55,5%. No que lhe diz respeito, distanciaram-se
dos homens negros, com uma taxa de 37,7% no mesmo momento.
Não obstante, no ensino superior, tem-se um desdobramento de gê-
nero e raça bem mais acentuado que o observado no ensino médio. Pes-
quisas certificam que, até o final do século XX, as mulheres negras e ho-
mens negros mantinham taxas baixíssimas, um tanto estáveis e próximas.
Com base nos dados conferidos em documento5 já apontado nesse texto,
a partir de 2001, apresenta-se um ligeiro crescimento da participação das
mulheres negras e, em 2003, elas ultrapassam a taxa de 5%.
Por certo, o desenvolvimento nas políticas educacionais, num ce-
nário em que se manifesta a universalização do ensino básico e as po-
líticas de acesso ao ensino superior com parâmetros raciais, nota-se o
avanço não só de mulheres, mas também de homens negros, da mesma
forma em que se averigua a persistência de significativas desigualdades
categoriais, isto é, mulheres negras ainda se mantêm em patamar de
desigualdade, se buscarmos semelhança ao perfil das mulheres brancas
ocupadas e mais escolarizadas e/ou de homens brancos nas principais
posições de poder no país.

Movimento Feminismo Negro, Lei n.º 10.639/03 e o empoderamento


da mulher negra

O Feminismo Negro surgiu nos Estados Unidos, Canadá e Europa,


na década de 1970, como uma das expressões da teoria do ponto de vista.
Porém, repercutiu tardiamente no Brasil. Feministas negras, como Lélia

5  Dossiê Mulheres Negra: retrato das condições de vida das mulheres negras no Brasil
(MARCONDES,2013)

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MULHERES NEGRAS E EDUCAÇÃO: (RE) CONSTRUÇÃO DE UMA HISTÓRIA DE VITIMIZAÇÃO E A
POSSIBILIDADE DE EMPODERAMENTO

Gonzalez, começaram, em fins da década de 1970, a discutir sobre a mu-


lher negra, sobre questões referentes ao mercado de trabalho, à educação,
à saúde (VIANA, 2011).
Sendo assim, é importante fazer pensar que os feminismos, bem
como as identidades que os cercam, não devem ser postos como catego-
rias somente fixas e em oposição, mas antes como campos historicamen-
te contingentes de contestação dentro de práticas discursivas e materiais
(BRAH, 2006). Deve-se analisar, portanto, a problemática da subjetivida-
de e identidade para compreender a dinâmica do poder da diferenciação
social. Através desse caminho, tem sido visível perceber que um dos obje-
tivos mais marcantes do feminismo é o fato de mudar as relações sociais
de poder imbricadas no gênero (BRAH, 2006).

A partir desse ponto de vista, é possível afirmar que um feminismo


negro, construído no contexto de sociedades multirraciais, pluricul-
turais e racistas – como são as sociedades latino-americanas – tem
como principal eixo articulador o racismo e seu impacto hierárquico
de gênero em nossas sociedades (CARNEIRO, 2003, p. 51).

Entendemos que o feminismo negro, sendo um movimento político,


intelectual e de construção teórica de mulheres negras, está comprometi-
do com a mudança social e atua no campo ideológico no qual está inseri-
do (SEBASTIÃO, 2010).
De acordo com Brah (2006, p. 357),

O negro do “feminismo negro” inscrevia uma multiplicidade de ex-


periências ainda que articulasse uma posição particular de sujeito
feminista. Além disso, ao trazer para o primeiro plano uma ampla
gama de experiências diaspóricas em sua especificidade tanto local
quanto global, o feminismo negro representava a vida negra em
toda sua plenitude, criatividade e complexidade.

Mulheres negras carregam estigmas, como os de gênero e de cor, e


sofrem, de certa maneira, a combinação dessas opressões e violências,
afetando diretamente a qualidade de vida destas. Estudos mostram que o
racismo, machismo, sexismo, misoginia, entre outras formas de opressão,

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VANDA APARECIDA DE ARAÚJO, THIAGO BATISTA COSTA E SARA SANTOS XAVIER

fazem parte de um sistema que gera efeitos negativos na vida dos sujeitos
que vivenciam essas práticas (BISPO, 2013).
Seguindo nessa esteira, quando analisamos a situação da mulher ne-
gra, falando agora especificamente do Município de São Paulo, encontra-
mos, no censo demográfico do IBGE6 (2010) e nos dados apresentados
pela Secretaria Municipal de Promoção da Igualdade Racial de São Paulo
(SMPIR) no Fórum de Desenvolvimento Econômico Inclusivo, alguns in-
dicativos que reforçam ainda mais a importância da luta do movimento
feminismo negro.
Domicílios chefiados por homens negros apresentam rendimento do-
miciliar 2.6 vezes menor que os chefiados por homens brancos. Nos do-
micílios chefiados por mulheres brancas, o rendimento domiciliar era 2.3
vezes maior do que os chefiados por mulheres negras. Um homem negro
com nível médio de escolaridade, em ocupações do comércio ou serviço,
ganha em média 13.1% menos que um branco nas mesmas condições.
Para as mulheres, essa diferença é ligeiramente maior. Uma mulher negra
de nível médio e em ocupações do comércio ou serviço ganha em média
14.5% menos que uma branca na mesma condição. Para as mulheres ne-
gras com nível superior completo, ocupando cargos de gerência ou chefia,
essa diferença é ainda maior: elas ganham 37.5% a menos que mulheres
brancas com as mesmas características educacionais e profissionais.
Desde suas primeiras atuações no Brasil, em 1889, o movimento ne-
gro brasileiro tem dialogado, por meio de diversas estratégias, não so-
mente com o Estado brasileiro, mas, principalmente, com a população
negra, no intuito da quebra do estigma de inferioridade carregado por
esses e também na busca do fim do racismo e das injustiças sociais. Bus-
cando esse resgate, é possível encontrar ações políticas desenvolvidas por
negras e negros, com a finalidade em garantir direitos e igualdade para a
população negra ainda no período escravocrata (DOMINGUES, 2007).
A falsa ideia resulta na busca de valorização social e na constante
pressão de se enquadrar nos padrões esperados. A conquista de espaços
considerados importantes e ocupados por brancos se torna uma constan-
te na destruição da identidade negra. O mito da democracia racial atinge

6  Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.

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MULHERES NEGRAS E EDUCAÇÃO: (RE) CONSTRUÇÃO DE UMA HISTÓRIA DE VITIMIZAÇÃO E A
POSSIBILIDADE DE EMPODERAMENTO

também o imaginário de negros, que passam a acreditar que são os únicos


responsáveis por sua valorização social e que possuem direitos e oportu-
nidades iguais às dos indivíduos brancos (SOUZA, 1983).
Segundo Crenshaw (2002, p. 177),

A interseccionalidade é uma conceituação do problema que busca


capturar as consequências estruturais e dinâmicas da interação entre
dois ou mais eixos da subordinação. Ela trata especificamente da for-
ma pela qual o racismo, o patriarcalismo, a opressão de classe e outros
sistemas discriminatórios criam desigualdades básicas que estruturam
as posições relativas de mulheres, raças, etnias, classes e outras.

Contrariando o movimento feminista que luta pelo direito de mulhe-


res no mercado de trabalho, de acordo com Ângela Davis (1981), ao lon-
go da história, a proporção de mulheres negras que trabalharam fora de
suas residências é indiscutivelmente maior que mulheres brancas. Sendo
assim, o trabalho na vida dessas mulheres, como consequência da escra-
vidão, ocupa grau elevado de importância e diferença até mesmo as vi-
sões de feminilidade estereotipadas que negras não conseguiram alcançar
(DAVIS, 1981).
Hoolks (1995, p. 470-471) relata:

Na infância se eu não pusesse os trabalhos domésticos acima dos


prazeres de ler e pensar, os adultos ameaçavam me punir quei-
mando meus livros, proibindo-me de ler. Embora isso jamais te-
nha ocorrido, incutiu em minha consciência o senso de que era
de algum modo não apenas errado preferir ficar sozinha lendo,
pensando e escrevendo, mas também meio perigoso para meu bem
estar e um gesto de insensibilidade para com o bem estar dos ou-
tros. Na idade adulta passei anos julgando (e por isso fazendo com
que fosse) importante para mim terminar qualquer outra tarefa
por mais inconsequente que pudesse ser para só depois me dedicar
ao trabalho intelectual. Claro muitas vezes eu chegava no espaço
destinado a esse trabalho cansada, exausta e sem energia. A socia-
lização sexista inicial que ensina as negras e, na verdade, a maioria
das mulheres que o trabalho mental tem de ser sempre secundário
aos afazeres domésticos, ao cuidado dos filhos, ou a um monte de
outras atividades servis, tornou difícil para elas fazer do trabalho

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VANDA APARECIDA DE ARAÚJO, THIAGO BATISTA COSTA E SARA SANTOS XAVIER

intelectual uma prioridade essencial, mesmo quando suas circuns-


tâncias sociais ofereciam de fato recompensas por essa atividade.

A consciência do efeito do racismo e da exclusão social impulsiona o


surgimento de movimentos de mulheres negras de combate ao racismo e
sexismo, que levantam assim demandas específicas das mulheres negras
brasileiras e lutam contra as desigualdades geradas pelo gênero e raça
(CARNEIRO, 2003).
Em função do racismo associado ao sexismo, às desigualdades de
classe e desigualdades regionais, sempre há uma maior participação das
mulheres negras nas condições mais precárias em todos os conjuntos de
indicadores sociais (saúde, educação e acesso a bens e serviços). A partir
de ações afirmativas, aumenta sua participação em associações e organi-
zações de mulheres negras.
O êxito das políticas públicas educacionais, como a Lei de Cotas n.º
12.711 (BRASIL, 2012), nas universidades públicas, e a Lei n.º 10.639
(BRASIL, 2003), que inclui no currículo oficial das escolas a obrigato-
riedade do ensino da história e da cultura afro-brasileira. Esses avanços
representam uma intervenção nessas instituições para promover uma
verdadeira conquista na luta do movimento negro no Brasil.
Após a queda do regime militar, em 1985, o Movimento Negro pas-
sou a ter mais espaço nas discussões e decisões políticas. Nesse período,
a população negra obteve algumas conquistas significativas. Especifica-
mente na área da educação básica, a aprovação da Lei n.º 10.639/03, que
torna obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana
em todas as escolas, públicas e particulares, do ensino fundamental até o
ensino médio é um dos exemplos de legislação que prevê certa reparação
aos danos sofridos pela população negra na história do Brasil.
A promulgação da alteração da LDB pela Lei n.º 10.639/03 foi realiza-
da em um momento importante para o Brasil e constituiu um ato carrega-
do de simbolismo; em primeiro lugar, por tratar-se de um país que havia
acabado de eleger o primeiro Presidente da República de origem operária
e uma liderança com muita identificação com os movimentos populares.
E depois porque essa Lei foi uma das primeiras medidas do governo em-
possado, não só por responder aos compromissos com as lideranças do

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MULHERES NEGRAS E EDUCAÇÃO: (RE) CONSTRUÇÃO DE UMA HISTÓRIA DE VITIMIZAÇÃO E A
POSSIBILIDADE DE EMPODERAMENTO

movimento social negro, mas por uma pressão das fortes discussões que
se ampliavam sobre as políticas de ações afirmativas, logo após a Con-
ferência Mundial em Durban, em 2001. É importante destacarmos que
a promulgação de leis, como a referida acima, que tratam desta questão
acaba por reconhecer a falsidade ideológica de que a sociedade brasileira
é caracterizada por uma democracia étnica.
Entretanto, a palavra da Lei obrigando a inclusão da cultura africana
e afro-brasileira, por si só, não conscientiza. É fundamental que as prá-
ticas, os valores e as informações que são veiculadas no âmbito escolar
sejam ressignificados e que se desvendem as práticas de discriminação
e de intolerância presentes neste contexto, que podem gerar violências
entre alunos e entre alunos e educadores (MUNANGA, 2005).
Segundo Cavalleiro (2005), a escola e seus agentes têm demonstrado
omissão quanto ao dever de respeitar a diversidade racial e reconhecer
com dignidade as crianças e a juventude negra, e essa omissão não con-
tribui em nada para a conscientização do jovem negro em idade escolar,
gerando nesses estudantes inclusive a negação de sua identidade.
Para Candau (2003), a escola sempre teve dificuldade em lidar com
a pluralidade e a diferença. Tende a silenciá-las e neutralizá-las. Sente-se
mais confortável com a homogeneização e a padronização. Abrir espaços
para a diversidade e para o cruzamento de culturas constitui o grande
desafio a ser vencido pela educação contemporânea.

Níveis de exclusão no mercado de trabalho

Após 129 anos da publicação da Lei Áurea, o povo negro, historica-


mente excluído, continua à margem da sociedade. O acesso dessa parte da
população a bens e produtos permanece com índices bastante diferentes
quando comparado a outras etnias pertencentes à sociedade brasileira. Em
grande parte dos índices estatísticos apresentados pelo IBGE no ano de
2010, torna-se visível uma discrepância entre negros e brancos, e quando
considerado o gênero, mesmo entre os negros, as mulheres se mostram
mais uma vez desfavorecidas. Embora representantes de uma mesma etnia,
ou classe social, percebe-se que as mulheres estão submetidas a uma dupla
limitação – devido a sua etnia e, também, devido ao seu gênero.

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VANDA APARECIDA DE ARAÚJO, THIAGO BATISTA COSTA E SARA SANTOS XAVIER

Com base nesses dados, podemos discutir a ideia de um preconceito que


está presente estrutural e culturalmente no contexto brasileiro. Conforme
conceituado por Coelho e Silva (2015), preconceito pode ser caracterizado
como uma conduta que prejudica um grupo ou um indivíduo, ainda que este
“conceito” a respeito dessa pessoa/grupo não tenha correlação com a realida-
de. Assim, preconceito se firma em padrões básicos ou crenças estereotipadas.
Segundo os dados do Sistema Nacional de Informações de Gênero
(IBGE, 2010), o índice de empregabilidade da mulher branca com ensino su-
perior indicava 25,9% contra 11,2% de mulheres negras ou pardas. Tomando
esses dados de forma “crua”, mulheres com igualdade de formação ainda tem
um índice de empregabilidade mais de duas vezes inferior ao de mulheres
brancas. Qual será o motivo para que isso ocorra? Embora outras variáveis
certamente contribuam para a composição desse cenário, apontamos que
existem funções em que determinado “perfil” é requerido para preenchê-las.
E mais uma vez negros e mulheres se veem prejudicados, tendo em vista que
não há representação social de negros no imaginário cultural, que ocupam
determinadas posições, ao mesmo tempo em que, concretamente, eles não
ocupam “costumeiramente” esses lugares na vida social.
Como tentamos demonstrar, nossa cultura possui uma variedade de
estereótipos e valores (parte deles equivocados) e que são em algum nível
mantidos e instigados a permanecer pela forma como nossa sociedade se
organiza. Também temos que perceber esse pano de fundo em que a vida
social se organiza; não é algo que acontece automaticamente. A reflexão é
algo imprescindível para que essa estrutura seja exposta e, assim, possa ser
modificada. Não obstante a educação é um instrumento fundamental no sen-
tido em oferecer aos indivíduos as ferramentas para se notar e compreender a
realidade que os cerca. Desse ponto de vista, a inserção em melhores coloca-
ções no mercado de trabalho ou a aquisição de um maior nível de instrução
formal são elementos secundários. Sem a ressignificação do lugar ocupado
pela mulher negra, títulos e cargos ainda estarão vazios de sentido.

Educação é o caminho

Esse é um dos “mantras” repetido a exaustão por políticos em toda e


qualquer campanha política. Apesar de banalizada, a sentença se mostra

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MULHERES NEGRAS E EDUCAÇÃO: (RE) CONSTRUÇÃO DE UMA HISTÓRIA DE VITIMIZAÇÃO E A
POSSIBILIDADE DE EMPODERAMENTO

factível como a única possibilidade de modificação da estrutura social


– ao menos quando consideramos um modelo emancipador, que poten-
cializa e capacita o indivíduo como protagonista de sua história. Neste
sentido, alguns passos significativos já foram dados – ainda que existam
muitos pontos que necessitem de cuidado, quer na forma desses passos,
quer em sua intensidade.
As políticas inclusivas, como primeiro ponto, foram decisivas para
proporcionar uma oportunidade de correção no desalinho entre as
ofertas a brancos e negros, bem como possibilitar acesso a um número
maior de negros à educação superior e a cargos. Apesar das críticas,
essas medidas visam um reparo histórico à população negra. No Bra-
sil, diferente de outros países, quando os escravos foram alforriados,
não tiveram direito a nada além de seus próprios corpos. Seus “donos”
estavam isentos da obrigatoriedade de lhes conferir qualquer compen-
sação pelo período em que se utilizou de sua força de trabalho. E para
piorar, assim que os negros se viram livres do jugo escravista, foram
novamente relegados à marginalidade, pois os empregadores recorre-
ram à mão de obra estrangeira (e branca), para fazer as funções ante-
riormente outorgada aos negros. Desde então coube a essa população
se organizar como podia.
Quanto à educação dessa população, mesmo pouco antes da liberta-
ção dos escravos no ano de 1888, a Reforma Couto Ferraz (BRASIL, 1854)
proibia que escravos fossem admitidos nas escolas públicas e mesmo os
negros livres tinham o acesso dificultado, pois havia veto para portadores
de doenças infecciosas e os negros eram sempre ligados a isso.
Conforme apresentamos, o acesso ao ensino significa diminuição
das diferenças. Acesso ao ensino superior significa, também, a possibi-
lidade de uma melhor qualificação profissional e consequente aumento
das chances de aquisição de cargos melhor remunerados. Segundo Go-
mes (2001, p.40-41 apud MOREIRA, 2017) as políticas inclusivas:

Concebidas com vistas ao combate à discriminação racial, de gêne-


ro e de origem nacional, bem como para corrigir os efeitos presen-
tes da discriminação praticada no passado, concebidas com vistas
ao combate à discriminação racial, de gênero e de origem nacional,
bem como para corrigir os efeitos presentes da discriminação pra-

66
VANDA APARECIDA DE ARAÚJO, THIAGO BATISTA COSTA E SARA SANTOS XAVIER

ticada no passado, tendo por objetivo a concretização do ideal de


efetiva igualdade de acesso a bens fundamentais como a educação
e o emprego, ocorram para que corrijam parte das extremas desi-
gualdades que permeiam nossa sociedade.

As ações afirmativas ganharam visibilidade a partir do ano de 2000,


reservando uma porcentagem de vagas nas universidades públicas, bolsas
de estudos, assim como em determinados cargos públicos. Essas inter-
venções parecem coerentes quando averiguamos os dados de 2011 ofe-
recidos pelo IBGE. O relatório aponta que apenas 9% dos jovens negros
entre 18 e 24 anos acessaram a universidade, enquanto 26,6 de brancos
na mesma faixa etária ingressaram no ensino superior. Esses números se
mostram mais assustadores quando fazemos uma análise por gênero. Em-
bora as mulheres sejam maioria cursando o ensino superior, tanto mulhe-
res como homens negros são percentualmente insignificantes dentro das
universidades (neste mesmo estudo).
O Brasil tem uma dívida com a população negra. Por isso o ingresso
de negras e negros na universidade, a partir das políticas afirmativas, é o
reconhecimento necessário para tentar corrigir parte das mazelas a que
foram submetidos historicamente. Com a política de cotas, o ingresso
de negras e negros dobrou na universidade. Salientamos, ainda, que há
um ganho também para os cursos que recebem essa população, pois eles
contribuem com a universidade para a produção de conhecimento, pelo
olhar do oprimido. Contudo, o Instituto Nacional de Pesquisas Educa-
cionais (INEP) aponta que apenas 6,13% concluem o curso, o que mostra
que não basta acessar a graduação, é preciso subsistir. A permanência dos
negros é muito difícil devido a não aceitação da cultura, da linguagem, do
assédio moral e dos preconceitos.
Segundo Lima (1995), o fato de 48% das mulheres pretas ocuparem o
serviço doméstico é sinal de que a expansão do mercado de trabalho para
esse público feminino não sinalizou ganhos significativos. E quando esta
barreira social é rompida, ou seja, quando as mulheres negras conseguem
investir em educação numa tentativa de mobilidade social, elas se diri-
gem para empregos com menores rendimentos e menos reconhecidos no
mercado de trabalho.

67
MULHERES NEGRAS E EDUCAÇÃO: (RE) CONSTRUÇÃO DE UMA HISTÓRIA DE VITIMIZAÇÃO E A
POSSIBILIDADE DE EMPODERAMENTO

Considerações finais

Segundo Bourdieu (1997), na compreensão dos sofrimentos huma-


nos é necessária a confrontação com visões de mundo diferentes e muitas
vezes antagônicas, posto que fundadas em razão social. Os lugares de cada
um, ditos difíceis, necessitam ser pensados sob a ótica de representações
complexas e múltiplas a serviço da pluralidade dos pontos de vista. Nesse
contexto, o combate à discriminação racial e de gênero deve ser incorpo-
rada por toda a sociedade brasileira e não somente pelos grupos que se
identificam diretamente atingidos pelo racismo e o sexismo, no caso, as
mulheres negras, atingidas política, histórica e culturalmente pelas con-
sequências colonialistas, escravocratas e pelas relações complexas entre
estas, heranças das diretrizes dominantes masculinas, dos preconceitos
e discriminações, sendo destituídas de sua humanidade, particularmente
no seu direito à escolarização, bem como sua inserção no mercado de
trabalho, em todos os períodos históricos.
Desta feita, concebemos que seja essencial ensinar a história da Áfri-
ca e a história do negro no Brasil a partir de novas abordagens e posturas
epistemológicas, rompendo com a visão depreciativa do(a) negro(a), com
a finalidade de oferecer subsídios para a construção de uma verdadeira
identidade negra, na qual seja visto não apenas como objeto de história,
mas sim como sujeito participativo de todo o processo de construção da
cultura e do povo brasileiro. Compreender a importância da simbologia
do corpo negro, como a forma de ressignificação da sua cultura e histó-
ria é fundamental para que avancemos nas questões de autoafirmação da
criança negra. Mas, para isso, será preciso que os educadores dialoguem
com outras áreas, valorizem a produção cultural negra. Busquem cursos
de formação, que seja inicial ou em serviço, de estudos e leituras sobre a
relação corpo, cultura e identidade negra.
Assim, acreditamos que as políticas de empoderamento do movi-
mento negro feminino no Brasil são fundamentais para que criemos no-
vos referenciais, seja na literatura, na música, na academia, enfim, em
todos os espaços da nossa sociedade.
Destarte que as ações afirmativas, tais como cotas, Exame Nacional
do Ensino Médio (Enem), Programa Universidade para Todos (Prouni) e

68
VANDA APARECIDA DE ARAÚJO, THIAGO BATISTA COSTA E SARA SANTOS XAVIER

Sistema de Seleção Unificada (Sisu), oferecem oportunidade de acesso à


universidade para um grupo da população que, historicamente, tem me-
nor acesso. Nesse grupo, encontram-se as mulheres negras. Ainda assim,
esse acesso é limitado e restrito, haja vista que as vagas destinadas a esse
público, muitas vezes, são orientadas para cursos de licenciatura, entre
outros menos prestigiados pela academia. Além disso, essas oportunida-
des muitas vezes, se encontram em universidades privadas, dificultando
a mudança de patamar social, através do emprego e da formação edu-
cacional. Em certa medida, portanto, essa inclusão é limitada e restrita,
mantendo o mesmo modelo estrutural de desigualdade.
Compreendemos que a organização social não é natural, mas o re-
sultado de uma construção coletiva; é importante ressaltar, portanto, os
avanços e limitações dessas políticas. Somente assim a mulher negra po-
derá lutar e conquistar educação de qualidade, a fim de que se empodere
para requerer seus direitos e tenha a possibilidade de ocupar os mesmos
postos de trabalho que homens e mulheres brancos ocupam atualmente.

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72
“DOSSIÊ MULHERES NEGRAS”: UM OLHAR
SOBRE AS DESIGUALDADES ENFRENTADAS
PELAS MULHERES NA EDUCAÇÃO SUPERIOR

Cláudio Aparecido de Sousa1


Gilca Ribeiro dos Santos2

Introdução

Não há dúvida de que as políticas públicas voltadas à escolarização


formal têm vasta interferência na vida das sociedades, na medida em que
podem ser responsáveis por oportunidades que não seriam vivenciadas
apenas com os esforços pessoais impetrados pelos indivíduos. Por esse
motivo, a ausência de políticas públicas deve ser entendida como um dos
fatores determinantes da exclusão educacional em que, ainda hoje, se en-
contram determinados grupos que compõem o tecido social brasileiro, a
exemplo das mulheres negras.

1  Mestrando em Educação. Licenciado em Pedagogia. Graduado em Educação Física


pela Universidade Nove de Julho (UNINOVE). Especialista em Atividade Física
Adaptada e Saúde pela Universidade Gama Filho. Especialista em psicomotricidade pela
Faculdade da Aldeia de Carapicuíba. E-mail: claudio.joga8@gmail.com

2 Doutoranda em Educação (UNINOVE). Mestre em Educação. Especialista em


Gestão de Políticas em gênero e raça. Licenciatura em História e Pedagogia. E-mail:
gilribeiro1@hotmail.com

73
“DOSSIÊ MULHERES NEGRAS”: UM OLHAR SOBRE AS DESIGUALDADES ENFRENTADAS PELAS
MULHERES NA EDUCAÇÃO SUPERIOR

O Estado brasileiro iniciou, na primeira década do século XXI, o pro-


cesso de expansão da educação superior, procurando se pautar em um de-
senvolvimento sustentável baseado na inclusão social, adotando ações afir-
mativas com recorte social e racial, vivenciando mudanças importantes na
sua forma de gerir estrategicamente as políticas públicas. Isso é resultado
de toda uma dinâmica internacional e da pressão dos movimentos sociais
na elaboração, monitoramento e avaliação das políticas públicas.
A implementação de ações afirmativas no contexto brasileiro entra
em consonância com inúmeras medidas de combate à discriminação,
proclamadas internacionalmente, e das quais o Brasil é signatário: a De-
claração Universal dos Direitos Humanos (1948), o Pacto Internacional
dos Direitos Civis e Políticos (1966), a Convenção da Organização das
Nações Unidas (ONU) sobre a Eliminação de todas as formas de Discri-
minação Racial (1968), a Convenção III da Organização Internacional do
Trabalho (OIT) sobre Discriminação no Emprego e na Profissão (1968), a
Declaração do Milênio (2000), a Carta da III Conferência Mundial Con-
tra o Racismo, a Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerâncias Cor-
relatas (2001), a Convenção da ONU sobre os Direitos das Pessoas com
Deficiência (2008), entre outras.
A Conferência de Durban destaca em seu documento as ações afir-
mativas/ações positivas, como medidas a serem assumidas pelo Estado no
combate à discriminação, mas também de acesso à educação, ao emprego,
à saúde, à moradia, aos serviços sociais, reforçando que a construção de
uma sociedade com igualdade de oportunidades é responsabilidade pri-
mordial do Estado.
Nesta perspectiva, as ações afirmativas de acesso à educação superior
constituem um passo importante para retirar da pobreza e dos baixos
níveis de escolarização grande parte da sociedade brasileira, possibilitan-
do ao país um desenvolvimento baseado na inclusão social. Bianchetti
(1999, p. 88) considera as políticas sociais como estratégias promovidas
no âmbito das políticas com objetivo de desenvolver um determinado
modelo social, estratégias presentes nos planos, projetos e diretrizes de
cada área social. Estando as mulheres negras figurando entre os piores
índices sociais, urge a necessidade de questionar se as políticas de cotas
têm possibilitado a mobilidade social dessas mulheres, se as mesmas têm

74
CLÁUDIO APARECIDO DE SOUSA E GILCA RIBEIRO DOS SANTOS

vivenciado uma mudança do passado com o presente, uma mudança de


status social, uma saída dos piores índices sociais.
Neste sentido, Soares (2007, p. 146) reforça que incorporar a pers-
pectiva de gênero nas análises que fazemos serve para valorizar as impli-
cações que tem qualquer ação planejada, tanto para homens como para
mulheres, integrando estrategicamente os temas de interesse e da expe-
riência das mulheres e dos homens, como dimensão integral do desenho,
implementação, monitoramento e avaliação de políticas e programas, nas
esferas políticas, econômicas e sociais, de modo que as desigualdades não
sejam perpetuadas.
A desagregação de gênero e raça permite o que Sebastião (2008) des-
taca quanto ao uso da categoria “mulher negra”, que, do ponto de vis-
ta discursivo, encontra-se na base de argumentação no conceito de raça
“construído socialmente”, indo assim além da categoria “mulher” num
sentido genérico, possibilitando que a diversidade do gênero feminino
seja visualizada, bem como a experiência diferenciada de racismo que
mulheres negras vivenciam. As mulheres negras são as mais pobres, com
menos escolarização, com os maiores índices de analfabetismo, com me-
nos formalização/carteira assinada, desempenhando os trabalhos mais
precários e com os menores rendimentos do mercado de trabalho, logo
aquelas que se encontram nos piores índices em todos os sentidos no
contexto social brasileiro.
Se é factual que a política das cotas raciais colocou em outro patamar
a discussão do acesso ao ensino superior pela população negra, também
é verdade que há muito ainda a ser discutido. Desigualdades de gênero,
para além das ditas inequidades raciais, marcam o acesso, permanência,
fluxo e desempenho em todos os níveis da educação nacional. Sabendo
que as mulheres negras são vítimas do preconceito tanto sexista quanto
racista, vale a pena se debruçar sobre a situação dessa importante parce-
la da população no tocante ao acesso ao ensino superior – etapa que se
encontra ainda bastante elitizada e pouco acessível aos grupos de maior
vulnerabilidade social.
Assim é necessário questionar quantas mulheres negras entraram
para o ensino superior, quantas permaneceram e concluíram seus cur-
sos, quais cursos e áreas foram, quantas evadiram e porquê, qual era a

75
“DOSSIÊ MULHERES NEGRAS”: UM OLHAR SOBRE AS DESIGUALDADES ENFRENTADAS PELAS
MULHERES NA EDUCAÇÃO SUPERIOR

situação socioeconômica, o status destas mulheres ao ingressarem no


ensino superior por meio do sistema de cotas e qual é a situação so-
cioeconômica, o status social destas mulheres após obterem a titula-
ção superior, quantas deram continuidade aos estudos acadêmicos em
programas de pós-graduação, quais suas trajetórias acadêmicas de vida;
em suma, se houve mobilidade social de mulheres negras egressas do
sistema de cotas, tema a ser aprofundado neste capítulo.

A origem

O Feminismo Negro é um movimento social e um segmento pro-


tagonizado por mulheres negras com o objetivo de promover e trazer
visibilidade às suas pautas e reivindicar seus direitos. No Brasil, seu
início se deu no final da década de 1970, a partir de uma forte deman-
da das mulheres negras feministas. O Movimento Negro tinha sua face
sexista, as relações de gênero funcionavam como fortes repressoras da
autonomia feminina e impediam que as ativistas negras ocupassem
posições de igualdade junto aos homens negros. Por outro lado, o Mo-
vimento Feminista tinha sua face racista, preterindo as discussões de
recorte racial e privilegiando as pautas que contemplavam somente as
mulheres brancas.
O problema da mulher negra se encontrava na falta de representação
pelos movimentos sociais hegemônicos. Enquanto as mulheres brancas
buscavam equiparar direitos civis com os homens brancos, mulheres ne-
gras carregavam nas costas o peso da escravatura, ainda relegadas à posi-
ção de subordinadas; porém, essa subordinação não se limitava à figura
masculina, pois a mulher negra também estava em posição servil perante
a mulher branca. A partir dessa percepção, a conscientização a respeito
das diferenças femininas foi ganhando cada vez mais corpo. Grandes no-
mes da militância feminina negra foram fazendo história, a exemplo de
Lélia Gonzalez e Sueli Carneiro. A atenção e a produção de conteúdo fo-
ram dedicadas a discussões de raça e classe, buscando romper uma zona
de conforto que o ativismo feminista branco cultivava, especialmente
aquele que limitava sua ótica aos problemas das mulheres de boa condi-
ção financeira e acesso à educação.

76
CLÁUDIO APARECIDO DE SOUSA E GILCA RIBEIRO DOS SANTOS

No entanto, isso não foi suficiente para que o Feminismo Hege-


mônico passasse a reconhecer as ativistas negras e resgatasse as me-
mórias das mulheres que lutaram na linha de frente de diversos mo-
vimentos sociais. Para as meninas e mulheres que vêm a conhecer os
movimentos pelos direitos da mulher, há um vácuo de modelos negros
nos quais se espelhar, mas não por falta de pessoas atuantes e sim
por causa da invisibilidade. É preciso que haja a iniciativa de buscar
figuras inspiradoras, caso contrário, os nomes mais celebrados serão
extremamente limitados.

A luta das mulheres negras pelas ações afirmativas no Brasil

Na década de 1990, a luta dos movimentos negros em prol da insti-


tuição das ações afirmativas no Brasil, exponenciadas desde a década de
1980, ganha novo fôlego com a retomada da experiência dos pré-vesti-
bulares comunitários no Rio de Janeiro e na Bahia. Tais pré-vestibulares
comunitários passaram a recrutar e qualificar os trabalhadores negros e
carentes para o exame do vestibular, bem como prepará-los criticamente
para a militância negra, em prol da democratização da educação superior
pública no Brasil.
As mulheres negras, em especial, as trabalhadoras domésticas tam-
bém passaram a frequentar tais cursos preparatórios populares para ne-
gros e carentes. A participação dessas mulheres nesses espaços de for-
mação foi de extrema importância para o estreitamento de laços com os
movimentos negros e sindicais, bem como para a coadunação de pautas
históricas que envolvem trabalho, educação e raça.
Na cidade do Rio de Janeiro, nosso campo de análise, o primeiro pré-
-vestibular criado para negros foi o Pré-Vestibular para Negros e Carentes
(PVNC), localizado no município de São João de Meriti. Esse curso era
dirigido por lideranças religiosas católicas ligadas à Pastoral Negra e por
militantes negros. Era composto por professores voluntários e/ou recém-
-formados que preparavam jovens e adultos negros, oriundos da baixada
fluminense, para ingressar nas universidades públicas, bem como para
a militância em prol da adoção de reservas de vagas nas universidades
públicas brasileiras (SANTOS, 2015).

77
“DOSSIÊ MULHERES NEGRAS”: UM OLHAR SOBRE AS DESIGUALDADES ENFRENTADAS PELAS
MULHERES NA EDUCAÇÃO SUPERIOR

A partir dessa lógica, gestaram-se outras experiências, como, por


exemplo, a Associação Educação e Cidadania para Afrodescendentes
(EDUCAFRO), no Rio de Janeiro (1989), e o Pré-Vestibular para Negros
e Carentes do Instituto Steve Biko, em Salvador (1992). A ênfase desses
preparatórios era a formação crítica e cidadã para a ocupação de vagas
pelos negros nas universidades públicas (SANTOS, 2015).
Heringer e Ferreira (20093 apud SANTOS, 2015) cita que os pré-ves-
tibulares comunitários eram instrumentos de luta em prol da democrati-
zação do ensino superior no Brasil, bem como se constituíam em impor-
tantes espaços de resistência e reivindicação que deflagravam o embate
entre os alunos e o poder público, na busca por políticas públicas para
um contingente de negros da classe trabalhadora que, embora tivessem
concluído o ensino médio, estavam alijados do ensino superior.
Ademais, no que tange ao aspecto educacional, tais cursos preparató-
rios cumpriram um importante papel social: a capacitação profissional do
alunado negro com escassos recursos financeiros, em especial das traba-
lhadoras domésticas negras para o ingresso no ensino superior, com vis-
tas a uma inserção mais qualificada no mercado de trabalho. Nesse sen-
tido, exerceram uma função que foi preterida historicamente pelo poder
público. Assim, a educação superior, que fora historicamente negada para
a população negra, em especial, para as trabalhadoras domésticas negras,
passou a ser um horizonte de luta das mulheres negras, principalmente da
juventude negra que assistiu a geração anterior, de seus pais, ter o direito
à educação superior negado pelo poder público e pelas elites brasileiras.
Tais experiências populares de ensino ocorreram em concomitância
com inúmeras ações realizadas pelos movimentos negros e movimentos
sindicais no país em prol do reconhecimento da questão racial no Brasil,
em especial, o reconhecimento da questão da juventude feminina negra,
como por exemplo, o I Encontro Nacional das Mulheres Negras e o I En-
contro Nacional de Entidades Negras.

3  FERREIRA, R.; HERINGER, R. Análise das principais políticas de inclusão de estudantes


negros no ensino superior no Brasil no período 2001-2008. In: PAULA, M. de; HERINGER,
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78
CLÁUDIO APARECIDO DE SOUSA E GILCA RIBEIRO DOS SANTOS

A principal denúncia dos movimentos negros, inclusive das mulhe-


res, eram as condições subumanas de trabalho e vida da população negra
no Brasil. Tal denúncia ganha sonoridade no cenário político a partir do
evento da Marcha Zumbi dos Palmares que ocorreu em Brasília, em 1995,
na qual os representantes dos movimentos negros entregaram ao Presi-
dente Fernando Henrique Cardoso (1995-2003) o “Programa de Supera-
ção do Racismo e da Desigualdade Racial”.
Tal programa denunciava o racismo, bem como todas as formas de
opressão e violação de direitos, às quais o povo negro foi historicamente
submetido em prol do desenvolvimento da nação brasileira. Ademais, os
movimentos negros, por meio deste documento, requeriam o “[...] desen-
volvimento de ações afirmativas para acesso dos negros aos cursos pro-
fissionalizantes, à universidade e às áreas de tecnologia de ponta” (SAN-
TOS, 20074 apud SANTOS, 2015, p. 60).
Dentre outras ações ocorridas nesse período, a participação dos
representantes dos movimentos negros na Conferência Mundial Con-
tra Racismo, Discriminação Racial, Xenofobias e Intolerâncias Cor-
relatas, realizada em Durban, na África do Sul, foi decisiva para a es-
truturação de ações governamentais voltadas para o enfrentamento
das questões raciais no Brasil. Após a participação na Conferência, o
Governo Federal se comprometeu internacionalmente a seguir as di-
retrizes dispostas na Declaração de Durban, bem como seguir o plano
de ação proposto em Durban, que realocou o tema da questão racial
em nível mundial.
Assim, o Brasil passou a ser signatário das ações internacionais para
o enfrentamento do racismo, discriminação e intolerância que perpas-
sava pela instituição de ações afirmativas ou positivas na educação, bem
como pela implementação de ações assistenciais nas áreas da educação,
saúde, habitação e assistência social.
No que tange à educação superior, nosso foco de análise, a Declaração
de Durban preconizou a instilação de ações afirmativas ou positivas para a
correção do sistema educacional “ultra-elitista” – como fora denominado

4  SANTOS, S. A. dos. Movimentos sociais negros, educação e ações afirmativas. 2007.


554 f. Tese (Doutorado) – Universidade de Brasília, Brasília, 2007.

79
“DOSSIÊ MULHERES NEGRAS”: UM OLHAR SOBRE AS DESIGUALDADES ENFRENTADAS PELAS
MULHERES NA EDUCAÇÃO SUPERIOR

pelo professor Florestan Fernandes (2006) – que alijou o acesso da popula-


ção negra à educação superior.
Santos Júnior (20105 apud ABREU; TIBLE, 2012) cita que as ações afir-
mativas são políticas que dão vida à Constituição Federal no que diz respei-
to à igualdade material, bem como são importantes instrumentos na luta
contra a discriminação racial, de gênero, de idade, de origem nacional e de
compleição física. Aclara que as ações afirmativas devem ser contextualiza-
das a partir da compreensão de que em uma sociedade como a brasileira,
desfigurada por séculos de discriminação generalizada, não é suficiente que
o Estado se abstenha de praticar a discriminação de suas leis.
Incumbe ao Estado esforçar-se para favorecer a criação de condições
que permitam a todos se beneficiarem da igualdade de oportunidades
e eliminar qualquer forma de discriminação direta ou indireta. A isso
se dá o nome de ação afirmativa ou ação positiva, compreendida como
um comportamento ativo do Estado, em contraposição à atitude negativa,
passiva, limitada à mera intenção de não discriminar (SANTOS JÚNIOR,
2010 apud ABREU; TIBLE, 2012, p. 114).

Aumento das taxas de escolaridade das mulheres negras no Brasil

Em pleno século XXI, a sociedade brasileira ainda perpassa por gran-


des dificuldades, especialmente no que se refere ao acesso da população ao
ensino superior, de um modo geral, e à necessidade do aumento das taxas
de escolaridade das mulheres negras, de forma específica. Neste sentido,
o movimento feminista negro articula atividades conscientes e legítimas
a favor da causa social das massas, com o objetivo de compreender: quais
são as dificuldades encontradas por essas mulheres, especificamente as
negras, para ingressar nas universidades brasileiras? Como as políticas de
cotas têm efetivado e incentivado o ingresso neste nível de ensino para a
população negra? Será que existe uma preocupação nas politicas públicas
e é interessante para os governos melhorar essa estatística de baixos níveis
de ingresso das mulheres negras no ensino superior?

5 SANTOS JÚNIOR, R. N. dos. Afrocentricidade e educação: os princípios para um


currículo afrocentrado. Revista África e Africanidades, ano 3, n. 11, nov. 2010.

80
CLÁUDIO APARECIDO DE SOUSA E GILCA RIBEIRO DOS SANTOS

Todavia, a nossa posição neste contexto de luta e opressão em que


vivem e convivem as mulheres negras no Brasil será a de nos apoiarmos
no movimento feminista negro, visando resistir e lutar contra todo tipo
de opressão e eugenia que queira promover o aumento das desigualdades
sociais e beneficiar a hegemonia da classe dominante. O foco do femi-
nismo negro é salientar a diversidade de experiências tanto de mulheres
quanto de homens e os diferentes pontos de vista possíveis de análise de
um fenômeno, bem como marcar o lugar da fala de quem a propõe (SO-
TERO, 2013, p. 36).
Para efetivar a verdadeira transformação do acesso ao ensino supe-
rior e melhorar as taxas de ingresso das mulheres negras nestes níveis de
ensino, teremos um caminho árduo a percorrer, sendo necessário esti-
mular movimentos populares e políticos que estejam engajados e interes-
sados em promover a mudança nos aparatos ideológicos e estadistas que
distanciam as relações entre classes sociais, raça e gênero, aproximan-
do os princípios do preconceito e da exclusão; em nosso caso, estamos à
procura do equilíbrio que irá fortalecer as relações raciais e promover a
igualdade racial e social. Esta é a nossa esperança para conviver em uma
sociedade em que o respeito às diferenças seja instituído como marco
inicial da convivência igualitária, humanista e harmoniosa.
Para nos fortalecermos nesse cenário nacional e até mundial, que em
muitas oportunidades está rodeado por ódio, racismo, homofobia, vio-
lência contra as mulheres, contra as crianças, além de outros tipos de
agressão, seja verbal ou física, dentre outros fatos, podemos citar a de-
sigualdade racial. Um exemplo explícito desta relação desigual está de-
marcado pela sociedade. Observamos que grande parte do público negro
feminino exerce função laboral em profissões como: trabalhadora do-
méstica, faxineira, cozinheira e ajudante geral. Não culpamos e nem dis-
criminamos estas profissões, certos de agradecermos que muitas dessas
profissionais têm emprego garantido no mercado de trabalho para ajudar
na sobrevivência e manutenção de muitas famílias.
Deste modo, consideramos relevante ressaltar que as mulheres ne-
gras, por não ter tido a oportunidade de acessar o ensino superior, foram
desprivilegiadas no que concerne a exercer funções laborais que geram
maior rentabilidade e status social; a exemplo, citamos as profissões de

81
“DOSSIÊ MULHERES NEGRAS”: UM OLHAR SOBRE AS DESIGUALDADES ENFRENTADAS PELAS
MULHERES NA EDUCAÇÃO SUPERIOR

professora, médica, dentista, farmacêutica, empresária e até na vida po-


lítica. Dificilmente enxergamos a presença da mulher negra exercendo
função laboral nessas profissões. Ficam aqui registradas nossa angústia
e, ao mesmo tempo, inquietação para modificar essa realidade tão cruel,
que outrora suprimiu as oportunidades igualitárias em âmbito brasileiro
e mundial. Fazendo uma analogia no cenário atual de extremo conserva-
dorismo e individualismo, cabe refletirmos sobre uma questão pertinen-
te: as oportunidades de trabalho entre as mulheres negras e brancas são
iguais? As mulheres negras que possuem ensino superior têm a mesma
oportunidade que a mulheres brancas que têm ensino superior?
Com o intuito de responder a essas e outras questões, recorre-
mos aos escritos do Dossiê Mulheres Negras: retrato das condições de
vida das mulheres negras no Brasil, organizado por Marcondes et al.
(2013). Identificamos neste referencial aporte necessário para com-
preender os paradoxos que definem as condições de estratificação so-
cial dos negros de uma forma geral e da mulher negra de modo espe-
cífico. Para Lima, Rios e França (2013), as desigualdades raciais são
imensas, explícitas socialmente, pois “Se revelam tanto na busca pelo
emprego – com elevada taxa de desemprego para os negros – como na
competição social por espaços e posições de poder – como a condi-
ção de empregador, de proprietários, posições de comando e chefia”
(LIMA; RIOS; FRANÇA, 2013, p. 54).
Nitidamente, convivemos em uma sociedade desigual. No que con-
cerne aos aspectos sociais, de gênero e raça, a literatura aponta para
maiores salários de pessoas do sexo masculino em comparação com o gê-
nero feminino, melhores condições salariais e sociais de pessoas brancas
em detrimento de pessoas negras, além de outros exemplos já explícitos e
efetivados no contexto atual em que vivemos. Para que possamos alcançar
a verdadeira inclusão social e reverter o quadro negativo vivenciado pelas
mulheres negras, cabe indagarmos: Como devem ser instituídas as políti-
cas de empregabilidade e renda no país? É possível evoluirmos no que se
refere às condições de melhoria da situação das mulheres negras? Neste
contexto de incerteza e crise política, nosso compromisso será resistir e
lutar, unidos por uma militância da causa social. Neste sentido, Lima,
Rios e França (2013, p. 55) ressaltam que

82
CLÁUDIO APARECIDO DE SOUSA E GILCA RIBEIRO DOS SANTOS

O mercado de trabalho é considerado locus privilegiado de análise


das desigualdades, uma vez que tanto o acesso ao mercado de tra-
balho quanto a condição de ingresso neste representam etapas par-
ticularmente importantes na trajetória socioeconômica dos indiví-
duos. Além disto, o mundo do trabalho está fortemente conectado
com a dimensão educacional, representando, portanto, duas faces
de um mesmo momento: a posição inicial de ingresso no mercado
de trabalho é influenciada pelas características educacionais e gera
um forte efeito sobre a trajetória subsequente dos indivíduos. Mas
há um fator fundamental neste processo, que são os efeitos discri-
minatórios produzidos pelo mercado de trabalho. As desigualdades
de acesso a determinados ramos de atividade, assim como o ingres-
so em ocupações menos formais, estão fortemente mediados por
fatores que se relacionam com a discriminação de gênero e raça.

De acordo com Theodoro (2014, p. 206), o Brasil tem presenciado,


em pleno século XXI, “Uma expressiva mudança no debate público sobre
as relações raciais, assim como no formato e abrangência das políticas
públicas voltadas para a população negra”. Na mesma linha de raciocínio,
entendemos que o momento em que estamos vivendo é outro, as políticas
públicas estão mais efetivas, as discussões sobre as questões étnico-raciais
estão presentes no Senado Federal, nos grupos de estudos de universida-
des públicas e particulares, além dos movimentos sociais.
Recentemente, as universidades públicas brasileiras aderiram a nor-
mativas de ingresso em diversos cursos superiores; dentre o público-alvo
estão as pessoas que concluíram o ensino básico em escolas públicas e
a população negra, sendo ambos contemplados com as políticas de co-
tas. Tal fato é um avanço para equalizar a igualdade de condições sociais
da população negra de um modo geral, homens e mulheres, assim como
para pessoas brancas, indígenas e todos aqueles que tiveram acesso a es-
colas públicas, o que de fato possibilita oportunidades de condições para
a população que mais necessita de transformação social.
No entanto, ainda há muito trabalho e luta pela frente para alcançar-
mos a igualdade social e racial. Neste sentido, concordamos com Theo-
doro (2014, p. 208), quando relata que

A questão racial ainda se conjuga como um dilema para o país,


isto não se deve à invisibilidade demográfica, social ou política da

83
“DOSSIÊ MULHERES NEGRAS”: UM OLHAR SOBRE AS DESIGUALDADES ENFRENTADAS PELAS
MULHERES NA EDUCAÇÃO SUPERIOR

população negra. Ao contrário, a história do Brasil republicano é


perpassada pelo debate e pelas formulações referentes às formas
de integração dessa população negra, debate este visto como parte
integrante da busca do desenvolvimento, do progresso e da moder-
nização do país.

Certamente, não será em curto prazo que alcançaremos a almejada


igualdade racial e social. No entanto, o cenário nacional aponta para um
avanço positivo. Observamos que a situação de igualdade racial é emer-
gente e necessária, para que as mulheres negras possam ser inseridas nas
universidades e no mercado de trabalho, especificamente em profissões
que tenham maior expressividade na sociedade, apontando para um
avanço em termos sociais e salariais.
Para Silva (2013), a distribuição de recursos no Brasil é profunda-
mente marcada pela condição de raça e gênero dos indivíduos; sendo as-
sim, notamos que é expressiva a quantidade de mulheres que exercem
funções desprivilegiadas, como, por exemplo, os ramos de cozinheira,
trabalhadoras domésticas e auxiliares de limpeza, o que de certa forma
também causa desigualdade em relação à comparação com os salários dos
homens. Nesta analogia, não estamos desfavorecendo tais profissões, mas
é relevante ressaltarmos que o mercado de trabalho influencia a condição
social e salarial, assim como o acesso ao ensino superior amplia o enten-
dimento das questões sociais e a leitura de mundo.

Efeitos do crescimento de escolaridade das mulheres negras

Os efeitos causados pelo crescimento das taxas de escolaridade das


mulheres negras podem ser um marco histórico nas políticas públicas e
na história do Brasil. As desigualdades enfrentadas socialmente por es-
sas mulheres nos remetem a refletir sobre a necessidade de lutarmos e
buscarmos soluções para ampliarmos as oportunidades de acesso aos as-
pectos sociais mais amplos, visando atingir igualdade de condições para
a convivência em uma sociedade mais justa, humanitária e democrática.
A partir dos anos de 1990, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplica-
da (IPEA) assume papel importante na divulgação de documentos orien-

84
CLÁUDIO APARECIDO DE SOUSA E GILCA RIBEIRO DOS SANTOS

tadores, com o intuito de facilitar o entendimento sobre as desigualdades


sociais, de gênero e raça. Não é novidade tratar dessas questões e perce-
ber que o caminho que temos a percorrer é longo, o que necessitará de
muitos anos para avançarmos rumo ao progresso, principalmente no que
concerne ao ingresso de homens e mulheres negras nos aspectos sociais,
políticos e de renda.
Sendo assim, comparando a média de estudo da população entre 16
anos de idade ou mais, segundo os critérios sexo, cor e raça no Brasil, foi
possível perceber que, “Ao longo dos anos, identificam-se avanços gra-
duais nos números da educação no país; contudo, observa-se a manu-
tenção das desigualdades que têm, historicamente, limitado o acesso, a
progressão e as oportunidades” (IPEA, 2011, p. 20).
Sobretudo, analisando o avanço que o país obteve em termos de cres-
cimento e desenvolvimento, ainda identificamos uma defasagem sobre a
comparação de anos de escolaridade das pessoas negras com as pessoas
brancas, fato que comprova as diferenças sociais marcadas pela socie-
dade. Neste sentido, o documento Retrato das desigualdades de gênero e
raça, organizado pelo IPEA (2011, p. 21), esclarece que,

Em 1995, 15,5% da população com 15 anos ou mais de idade não


sabia ler nem escrever; este percentual caiu para 9,7% em 2009.
No entanto, neste mesmo ano, encontram-se, na região Nordes-
te, 20,5% de negros em situação de analfabetismo, contra 14,2%
dos brancos. Na área rural nordestina, identifica-se que 32,6% das
pessoas não tiveram acesso à educação formal. Observa-se que a
média de anos de estudos da população com 15 anos ou mais de
idade aumentou de 5,5 anos, em 1995, para 7,5 anos, em 2009, re-
presentando um aumento de 2 anos no período. Considerando-se a
população negra, identifica-se um aumento de 2,4 anos no mesmo
intervalo, o que não representa ainda o rompimento das desigual-
dades: em 2009, os/as negros/as tinham 6,7 anos de estudos, contra
8,4 anos da população branca.

Essa discrepância educacional que concebe diferença em termos de


acesso ao ensino promove reflexões e indagações necessárias na efetivação
de possíveis mudanças nas políticas públicas, caminhando para princípios
que poderão fortalecer as discussões raciais no Brasil e principalmente a

85
“DOSSIÊ MULHERES NEGRAS”: UM OLHAR SOBRE AS DESIGUALDADES ENFRENTADAS PELAS
MULHERES NA EDUCAÇÃO SUPERIOR

necessidade de conscientizar o poder público e a sociedade sobre o com-


promisso de contribuir com o crescimento econômico e igualitário, come-
çando pela igualdade racial de oportunidades, nos aspectos de ingresso no
ensino superior e no mercado de trabalho.
A situação vivenciada pelas mulheres negras no Brasil acaba por dei-
xar marcas características de uma condição oprimida, negligenciada pe-
las políticas públicas e pelas desigualdades; contudo, o entendimento da
situação educacional e política que perpassa o país e a contribuição dos
escritos do educador Paulo Freire nos mantêm com uma esperança de
revertermos a situação caótica de opressão pela condição de libertação.
Concordamos com o autor quando esclarece magnificamente,

Somente quando os oprimidos descobrem, nitidamente, o opressor,


e se engajam na luta organizada por sua libertação, começam a crer
em si mesmos, superando, assim, sua “convivência” com o regime
opressor. Se esta descoberta não pode ser feita em nível puramente
intelectual, mas da ação, o que nos parece fundamental é que esta
não se cinja a mero ativismo, mas esteja associada a sério empenho
de reflexão, para que seja práxis. O diálogo crítico e libertador, por
isto mesmo que supõe a ação, tem de ser feito com os oprimidos,
qualquer que seja o grau em que esteja a luta por sua libertação
(FREIRE, 2003, p. 52).

Nesta ótica, entendemos que o opressor é o racismo, a homofobia,


a desigualdade social e racial, que está enraizada em algumas pessoas,
além dos governos conservadores que não investem em programas de
valorização da mulher negra e políticas sociais para aumentar as taxas de
acesso ao ensino superior. Após anos de luta, o ano de 2017 fica marcado
na história, pois as políticas de cota chegam às universidades com um
número significativamente expressivo; tal fato nos mantêm esperançosos
com o futuro da população brasileira, especificamente homens e mulhe-
res negras.
Finalmente, ressaltamos que, para alcançarmos a convivência em uma
sociedade mais igualitária, digna, responsável, honesta e justa, faz-se ne-
cessário investir na educação, especificamente no acesso ao ensino, na qua-
lidade dos serviços e nas condições salariais do professor. Com a melhora
de investimentos na máquina pública, o número de mulheres negras que

86
CLÁUDIO APARECIDO DE SOUSA E GILCA RIBEIRO DOS SANTOS

poderão acessar o ensino superior, almejando ingressar no ensino público


e privado, pode contribuir para aumentar o número de docentes negras
atuando nas escolas do país, assim como em outras profissões que necessi-
tam ampliar o número de negros e negras atuando nos diversos estados e
municípios brasileiros. Esta é a nossa esperança e sonho.

Considerações finais

Os dados citados são apenas alguns exemplos das disparidades entre


mulheres brancas e negras, mas são fundamentais para se compreender
a necessidade de uma vertente específica dentro do Feminismo. Afunilar
demandas é uma prática comum dentro dos movimentos sociais. Não há
porquê manter uma falsa impressão de homogeneização quando a diver-
sidade é capaz de produzir muito mais união e potencial comunitário.
Reconhecendo e respeitando as diferenças e características subjetivas
das mulheres que fazem a luta feminista, é possível contemplar as ne-
cessidades urgentes de cada categoria. A diversidade sexual, as variáveis
nas identidades de gênero, os fatores de classe, raça e etnia, entre outras
especificidades, estão se transformando em abordagens prioritárias que
exigem conscientização imediata.
O Feminismo Negro existe, desde seu surgimento, para emergir as
questões periféricas repudiadas pelo status quo. Ele é, em primeiro lutar,
um ato de resistência motivado pela existência livre. A população negra
é mais de 50% da população brasileira; portanto, o esquecimento dessas
mulheres seria, no mínimo, o esquecimento de uma importante parcela
de cidadãs.
No que tange ao ingresso das mulheres negras na educação supe-
rior, pudemos verificar, pelos dados do Dossiê Mulheres Negras: retrato
das condições de vida das mulheres negras no Brasil, produzido pelo
IPEA (MARCONDES et al., 2013), que o número de jovens no trabalho
doméstico tem diminuído, o que nos remete à hipótese de que essas
mulheres têm tido outras oportunidades, principalmente no âmbito da
educação, por meio da certificação de competência (EJA), pelo ENEM,
pelo FIES, bem como pela consolidação do sistema de cotas nas univer-
sidades federais.

87
“DOSSIÊ MULHERES NEGRAS”: UM OLHAR SOBRE AS DESIGUALDADES ENFRENTADAS PELAS
MULHERES NA EDUCAÇÃO SUPERIOR

Portanto, apesar de tais números variarem em função da conjuntu-


ra de crise econômica do país, o acesso e a permanência das mulheres
negras na educação superior pode ser um disparador importante para
entendermos se essas mulheres têm conseguido a capacitação para ocu-
parem outros postos de trabalho melhor remunerados. Portanto, faz-se
necessário repensar a totalidade desse processo de mudanças na legisla-
ção educacional. As políticas públicas adotadas pelos governos em rela-
ção às mulheres negras estão engatinhando, a consciência de sua impor-
tância está aflorando. Há muito que amadurecer. Há muitas limitações
ainda. São muitos os estereótipos que constroem privilégios para um gru-
po minoritário de sujeitos.
As ações afirmativas na área educacional são fundamentais para su-
perarmos o histórico de exclusão a que o negro, durante muitos anos,
esteve sujeito. A educação é o caminho para a efetiva redução das desi-
gualdades e empoderamento do cidadão.

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88
CLÁUDIO APARECIDO DE SOUSA E GILCA RIBEIRO DOS SANTOS

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no Brasil Contemporâneo. Revista de estudos e pesquisas sobre as
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89
VIRGÍNIA LEONE BICUDO E NEUSA SANTOS
SOUZA: PROFESSORAS NEGRAS E SUAS
VALIOSAS TRAJETÓRIAS NA EDUCAÇÃO

Maria Lucia da Silva1


Carolina Cristina dos Santos Nobrega2

Introdução

O presente texto manifesta a importância da trajetória das mulheres
negras, que deve ser interpretada de maneira crítica, ou seja, como a ex-
pressão do caminho e não o desejo tão somente de caminhar do ponto
de vista do dom, da vocação, do nato, pois a desnaturalização das pos-
sibilidades de escolhas, decisões e mudanças permanentes no contexto
sociocultural, sociopolítico, socioeconômico dos séculos XIX e XX se faz
necessária. Em razão disso, a narrativa propõe analisar e debater as ações,
as socializações e os deslocamentos dessas protagonistas no processo de
superação, diante da impossibilidade de acesso aos contextos elitizados.
A condição de negras e negros em liberdade (não efetiva) mostra o
equívoco de associar a população negra a lugares sociais específicos que

1  Doutora em Educação pela Universidade Nove de Julho (UNINOVE), professora no


Complexo Universitário FMU-FIAM/FAAM. E-mail: mlucia1459@gmail.com

2  Mestranda em Educação na Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), professora de


Educação Física da Prefeitura de São Paulo. E-mail: ccsnobrega@hotmail.com

91
VIRGÍNIA LEONE BICUDO E NEUSA SANTOS SOUZA: PROFESSORAS NEGRAS E SUAS VALIOSAS
TRAJETÓRIAS NA EDUCAÇÃO

compreendem as palavras “negros” e “escravos” como sinônimos, já que


o problema está na interpretação orgânica que marca a cor e expõe as
representações a respeito da raça que delimitam o espaço dos mesmos na
naturalização da inferioridade.
Atualmente, quando se discute a educação e, em especial, as negras
na educação, ainda se faz necessária a busca por respostas sobre questões
como o desconhecimento de histórias de professoras negras no sistema
educacional brasileiro e em especial aquelas que deixaram suas marcas
na luta contra o racismo. Para encontrar algumas dessas respostas é im-
portante conhecer a história das professoras negras na educação, bem
como a atuação dessas nos diferentes níveis de ensino, em seus aspectos
de inclusão, resistência e exclusão.
Nesse contexto é relevante conhecer e registrar as trajetórias de Virgí-
nia Leone Bicudo e Neusa Santos Souza: duas mulheres negras que tiveram
papel primordial na luta contra o racismo ao estabelecerem a base para
constatar as doenças produzidas pelo preconceito racial e ao afirmarem que
a educação é o pilar que vai dar alicerce para que a resistência se consolide.
S egundo Correa (2001), é importante ressaltar a lacuna bibliográfica
que existe na relação entre gênero e raça. Desse modo, este estudo preo-
cupa-se em destacar as mulheres negras e, nessa leitura, busca evidenciar
não a ótica norte-americana, como a maioria das pesquisas sobre gênero,
e sim o contexto afro-brasileiro para problematizar que os conceitos raça,
gênero e educação são intrínsecos e, em função disso, constituem o desa-
fio de desconstruir a sociedade machista.
De acordo com o embranquecimento físico e cultural, Virgínia Leone
Bicudo teve sua cor invisibilizada ao ponto de a maioria dos estudiosos e
pesquisadores da educação brasileira desconhecer sua história, principal-
mente como professora negra no ensino primário, além das suas contri-
buições na luta racial. Ela iniciou sua carreira nos Grupos Escolares Ca-
randiru e Consolação, após terminar os estudos de normalista na Escola
Normal Caetano de Campos; posteriormente, ingressou na Escola Livre
de Sociologia e Política (ELSP) onde graduou-se em Ciências Sociais e
Políticas, sendo a única mulher da turma. Depois, nessa mesma insti-
tuição, defendeu o mestrado com o título Estudos de atitudes raciais de
pretos e mulatos em São Paulo. Como analisa Maio (2010, p. 4),

92
MARIA LUCIA DA SILVA E CAROLINA CRISTINA DOS SANTOS NOBREGA

Virgínia Bicudo transformou a experiência social e individual do


preconceito de cor em reflexão acadêmica no mestrado, ao nomeá-
-la como “questão racial”. Em arguta análise sociológica, ela antevê
interpretações realizadas apenas na década de 1950, no contexto do
ciclo de pesquisas sobre as relações raciais no Brasil, patrocinado
pela UNESCO.

Desta forma, pode-se afirmar que essa educadora negra foi pioneira
no debate sobre a questão racial, pautando sua vida profissional na trans-
formação das marcas do preconceito e da discriminação racial, desven-
dando a prepotência do pensamento racista.
A trajetória profissional de Virgínia Bicudo começa como educa-
dora sanitária, depois visitadora psiquiátrica, passando por cientista
social, professora universitária, psicanalista, divulgadora científica,
protagonista de diversas iniciativas no plano da institucionalização da
psicanálise no Brasil. Neste artigo, também aproximamos a história de
Bicudo (1910-2003) ao período histórico da República brasileira, mar-
cado por ações governamentais nacionalistas, como o branqueamento
da população e a valorização da branquitude. Diante dessa ideologia,
Bicudo pode ter sido identificada como branca, pois, em seu docu-
mento de registro de trabalho na ELSP, como cita Maio (2010, p.1),
“[...] a cor atribuída a Bicudo revela uma das faces da ideologia do
branqueamento no Brasil, em que a aparência de um indivíduo com
marcas de origem africana poderia ser atenuada em função do grau de
instrução, ocupação”. Ato que produziu a invisibilidade de sua iden-
tidade de mulher negra cientista, e o desconhecimento de sua contri-
buição no debate da questão racial, tanto que vamos conhecer e ter
como referências das ciências sociais brasileiras as contribuições de
Oracy Nogueira, seu colega de turma na ELSP, sobre as questões ra-
ciais, sendo que os trabalhos de Bicudo têm pertinência por ser negra
e única mulher que se forma na turma.
É necessário lembrar que racismo no Brasil é registrado no cotidiano
como um racismo de marca, caracterizado pela cor da pele e a textura do
cabelo. Assim, o racismo em gradação está posto, ou seja, quanto mais
próximo do fenótipo negro o sujeito se apresentar mais será atingido,
porque o discurso racial manipula as diferenças fenotípicas para legi-

93
VIRGÍNIA LEONE BICUDO E NEUSA SANTOS SOUZA: PROFESSORAS NEGRAS E SUAS VALIOSAS
TRAJETÓRIAS NA EDUCAÇÃO

timar a dominação das raças “superiores” (OLIVEIRA, 2006). Por isso,


neste texto há um encontro de duas histórias – Virgínia Leone Bicudo e
Neusa Santos Souza – por prestarem grande contribuição ao debate das
relações raciais e por acreditarem ser necessário um grau de consciência
e maturidade para que nós, negras e negros, convertamos em positivo o
custo emocional do reconhecimento de nossa negritude.
Neusa Santos Souza (1948-2008) é baiana, nascida na cidade de Ca-
choeira. Formou-se em Medicina, com especialização em psiquiatria e
psicanálise lacaniana. É autora do livro Tornar-se Negro: As vicissitudes
da Identidade do Negro Brasileiro em Ascensão Social, no qual diz que
“Saber-se negra é viver a experiência de ter sido massacrada em sua iden-
tidade, confundida em suas expectativas, submetida a exigências, compe-
lida a expectativas alienadas”(SOUZA, 1990, p. 17-18).
Em Tornar-se Negro, Neusa Santos Souza procura romper a precarie-
dade de estudos sobre a vida emocional dos negros, refletindo sobre as
profundas e inquietantes questões emocionais da negação da própria cul-
tura e do próprio corpo, afirmando que a(o) negra(o) que se empenha na
conquista da ascensão social paga o preço do massacre de sua identidade
tomando o branco como modelo de identificação.
A formação em psicanálise, as temáticas de suas pesquisas, a contem-
poraneidade em que viveram a questão racial, o papel de ascensão social
do negro numa sociedade branca, a condição de serem mulheres negras
são, entre outros, os pontos de interseção da vida dessas mulheres, Virgí-
nia Leone Bicudo e Neusa Santos Souza, com seus olhares descolonizados
sobre a educação que nos levam a analisar suas trajetórias.

Escola da nova ordem e a relação racial



A nova ordem confirma a crença no papel libertador da escola assim
como a fé inquestionável na ciência fez da educação popular um instru-
mento fundamental para a política. Além disso, a perspectiva iluminista
percebia o sistema educacional subordinado ao controle estatal, isto é,
o Estado empenhado com “[...] a visão do ‘moderno’, do ‘laico’, e com
valores descritos como ‘civilizados’, ‘iluminados’. Por isso era necessário
laicizar os quadros docentes” (KREUTZ, 1999, p. 85).

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MARIA LUCIA DA SILVA E CAROLINA CRISTINA DOS SANTOS NOBREGA

S egundo Severino (2006), pode-se afirmar com certeza que a instau-


ração do pensamento iluminista decorre de um forte impacto na forma-
ção dos Estados, na qualidade de instituição política autônoma. Sendo as-
sim, esse amplo movimento cultural denominado de iluminismo constrói
a sua proposta pedagógica, recupera as ideias da natureza humana, da
autonomia racional, moral do indivíduo e se organiza na Europa consti-
tuindo a era moderna. Contudo, essas categorias são marcadas pela mo-
dernidade na formação da sociedade burguesa e mercantil, que se distan-
cia do universo feudal e cristão.
É no cenário da Proclamação da República que a escola da antiga
ordem sofreu críticas, pois a reafirmação das desigualdades sociais (como
consequência da omissão das classes dirigentes) e a ausência do controle
do Estado equivalem às marcas do Império: professores mal remunerados
e despreparados, alunos sem livros, sem métodos; por conseguinte, uma
escola que não tinha “o lugar próprio”, logo, precária, que precisava de-
saparecer. Desse modo, essas escolas não poderiam promover a civiliza-
ção necessária para educar as crianças nas boas maneiras e dar-lhes uma
profissão. À vista disso, era necessário pensar e realizar uma nova escola,
ou melhor, um futuro brilhante que resulta da relação entre o saber e a
cidadania a caminho do progresso (VAGO, 1999).
Segundo Chizzotti (1996), é um ponto de vista simplório afirmar que o
fracasso da instrução primária no Império é produzido pela descentralização
do Ato Adicional de 1834 (GUIMARÃES-IOSIF, 2009, p. 46). Na verdade,
não faltaram denúncias da ineficiência na ação provincial e solicitações à
participação ativa do Governo central no campo da educação primária e se-
cundária. Diante disso, o que se percebeu foi a omissão das classes dirigentes,
assim como o descaso das mesmas a respeito da educação popular.
À luz de Carvalho (2003), para construir o país como nação era pre-
ciso organizá-lo e isso era tarefa das elites, vistas como o cérebro, a cabe-
ça que dirige o desenvolvimento dessa sociedade orgânica; desse modo,
molda a educação e no seu interior unifica, disciplina e moraliza. Igual-
mente, não há espaço para a ignorância, já que a mesma é considerada um
câncer que coloca a nação na condição de subalterna.
Os países europeus e principalmente os Estados Unidos, na América,
eram referências para os republicanos paulistas que assistiam impressio-

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VIRGÍNIA LEONE BICUDO E NEUSA SANTOS SOUZA: PROFESSORAS NEGRAS E SUAS VALIOSAS
TRAJETÓRIAS NA EDUCAÇÃO

nados à universalização do ensino primário já consolidado nesses países


no final do século XIX. Diante desse contexto, a questão política da edu-
cação popular tornou-se um tema central, em todo o Ocidente, nos diver-
sos interesses políticos, econômicos, sociais, ideológicos e culturais. De
tal modo que dois aspectos são importantes: a organização administrativa
e a organização didático-pedagógica do ensino primário, com foco na de-
finição das suas finalidades e nos meios de universalização. Isso significa
pensar na democratização da cultura e da função política da escola para
as sociedades modernas (SOUZA, 2000).
É necessário lembrar que a referência das sociedades ditas modernas
perpassa pela cultura europeia, isto é, uma cultura considerada superior, a
partir de uma pretensa fundamentação científica, de caráter biológico; logo,
determina-se a relação arbitrária entre as competências culturais e as carac-
terísticas biológicas, legitimando essa cultura “eurocêntrica”. Nessa perspec-
tiva, a biologia tem um papel fundamental para constituir a teoria a respeito
do étnico e sua diferenciação nos grupos humanos, pois anula a história na
sua rigidez e compreende a diferença biológica, física como consequência
para a distinção cultural. Sendo assim, no momento em que a diversidade
humana foi percebida no campo da cultura, virou tema de interesse para a
ciência determinista no século XIX; ou melhor, o racismo não é apenas um
“companheiro de viagem da exploração colonial” (KREUTZ, 1999).
De acordo com a sociedade moderna, essa nova cultura escolar rees-
truturou-se no princípio da homogeneidade; assim, substituiu as escolas
isoladas, ou seja, um professor com uma turma (método individual).Des-
te modo, esse professor era remunerado pelo Estado ou por particulares e
as aulas poderiam acontecer em diversos lugares: na casa do professor, em
salas alugadas ou cedidas pelos poderes públicos e por pessoas físicas, e
na igreja. Em função disso, existia a confusão no entendimento entre cul-
tura escolar e cultura da população; consequentemente, o conhecimento
escolarizado era o conhecimento do professor (VAGO, 2000).
O princípio da homogeneidade apresenta as marcas constitutivas da
cultura escolar, isto é, “[...] as normas, os espaços, os tempos, os alunos,
os professores, os saberes e os processos de inculcação”(BARROSO, 2013,
p.6). Dessa maneira, este princípio se manifesta desde a origem da orga-
nização pedagógica da escola primária pública e tem como referência o

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MARIA LUCIA DA SILVA E CAROLINA CRISTINA DOS SANTOS NOBREGA

regime de “classe” que demonstra adaptação ao ensino coletivo, às moda-


lidades de ensino, na necessidade de atender vários alunos, simultanea-
mente, da mesma idade e nível de estudos, num espaço específico, com
um professor e um plano de estudo.
De acordo com Veiga (2016), no fim do século XIX, o que identificou
a diferença da função social da escola foi justamente o direito de voto e
os requisitos para o seu exercício (saber ler e escrever)e essa exigência na
educação popular consolidava a formação intelectual e moral do povo,
assim como o controle e a ordem social para a reforma da sociedade bra-
sileira. Igualmente, os debates entre a escola e a cidadania se intensifica-
ram expandindo as reformas educacionais, com a criação dos Grupos Es-
colares e a necessidade de mudança nas estruturas das Escolas Normais,
visto que as estruturas escolares para as crianças e para os professores
eram precárias.
C onforme referem Blay e Lang (2004), nas décadas iniciais do Impé-
rio, as mulheres não tinham acesso ao ensino secundário. Desta forma,
a oportunidade de continuar os estudos surgiu em 1875 quando a Escola
Normal passou a aceitar mulheres. Nessa situação, foi criada a seção fe-
minina, que funcionava no Seminário da Glória, e a seção masculina, em
um prédio anexo à Faculdade de Direito.
Em 1890, os republicanos paulistas iniciaram a reforma da Escola
Normal; logo, a ideia era pensar na formação de professores para trans-
formar a escola pública. Essa mudança corresponde ao método intuitivo
(VILLELA, 2007, p. 186) que enaltece a formação prática e técnica dos
docentes e resulta na formação da Escola-Modelo –por exemplo, a Caeta-
no de Campos, considerada um símbolo para organização de ensino das
escolas primárias. Dessa maneira, os grupos escolares eram obrigados a
seguir o método e a organização das escolas-modelo que se destacavam
nos centros urbanos (SOUZA, 1998).
Em 1894, na Praça da República, foi implantada a nova sede da Esco-
la Normal, que recebeu o nome de Caetano de Campos. Essa instituição
se tornou um espaço predominantemente feminino, pois as mulheres in-
gressaram em maior número (BLAY; LANG, 2004). Essa Escola-Modelo
buscou profissionais engajados nos novos métodos de ensino norte-ame-
ricano e, assim, encontrou as professoras Maria Guilhermina Loureiro

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VIRGÍNIA LEONE BICUDO E NEUSA SANTOS SOUZA: PROFESSORAS NEGRAS E SUAS VALIOSAS
TRAJETÓRIAS NA EDUCAÇÃO

de Andrade e Márcia Browne, indicadas pelo professor Lane, diretor da


Escola Americana (SOUZA, 1998).
Para Hilsdorf (1977), Américo Brasiliense, Caetano de Campos,
Campos Sales, Francisco Glicério, Prudente de Morais, Silva Jardim e
Rangel Pestana representam os republicanos que atuaram, direta ou in-
diretamente, na política educacional desse novo regime e se envolveram
na formação das elites, por meio das escolas particulares confessionais e
leigas, exercendo papéis sociais na figura de professor, aluno, fundador,
diretor, pais de alunos, entre outros, no fim do século XIX.
Portanto, interpretar os projetos de Caetano de Campos é reconhecer
as restrições desse projeto educacional republicano que se refere à socie-
dade de forma excludente e, assim, demonstra a opção política a favor do
imigrante estrangeiro. Em razão disso, o transplante cultural é visível na
importação dos moldes norte-americanos, com que o darwinista Cae-
tano de Campos ansiava implantar, uma vez que há o movimento para
transplantar no país novas populações (imigrantes estrangeiros), pois,
somente elas constroem o tão ambicionado e luminoso progresso. É evi-
dente que esse ponto de vista proporcionou uma nova escola apoiada na
percepção racista e moralizadora que compreendeu a equivalência entre a
representação do imigrante estrangeiro e o aperfeiçoamento da raça bra-
sileira (CARVALHO, 2003).
A presença significativa da imigração em todo o estado de São Paulo
ocasionou o elevado número de crianças estrangeiras ou filhas de estran-
geiros estudando nas escolas públicas (MIMESSE, 2001, p. 69). A primei-
ra década republicana apresenta a grande tensão racial no cotidiano das
instituições. Na investigação a respeito da história das escolas privadas
e públicas, a autora expõe o depoimento de Dona Joana Fiorotti Zanini
(uma ex-aluna da escola feminina, na cidade de São Caetano do Sul):“[...]
na escola, no recreio a gente falava tudo italiano, porque era tudo filho
de italiano, tinha só uma pretinha chamada Aurora” (ROSSI, 2005, p. 60).
É necessário encarar o silêncio a respeito das lutas da população ne-
gra no processo de abolição e pós-abolição no Brasil, principalmente para
ressaltar as escolas negras, ou melhor, a iniciativa da população negra. Em
1898, a Irmandade de São Benedito tinha a sua seção feminina com 21
matriculadas e a senhora Ana de Almeida Cabral como professora negra.

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MARIA LUCIA DA SILVA E CAROLINA CRISTINA DOS SANTOS NOBREGA

Em 1919, a Progresso e Aurora desenvolveu classes mistas e pode-se afir-


mar que foi a escola de negros de maior longevidade na cidade de São Paulo
(PEREIRA, 1999). Por isso, diante das alternativas, considera-se que a
presença de Auroras nas escolas primárias do Estado de São Paulo era
incomum. Aliás, as escolas criadas pela população negra era a resposta
para o peso da discriminação racial, pois as escolas primárias dificul-
tavam, negavam e vetavam a matrícula da população negra (DOMIN-
GUES,2016).
As pesquisas históricas interpretaram o processo da Abolição como
um acontecimento irrelevante e desprovido de mudanças concretas na
sociedade brasileira; assim, para esses estudos, as populações afrodes-
cendentes foram substituídas pelos imigrantes devido à incapacidade de
competir com os mesmos, uma vez que, desamparadas à própria sorte,
não poderiam lutar pelos postos de trabalho (LUCINDO, 2016).
Segundo Carvalho (2003), a nacionalização do ensino envolvia dois
aspectos interligados: a inserção do imigrante estrangeiro e a ação de “abra-
sileirar os brasileiros”, por meio da alfabetização, da educação moral e cí-
vica. Do mesmo modo, o imigrantismo indicava “[...] não somente a troca
do negro pelo branco nos setores fundamentais da produção, como tam-
bém arquitetava um projeto de regeneração e capacitação para o trabalho”
(CARVALHO, 2003, p.31). Além disso, a miscigenação era um instrumento
para alcançar o branqueamento moralizador das populações negras.
Segundo Munanga (2008), o racismo brasileiro adquiriu, ao longo da
história, uma forma peculiar para estruturar as hierarquias sociais e a per-
manência dos privilégios de um grupo (racial) em detrimento de outro.
Essa prática efetivou-se no processo de construção da identidade, o que nos
remete ao fim do sistema escravocrata, somado ao advento da República,
pois a elite brasileira impôs para negros, índios e mestiços (excluídos, até
então, da chamada sociedade colonial) a condição de sujeitos assimilados
ou incorporados a uma nação que se pretendia europeizada e branca.
É nesse cenário racista do Estado de São Paulo que a elite brasileira
estruturou a escola da nova ordem, com base no entendimento racista e
moralizador. Sendo assim, a Escola Normal Caetano de Campos intensifica
a exclusão da população negra no aperfeiçoamento da raça brasileira, com
foco na identidade nacional republicana, na qual a população negra não

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VIRGÍNIA LEONE BICUDO E NEUSA SANTOS SOUZA: PROFESSORAS NEGRAS E SUAS VALIOSAS
TRAJETÓRIAS NA EDUCAÇÃO

era considerada na construção da cidadania. Contudo, algumas crianças


negras tiveram acesso às escolas como essa; por exemplo, Virgínia Leone
Bicudo, mulher negra, “pioneira da Psicologia e da Psicanálise no Brasil”
(ABRÃO, 2014, p. 217).
A biografia de Virgínia Leone Bicudo apresenta a história da sua famí-
lia e revela que seus avós maternos vieram da Itália no processo de imigra-
ção para trabalhar na fazenda de café, em Campinas que pertencia à família
do Coronel Bento Augusto de Almeida Bicudo, posteriormente, senador e
fundador do jornal O Estado de São Paulo(MAIO, 2010). A avó paterna de
Virgínia Bicudo era Virgínia Júlio, uma mulher negra, escravizada e alfor-
riada na fazenda Matto Dentro do Jaguari (Campinas). Dela sabemos que
teve dois filhos, o pai de Virginia Bicudo, o senhor Teófilo Bicudo e o irmão
falecido. Desse modo, Teófilo Bicudo era afilhado do Coronel que não co-
nheceu o seu pai e a sua mãe desapareceu (GOMES, 2013).
A senhora Giovanna Leone adotou o nome de Joana Leone e foi ama,
babá da filha de criação do Coronel; aí conheceu Teófilo, e assim se casa-
ram. O casal se muda para São Paulo, especificamente para a rua Aurora,
em Santa Ifigênia e, posteriormente, para a casa número catorze da Vila
Economizadora, na Luz. Diante da sociedade que se apresentava, o se-
nhor Teófilo adotou o sobrenome Bicudo. Uma das razões para essa prá-
tica é a ausência de um sobrenome próprio; assim, utilizou o sobrenome
do Coronel (MORETZSOHN, 2013). Outra possível razão é a imposição
do embranquecimento.
Em 1910, nasceu Virgínia Leone Bicudo, a segunda filha do casal
e foi considerada uma moça branca no registro da carteira de trabalho.
De classe média, aprendeu com o pai a importância dos estudos; assim,
concluiu os cursos primário e médio na Escola Normal do Brás, em 1921.
Já o secundário fez na Escola Normal Caetano de Campos, uma vez que
o curso de magistério era um dos poucos caminhos possíveis para as mu-
lheres que precisavam viver do próprio trabalho (MAIO, 2006).
Assim, foi em 1930, na Escola Normal Caetano de Campos, na Ca-
pital, que conquistou o diploma para trabalhar nas escolas públicas do
Estado de São Paulo e, por muitos anos, em vários órgãos municipais
e estaduais, sempre na área da educação (TEPERMAN, KNOPF, 2011).
Dessa forma, “[...] exerceu o magistério na categoria de ‘professora

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MARIA LUCIA DA SILVA E CAROLINA CRISTINA DOS SANTOS NOBREGA

substituta permanente’ nos Grupos Escolares Carandiru e Consolação”


(MAIO, 2010, p. 310). “E faz carreira no ensino público como professora
primária” (MORETZSOHN, 2013, p. 212). Portanto, essa leitura ressalta a
importância da educação na vida dessa mulher negra, sobretudo na supe-
ração das marcas do preconceito e da discriminação racial, pois a mesma
representa a população negra na ocupação desses espaços elitizados.
Em 1945, com o título Estudo de atitudes raciais de pretos e mulatos
em São Paulo, Virgínia Leone Bicudo apresenta a primeira dissertação de
mestrado sobre a questão racial no Brasil, sendo esse um trabalho pio-
neiro. A insistência no aprimoramento de sua formação demonstra mais
uma conquista, ou seja, mestrando na mesma instituição em que realizou
a graduação, a Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo, e nesse
período ocupava o cargo de professora assistente de Psicanálise e Higiene
Mental (TEPERMAN, KNOPF, 2011). 
Possivelmente, Virgínia Leone Bicudo e Neusa Santos Souza tenham
lido, debatido seus textos e refletido sobre suas contribuições à questão
racial. Respectivamente, viveram nas cidades de São Paulo e Rio de Janei-
ro, isto é, dois territórios com a presença marcante da população negra,
onde as questões de ascensão social das negras e dos negros ajudam a
ilustrar suas pesquisas. Segundo Pinto (1987), Carvalho e Silva (2014), a
história da escolarização da população negra no Brasil, e especialmente
em São Paulo, é um processo pouco conhecido e explorado nas pesquisas
sobre relações raciais. Um dos motivos é a precariedade, tal como a au-
sência de dados oficiais sobre a cor/raça da população escolar. Aliás, a bi-
bliografia sobre “a educação do negro e da negra” é pouco sistematizada.
Na pesquisa que realizamos para este texto não encontramos material
que sinalizasse encontro entre essas duas mulheres negras ou referência
de seus textos em suas pesquisas, mas como sabemos que a psicanálise
está organizada no Brasil em Sociedades, e que Bicudo foi a professora
que fundou a cadeira de psicanálise na Escola de Sociologia e Política,
integrando o grupo que fundou A Sociedade Brasileira de Psicanálise, em
São Paulo, podemos suspeitar que houve entre as duas autoras conheci-
mento de suas epistemologias. Vamos nos valer de uma resposta de Bi-
cudo a Maio (2010, p. 23), a qual informa: “fiz e faço, e pretendo fazer e
incentivar o desenvolvimento da psicanálise. Eu levei a psicanálise para

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VIRGÍNIA LEONE BICUDO E NEUSA SANTOS SOUZA: PROFESSORAS NEGRAS E SUAS VALIOSAS
TRAJETÓRIAS NA EDUCAÇÃO

Brasília. [...] Onde achava que precisava levar a psicanálise, eu levei”. As-
sim, afirmamos aqui nossas suspeitas de que houve momentos de interse-
ção nas trajetórias profissionais dessas autoras.
Na introdução do seu livro, Tornar-se Negro, Souza (1990, p. 17) ex-
plica que o seu objetivo é:

[...] um olhar que se volta em direção à experiência de ser-se ne-


gro numa sociedade branca. De classe e ideologias dominantes
brancas. De estética e comportamentos brancos. De exigências e
expectativas brancas. Este olhar se detém, particularmente, sobre
a experiência emocional do negro que, vivendo nessa sociedade,
responde positivamente ao apelo da ascensão social, o que implica
na decisiva conquista de valores, status e prerrogativas brancos.

Desse modo, a originalidade das ideias de Bicudo, na metade da


década de 1940, a transforma em referência na interpretação das dores
produzidas pelo racismo. Podemos dizer que 40 anos depois (início dos
anos de 1980) vamos encontrar, nos textos de Souza, a originalidade de
articular as questões de classe, ascensão social, aplicando a psicanálise
aos comportamentos do segmento negro da sociedade brasileira, especi-
ficamente no Rio de Janeiro. E que transformar-se em negro e em negra
é ter consciência do processo ideológico que o racismo engendra, não se
afastando de seus valores originais da cultura negra e muito menos de
tomar o branco como único trajeto de “tornar-se gente”.
O reconhecimento permanente da dimensão de gênero, assim como
a classe, a raça para demonstrar e compreender o lugar da fala, do enfren-
tamento, dos desafios teóricos, práticos do cotidiano, encontram-se na
superação das desigualdades sociais e evidenciam a condição sócio-histó-
rica. Segundo Scott (1995), gênero é o primeiro modo de dar significado
às relações de poder e é um elemento constitutivo das relações sociais.
Portanto, foram essas mulheres, educadoras negras, que deixaram muito
de seus estudos ainda a serem explorados e publicados e dessa maneira
nos possibilitaram refletir e referendar decisões para uma educação antir-
racista, tal como o enfrentamento da sociedade machista.
Em um momento emocionante de sua entrevista a Maio (2010, p. 13),
Virgínia Bicudo ilustra assim a história de seu pai:

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MARIA LUCIA DA SILVA E CAROLINA CRISTINA DOS SANTOS NOBREGA

[...] vou contar uma coisa tristíssima da história dele. Ele queria fa-
zer universidade. Na época era Curso Superior. E ele queria ir para
Medicina. Então estava no sexto ano do ginásio. Veja que homem
esforçado, hein? Veio de empregado doméstico que ele era, depois
foi subindo e fez o Ginásio do Estado. E quando terminou o Giná-
sio do Estado naquele ano, ele passava direto para Faculdade de
Medicina. Naquele tempo não havia vestibular para Medicina. Ter-
minava o ginásio e entrava na Medicina ou em qualquer curso su-
perior. Então, o professor que chamava Barros ou Barrinhos, do
ginásio do último ano, quando viu que meu pai ia para Faculdade
de Medicina, reprovou. Porque ele disse que negro não podia ser
médico. Então, meu pai durante 10 anos ficou fazendo o sexto ano
para passar e entrar na Medicina. E esse professor que eu não es-
queço o nome... Parece que é castigo, Barros, da Física, reprovava.
[...] Depois desses 10 anos, aí não pôde entrar, porque não tinha
mais essa entrada direta do ginásio para Medicina. Aí tinha que
fazer vestibular. Aí meu pai desistiu, já tinha a filharada toda. En-
tão ele foi barrado por preconceito. Puro preconceito. Eu quando
criança via tudo isso. Eu já existia quando meu pai ficou nessa luta.
Eu já ouvia as brigas todas, as decepções que não podia entrar, mas
ele tinha que ir. Tudo isso eu vi, acompanhei como criança.

O combate ao racismo, o tornar-se negro, os registros e as pesquisas


científicas a respeito da educação da negra (do negro) e a negra (o negro)
na educação inauguram novos tempos para nós, professores(as) negros(as).
Sendo assim, a narrativa se preocupou em enfatizar a condição da raça,
de gênero das educadoras. Entretanto, não podemos esquecer os múltiplos
fatores que foram subsídios na vida dessas mulheres negras, isto é, a escola
pública, a família, os saberes, experiências, o estudo como ferramenta de
luta e ascensão social, logo, a emancipação da mulher negra.

Considerações finais

As questões raciais e de gênero precisam ser centrais nas pesquisas que


evidenciam a importância da população negra nos espaços de produção
do conhecimento, nas condições de produção desse tal como a luta pela
ressignificação da educação básica. Dessa maneira, falar a respeito da tra-
jetória das educadoras negras é reafirmar a necessidade da superação das

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VIRGÍNIA LEONE BICUDO E NEUSA SANTOS SOUZA: PROFESSORAS NEGRAS E SUAS VALIOSAS
TRAJETÓRIAS NA EDUCAÇÃO

formas de opressão presentes na sociedade brasileira, que se expressam nas


normas, dilemas e práticas do âmbito escolar e têm como fundamento o
mito da democracia racial.
Para nós, educadoras negras que ainda temos os desafios da sala de
aula, da pesquisa e o enfrentamento cotidiano do racismo no ambiente
escolar, o momento colocado pelas conquistas da Lei n.º 10.639/2003, e
de tudo mais que estamos vivenciando com os movimentos sociais ne-
gros, torna-nos protagonistas nesse cenário de inclusão e nos qualifica
para contribuir com um olhar crítico sobre os conteúdos e currículos
com o objetivo de favorecer também as(os) educandas(os) negras(os), a
sua história, até então negligenciada, sendo esses professores os proposi-
tores de novas epistemologias, bem como da ação de tornar-se negro(a).
As negras e os negros perceberam e percebem “[...] a necessidade de
criar técnicas sociais para melhorar a sua posição social e/ou obter mo-
bilidade social vertical, visando superar a condição de excluídos” (SAN-
TOS, 2005, p.21). À vista disso, conhecer a trajetória de Virgínia Leone
Bicudo e Neusa Santos Souza é evidenciar a valorização da educação for-
mal como técnica social inerente ao processo de emancipação (apesar
da responsabilidade da escola na conservação das desigualdades sociais).
Desse modo, é indispensável a ação de ressignificar e descolonizar a his-
tória da população negra, pois esse ato reafirma a necessidade de nos
recriarmos nas nossas potencialidades.
Assim como também acreditamos que a educação é o pilar que vai dar
base para que a resistência se consolide, e que a professora negra conscien-
te de seu papel vai representar para os educandos e educandas, negros e
negras, não negros e não negras, o exemplo de quem enfrenta os percal-
ços e as barreiras postas pelo racismo, entendendo melhor seus educan-
dos e, por isso, aberta à interlocução e às parcerias.
São essas professoras negras, imersas na cultura negra que, em razão
da militância, podem identificar com melhor precisão o conteúdo racista
na produção de novos saberes e, assim como essa militância, favorecer o
desenvolvimento de redes solidárias, tão recorrentes na cosmovisão afri-
cana, para que os alunos concluam e prossigam nas atividades acadêmi-
cas. E que esse diálogo produza a construção da Pedagogia de combate ao
racismo e os processos educativos mais diversos, igualitários e solidários.

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MARIA LUCIA DA SILVA E CAROLINA CRISTINA DOS SANTOS NOBREGA

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107
Mulher
negra:
arte,
literatura
e culturas
MULHER, TRANSEXUAL E NEGRA: INTERSECÇÕES DA EXCLUSÃO ESCOLAR

110
CAROLINA MARIA DE JESUS: MEMÓRIAS DE
UM TEMPO DE EUGENIA E LOUCURA

Régia Vidal dos Santos1


Neide Cristina da Silva2

Introdução

Um refúgio?
Uma barriga?
Um abrigo onde se esconder quando estiver se afogando na chuva,
ou sendo quebrado pelo frio, ou sendo revirado pelo vento?
Temos um esplêndido passado pela frente?
Para os navegantes com desejo de vento, a memória é um ponto de
partida.
(GALEANO, 2007, p. 96).

1  Doutoranda em Educação na Universidade Nove de Julho (UNINOVE) no Programa de


Pós-Graduação em Educação (PPGE), com formação inicial em Artes Visuais pela FAAP.
Atua como professora de Arte na rede estadual de ensino e como professora convidada no
PPGE lato sensu da UNINOVE. E-mail: regiavs@gmail.com

2 Doutora em Educação na Universidade Nove de Julho (UNINOVE). Coordenadora


discente do grupo de pesquisa Ylê-Educare: educação e questões étnico-raciais. Atua como
professora convidada no PPGE lato sensu da UNINOVE e professora titular na Faculdade
Carlos Drummond de Andrade. E-mail: neidesilva87@hotmail.com

111
CAROLINA MARIA DE JESUS: MEMÓRIAS DE UM TEMPO DE EUGENIA E LOUCURA

Apesar de, como afirma Fayga Ostrower (2008), a criatividade ser a


essencialidade do humano nos homens e mulheres, ser uma intensifica-
ção da vida ou, em outras palavras, o que lhe dá sentido, durante séculos
coube, preeminentemente, ao poder falocêntrico e branco o espaço do
pensamento e da criação na literatura e nas artes.
Como será demonstrado, por meio das narrativas de Carolina Maria
de Jesus, em uma sociedade patriarcal fortemente eugênica, não só o gê-
nero, mas também a cor da pele distinguiu (e distingue) quem é opressor
e quem é oprimido, restando a uma negra, entre os desafios da sobrevi-
vência, reunir forças para sobrepujar os inúmeros estereótipos e adversi-
dades; manter vivas sua curiosidade em relação ao mundo, sua criativida-
de expressiva e, assim, resguardar o espaço da utopia, escapar da loucura
e contar sua história.
Em Quarto de despejo: diário de uma favelada, Carolina Maria de Jesus
(1960) narra, de forma poética, o cotidiano de alguém que, como o próprio
título aponta, vive à margem, tal qual tudo o que não tem valor, tudo o
que não se quer ver. Em seu livro Diário de Bitita (JESUS, 2014), expõe as
memórias da infância e, ao apresentar as experiências de opressão do negro
– em particular, da mulher negra –, aponta as tentativas de anulamento de
sua vida, de sua história e, desta forma, ultrapassa a caracterização de um
tempo marcado por desigualdade social, preconceito e a imperiosa necessi-
dade de contestação da ordem e da lógica opressor-oprimido.
Nesse sentido, inúmeras sendas se abrem para análise. Em Carolina
Maria de Jesus: memórias de um tempo de eugenia e loucura, o leitor po-
derá refletir, por meio das experiências de vida de uma mulher negra e
pobre, sobre a linha tênue que separa a necessária coragem humana para
enfrentar cada novo dia e o que neste período se transformou em lugar
comum: a loucura.
Para tanto, este capítulo foi dividido em quatro partes: na primeira,
por meio das obras Quarto de despejo: diário de uma favelada e Diário de
Bitita, apresenta-se Carolina Maria de Jesus e suas narrativas de uma época
de injustiça, preconceito e discriminação; na segunda, coloca-se em cena a
banalização do racismo e da loucura e a ascensão dos hospícios; na tercei-
ra, Paulo Freire e Angela Davis apoiam as reflexões sobre o significado da
liberdade e da emancipação, neste cenário de opressão a que é submetida a

112
RÉGIA VIDAL DOS SANTOS E NEIDE CRISTINA DA SILVA

mulher negra; nas considerações finais, convidamos o leitor a refletir sobre


as palavras de Galeano: podemos ter um esplêndido passado pela frente?

Carolina Maria de Jesus e suas narrativas: entre a miséria, a injustiça,


o preconceito e a discriminação

As palavras de Bauman (2005, p. 47) ajudam a identificar o lugar que


ocupou, em vida, Carolina Maria de Jesus, para quem ela está entre eles:
“[...] eles são os sujeitos dos quais devia haver menos – ou melhor ainda,
nenhum. E nunca há um número suficiente de nós. ‘Nós’ são as pessoas
das quais devia haver mais”. Ou seja, ela não está entre “nós”, os que alme-
jam a ordem e o progresso; está entre as vidas indignas de serem vividas,
entre os “[...] alvos legítimos excluídos da proteção da lei por ordem do
soberano” (BAUMAN, 2005, p. 53).
Carolina carregou consigo os estigmas e os dramas da exclusão: mu-
lher negra, pobre, semianalfabeta, mãe solteira que, por não ter emprego,
catava papel. Para desviar os pensamentos angustiantes, burlar o cansaço
e a fome, enfim, salvar sua vida, escrevia: “[...] quando fico nervosa não
gosto de discutir. Prefiro escrever. Todos os dias escrevo. Sento no quintal
e escrevo” (JESUS, 1960, p. 19).
Carolina, ou melhor Bitita, como era conhecida na infância, nasceu
aos 14 de março de 1914 no interior de Minas Gerais e, apesar de terem se
passado 26 anos do tempo de escravidão, testemunhou e sentiu na pele os
preconceitos decorrentes do pensamento racista que se entremeava com
a miséria quase absoluta de sua gente.
A curiosidade, a ânsia por saber a diferenciava.

O que preocupava a minha mãe era a minha mentalidade. Se al-


guém lhe perguntava:
− A tua filha é louca?
Ela respondia:
− A aparência é de louca. Mas não é (JESUS, 2014, p. 25).

Iniciou suas memórias de infância lembrando as condições precárias


que vivia junto à família e o medo que sentia ao observar a irracionalidade

113
CAROLINA MARIA DE JESUS: MEMÓRIAS DE UM TEMPO DE EUGENIA E LOUCURA

desse mundo, no qual as autoridades agem de forma arbitrária, e a “lei”


serve para negros, negras e meretrizes.

Um dia minha mãe estava lavando roupa. Pretendia lavá-la depres-


sa para arranjar dinheiro e comprar comida para nós. Os policiais
prenderam-na.
Fiquei nervosa, mas não podia dizer nada. Se reclamasse o soldado
me batia com um chicote de borracha.
E a notícia circulou.
− A Cota foi presa.
− Por quê?
Quando meu irmão soube que mamãe estava presa começou a cho-
rar. Andávamos ao redor da cadeia chorando. À meia noite resol-
veram soltá-la. Ela agradeceu, e depois chorou.
Eu pensava: “Só as pretas que vão presas” (JESUS, 2014, p. 31).

Bitita não tinha atração por bonecas, queria entender a vida, o que
a levou a apreender, muito cedo, o significado da palavra injustiça. Suas
observações e sensações lhe mostravam que não poderia viver tranquila
em um mundo tão assimétrico, no qual ter uma pele branca era o mesmo
que ter um salvo conduto. Percebia que, quando os brancos cambalea-
vam na rua, tinham uma justificativa bem diferente dos negros: para os
primeiros, tratava-se de indisposição; para os que carregavam o estigma
do racismo, era resultado de pinga e, assim, quem ia preso era sempre o
negro. Esse aprendizado não poupou sua vida de criança; ouvia o tempo
todo: “Negrinha vagabunda. Negro não presta” (JESUS, 2014, p. 58).
Nada lhe parecia minimamente justo. Enquanto para os brancos o
meio de vida estava garantido, para os negros a sobrevivência era exaus-
tiva e estudar era praticamente impossível. Nas palavras de seu avô, as
escolas não abriam suas portas para os negros. De acordo com Bitita,
havia a incompreensão e a revolta, pois o sonho de muitos era aprender a
ler e escrever, mas “A escravidão era como uma cicatriz na alma do negro”
(JESUS, 2014, p. 61).
Filha de poeta boêmio que, logo após seu nascimento, abandonou sua
mãe com outros dois filhos, nos primeiros anos de vida, Bitita chorava dia
e noite. A mãe, na tentativa de compreender o que se passava, procurou

114
RÉGIA VIDAL DOS SANTOS E NEIDE CRISTINA DA SILVA

um médico, que lhe assegurou: “Ela vai adorar tudo o que é belo! A sua
filha é poetisa; pobre Sacramento, do teu seio sai uma poetisa. E sorriu”
(JESUS, 2014, p. 74).
Em virtude do desejo de compreender o mundo, a vida e a morte,
Bitita não parava de questionar e, como resposta, ouvia:

− Cale a boca, cadela! Você quer me deixar louca! Eu não conheço


o céu, eu nunca estive lá. Só depois que eu morrer é que eu vou para
o céu. Mas deve ser ruim morrer.
Minha tia Claudimira dizia:
− Se eu fosse você internava essa negrinha num hospício (JESUS,
2014, p. 78).

Os anos se passaram, mas a infelicidade dos negros não. Quando


ocorria um roubo, eram os suspeitos. Lembra, muitas vezes, os olhares
tristes destes afirmando não terem culpa ao serem chamados de ladrões
ordinários. Lembra também que não foi difícil se reconhecer negra.

Eu sabia que era negra por causa dos meninos brancos. Quando
brigavam comigo diziam:
− Negrinha! Negrinha fedida!
[...] Não compreendi, mas achei tudo isso tão confuso! Por causa
dos meninos brancos criticavam o nosso cabelo:
− Cabelo pixaim! Cabelo duro!
Eu lutava para fazer os meus cabelos crescerem. Era uma luta inú-
til. O negro é filho do macaco [...]. Fui ficando triste. O mundo há
de ser sempre assim: negro para aqui, negro para ali. E Deus gosta
mais dos brancos do que dos negros. Os brancos têm casas cober-
tas com telhas. Se Deus não gosta de nós, por que nos fez nascer?
(JESUS, 2014, p. 95).

Sobre a escola, recorda, em um primeiro momento, ao olhar o espaço


e ouvir as outras crianças, não ter gostado, mas foi lá que aprendeu a ler
e escrever.

Quando eu olhava os quadros dos esqueletos, o meu coração acele-


rava-se. Amanhã, eu não volto aqui. Eu não preciso aprender a ler.
É que eu estava revoltada com os colegas de classe por terem dito

115
CAROLINA MARIA DE JESUS: MEMÓRIAS DE UM TEMPO DE EUGENIA E LOUCURA

quando eu entrei:
− Que negrinha feia!
Ninguém quer ser feio.
− Que olhos grandes, parece sapo.
Minha mãe era pobre. Dona Maria Leite insistiu com mamãe para
enviar-me à escola. Eu fui apenas para averiguar o que era a escola
(JESUS, 2014, p. 125-126).

E somou-se a essa vivência a observação da realidade, o gosto pela


leitura e a compreensão da ignorância de quem escraviza e das diferen-
ças sociais.

Se o filho do patrão espancasse o filho da cozinheira, ela não podia
reclamar para não perder o emprego. Mas se a cozinheira tinha filha,
pobre negrinha. O filho da patroa a utilizaria para o seu noviciado se-
xual. Meninas que ainda estavam pensando nas bonecas, nas cirandas
e cirandinhas eram brutalizadas pelos filhos do senhor Pereira, Morei-
ra, Oliveira e outros porqueiras que vieram do além-mar.
No fim de nove meses a negrinha era mãe de um mulato, ou pardo. E
o povo ficava atribuindo paternidade: − Deve ser filho de fulano! Deve
ser filho de Sicrano. Mas a mãe, negra, sem cultura, não podia revelar
que o seu filho era neto do doutor X, ou do doutor Y. Porque a mãe ia
perder o emprego. Que luta para aquela mãe criar aquele filho! Quantas
mães solteiras se suicidavam, outras morriam tísicas de tanto chorar.
(JESUS, 2014, p. 38).

Conforme crescia, sentia-se, mais e mais, “[...] como se fosse um re-


fugo. Uma moeda fraca, sem cotação” (JESUS, 2014, p. 190). Em Quarto
de despejo: diário de uma favelada, confidenciou sua luta diária pela so-
brevivência entre os anos de 1955 e 1960 e, nesta escrita, revelou o que a
sociedade destina a mulheres como ela.

As oito e meia da noite eu já estava na favela respirando o odor dos


excrementos que mescla com barro podre. Quando estou na cida-
de tenho a impressão que estou na sala de visita com seus lustres
e cristais, seus tapetes de veludo, almofadas de cetim. E quando
estou na favela tenho a impressão que sou um objeto fora de uso,
digno de estar num quarto de despejo. (JESUS, 1960, p. 33).

116
RÉGIA VIDAL DOS SANTOS E NEIDE CRISTINA DA SILVA

Quando estou com pouco dinheiro procuro não pensar nos filhos
que vão pedir pão, pão, café. Desvio meu pensamento para o céu.
Penso: será que lá em cima tem habitantes? Será que eles são me-
lhores do que nós? Será que as nações de lá é variada igual aqui
na terra? Ou é uma nação única? Será que lá existe favela? E se lá
existe favela será que quando eu morrer eu vou morar na favela
(JESUS, 1960, p. 45).

Em sua obra, Carolina Maria de Jesus apresentou uma imagem que


não é só dela, mas de mulheres que carregam o estigma resultante da cor
da pele e da pobreza e que, não aceitando as condições abjetas às quais
são submetidas as pessoas negras, bradam por mudanças de vida. Caro-
lina não se conformava com a miséria e a discriminação, entretanto não
se valia da autocomiseração por ser negra e pobre. Em vários momentos
afirmou não se sentir bem por estar suja, mas nunca por ser negra. Sua
vida foi marcada pela incompreensão do tratamento diferenciado dado às
pessoas por conta de questões étnico-raciais e sociais; seus escritos refle-
tem essa vida e, assim, apresentam uma originalidade incomum.
Em Diário de Bitita, Carolina Maria de Jesus (2014, p. 192) afirmou:
“[...] comecei a compreender que eu recebo uma proteção, e desconheço a
origem”. Talvez essa certeza tenha se somado ao desejo de se desvencilhar
dessa identidade reprimida, da fome e da exclusão, e tenha lhe dado for-
ças para sobreviver à angustia e à solidão, infiltrar-se no território branco
e masculino da literatura e, mesmo sendo chamada de louca, sobreviver
a mais este estereótipo.

Banalização do racismo e ascensão dos hospícios como espaço de


confinamento dos corpos indesejados

Os caminhos presentes na história, que levam à desrazão, permeiam
de forma sublime a obra de Carolina Maria de Jesus e de outros escritores
que apresentam a loucura como fruto do julgamento da sociedade.
Guimarães Rosa (1985) ilustrou muito bem situações em que a lou-
cura é relativa, como no conto “Sorôco, sua mãe, sua filha”, cuja história
é de um sertanejo que conduz sua mãe e sua filha, únicas pessoas de sua
família, ao trem dos loucos, aquele que tinha como destino a Colônia de

117
CAROLINA MARIA DE JESUS: MEMÓRIAS DE UM TEMPO DE EUGENIA E LOUCURA

Barbacena. E se a princípio todos da comunidade condenavam as atitudes


das parentas de Sorôco, como, por exemplo, cantar uma música inteligí-
vel, por fim, todos passam a cantá-la.
Nesse conto, Guimarães Rosa apresenta o triste destino de quem não
se encaixava nos moldes de uma sociedade patriarcal, branca e exclu-
dente. A segregação social e espacial, neste caso, era o banimento para o
hospício.
Na verdade, o Hospital Colônia de Barbacena foi um campo de con-
centração no qual, segundo Arbex (2013), mais de 60 mil pessoas morre-
ram de fome, de frio, devido à tortura e à desumanidade daqueles ditos
sãos, que deveriam cuidar e buscar a cura dos(as) loucos(as).
Infelizmente, este não foi um caso isolado. O que conduz ao questio-
namento: o que é loucura, estariam todos loucos? Ou o que se julgou lou-
cura, em um momento, não o era no momento seguinte? Talvez a própria
loucura possa ajudar a responder essas questões!
No século XVI, Erasmo de Rotterdam dá voz à Deusa da Loucura,
Mória, para um autoelogio. Nasce o livro Elogio da Loucura.
De acordo com a Deusa Mória, seria impossível aos pobres mor-
tais sobreviver entre guerras, paz, impérios, tribunais, matrimônios,
enfim, todos os negócios públicos e privados, se não fosse a loucura;
em outras palavras, seria impossível suportar a vida sem uma boa dose
de insanidade.
Mória prossegue suas reflexões lembrando que existem várias formas
de loucura e “[...] quanto mais alguém é louco, tanto mais é feliz, [...]
porquanto não há sem dúvida, no gênero humano, um só indivíduo que
seja sábio a todo momento e desprovido de qualquer espécie de loucura”
(ROTTERDAM, 2012, p. 57). Nesse sentido, essa Deusa realiza uma re-
flexão sobre a diferença entre os tipos de loucura:

Um homem que tomasse por abóbora uma mulher seria tratado


como um louco porque um erro desses é cometido por muito pou-
ca gente. Mas o homem, cuja mulher possui numerosos amantes,
acredita e afirma, cheio de orgulho, que ela ultrapassa em fideli-
dade a própria Penélope, a esse ninguém haverá de chamá-lo de
louco, porque esse estado de espírito é comum a muitos maridos.
(ROTTERDAM, 2012, p. 57).

118
RÉGIA VIDAL DOS SANTOS E NEIDE CRISTINA DA SILVA

Como se pode ver, tanto no conto de Guimarães Rosa quanto na re-


flexão da Deusa Mória, o caráter sexista segregativo está presente no que
é denominada loucura que, por sua vez, é conveniente a quem detém o
poder, passando a ser propagado e compartilhado por toda a comunidade.
A definição do que é loucura foi apresentada de diferentes formas ao
longo da história e nas diferentes sociedades, e existem divergências entre
as áreas médica, antropológica, sociológica etc. Como o presente estudo
não é médico e sim uma reflexão sobre a loucura e a eugenia, optou-se
por entender a loucura a partir de uma perspectiva relativista, pois, de
acordo com Pereira (1984, p. 27), “[...] cada sociedade forma da doença
um perfil que se desenha através do conjunto das possibilidades humanas
enfatizadas ou reprimidas culturalmente”. Por conseguinte, a doença va-
ria de acordo com os costumes, sendo considerados sintomas de doença
mental: ideias, conceitos ou crenças do paciente que divergem dos da so-
ciedade na qual o “alienado” está inserido.
E corroborando com esta perspectiva, a loucura, para Foucault
(1978), caracteriza-se pela forma como a sociedade experimenta e viven-
cia essa relação, sendo um objeto historicamente construído e não um
objeto natural, que existe desde o início dos tempos.
No continente europeu, os excluídos (classificados como loucos)
ocuparam os lugares anteriormente destinados aos leprosos, sendo que o
primeiro registro de um hospital psiquiátrico foi o do Hospital Bethlem
Royal, na Inglaterra, em 1247. Entretanto, este lugar, em vez de propor-
cionar atendimento e cura, submetia os internos a tratamentos bárbaros,
como: encarceramento em celas, torturas físicas e exposições vexatórias.
Na França, a criação do Hospital Geral de Paris, em 1656, foi o mar-
co do período da grande internação, do enclausuramento dos corpos
indesejados naquela sociedade, sob a égide da loucura. O tratamento
destinado aos internos era similar aos praticados pelo Bethlem Royal
desde o século XIII.
A partir do século XVIII e XIX, a situação dos hospitais destinados
aos considerados loucos, na Europa, começou a mudar em virtude das
intervenções do médico francês Philippe Pinel, que propôs a liberação
das correntes dos internos e a realização de terapia ocupacional, além da
separação entre criminosos e pacientes (FONTE, 2012).

119
CAROLINA MARIA DE JESUS: MEMÓRIAS DE UM TEMPO DE EUGENIA E LOUCURA

No Brasil, a loucura não recebeu muita atenção dos órgãos gover-


namentais até o século XIX. Em virtude disso, os alienados viviam pelas
ruas e/ou com suas famílias, sem representarem uma grande ameaça para
a sociedade. Esta situação modifica-se no século XIX com a ideia de cria-
ção de um Estado independente e moderno, com prerrogativas higienis-
tas e com ênfase no projeto de branqueamento da população.
Neste contexto, iniciou-se em 1841 a construção do primeiro Hos-
pital Psiquiátrico do Brasil, o Hospital Pedro II, que foi inaugurado em
1852. Ao longo do século XIX, a loucura no Brasil foi medicalizada e o
tratamento psiquiátrico teve como principal fundamento o isolamento do
louco da vida social. Surgiram as Colônias.
Dentre essas Colônias, espaços supostamente destinados aos pacien-
tes curáveis, encontra-se o Hospital Colônia de Barbacena, um dos maio-
res hospitais psiquiátricos do Brasil, inaugurado no início do século XX
no estado de Minas Gerais e que se transformou em um depósito de seres
humanos indesejados.
Muitas dessas pessoas eram embarcadas para o hospício no mes-
mo trem em que “a mãe e a filha de Sorôco” foram transportadas. Ao
chegarem à Colônia, tinham as cabeças raspadas, as roupas arrancadas,
os nomes e a humanidade esquecidos: tinham decretado a morte física
e moral. E a exemplo dos hospitais psiquiátricos da Idade Média na
Europa, o Colônia de Barbacena utilizava como método de tratamento:
choques elétricos, as celas onde encarceravam os pacientes menos dó-
ceis, tortura física e psicológica, privação de comida, de roupas, do sono
etc. Além disso, o hospital possuía um cemitério próprio e, sempre que
possível, vendia os corpos de seus pacientes para as universidades de
medicina, chegando a lucrar mais de R$ 600.000,00 com a venda desses
seres humanos.
Cabe ressaltar que somente 30% dos internos tinham diagnóstico de
problemas mentais (ARBEX, 2013). Os demais eram frutos de uma polí-
tica higienista que visava limpar os indesejados da sociedade; dentre eles,
epiléticos, alcoolistas, homossexuais, prostitutas, meninas violentadas,
presos políticos e também crianças. Segundo Arbex (2013), apesar de não
haver documentos que comprovem a cor dos internos, as fotografias, os
relatos e indícios permitem afirmar que a maioria era negra.

120
RÉGIA VIDAL DOS SANTOS E NEIDE CRISTINA DA SILVA

Fato similar ao que acontecia nos países africanos. De acordo com Pe-
reira (1984), no continente africano verificou-se também a colonização da
loucura, e o negro que não se adaptava ao processo de “civilização europeia”,
apresentando comportamento agressivo, era conduzido aos hospícios. No
Brasil, a situação não foi diferente e, a partir do século XIX, a população
negra começou a transformar-se em inimiga da sociedade, situação que se
acentuou com a aproximação da abolição da escravidão e do desejo de bran-
queamento da população.
Perpetuou-se o racismo institucional e até mesmo artistas negros fo-
ram encarcerados em hospícios, como o escritor Lima Barreto, o artista
plástico Bispo do Rosário (HIDALGO, 2017), a escultora Adelina Gomes,
o pintor Fernando Diniz, entre outros. Contudo, estes artistas que eram
tidos como loucos pela sociedade “sã e civilizada” demonstraram, a partir
de suas obras, que os conceitos de razão e desrazão, loucura e lucidez
precisavam ser revistos (MELLO, 2014).
Esses artistas são alguns exemplos de como o racismo institucional
atuou e atua na sociedade brasileira, tentando eliminar o povo negro, seja
por meio do genocídio dos meninos negros nas periferias, por meio do en-
carceramento da população negra ou pelas internações compulsórias, como
a proposta do governo municipal de São Paulo em 2017, que, retomando
uma política higienista, não pretende buscar alternativas para resolver o
problema da violência e tráfico de drogas e, sim, visa tirar da cidade, do
raio de visão dos “bons cidadãos”, os corpos negros indesejados. E, mais
uma vez, “[...] a prática de internação não tem sentido médico, nem preo-
cupação de cura, mas é um problema de polícia” (PEREIRA, 1984, p. 65).
Sendo assim, o programa Redenção, da cidade de São Paulo, fere a
Lei n.º 10.261/01,

[...] a chamada Lei Antimanicomial, que nasceu como resultado


de muita luta contra o tratamento degradante e segregatório das
internações psiquiátricas que existiam no país até então que culmi-
nou com a condenação do Brasil perante a Corte Internacional de
Direitos Humanos (PEDROSO, 2017, p. 1).

O Programa Redenção, em parceria com o Programa Cidade Linda,


busca reavivar políticas de higiene e limpeza social, associado à pobreza,

121
CAROLINA MARIA DE JESUS: MEMÓRIAS DE UM TEMPO DE EUGENIA E LOUCURA

que tem como desejo uma cidade limpa que atenda aos anseios da elite.
São programas que perpetuam o racismo institucional, que se caracteriza
por ser um limitador do acesso aos direitos e serviços das populações não
brancas e se manifesta em práticas discriminatórias que colocam pessoas
de grupos étnicos discriminados em situação de desvantagem no acesso a
benefícios gerados pelo Estado (GELEDÉS, 2013).
Mais uma vez, sentada em confortáveis sofás, a sociedade brasileira
observa o retorno de políticas higienistas e de limpeza social associadas à
pobreza. E em silêncio assiste à perpetuação de práticas discriminatórias,
corroborando com a dor e a morte de tantas outras Carolinas Marias.

Mulheres negras: entre a opressão e o sonho de liberdade e emanci-


pação

A desumana instituição da escravidão, que conferiu ao povo negro


a condição de bem semovente, segundo Davis (2016), atribuiu à mulher
negra uma vida incomparavelmente mais aviltante. Nas palavras dessa
autora, as mulheres

[...] sofriam de forma diferente, porque eram vítimas de abuso se-


xual e outros maus tratos bárbaros que só podiam ser infringidos
a elas. A postura dos senhores em relação às escravas era regida
pela conveniência: quando era lucrativo explorá-las como se fos-
sem homens, eram vistas como desprovidas de gênero; mas quando
podiam ser exploradas, punidas e reprimidas de modos cabíveis
apenas às mulheres, elas eram reduzidas exclusivamente à sua con-
dição de fêmeas (DAVIS, 2016, p. 19).

Além do peso da opressão relacionada ao abuso sexual e aos trata-


mentos bárbaros, essas mulheres sofriam por sua capacidade reprodu-
tiva que podia assegurar a expansão da população de escravizados. Da-
vis (2016, p. 19) lembra que aquelas com potencial para ter filhos eram
consideradas verdadeiros tesouros, o que não significava uma condição
mais respeitável, pois “[...] aos olhos de seus proprietários, elas não eram
realmente mães; eram apenas instrumentos que garantiam a ampliação da
força de trabalho escrava”.

122
RÉGIA VIDAL DOS SANTOS E NEIDE CRISTINA DA SILVA

A autora escreve sobre as agruras da escravidão nos Estados Unidos;


mas vale lembrar que “[...] os escravistas brasileiros eram menos sensíveis
do que os norte-americanos quanto ao valor da vida humana” (SILVA,
2017, p. 386). Aqui, também, as mulheres resistiam e desafiavam o tempo
todo a escravidão e essa “[...] resistência deu-se até mesmo pelo aborto e
pelo suicídio. Mulheres abortavam ou matavam seus filhos para que esses
não sofressem a tristeza do cativeiro” (SILVA, 2017, p. 386).
A opressão não cessou, à despeito da declaração legal do término da
escravidão. Mulheres negras continuaram temendo pelo destino de seus
filhos. Carolina Maria de Jesus (2014, p. 73) lembra que sua mãe

[...] disse que bebeu inúmeros remédios para abortar-me, e não


conseguiu. Por fim desistiu e resolveu criar-me. Não fiquei triste,
nem revoltada, talvez seria melhor não existir. Porque eu já estava
compreendendo que o mundo não é uma pétala de rosa. Há sempre
algo a escravizá-lo.

Para além de subjugar o corpo, a ideologia dominante pregava ser o


povo negro incapaz intelectualmente, mas Davis (2016, p. 109) destaca o
que pode parecer um detalhe: “[...] se fossem realmente inferiores em ter-
mos biológicos, as pessoas negras nunca teriam manifestado desejo nem
capacidade de adquirir conhecimento. Portanto, não teria sido necessá-
rio proibi-las de aprender”. Carolina Maria de Jesus (2014, p. 62) ilustra
muito bem o que Davis destacou, ao lembrar que para o negro não havia
escola, tão somente enxada e que “[...] o povo era revoltado porque o seu
sonho era aprender a ler [...]”.
Rezende (1978) reitera o fato de valores e sentidos se cristalizarem
por meio de discursos historicamente construídos e estruturados de acor-
do com os interesses das classes dominantes. Acrescenta-se que, na so-
ciedade brasileira, ser negra e pobre marcou – como ainda marca – uma
condição de discriminação, subserviência e imposição de total submis-
são, ou seja, os vestígios do regime escravista permanecem incrustados
na cultura brasileira, empenhando-se no propósito de, como apontou
Freire (1998), roubar dos seres a condição essencial de partícipes na con-
solidação de um mundo mais humano.

123
CAROLINA MARIA DE JESUS: MEMÓRIAS DE UM TEMPO DE EUGENIA E LOUCURA

Considerando o significado da luta, enquanto forjadora de consciên-


cia política, Freire promove a reflexão sobre a necessidade de não ceder a
uma ideologia fatalista e imobilizadora que tem um poder de anestesiar
mentes e manter sólida a trama de exclusão e opressão, reduzindo conti-
nuamente seres humanos a coisas. Nesse sentido, sublinha que,

[...] se admitíssemos que a desumanização é vocação histórica dos


homens, nada mais teríamos que fazer, a não ser adotar uma ati-
tude cínica ou de total desespero. A luta pela humanização, pelo
trabalho livre, pela desalienação, pela afirmação dos homens como
pessoas, como seres para si, não teria significação. Esta somente
é possível porque a desumanização, mesmo que um fato concreto
na história, não é, porém, destino dado, mas resultado de uma or-
dem injusta que gera a violência dos opressores e esta, o ser menos
(FREIRE, 2014, p. 40-41, grifo do autor).

A exclusão e opressão são avaliadas, por Freire, como situações-limi-


te, ou seja, como obstáculos que, ao serem reconhecidos como tal, pre-
cisam ser rompidos. Com plena consciência das dificuldades e da luta
que demanda a práxis libertadora, sobre os que direta ou indiretamente
se encontram envoltos nas situações-limite, Freire (2014, p. 130, grifo do
autor) esclarece:

No momento em que estes as percebem não mais como uma fron-


teira entre o ser e o nada, mas como uma fronteira entre o ser e o
mais ser, se fazem cada vez mais críticos na sua ação, ligada àquela
percepção. Percepção em que está implícito o inédito viável como
algo definido, a cuja concretização se dirigirá sua ação.

Portanto, na perspectiva apresentada por Freire, a história deve ser


vivida como possibilidade e não como determinação. A trajetória singu-
lar dessa representante de grupos oprimidos e relegados à fronteira apon-
ta nesse sentido. Carolina, apesar de ter cursado apenas até o segundo
ano primário, por meio de sua obra, apresentou ao mundo o que é viver
em uma favela e como é ser uma mulher capaz de se destacar não pela
sensualidade, nem pela submissão; mas por revelar, desde a infância, uma
assimilação e preocupação com a realidade social.

124
RÉGIA VIDAL DOS SANTOS E NEIDE CRISTINA DA SILVA

Cabe lembrar que sua narrativa se inicia nos anos de 1930, período
em que as mulheres ainda vivenciavam as agruras de uma sociedade ex-
tremamente sexista. O anseio por atuar no mundo sem fraqueza e estag-
nação aparece em seus relatos e torna visível a internalização dos valores
dessa sociedade que reconhece a força como atributo masculino.

No mato eu vi um homem cortar uma árvore. Fiquei com inveja e


decidi ser um homem para ter forças. Fui procurar a minha mãe e
supliquei-lhe:
− Mamãe... eu quero virar homem. Não gosto de ser mulher! Va-
mos, mamãe! Faça eu virar homem!
Quando eu queria algo, era capaz de chorar horas e horas.
− Vai deitar-se. Amanhã, quando despertar, você já virou homem.
− Que bom! Que bom! − Exclamei sorrindo.
Quando eu virar homem vou comprar um machado para derrubar
uma árvore. Sorrindo e transbordando de alegria, pensei que pre-
cisava comprar uma navalha para fazer a barba, uma correia para
amarrar as calças. Comprar um cavalo, arreios, chapéu de abas lar-
gas e um chicote (JESUS, 2014, p. 16).

No entanto, seu texto, ao mesmo tempo que retrata uma época na


qual o esquema patriarcal se impunha, assinala sua indignação em torno
da opressão e da violência vivenciada, cotidianamente, pela mulher.
A discriminação por questões étnicas e de gênero transpassa sua
vida. Entretanto, em um determinado momento, Bitita afirma: “[...] olhei
minhas mãos negras, acariciei o meu nariz chato e o meu cabelo pixaim e
decidi ficar como nasci” (JESUS, 2014, p. 137).
Carolina, ao ultrapassar a negação do eu, percebeu o quanto não se
encaixava em um mundo sexista e racista, direcionou suas forças para o
enfrentamento da opressão, fazendo da palavra instrumento de liberta-
ção. Quase ao final de sua narrativa, reconhecendo sua integridade e for-
ça, ponderou: “[...] então eu ainda vou ser feliz. Eu não entrei no mundo
pela sala de visitas. Entrei pelo quintal. Eu ia vencer porque era outra”
(JESUS, 2014, p. 201).
Esse caminhar se deu no sentido do que Paulo Freire denominou
como “inédito-viável”, ou utopia possível. Nas palavras de Freire (2001,
p. 85), utopia não é:

125
CAROLINA MARIA DE JESUS: MEMÓRIAS DE UM TEMPO DE EUGENIA E LOUCURA

[...] uma impossibilidade que, às vezes, pode dar certo. Menos


ainda, jamais falo da utopia como refúgio dos que não atuam ou
(como) inalcançável pronúncia de quem apenas devaneia. Falo da
utopia, pelo contrário, como necessidade fundamental do ser hu-
mano. Faz parte de sua natureza, histórica e socialmente consti-
tuindo-se, que homens e mulheres não prescindam, em condições
normais, do sonho e da utopia.

Os desafios permanecem abertos, como assinala Freire; o enfrenta-


mento das desvantagens acumuladas requer um projeto emancipador ca-
paz de dissolver as formas de discriminação e marginalização existente e
não produzir novas formas de opressão. Davis (2016, p. 116) lembra sobre
as conquistas relacionadas às oportunidades de educação para a popula-
ção negra nos Estados Unidos:

Com a ajuda de suas aliadas brancas, as mulheres negras tiveram


um papel indispensável na criação dessa nova fortaleza. A história
da luta das mulheres por educação nos Estados Unidos alcançou
o auge quando as mulheres negras e brancas comandaram juntas,
depois da Guerra Civil, a batalha contra o analfabetismo no Sul. A
união e a solidariedade entre elas ratificaram e eternizaram uma
das promessas mais férteis de nossa história.

Nesse sentido, autores como Paulo Freire e Angela Davis contribuem


para compreender o quão imperioso é superar a relação opressor-oprimi-
do na caminhada rumo a uma sociedade solidária e justa, bem como que
esse caminhar não se faz sem o conhecimento e a vivência do que é jus-
tiça; pelo contrário, faz-se por meio de um olhar crítico, transformador
que, para além de apontar a existência de gaiolas, ajude as oprimidas e os
oprimidos a soltar suas vozes.

Considerações finais

Como observou-se, Carolina Maria de Jesus, apesar de ter vislum-


brado um breve momento de esperança pueril, teve uma vida assinalada
pela miséria, solidão e exclusão. Marcas da opressão sentidas por tantos
outros seres de almas femininas, negras, criativas e carentes de liberdade

126
RÉGIA VIDAL DOS SANTOS E NEIDE CRISTINA DA SILVA

em um mundo sustentado desde tempos remotos pelo patriarcalismo e


pelo preconceito.
Tomando por objeto a trajetória de uma mulher curiosa e criativa,
que decidiu registrar suas memórias para escapar da loucura e que sabia
que a revolta contra a ordem instituída poderia se transformar no estigma
da loucura, as reflexões aqui expostas evidenciaram as circunstâncias ab-
jetas a que a população negra, em especial a mulher, foi submetida, desde
o tempo da escravidão.
Carolina, por meio da literatura, fez-se senhora do seu discurso, sub-
linhou sua individualidade, lançou um olhar crítico às questões de gênero
e ao evidente preconceito racial. A certeza de que não se encaixava nos
padrões dessa sociedade a levaram a vivenciar as agruras da exclusão e,
por pouco, escapar da tragédia que para muitos se tornou rotina: uma
vida de clausura entre as grades de um hospício.
Freire lembra que oprimidos enxergam para além do que a ideolo-
gia vigente aponta. Foi o caso dessa escritora, questionadora da ideologia
vigente. Carolina se aliou à imaginação como espaço de liberdade, apon-
tando claramente que esse mundo de exclusão não faz sentido. Sua obra
deixa a tarefa de olhar para o passado repensando o futuro. Afinal não há
outra forma de construirmos um esplêndido futuro pela frente.
Carolina, assim como suas irmãs e irmãos, negras e negros, persistiu
e resistiu à desumanização e comprovou que as razões (racionalidade) do
oprimido possuem uma superioridade epistemológica quando compara-
da com a epistemologia vigente. Este fenômeno ocorre porque as oprimi-
das e oprimidos são os únicos capazes de libertar os(as) opressores(as),
devolvendo a estes(as) a sua condição humana, pois, se os(as) opresso-
res(as) desumanizam o povo negro, perdem neste ato a sua própria hu-
manidade.

Referências

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2013.

BAUMAN, Zygmunt. Vidas desperdiçadas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.

127
CAROLINA MARIA DE JESUS: MEMÓRIAS DE UM TEMPO DE EUGENIA E LOUCURA

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129
IDENTIDADE DE MENINAS NEGRAS: A FORÇA
DA HISTÓRIA E DO DISCURSO

Jason Ferreira Mafra 1


Régia Vidal dos Santos2
Anne Caroline Nardi dos Santos3

[...] jamais se me apagaram as lembranças da infância, não todas,


mas sim aquelas que me fizeram dar conta de mim, saber que eu
sou eu, fatos, episódios, eventos que me serviram de espelho no
qual refleti essa personalidade moldada no tecido cotidiano da
vida. Porque a gente não nasce sabendo de si. Nasce exilado de si.
A sabença vem aos poucos, vem pelo olhar do outro, vem pelo cari-
nho acalentador, e também pelo golpe desferido na face, o horror, o

1  Doutor (2007) e mestre (2001) em Educação pela Universidade de São Paulo (USP).
Graduado e licenciado em história pela Unisal. Docente do Programa de Pós-Graduação
(mestrado e doutorado) em Educação da Universidade Nove de Julho (PPGE-UNINOVE)
e diretor do Programa de Mestrado Profissional em Gestão e Práticas Educacionais
(PROGEPE) na mesma universidade. E-mail: jasonmafra@gmail.com

2  Doutoranda em Educação na Universidade Nove de Julho (UNINOVE) no Programa de Pós-


Graduação em Educação (PPGE), com formação inicial em Artes Visuais pela FAAP. Atua como
professora de Arte nos anos iniciais do ensino fundamental da rede estadual de ensino paulista
e como professora convidada no PPGE lato sensu da UNINOVE. E-mail: regiavs@gmail.com

3  Mestranda em Educação na Universidade Nove de Julho (UNINOVE), como formação em


Pedagogia pela mesma Universidade (2015). Atua como professora de Educação Infantil na rede
municipal de ensino da cidade de São Paulo. E-mail: annenardi@hotmail.com

131
IDENTIDADE DE MENINAS NEGRAS: A FORÇA DA HISTÓRIA E DO DISCURSO

grito ofensivo, a ferida aberta na alma pela ponta da maledicência.


(BETTO, 2007, p. 141-142).

Na educação escolarizada, narrativas que denotam a força da mulher


negra e do homem negro são relegadas ao esquecimento, acentuando a
mensagem de que essas pessoas têm menos valor. Desde a educação in-
fantil, somos apresentadas a personagens descritas como valiosas e dignas
de admiração: princesas loiras, de pele branca, príncipes e heróis com um
biótipo europeu e dentre de certos padrões corporais de beleza. Negros e
negras não aparecem nos contos de fadas, nem nas maravilhosas lendas
ou, nos casos de presença, são relegados/as a um segundo plano, quando
não submissos/as ironizados/as e subjugados/as.
Dos contos para as narrativas históricas, em se tratando de Brasil,
pouco ou nada muda, seja em relação ao enfoque que reitera a supre-
macia da cultura e da estética branca, seja pelas reais condições históri-
cas, uma vez que negras e negros saíram das senzalas para as favelas, das
prisões coloniais para o quarto dos fundos destinados às empregadas e
empregados. Isso se evidencia tanto nos enredos quanto nas imagens que
permanecem nos menores ou mais abjetos espaços. O mito da democra-
cia racial, ainda contundente no imaginário social, reitera a falácia de que
tudo é uma questão de empenho, porque aqui todos são iguais, já que não
há preconceito e, na hipótese de que tenha havido, personagens negras já
o superaram.
Quase 130 anos após o encerramento oficial da escravidão, o país se
vê marcado por uma miríade de disparidades étnico-raciais. Segundo o
levantamento do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE),
realizado em 2014, negras e negros compõem cerca de 54% da popula-
ção brasileira, todavia, 79% da parcela mais rica do Brasil é formada por
pessoas brancas, sendo que apenas 17,4% de pessoas negras ocupam esse
estrato social. Além disso, em meio a uma parcela tão significativa da
população, apenas alguns se destacam social e culturalmente, de forma a
exercitar seu potencial criador ultrapassando o campo da sobrevivência
mais imediata.
Sabe-se que a verdadeira história do povo negro, sua cultura, seus
cantos, seu valor, muito mais do que esquecidos, se encontram envoltos

132
JASON FERREIRA MAFRA, RÉGIA VIDAL DOS SANTOS E ANNE CAROLINE NARDI DOS SANTOS

em estigmas e preconceitos. Nem precisa ser um grande observador para


constatar que, apesar dos recentes esforços de militantes e pesquisadores/
as engajados na temática das relações étnico raciais, a cultura da discri-
minação está longe de ser descontruída, bem como as consequentes mar-
cas tanto na alma desse povo quanto na sociedade em geral.
Apesar de a Lei 10.639/03 determinar a obrigatoriedade do ensino da
história e da cultura afro-brasileira e africana, as tímidas ações empreendi-
das nas escolas não reduzem as barreiras materiais e simbólicas perpetra-
das ao longo de trezentos e cinquenta anos de escravidão. De acordo com
Djalma Goes (2017), pesquisas sobre esse tema revelam que, no sistema
formal de ensino as ações estruturadas no sentido de desconstruir pen-
samentos excludentes, transformar representações negativas e promover a
afirmação da identidade negra e a inserção dessa criança na escola são ín-
fimas no quadro geral. Em muitos casos, as determinações da referida Lei
são negligenciadas pelos sistemas de ensino, seja por ações arbitrárias dos
dirigentes, seja por ignorância sobre as determinações legais.
Mais do que expor a ausência de reflexão sobre a temática racial na
educação, neste capítulo, o leitor é convidado a refletir sobre a força da
história e da diáspora negra, bem como sobre as marcas de um discurso
hegemônico na construção da identidade de um segmento social, as me-
ninas negras.
Para tanto, este capítulo foi dividido em três partes. A primeira, Dan-
dara e a resistência à opressão e à exploração: histórias negadas, busca
recuperar, por meio do romance da cordelista Jarid Arraes, um período
da nossa história no qual mais de 30 mil escravizados viviam em liberda-
de no Quilombo dos Palmares. Liderados por Zumbi e sua esposa Dan-
dara, Palmares, apesar de não se encaixar no padrão dos contos de fada
e ser pouco conhecida pela historiografia, é referência de sonho e luta
por liberdade. A segunda, Identidade negra: discursos ausentes na esco-
la, discute as marcas do discurso norte-americano-eurocêntrico-branco-
-cristão-masculino na construção da identidade de crianças negras, em
especial, de meninas negras. A última parte, em que se desenvolvem as
considerações finais, convidamos o leitor a pensar no compromisso que,
como lembra Frei Betto, é de todos: o de “promover a sabença de si com
carinho acalentador”.

133
IDENTIDADE DE MENINAS NEGRAS: A FORÇA DA HISTÓRIA E DO DISCURSO

Dandara e a resistência à opressão e à exploração: histórias negadas

Ao realizar uma busca, no banco de teses e dissertações do CAPES,


por meio da palavra Zumbi, encontramos 116 dissertações e 31 teses, sen-
do que deste total apenas 15 trabalhos se referem ao personagem Zum-
bi dos Palmares. As 129 produções restantes versam sobre outros temas,
conforme quadro a seguir.

Quadro 1 – Levante Acadêmico sobre Zumbi

Temas Quantidade
Zumbi dos Palmares 15
Assentamento e territórios 39
Produções sobre mortos vivos 11
Chico Science e nação zumbi 7
Teatro 17
Faculdade Zumbi 6
Feriado 2
Música 10
Literatura 5
Religião 7
Outros 28
TOTAL 147

Disponível em: <em http://bancodeteses.capes.gov.br/banco-teses/#!/>.


Acesso em 13 ago. 2017.

Outra busca, no mesmo banco de teses e dissertações, por meio da


palavra Dandara, resultou em 39 dissertações e 5 teses, sendo que nenhu-
ma é sobre a personagem Dandara dos Palmares, como pode-se ver na
tabela abaixo.

134
JASON FERREIRA MAFRA, RÉGIA VIDAL DOS SANTOS E ANNE CAROLINE NARDI DOS SANTOS

Quadro 2 – Levante Acadêmico sobre Dandara

Temas Quantidade
Dandara 0
Comunidade quilombola 1
Nome do autor 27
Ocupação urbana Dandara 10
Outros 6
TOTAL 44

Disponível em: <http://bancodeteses.capes.gov.br/banco-teses/#!/>.


Acesso em 13 de ago. 2017.

A título de comparação entre personagens clássicos e marginais, vale


mencionar que uma busca tendo por palavra-chave “princesa Isabel”, no
mesmo banco de trabalhos acadêmicos, remete a 7.282 dissertações e
3.589 teses. Como se observa, esses números, por si, apontam a carência
de estudos sobre uma etapa de nossa história, considerando o protagonis-
mo do povo negro brasileiro e, em especial, da mulher negra.
Na literatura da Educação Básica também são escassos os livros que
rememoram os séculos de escravidão sem “[...] referência a uma supos-
ta inferioridade africana” (NASCIMENTO, 2017, p. 61). Nas palavras de
Abdias Nascimento, o Brasil, herdeiro das tradições escravagistas de Por-
tugal, pratica impunemente falsificações dos fatos históricos tentando,
dessa forma, mitigar a consciência culpada de opressor:

[...] teceram um véu de silêncio a respeito das circunstâncias que


envolveram a sorte de cerca de cem milhões de africanos (estimati-
va do falecido escritor Richard Wright), os quais foram criminosa-
mente escravizados ou assassinados pelas armas dos colonizadores
ocidentais; força armada utilizada também para proteger o roubo
das terras africanas, a ocupação de seu território através da ameaça
e da corrupção dos chefes tribais; ainda a força armada garantiu a
apropriação indébita da riqueza mineral da África e dos seus tesou-
ros artísticos que ainda hoje se exibem como peças pertencentes a
famosos museus europeus (NASCIMENTO, 2017, p. 61).

135
IDENTIDADE DE MENINAS NEGRAS: A FORÇA DA HISTÓRIA E DO DISCURSO

A respeito da disseminação de uma história oficial e supressão da


história dos oprimidos, vale recordar que o conteúdo que emerge dos
livros didáticos, paradidáticos e da literatura faz parte de um universo
imaginário, que transmite e consolida mensagens, valores e crenças, nos
quais as pessoas podem se reconhecer e desvelar ideologias que, por sua
vez, podem ou não as representar. É nesse processo de interação com
o outro, com referenciais históricos e culturais, que a identidade e a
percepção da alteridade são construídas. Partindo dessa premissa, não
é difícil imaginar as marcas incutidas em meninos e meninas negras,
resultantes, por um lado, da ausência de textos capazes de retratar o
verdadeiro valor do povo negro e a história tanto da invasão do conti-
nente africano quanto da inconformidade e da resistência desse povo à
escravização e, por outro, como consequência disso, pela presença de
estórias que estigmatizam o ser negro, subjugando-o física e cultural-
mente, até os dias atuais.
Considerando o exposto e o que neste capítulo se propõe discutir – a
construção da identidade de meninas negras no Brasil – iniciaremos esse
tópico retomando um momento significativo da história e apresentando
uma personagem que transitou com força e dignidade por esse tempo-
-espaço: a guerreira Dandara. O local é o Quilombo dos Palmares, um
testemunho de resistência negra e amor à liberdade que, apenas a partir
das últimas décadas do século XX, começou a se tornar tema de interesses
de estudos acadêmicos. De acordo com Nascimento (2017, p. 72):

Em toda a história dos africanos no Novo Mundo nenhum aconte-


cimento é tão excepcional quanto aquele que se registra no século
XVI: a República dos Palmares, verdadeiro estado africano cons-
tituído no seio das florestas de Alagoas por rebeldes e fugitivos
escravos. Desde 1630 até 1697, a chamada “Tróia Negra” resistiu
a mais de 27 expedições militares enviadas por Portugal e pelos
Holandeses, até que finalmente foi destruída pela força mercenária
comandada por um bandeirante (grifo do autor).

Apesar de ter sido, no século XVII, o foco da maior resistência negra


à escravidão essa história nunca havia sido contada, a não ser pelo viés da
historiografia positivista que sempre negou a perspectiva dos oprimidos.

136
JASON FERREIRA MAFRA, RÉGIA VIDAL DOS SANTOS E ANNE CAROLINE NARDI DOS SANTOS

Nas montanhas de Alagoas, na região da Serra da Barriga, no fi-


nal do século XVI, iniciou-se, oficialmente, a história desse notório
quilombo que, na metade do século XVII, atingiu seu apogeu, se es-
palhando por uma área de aproximadamente vinte e sete quilômetros
quadrados. Foi nesse território que Zumbi e sua esposa Dandara se
constituíram como verdadeiras lendas na luta contra as forças colo-
niais e escravocratas.
Arraes (2016) lembra que, embora muitos já tenham ouvido falar
de Zumbi dos Palmares, poucos, em todos os anos de escolarização,
ouviram falar de uma mulher negra capaz de inspirar e servir de es-
pelho: Dandara. Essa autora sublinha que há controvérsias acerca da
real existência dessa guerreira, por outro lado, lembramos que, sobre
a existência de Zumbi, não há controvérsias.
Em “As lendas de Dandara” Arraes descreve a intensa luta por li-
berdade e o sofrimento do povo negro, valorizando as religiões de ma-
trizes africanas e mesclando lenda às poucas informações sobre essa
personagem, que se distanciou dos padrões de resignação e submissão
impostos às mulheres e protagonizou a resistência contra o sistema
escravocrata e a discriminação de seu povo.
Assim como não há trabalhos acadêmicos sobre essa líder femini-
na e negra, não há registro sobre o local onde nasceu, nem de como
chegou ao Quilombo dos Palmares. Arraes (2016), poeticamente, des-
creve, entre a dor dos Orixás diante do luto de um continente que vê
seus filhos embarcando como mercadoria para outras terras, o nasci-
mento mítico de Dandara, sua travessia pelos oceanos nos braços de
Iansã, sua chegada em terras brasileiras e o momento que a Orixá dos
Ventos deixa essa criança no caminho de uma mulher forte e guerrei-
ra, chamada Bayô.
A lenda segue com Bayô levando Dandara a Palmares e cuidando
para que ela seja guiada pela coragem e para que nunca esqueça sua
missão: a de encorajar e libertar seu povo. Dandara cresce ouvindo as
histórias de sua gente, alimentando sua inteligência, audácia e coragem.
No reencontro com Iansã, Dandara compreende que cada exis-
tência tem um sentido e a sua não era diferente. As palavras de Iansã
ficam na memória de Bayô e de Dandara.

137
IDENTIDADE DE MENINAS NEGRAS: A FORÇA DA HISTÓRIA E DO DISCURSO

− Estou aqui para dizer que guio teus passos a todo instante.
Criei você para uma missão, a mesma que arde em seu peito e arre-
bata seus pensamentos desde tão cedo – Iansã continuou.
− A missão de ser guerreira? − Dandara perguntou contraindo to-
dos os músculos de seu corpo.
− Isso mesmo, Dandara. Você será a maior guerreira que já se teve
notícia. Libertará muitas pessoas. Seu nome será uma lenda para
as gerações futuras.
Naquele instante, Dandara sentiu um calor reconfortante enchen-
do seu peito. Sonhar com as batalhas e as conquistas era algo que
lhe trazia felicidade, mas ouvir aquelas palavras era muito mais do
que podia fantasiar. A presença de Iansã estava além de todos os
seus desejos mais altos.
− Minha filha, jamais deixe que o medo, a dúvida ou a falta de es-
perança dominem seu espírito (ARRAES, 2016, p. 53).

De acordo com Moura (2005), rememorar a história dos quilombos,


sua cultura, sua luta por dignidade é uma oportunidade de aprender a
importância da identidade afirmativa. Nas lendas de Dandara, essa per-
sonagem plantava, lutava junto aos guerreiros, sabia que tinha propósitos
na vida e determinava seu caminho guiada por esses desígnios de justiça
e solidariedade.

Dandara não queria se arriscar sem excelentes motivos: escolhera


a fazenda de Arnoso para executar uma vingança há muito deseja-
da. O velho viúvo tinha asquerosa predileção pelas mulheres mais
jovens, que mandava buscar na senzala nas madrugadas. Algumas
delas, as que chegavam a fugir, chegavam a Palmares completamen-
te aterrorizadas, contando histórias horríveis das crueldades prati-
cadas por Arnoso.
Dandara ouvia os relatos com crescente indignação, imaginava o
dia em que faria Arnoso pagar caro uma por uma daquelas noites
de sofrimento impostos a suas irmãs [...]. Seu plano era perfeito; o
pagamento pelos atos de maldade viria de maneira exemplar (AR-
RAES, 2016, p. 78-79).

Ao expressar a possibilidade de oposição aos atos violentos impostos


à negra e ao negro, por meio de uma heroína convicta de sua força e re-
presentada de acordo com sua origem étnica e sem estereotipia, Arraes

138
JASON FERREIRA MAFRA, RÉGIA VIDAL DOS SANTOS E ANNE CAROLINE NARDI DOS SANTOS

ilumina outra forma de contar e ouvir a história: com identificações não


opressoras e positivas.
Como é de conhecimento comum, o sistema escravocrata instaura-
do na América, a que os historiadores chamam de Escravismo Moderno,
iniciou-se no final da primeira metade do século XVI e manteve-se como
forma máxima de exploração econômica até a penúltima década do século
XIX. Objetos de lucro máximo, escravizadas e escravizados existiam não
apenas como a força de trabalho mais explorada, mas também como mer-
cadoria, isto é, como qualquer coisa que pudesse ser vendida, trocada ou
descartada. Estigmatizadas como subumanos ou inumanos, as pessoas sub-
metidas a essa condição estavam fadadas ao trabalho mais exaustivo possí-
vel, seguido das punições e torturas mais cruéis, fato que, invariavelmente,
as levavam à invalidez, ao abandono ou, no limite, à morte. Com relação
às mulheres, além de serem exploradas da mesma forma, sofriam uma das
mais odiosas e degradantes formas de violência, a agressão sexual.

A norma consistia na exploração da africana pelo senhor escravo-


crata, e este fato ilustra um dos aspectos mais repugnantes do las-
civo, indolente e ganancioso caráter da classe dirigente portuguesa.
[...] O Brasil herdou de Portugal a estrutura patriarcal de família e
o preço dessa herança foi pago pela mulher negra, não só durante
a escravidão. Ainda nos dias de hoje, a mulher negra, por causa de
sua condição de pobreza, ausência de status social, e total desam-
paro, continua a vítima fácil, vulnerável a qualquer agressão sexual
do branco (NASCIMENTO, 2017, p. 73-74).

Mas, por mais cruel que tenha sido essa era de quase quatro séculos,
ao lado das formas mais repugnantes de violência, desenvolveu-se a luta
constante de negras e negros pela vida e pela liberdade. É aí que se situa,
hoje, um campo importante da história e da literatura na perspectiva de
recuperar e, até certo ponto, construir a memória das lutas dos segmentos
oprimidos e oprimidas, como o caso de Dandara.
No romance de Jarid Arraes, Dandara é descrita como uma heroína
que dominava técnicas de capoeira e participava ativamente das bata-
lhas. Quando realizamos uma busca em sites da internet por meio da
palavra-chave “Dandara dos Palmares”, lemos, em muitos deles, que foi

139
IDENTIDADE DE MENINAS NEGRAS: A FORÇA DA HISTÓRIA E DO DISCURSO

uma guerreira, esposa de Zumbi dos Palmares, morta em 6 de fevereiro


de 1694. Contudo, tanto Dandara, quanto a heroína da independência
da Bahia, Maria Felipa, ou mesmo a líder dos Malês, atuante na Sabina-
da, Luísa Mahín, não aparecem em textos oficiais. Como se vê, Dandara
é uma, entre muitas mulheres, que, mesmo ignoradas por acadêmicos,
sobrevive no imaginário como símbolo de luta e resistência à opressão.
Conforme narra a história, após frequentes tentativas de invasão, em
fevereiro de 1964, Palmares foi destruída por forças comandadas por um
bandeirante mercenário. Para não se entregar àqueles que, invadindo o
Quilombo, mataram e subjugaram seu povo, Dandara decidiu finalizar
sua vida.

Imaginava que os homens brancos vasculhariam cada pedacinho


do quilombo, buscando pessoas vivas que pudessem lhes servir
como troféus, gente que submeteriam a humilhações e torturas, até
vendê-las a algum senhor de escravos, provavelmente transforma-
do em perverso ainda maior em consequência de ter sua senzala
invadida por Palmares.
− Não vou ser uma dessas! − Esbravejou, olhando para a mata atrás
de si. − Estão ouvindo? Jamais serei uma escrava!
Um trovão explodiu de repente, concordando com as palavras de
Dandara [...] Então ficou de pé. De peito inflado e queixo erguido,
caminhou até a beira da pedreira [...]. O pulo, então, foi suave (AR-
RAES, 2016, p. 122).

Arraes afirma que, embora se trate de uma ficção, sua obra é inspi-
rada em fatos reais da história do Brasil, particularmente num período
violento que estabeleceu uma economia exploratória, por meio da com-
pra e venda de escravizados africanos, do sacrifício desses na manufatura
do açúcar, no cultivo do cacau, do café, na criação de gado e em guerras
coloniais. Mas a violência física foi apenas uma dimensão dessa história
cruel. Além de transformar em mercadoria corpos de negras e negros,
para o historiador da cultura africana no Brasil, Abdias do Nascimento

Venderam o espírito africano na pia do batismo católico assim


como, através da indústria turística, comerciam o negro como fol-
clore, como ritos, danças e canções. A honra da mulher africana

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JASON FERREIRA MAFRA, RÉGIA VIDAL DOS SANTOS E ANNE CAROLINE NARDI DOS SANTOS

foi negociada na prostituição e no estupro. Nada é sagrado para a


civilização branca e cristã (NASCIMENTO, 2017, p. 148).

Esses fatos trazem à tona o que deveria ser um compromisso de todo


o país: aprofundar a consciência histórica acerca da opressão de um povo
que, reiteramos, até hoje, vivencia a marginalização e a discriminação
por meio de múltiplas práticas de racismo, sejam elas ostensivas, como
nos casos da violência direta, sejam sutis, como nas expressões da violên-
cia simbólica. Essa é uma construção que exige muitas frentes. Segundo
Helen Theodoro (2005, p. 97), somente por meio de uma apresentação
valorosa dos elementos que fazem parte da cultura negra é que podere-
mos promover um aprofundamento pedagógico que resulte no reverso
dessa opressão, bem como na reafirmação da identidade de meninos e
meninas negras.
Se a ausência de referências positivas tem transformado em fragmen-
tos a identidade de meninas negras, Dandara se coloca na contramão
dessa cruel história. Essa personagem tem a altivez, a simpatia, a inte-
ligência, a dignidade e a integridade que toda menina negra merece ter
como espelho.
Apresentar a história das muitas Dandaras que sobreviveram e ainda
resistem à subjugação, tem o mérito de alimentar uma memória constru-
tiva sobre esse povo que resistiu ao genocídio. Além disso, afirmar a iden-
tidade de meninas negras consiste “[...] por um lado, em mostrar que a di-
versidade não constitui um fator de superioridade e inferioridade entre os
grupos humanos, mas sim, ao contrário, um fator de complementaridade
e de enriquecimento da humanidade em geral” (MUNANGA, 2005, p. 15).

Identidade negra: discursos ausentes na escola

Diversas pesquisas, especialmente as de matrizes sociológicas, de-


monstram os limites da assunção da identidade negra. O processo escravis-
ta e o pós-escravista instituíram um movimento social de estigmatização
em todo contexto social, sendo que a escolarização, desde os seus primeiros
anos, tornou-se um de seus lócus mais contundentes. Dentre os vários es-
tigmas, destaca-se aquele relacionado à cor da pele como fator não de etnia,

141
IDENTIDADE DE MENINAS NEGRAS: A FORÇA DA HISTÓRIA E DO DISCURSO

mas de inferioridade. Um mito que, construído por meio dos processos de


dominação escravista, se fortalece em meio à ausência de uma história e de
referenciais positivos, bem como em meio à escassez de discursos sobre a
identidade negra e o significado de pertencimento racial. Sobre o negro e a
negra, salvas as ações pontuais de grupos e pessoas engajadas nesta causa,
nada de positivo é dito, nada é mostrado, como se nada houvesse a dizer.
Trata-se de um silenciamento que, em certas circunstâncias, é mais devas-
tador do que o próprio discurso discriminatório ou racista, uma vez que se
torna menos perceptível, portanto, mais oculto.
Pesquisas, como a de Costa (2010) e Nascimento (2017), revelam que
a abolição, apesar de resultar de uma luta histórica e perene daquelas e
daqueles submetidos/as ao trabalho escravo, consolidou-se como um ato
de desvinculação de responsabilidades do Estado com a população negra,
situação que se perpetua até os dias atuais. Para a historiadora Emília
Viotti da Costa, a prática de abandono e perseguição tornou-se, a partir
de então, mais intensa. Segunda ela,

Após a abolição as autoridades pareciam mais preocupadas em au-


mentar a força policial e em exercer o controle sobre as camadas
subalternas da população. Com esse objetivo multiplicaram-se leis
estaduais e regulamentos municipais. Renovaram-se antigas restri-
ções às festividades características da população negra, como ba-
tuques cateretês, congos e outras. Multiplicaram-se as instituições
destinadas a confinar loucos, criminosos, menores abandonados e
mendigos. Posturas municipais reiteraram medidas visando a cer-
cear os vadios e desocupados, proibindo que vagassem pelas ruas
da cidade sem que tivessem ocupação e impedindo-os de procurar
guarida na casa de parentes e amigos (COSTA, 2010, p. 138).

Esse olhar e esse fazer que subjugam uma pessoa em razão da cor
da sua pele se consolidou nas relações de poder, nas classes sociais e nos
bancos escolares. Os resultados dessa desigualdade podem ser constata-
dos nos índices de mortalidade e violência e, dentre tantos outros marca-
dores, no discrepante número de pessoas da população negra que conse-
gue ingressar e concluir o ensino superior e ascender socialmente. Basta
comparar esses números com o da população de pele branca, ou olhar

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JASON FERREIRA MAFRA, RÉGIA VIDAL DOS SANTOS E ANNE CAROLINE NARDI DOS SANTOS

atentamente, na periferia, nas favelas e na cidade, entre adultos e crian-


ças. O resultado de uma história de discriminação tem cor.
Um olhar atento será o bastante para concluirmos que o legado da
escravidão permanece profundamente em nosso cotidiano, deixando
o(a) negro(a) à mercê de um imaginário coletivo construído em sólidas
e cruéis bases negativas e segregativas. Contudo, entre a invisibilidade, o
abandono e a exclusão, emerge uma luta por emancipação: um caminho
que vem sendo duramente traçado.
A construção da identidade racial negra não é coisa nova. Se buscar-
mos suas raízes mais profundas, encontraremos a origem dessa construção
já nas lutas e resistências étnicas ao processo de aprisionamento e sequestro
das pessoas no continente africano, passando pelas ações de libertações nos
navios negreiros (por meio do enfrentamento, fugas e suicídios) e, da mes-
ma forma, durante todo o processo de escravidão que, com todo o requinte
de crueldade, física e simbólica, tentou pulverizar os laços, a cultura e a
memória negra. O processo pós-abolicionista deu segmento a essa busca de
afirmação identitária, tendo como salto qualitativo a organização do movi-
mento negro, a partir da segunda metade do século XX.
A construção identitária é, e sempre foi, uma luta de múltiplas fren-
tes, cultural, econômica, social, religiosa e política. Por isso mesmo, o
Movimento Negro Unificado (MNU), nos anos 1970, ao mesmo tempo
em que construía o seu caminho cultural, lutou pela queda do regime
militar, ressignificando o conceito de identidade negra, estabelecendo a
conexão entre os acontecimentos políticos do país, a cultura e a memória
da diáspora africana.
As identidades não resultam apenas de procedências geográficas. As
diversas dimensões do ser (psicológica, social, cultural, dentre outras),
englobam sua construção, definindo os indivíduos e, consequentemente,
a unicidade que constitui cada ser humano e a maneira como se dará a
sua inserção no mundo.
De acordo com Aníbal Quijano (2005, p.117),

[...] identidades foram associadas às hierarquias, lugares e papéis so-


ciais correspondentes, com constitutivas delas, e, consequentemen-
te, ao padrão de dominação que se impunha. Em outras palavras,

143
IDENTIDADE DE MENINAS NEGRAS: A FORÇA DA HISTÓRIA E DO DISCURSO

raça e identidade racial foram estabelecidas como instrumentos de


classificação social básica da população.

Para o referido autor, historicamente, há um processo de apropriação


da ideia de raça como inferiorização do ser humano, herança do padrão
colonial de poder que, por sua vez, se encontra presente em uma pedago-
gia concebida nessa malha e que, até hoje, se mantém viva, classificando
pessoas em inferiores e superiores, dignas e indignas em razão do gênero,
etnia, diferenças sociais e econômicas.
Como instrumento de reprodução das ideologias dominantes, essa pe-
dagogia é igualmente reproduzida na escola. Esse lugar que, por sua na-
tureza, deveria constituir-se em espaço problematizador desse fenômeno,
tornou-se lócus privilegiado de potencialização da cultura do branquea-
mento (MARTINS, 2017). Diferentes pesquisas revelam, de acordo com
os estudos de Telma Martins (2017), que o processo de branqueamento se,
por um lado, atinge diretamente as pessoas negras, por outro, afeta muito
mais ainda as crianças e adolescentes e, nesses grupos, particularmente as
meninas. O processo de branqueamento, ao mesmo tempo que funciona
para negar a autenticidade étnico-cultural opera sistematicamente para im-
por os valores e símbolos da sociedade branca dominante (idem). Afirmar
que somos negras, não é apenas necessário, mas é condição estruturante da
identidade. As questões de gênero e etnia são fatores de aprofundamento
da discriminação entre os mais discriminados. Em outras palavras, o racis-
mo que incide sobre meninas negras não é exatamente o mesmo que incide
sobre meninos negros. Para Adichie (2015, p. 19-20),

Homens e mulheres são diferentes. Temos hormônios em quanti-


dades diferentes, órgãos sexuais diferentes e atributos biológicos
diferentes – as mulheres podem ter filhos, os homens não. Os ho-
mens têm mais testosterona e em geral são fisicamente mais fortes
que as mulheres. Existem mais mulheres que homens no mundo
– 52% da população mundial é feminina – mas os cargos de po-
der e prestígio são ocupados pelos homens. A já falecida queniana
Wangari Maathai, ganhadora do prêmio Nobel da Paz, se expressou
muito bem e em poucas palavras quando disse que quanto mais
perto do topo chegamos, menos mulheres encontramos.

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JASON FERREIRA MAFRA, RÉGIA VIDAL DOS SANTOS E ANNE CAROLINE NARDI DOS SANTOS

Em algumas escolas presenciamos uma evolução tecnológica que re-


sulta em práticas de ensino mais conectadas ao século 21, em contrapo-
sição, o tratamento dado às questões de gênero e etnia permanecem tal
qual no período colonial. Na educação básica, perpetua-se o processo de
branqueamento tanto quanto nas demais instâncias sociais. Não é por ou-
tra razão que nos livros, nos contos, nos filmes, nas propagandas visuais
são predominantes a presença de pessoas de pele branca, configurando
suas matrizes europeias. Os(as) brancos(as) têm nome, os(as) negros são
“os(as) escravos(as)”, ou os trabalhadores subalternos dos dias atuais.
Para qualquer branco ou branca, se perguntados, há uma ascendência
próxima e precisa: portuguesa, espanhola, italiana, polonesa, libanesa etc.
Para negros e negras ou para os nativos, tudo se generaliza tornado difusa
a referência identitária, conforme mostra o sociólogo peruano, Aníbal
Quijano (2005, p. 127):

A história é, contudo, muito distinta. Por um lado, no momen-


to em que os ibéricos conquistaram, nomearam e colonizaram a
América (cuja região norte ou América do Norte, colonizarão os
britânicos um século mais tarde), encontraram um grande número
de diferentes povos, cada um com sua própria história, linguagem,
descobrimentos e produtos culturais, memória e identidade. São
conhecidos os nomes dos mais desenvolvidos e sofisticados deles:
astecas, maias, chimus, aimarás, incas, chibchas, etc. Trezentos
anos mais tarde todos eles reduziam-se a uma única identidade:
índios. Esta nova identidade era racial, colonial e negativa. Assim
também sucedeu com os povos trazidos forçadamente da futura
África como escravos: achantes, iorubás, zulus, congos, bacongos,
etc. No lapso de trezentos anos, todos eles não eram outra coisa
além de negros.

Esse ocultamento de etnias, ou ocultamento de ancestralidade, tem


como principal objetivo legitimar uma subalternização. Consolidar uma
pedagogia que caminhe na contramão do que vem sendo realizado, ou
seja, que reafirme e reconstrua a história do povo africano e afro-brasilei-
ro, em especial de meninas negras, é um dos caminhos para a construção
de identidades positivas.

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IDENTIDADE DE MENINAS NEGRAS: A FORÇA DA HISTÓRIA E DO DISCURSO

A presença do negro nos livros, frequentemente como escravo, sem


referência ao seu passado de homem livre antes da escravidão e
às lutas de libertação que desenvolveu no período da escravidão e
desenvolve hoje por direitos de cidadania, pode ser corrigida se o
professor contar a história de Zumbi dos Palmares, dos quilombos,
das revoltas e insurreições ocorridas durante a escravidão; contar
algo do que foi a organização sócio-político-econômica e cultural
na África pré-colonial; e também sobre a luta das organizações ne-
gras, hoje, no Brasil e nas Américas (SILVA, 2005, p. 25).

É verdade que essa nova pedagogia passa por um conjunto de ações


orgânicas que vão muito além do espaço regular da educação. Contudo,
a escola não apenas tem essa reponsabilidade, mas, para além isso, pode
se constituir num lugar central de problematização das questões iden-
titárias. Contar a história de mulheres que lutaram, inovaram, criaram
e sobreviveram à escravização, à miséria e à estratificação social pode
significar outro destino às meninas que hoje vivenciam a invisibilidade.
Depois de quase 15 anos da instituição da Lei 10.639/2003, verifica-se
que o processo de descolonização das mentes é muito longo e complexo.
A colonialidade, essa estrutura mental que restou após o processo colo-
nial escravista, opera de forma a manter múltiplas formas de opressão e
de interiorização da submissão no tecido social, especialmente dos gru-
pos mais oprimidos. Assim, muitos profissionais da educação não per-
cebem, ainda, a presença, nem sempre sutil, da discriminação, do ma-
chismo, misoginia e do racismo na própria prática. Como bem lembra
Adichie (2015, p. 45-46), não pensar nisso é parte do problema.

Conversando com homens negros, aprendi muito sobre os vários


sistemas de opressão e sobre como eles podem não reconhecer uns
aos outros. Uma vez que eu estava falando sobre a questão de gêne-
ro e um homem me perguntou por que eu me via como uma mulher
e não como um ser humano. É o tipo de pergunta que funciona
para silenciar a experiência específica de uma pessoa. Lógico que
sou um ser humano, mas há questões particulares que acontecem
comigo no mundo por que sou mulher.

A reflexão sobre a construção e o conhecimento da identidade fe-


minina e da cultura racial necessita ser significativa para surtir efeitos

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JASON FERREIRA MAFRA, RÉGIA VIDAL DOS SANTOS E ANNE CAROLINE NARDI DOS SANTOS

positivos e, quando a escola deixa de cumprir o seu papel, como um meio


formador e transformador, se torna um ambiente nocivo, pois, dentre as
terríveis consequências da negação de identidades, na maioria das ve-
zes da população feminina e negra, se encontram os baixos desempenhos
cognitivos e os altos índices de evasão escolar.

Não precisamos ser profetas para compreender que o preconceito


incutido na cabeça do professor e sua incapacidade em lidar profis-
sionalmente com a diversidade, somando-se ao conteúdo precon-
ceituoso dos livros e materiais didáticos e às relações preconceituo-
sas entre alunos de diferentes ascendências étnico-raciais, sociais e
outras, desestimulam o aluno negro e prejudicam seu aprendizado.
O que explica o coeficiente de repetência e evasão escolar altamen-
te elevado do alunado negro, comparativamente ao do alunado
branco (MUNANGA, 2005, p. 16).

No caso das meninas negras, o racismo as desqualifica ainda mais,


obstaculizando-as de se colocarem e se imaginarem, por exemplo, no
mercado de trabalho em posições superiores, levando-as a acreditar no
discurso da incapacidade cognitiva, ou no da “falta de força de vontade”,
uma vez que esse pensamento impera entre os que não vivenciaram a
exclusão e o estigma decorrente da cor da pele.
A subalternidade e a invisibilidade escolar têm início na educação
infantil, dentre outras formas, por meio de contos de fadas e histórias,
recursos utilizados na escola como abordagem metodológica. Nesses mo-
delos, que negam a diferença e o multiculturalismo, negativa-se a existên-
cia de meninas e, desde tão cedo, tenta-se ocultar o seu reconhecimento,
o conhecimento de suas singularidades, de seus corpos, e de suas identi-
dades. Nesse sentido, a ideologia do branqueamento não apenas promove
a hegemonia dos valores coloniais e pós-coloniais das elites, mas, acen-
tuando essa forma de opressão, trabalha para produzir a rejeição das suas
características raciais.

A ideologia do branqueamento se efetiva no momento em que, in-


ternalizando uma imagem negativa de si próprio e uma imagem
positiva do outro, o indivíduo estigmatizado tende a se rejeitar,
a não se estimar e a procurar aproximar-se em tudo do indivíduo

147
IDENTIDADE DE MENINAS NEGRAS: A FORÇA DA HISTÓRIA E DO DISCURSO

estereotipado positivamente e dos seus valores, tidos como bons e


perfeitos (SILVA, 2005, p. 23).

Este processo de estigmatização negativa da menina negra segue pre-


sente nas diversas fases de uma escolarização.
Em um levantamento no banco de teses e dissertações do CAPES,
por meio do termo “contos de fadas”, encontramos 986.853 trabalhos
acadêmicos. Outra busca, considerando o termo “contos e lendas afri-
canas”, resultou em 984.073 trabalhos. A diferença entre a quantidade de
estudos sobre essas duas temáticas é relativamente pequena. Entretanto,
mesmo com uma quantidade considerável de pesquisas sobre os contos
e lendas africanas, que revelam uma preocupação sobre essa temática no
meio acadêmico, cabe pensar no motivo pelo qual essa preocupação não
incide, ainda, na prática escolar.
Na escola, na grande maioria dos casos, as mazelas do racismo são
desconsideradas e a estética negra, desvalorizada. Ou seja, projetos de
humanização e emancipação são negligenciados, tanto quanto a

[...] dimensão exata da importância da escola na construção do ser


humano centrado em valores voltados para o respeito à plenitude
da outra e do outro, como forma de fazer emergir uma sociedade
em que cada um possa ser aquilo que de fato é em sua dimensão
sexual, em sua identidade de gênero e de raça, sem negação, sem
hierarquizações, sem descontinuidade no desenvolvimento global
de cada um (SILVA, 2012, p. 40).

Se a colonialidade acaba por aprofundar as marcas negativas na cons-


trução da identidade das meninas negras, isso não significa ser um proces-
so inexorável, já que a história é um processo e não um dado a priori. Con-
forme alerta Adichie (2015, p. 47-48), “A cultura funciona, afinal de contas,
para preservar e dar continuidade a um povo [...]. A cultura não faz as
pessoas. As pessoas fazem a cultura. Se uma humanidade inteira de mulhe-
res não faz parte de nossa cultura, então temos que mudar nossa cultura”.
Discursos, exemplos, imagens presentes e ausentes no cotidiano es-
colar precisam ser constantemente reavaliados, considerando as contri-
buições dos grupos étnicos raciais, e a premência de subsidiar a constru-

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JASON FERREIRA MAFRA, RÉGIA VIDAL DOS SANTOS E ANNE CAROLINE NARDI DOS SANTOS

ção identitária de meninas negras afirmativamente, como também a de


trabalhar em prol de uma sociedade mais humana. E assim, quem sabe,
frear a produção desencadeada de sujeitos com mentalidade branqueado-
ra que a escola coniventemente e inconvenientemente reproduz.
A sociologia histórica revela que a tomada de consciência é o primeiro
passo para a conscientização, condição necessária para o enfrentamento
e superação dos discursos opressores. Como a construção desse processo
não tem idade para começar, a criação de uma nova cultura deve começar
desde os primeiros momentos de socialização da vida, portanto, ainda na
infância. Desde então, meninas negras e meninos negros vão construindo
um novo olhar sobre o mundo e sobre si mesmos, compreendendo que a
boniteza (física, estética, ética, política, cultural etc.) não se restringe a um
universo particular, mas reside, justamente, na diversidade pluricultural da
vida, de onde nasce e se desenvolve toda a riqueza da humanidade.

Considerações finais

Este breve estudo, circunscrito à temática étnico-racial, organizou-se


em torno da articulação de dois momentos. O primeiro teve como foco
uma personagem da nossa história brasileira que, pelos escassos regis-
tros historiográficos e pelas artimanhas de silenciamento da história dos
oprimidos, foi pouco estudada nos meios acadêmicos. Uma personagem
que, apesar de lendária, também não figura nem entre as fadas, nem en-
tre as admiradas princesas tradicionalmente apresentadas às crianças na
educação infantil, no ensino fundamental. Trata-se, de Dandara, heroína
negra que lutou ao lado de Zumbi dos Palmares para garantir a liberdade
de seu povo, uma figura de referência, de sonho e identificação para me-
ninas negras; uma dentre tantas outras mulheres negras que precisam ser
conhecidas e reconhecidas como um dos arquétipos da saga negra na luta
pela liberdade no Brasil
O segundo momento traz algumas abordagens sobre as consequên-
cias possíveis de uma pedagogia embasada em um discurso norte-ameri-
cano-eurocêntrico-branco-cristão-masculino responsável pela artificiali-
zação da construção da identidade de crianças negras, em especial, de
meninas negras brasileiras.

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IDENTIDADE DE MENINAS NEGRAS: A FORÇA DA HISTÓRIA E DO DISCURSO

Como sabemos, em se tratando de práticas escolares, não existem


fórmulas, receitas ou até mesmo leis que possam, por si, do dia para
a noite, ou, como vimos, em décadas, reverter as marcas racistas da
colonialidade. Por outro lado, ainda que esse contexto se mantenha
enquanto estrutura dominante, ações afirmativas não podem ser ig-
noradas. Por isso mesmo, inúmeros trabalhos de educadoras e educa-
dores brasileiros comprometidos com a educação libertadora vem se
desenvolvendo em todo o país, embora constitua-se como um movi-
mento ainda pequeno.
O fato concreto é que a identificação, enquanto instrumento de
aceitação, geradora de igualdade de direitos, oportunidades e de ci-
dadania, não pode ser relegada ao amanhã, sob o risco de perpetuar-
mos na escola a desumana distinção entre quem merece brincar e
sonhar e quem nasceu para assegurar o círculo infernal de exclusão
e miséria.
Cabe à escola comprometida com a mudança e com a justiça, res-
gatar a história dessa menina negra brasileira, tirando desse passado
marcado tanto pela opressão quanto por sonhos e, sobretudo, pela luta
incessante da construção da liberdade, o valor de seu povo, de modo a
promover tanto a aprendizagem de uma história verdadeira, quanto o
enfrentamento dos estigmas relacionados às diversas culturas. Trata-se
do reconhecimento e do conhecimento da diversidade cultural, que não
se dão sem a abertura à leitura de mundo dessas crianças, à história de
cada povo e à valorização das singularidades. Uma escola assim não
deverá se propor a “ensinar às meninas negras” as suas virtudes e os
seus valores, mas, antes, aprender com elas para com elas construir um
novo percurso identitário. Um percurso que se funda tanto na história
e na cultura dos tempos de hoje, para compreender e reconhecer a sua
condição concreta, quanto na história e na cultura dos tempos remotos,
para a compreensão de sua caminhada ancestral. Sem sombra de dú-
vida, uma tarefa que não pode mais esperar já que, como assinala Frei
Betto, a escola pode tanto promover, com carinho acalentador a sabença
de si, quanto ser mais uma instituição a perpetuar as marcas dos tem-
pos de escravidão, mantendo essa “ferida aberta na alma pela porta da
maledicência”.

150
JASON FERREIRA MAFRA, RÉGIA VIDAL DOS SANTOS E ANNE CAROLINE NARDI DOS SANTOS

Referências

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Companhia das Letras, 2015

ARRAES, Jarid. As lendas de Dandara. São Paulo: Editora de Cultura,


2016.

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151
IDENTIDADE DE MENINAS NEGRAS: A FORÇA DA HISTÓRIA E DO DISCURSO

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152
A IMAGEM FALSEADA E AS AÇÕES
AFIRMATIVAS: AGILIDADE E FORÇA
REGENERADORAS DA MULHER NEGRA

Francisca Eleodora Santos Severino1


Fernando Leonel Henrique Simões de Paula2

E a figura do bebê escuro causou tal “comoção” em todo o reino,


que a fada não teve outro remédio senão alterar sua primeira dádi-
va: não podendo transformar “a cor preta na mimosa cor de leite”
prometeu que se a menina permanecesse no castelo até seu aniver-
sário de dezesseis anos, faria sua cor sutilmente transformada na
“cor branca que seus pais tanto almejavam’’ Contudo, se desobede-
cessem à ordem, a profecia não se realizaria e o futuro dela “não
seria negro só na cor” (SCHWARCZ, 2012, p.10).

A epígrafe acima situa a ambiguidade e a misoginia duplamente ma-


nifestas na referência à condição subordinada, de gênero e de cor, quando
se trata da reflexão que discute a condição da mulher negra. No entanto,
nesta mesma narrativa se reconhece que há também ameaças veladas para

1  Professora de Educação, Cultura e Sociedade do Mestrado em Educação [PROGEPE] da


UNINOVE. Mestre em Antropologia e Doutora em Ciências da Comunicação pela USP/SP.
E-mail: frasev@uol.com.br

2 Professor de Educação Física, Gestor de Esporte, Pedagogo, Mestre em Educação pelo


Programa de Pós Graduação da UNINOVE. Especialista em Serviços Sociais e Políticas Públicas,
Pesquisador da população de Moradores de Rua. E-mail: fernandodepaula62@gmail.com

153
A IMAGEM FALSEADA E AS AÇÕES AFIRMATIVAS: AGILIDADE E FORÇA REGENERADORAS DA
MULHER NEGRA

a mulher branca na condição de gênero. Pergunta-se então: o que as igua-


la na condição feminina? Quais as lições que se podem tirar dessa proxi-
midade? O que pode ensinar a mulher negra à mulher branca, sua compa-
nheira de infortúnio, abstraindo-se a cor de ambas e compreendendo-as
a partir dessa igualdade? Afinal é chegado o momento de nos afastarmos
da ideia reducionista e equivocada de que os genes são oráculos infalíveis;
sendo assim, que igualdade radical é essa, que permite em determinadas
condições, a superação de elementos geográficos, temporais, religiosos
e culturais aproximando as mulheres indelevelmente, indiferentemente
a sua cor? Numa palavra, o que sabemos, mas não assumimos, não fos-
sem as atitudes das mulheres negras quando ágeis, quando dilaceram as
feridas que indistintamente foram abertas pela intolerância? Como agem
os elementos culturais que as diferenciam quando se trata da violência
moral que as mantém subordinadas, sejam negras ou brancas?
Numa primeira abordagem, pode-se pensar que as negras absorve-
ram os ensinamentos, até mesmo contrários à sua tradição de oralida-
de, por experiências históricas, as quais conhecemos por serem cantadas
em prosa e verso quando são descritos os horrores da escravidão. Mas a
questão é mais complexa quando a reflexão busca descobrir os processos
em que as brancas aprenderam as manhas sutis do preconceito e a rejei-
ção a sua própria condição de gênero. Qual a razão da violência moral
que praticam estas mulheres, sem a consciência de que pela contradição
serão por elas também vitimadas? Como ocorre o processo em que ambas
se igualam, seja pela afirmação, seja pela negação?
A pior violência é a violência simbólica. É aquela violência que nos
alcança sem que possamos denunciá-la; nesse quesito, as mulheres, ne-
gras ou brancas, são igualmente atingidas, (porém não derrotadas), não
importando a condição em que são nascidas.
Numa segunda abordagem, o que as diferencia são os processos cul-
turais que as inserem nas relações sociais e produtivas, cada qual segun-
do as prescrições de sua tradição originária de parentesco familiar, de
tradição cultural, de tradição religiosa, de classe social e, aqui, a diferen-
ça pode ser mesmo radical. Todavia, há um momento que precede este
segundo momento cultural e, pela contradição, é algo que as une, sem
que, no plano consciente, elas ou outros seres que comungam da mesma

154
FRANCISCA ELEODORA SANTOS SEVERINO E FERNANDO LEONEL HENRIQUE SIMÕES DE PAULA

humanidade, possam compreender tal situação. Pode-se pensar que são


suas similaridades na peculiar ligação que ambas têm com a natureza,
afinal a maternidade para elas é natural. Entretanto, parafraseando Ianni
(1984, p.2) diríamos que

[...] não se deve deixar de reconhecer que as relações sociais con-


cretas estão continuamente desafiando a consciência, o entendi-
mento, a capacidade de compreensão dos indivíduos, (...) (sejam
homens ou mulheres), (...) porque não há isso de a consciência ser
uma resultante imediata das condições de existência, As condições
de existência estão impregnadas, estão enriquecidas, estão reco-
bertas, estão complicadas por muitas mediações, muitos valores,
ideais, padrões, explicações, doutrinas que complicam a relação do
próprio sujeito com a realidade (apud, SEVERINO F., 2004, p. 105).

Fica evidente que os seres humanos sentem os efeitos dessas im-


pregnações, mas num nível profundo e inconsciente; então, como fica a
explicação sobre a intensa vinculação que mulheres têm com a natureza
sem que se percam nas ideologias alienantes e mistificadoras do evolu-
cionismo social, racista e misógino que por séculos vem justificando e
legitimando ideologias de ordenamento social? Não se quer aqui negar
as forças regeneradoras legadas dadivosamente pelas grandes mães afri-
canas; ao contrário, é preciso reconhecer esta capacidade regeneradora
que impregna as mulheres e que por sua condição especial no mundo
emana intensamente das construções históricas das mulheres negras.
Porém, para dar conta do desafio proposto devemos cuidar para não
cair na explicação biologista clássica, retrógrada e conservadora, que
precisa ser superada.
Sem derrapar em explicações psicologistas e psicanalíticas, é preciso
refletir sobre esta questão, pois que há muita coisa escondida por detrás da
condição feminina que deve ser esclarecida para que possamos escolher
se seremos brancas ou negras, não importando a cor de pele. O que cabe
levar em conta é nossa condição muito especial de seres em devir histórico
numa construção mais humanizada da realidade social que nos condiciona
e circunscreve a um meio cada vez mais hostil, dado o especial momento
histórico conturbado pelas conquistas da ciência, momento que nos iguala

155
A IMAGEM FALSEADA E AS AÇÕES AFIRMATIVAS: AGILIDADE E FORÇA REGENERADORAS DA
MULHER NEGRA

artificialmente, mas não supera a ordem conservadora, racista e retrógrada


do biologismo histórico, político e social de caráter eugenista.
É fato que na radicalidade desta reflexão, as explicações evolucionis-
tas e biologistas nos rondam, mas dada a urgência da superação de uma
visão limitada e particularista, buscamos o auxílio teórico da Antropolo-
gia para a interpretação dos indicadores socioculturais que impregnam
os nossos mitos maternantes, verdadeiros mensageiros da força regene-
radora da vida, contaminando-os como uma racionalidade desproposita-
damente racista.
Com esse recurso, levantamos a necessidade desse enfrentamento
com o firme propósito de dar nossa contribuição para esta coletânea não
apenas como mulher ou homem, mas sim como parceiros no trabalho de
recompor a dignidade matriarcal ardorosamente preservada nos funda-
mentos femininos das tradições afro no Brasil.

Metáforas e alegorias evolucionistas

O conto da princesa Negrina, retomado na epígrafe, situa uma mu-


lher adolescente em seu rito de iniciação à vida adulta. Inserida num
complexo processo de exclusão e liminaridade claramente delineado, ela
deve iniciar sua trajetória não apenas pela determinação de que perma-
neça no castelo até a idade de 16 anos, mas também pela representação
metafórica de que sua exclusão seria premiada pela almejada cor de leite,
símbolo de “purificação” de sua negritude relacionada à mancha de Cam,
filho de Noé, referência à memória arcaica do pecado adâmico, herança e
marca do mal derivado do mito da criação cristã desta pureza, inculcado
nas mulheres brancas de origem ocidental.
O modelo proposto nessa narrativa é de fato um espelho invertido que
projeta com intensidade sobre a mulher negra uma imagem na qual ela não
se reconhece. Imagem distorcida que absolutamente não lhe diz respeito,
pois que além da noção do pecado em si, ela recebe a marca desse pecado
com mais intensidade na cor de Cam, que por ter zombado de Noé, reacen-
deu, pelo desrespeito ao pai, o legado do mal praticado por Eva.
Em seu livro A dialética da Colonização, Alfredo Bosi (1992) refere-se
à maldição de Cam como elemento fundador de uma situação originária

156
FRANCISCA ELEODORA SANTOS SEVERINO E FERNANDO LEONEL HENRIQUE SIMÕES DE PAULA

e imutável reproduzida por ideólogos como “justa” punição divina a um


povo. Com tal argumento foi validado, ao longo do período colonial, o
tráfico de escravos africanos para o Brasil, alimentando assim precon-
ceitos espalhados em crendices populares de que os povos de cor escura
advindos de algumas regiões da África seriam descendentes de Cam. Para
além da justificativa retirada pelos colonizadores da maldição proferida
por Noé de que seu filho Cam seria o último dos escravos de seus irmãos,
a passagem bíblica coloca em pauta o lado obscuro da vida na metáfo-
ra da cor negra associada à desobediência e por conta disso associada
ao mal. Aqui já antevemos a artimanha ideológica que marcará a vida
das mulheres negras no Brasil, seja pela rejeição à memória arcaica das
grandes mães ancestrais, cujo legado de sabedoria primordial é de fun-
damental importância para negras e também brancas que se despojarem
dos falsos modelos da feminilidade ocidental, seja pela maliciosa asso-
ciação ao pecado original de Eva, mulher branca mas que por astúcia tem
sua representação associada à Lilith, arquétipo do mito sumério/judaico
associado ao negrume da noite e, para a cultura ocidental, consequente-
mente ligado ao mal.
Assim, quando se trata das relações de gênero, os processos de as-
sociação aos valores afirmativos ligados às Yamis, (grandes mães pri-
mordiais da tradição afro), ou ainda à Lilith, quando se trata da cultura
ocidental (também mãe primordial e grande arquétipo de força e agili-
dade positivamente feminino), são escamoteados e ocultos pelas formas
culturais ligadas à tradição ocidental. Tais artifícios ideológicos rotulam
também as mulheres brancas pela rejeição à memória arcaica do poder
e agilidade associados às forças da natureza. Dessas forças as mulheres
não podem e não devem abdicar pois que é aí que residem a necessária
sensibilidade e agilidade para a resistência e defesa da vida e permanência
das futuras gerações bem como a criatividade expressa no tempo presente
nas ações afirmativas, mediante as quais um número imensurável de mu-
lheres negras explicitam e marcam presença nas suas formas peculiares
de fazer história.
Segundo Sueli Carneiro (2005), militante do grupo de mulheres negras
Geledés, o universo mítico, do qual essa cultura é remanescente, se estrutura,
como várias outras mitologias, no princípio da sexualidade. É da interação

157
A IMAGEM FALSEADA E AS AÇÕES AFIRMATIVAS: AGILIDADE E FORÇA REGENERADORAS DA
MULHER NEGRA

dinâmica entre pares de contrários que tudo é gerado. Assim, a Terra (aiyé)
e o Céu (órun) expressam, respectivamente, os princípios arquetípicos fe-
minino e masculino. Sua união, que é a garantia da continuidade de tudo,
nem sempre se dá de forma harmoniosa. Os conflitos, que são relatados nos
mitos, expressam muitas vezes a luta entre os poderes feminino e masculi-
no, em disputa pelo controle do universo. Fica evidente que na atualidade
a predominância e dominação do mundo não são exercidas pela mulher e,
menos ainda pela mulher negra, e nem por isso elas deixam de participar dos
processos sociais, qualificando-os positivamente.
Na representação da princesa Negrina, existe uma qualificação deri-
vada da cultura ocidental cristalizada em falsos mitos. Pode-se observar
que há uma intencionalidade explícita em reproduzir o modelo da his-
torieta da Branca de Neve, neste caso, invertido para socializar meninas
negras. O que justifica, mas não legitima, essa aproximação metafórica foi
e ainda é a onda eugenista que marcou o evolucionismo racista do século
XIX e que teima em persistir até os dias de hoje, mesmo que antropólo-
gos, sociólogos e cientistas de modo geral já tenham comprovado que as
diferenças observadas entre as populações, têm origem em fatores sociais
e ambientais e não biológicos.
Abdias Nascimento (2017, p. 86) assinala que “no período de 1921
a 1923 a Câmara dos Deputados considerou e discutiu leis nas quais se
proibia qualquer entrada no Brasil de ‘indivíduos humanos das raças de
cor preta’ ”. A reflexão de Abdias ressalta o processo de racismo masca-
rado perpetrado até os dias atuais. Entretanto esse mascaramento não
escondia a intencionalidade implicada nas políticas que visavam o em-
branquecimento da população como fica evidente no ano de 1945 com o
Decreto Lei nº 7967, implementado para regular a entrada de imigrantes
de acordo com a “necessidade de preservar e desenvolver na composição
étnica da população, as características mais convenientes da sua ascen-
dência europeia” (NASCIMENTO, 2017, p. 86).

A contribuição da Antropologia para superação do racismo

Em palestra de 1888, Boas (2005), nascido na Alemanha (1858-1942)


e radicado nos estados Unidos, esclarece a importância da etnologia para

158
FRANCISCA ELEODORA SANTOS SEVERINO E FERNANDO LEONEL HENRIQUE SIMÕES DE PAULA

o estudo das características socioculturais de cada povo. O artigo Raça,


linguagem e cultura, transcrito na mesma obra, está entre os textos de ca-
ráter etnográfico que contribuem para esclarecer os equívocos do método
evolucionista, questionando a validade de suas teses e conclusões desse
método. Através de seus estudos e pesquisas, Boas afirma que a validade
das conclusões evolucionistas não pode ser comprovada. Convencido de
que o evolucionismo toma como paradigma o modelo eurocêntrico, ele
propõe a mudança de método para que se possa estudar a dinâmica e a
história de cada grupo social sem a interferência preconceituosa de um
ideal eugenista e excludente.
Franz Boas adverte, então, para o fato de que cada grupo social possui
uma história única e assim é mais importante esclarecer os processos que
ocorrem “diante de nossos olhos” do que propor grandes leis de desenvol-
vimento da civilização, como faziam os antropólogos adeptos do método
evolutivo genético. Sem desconsiderar a importância de seus colegas que
o antecederam, ele conclui que os testes de inteligência, muito em voga
naquele momento, eram excludentes de uma grande parcela de grupos
que não se enquadravam nos paradigmas ditos científicos. Para a antro-
pologia de Boas, bem como para Margareth Mead e Marcel Mauss, entre
outros antropólogos, os instrumentos científicos com base no biologismo
genético eram de fato instrumentos totalmente inadequados para provar
a superioridade ou inferioridade de algum grupo social. Como esclarece
Marcel Mauss, esta é uma representação coletiva para justificar a ordem
etnocêntrica vigente. Em suas palavras, temos a seguinte explicação:

Há nas consciências, representações coletivas que são distintas de


representações individuais. Sem dúvida as sociedades são feitas de
indivíduos e, consequentemente, as representações coletivas são
devidas à maneira pela qual as consciências individuais podem agir
e reagir sobre outras no seio de um grupo constituído. Mas essas
ações e essas reações dão origem a fenômenos psíquicos e de um
gênero novo que são capazes de evoluir por si próprios, de se modi-
ficar mutuamente e cujo conjunto forma um sistema definido. Não
somente as representações coletivas são feitas de outros elementos
diferentes das representações individuais, mas ainda têm na verda-
de um outro objetivo. O que elas exprimem, com efeito, é o próprio
estado da sociedade (MAUSS, apud SEVERINO, F., 2004, p. 55).

159
A IMAGEM FALSEADA E AS AÇÕES AFIRMATIVAS: AGILIDADE E FORÇA REGENERADORAS DA
MULHER NEGRA

Desse ponto de vista social que tem como paradigma a Europa, “ A cor
branca, poucas vezes explicitada, é sempre uma alusão, quase uma bênção;
um símbolo dos mais operantes e significativos, até os dias de hoje”. (SCH-
WARZ, 2012, p.12). Neste caso específico, tratado no conto da princesa
Negrina, o preconceito de gênero mescla-se com o preconceito de cor.
Para este esclarecimento retomemos o conto:

[...] a fada não teve outro remédio senão alterar sua primeira dá-
diva (...) Contudo, se desobedecessem à ordem, a profecia não se
realizaria e o futuro dela “não seria negro só na cor”. Dessa manei-
ra, Rosa Negra cresceu sendo descrita pelos poucos serviçais que
com ela conviviam como “terrivelmente preta”, mas, “a despeito
dessa falta, imensamente bela”. Um dia, porém, a pequena princesa
negra, isolada em seu palácio, foi tentada por uma serpente, que a
convidou a sair pelo mundo (SCHWARZ, 2012).

Há que se observar aqui as várias determinações da vida coletiva que


se superpõem ao ser individual em formação psíquica. Os termos são
muitos e o arranjo estrutural pressupõe uma família inserida na dinâmica
das representações coletivas, claramente oriundas dos valores ocidentais
hegemonicamente fundados e justificados pelo mito adâmico, o que pode
ser observado pela semelhança da sedução representada pela cobra ten-
tadora de Eva e que nesse conto também tenta a princesa negra. “Um dia,
porém, a pequena princesa negra, isolada em seu palácio, foi tentada por
uma serpente, que a convidou a sair pelo mundo” (IDEM, p.12). Parafra-
seando Meillassoux, (1976, p. 5) diríamos que:

(...) a etnologia clássica aprendeu da reprodução apenas suas ma-


nifestações institucionais, sem procurar compreender sua função
essencial. É devido à falta dessa compreensão que, não sendo capaz
de reportar o parentesco aos dados da organização econômica e
social, ela o considera um dado como um dado primeiro de alcance
universal e o trata sob seu aspecto formal e formativo.

Nessa narrativa, mesmo na condição de princesa, a mulher negra


está destinada a manter-se à margem da vida social, portanto, aparen-
temente improdutiva, sob a ameaça de não redimir-se por ter nascido

160
FRANCISCA ELEODORA SANTOS SEVERINO E FERNANDO LEONEL HENRIQUE SIMÕES DE PAULA

marcada pela cor de Cam e aqui é clara a associação com o pecado ori-
ginal de Eva, posteriormente relembrado por Noé quando censura Cam.
Como na história da Branca de Neve e em outras historietas destinadas a
fornecer modelos comportamentais para meninas, pode-se deduzir que a
reprodução feminina se dará apenas no âmbito da reprodução biológica;
afinal ela após redimir-se será premiada e se casará com um belo homem
jamais visto e será feliz para sempre... Será?
A primeira dissonância observada deriva da condição subordinada
em que a princesa adolescente é colocada. Ela deve submeter-se à reclu-
são e purificação para redimir-se de uma culpa que não tem; entretanto,
as marcações dessa reclusão estão muito distantes das marcações tempo-
rais da tradição étnica dos povos procedentes da África. A segunda disso-
nância diz respeito às mulheres em geral e é caracterizada pela violência
moral que atinge a todas independentemente de sua cor de pele. Há di-
ferentes narrativas que marcam o momento de suspensão e margem que
precede a entrada da mulher na vida adulta, e nessa situação os meninos
são guardados, mesmo que a uma desejável distância, por valorosos ho-
mens fortes e exemplares guerreiros. Porque a diferença? Qual a relação
possível a ser estabelecida?

Nesse caso, a delimitação revela um certo jogo da intimidade e, por


outro lado, no que se refere aos negros, a reprodução de estereó-
tipos com relação à sexualidade: o diminutivo para as mulheres,
o aumentativo para os homens. Nesse caso, marcadores de gênero
misturam-se a marcadores de raça e cor, mostrando como os ter-
mos oscilam dependendo do sexo (SCHWARTZ, p. 12).

Se estivéssemos falando de mulher branca, falaríamos da Branca de


neve. Ela tem como seus guardiões sete anões, que, no entanto, também
estavam em condições de desigualdade social pela sua condição de nasci-
mento. Pergunta-se: o que colocava uma menina de 16 anos, linda, branca
como a neve, numa condição especial de desigualdade que precisava ser
zelada por sete homens maduros, porém limitados na sua humanidade?
Não seria esse um indicador social misógino que inferioriza a mulher e
mantem os anões em posição desigual com os quais é comparada na sua
condição de vivente limitada?

161
A IMAGEM FALSEADA E AS AÇÕES AFIRMATIVAS: AGILIDADE E FORÇA REGENERADORAS DA
MULHER NEGRA

Mas estamos falando de uma princesa negra e agora a violência mo-


ral atinge a todos, sejam as mulheres brancas ou negras bem como os
anões, que não aparecem nessa versão, mas nem por isso deixam de mar-
car presença na memória perversa que formou nossos valores e ainda
persiste para além da infância.
Essa é uma pergunta que aqui não pretendemos responder, apenas
lançamos o problema para refletir sobre as diferenças que impregnam as
narrativas dos ritos que circunscrevem o momento especial da passagem
da adolescência à vida adulta, seja de meninos ou meninas; todavia, mes-
mo que na condição liminar ou de margem, meninos são reconhecida-
mente guardados por adultos hierarquicamente superiores.
Franz Boas (2005) comenta algumas incursões da psicanálise no cam-
po da etnologia, colocando algumas de suas ideias como profícuas, mas
ele veementemente nega que o método psicanalítico por si só seja capaz
de avançar na compreensão do desenvolvimento da sociedade humana.
Ele volta a criticar o evolucionismo, o difusionismo, os determinismos
biológico, geográfico e econômico, ao defender uma antropologia que
considera a cultura como uma totalidade em todas as suas manifestações,
como algo integrado, extremamente complexo e, portanto, impossível de
ser explicado por um conjunto de leis análogas às da física.
Para além do preconceito de cor e também da tentativa de acantonar
as mulheres na condição biológica de reprodutora do produtor, há algo a
mais nesse conto. De fato, há algo de dissonante para quem conhece as
narrativas ancestrais que marcam os momentos iniciáticos das mulheres
de etnia negra. A bem dizer, quando se trata da tradição oral de origem
africana, temos narrativas belíssimas que mostram meninas e mulheres
fortes, arrojadas, guerreiras que fazem história em condições de igualda-
de, em relação aos seus semelhantes. Observa-se que as representações
que circunscrevem a realidade da vida das mulheres negras, no que con-
cerne à solidariedade e à normalização do desvio ideológico, elas reagem
e se manifestam com intensidade e força evidenciando que estão sempre
vigilantes; com rapidez se posicionam, mesmo que para tanto, precisem
recorrer à lei.
Exemplo do que deve ser rejeitado é o conto da Branca de Neve que
tomamos para adentrar o campo complexo dos exemplos distorcidos,

162
FRANCISCA ELEODORA SANTOS SEVERINO E FERNANDO LEONEL HENRIQUE SIMÕES DE PAULA

apresentados como modelos de retidão a serem seguidos também por


mulheres negras. Contudo, elas têm seus próprios modelos e é com seus
fundamentos que elas seguem rejeitando os enquadramentos arquetípi-
cos de caráter evolucionista, e, a exemplo delas, também as brancas pre-
cisam rejeitar.
A alegoria proposta pelo conto destinado às meninas negras espelha
um rito de passagem da adolescência à vida adulta de uma jovem, de
classe social elevada, pois ela é uma princesa, que, no entanto, nasceu
marcada pelo negrume da noite. Esse fato irá justificar a violência simbó-
lica ou moral que se abate sobre ela, isto não obstante, se não obedecer a
prescrição de permanecer isolada do mundo até aos seus dezesseis anos,
quando então cumprirá a trajetória ritual de purificação e redenção, tal
como prescreveu o conto maliciosamente reescrito seguindo a tradição
metodológica do evolucionismo, como se vê, de caráter misógino e di-
fusionista persistente entre nós nas referências da tradição cultural
europeia para a educação de mulheres.
Abdias Nascimento também alerta para “o malicioso processo do
embranquecer a pele negra e a cultura do negro. É curioso notar que tal
sofisticada espécie de racismo é uma perversão tão intrínseca ao Brasil a
ponto de se tornar uma qualidade, diríamos, natural ao branco brasileiro”
(2017, p.50). Ironias à parte, é grande e necessária a contribuição trazida
por Abdias quando comenta e esclarece os caminhos pelos quais se deu o
genocídio dos negros no Brasil. Ele busca em Gilberto Freyre sustentação
para este esclarecimento comentando o papel de intelectuais de grande
gabarito como foi Oliveira Viana e o próprio G. Freyre como o seu ro-
mance Casa Grande e Senzala, no início do século passado.
Assim, Abdias se refere a Freyre: “Como sempre, Freyre ilustra bem
a afirmativa: ele considera ‘Oliveira Viana como o maior místico do aria-
nismo que ainda surgiu entre nós’” (ABDIAS, 2017. p.50). Nem por isso
a obra de Freyre deixou de lado o racismo. Em Casa Grande e Senzala ele
se trai e deixa transparecer o racismo que denuncia em Oliveira Viana.
“A natureza inconsciente de tal influência reflete essa postura natural,
atitude intrínseca à intelectualidade da elite branca brasileira” (ibidem).
Florestan Fernandes (2008, p. 190) afirmava que “em certos setores
e sob certas formas faz-se o preconceito de cor um preconceito que nem

163
A IMAGEM FALSEADA E AS AÇÕES AFIRMATIVAS: AGILIDADE E FORÇA REGENERADORAS DA
MULHER NEGRA

sempre ousa dizer o seu nome”. Florestan, na melhor tradição antropo-


lógica de Franz Boas, atualiza para a história do Brasil recente, o debate
sobre o biologismo racista, que impregnava a nascente tradição antropo-
lógica do século XIX na Europa e nos Estados Unidos. Ele destaca dentre
os transtornos que a urbanização e a industrialização introduziram na
vida, o evolucionismo retrógado e o biologismo classificatório e exclu-
dente que, no modo europeu, se firmava entre nós no momento de hesi-
tação em que brancos e pretos se inquietavam frente ao desmoronamento
dos valores tradicionais.
Na mesma perspectiva sociológica, Simone Weil (2001), afirma que
toda organização social nunca deixou de surpreender a todos aqueles que
refletem um pouco sobre a submissão de muitos por poucos dominadores.

Vemos, na natureza, os menores pesos vencerem os mais pesados,


as raças mais prolíferas abafarem as outras. Entre os homens, es-
sas relações tão claras parecem invertidas. Sabemos, certamente,
por uma experiência quotidiana, que o homem não é um simples
fragmento da natureza, que o que há de mais elevado no homem,
a vontade, a inteligência, a fé, produz todos os dias uma espécie
de milagre. Mas não é disso que se trata. A necessidade impiedosa
que manteve e mantém de joelhos as massas de escravos, as mas-
sas de pobres, as massas de subordinados, nada tem de espiritual;
ela é análoga a tudo que há de brutal na natureza. E, no entanto,
ela se exerce aparentemente em virtude de leis contrárias às da
natureza. Como se na balança social, o grama superasse o quilo
(WEIL, 2001, p.175).

A superação das limitações arquetípicas ligadas ao reducionismo


biológico

Florestan Fernandes (2008) esclarece que no século XIX o debate so-


bre a exclusão forçada dos negros das demandas históricas, trouxe para as
Ciências Sociais o desafio de mostrar sua presença vigorosa, fosse nas lutas
históricas fosse no âmbito da produção do conhecimento científico. Nesse
âmbito, o antropólogo Franz Boas, se destaca com uma postura antropo-
lógica que desafia os padrões culturais da época. Através de exemplos re-
tirados de suas pesquisas etnográficas, Boas critica fortemente as ideias de

164
FRANCISCA ELEODORA SANTOS SEVERINO E FERNANDO LEONEL HENRIQUE SIMÕES DE PAULA

caráter racista então em voga nos Estados Unidos, até mesmo no meio aca-
dêmico. Suas reflexões e denúncias contra teorias racistas dão a dimensão
política, no melhor sentido, de sua atividade intelectual, em um período no
qual o mundo vivia balizado por forças e ideias obscurantistas.
Em Raça e Progresso, conferência proferida em 1931, Boas apresenta
as diferenças observadas entre as populações, ele demonstra cientifica-
mente que elas têm origem de fatores sociais, ambientais e não biológicos.
Intencionalmente derruba as assertivas biologistas de Cesare Lombroso
(1835-1909), e de Gobineau (1826-1882). Ele afirma que os testes de inte-
ligência, muito em voga naquele momento, eram instrumentos totalmen-
te inadequados para a ciência provar a superioridade ou inferioridade de
algum grupo social.
Em 1888, este antropólogo apresenta Os objetivos da Etnologia,
(BOAS, 2005)   palestra na qual ele defende a importância da etnolo-
gia para o desenvolvimento de seu objetivo principal, qual seja, o estudo
das características de cada povo. Ele justifica a pesquisa sobre este tema
considerando-a necessária porque ela ilustra seus primeiros pontos de
vista em relação aos problemas etnológicos. Certamente um marco para a
antropologia brasileira preocupada com as questões relacionadas com os
fenômenos étnicos e sócio culturais, que fazem parte da nossa realidade.
No estudo em questão, sua inclusão é interessante por permitir contex-
tualizar mudanças e refinamentos na trajetória intelectual das mulheres
brasileiras, sejam negras, mulatas ou brancas.

Considerações finais

A reflexão sobre representações sobre mulheres em geral e negras em


particular, exige um deslocamento das formas cristalizadas em direção
à coisa em si, procurando destacar a manifestação de sua essência mais
intrínseca. As causas e efeitos de suas ações afirmativas serão rastreáveis a
partir do que se configurou e configura como marcas de sua intervenção
histórico-produtiva, mesmo que busquemos apoio na oralidade que as
identifica e determina culturalmente, isto sem comprometer a produção
de conhecimento derivada das relações sociais e políticas da sua partici-
pação ativa na construção nacional.

165
A IMAGEM FALSEADA E AS AÇÕES AFIRMATIVAS: AGILIDADE E FORÇA REGENERADORAS DA
MULHER NEGRA

Se comparado com os cânticos, saudações e relacionado aos ritos de


iniciação precedidos por Oya, grande ancestre do poder feminino, esse
conto que tem como personagem principal uma adolescente negra, mos-
tra-se perverso e pernicioso submetendo a princesa a uma condição de
recolhimento e humildade que nega as possibilidades socioculturais que
lhe foram transmitidas por sua origem africana. É na justaposição dos
elementos ideológicos desse conto, ou das teorias racistas, que configura
o panorama falseado da participação dos negros na história do Brasil.
Este conto nega de fato duas características ligadas à condição maternan-
te de todas mulheres de modo geral, quais sejam a rapidez e a vigília,
atributos evidentes na história de mulheres negras, dadas os enfrenta-
mentos e lutas perpetradas para a garantia de sobrevivência sua, de seus
filhos e de quem mais delas dependam, nas condições adversas em que
se encontraram por conta de sua etnia historicamente submetida. Haja
vista o grande genocídio a que estão submetidos os negros brasileiros,
bastando verificar as estatísticas que apontam as mortes de adolescentes
e homens negros numa proporção assustadora. O trabalho de Abdias de-
dica-se a demostrar as vias perversas desse genocídio.
Oya ou Iansã, na África e no Brasil, quer dizer rápido e é essa rapidez
que caracteriza mulheres negras ou brancas que vamos tratar, no âmbito
da ação afirmativa. Pela rapidez de seus atos, as mulheres negras se des-
tacam, dadas as necessidades da sobrevivência num contexto adverso e
num sistema conservador machista e racista.
Sobre a identidade e resistência da mulher no Brasil, a mulher negra
sofre duas vezes mais preconceitos, por ser mulher e por ser negra. As
mulheres negras sempre estiveram presentes nas senzalas, a frente de tra-
balhos forçados, muitas vezes reservado a homens por suas condições fi-
sicamente superiores, sempre submetida à violência na casa grande, amas
de leite, invisibilizada sua identidade e em todas outras situações, sua
presença foi necessária, mas também destacam suas ações de resistência
ao sistema.
Elas sempre sustentaram a família no sofrimento, mesmo quando
escravizadas, sendo assim até nos dias atuais. Enfrentam com coragem
todo o preconceito de uma sociedade, que mesmo não sendo predomi-
nantemente branca, impõe no campo histórico e ideológico toda essa

166
FRANCISCA ELEODORA SANTOS SEVERINO E FERNANDO LEONEL HENRIQUE SIMÕES DE PAULA

carga. Esse racismo como estigma aberto faz com que as mulheres não
alcancem grandes patamares no mercado de trabalho, sendo prejudicadas
pela desigualdade de gênero e de raça.
Denunciando os ardis que atribuem força do dominador, Simone
Weil afirma que não alcançaremos essa realidade “enquanto não tivermos
concebido claramente a noção de força social” (2001, p.176). De fato,
ela reconhece que em termos de vida coletiva a chave do enigma está na
produção da vida material. Mas, ela também reconhece que a sociedade
considerada em sua relação com o indivíduo não pode se definir simples-
mente pelas modalidades da produção. (...) a obediência e o comando são
também fenômenos dos quais as condições de produção não bastam para
dar conta. (ibidem) A conclusão a que se chega “é que a noção de força
e não a noção de necessidade que constitui a chave que permite ler os
fenômenos sociais” (WEIL, 2001, p.177). Essa pode ser uma contradição
aparente, contudo, sem dúvida muito poderosa.
É aqui que encontramos o nosso gancho ou mediação para a refle-
xão sobre a força social que emana das mulheres negras em construção
histórica da realidade social brasileira. A participação das mulheres ne-
gras na história do Brasil é intensa desde o Império até os dias de hoje;
entretanto é preciso questionar a história oficial para esclarecer que a
configuração histórica e cultural afro-brasileira não se dá apenas através
dos embates entre senhores brancos e negros dominados, como esclare-
ce a antropóloga Beatriz Dantas (1988). Entre outras autoras e autores,
ela afirma que a configuração sociocultural no Brasil se faz não apenas
através de conflitos, mas também mediados por alianças que ultrapassam
as fronteiras das relações entre brancos e negros, ou ainda das teorias de
outros atores sociais, entre os quais se destacam padres, psiquiatras, po-
líticos, antropólogos, policiais, pais e mães de santos. Imbuídos de uma
compaixão identitária e fundamentados em recortes teóricos ideológicos
eurocêntricos, não escapam da concepção retrograda e conservadora da
construção nacional.
Guerreiras, elas são muitas e não cabem aqui os nomes de todas
elas. Mas algumas referências históricas ligadas à sua herança de luta
e determinação é possível resgatar. Vejamos alguns fatos da presença
marcante das mulheres negras na história do Brasil: Tereza de Benguela

167
A IMAGEM FALSEADA E AS AÇÕES AFIRMATIVAS: AGILIDADE E FORÇA REGENERADORAS DA
MULHER NEGRA

ou rainha Tereza nasceu no estado do Mato Grosso no século XVIII.


No Vale do Guaporé, liderou o Quilombo de Quariterê, após a morte
de seu companheiro por soldados portugueses. O quilombo resistiu da
década de 1730 até o final do século, abrigando 79 negros e 30 índios,
segundo documentos da época. Em 1770, foi capturada por soldados e
morta, não se sabe se por execução ou suicídio. Resistiu à escravidão
por mais de vinte anos enfrentando os soldados da coroa portuguesa.
Ela comandou a comunidade quilombola tanto no âmbito da estrutura
econômica, como também na política e administrativa. Nesse mesmo
ano, o quilombo do Quariterê foi destruído pelas forças do governador
da capitania. Hoje Rainha Tereza é reconhecida como ícone da resistên-
cia negra no Brasil.
Outra representante da mulher negra na história do Brasil foi Ma-
ria Felipa que segundo alguns historiadores comandou um grupo de 40
mulheres, na luta pela nossa Independência na Bahia. Natural da Ilha de
Itaparica, foi capoeirista e marisqueira como suas comandadas. Liderou
um grupo armado no qual se destacaram pela bravura: Marcolina, de
quem não se sabe o sobrenome, Brígida do Vale e Joana Soleira. Segun-
do relatos dos moradores de Itaparica, o grupo de 40 mulheres lideradas
por ela foi responsável por queimar 42 embarcações portuguesas além
de uma surra dada nos portugueses com uma erva que provoca coceira
semelhante à aroeira chamada cansação3.
Embora no Brasil poucos conhecem os feitos históricos das mulhe-
res negras, elas prosseguiram fazendo história e hoje exercem cargos
de juízas, médicas, advogadas, historiadoras, professoras, deputadas,
ministras, psicólogas, sociólogas, antropólogas. Entre muitas podemos
citar Sueli Carneiro, Alzira Rufino, Vanda Menezes, Ruth de Souza, Be-
nilda Regina de Paiva Brito, Petronilha Beatriz Gonçalves, Fernanda
Marciano, Fátima de Oliveira, Nilma Gomes, entre tantas outras que, a
duras penas, ocupam cargos de grande relevância para a construção de
uma nova história nacional.

3  Consultar os links https://www.geledes.org.br › África e sua diáspora › Afro-brasileiros; e


http://glo.bo/1N0QUum em 28/08/2017

168
FRANCISCA ELEODORA SANTOS SEVERINO E FERNANDO LEONEL HENRIQUE SIMÕES DE PAULA

Referências

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África no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1988

FARIAS, Eny K.V. Maria Felipa de Oliveira: heroína da independência


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cor e raça na sociedade brasileira. São Paulo: Claro Enigma, 2012.

WEIL, Simone. Opressão e Liberdade. São Paulo: EDUSC. 2001.

169
ENTRE O GÊNERO E A RAÇA: UMA LEITURA
DE A COR DA TERNURA, DE GENI GUIMARÃES

Maurício Silva1

Introdução

Resultado de um complexo cultural em que a tradição popular ser-


ve-lhe de base e a sociedade na qual ela se insere, de motivação criativa,
a literatura infanto-juvenil apresenta-se ao leitor a partir de um contexto
histórico-social específico, dialogando de perto com a historicidade que
determina seus atos de enunciação, bem como com a voz autoral que con-
diciona seus pressupostos ideológicos.
Considerando a especificidade da sociedade brasileira contemporânea,
em que traços residuais de um patriarcalismo renitente - que pode ser tra-
duzido como machismo - e marcas ora veladas, ora visíveis de uma contun-
dente discriminação - que pode ser traduzida como racismo - surgem como
tônica de uma mal composta “identidade nacional”, a literatura de Geni

1  Doutorado e pós-doutorado em Letras Clássicas e Vernáculas pela Universidade de São Paulo;


é professor do Programa de Mestrado e Doutorado em Educação, na Universidade Nove de Julho
(São Paulo); atuou como pesquisador da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro e pesquisador
residente da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, da Universidade de São Paulo. E-mail:
maurisil@gmail.com

171
ENTRE O GÊNERO E A RAÇA: UMA LEITURA DE A COR DA TERNURA, DE GENI GUIMARÃES

Guimarães ganha estatuto de obra “elucidadora” de nossa realidade. Dessa


forma, ela auxilia, para dizer o mínimo, na introdução, não apenas no âm-
bito do imaginário social brasileiro, mas também em sua prática cotidiana,
dos conceitos de sociedade multicultural e de sociedade pluriétnica, ambos
direta ou indiretamente relacionados a práticas sociais voltadas para a valo-
rização da diversidade, conceito que acaba incidindo sobre todos os planos
da sociedade, do étnico ao religioso, do cultural ao político, valorizando
saberes, culturas e atitudes historicamente marginalizadas, sejam elas rela-
cionadas à figura da mulher, do negro ou de ambas.
A nosso ver, portanto, a literatura infanto-juvenil - e em especial
a produção literária de Geni Guimarães - pode desempenhar, além de
todos os atributos estéticos próprios de sua natureza enquanto manifes-
tação artística, papel decisivo no incentivo de uma sociedade que, por
se afirmar como multicultural e pluriétnica, tende a valorizar seus com-
ponentes culturais marginalizados, tornando-os não apenas visíveis ao
grosso da sociedade, mas, sobretudo, atuantes, dentro de um dinamismo
social que preza pela justiça e pela equidade.
Natural da cidade paulista de São Manoel, Geni Guimarães afirma-se
como escritora publicando poemas em jornais do interior paulista, logo
destacando-se como prosadora de talento, especialmente preocupada pe-
las questões de “gênero” e de “raça”, na medida em que sua produção lite-
rária destaca-se, como ponto de vista temático, por assuntos relativos ao
papel desempenhado pela mulher na sociedade brasileira e à posição que
o negro ocupada nessa mesma sociedade, via de regra unindo essas duas
preocupações na figura recorrente, em sua literatura, da mulher negra.
Assim, desde seus primeiros livros de poemas (Terceiro Filho, 1979;
Da flor o afeto, da pedra o protesto, 1981), em que se tematiza, com aguça-
do estro poético, o motivo literário do ser negra, até sua prosa mais recen-
te (Leite do peito, 1988), com destaque para A cor da ternura (1989), que
já ultrapassou uma dezena de edições, questões relacionadas à mulher e
ao negro tornaram-se verdadeiros Leitmotive de sua produção literária.
O objetivo deste artigo é analisar seu romance infanto-juvenil A cor da
ternura, destacando aspectos relacionados tanto à questão racial - como
a afirmação identitária do negro - quanto à questão do gênero - como o
papel da mulher na sociedade brasileira.

172
MAURÍCIO SILVA

A cor da ternura: entre o gênero e a raça

A cor da ternura é uma obra que transita, de modo dinâmico e partici-


pativo, em pelo menos três “vertentes” de nossa produção literária: na lite-
ratura infanto-juvenil, na medida em que, por motivos diversos, não apenas
expressa uma visão de mundo “própria” da criança e do adolescente, em
seu processo de crescimento e desenvolvimento psicológico e social, mas
também por apresentar, do ponto de vista estético, aspectos mais ou menos
comuns às narrativas produzidas dentro do horizonte de expectativa do
leitor jovem e mirim; na literatura afro-brasileira, já que, além de abordar
uma temática recorrente a essa “vertente” de nossa produção (a questão do
negro na sociedade brasileira) e além de apresentar elementos estruturais
que justificam essa filiação (por exemplo, a centralidade de personagens
negros ou a assunção de um eu negro como voz autoral), insere-se num
arcabouço ideológico marcadamente vinculado ao universo da afrodescen-
dência; na literatura feminina, uma vez que, seja por meio da autora, seja
por meio da protagonista, além de trazer para o plano da narrativa temas
relativos à questão de gênero, exprime, ao longo de toda a trama, uma voz
feminina, responsável por sua condução, definindo, de certo modo, o feitio
da própria narração e impondo ao leitor uma espécie de visão da mulher
sobre uma sociedade de tradição patriarcal.
Nesse sentido e resumindo o que aqui vimos dizendo, A cor da ternu-
ra consiste numa narrativa protagonizada por uma menina negra que, in-
serida num determinado contexto social e a partir de uma mundividência
singular, exprime os anseios, os desafios e as necessidades de seu grupo
social e de seu meio familiar, mesclando, para usar um jargão técnico da
Teoria Literária, aspectos do Bindungsroman e da Autoficção. Assim, sob
a perspectiva do eu-enunciador, na narrativa de Geni Guimarães as ques-
tões racial e de gênero se interpõem de modo deliberado, resultando num
discurso literário em que a mulher negra torna-se o centro da narração e
do enredo.
É o que se percebe, por exemplo, ao atentarmos para o tratamento
dado pela autora à questão de gênero no “romance”, surgido logo de iní-
cio, nas conversas entre Geni (a protagonista) e seu pai, que, ao responder
à pergunta da filha - “Pai, o que mulher pode estudar?” (GUIMARÃES,

173
ENTRE O GÊNERO E A RAÇA: UMA LEITURA DE A COR DA TERNURA, DE GENI GUIMARÃES

1991, p. 72), afirma, numa autêntica reprodução das relações de gênero


assimétricas, presentes em nossa sociedade: “Pode ser costureira, profes-
sora...” (GUIMARÃES, 1998 p. 72), completando seu raciocínio de modo
inesperado: “Deixemos de sonho” (GUIMARÃES, 1998 p. 72). O auge
dessa questão, contudo, evidencia-se quando Geni - seja por meio dos
seios que crescem, seja por meio da experiência da menarca - descobre-se
mulher, em capítulo homônimo; e, num trecho que sintetiza poeticamen-
te essa revelação, encerrando a passagem da infância/adolescência para a
fase adulta, expõe, em palavras contundentes:

Mulher, terminando o ginásio.


Mulher, cursando o normal, a caminho do professorado, cumprin-
do o prometido.
Mulher, se fazendo, sob imposições, buscando forças para ser forte.
Mulher, cuidando da fala, misturando palavras, pronúncias subur-
banas aos mil modos de sinônimos rolantes no tagarelar social re-
quintado.
Mulher, jogando cintura, diante das coações e preconceitos.
Mulher, contudo e apesar, a um passo do tesouro: o cartucho de
papel (GUIMARÃES, 1991, p. 81).

A questão de gênero, em especial na obra aqui analisada, antecipa


a questão racial, uma vez que a ela se vincula quase que naturalmente,
sobretudo por se tratar, como dissemos acima, de autora e personagem
negras. Com efeito, não é incomum que ambos os universos (o da mulher
e o do negro) se encontrem de modo mais ou menos orgânico, numa
sociedade, como também assinalamos acima, historicamente machista e
racista como é a brasileira.
Em estudo sobre a literatura afro-brasileira feminina no Brasil con-
temporâneo, Maria Aparecida Salgueiro (2003), lamentando o fato de as
escritoras afro-brasileiras contemporâneas (entre elas, Geni Guimarães)
não terem obtido, ainda, o reconhecimento merecido por seu trabalho,
destaca o tratamento dado por elas à temática da identidade, a partir da
qual buscam retratar, entre outras coisas, “a razão e o coração da mulher
negra brasileira” (p. 803) e discutir, de modo mais sistemático, assuntos
mais abrangentes e complexas, dentro do universo da mulher negra:

174
MAURÍCIO SILVA

[...] escrevendo da perspectiva da ‘mulher’ e ‘negra’, nossas escri-


toras de origem africana examinam a individualidade e as relações
pessoais como uma forma de compreensão de questões sociais
complexas. Analisando dados como racismo e sexismo, institucio-
nalizados não só na sociedade mas também na própria família e re-
lações íntimas, as referidas autoras focalizam dilemas que atingem
a todos, independente de raça ou sexo (p. 798).

Assim vinculada à reflexão acerca do gênero, de desde o início se


impõe à narrativa brasileira contemporânea, a questão racial ocupa, em A
cor da ternura, um espaço relevante, como veremos na sequência.
O encontro entre a literatura infanto-juvenil e as relações étnico-ra-
ciais resulta num complexo conjunto de manifestações artístico-literárias
que Luiz Fernando França (2008) subdividiu da seguinte maneira: obras
que tematizam o universo da cultura africana e afro-brasileira; obras que
tematizam o preconceito racial diante da realidade social contemporâ-
nea; obras que tematizam a escravidão; obras que tematizam a identi-
dade negra e a diversidade cultural do Brasil; e obras que, sem abordar
diretamente a questão racial, apresentam o negro como personagem li-
terária, em situação de igualdade com os outros personagens. Seu qua-
dro exprime bem a diversidade de perspectivas que podem ser adotadas
para se tratar da conjunção entre a literatura infanto-juvenil e as relações
étnico-raciais, revelando o quanto semelhante abordagem pode ser rica
e complexa. Sem entrarmos no mérito da subdivisão proposta - já que
as subdivisões e historicizações literárias delas resultantes nunca estão
isentas de críticas -, vale ressaltar que esta discussão pode-se adensar
ainda mais se levarmos em consideração a dificuldade em simplesmente
se caracterizar essa literatura, que para a crítica especializada se define
ora como uma literatura negra, ora como afro-brasileira, ora ainda como
afrodescendente. A exposição sucinta da questão, como fazem Florentina
Souza e Maria Nazaré Lima (2006), nos dá uma ideia mais precisa de sua
complexidade do tema:

[...] a denominação ‘literatura negra’, ao procurar se integrar às lutas


pela conscientização da população negra, busca dar sentido a pro-
cessos de formação da identidade de grupos excluídos do modelo

175
ENTRE O GÊNERO E A RAÇA: UMA LEITURA DE A COR DA TERNURA, DE GENI GUIMARÃES

social pensado por nossa sociedade. Nesse percurso, se fortalece a


reversão das imagens negativas que o termo ‘negro’ assumiu ao lon-
go da história. Já a expressão ‘literatura afro-brasileira’ procura assu-
mir as ligações entre o ato criativo que o termo ‘literatura’ indica e a
relação dessa criação com a África, seja aquela que nos legou a imen-
sidão de escravos trazida para as Américas, seja a África venerada
como berço da civilização. Por outro lado, a expressão ‘literatura
afro-descendente’ parece se orientar num duplo movimento: insiste
na constituição de uma visão vinculada à matizes culturais africanas
e, ao mesmo tempo, procura traduzir as mutações inevitáveis que
essas heranças sofreram na diáspora (p. 24).

De qualquer maneira, independentemente da “divisão” que se faça da


produção literária vinculada às questões étnico-raciais e da “definição”
que suas diversas manifestações podem assumir, o fato é que essa produ-
ção não prescinde de uma agency que resulta numa conscientização da
identidade negra (BERND, 2010), por isso mesmo inserindo-se no con-
texto da formação da sociedade brasileira.
S e pensarmos especificamente na questão da personagem negra
presente na literatura infanto-juvenil brasileira, tal como a percebemos
no livro aqui analisado, não será difícil detectar, entre outras coisas, um
tratamento diferenciado dado a brancos e negros, como revela a célebre
pesquisa de Fúlvia Rosemberg (1985), que, analisando 168 livros infan-
to-juvenis brasileiros (num total de 626 histórias), no período de 1955 a
1975, aponta - nos textos e nas ilustrações - para a ocorrência de persona-
gens brancas como as mais frequentemente representadas como modelos
da espécie humana, apresentando atividades profissionais mais diversi-
ficadas, recebendo melhor acabamento estético, representando figuras e
personagens históricos mais relevantes etc., o que pode resultar, por fim,
não apenas na instauração de um processo discriminatório de fato, mas
também de uma violência simbólica (LIMA, 2005). Contudo, é preciso
lembrar que, ao se pensar nessa questão de forma similar, mais de duas
décadas depois, percebe-se, por exemplo, que, embora a figura do ne-
gro continue pejorativamente marcada no imaginário brasileiro, gerando
preconceitos diversos, há atualmente uma produção literária infanto-ju-
venil que já aponta para um movimento de transformação desse padrão,

176
MAURÍCIO SILVA

com a publicação de obras que procuram valorizar a figura do negro e


realçar uma identidade construída a partir da diversidade (KNOP, 2010).
A cor da ternura afirma-se, a nosso ver, como uma obra que vem ao
encontro dessa atual tendência em revelar a importância sociocultural
do negro para a sociedade brasileira, mas o faz não a partir de uma pers-
pectiva otimista e entusiástica, optando, antes, por uma representação
um tanto crítica da posição que o negro – e, no caso aqui apresentado,
a mulher negra – assume em nossa dinâmica social. A importância da
personagem negra na obra em tela é alcançada, portanto, por meio da
exposição dos preconceitos e discriminações vivenciadas pelo/a negro/a
em nossa sociedade, como a demonstrar, por contraste, o absurdo dessa
situação na contemporaneidade.
Assim, verifica-se, ao longo da narrativa, toda uma representação dos
estereótipos e preconceitos em torno do negro, retratando desde proble-
mas relativos à identidade afrodescendente (a protagonista, por exemplo,
afirma que gostaria que a água da chuva retirasse sua “tinta”) até pre-
conceitos que nascem de crendices populares (a ideia de que as galinhas
pretas só servem para despachos). A consciência da “diferença” racial,
socialmente representada e sustentada por modos diversos de discrimi-
nação, já começa na infância, dentro de casa, como quando, ao se referir
a uma colega da escola de Geni, protagonista da história, sua mãe afirma
peremptoriamente: “- Mas Janete é branca...” (GUIMARÃES, 1991, p. 48),
afirmação que levaria, mais tarde, a mesma protagonista a uma reflexão
semelhante: “Eu era negra... a Janete branca...” (GUIMARÃES, 1991, p.
52). A questão do negro, em A cor da ternura, passa ainda pela “discussão”
acerca dos ícones e religiões africanas, já que, a certa altura, afirma-se que
o “espírito maligno” de Zumbi deveria ser afastado e substituído pelo da
menina Izildinha.
Vítima de xingamentos preconceituosos (“boneca de pixe”, “cabelo de
bom-bril” etc.), Geni precisa constantemente lidar com o dilema entre
a afirmação identitária e a simulação de que nada estava acontecendo.
Essa é uma questão que, vinculada diretamente à cor da pele, diz respeito
à identidade negra: com efeito, em A cor da ternura, a cor da pele ganha
foros de tema fundamental, estruturante mesmo, do livro de Geni Gui-
marães. Desse modo, essa história simples de uma menina negra, que

177
ENTRE O GÊNERO E A RAÇA: UMA LEITURA DE A COR DA TERNURA, DE GENI GUIMARÃES

relata sua vida da infância à idade adulta, traz como tema recorrente não
apenas a questão da cor da pele, mas principalmente a superação do pre-
conceito sofrido em razão dela, apesar do tom dramático que, às vezes, a
narrativa alcança: “assim que terminou a arrumação, ela voltou para casa,
e eu juntei o pó restante e com ele esfreguei a barriga da perna. Esfreguei,
esfreguei e vi que diante de tanta dor era impossível tirar todo o negro da
pele” (GUIMARÃES, 1991, p. 69).
Esse tom dramático, contudo - que não dispensa, aliás, uma aborda-
gem do problema pela ótica “religiosa” (“Mãe, se chover água de Deus,
será que sai a minha tinta?”) (GUIMARÃES, 1991, p. 10); (“me vi des-
compromissada de chamá-lo de menino Jesus [...] Era negro”) (GUIMA-
RÃES, 1991, p. 22) -, é atenuado pela adoção do olhar da criança que, sen-
sível, desvela o mundo ao redor. E para além desse olhar sensível, tem-se
o conflito instaurado entre o mundo infantil e o adulto, em geral - mas
não necessariamente - mediado pela questão étnico-racial:

o Zezinho se misturou nas besteiras dos homens e estes, do tama-


nho natural, não me davam espaço para alcançá-los, nem faziam
nada para que eu, no mínimo, pudesse ter passadas mais longas
[...] Quando eu perguntava de que cor era o céu, me respondiam o
óbvio: bonito, grande, azul etc. Não entendiam que eu queria saber
do céu de dentro. Eu queria a polpa, que a casca era visível. Por
isso foi que resolvi manter contato com as pessoas só em casos de
extrema necessidade (GUIMARÃES, 1991, p. 35).

Assim, pode-se dizer que um dos méritos do livro é tratar de temas


tão contundentes e polêmicos – como o da negritude, do racismo, dos
preconceitos etc., geralmente vinculados à questão de gênero – sem de-
cair no proselitismo ideológico; a narrativa ganha, assim, em leveza e
fluência, e o texto consegue defender uma causa sem ser tendencioso.
Boa parte dessa peculiaridade advém, com certeza, do fato de a autora
ter escolhido para protagonista da trama uma criança, além de tudo apa-
rentemente tímida e insegura. E, como complemento, pode-se dizer que
poucas obras de nossa literatura - mesmo a “adulta”! - possuem um final
tão sensível, poético e exemplar quanto esse de A cor da ternura:

178
MAURÍCIO SILVA

E sentimentos placentários escaparam do útero, meu útero das mi-


nhas raízes, grafaram as leis regentes de todos os meus dias (...)
Sou, desde ontem da minha infância, bagagem esfolada, curando
feridas no arquitetar conteúdo para o cofre dos redutos [...] Mes-
sias dos meus jeitos, sou pastora do meu povo cumprindo prazero-
sa o direito e o dever de conduzi-lo para lugares de harmonias. Meu
porte de arma tenho-o descoberto e limpo entre, em cima, embaixo
e no meio do cordel das palavras (GUIMARÃES, 1991, p. 93).

Meu útero... minhas raízes... meus dias... meus jeitos... meu povo...
sou... tudo parece ser uma questão de identidade, em especial, a
identidade negra e feminina! Como lembra Gabriela Araújo e Rosil-
da Bezerra (2014), essa perspectiva da construção identitária negra
mostra-se de modo recorrente em A cor da ternura, tema igualmen-
te destacado por Luciani Capelin e Rosângela Marquezi (2015), para
quem “a forma positiva com que as personagens são apresentadas na
obra A cor da ternura faz com que a identidade afrodescendente seja
observada positivamente, valorizando-se a cultura negra e o respeito
às raízes ancestrais” (p. 576).

Considerações finais

Buscando refletir acerca dos vínculos entre a literatura infanto-ju-


venil e questões de natureza étnico-racial, partimos do princípio de que,
como já se afirmou mais de uma vez (SILVA, s.d.), assumir/incluir posi-
cionamentos éticos nos textos literários para crianças e jovens - especial-
mente voltados para as relações étnico-raciais - não significa limitar o po-
tencial estético das obras. A partir desse ponto de vista, não hesitamos em
afirmar que a literatura infanto-juvenil direta ou indiretamente vinculada
às relações étnico-raciais pauta-se ou deveria pautar-se por atitudes de
valorização da cultura afro-brasileira, de estímulo à (re)construção de
uma identidade afrodescendente, de resgate da autoestima, dos valores
culturais, dos direitos, da memória e da identidade do negro, desfazendo
injustiças seculares e ressemantizando o conceito de negritude a partir
de um agenciamento afro-brasileiro, atitudes, por fim, norteadas pelos
princípios genéricos de multiculturalismo e pluralidade étnica.

179
ENTRE O GÊNERO E A RAÇA: UMA LEITURA DE A COR DA TERNURA, DE GENI GUIMARÃES

S endo mulher e negra, Geni, a protagonista da narrativa em causa,


e Geni, sua autora, compõem, em conjunto, uma única e mesma identi-
dade, convivendo num mundo em que, embora a figura masculina seja
prevalente, é a mulher, no final das contas – em especial a mulher negra
–, que faz a grande diferença na luta contra os preconceitos e discrimi-
nações que permeiam as relações sociais no Brasil contemporâneo. E A
cor da ternura – para além de todo o seu inquestionável valor literário -
torna-se, nesse contexto, uma importante referência de luta e resistência
étnico-racial.

Referências

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identidade em A cor da ternura de Geni Guimarães”. V Encontro
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GUIMARÃES, Geni. A cor da ternura. São Paulo, FTD, 1991.

LIMA, Heloisa Pires. “Personagens negros: um breve perfil na literatura


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180
MAURÍCIO SILVA

KNOP, Rita Maria. Antes, era uma vez, hoje, essa é a sua vez: uma
abordagem comparativa da representação social do negro na literatura
para crianças. Belo Horizonte, Pontifícia Universidade Católica de
Minas Gerais, 2010 (dissertação de mestrado).

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SOUZA, Florentina e LIMA, Maria Nazaré (Org.). Literatura Afro-


Brasileira. Brasília, Centro de Estudos Afro-Orientais / Fundação
Palmares, 2006.

181
Mulheres
negras e
políticas
públicas
MULHER, TRANSEXUAL E NEGRA: INTERSECÇÕES DA EXCLUSÃO ESCOLAR

184
A MULHER NEGRA EM SITUAÇÃO DE RUA E A
SAÚDE

Fernando Leonel Henrique Simões de Paula1


Flávia Abud Luz 2
Monica Abud Perez de Cerqueira Luz3

Introdução

A população em situação de rua 4 encerra em si o trinômio expres-


so pelo termo exclusão: expulsão, desenraizamento e privação. Esta
é uma realidade de milhares de pessoas no Brasil e de milhões em
todo o planeta, que estão à margem do sistema econômico mundial,

1 Professor de Educação Física, Gestor Escolar, Gestor de Esporte, Pedagogo, Mestre em


Educação pela Universidade Nove de Julho, Especialista em Serviços Sociais e Políticas Públicas,
pesquisador da população de moradores(as) de rua e a Educação e ex-morador de rua. E-mail:
fernandodepaula62@gmail.com

2  Bacharel em Relações Internacionais pela FAAP e Mestranda em Ciências da Religião pelo


Mackenzie. E-mail: flavia.abud.luz@hotmail.com

3 Pedagoga, Psicopedagoga Clínica e Institucional, Coordenadora Pedagógica, Doutoranda


pela Universidade Nove de Julho pesquisando as relações entre literatura infantil e racismo.
E-mail: mapcluz@hotmail.com

4 Conforme o Primeiro Encontro Nacional sobre População de Rua (2005), esse grupo
ficou definido como um grupo heterogêneo, populacional e que tem em comum o estado de
absoluta pobreza.

185
A MULHER NEGRA EM SITUAÇÃO DE RUA E A SAÚDE

pela complexidade do problema e as distintas formas de opressão,


esperanças e possibilidades de superação da condição de “lascados”,
constituindo esse enorme contingente de seres humanos que, não por
destino, mas por processos históricos, encontram-se em situações de
exclusão absoluta 5 (PAULA, 2016).
Falar sobre este universo, o universo feminino, não é uma tarefa fácil
dentro de suas infinitas prerrogativas, principalmente quando se trata da
exclusão, opressão e repressão sofridas pelas mulheres. Não que seja dife-
rente de outras formas de violência a outros gêneros, mas por ser voltada
à mulher, pode-se dizer que apresenta outras características, não mais e
nem menos violentas que a própria violência inspira, quando o universo
é de mulheres moradoras de rua.
Os questionamentos, necessidades, sonhos, poderes dentro dos espa-
ços de convivências, entre outras coisas, para a mulher apresentam outro
formato, outra conotação, outro rabisco. Inclusive, a forma de opressão e
repressão constitui uma violência, de fato, mais sofrida.
Quando se trata de mulheres negras moradoras de rua, agrava-se um
pouco mais, além de todos os problemas sociais enfrentados, a violência
da sociedade, dos membros do meio comum, seus pares; ainda surge, nes-
te contexto, o racismo como um componente forte e determinante para
sua manutenção neste espaço, dificultando ainda mais a conquista de me-
canismos para sua superação. Para Botega (2007, p. 44),

[...] a violência é um fenômeno social e não individual [...] é al-


tamente prejudicial. A reflexão sobre a violência há em conta a
sociedade como um todo, a inter-relação entre os fatos e os acon-
tecimentos, a história das relações de dominação e de exploração.
A representação social da violência tem sido predominantemente a
de um fenômeno “de fora” que caracteriza alguns grupos da socie-
dade, sem dúvida, pobres e negros.

5  A rigor, não podemos falar de “exclusão absoluta”, pois, por mais que a sociedade o exclua,
ele encontrar-se-á “incluído”, mesmo que tal inclusão esteja fora dos parâmetros da dignidade
humana. Assim, ao usarmos a expressão “exclusão absoluta”, estamos nos referindo àquelas
pessoas que, entre os excluídos, vivem nas ruas, já que não possuem os recursos mínimos
necessários à sobrevivência, como abrigo e alimentação.

186
FERNANDO LEONEL HENRIQUE SIMÕES DE PAULA, FLÁVIA ABUD LUZ E
MONICA ABUD PEREZ DE CERQUEIRA LUZ

Segundo Alcock (1997) e Castel (1998), a exclusão social está intima-


mente relacionada com a situação extrema de ruptura das relações fami-
liares e afetivas; da ruptura total ou parcial com o mercado de trabalho
e da não participação social efetiva. Assim, pessoas em situação de rua
podem se caracterizar como oprimidos de processos sociais, políticos e
econômicos excludentes (MARTINS, 2003).
Cabe-nos esclarecer que a rua não é lugar feito para morar. As pes-
soas que hoje são obrigadas a dormir, comer e permanecer pelas calçadas
estão nessa situação porque já foram privadas de todos os seus direitos,
os mais elementares. Desta forma, sofrem as formas mais perversas de
opressão dos diversos segmentos da sociedade neste país, inclusive, a de
não ter um lugar para morar e para fazer suas refeições. Por isso é que,
quando falamos dessa população, dizemos moradores e moradoras de rua
e não “população em situação de rua”.
O Poder Público brasileiro considera que a rua, enquanto moradia
desses atores, tem um caráter “temporário” e, por isso, acaba por con-
siderá-los como “População em Situação de Rua”. Tal proclamação traz
implícita que a transitoriedade é histórica, é adstrita às relações sociais
injustas decorrentes de um modo de produção que tem compromisso
com a desigualdade e ao qual corresponde uma sociedade rigidamente
hierarquizada e provocadora da discriminação e, no limite, da exclusão.
No entanto, ela é apenas retórica, pois as políticas do Estado burguês aca-
bam determinando a continuidade e a permanência – porque não dizer,
a eternização – dessa “temporariedade”. “População em situação de rua”
não deixa de ser uma nomenclatura lenitiva para as consciências culpadas
e, ao mesmo tempo, uma forma política que o Poder Público, o Estado,
encontrou para se eximir de sua responsabilidade. Considerá-la como
transitória, como situação específica de um momento ou de uma con-
juntura é, também, uma forma de negar a desigualdade como tendência
estrutural do capitalismo (PAULA, 2016, p. 24).

A população de rua em números

O Censo da população de rua na cidade de São Paulo, realizado pela


Fundação e Instituto de Pesquisas Econômicas (FIPE), em parceria com a

187
A MULHER NEGRA EM SITUAÇÃO DE RUA E A SAÚDE

Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social (SMADS)


da Prefeitura Municipal de São Paulo – PMSP, fornece dados coletados
relativos à população em situação de rua (SÃO PAULO, 2015).
Em 2000, o número era de 8.706 pessoas. Em 2015, houve um aumento
significativo para 15.905 pessoas. Desse total, 82% se autodeclararam ho-
mens, 14,6% mulheres e 3,4% não identificados. A maior faixa etária dessas
pessoas em situação de rua está entre 31 e 49 anos. Já a menor compreende
um público entre 12 e 13 anos. No quesito raça, dados apontam que dois
terços dos pobres na cidade de São Paulo se autodeclaram negros.
Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), ape-
sar do orgulho crescente, os negros se dividem entre a satisfação com a
própria cor e a realidade diferente para cada grupo étnico no Brasil. Essa
é a parcela da população que mais sofre com a violência, salários menores
e crimes racistas no país. De acordo com o Mapa da Violência, o assassi-
nato de mulheres brancas caiu 10% na década 2003-2013, enquanto o de
mulheres negras subiu 54% (WAISELFISZ, 2015).
Entre as mulheres que compõem mais da metade da população bra-
sileira (51,5%), as negras são metade deste contingente feminino, ou seja,
representavam, em 2011, 50,2 milhões de brasileiras.
A composição etária entre as mulheres brancas e negras é muito se-
melhante entre 25 e 44 anos. A partir daí há diferenças que refletem na
expectativa de vida. As mulheres brancas, em 2000, esperavam viver 73,8
anos quando nasciam, já as mulheres negras, 69,5 anos. 
A estimativa baseia-se em dados do Sistema de Informações sobre
Mortalidade (SIM), do Ministério da Saúde, e abre a seção sobre violência
de gênero da Nota Técnica Atlas da Violência 2016, resultado da parceria
entre o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA, 2016) e o Fó-
rum Brasileiro de Segurança Pública, apresentando o perfil das vítimas
de violência no Brasil, com destaque para os homicídios de afrodescen-
dentes mulheres e jovens que aumentam consideravelmente a cada dia.
Os parceiros violentos, as dívidas com traficantes, os pequenos fur-
tos, a infidelidade conjugal e o abuso sexual são os principais motivos que
levam as mulheres negras ao sofrimento. Além disso, apresenta relação
com a desigualdade social das regiões de extrema pobreza provocada pelo
sistema econômico e pela exclusão social dentro da realidade capitalista.

188
FERNANDO LEONEL HENRIQUE SIMÕES DE PAULA, FLÁVIA ABUD LUZ E
MONICA ABUD PEREZ DE CERQUEIRA LUZ

A mulher negra em situação de rua

Silva (2006) enumera vários fatores motivadores para a existência de pes-


soas em situação de rua: ausência de moradia, inexistência de trabalho e ren-
da, mudanças econômicas e institucionais de forte impacto social etc. Entre
os fatores biográficos encontram-se: alcoolismo, drogadição, rompimentos
dos vínculos familiares, doenças mentais, perda de todos os bens etc. Além
dos desastres de massa e/ou naturais: enchentes, incêndios, dentre outros.
Na cidade de São Paulo, as mulheres em situação de rua estão em
menor número quando comparadas aos homens. O percentual feminino
nesse contexto chega a 14,6% contra 82% de homens, segundo dados do
Censo Populacional de pessoas em situação de rua de 2000-2015 pela
Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (FIPE); porém estes núme-
ros são questionáveis, pela falta de uma metodologia eficaz para um le-
vantamento quantitativo desta população que tem característica nômade.
A questão é: de que forma esta moradora de rua estará protegida de
barbáries, não só do Poder Público, da violência da sociedade, como tam-
bém na convivência em seu próprio meio?
A maioria das mulheres moradoras de rua, que são vistas em condi-
ções de abandono, estão aos cuidados do parceiro. Com muita frequência
é possível observá-la cuidando de seu lar formado por um colchão cober-
to com uma lona ou um pedaço grande de plástico para que o casal tenha
privacidade. Entendemos que a necessidade de viver na rua é perpassada
pela emergência de construírem relações que possam assegurar a viabili-
dade da sua vida cotidiana, pois, sozinhas, são ainda mais vulneráveis às
violências, como abusos sexuais, dentre outras.
Sua entrada na rua significa desenvolver um processo compensatório
em relação às perdas. Assim, começam a usar outros recursos de sobre-
vivência, adquirindo e assimilando novas formas de organização de sua
vida que permitam superar determinados obstáculos que a própria exclu-
são e a repressão apresentam. Entretanto, para Varanda (2003), o que as
torna visíveis é justamente a situação de carência e deficiência que carac-
terizam um novo modo de se vincularem ao contexto urbano.
Para Paula (2016), as mulheres, com suas dificuldades neste univer-
so, são submetidas à prostituição pelos próprios membros deste grupo

189
A MULHER NEGRA EM SITUAÇÃO DE RUA E A SAÚDE

social; são violentadas sexualmente, agredidas e fisicamente feridas ao se


negarem à submissão e à opressão machista imposta por esta sociedade.
Algumas mulheres são obrigadas a usar o seu corpo para obter pro-
teção física ou mesmo amparo financeiro para a sobrevivência. Ainda
assim, a prostituição aparece fortemente nas ruas de formas diferentes.
Em primeiro lugar, esse artifício de sobrevivência não é exclusivo das
mulheres, mas não se comenta abertamente sobre o caso de homens que
se prostituem. O grau de exposição das mulheres que vivem nas ruas não
permite que elas possam ora dizer sim e ora dizer não a parceiros sexuais
neste universo, com a mesma facilidade que isso acontece entre a popula-
ção domiciliada. Algumas delas não conseguem se defender quando são
forçadas a praticar atos sexuais; outras usam a bebida, deixando-as ainda
mais vulneráveis, ou assumem comportamentos bastante agressivos para
se defender e enfrentar os homens que insistem em ter relações sexuais
(VARANDA, 2003).
Dentro de uma visão capitalista, sua convivência na rua as preju-
dica no desencadeamento de alguns fatores. Por um lado, a sociedade
burguesa, conservadora e machista as culpabiliza e as responsabiliza
por estas condições criadas por um sistema excludente de selvageria
social que as trata como vulneráveis, levianas, acusando-as de facili-
tadoras sexuais e dizendo que poderiam atuar frente a um trabalho de
mão de obra na exploração doméstica como meio de produção, entre
outros. Por outro lado, o próprio excluído desta população de rua,
aproveitando de sua fragilidade imposta pelo sistema opressor, tam-
bém as explora de forma extremamente violenta e desumana, dizendo
que somente a submissão seria capaz de salvá-las; sofreriam menos
sendo obedientes e respeitando os que as oprimem. Por último, e não
menos importante, há a ausência do Estado, que deveria dar prote-
ção e segurança a este segmento excluído da sociedade e não apoiar
a sociedade que as culpa por estes fatores. Nessa situação, elas ficam
totalmente vulneráveis, com a liberdade roubada, totalmente desuma-
nizada (PAULA, 2016, p. 113).
A desumanização, que não se verifica apenas nos que têm sua hu-
manidade roubada, mas também, ainda que de forma diferente, nos que
a roubam, é distorção da vocação do ser mais. É distorção possível na

190
FERNANDO LEONEL HENRIQUE SIMÕES DE PAULA, FLÁVIA ABUD LUZ E
MONICA ABUD PEREZ DE CERQUEIRA LUZ

história, mas não na vocação histórica. Na verdade, se admitíssemos que


a desumanização é vocação histórica dos homens, nada mais teríamos de
fazer, a não ser adotar uma atitude cínica ou de total desespero. A luta
pela humanização, pelo trabalho livre, pela desalienação, pela afirmação
dos homens como pessoa, como “seres para si”, não teria significação.
Esta somente é possível porque a desumanização, mesmo que um fato
concreto na história, não é, porém, destino dado, mas o resultado de uma
“ordem” injusta que gera a violência dos opressores, e esta, o ser menos
(FREIRE, 1987, p. 30).
A insuficiência ou inadequação de políticas públicas em relação ao
processo de exclusão e vulnerabilidades cumulativas não significa so-
mente uma posição de neutralidade ou incapacidade do Estado em lidar
com o problema da população de rua, mas vem reafirmar a penalização
do indivíduo pela situação em que ele se encontra. A concepção do des-
carte social aproxima as pessoas. (VARANDA, 2003).
Chauí (2002) aponta um fenômeno acerca do grupo social formado,
em geral, por mulheres negras e homens negros reprimidos e discrimina-
dos no século XVIII e como se reverbera, ainda hoje, principalmente no
que se refere ao sexo e raça – ser mulher e negra –, apesar de avanços nas
diversas áreas do conhecimento.
Segundo Munanga e Gomes (2006), mesmo com as transformações
sociais ocorridas na década de 1960, a mulher negra vive dupla discri-
minação: ser mulher em uma sociedade machista e ser negra em uma
sociedade racista. Contudo, seu reconhecimento pelo Poder Público, por
meio de ações de políticas públicas, traz consigo uma nova maneira de
compreender a questão à luz da desigualdade histórica entre os gêneros,
de modo que a sociedade passa a se mobilizar em torno do reconheci-
mento e enfrentamento de tal violência.
A violência contra a mulher negra é uma problemática bastante pre-
sente e ainda por vezes tolerada em nossa sociedade. Manifesta-se por um
racismo vivenciado desde a escravidão, com poucas mudanças até os dias
atuais. Assim, em situação de grande exploração, falta acesso aos serviços
de saúde (e, quando ocorre, há discriminação durante o atendimento),
além da precariedade da educação, do transporte e de outros serviços
considerados prioritários à dignidade humana.

191
A MULHER NEGRA EM SITUAÇÃO DE RUA E A SAÚDE

A mulher negra no contexto da saúde

O uso de raça/cor como categoria analítica indica caminhos para a


compreensão de como as interações sociais na intersecção com gênero e
condições socioeconômicas produzem e, ao mesmo tempo, reproduzem
desvantagens na exposição das mulheres negras às ameaças a sua saúde,
assim como impõem restrições no uso de recursos adequados ao seu cui-
dado na hora do ato sexual.
No tocante à vulnerabilidade, muitos estudos têm destacado as res-
trições do poder de participação da mulher negra nas decisões que envol-
vem a vida sexual e reprodutiva, coerções emocionais de caráter cultural-
mente determinado que interferem na prevenção e a baixa percepção de
vulnerabilidade influenciada pela não inclusão das mulheres, nos primei-
ros anos da epidemia, entre os chamados “grupos de risco”.
O fenômeno pode ser explicado durante todo o percurso da his-
tória no Brasil escravista, quando as mulheres negras eram transfor-
madas em objetos sexuais e alvo de constantes estupros, abusos pe-
los senhores de engenho, capatazes e seus filhos. Passaram a ser tidas
como objeto de reprodução sexual e eram consideradas como “coisa”
exótica sendo, ainda, obrigadas a iniciar suas filhas à prática sexual.
A utilização sexual das mulheres e a prostituição eram consentidas
pelas famílias burguesas e pela Igreja Católica, que via nessas práticas
formas de proteger a sexualidade das “mulheres de boas famílias” e as
esposas que não podiam sentir prazer, cabendo-lhes apenas o papel de
reprodutoras.
Além disso, as mulheres negras são expostas a brutais situações de
violência ligadas à exploração sexual provocada por pessoas ou grupos
intolerantes com a situação de pobreza, acrescida ao machismo e racismo
que partem da agressão moral e consequentemente física, chegando, em
muitos casos, ao óbito dessas mulheres.
A discriminação e o racismo estrutural e institucionalizado são gran-
des entraves à eliminação da erradicação das desigualdades raciais e da
pobreza no Brasil. As práticas discriminatórias estão naturalizadas na
forma como as organizações se estruturam e definem seus procedimentos
internos. Um exemplo desse tratamento desigual pode ser apresentado

192
FERNANDO LEONEL HENRIQUE SIMÕES DE PAULA, FLÁVIA ABUD LUZ E
MONICA ABUD PEREZ DE CERQUEIRA LUZ

pelos resultados diferenciados observados na implementação de uma po-


lítica universal e de acesso gratuito: a saúde.
Pesquisa de mestrado de Assis (2005), desenvolvida na cidade de São
Paulo, especificamente no bairro Vila Brasilândia, aponta os piores ín-
dices do desenvolvimento humano (IDH) e alto índice de violência que
atinge principalmente as mulheres negras. No que se refere à saúde, a
dimensão se agrava na reduzida oferta dos equipamentos e serviços. Re-
latos de mulheres nessa pesquisa reiteram o tratamento diferenciado e
negligente no que diz respeito à cor da pele, ao sexo e à condição de estar
em situação de rua, definindo a ordem e a qualidade do atendimento e
provocando nelas o medo e a autoestima baixa.
Para os autores e pesquisadores Dias e Ramos (2003), a violência é
compreendida como uma relação assimétrica, com fins de dominação,
exploração e opressão da mulher.
A mulher negra ainda sofre as consequências do racismo estrutural e
institucionalizado na sociedade. Nesse sentido, é vítima de discriminação
quando atendida na saúde pública, em especial nas grandes metrópoles.
Wolff e Waldow (2008) denunciam como se dá a assistência em insti-
tuições de saúde e revelam as várias circunstâncias a que a mulher está su-
jeita no processo de parturição, caracterizadas por ações de não cuidado
e/ou como desumanização em muitos Estados do Brasil, o que se aplica
também na cidade de São Paulo.
Os relatos evidenciaram um tipo especial de violência de gênero na
área da saúde, uma violência consentida, conforme opinião das autoras,
que ocorre com mulheres em trabalho de parto. Trazem também a noção
de violência como a de desigualdade, de hierarquia e de objetificação, no
caso de mulheres negras e em situação de rua. O tipo de violência focado
por esse texto é de ordem física e psicológica, ao ocorrer uma manipula-
ção vaginal desnecessária (realizada em demasia por inúmeras pessoas),
desconfortável (às vezes, dolorosa) e constrangedora (motivo de vergo-
nha e humilhação).
Para Saffioti e Almeida (2003), ocorre uma “conspiração do si-
lêncio”, significando que, em geral, não há denúncia de violência, im-
pedindo, assim, tanto de forma qualitativa quanto quantitativa, que
dados sejam revelados, evidenciando a gravidade e a magnitude desse

193
A MULHER NEGRA EM SITUAÇÃO DE RUA E A SAÚDE

fenômeno. A ausência ou a não aplicação de políticas públicas para as mu-


lheres negras pelos governos é, principalmente, uma violência institucio-
nal. Assim, as leis que punem seriam importantes para proteger a mulher
negra e em situação de rua, a fim de coibir os casos de violência.

Considerações finais

A população em situação de rua parte dos “refugos humanos” pro-


duzidos pelo sistema capitalista. Desta forma, vivenciam a opressão e são
submetidos(as) à repressão, à invisibilidade configurada como violência
física e simbólica marcando suas trajetórias de vida. Nesse caso, o Estado
teria a obrigação de proteger esta população, conforme disposto na Cons-
tituição brasileira, no tocante às questões de gênero, classe, raça, idade,
orientação sexual e atividade laboral.
Fatos concretos de violações de direitos das mulheres negras, em es-
pecial, como direitos aos serviços básicos, verificam-se no modo como
sofrem intensamente as condições sociais impostas e estabelecidas, seja
no ambiente da rua, expressa pelas inter-relações, bem como pelas ins-
tituições que as tornam “invisíveis” e negligenciadas diante de suas ne-
cessidades básicas e específicas. As práticas discriminatórias estão natu-
ralizadas na forma como as organizações se estruturam e definem seus
procedimentos internos.
As mulheres negras sofrem duplamente: pela raça e pelo gênero,
acrescentado o fator quando moradora de rua. Assim, estudos têm desta-
cado as restrições do poder de participação nas decisões da mulher negra
que envolvem a sua vida emocional, cultural e sexual. Vivem num sistema
de medo com a insegurança composta pela lentidão da justiça, pelo racis-
mo estrutural e institucionalizado e pela falta de oportunidades.
Na questão da saúde, a mulher negra sofre a discriminação nas ins-
tituições públicas de serviços essenciais, com a visível desigualdade no
atendimento. No caso da moradora de rua é ainda mais grave, pois muitas
vezes o serviço é negado com a justificativa de que está sob o efeito de
bebidas alcoólicas ou drogas psicoativas.
É preciso mobilizar meios, propor políticas sérias, eficientes e efe-
tivas para dar a ela visibilidade e atendimento digno. Um dos caminhos

194
FERNANDO LEONEL HENRIQUE SIMÕES DE PAULA, FLÁVIA ABUD LUZ E
MONICA ABUD PEREZ DE CERQUEIRA LUZ

seria uma política de educação emancipadora como prevenção, além da


oportunidade de emprego para não haver a necessidade de morar na rua.
A ausência destas políticas é o que marginaliza o cidadão. Neste artigo,
especificamente, buscamos refletir sobre a mulher negra moradora de rua
e suas dificuldades, na tentativa de iniciar a discussão e dar visibilidade a
esta população marginalizada.
Entendemos e corroboramos com muitos pesquisadores que é preciso
resgatar a força e a coragem das mulheres negras que resistiram às condi-
ções de escravidão, das mulheres quilombolas e indígenas para que, juntos,
homens negros, mulheres negras e não brancas lutem contra o capitalismo
e a exploração que se nutre da opressão para garantir o lucro acima de tudo.
A luta contra o racismo, o machismo e qualquer forma de opressão é tam-
bém uma luta pela construção de uma sociedade mais igualitária.

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196
YLÊ-EDUCARE
YLÊ-EDUCARE: CAMINHOS E MEMÓRIAS

Neide Cristina da Silva1


Telma Cezar da Silva Martins2

Introdução

Em um cenário em que o poder da memória é subestimado, o grupo


de pesquisa Ylê-Educare: educação e questões étnico-raciais julgou pru-
dente reservar uma parte do seu segundo livro para registrar a memória
das atividades realizadas pelo grupo no período entre a publicação do
primeiro livro Vozes emergentes e o presente.
O período compreende de maio de 2016 a setembro de 2017. Tempos
em que se consolidou o impeachment da presidenta Dilma Rousseff e a

1  Doutora em Educação pela Universidade Nove de Julho (UNINOVE). Coordenadora


discente do grupo de pesquisa Ylê-Educare: educação e questões étnico-raciais. Professora
convidada no PPGE lato sensu da UNINOVE e professora titular na Faculdade Carlos
Drummond de Andrade.

2  Doutora em Educação pela Universidade Nove de Julho (UNINOVE). Integrante do grupo


de pesquisa Ylê- Educare: educação e questões étnico-raciais. Redatora das revistas da
Coleção Bem-te-vi, publicadas pela área nacional da Igreja Metodista, professora licenciada
da Faculdade Zumbi dos Palmares, professora convidada para ministrar aulas nos cursos de
pós-graduação (lato sensu) na União Paulista de Educação e Cultura (UNIPEC).

199
YLÊ-EDUCARE: CAMINHOS E MEMÓRIAS

ascensão de um governo ilegítimo, que não continuou com o programa


do governo eleito pela população em 2014, implantando uma série de
medidas que ferem a dignidade humana.
Em períodos sombrios, a resistência precisa ser ainda maior, para ga-
rantir a sobrevivência de sonhos e projetos de uma sociedade igualitária,
que supere o racismo e consolide a igualdade de gênero.
Considerando a temática do empoderamento da mulher negra e refle-
tindo sobre o protagonismo dessas mulheres, este capítulo foi organizado em
duas partes: i) apresentação de um relatório das atividades realizadas pelo
grupo; ii) demonstração do protagonismo da mulher negra nessas atividades.

Parte I

Atividades do grupo de Pesquisa Ylê-Educare: educação e questões


étnico-raciais, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Educa-
ção da Universidade Nove de Julho

No período de maio de 2016 a setembro de 2017, foram realizadas


seis reuniões de estudo. As quatro primeiras foram dedicadas ao estudo
de obras introdutórias que abordavam as questões de raça, racismo e suas
faces mais evidentes.
O quinto estudo procurou entender como o racismo se manifesta
indiretamente, os malefícios do racismo institucional que é ainda mais
perverso e danoso à população negra e quais as estratégias para combater
esse tipo de racismo.
Por fim, optou-se por estudar o livro do psiquiatra e filósofo da
Martinica, Frantz Fanon, que apresenta questionamentos sobre o racismo
arraigado nas mentes dos negros colonizados, que persiste mesmo depois
da independência e quais são os motivos que levam essas mentes a conti-
nuarem a pensar e agir com as mesmas categorias do colonizador.

Quadro 1 – Reuniões de estudo

09/06/2016 Discussão sobre religiões de matriz africana / religiões de terreiro


30/06/2016 Estudo do livro Negritude: uso e sentidos, de Kabengele Munanga

200
NEIDE CRISTINA DA SILVA E TELMA CEZAR DA SILVA MARTINS

15/09/2016 Estudo do livro O que é Racismo, de Joel Rufino


27/10/2016 Estudo do livro Racismo explicado aos meus filhos, de Nei Lopes
04/08/2017 Estudo do livro Nem preto nem branco, muito pelo contrário, de
Lilia Moritz
15/09/2017 Estudo do livro Pele negra, máscaras brancas, de Frantz Fanon

Fonte: autoras, 2017.

Organização de eventos

Considerando que o grupo de pesquisa em questão tem sua sede em


uma Universidade privada que tem um caráter popular, buscou-se realizar
eventos abertos que não se limitassem aos estudantes dos programas de pós-
-graduação, de modo que em todos os eventos do referido período houve a
participação de estudantes da graduação dos cursos de Pedagogia, História,
Ciências Sociais e outros, além da presença de diferentes setores da sociedade
como professores da rede pública, dirigentes religiosos, militantes do movi-
mento negro, estudantes do ensino médio da rede pública etc.
O evento “13 de Maio sob suspeita” (2016) refletiu sobre a data histó-
rica de 13 de Maio, lançando um olhar crítico sobre as condições que a po-
pulação negra tem vivenciado nas diversas esferas sociais, com os objetivos
de fomentar ações para minimizar as discrepâncias existentes entre a popu-
lação negra e não negra e incentivar as práticas do respeito e da equidade.
No mês de agosto do referido ano, organizou-se o lançamento do pri-
meiro livro do grupo Ylê, intitulado Vozes emergentes. Livro que deu vez
às vozes silenciadas que emergiram num grito uníssono da diversidade
de reflexões. O evento contou com apresentações culturais e uma mesa de
debate composta por mulheres e homens negras(os), autoras(es) do livro,
que durante suas trajetórias acadêmicas precisaram lutar pelo direito de
expressão, de demonstrar suas aptidões e conhecimentos, uma vez que
os eventos acadêmicos também comungam com o racismo institucional,
invisibilizando os(as) estudantes negros(as).
As religiões de terreiro ainda são alvo de preconceito e desrespeito,
por isso o grupo Ylê optou por criar um espaço para conhecer e enten-
der tais religiões, pois só é possível respeitar a diversidade religiosa se

201
YLÊ-EDUCARE: CAMINHOS E MEMÓRIAS

houver conhecimento sobre as possíveis diferenças e semelhanças entre


as religiões. Buscando atender essa demanda, realizou-se uma palestra
em agosto de 2016 e um encontro em novembro do mesmo ano com
essa temática. Nas duas ocasiões, houve a participação de membros de
diferentes setores da sociedade, possibilitando um olhar diverso para as
religiões contra-hegemônicas.
O III Encontro Ylê-Educare: educação, gênero e religiões de terreiro foi
realizado em 24 de novembro de 2016. Foi um importante espaço para discu-
tir o padrão epistemológico dominante de educação a partir da emergência
de um novo paradigma na valorização e inserção do diálogo entre os saberes
populares e científicos na voz empoderada dos(as) oprimidos(as), marginali-
zados(as) e invisibilizados(as) ecoando na urgência de outra educação.
Em 2017, o Ylê-Educare passou a se reunir em um espaço físico menor,
devido à mudança de local de atendimento do Programa de Pós-graduação
da UNINOVE3; com isso, precisou adaptar-se à nova realidade para manter
tanto a periodicidade das reuniões como a elaboração dos eventos. Devido
à impossibilidade de continuar realizando grandes eventos, em maio de
2017, o Ylê optou por realizar uma Roda de Conversa, promovendo dis-
cussões acerca da segregação do(a) negro(a) refugiado(a), além de novas
reflexões sobre a Abolição e educação para as relações étnico-raciais.

Quadro 2 – Organizações de eventos

12/05/2016 II Encontro YLÊ-EDUCARE: 13 de Maio sob suspeita


18/08/2016 Evento de Lançamento do livro Vozes Emergentes (UNINOVE
com palestras)
24/08/2016 Palestra: Religião de terreiro e educação
24/11/2016 III Encontro YLE-EDUCARE: Educação, gênero e religiões de
terreiro
12/05/2017 I Roda de Conversa: 13 décadas de 13 de Maio

Fonte: autoras, 2017.

3  Do campus Barra Funda para o Campus Vergueiro, com o andar destinado ao PPGE em
reforma.

202
NEIDE CRISTINA DA SILVA E TELMA CEZAR DA SILVA MARTINS

Participação do grupo em eventos externos

Por ocasião do lançamento do livro Vozes Emergentes, os(as) autores(as)


foram convidados(as) a participar do stand da Editora BT Acadêmica, na
24ª Bienal do Livro, realizada no Pavilhão do Anhembi, em São Paulo. O
grupo Ylê-Educare participou desse evento contando com a parceria do
grupo de Congada da Vó Benedita e da Editora BT. Essas parcerias foram
importantes por possibilitar maior visibilidade às questões étnico-raciais
em um evento de grande porte como a Bienal do Livro de São Paulo.
No mês de setembro de 2016, realizou-se em Santiago, Chile, o X
Fórum Internacional “Paulo Freire e a superação do neoliberalismo”. Este
evento reuniu pensadores(as) e pesquisadores(as) com discussões sobre
a Pedagogia do Oprimido, componentes e processos de formação cidadã,
práticas pedagógicas transformadoras, movimentos sociais com políticas
públicas e a educação popular no contexto de uma sociedade sob a in-
fluência neoliberal.
O Ylê-Educare teve uma efetiva participação nesse evento, com apre-
sentação de sete comunicações, contando com a presença de nove pesqui-
sadores(as) do grupo, possibilitando ao público chileno (re)pensar sobre
a marginalidade ocupada pelo povo afro-chileno que se encontra isolado
na região norte do Chile, pois discutir as práticas racistas no Brasil inco-
modou parte do público presente, o que resultou em muitas discussões
sobre a diáspora africana na América Latina.
Tendo como um dos objetivos promover um espaço de discussão crí-
tica e emancipatória para a diversidade de vozes que devem emergir no
espaço acadêmico e escolar para a efetivação de uma educação para as
relações étnico-raciais, no dia 7 de novembro de 2016, o Ylê-Educare par-
ticipou, com uma mesa de discussão, no evento “Lei n.º 10.639/03 na sala
de aula”, destinado a professores(as) e coordenadores(as) da rede munici-
pal de Jandira (SP). Contando com 120 convidados(as), o evento foi um
importante espaço para discutir africanidades, literatura afro-brasileira e
africana, filosofia e negritude, assim como a Lei n.º 10.639/03 e a cons-
ciência negra, explicitando e refletindo sobre outras racionalidades, além
da eurocêntrica, e promovendo uma prática educacional que favoreça as
diferentes culturas e epistemologias.

203
YLÊ-EDUCARE: CAMINHOS E MEMÓRIAS

Quadro 3 – Participação do grupo em eventos externos

03/09/2016 Lançamento do livro Vozes Emergentes na 24ª Bienal do Livro


07, 08 e Participação do grupo no X Fórum Internacional Paulo Freire,
09/09/2016 no Chile
07/11/2016 Evento Lei n.º 10.639/03 e a sala de aula. Secretaria Municipal
de Educação de Jandira.

Fonte: autoras, 2017.

Parte II

Protagonismo das mulheres negras nas atividades desenvolvidas


pelo grupo Ylê- Educare

É no contexto das diferentes possibilidades que o grupo de estudo


Ylê-Educare vem se constituindo e se recriando no espaço acadêmico.
Uma das reflexões que o grupo tem se proposto a fazer é sobre o protago-
nismo da mulher. Protagonismo que tem se colocado diante da e na luta
contra todo e qualquer tipo de discriminação, em especial para que as
mulheres negras tenham um tratamento igualitário nos diferentes espa-
ços da sociedade.
Viola Davis4, em seu discurso ao ganhar o prêmio Emmy de melhor
atriz em série dramática de 2016, afirmou: “A única coisa que diferencia a
mulher negra de qualquer outra pessoa é a oportunidade”. Ao apresentar
essa afirmativa, direcionamos nosso olhar para o longo e antigo caminho
percorrido pelo preconceito racial e a prática do racismo, seja em terras
brasileiras ou não. É certo que a falta de oportunidades no campo edu-
cacional e profissional é uma das questões que precisa ser enfrentada,
quando se trata das possibilidades oferecidas (ou não) à população negra.
Mas é importante trazer à memória que vários percursos sociais e histó-

4  Primeira artista negra a ganhar o prêmio Emmy de melhor atriz em série dramática
(2016). Premiação promovida pela Academia de Artes e Ciências Televisivas dos EUA. No
ano de 2016, em sua 89ª edição, o premio Emmy contempla uma atriz negra na listagem de
um seleto grupo de atores e atrizes.

204
NEIDE CRISTINA DA SILVA E TELMA CEZAR DA SILVA MARTINS

ricos formataram (e ainda formatam) essa diferenciação entre as pessoas,


mais especificamente, entre as pessoas brancas e negras. É importante
ressaltar que quando se observa os diferentes segmentos sociais, nota-se
a ausência da presença negra. Destaca-se ainda que “[...] pretos e pardos
são raramente encontrados nas áreas e funções de maior poder aquisitivo
e status social, ao passo que brancos nelas dominam” (LEÃO et al., 2017,
p. 3). Essa ausência da presença negra é legitimada pelo branqueamento5
que, ao longo dos anos, vem fortalecendo o protagonismo da população
branca em detrimento da exclusão da população negra de vários proces-
sos sociais, econômicos, políticos etc.
Destaca-se que a diferenciação de oportunidades entre brancos e
negros e a negação da presença negra se deu, também, no discurso do
feminismo tradicional6, ao criar um modelo universal de mulher, ocasio-
nando um distanciamento da realidade das mulheres negras.
Daí a necessidade de que estudos e pesquisas sejam organizados a
partir do conceito de interseccionalidade7, que é pautado na interação
entre duas ou mais formas de subordinação, como: sexismo, racismo, pa-
triarcalismo. No caso do feminismo tradicional, a

[...] superação no interior do próprio pensamento feminista, que


tendia a invisibilizar os diversos eixos de opressão sexista, racista
e classista por se basear em uma abordagem universalizante da ex-
periência de ser mulher ou homem, independentemente da raça ou
classe social (SOTERO, 2013, p. 35).

Quanto às condições e oportunidades da população branca em rela-


ção à escolaridade e acesso aos estudos, mais especificamente, a entrada

5  O branqueamento é uma teoria produzida no final do século XIX, quando a elite brasileira
tem a explícita intenção de embranquecer a raça brasileira e resolver os problemas sociais pós-
abolição.

6  Sobre o movimento feminista entre os anos de 1985 e 1995, ver artigo de Monique Lopes
(2012).

7 Kimberlé Crenshaw (apud MOUGEOLLE, 2015) define a interseccionalidade como “[...]


formas de capturar as consequências da interação entre duas ou mais formas de subordinação:
sexismo, racismo, patriarcalismo”.

205
YLÊ-EDUCARE: CAMINHOS E MEMÓRIAS

no ensino superior, o Dossiê Mulheres Negras: retrato das condições de


vida das mulheres negras no Brasil (MARCONDES et al., 2013) traz à tona
essa discussão, permitindo (re)ver alguns dos espaços no qual a mulher
negra tem enfrentado processos excludentes. Dos temas abordados no
dossiê, o artigo de Edilza Correia Sotero trata do tema: Transformações no
acesso ao Ensino Superior Brasileiro: algumas implicações para os diferen-
tes grupos de cor e sexo. Conforme a autora, quando se trata da presença
das mulheres negras no ensino superior, “[...] levando-se em considera-
ção a classificação racial, passa a haver uma grande diferença entre mu-
lheres brancas e negras e entre as mulheres negras e os homens brancos”
(SOTERO, 2013, p. 35).
É importante ressaltar que várias ações afirmativas que legislam em
favor das cotas universitárias têm garantido a entrada de homens e mu-
lheres negros e negras no ensino superior, gerando um acréscimo dos
índices de acesso da população negra nesta modalidade de ensino. No en-
tanto, o Dossiê demonstra que a entrada de mulheres e homens brancos
ainda é muito superior à de mulheres e homens negros.
Diante dessas informações pautadas em dados estatísticos que de-
nunciam os privilégios e oportunidades da população branca em detri-
mento do baixo índice da presença negra na área da educação, é impor-
tante ressaltar que o caminho de resistência da população negra, as várias
ações afirmativas e de empoderamento da juventude negra têm sido ope-
rantes. Ressalta-se aqui o expressivo acréscimo no número de entrada de
homens e mulheres negros e negras no Programa de Pós-graduação da
UNINOVE. Com isso, estudos e pesquisas que contemplam as diversas
temáticas relacionadas à população negra têm sido desenvolvidos nesse
espaço acadêmico, o que tem contribuído para que o grupo de estudos e
pesquisas Ylê-Educare sustente a proposta de, anualmente, criar espaços
para a realização de eventos que provoquem a reflexão da comunidade
interna e externa sobre tais temáticas.
Nesse sentido, ao nos depararmos com a programação realizada pelo
Ylê-Educare, reconhecemos o protagonismo da mulher, em especial, da
mulher negra. Nas atividades realizadas, pode-se observar que os cinco
eventos organizados, no período de 2016 e 2017, contaram com a partici-
pação efetiva de 20 participantes (palestrantes, conferencistas, mediado-

206
NEIDE CRISTINA DA SILVA E TELMA CEZAR DA SILVA MARTINS

res); desses, 10 foram mulheres negras atuando na linha de frente, além


de dezenas trabalhando nos bastidores.
Nos eventos externos, houve a exposição de 19 integrantes, com a
participação de 10 mulheres negras. Destaca-se que o protagonismo da
mulher negra se deu de várias formas, ora na organização dos eventos,
ora na ministração de palestras ou mediando as mesas de debate.

Quadro 4 – Participação dos grupos nos eventos promovidos pelo grupo

Evento Convidados(as) Mulheres Negras


II Encontro Conferência e debate:  Neide Silva
YLÊ-EDUCARE: 13 Questões negras na história do  Juliana Gonçalves
de Maio sob suspeita Brasil.  Maria Ap. Costa
Conferencista: dos Santos
 Neide Silva  Andreia
Mesa: Questões étnico-raciais Fernandes
em debate  Telma Cezar
 Djalma Lopes
 Juliana Gonçalves
 Maria Aparecida Costa
dos Santos
 Andreia Fernandes
Mediadora: Telma Cezar
Palestra: Religião de Palestrante: Somente organização
terreiro e educação  José Walter Silva e Silva
(baiano, economista e professor
do Instituto Federal de
Educação do Piauí – IFPI).

Lançamento do livro Mesa com autores:  Telma Cezar


Vozes emergentes.  Maria Lúcia Silva (Ensino  Maria Lúcia Silva
Realização de Palestras Superior); (Ensino Superior);
 Vanda Araujo (Arte e  Vanda Araujo
Literatura); (Arte e Literatura);
 Jorge Alves (Ensino básico
e outras pedagogias)
 Antônio Germano (idem)
 Fernando Leonel (idem)
Mediação/apresentação do
livro: Telma Cezar

207
YLÊ-EDUCARE: CAMINHOS E MEMÓRIAS

III Encontro YLE- Mesa: Educação, gênero e  Lídia Maria de


EDUCARE: Educação, religiões de terreiro Lima
gênero e religiões de  Yalorixá Ivete Urdiale  Maria Lucia Silva
terreiro  Lidia Maria de Lima
 Nathalia Sato Campana
 Antonio Germano
Mediadora: Maria Lucia Silva
I Roda de Conversa: Palestrantes: Somente organização
13 décadas de 13 de  Juliano Sobrinho
Maio  Rita Alves

Fonte: autoras, 2017

Quadro 5 – Participação do grupo nos eventos externos

Lançamento do livro Autoras  Neide Silva


Vozes Emergentes na  Neide Silva  Claudia Oliveira
Bienal do livro  Claudia Oliveira  Vanda Araújo
 Vanda Araújo  Maria Lucia Silva
 Evangelita Nobrega
 Maria Lucia Silva
X Fórum Internacional  Evangelita Nóbrega  Francisca Monica
Paulo Freire, no Chile.  Francisca Monica  Neide Silva
 Neide Silva  Telma Cezar
 Mauricio Silva
 Djalma Goes
 Ricardo Ribeiro
 Sandra Gomes
 Telma Cezar
 Walter Martins
 José Raimundo
Evento Lei n.º Palestrantes:  Claudia Oliveira
10.639/03 e a sala de  Jorge Alves  Neide Silva
aula. Secretaria Muni-  Mauricio Silva
cipal de Educação de  Claudia Oliveira
Jandira. Mediadora: Neide Silva

Fonte: Autoras, 2017.

208
NEIDE CRISTINA DA SILVA E TELMA CEZAR DA SILVA MARTINS

Explicita-se, ainda, que a intenção é dar visibilidade para o protago-


nismo da mulher no espaço acadêmico e no grupo de estudo e pesquisa
das relações raciais. Neste artigo, realizou-se um recorte do protagonismo
da mulher negra, ressaltando que o combate à naturalização do racismo
perpassa, também, pela efetivação de propostas que incentivam o em-
poderamento e a visibilidade positiva da população negra. Nesse senti-
do, considera-se que os espaços de resistência e visibilidade dos temas
que envolvem a população negra, sua cultura, religião e corporeidade são
emergentes e merecem a atenção da academia e dos demais segmentos da
sociedade brasileira.

Referências

LEÃO, Natália et al. Relatório das Desigualdades de Raça, Gênero e Classe


(GEMAA), n. 1. Rio de Janeiro: Grupo de Estudos Multidisciplinares
da Ação Afirmativa, IESP-UERJ, 2017.

LOPES, Monique. Maior conflito do feminismo tradicional se deu com


realidades locais. Disponível em: <https://www.geledes.org.br/maior-
conflito-do-feminismo-tradicional-se-deu-com-realidades-locais/>.
Acesso em: 8 set. 2017.

MARCONDES, Mariana Mazzini et al. (Org.). Dossiê mulheres negras: retrato


das condições de vida das mulheres negras no Brasil. Brasília, DF: Ipea, 2013.

MOUGEOLLE, Léa. O Conceito de “Interseccionalidade”. 20 de julho


de 2015. Disponível em: <http://www.sociologia.com.br/o-conceito-
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SOTERO, Edilza Correia. Transformações no acesso ao Ensino


Superior Brasileiro: algumas implicações para os diferentes grupos de
cor e sexo. In: MARCONDES, Mariana Mazzini et al. (Org.). Dossiê
Mulheres Negras: retrato das condições de vida das mulheres negras
no Brasil. Brasília, DF: Ipea, 2013. p. 35-52.

YLÊ-EDUCARE. Galeria de eventos. São Paulo, 2017. Disponível em: <http://


yle-educare.wixsite.com/educare/copia-galeria>. Acesso em: 8 set. 2017.

209
TEXTO PUBLICADO NA ORELHA DA
VERSÃO IMPRESSA

O
percurso singular vivido pelos discentes e docentes integrantes
do Grupo de Pesquisas Ylê Educare - educação e questões étnico
raciais, dos Programas de Pós Graduação em Educação (PPGE)
e Gestão e práticas Educacionais (PROGEPE) da Uninove, levou-nos a
publicar este segundo livro, resultado das pesquisas e intensos debates
que colocaram em cena diferentes aspectos relativos à educação e ao em-
poderamento da mulher negra no Brasil. Esse livro é uma coletânea con-
tendo vários ensaios que buscam nas intersecções da exclusão das etnias
negras que habitam nosso país a presença e o empoderamento das mu-
lheres negras que fizeram e fazem história nas mais precárias condições
de vitimização. Mesmo em condições desfavoráveis, elas, como valorosas
guerreiras, deixaram suas marcas indelevelmente inscritas na história so-
cial e política deste país, impõem-se então, desentranha-las das malhas
ideológicas que cobrem uma história concreta, mas que ainda não foi de-
vidamente escrita fazendo jus a quem de direito é. Os fortes e contunden-
tes argumentos das autoras e autores acham-se aqui expostos, de maneira
a revelar os elementos fundamentais de seu pensamento crítico a ponto
de constituírem o que de mais penetrante se busca como justiça social e
políticas públicas. Um dos pontos mais decisivos e penetrantes, qual seja
o preconceito e a injustiça, é aqui apresentado em sua dimensão de ele-
mentos a serem extirpados da sociedade brasileira, sob a perspectiva da
singularidade da participação dos negros na construção social brasileira.

Francisca Eleodora Santos Severino


São Paulo, 25 de setembro de 2017

211
Título Educação e o empoderamento
da mulher negra

Formato 16x23cm
Tipografia textos Minion Pro
Tipografia títulos Minion Pro Bold

Diagramação Israel Dias de Oliveira

F
Editora Casa Flutuante
Rua Manuel Ramos Paiva, 429 - São Paulo - SP - Brasil
Fone: (11) 2936-1706 / 95497-4044
www.editoraflutuante.com.br
ISBN 978-85-5869-038-6

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